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REPÚBLICA PORTUGUESA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA

N.º 37 VI LEGISLATURA 1955 26 DE FEVEREIRO

PARECER N.º 15/VI

Acordo relativo à fronteira de Moçambique com a Niassalândia

A Câmara Corporativa, consultada nos termos do artigo 103.º da Constituição acerca do Acordo relativo à fronteira de Moçambique com a Niassalândia, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e economia ultramarinas e Relações internacionais), sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer;

1. Tem sido intensa e fecunda nestes últimos anos a actividade de Portugal no campo das relações internacionais: umas vezes no cumprimento dos seus deveres de colaboração com as outras nações, para promover a satisfação dos interesses comuns dos povos e o bem geral da humanidade; outras vezes no desempenho de obrigações espontâneamente assumidas perante os outros estados do Ocidente, para cooperar na organização da paz e na defesa da civilização ocidental; finalmente, no exercício dos seus direitos, soberanos, para assegurar a protecção dos seus interesses mais directos e imediatos, quer defendendo-os dos ataques e espoliações de inimigos, quer concertando com as nações amigas a garantia da sua segurança e pacífico desenvolvimento.
A Câmara está em presença de um dos mais recentes resultados, e não dos menos importantes, da afanosa e proficiente actividade diplomática que o Governo vem desenvolvendo, com o fim, felizmente alcançado, de levar o País a ocupar no seio da comunidade internacional o lugar de prestígio que de direito lhe pertence e de fomentar relações de amizade e frutuosa colaboração com as nações a que mais estreitamente nos prendem os laços da história e a comunidade dos interesses, morais e materiais.

2. «O presente instrumento diplomático, ao consignar um entendimento entre estados soberanos, amigos e aliados, na resolução de problemas e na satisfação de interesses comuns, situa-se no termo de um processo histórico cujo encerramento é grato registar na dupla medida em que atinge os fins materiais em vista e simultaneamente corrige situações anteriores menos satisfatórias, que agora são reconduzidas à sua justa posição». Estas palavras do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, com que o Governo fez acompanhar a remessa à Câmara do texto do acordo sob apreciação, definem a significação maior do diploma: entendimento entre estados amigos e aliados que, fiéis a uma política multissecular de recíproca benevolência e colaboração, reafirmam a sua capacidade de resolverem por meio de negociações pacíficas os seus problemas e encontram as fórmulas de conciliação adequadas à satisfação e harmonia dos interesses de ambas as Partes.
É considerável o valor material do acordo, e desse aspecto nos ocuparemos mais adiante; mas é ainda maior o seu valor moral, pelo que significa de compreensão e mútua transigência, no meio dos egoísmos, suspeições e animosidades que campeiam no mundo das relações internacionais nos nossos dias.

3. O acordo «situa-se no termo de um processo histórico cujo encerramento é grato registar».
Vão há muito passados os últimos ecos da tempestade de emoções provocada no País pelo memorando que o Ministro da Inglaterra em Lisboa entregou ao Governo Português em 11 de Janeiro de 1890. Retomou-se logo após, com a assinatura do tratado de 1891, a linha tradicional das cordiais relações de amizade

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entre as duas nações, e a velha aliança foi uma vez mais selada nos campos de batalha da primeira grande guerra pelo sangue dos filhos de ambas as pátrias derramado na defesa de ideiais comuns. Na segunda guerra mundial, em que Portugal não interveio como beligerante, porque a aliança não precisou de ser invocada, nem por isso deixámos de prestar à nação amiga facilidades e auxílios que bastante contribuíram para apressar a vitória. Os dois povos estão hoje, como sempre estiveram no passado, fortemente unidos do mesmo lado da barreira, em frente dos mesmos perigos e das mesmas ameaças. Ainda muito recentemente, ante a traiçoeira agressão dos nossos direitos na índia, a exemplar fidelidade de ambos os países à constante histórica das suas amigáveis relações teve ocasião de manifestar-se no apoio moral que o Governo do Reino Unido se não furtou a demonstrar-nos. E há apenas alguns dias, esta mesma Câmara foi chamada a dar parecer sobre uma convenção cultural luso-britânica destinada a fomentar o melhor conhecimento recíproco dos dois povos e a fortalecer, pelo intercâmbio espiritual, os laços que os unem no domínio político.

Mas subsistia ainda, numa passagem infeliz do trata do de 1891, a lembrança de «situações antigas pouco gratas ao nosso espírito» a que se referia o Sr. Ministro do Ultramar no discurso de abertura das negociações que conduziram ao acordo agora em apreciação. Com a revisão dessa parte do tratado, relativa à fronteira de Moçambique no lago Niassa, e sem prejuízo do que adiante se observa a respeito da fronteira no lago Chi-rua, é de considerar realmente encerrado o processo de fornia honrosa para ambas as partes, e o facto merece ser saudado com júbilo por Portugueses e Ingleses, porque contribui para o ainda maior fortalecimento da sua velha amizade.

4. O Tratado de 11 de Junho de 1891, pondo termo ao litígio que se suscitada entre Portugal e a Inglaterra a respeito dos limites das respectivas esferas de influência na África Oriental, fixou definitivamente as fronteiras de Moçambique e estabeleceu um certo número de disposições destinadas a permitir a livre utilização das vias navegáveis da província e o trânsito através dela para os territórios, britânicos das Bodésias e da Niassalândia.

De um modo geral, essas disposições eram a aplicação dos princípios formulados no Acto Geral da Conferência de Berlim, de 26 de Fevereiro de 1885, e revistos mais tarde na Convenção de Saint Germain-en-Laye, de 10 de Setembro de 1919, ambos instrumentos de que Portugal foi parte contratante.

Em resumo, o tratado estipulava, além das delimitações territoriais contidas nos artigos i a vii: a proibição de qualquer das potências intervir na esfera de influência da outra, adquirindo aí concessões ou aceitando protectorados ou direitos de soberania (artigo viii); o respeito por cada uma das potências das concessões particulares, validamente adquiridas, na esfera de influência da outra, atribuindo-se a um tribunal arbitrai a resolução das questões a esse respeito suscitadas (artigo ix); a liberdade de cultos e a protecção dos missionários de ambas as nações nos seus territórios da África Oriental e Central (artigo x); a liberdade do trânsito de mercadorias entre a costa e a esfera de influência britânica através do território português e a limitação dos direitos por esse facto cobrados; o direito de ambas as partes construírem estradas, caminhos de ferro, pontes e linhas telegráficas nos distritos marginais de ambos os lados do Zambeze e do Chire, «tanto quanto for razoavelmente necessário para o estabelecimento das comunicações entre territórios que estão sob a sua influência» (artigo xi); a liberdade para os navios de todas as nacionalidades da navegação no Zambeze e no Chire e em todas as suas ramificações e embocaduras (artigo xii); a não discriminação entre os súbditos e navios de ambas as potências para efeito da navegação no Zambeze e seus afluentes e a proibição da cobrança de direitos de trânsito pelo facto dessa navegação (artigo xiii); a obrigação para Portugal de construir um caminho de ferro entre a esfera de influência britânica e a baía do Pungue e os necessários ancoradouros nessa baía (artigo xiv); o compromisso mútuo de ambas as potências facilitarem as comunicações telegráficas através dos respectivos territórios e a obrigação particular de Portugal construir uma linha telegráfica entre a costa e a esfera de in-fluência britânica (artigo xv).
Em complemento do tratado, e na mesma data da sua assinatura, celebraram-se acordos por trocas de notas em que foi estabelecido:

a) O arrendamento a pessoas designadas pelo Governo Britânico de terrenos na embocadura do Chinde, destinados a desembarque, armazenagem e transbordo de mercadorias, e, reciprocamente, o arrendamento a pessoas designadas pelo Governo Português de terrenos na margem sudoeste do lago Niassa, para idênticos fins;
b) O compromisso da parte de Portugal de que as tarifas do caminho de ferro a construir nos termos do tratado não seriam «muito maiores do que as tarifas proporcionais por milha cobradas pelos outros cominhos de ferro da África do Sul»;
c) A proibição da importação de bebidas alcoólicas nas duas margens do Zambeze e do Chire e por estes rios em ambas as esferas de influência.

5. Enquanto se não procedia à demarcação no terreno das fronteiras acordadas, estabeleceu-se, por troca de notas de 31 de Maio e õ de Junho de 1893, um modus vivendi sobre as linhas provisórias de limitação dos. territórios em causa. Mas começaram logo a seguir os trabalhos de campo dos comissários dos dois países, e as fronteiras definitivas foram sendo fixadas por sucessivos acordos.
Por troca de notas de 15 de Setembro de 1906 aprovou-se a demarcação do primeiro troço — justamente aquele cujo traçado é agora revisto pelos artigos ii e iii do acordo em apreciação nesta Câmara. Os comissários portugueses nessa demarcação tinham sido os então primeiros-tenentes da Armada Gago Coutinho e Ivens Ferraz.
Na delimitação da região de Manica surgiram divergências, que os dois Governos resolveram submeter à arbitragem do Ministro italiano Paulo Viglíani. Decidida a questão por sentença arbitrai de 30 de Janeiro de 1897, acordou-se a demarcação da fronteira compreendida entre o paralelo 18° 30' sul e o rio Limpopo (troca de notas de 3 de Junho de 1907).
Sucessivamente, foram aprovadas as seguintes demarcações: das fronteiras ao norte e ao sul do Zambeze, em 20 de Novembro de 1911; ao longo dos rios Buo o Chire, em 30 de Novembro de 1911; desde o rio Mazoe até ao paralelo 18° 30', em 9 de Agosto de 1912; desde o Buo até ao lago Niassa (a outra secção alterada pelo presente acordo), em 6 de Maio de 1920; da fronteira com a Suazilândia, em 6 de Outubro de 1927; da fronteira com o território de Tanganhica, em 11 de Maio de 1936; da fronteira com a Bodésia do Sul entre o Limpopo e o Save (revisão), em 24 de Outubro de 1940.

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A concessão britânica no Chinde e a portuguesa em Chipoli, no lago Niassa, foram canceladas por acordo de 19 de Maio de 1925, visto que a construção dos caminhos de ferro do Niassa e da Trans-Zambézia as tornava desnecessárias.

6. Pelo artigo xiv do tratado de 1891, Portugal assumia o compromisso de construir um caminho de ferro entre a baía do Pungue e a esfera britânica.

E essa a origem do caminho de ferro da Beira a Umtali, grande via de penetração da África Central e factor importantíssimo do desenvolvimento económico de ambas as Rodésias.

Na verdade, a ideia da construção dessa linha férrea é anterior ao tratado, visto que os respectivos estudos tinham já sido ordenados pela Companhia de Moçambique, fundada em 1888 por Paiva de Andrada. E foi com base neles que o Governo conferiu à Companhia o encargo da construção, para cumprimento do compromisso contido no tratado.

A Companhia de Moçambique outorgou, por sua vez, a concessão da construção e exploração do caminho de ferro a Henry Van Laun e este transmitiu-a, nos termos do contrato, à Beira Railway Company, para o efeito fundada com capital daquela Companhia e da British South Africa Chartered Company, detendo esta a maioria das acções.

Depois de muitas vicissitudes, em que intervêm na construção e exploração da linha diversas sociedades, mas sempre sob o predomínio da Chartered, a situação estabilizou-se em 1929 com a Beira Railway, proprietária do cominho de ferro, e a Rhodesia Rail-ways, sua exploradora.

Uma nota do Ministério do Ultramar publicada em 128 de Julho de 1948, ao mesmo tempo que anunciava o resgate do porto da Beira, dava notícia de estarem em curso negociações para a compra, do caminho de ferro. Estas vieram a terminar no contrato de 2 de Abril de 1949, pelo qual o Governo da Nação adquiriu à Beira Railway, pela importância de 4 milhões de libras, a propriedade do caminho de ferro da Beira.

7. A construção do porto da Beira tem também a sua origem remota na disposição do artigo xiv do tratado de 1891, onde se estipulava que o Governo Português construiria ou contrataria a construção na baía do Fungue dos necessários desembarcadouros».

Mas foi ao em 14 de Março de 1925 que tomou forma definitiva o contrato celebrado dois anos antes entre a Companhia de Moçambique e a sociedade inglesa Port of Beira Development Ltd., nos termos do qual esta última se comprometia a constituir uma sociedade portuguesa denominada Companhia do Porto da Beira, tendo por objecto a construção do porto comercial da Beira e das obras complementares necessárias. A companhia portuguesa ficava porém com a faculdade, nos termos do contrato, de traspassar os seus «direitos, deveres e garantias ... a um ou mais empreiteiros, quer para a construção do porto comercial, quer para a sua exploração». Esse traspasse de direitos, deveres e garantias não tardou a efectuar-se a favor de uma sociedade estrangeira, o Beira Works Ltd., a quem a Companhia do Porto da Beira, sem o consentimento do Governo Português, transmitiu a concessão por contrato de 21 de Julho de 1926. E, para consumar a situação, logo em 38 do mesmo mês a Companhia de Moçambique, a Companhia do Porto da Beira e a Beira Works Ltd. contrataram entregar ao Rhodesia Railways Trust todo o trabalho da exploração do porto.
Estava assim na mão de companhias estrangeiras tanto a propriedade como a exploração do porto da Beira quando o Governo deu ao País, pela já referida nota de 28 de Julho de 1948, a grata notícia do resgate da concessão, o qual veio a efectivar-se em 1 de Janeiro de 1948, mediante o pagamento à concessionária da indemnização acordada de 210 000 contos.

8. Não parecem despropositadas, ao apreciar-se o Acordo Luso-Britânico de 18 de Novembro de 1954, estas referências ao caminho de ferro e porto da Beira. Se com o acordo se põe termo ao processo de revisão de situações inconvenientes constituídas à sombra do trotado de 1891, as operações de resgate das concessões estrangeiras que dele directa ou indirectamente resultaram são actos da maior relevância nesse processo.
Assim o entendeu a Nação inteira, ao demonstrar, com patrióticas manifestações de júbilo, o seu reconhecimento e aplauso ao Governo pelas decisões a esse respeito tomadas.
A integração do caminho de ferro e do porto da Beira no património nacional não valeu apenas como acto de política interna, destinado a submeter ao poder e fiscalização do Estado bens e serviços que respeitam muito de perto ao exercício da soberania. (A administração e exploração dos portos do ultramar são reservadas para o Estado, nos termos do artigo 163.° da Constituição Política da República). O resgate do porto e caminho de ferro foi também um acto relevante de política internacional, praticado não em detrimento, mas em benefício dos interesses dos territórios vizinhos da província de Moçambique, e pôs, portanto, nas mãos do Governo Português um instrumento valioso de colaboração e negociação com os governos a quem cumpre velar pela prosperidade desses territórios.
Primeiro acto de colaboração internacional emergente da nova situação foi a Convenção entre o Governo da República Portuguesa e o Governo dq Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, em seu nome e no do Governo da Rodésia do Sul, relativa ao porto da Beira e aos caminhos de ferro que o servem, assinada em Lisboa em 17 de Junho de 1960. Reconhece-se nesta Convenção o interesse vital que representa para os territórios das Rodésias e da Niassalândia a manutenção de facilidades no porto e caminho de ferro da Beira e estipula-se em consequência: o compromisso do Governo do Reino Unido de garantir a utilização, pelo tráfego daqueles territórios, da capacidade máxima de transporte e manuseamento de carga do caminho de ferro e do porto e impedir qualquer discriminação de tarifas ou outras práticas que possam desviar o tráfego do seu escoamento natural pela via da Beira; e o compromisso recíproco do Governo Português de fazer no porto e no caminho de ferro as obras de ampliação e melhoramento e as aquisições de equipamento convenientes para assegurar a maior eficiência dos serviços e manter a capacidade de tráfego em nível adequado às necessidades dos territórios abrangidos na Convenção.
De que maneira têm sido cumpridos os objectivos da Convenção, graças aos financiamentos do Governo da metrópole e ao trabalho da Administração dos Portos, Caminhos de Ferro e Transportes de Moçambique, dizem-no, melhor do que quaisquer palavras, as números seguintes:

A) Porto da Beira:

1) Movimento de mercadorias (carga, descarga e baldeação, em toneladas):

No ano de 1948.......l 312 670
No ano de 1954.......2906918

2) Receitas totais da exploração (contos):

No ano de 1948....... 100 730
No ano de 1954....... 171 810

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B) Caminhos de Ferro da Beira:

1) Mercadorias transportadas (toneladas):

No ano de 1948....... l 523 615
No ano de 1954....... 2 730 000

2) Receitas totais da exploração (contos):

No ano de 1948....... 156 567
No ano de 1954....... 300 000

As importâncias indicadas como receitas da exploração do porto no ano de 1948 são obtidas por conversão da libra ao câmbio de 110$. Os dados referentes ao tráfego e receitas do caminho de ferro no ano de 1954 são obtidos por aproximação, a partir dos resultados dos meses de Janeiro a Outubro, últimos apurados.

Os valores investidos no estabelecimento de 1949 a 1952 sobem a 219 603 contos no porto e a 411 275 contos no caminho de ferro.

9. O tratado de 1891 traçara a fronteira de Moçambique com o lago Niassa pela linha da sua margem oriental, isto é, sem deixar a Portugal qualquer porção das águas do lago. O mesmo critério se seguiu na demarcação das fronteiras nos lagos Chiuta e Chirua. A situação era vexatória por contrária à prática, geralmente aceito, da divisão das águas interiores entre os estados ribeirinhos.

As conversas havidas em Lisboa em Julho de 1951, entre o embaixador da Grã-Bretanha e o governador da Niassalândia, de um lado, e uma delegação portuguesa presidida pelo Subsecretário de Estado do Ultramar, do outro lado, permitiram encarar, a possibilidade da participação de Portugal em importantes projectos destinados à regularização das águas do Niassa e do Chíre e ao seu aproveitamento para produção de energia eléctrica.

Condição prévia seria, porém, na opinião da delegação portuguesa, a transposição da fronteira de Moçambique da linha da costa para a linha média das águas do lago. A condição foi, em princípio, aceita por troca de notas de 17 de Janeiro de 1953, e veio a ser regulada definitivamente pelo Acordo que estamos analisando.

Partindo da base da divisão das águas do lago, o acordo de 17 de Janeiro estipulou a comparticipação de Portugal, na proporção de um terço, nos encargos dos estudos preliminares necessários à elaboração dos projectos e à execução das importantes obras hidráulicas previstas. Para esse efeito foi inscrita no Plano de Fomento a verba de 10 000 contos, a despender em 1953 e 1954.

Se o resultado dos estudos encorajar o prosseguimento do plano, será então constituída uma empresa mista luso--britânica com o encargo de construir a represa para estabilização das águas do lago e regularização do caudal do rio Chire, assim como as barragens e centrais hidroeléctricas destinadas ao aproveitamento desse caudal em vários escalões.

As obras de hidráulica agrícola destinadas à beneficiação das terras do baixo Chire serão de conta de cada uma das partes nos respectivos territórios, de harmonia com as suas necessidades e conveniências.

10. São muito importantes as possibilidades que se abrem à colaboração luso-britânica no aproveitamento conjunto do enorme reservatório natural de energia que é o lago Niassa com as quedas do Chire.

O lago, hoje sujeito a grandes fluetuações de nível, devido ao regime das chuvas na sua bacia hidrográfica, mede 580 km de comprimento por 80 km de largura máxima e atinge nalguns pontos profundidades de 700 m. Por cada metro de altura da barragem a construir na saída do lago para o Chire obter-se-á um repre-samento de águas vinte e cinco vezes maior do que o da albufeira do Castelo do Bode.
O rio Chire, com uma bacia hidrográfica de 151 500 km2, a montante de Port Herald, apresenta quedas naturais de grande potencial hidráulico que totalizam o desnível de 278 m. A estabilização do nível do lago e a regularização do curso do rio permitirão a utilização em cinco centrais de um caudal permanente calculado em 178 m3 por segundo, com uma potência de 360 000 kW.
Todas as indicações técnicas deixam, pois, prever a possibilidade da produção de uma grande massa de energia hidroeléctrica a baixo preço, com largas repercussões no desenvolvimento económico dos territórios interessados.
Por outro lado, a regularização do curso das águas tornará possível a recuperação e valorização de extensos tractos de terreno no baixo Chire, de potencial agrícola reconhecidamente elevado para culturas ricas, nomeadamente do algodão.
Os estudos preliminares dos aproveitamentos hidroeléctricos, que se encontram quase concluídos, foram confiados à firma britânica Sir William Halcrow and Partners e têm sido acompanhados em África por dois engenheiras portugueses, sob a superintendência da Inspecção-Geral do Fomento do Ultramar.
Seria agora de recomendar que o Governo mandasse proceder quanto antes ao estudo de um anteplano de ocupação e valorização económica da parte central de Moçambique, em vista das disponibilidades de energia que se anunciam e da sua utilização na indústria, na agricultura, nas explorações mineiras e nos transportes, de modo a determinarem-se os mercados potenciais da electricidade a produzir e planearem-se as respectivas redes de transporte e distribuição. Afigura-se particularmente oportuno o estudo de três grandes linhas de penetração, que seriam dirigidas: a primeira, ao porto de Nacala, servindo o Gurué, Ribaué e Nampula; a segunda, à Beira, onde entraria em conexão com o aproveitamento do Revué, servindo a Zambézia, Quelimane o Inhaminga; a terceira, a Tete, Macanga e Marávia, para o desenvolvimento agrícola e mineiro destas regiões.

11. E também de pôr em relevo a vantagem que resulta da partilha do lago quanto à possibilidade de prolongamento do caminho de ferro de Moçambique até à margem portuguesa.
Na costa do Indico é esse caminho de ferro servido pelo porto de Nacala, cujas excelentes condições naturais o indicam como um dos melhores da África Oriental, desde que sejam concluídas as obras nele previstas. Formado por uma série de baías com 13 km de extensão, 3500 m de largura média e fundeadouros de 15 a 25 m, o porto de Nacala oferece, pela sua configuração, excepcionais condições de abrigo naquela costa e terá, uma vez construídos os cais e instalado o equipamento necessário, capacidades de tráfego praticamente ilimitadas. Ligado pelo caminho de ferro ao lago Niassa, estará em condições de grande vantagem para servir não só a parte norte de Moçambique, mas também a Tauganhica e a Niassalâudia. E se, do actual término em Nova Freixo (Cuamba), prosseguir para ocidente, a fim de entroncar algum dia com os caminhos de ferro da Rodésia ou do Congo, virá a completar, com o caminho de ferro de Benguela, a via mais curta entre as duas costas da África, estabelecida entre dois dos seus melhores portos, ambos portugueses (Lobito e Nacala) .
A construção do porto de Nacala faz parte do Plano de Fomento e as respectivas obras, avaliadas em

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37 000 contos, foram já adjudicadas em Dezembro último.

Quanto ao caminho de ferro de Moçambique, também foi dotado no Plano de Fomento com 222 000 contos o seu prolongamento de Nova Freixo a Catur, numa extensão de 184 km. Ficarão assim construídos de Na-cala a Catur 686 km de linha. Para atingir o Niassa em Porto Arroio (Meponda) bastarão mais 96 km.

12. Infelizmente, não se manteve em relação aos outros lagos fronteiros de Moçambique o mesmo critério de divisão pela linha média das águas que foi adoptado para o Niassa. Certo é que esses outros têm pequena extensão, comparada com a deste. Mas isso não impede que se estranhe a diferença de critérios.

Quanto ao lago Chiuta, ela pode justificar-se pela dificuldade de estabelecer uma linha média, dado o carácter mal definido das margens — em terreno pantanoso, que as águas ora submergem ora deixam a descoberto. Adoptou-se aí como fronteira a linha do meridiano de certo ponto da margem oriental, e, como esta faz uma bolsa para sueste, entrou considerável parte do laço para a soberania portuguesa, com o consequente direito para os habitantes de Moçambique de utilizarem todas as suas águas para a pesca e navegação.

Mas a respeito do laço Chirua, mais importante, não foi possível alterar a situação resultante do tratado de 1891; Portugal continua excluído da posse de qualquer porção das águas do lago, a não ser numa pequena enseada que a erosão cavou dentro da linha dos marcos da fronteira.

Dignos de apreço são os esforços que fez a delegação portuguesa, presidida pelo engenheiro Rui de Sá Carneiro, para obter a aceitação da linha média dos águas como fronteira no lago Chirua. Mas a própria natureza tinha criado aí, desde que a fronteira fora inicialmente demarcada, uma situação de facto que dificultava as possibilidades de acordo. As águas do lago haviam recuado em relação à margem portuguesa, deixando a descoberto uma faixa de terreno, onde se tinham estabelecido algumas centenas de pescadores indígenas da Niassalândia. Nuo se aceitou nem que esses indígenas ficassem sob a soberania portuguesa nem que Portugal tomasse o encargo, a que se oferecia, de fazer a transferência deles para qualquer outro ponto do protectorado. Sob o risco de fazer gorar o acordo, houve que aceitar a situação e manter a fronteira primitiva.
Mas a situação não parece facilmente sustentável. Os indígenas de que se trata não podem subsistir sem o recurso à terra portuguesa para tudo o que o lago lhes não dá: a carne, a lenha e os produtos agrícolas. E a natural consequência do acerto de fronteiras, agora estabelecido será que para o futuro os súbditos de cada uma das partes terão de conter-se rigorosamente dentro dos respectivos territórios. Para isso é que o traçado foi modificado noutros pontos e se fez o acordo de nova demarcação. Deixaria de fazer sentido que nas novas circunstâncias os indígenas do Chirua continuassem a fazer culturas e cortar madeiras em terra de Moçambique.
Por isso se alimenta a esperança de que a questão possa ainda vir a ser revista e se não mantenha por muito tempo a situação anómala, que, felizmente, terminou no lago Niassa e, por fórmula diferente, no lago Chiuta.

13. Além da divisão das éguas dos dois referidos lagos, o acordo sanciona uma série de rectificações da fronteira terrestre na região da Angónia e de um pequeno troço na região de Mutarara.
A comissão mista luso-britânica que operou no terreno em 1899 e 1900 deveria proceder à demarcação da linha de cumeada que separa a bacia hidrográfica do Zambeze das do Chire e do Niassa, pois essa era a linha definida pelo artigo i do tratado de 1891. Verificaram, porém, os comissários a enorme dificuldade e, por vezes, a impossibilidade de marcar no campo a linha divisória das águas, e acordaram em a substituir por uma sucessão de segmentos de recta a unirem pontos notáveis, intervisíveis, nos quais foram levantados marcos de pedra solta. A fronteira demarcada divergia, assim, da convencionada no tratado.
Com o andar do tempo os indígenas de ambas as portes estabelecidos nos territórios confinantes foram, aqui e além, invadindo o terreno alheio para estenderem as suas culturas e pastagens. Passou a haver súbditos portugueses em terras da Niassalândia e súbditos britânicos em terras de Moçambique e a fronteira de facto deixava de coincidir tanto com a do tratado como com a demarcada no terreno.
Esta situação criava, naturalmente, embaraços às administrações locais e foi fértil em conflitos entre os indígenas, por vezes com certa gravidade.
Acordou-se, pois, em encarregar a comissão mista de propor uma nova demarcação que conjugasse os interesses mútuos no terreno e legalizasse a situação existente onde isso pudesse fazer-se sem detrimento de qualquer das partes.
Do lado da Niassalândia havia interesse em adquirir algumas áreas na fronteira da Angónia, com aglomerados de nativos seus de certa grandeza, e em fazer correr inteiramente no seu território uma estrada também sua, de que alguns troços ficavam em terra portuguesa.
Da parte de Portugal interessava, além do objectivo principal, que era a demarcação das fronteiras lacustres, a incorporação no território de Moçambique de uma pequena zona da região de Mutarara onde se exercia a soberania portuguesa, mas estava para lá da fronteira definida pelo tratado de 1891.
Esses são os objectivos realizados pelo acordo de 18 de Novembro de 1954 no que respeita à demarcação de fronteiras.

Apreciado quanto a extensão dos territórios que, por seu efeito, mudam de soberania, o balanço do acordo é o seguinte: Portugal adquire uma área de 6400 km2 no lago Niassa, mais 60 km2 no lago Chiuta, mais 4,7 km2 na região de Mutarara. As permutas de terrenos na região da Angónia saldam-se por uma diferença de 20 km2 favor da Niassalândia.

14. Por quanto fica exposto, a Câmara Corporativa entende que deve ser aprovado, para ratificação, o Acordo relativo à fronteira de Moçambique com a Niassalândia, assinado em Lisboa em 18 de Novembro de 1954.

Palácio de S. Bento, 4 de Fevereiro de 1055.

Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Francisco José Vieira Machado.
Francisco Monteiro Grilo.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
Vasco Lopes Alves.
António Faria Carneiro Pacheco.
Augusto de Castro.
Manuel António Fernandes, relator.

IMPRENSA NACIONAL de LISBOA

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