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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA
N.º 71 VI LEGISLATURA 1956 19 DE JANEIRO
PARECER N.º 33/VI
Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 105.º da Constituição, acerca do Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica, emite, pelas suas secções de Interesses de ordem cultural (subsecções de Ciências e letras e Belas-artes) e de Interesses de urdem administrativa (subsecção de Relações internacionais), sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer;
1. O que há de essencial a dizer-se, na generalidade, acerca destes instrumentos diplomáticos que se agrupam sob a classificação específica de «acordos intelectuais internacionais» está dito no parecer, da Câmara Corporativa n.º 14/VI, «Convenção cultural luso-britânica» (Antas, n.º 15, de 5 de Fevereiro de 1955). Como então se acentuou, é legítimo distinguir, quanto nu conteúdo, entre acordos parciais ou limitados (universitários, escolares, linguísticos) e acordos intelectuais gerais, que abrangem no seu âmbito muitos sectores da cultura mental e para os. quais se reservou a designação, que tem sido discutida, de «acordos culturais». Quanto à forma, classificam-se de típicos ou de atípicos, conforme mais ou menos se ajustam aos lineamentos e à técnica, considerados modelares, do Acordo ítalo-húngaro de 16 de Fevereiro de 1935, paradigma da maioria dos instrumentos congéneres que se assinaram depois dessa data. Embora de carácter predominantemente universitário (cursos, institutos, bolsas de estudo, visitas de professores e de estudantes, equivalência de títulos e de graus), o Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica, agora submetido ao exame desta Câmara, inclui outras actividades (conceitos, conferências, exposições, protecção e difusão do livro, rádio, televisão, cinema, fonogramas, colaboração no estudo dos problemas respectivos aos territórios ultramarinos), o que nos permito efectivamente considerá-lo, como a Convenção luso-britânica de 19 de Novembro de 1954, um Acordo cultural bilateral cuja forma só não afasia sensivelmente do padrão clássico desta espécie de diplomas.
2. A primeiro questão que só apresenta, na apreciação do texto de um acordo cultural é sabor se de facto se trata de culturas que tenham interesse e vantagem em aproximar-se. No domínio dos princípios não se suscitam dúvidas. O direito à livre circularão das informações tem e sou complemento natural na cooperação universal dos espíritos. Passa como dogma no Mundo moderno - e Deus nos livre de despertar dessa ilusão - que, facilitando a intercultura dos povos, consolidamos a paz internacional. Evidentemente, todas as nações têm, de maneira geral, vantagem em aproximasse e colaborar. Nem todas, porém, possuem na mesma medida a capacidade de compreensão, o espírito de sociabilidade, a vocação ecuménica indispensáveis para que a sua aproximação suja útil e proveitoso o trabalho que realizem um comum. A vasta experiência adquirida até hoje neste domínio particularmente delicado das actividades diplomáticas regista o malogro de muitas iniciativas generosas. Nada mais fácil, para certos Estados, do que assinar um acordo cultural; nada mais difícil do que cumpri-lo. Um estatuto desta natureza mio se improvisa. Surge da necessidade de dar expressão jurídica a relações internacionais já existentes de facto, como consequência de afinidades étnicas, históricas e linguísticas, ou de uma longa e secular tradição de interesses conjugados e de aspirações comuns. Está precisamente nesse caso o diploma de que nos ocupamos. O Acordo cultural entre Portugal e a Bélgica não constitui um produto artificial do labor das Chancelarias; corresponde a uma realidade viva e palpitante da Cul-
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tura e da História. E a continuação de um diálogo que Portugal há oito séculos mantém com a Flandres e o Brahante, colóquio de guerreiros, de mercadores, de doutores, de artistas, de príncipes, que se ouviu nos campos de batalha e nas Universidades, nas catedrais e nas feitorias, nos mercados e nos castelos, nos paços ducais e nas pinacotecas ofuscantes, e cujos ecos nós escutamos ainda - voz das cachoeiras e das florestas - no longo da extenso - fronteira que noa separa - ou nos une - na África. A primeira questão apresentada esta Câmara não pode responder senão pela afirmativa. O Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica, instrumento de superior interesse e de evidentes vantagens para os dois países; não propicia apenas uma colaboração que começa; assegura, a sua luminosa expressão político-jurídica, a perenidade de uma obra quo continua.
3. Portugal e a Bélgica, consideradas na linguagem diplomática «nações de influência restrita», são, de facto, grandes nações. O que caracteriza hoje uma grande nação não é apenas a sua extensão territorial; nem o seu volume demográfico, nem o poder dos seus armamentos militares, nem a resistência da sua armadura económica: - é a sua missão criadora de altos valores humanos; é o papel que essa nação desempenhou na história da cultura e da civilização. A fatalidade geográfica deu aos nossos dois povos, dotados da mesma virtualidade civilizadora -, diferentes destinos. Nós, atirados para o extremo ocidental do continente europeu, integrámos e estabilizámos desde a primeira hora o nosso território na sua expressão definitiva - pequena varanda debruçada sobre o mar. As duas partes - da Bélgica, porem - a Lotaríngia germânica e a Flandres romanizada -, separadas pelas brumas do Escalda, permaneceram durante séculos voltadas uma para a outra - duas metades da mesma áurea romã coroada, esplêndidas de riqueza e de cor -, à espera de que a França por um lado, o Santo Império por outro, as deixassem unir-se um dia. Enquanto esperavam a unidade política, nessa perigosa - encruzilhada que foi o camp de drap d'or das grandes batalhas da Europa, fortaleceram pouco a pouco, a sua unidade nacional e realizaram - o que especialmente nos interessa agora - a obra maravilhosa da unidade da sua cultura. Antes de ser, de facto, um Estado, a Bélgica, pelo prestígio das suas Universidades, pelo orgulho das saias corporações medievais, pelo mecenato sumptuoso dos seus duques letrados e dos seus banqueiros filólogos, pelo fulgor da sua arte - de Van Eyck a Memling, de Tenniers a Rubens -, pelo benemérito esforço dos seus impressores, cujos prelos, como ó de mestre Plantiao de Antuérpia, ajudaram a difundir o génio da Renascença -, a Bélgica, repetimos, tornou-se o ponto de cruzamento de todas as grandes correntes do pensamento europeu, uma dos metrópoles universais do Humanismo, realmente digna de ter inspirado a Utopia, de Morus, nova Escola de Atenas a que presidiu, sentado em majestade na sua cátedra - do Colégio das Três Línguas, de Lovaina, Erasmo Roterdamo, cidadãos do Mundo. Nessa altura, e muito antes disso, outro a pequeno grande povo» - como alguém nos chamou -, animado do mesmo génio universalista e do mesmo espírito cristão, assembleia obscura e silenciosa de mareantes e de sábios - cartógrafos, cosmógrafos, astrónomos, matemáticos , estava já realizando a mais vasta empresa de investigação científica que até aí a humanidade conhecera: as navegações e os descobrimentos dos séculos XV e XVI. Tanto, pelo menos, como os interesses económicos (as próprias feitorias portuguesas da Flandres tratavam tombem do intercâmbio universitário e das aquisições de arte), foi a intercultura que nos aproximou. Ela representa para os duas nações uma tradição gloriosa. É justo que tenha o seu estatuto.
4. As relações entre Portugal e os velhos condados que hoje constituem a nação belga, mormente s Flandres, começaram - como em geral começa o convívio de todos os povos - pelas peregrinações religiosas, pelo comércio terrestre e marítimo, pelas expedições militares, pelas alianças dinásticos e, ainda, ao caso de que nos ocupamos, pela colonização estrangeira. Antes de Portugal existir como Estado independente já os príncipes, os nobres de Gand, os mercadores de Bruges, a gente loira e gigantesca das comunas brabantinas vinha todos os anos em peregrinação a Santiago de «Compostela, seguindo o itinerário a que as velhas -crónicas chamaram depois o a caminho da Espanha». Um dos peregrinos, Henrique de Borgonha, príncipe flamengo, descendente por linha de varonia dos monarcas de França, - foi o pai do primeiro rei de Portugal. Por esse tempo já as naus normandas, as barcas vikings, as galés de Antuérpia visitavam as contas portuguesas para levar de cá o pouco que nós podíamos então vender-lhes: «amêndoas, figos, romãs e uvas» (Portagem de. Bapaume, ano de 1202). Com os Cruzados - armadas de Deus - Portugal recebe, para completa vertebração do seu território, o auxílio de vários povos e, em especial, dos Flamengos, os «homens dos braços de ferro», «fortissini onium, honrun», que Júlio César, dominador -das Gálios, exaltava já mas páginas admiráveis dos Comentários. Os
germano-flamengos do conde de Aerschot e de Cristiano de Giatell ajudam-nos, em 1147, a conquistar Lisboa. Em 1188, na segunda Cruzada, os flamengos de Jacques d'Avesnes, ao serviço de Sancho I, tomam Silves, cujo prelado, o bispo Nicolau, é flamengo também. São ainda flamengos que, em 1217, na quinta Cruzada
— Deus lo vult!- facilitam a Afonso II a empresa de Alcácer. Mas a obra que as espadas começam é o arado que a acaba. Outro flamengo, Guilherme, deão da da Sé de Silves, vai em pessoa buscar colonos aos campos brabantinos e os comunas da Flandres. O sangue da Bélgica transfunde-se nas veias do povo português. A flor da população começam a brotar os tipos ruivos de Atouiguia e de Vila Verde, da Azambuja e da Lourinhã. Mais tarde, no meado do século XV, o movimento de migração flamenga atingirá os Açores (Terceira, S. Jorge, Faial), conduzido por Tiago de Bruges, por Josse de Hurter, por Guilherme van der Haegen. Recuperada a terra, rejuvenescida a raça pela semente' germânica, estabelecem-se relações políticas e económicas regulares entre os dois povos. Três alianças dinásticas são o seu principal instrumento: o casamento de Filipe da Alsácia, conde de Flandres, com a i«filha de Afonso Henriques - a «condessa Matilde» dos historiadores -, mulher superior cuja política se apoiou nas comunas e que fortificou a cidade de Ganid; o de Joana de Constantinopla, filha do conde
Bal-duíno de Flandres e do Hainaute, depois coroado imperador bizantino, com o infante Fernando ou Ferrand de Portuga], o bravo filho de Sancho I, que se bateu em Bouvines contra Filipe Augusto pela liberdade do povo flamengo; o do duque de Borgonha, Filipe, o Bom, com a filha de D. João I, Isabel de Portugal, o «Tálamo do Tosão de Ouro», de que nasceu esse príncipe duro e melancólico, enérgico e taciturno - Carlos, o Temerário -, tão português pelo tipo e pelo carácter, que encarnou o sonho da unidade e da independência belga - e que morreu por ele, crivado de feridas e devorado pelos lobos, no campo de batalha de Nancy. Estava paga a dívida heróica de Lisboa, de Alcácer e de Silves. Entretanto, sob a protecção dos príncipes, a economia das duas nações prosperava; assinava-se,
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em 1386, no oratório de Filipe, o Ousado, o primeiro tratado de comércio entre a Flandres e Portugal; em Bruges, na praça ogival dos Agostinho», surgia a primeira feitoria portuguesa; depois, com o assoreamento do Zwyn e o declínio da Veneza flamenga - mais tarde convertida na Bruges Ia Morte, de Rodenbach - nova feitoria de Portugal se instalava em Antuérpia - mercatorum emporium -, num palácio do Kipdorn, agora Avenida da França, a que logo foi concedido o privilégio da extraterritorialidade, - ao mesmo tempo galeria de arte e casa de comércio academia de filólogos latinos s grande escola da diplomacia portuguesa do século XVI. Aí nasceu, nessas vastas salas armadas de tapeçarias, no convívio dos potentados da - banca internacional - os Fugger, os Welser, os Galterotti, os Bouvisi, os Spinola -, vendo passar pintores-diplomatas,
mercadores-filósofos, príncipes-mecenas, feitor resletrados,
doutores-magníficos, o brilhante movimento da cultura luso-belga, já velha de cinco séculos, cuja história acaba de ser enriquecida pela assinatura do presente. Acordo, agora remetido para ratificação à Assembleia Nacional por um representante excelso das mais altas e mais nobres tradições universitárias portuguesas, - o Sr. Prof. Paulo Cunha, Ministro dos Negócios Estrangeiros.
5. Em regra, as Convenções políticas ou político-económicas dirigem-se a realidades eminentemente actuais. Não têm passado, ou o seu passado não interessa. Pelo contrário, as Convenções ou Acordos culturais constituem o produto não só de necessidades presentes, mas de razões históricas e tradicionais cujo conhecimento importa a sua perfeita compreensão,
porque representam, em geral, para as Altas Partes contratantes, um título de orgulho e uma. vasta capitalização de experiência. Para se ter a noção exacta da sua significação e do seu alcance é preciso olhar para trás. Será o presente que os aconselha; mas é o passado que os justifica. O Acordo cultural entre Portugal e a Bélgica, se o não abonasem fortes razões de política pragmática (respectivas sobretudo à nossa vizinhança no continente africano e à consequente necessidade de uma colaboração estreita para o estudo de certos problemas comuns), bastaria o deslumbrante panorama de cinco séculos de intercultura para o justificar. Evidentemente, esta Câmara tem de emitir um parecer e não - o que seria demasiado ambicioso - de escrever um ensaio sobre os relações entre Portugal ff a Flandres nos domínios da arte, da ciência, da literatura e dos actividades universitárias. Algumas referências, porém, a factos mais relevantes ou mais típicos bastam para acentuar o carácter de opulência, de variedade e de continuidade do nosso convívio e do nosso contributo comum para u história da cultura europeia. E conhecida a influência que a arte flamenga exerceu sobre a pintura portuguesa do século XV, mormente desde que João van Eyck esteve em Lisboa, em 1429, como membro da embaixada de Filipe, o Bom, que veio buscar a filha de D. João I, futura duquesa de Barganha. Do contacto que o mestre da Adoração do Cordeiro Místico estabeleceu com os - nossos artistas, então, segundo parece, sob a influência italiana de mestre António Florentim, resultou a revolução da técnica - esplendor de colorido, perfeita distribuição do« volumes e dos valores, observação meticulosa do documento humano - que havia de tornar possível, pouco depois, o caso genial e Nuno Gonçalves. O parentesco das duas pinturas acentuou-se com a permanência de Bernardo van Orley em Portugal; com a forte impressão produzida entre nós pela arte de Memling; com as sucessivas encomendas do obras de mestres flamengos feitas pela nossa feitoria do Bruges; com a execução, nas oficinas dos tapeceiros de Bruxelas e de Tournai, de panos de armar tecidos sobre cartões de pintores portugueses (tapeçarias de Arzila, magistralmente estudadas num trabalho notável pelo presidente da Academia Nacional de Belas-Artes, Sr. Prof. Reinaldo dos Santos). Conhecem-se também, e são particularmente brilhantes - em especial no período áureo da Renascença -, as relações interuniversitárias dos dois países. Enquanto Nicolau Clenardo, mestre flamengo, latinista, belenista, hebraísta, arabista, vem dirigir em Portugal os estudos do futuro cardeal D. Henrique, pelos claustros e pelas arquibancadas 'da Universidade de Lovoina passam, admiráveis de dignidade, as figuras tutelares de André de Resende, de Frei Brás de Braga, do franciscano Roque de Almeida, de Frei Diogo de Murça, futuro reitor da Universidade de Coimbra, de Damião de Gois, filólogo, diplomata, historiador, músico, hóspede e amigo dilecto de Erasmo, herói que numa hora grave - o cerco do Lovaina pelas tropas de Francisco I - organiza a defesa da cidade e (tão grande era o seu prestígio!) assume as responsabilidades do governo com o conde de Vernemburgo e o bailio do Brabante. Damião de Gois'! Vemo-lo nn casa de Anderlecht quando Erasmo Roterdamo consagra o seu Crisóstomo ao rei D. João III; em Antuérpia, na oficina de Cristóvão Plantino (hoje Museu Plantino-Moreto), ajudando o célebre impressor a plantar a vide simbólica que derramou - na Europa o «vinho da sabedoria»; finalmente, em Lovaina, recebendo o título de nobreza e a carta de brazão dos mãos de um rei-de-armas de Carlos V. E a literatura? Quem ignora que Bruxelas, assistindo por duas vezes à representação de obras dê Gil Vicente, abriu - ao teatro português as portas do Mundo? Em 1030 foi o Auto da Lusitânia, levado à cena na Embaixada de Portugal, perante toda a corte, como refere André de Resende no Genethliacon; um ano depois, em 1031, outra peça vicentina, hoje perdida, Jubileu de Amores, cujo «erasmismo» suscita amargos comentários ao legado do Papa Clemente VII. E o jornalismo? Quem precioso da hemerografia nacional?
6. Mas, já o dissemos: a intercultura luso-flamenga não é apenas uma tapeçaria histórica destinada a guarnecer as paredes de um- museu. É uma realidade viva. E uma actualidade fremente. Sem prejuízo do seu idealismo cristão, que nele mantém intacto o culto do passado, o hércules loiro do Brabante, laborioso e tenaz, realiza a sua missão civilizadora construindo duramente, àsperamente, o futuro. Um contraste inesperado, surpreende quem chega hoje n Antuérpia: ao lado da alta torre gótica da catedral, maravilha de elegância e de espiritualidade, erguem-se os vinte e três andares do maciço e moderníssimo Boerentoren, um dos primeiros arranha-céus da Europa. Toda a Bélgica está ali, nesse contraste que é um símbolo, nessa aliança que é uma força. Ao tranquilo fulgor das velhas cidades da Renascença, trípticos de pedra em que há sempre um município, uma catedral e um castelo, respondem hoje, na zona do ferro e do carvão, em Liège e em Charleroi, o clarão vermelho e ciclópico dos altos-fornos, as instalações -gigantescas da grande metalurgia, os fábricas eriçadas de chaminés como florestas, os portos, as docas, os bairros mineiros, as cidades operárias, o Mundo agitado, metálico, estrepitoso, vertiginoso que Verhaeren cantou nas Forces Tumultwenses e nas Villes Tentaculares. Novos interesses da vida e da cultura vêm, não substituir-se aos antigos, mas associar-se a eles. Já não há apenas Universidades clássicas; há Universidades do Trabalho. Em 1908 o Mundo assiste ao singular es-
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pectáculo de ver um rei oferecer pacificamente ao seu povo mais de dois milhões de quilómetros quadrados do território africano do Congo. Era a prodigiosa bacia do Zaire, em cuja foz se erguera quatro séculos antes o padrão de pedra de Diogo Cão. Novos horizontes, prolongados ainda até às brumas azuladas do Tanganica pela entrega sob mandato dos territórios do Ruanda-Urundi; se abriram ao esforço civilizador do povo belga; novas e vastas perspectivas à sua investiga cão científica. Funda-se a Universidade Colonial de Antuérpia; na mesma cidade, uma Escola de Medicina Tropical; em Tervueren, o Museu do Congo Belga; no próprio território ultramarino organismos criadores de ciência, como o Instituto de Pesquisas Cientificai! do Congo, o Instituto Nacional para o Estudo Agronómico, e outros de elevado interesse. A continuidade geográfica Angola-Congo, 'determinando imperativamente a solução fios mesmos problemas, em especial no que respeita à defesa das populações contra as endemias tropicais, levou as duas nações - a brilhante acção belga e a velha experiência portuguesa - à consideração de que seria útil uma colaboração mais estreita e, em certos casos, uma investigação científica orientaria no sentido de objectivos comuns. Em 19 de Julho de 1927 é assinada a Convenção Sanitária Luso-Belga; em 1928 inicia-se na Conferência de Bruxelas o estudo, pelos peritos belgas e portugueses, dos problemas comuns em África; em 1946-1947, a Universidade Colonial de Antuérpia e o nosso Instituto. Superior de Estudos Ultramarinos, o Instituto de Medicina Tropical de Lisboa e a Escola de Medicina Tropical de Antuérpia estabelecem contactos directos para o estudo - de determinadas questões (equivalência de cursos, permuta de publicações e de material didáctico). Os problemas coloniais são em regra, por motivos de método, excluídos dos acordos intelectuais típicos, o que não quer dizer, evidentemente, que esses acordos não possam ou não devam - o que é, aliás, corrente - ter aplicação nos territórios ultramarinos das potências signatárias. Mas a nossa recente vizinhança africana e - a consideração das realidades práticas e dos interesses comuns que essa vizinhança criava pesaram tanto no espírito dos negociadores, que o artigo 6.º in fine do presente, instrumento, diplomático - vê-lo-emos adiante - menciona como um dos objectivos das Altas Partes contratantes so estudo dos problemas respeitantes aos territórios ultramarinos».
7. O presente, tanto como o passado, justificava, pois, a existência de um estatuto desta natureza, destinado a regular, coordenar e facilitar as relações culturais das duas nações. A iniciativa - devemos reconhecê-lo - partiu do Governo Belga, tendo-nos sido transmitida em ofício da nossa Legação em Bruxelas, hoje Embaixada, de 12 de Novembro de 1947. A Bélgica, que acabava de assinar acordos de cultura com a França, a Inglaterra e a Holanda, respectivamente a 22 de Fevereiro, a 17 de Abril e a 16 de Maio de 1946, propunha-se negociar com Portugal um Acordo semelhante e habilitara o nosso representante diplomático a apresentar-nos um texto para estudo. Outras tentativas, porém, haviam sido anteriormente feitas, já por iniciativa privada (fundação em Bruxelas, em 1938, de um Instituto de Cultura Portuguesa), já por diligência diplomática ora de uma, ora de outra Chancelaria. Em ofício de 20 de Dezembro de 1930, no decurso de uma gestão brilhantíssima, o então Ministro de Portugal na Bélgica, hoje digno Procurador Sr. Dr. Augusto de Castro, comunicava ao seu Governo que a Universidade lavre de Bruxelas estaria disposta a criar, no seu quadro de estudos, um curso semestral de língua e - literatura portuguesas, desde que esse curso fosse regido por um docente universitário ou com títulos doutorais e que o Governo Português subsidiasse o professor (12 000 ou 14 000 francos belgas) e suportasse os encargos das respectivas viagens. Suscitaram-se depois dificuldades, por parte quer da Junta da Educação. Nacional, quer da Reitoria de Bruxelas. Portugal desejava uma cátedra ou um leitorado de português que constituísse não apenas uma curiosidade filológica, mas uma realidade de ensino digna das velhas tradições universitárias luso-belgas; por seu turno, a Universidade Livre alegava que duas línguas maternas pesavam já demasiado no ensino do puís pura que se tornasse possível sobrecarregar de novas obrigações os programas; finalmente, decorridos seis unos (1936), resolveu-se de comum acordo que o ensino da língua e literatura portuguesas na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Bruxelas se ministrasse num curso livre anexo u cadeira bienal de História das Literaturas Românicas, então a cargo do Prof. Lucien Paul Thomas, sendo nomeado para o reger o futuro catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Sr. Dr. Vitorino Nemésio. Era o décimo quinto curso de Português que se abria em Universidades estrangeiras. Por esse mesmo tempo, o grande poeta Eugênio de Castro, então director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ao ser recebido solenemente na Academia Real da Língua e Literatura Francesa de Bruxelas (1935), manifestava-lhe a propósito do Governo Português de instalar nas Universidades de Coimbra e de Lisboa secções de estudo da literatura belga. Dez anos depois a Legação de Portugal transmitia pura Lisboa a sugestão feita pelo Governo de Bruxelas no sentido do estabelecimento de relações regulares entre a Universidade de Lovaina e as Universidades portuguesas (ofício n.º 540, de 6 de Agosto de 1946) e entre a Universidade Colonial de Antuérpia e os institutos congéneres de Portugal (ofício n.º 543, de 7 do mesmo mês e ano). Quando, em - 1947, se recebeu nu Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros o anteprojecto de acordo cultural bilateral de que resultou o instrumento diplomático agora submetido ao exame da Câmara já estavam em marcha as negociações respectivas à Universidade Colonial de Antuérpia, não se tendo ainda, apesar da boa vontade de ambas as partes, dado seguimento às conversas acerca da Universidade de Lovaina, aliás brasão da intercultura flandro-portuguesa do século XVI. O estudo do referido anteprojecto demorou algum tempo, quer na Secretaria de Estado, quer no Instituto de Alta Cultura, porque assim o exigia o zelo da nossa Administração, desejosa, sem dúvida, de não protelar a sua resposta à iniciativa da Administração belga, mas não menos interessada em harmonizar o texto proposto com as realidades nacionais e com os princípios, métodos e técnica a que entre nós obedece a elaboração destes instrumentos diplomáticos. O Instituto enviou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros o seu contraprojecto em 14 de Fevereiro de 1949. Mas o ajustamento dos' dois textos não era fácil - adiante veremos porquê; - e teve de aguardar-se nova oportunidade de estudo. Entretanto (1951), a Universidade de Lovaina criava, de* acordo com a Espanha, um Centro de Estudos Hispânicos, que incluía várias cadeiras de língua e literatura espanhola. Dada a marcha inevitavelmente lenta das negociações do Acordo com Portugal, a Legação da Bélgica em Lisboa comunicou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em nota verbal de 7 de Março de 1952, que o seu Governo punha à disposição do Governo Português, mediante reciprocidade, uma bolsa de oito - meses, no montante de 32 000 francos belgas, a favor de estudante de nacionalidade portuguesa que se propusesse realizar um complemento de
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estudos ou trabalhos de investigação científica na Bélgica. O Governo Português aceitou a permuta; oferecendo uma bolsa equivalente, e as duas Administrações chegaram a acordo sobre - as condições - da mútua concessão. Quase ao mesmo tempo, retomou-se o estudo do anteprojecto pendente e obteve-se um texto definitivo do Acordo que mais ou menos se ajustava ao cânone habitual destes instrumentos. Restava a oportunidade da assinatura. Ofereceu-a a auspiciosa visita a Portugal do Sr. Paul Henri Spaak, estadista notável, Ministro dos - Negócios Estrangeiros do Governo de Bruxelas. O instrumento do Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica foi finalmente assinado em Lisboa, no dia 30 de Julho de 1955, pelos respectivos plenipotenciários, Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países, Srs. Paul Henri Spaak e Paulo Cunha.
8. Corresponde este diploma ao que seria lícito esperar dele, dadas as esplêndidas tradições da nossa cultura e os altos interesses actuais das duas Portes contratantes? No decurso das negociações o texto do Acordo foi sensivelmente reduzido. Tem apenas novo artigos, ou sejam menos seis do que o anteprojecto belga. No artigo 1.º define-se o objectivo geral do diploma: «promover e estreitar por meio de amigável colaboração as relações culturais existentes entre os dois países». O artigo 2.º sofreu alterações. No anteprojecto belga entregava-se a uma comissão mista, constituída desigual número de membros por cada uma das potências signatárias, o encargo de aplicar e interpretar o Acordo. Era, aliás, a fórmula adoptada pela Bélgica em todos ou quase todos os Acordos intelectuais que assinara (Acordo com a França, de 17 de Junho de 1921; com o Luxemburgo, de 21 de Setembro de 1923; com a Polónia, de 1 de Setembro de 1925; com os Países Baixos, de 26 de Outubro de 1927; novo Acordo com a França, de 22 de Fevereiro de 1946; Acordo com a Grã-Bretanha, de 17 de Abril do mesmo ano; novo Acordo com os Países Baixos, de 16 de Maio de 1946). Portugal, porém, não aceita a comissão mista, porque na orgânica do Estado existe a título permanente, um organismo - o Instituto e Alta Cultura - em cujas atribuições cabe, por definição legal, o exercício dessa função, ou seja a regulamentação e execução dos Acordos culturais internacionais. Portanto, ou o Instituto se entende directamente, para o aludido fim, com o organismo autorizado que a outra potência signatária designar, ou nomeia delegados seus para com os - delegados da outra Parte constituírem a comissão mista, ou comissão executiva do Acordo, recurso mais ou menos elegante de que se lançou mão durante as negociações da Convenção Cultural entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, de 19 de Novembro de 1954 (veja-se o parecer da Câmara Corporativa n.º -14/VI, Actas n.º 15, de 5 de Fevereiro de 1955). A primeira solução, agora adoptada, é evidentemente a preferível. Os artigos 3.º, 4.º e 5.º dizem respeito às relações interuniversitárias: criação, nas Universidades e escolas, superiores, de institutos, cursos e conferências para o estudo da língua, literatura e história de ambos os países; bolsas de estudo instituídas por cada Parte contratante a favor de nacionais da outra que desejem «prosseguir estudos ou investigações destinados a completar a sua formação técnica»; equivalência de títulos, graus ou diplomas académicos, «inclusive para efeitos de exercício profissional». Nenhuma objecção a Câmara opõe à doutrina destes artigos. Trata-se de formas de cooperação clássicas, estudadas e previstas nos congressos e conferências que se têm ocupado das relações interuniversitárias, em especial no Third Congress of the Universities of the Empire (Oxford, 1926) e na Conférence Internationale d'Enseignement Supérieur (Paris, 1937). É de notar que o artigo 4.º não distingue - e muito bem - entre Universidades e outras escolas ou serviços públicos, porque não é só nas Universidades que se faz investigação científica ou se completa a especialização de técnico». Quanto ao artigo 5.º, convém observar - já- esta Câmara o fez respectivamente à Convenção com a Grã-Bretanha - que uma coisa é a equivalência de escolaridade e de diplomas, lugar comum nesta espécie de estatutos internacionais, outra - porque envolve problemas estranhos à cultura - à autorização aos naturais de um país para exercerem noutros países determinadas profissões. Entretanto, convém esclarecer que o estipulado neste artigo não envolve qualquer compromisso formal, deixando a cada uma das potências signatárias o estudo das condições e medida em que «poderá ser reconhecida a equivalência». O artigo 6.º estabelece a extensão extra-universitária e
extra-escolar do intercâmbio. Não se estimula apenas a troca de professores e estudantes, quer dizer, daqueles que vêm expressamente para ensinar, investigar ou aprender; alarga-se o âmbito das relações científicas e literárias; prevêem-se as «viagens de contacto» dos visiting professors, o convívio internacional de artistas, de escritores, de altas personalidades representativas da cultura do espírito, que precisam de conhecer-se para conviver e de conviver para colaborar. Refere-se este artigo a uma forma de colaboração discriminada, que parece repugnar à natureza dos acordos intelectuais propriamente ditos: o «estudo em comum dos problemas respeitantes aos territórios ultramarinos». Dir-se-á - e efectivamente se disse - que o primeiro passo para o estudo em comum destes problemas teria sido a aplicação pura e simples do próprio estatuto aos territórios do ultramar. Com efeito, este instrumento é restritamente metropolitano, ao contrário, por exemplo, do Acordo Anglo-Belga de 1946 e do Acordo Belgo-Norueguês de 1951, que incluem já nas suas estipulações a aplicação aos territórios ultramarinos. Nada, porém, impede as Altas Partes contratantes de tomarem ulteriormente sobre ú assunto as resoluções que lhes pareçam oportunas. Quanto à pretendida impertinência da matéria no texto de um Acordo cultural, convirá não esquecer que no ultramar também - há cultura. O artigo 6.º limita-se a reconhecer de jure uma colaboração que já há muito tempo existe de facto. Que têm sido senão criação de ciência e convívio de sábios a Convenção Sanitária de 1927; a Conferência de Bruxelas de 1928; a benemérita cooperação dos dois Institutos de Medicina Tropical, de Lisboa è de Antuérpia; as jornadas internacionais africanas de Gand, onde peritos portugueses e belgas cordealmente se encontram; a frequente troca de visitas entre figuras relevantes da cultura ultramarina - o Prof. Norberto Laude, reitor da Universidade Colonial de Antuérpia, e o Prof. Mendes Correia, director do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, o Prof. Van der Berghe, director do Instituto de Investigação Científica da África Central e o Prof. Fraga de Azevedo, director do Instituto de Medicina Tropical de Lisboa? Nada, pois, a Câmara opõe ao preceituado no artigo 6.º, na parte respectiva ao estudo em comum do» problemas do ultramar. Restam os artigos 7.º e 8.º, porque o artigo 9.º inclui apenas as disposições escatocolares usuais (ratificação, vigência, denúncia). O artigo 7.º estatui sobre a» restantes formas de expansão da cultura que as Partes contratantes se comprometem a facilitar: conferências, concertos, difusão do livro, exposições de arte, rádio,
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televisão» gravações e cinema. O artigo 8.º ressalva as restrições da legislação interna quanto à admissão, residência e saída de estrangeiros do território nacional. Não haverá no Acordo nada de novo; mas nada lhe falta do que seria preciso que nele se contivesse. Tudo está pensado com elevação, previsto com prudência e redigido com u indispensável clareza.
Conclusões
9.º O que fica dito - rápido conspecto do facto cultural luso-flamengo - habilita-nos a emitir parecer sobre se convirá à nossa política de cultura a ratificação deste acto diplomático. Em primeiro lugar, verifica-se que ele se inspirou nos tradicionais sentimentos de amizade que, desde os alvores da Nação Portuguesa, unem os dois povos. Esses sentimentos, que têm profundas raízes na História, determinaram li á cinco séculos, entre o nosso país e a Flandres, 'um vivo movimento de interesse, de compreensão e de convívio intelectual, quando, na Bruges ducal de Filipe, o Bom, se constituiu uma colónia portuguesa tão culta, tão opulenta e tão numerosa que o bairro - de Coolenkerke, onde ela se instalou, se ficou chamando, por muito tempo, Portugal. For motivos de natureza político-geográfica, a colónia de Bruges transferiu-se no século XVI para Antuérpia, onde a renovada feitoria, portuguesa, escola de diplomatas, de mercadores e de banqueiros, entreposto onde afluíam, levadas pelas mossas naus, tis riquezas da índia, passou a ver-se de toda a Europa, como um claa-ão. Estudámos na Universidade de Lovaina, vendemos nas feiras sumptuosas, fizemos -parte das guildas corporativas, vivemos na Flandres e no Brabante como numa segunda pátria. Mas em breve o clarão da feitoria empalideceu, para se reacender mais tarde quando inesperadamente as duas nações amigas se encontraram vizinhas na África. A colaboração deslumbrante se outrora, predominantemente - artística; filológica e comercial, sucedeu a consciência de uma missão civilizadora comum, cujo sentido pragmático e cujo interesse humano procurar fortalecer-se na lição riu experiência e na investigação científica internacionalmente organizada. A amizade luso-belga prosseguiu, animada de um impulso novo, - portadora de uma nova mensagem para o Mundo, mas impregnada ainda do mesmo espírito humanista e cristão. As Universidades continuaram a conviver, não já, porém, para o estudo das três línguas de Erasmo, mas com os olhos postos numa nova e imensa Universidade que abria o seu claustro ogival de florestas no continente africano: a Vida. A pluralidade das actividades possíveis e das colaborações úteis, mormente no domínio da técnica, exigiam a disciplina e a chancela jurídica de um estatuto coordenador. Esse estatuto, tão subitamente ponderado quanto escultura l mente simples, parece corresponder ao pensamento dos dois Governos, atender os legítimos interesses dos dois povos - e servir o bem comum da Humanidade. Cultura é isto: o culto dos grandes valores humanos. A Câmara Corporativa, tendo detidamente examinado o instrumento do Acordo cultural entre Portugal e o reino da Bélgica, assinado em Lisboa no dia 30 de Julho de 1905, é de parecer que ele deve ser ratificado paio Chefe do Estado, nos termos da Constituição.
Palácio de S. Bento, 17 de Janeiro de 1956.
Amândio Joaquim Tarares.
Adriano Gonçalves Cunha.
Reinaldo dos Santos.
Inácio Peres Fernandes.
Samuel Dinis.
Manuel António Fernandes.
Júlio Dantas relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA