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REPÚBLICA PORTUGUESA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º58

VII LEGISLATURA 1959 12 DE MAIO

SUMÁRIO

Alteração da Constituição Política

Parecer n.º 13/VII, acerca do projecto de lei n.º 19, apresentado pelo Sr. Deputado António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
Parecer n.º 14/VII, acerca do projecto de lei n.º 20, apresentado pelo Sr. Deputado João do Amaral.
Parecer n.º 15/VII, acerca do projecto de lei n.º 21, apresentado pelo Sr. Deputado Manuel José Archer Homem de Melo.
Parecer n.º 16/VII, acerca do projecto de lei n.º 22, apresentado pelo Sr. Deputado Afonso Augusto Pinto.
Parecer nº17/VII, acerca do projecto de lei n.º 23, apresentado pelo Sr. Deputado Carlos Alberto Lopes Moreira e outros.
Parecer nº18/VII, acerca do projecto de lei n.º 24, apresentado pelo Sr. Deputado Adriano Duarte Silva.
Parecer nº19/VII, acerca do projecto de lei n.º 25, apresentado pelo Sr. Deputado Américo Cortês Pinto e outros.
Parecer nº20/VII, acerca do projecto de lei n.º 26, apresentado pelo Sr. Deputado Augusto César Cerqueira Gomes.

PARECER N.º 13/VII

Projecto de lei n.º 19

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei de n.º 19, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes,Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Barros, José Caeiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de lei de revisão constitucional n.º 19, da autoria do Sr. Deputado António Carlos dos Santos

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Fernandes Lima, diz respeito a pontos particularmente importantes da primeira e segunda partes da Constituição Política que bem merecem ser ponderados. Convém realmente verificar se a ética do regime, as necessidades políticas ou outras circunstâncias de relevo reclamam ou não que se perfilhem as alterações constantes do projecto. É justamente o que vai fazer-se no exame da especialidade.

2. O projecto foi apresentado depois de a Assembleia Nacional ter resolvido assumir poderes constituintes para poder antecipar a revisão constitucional, observando-se na sua apresentação o disposto no § 2.º do artigo 176.º da Constituição. Nada, pois, se opõe a que a Câmara Corporativa o examine e a que a Assembleia Nacional sobre ele delibere.

II

Exame na especialidade

ARTIGO 1.º

1. Pela redacção que no artigo 93.º da Constituição foi dada na Lei n.º 2048, de 11 de Junho de 1951, a Assembleia Nacional passou a ter uma competência legislativa reservada. Passou a ser da sua competência exclusiva aprovar as bases gerais sobre certas matérias referidas nas cinco alíneas desse preceito: a organização da defesa nacional, o peso, valor e denominação das moedas principais, o padrão dos pesos e medidas, a criação de bancos ou institutos de emissão e a organização dos tribunais.
O alcance prático deste preceito consiste em que ao Governo passou a ser vedado legislar sobre tais assuntos na forma de decretos-lei (como até aí lhe era possível fazê-lo, usando da sua competência legislativa genérica conferida pelo n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição), na exacta medida em que se tratar de estabelecer as bases gerais dos respectivos regimes jurídicos. Estabelecidas, porém, estas bases pela Assembleia Nacional, o Governo poderá desenvolvê-las ou completá-las, quer sob a fornia de decretos-lei, quer mesmo sob a forma de decretos regulamentares.
Comparando a redacção primitiva do artigo 93.º com a actual, verifica-se (é, pelo menos, este o melhor entendimento) que, com a primeira, se pretendia tão somente excluir a possibilidade de o Governo disciplinar as matérias a que o artigo aludia, sob forma regulamentar: essas matérias teriam de ser integralmente reguladas sob a forma de lei ou de decreto-lei. Com a redacção actual, diferentemente, pretende-se que os princípios gerais respeitantes a esses assuntos revistam a forma de lei e sejam, portanto, necessariamente aprovados pela Assembleia Nacional, podendo o Governo, sucessivamente, editar decretos-lei ou regulamentos que acrescentem a essa disciplina básica a regulamentação complementar indispensável.
A Assembleia Nacional perfilhou, em 1951, quanto a este ponto, a sugestão da Câmara Corporativa, exposta no seu parecer n.º 13/V (in Diário das Sessões n.º 74, de 24 de Fevereiro de 1951).
A Câmara Corporativa entendeu haver vantagem em que o Governo não pudesse normalmente legislar por decretos-lei num certo domínio de questões "que o interesse nacional ou o melindre dos interesses particulares em causa aconselhe sejam, tratados com maior circunspecção e a plena luz". Por outro lado -acrescentou-se -, a existência dessa zona reservada à competência da Assembleia Nacional assegurar-lhe-á "um mínimo de acção legislativa, que, mesmo quando tudo
o mais vá passando à efectiva competência do Governo, restará como homenagem às tradições parlamentares".

2. Nesta orientação, a Câmara entendeu dever sugerir que às matérias enunciadas na proposta governamental se acrescentassem algumas outras: a transformação de actividades privadas em empresas públicas, a administração e exploração dos bens e empresas do Estado, a organização do Conselho de Estado e da Câmara Corporativa e, finalmente, a criação de impostos e taxas.

3. O problema de saber se a criação de impostos e taxas deveria ou não ser confiada, a título exclusivo, à Assembleia Nacional foi discutido nesta Câmara em 1951, dentro de um quadro mais largo, e foi posto assim: deve ou não ser incluída no elenco do artigo 93.º a matéria do artigo 70.º. Isto explica que na redacção do artigo 93.º, sugerida pela Câmara, apareça, como matéria da exclusiva competência da Assembleia Nacional, não só a criação de impostos e taxas, mas também "a administração e exploração dos bens e empresas do Estado", a que, no seu n.º 3.º, igualmente se refere o artigo 70.º (Mal se compreende, por isso, que se tenha afastado a inclusão desta matéria no quadro das do domínio reservado da Assembleia, com a alegação de que se lhe não conseguira determinar com precisão o conteúdo). Por outro lado, deve entender-se que, quando a Câmara se referiu à criação de impostos e taxas, dados os termos em que a questão foi por ela posta, quis significar que a Assembleia Nacional passaria a ter competência, em princípio reservada, para "fixar os princípios gerais relativos aos impostos e às taxas a cobrar nos serviços públicos", nos termos do artigo 70.º

4. No fundo, porém, a Câmara Corporativa não foi, em 1951, ao ponto de sugerir que a Assembleia ficasse com uma competência realmente exclusiva para a criação da impostos ou taxas. Admitiu que o Governo os pudesse criar por decreto-lei a "em caso de urgência e necessidade pública". Isto importaria naturalmente tanto como facultar ao Governo legislar sobre impostos e taxas no intervalo das sessões legislativas, não lhe ficando, inclusive, de todo vedado - parece - fazê-lo durante estas.
A verdadeira inovação prática estaria em que os decretos-lei do Governo sobre impostos o taxas seriam obrigatoriamente sujeitos a ratificação da Assembleia Nacional na primeira sessão legislativa que se seguisse à sua publicação.

5. Esta orientação teve na Assembleia Nacional os seus sequazes, mas não vingou, Recordou-se aí em seu favor que "esta função (de criar impostos e taxas) é necessariamente função da Assembleia Legislativa, porque, na verdade, ela é uma das mais graves resoluções que o Governo pode tomar e que interessa ao País inteiro; por consequência, não se entendia que a Assembleia Nacional não fosse ouvida e não desse o seu voto sobre esta matéria". Contra, foi invocado, em substância, que a Assembleia tem, segundo o direito constituído, oportunidade de tomar contacto com os princípios gerais relativos aos impostos e às taxas a propósito da aprovação da Lei de Meios.

6. No artigo 1.º do projecto de lei em análise vem agora renovada, em termos mais ou menos semelhantes, a sugestão que esta Câmara formulara em 1951.
A discussão parlamentar e a posição que sobre o assunto a Assembleia nessa altura tomou forçam a Cá

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mara a reexaminar o assunto. É esse o alcance dos desenvolvimentos seguintes.

7. Em matéria tributária é preciso que a legislação constitucional disponha em termos de a iniciativa e a competência parlamentares não comprometerem o equilíbrio financeiro. Os parlamentares são frequentemente inclinados a votar desagravamentos fiscais que conduzem em linha recta a deficits orçamentais mais ou menos importantes, tanto mais quanto é certo que, por outro lado, eles são também quase sistematicamente favoráveis aos acréscimos de despesas públicas, que, a ser-lhes dada iniciativa nesse domínio, aumentariam progressivamente. Os deputados - para o dizer numa fórmula - são, em princípio, agentes redutores de receitas e aceleradores cie despesas.
Além disso, é um dado de experiência que os membros das assembleias legislativas não estão normalmente ao corrente das consequências financeiras e económicas de uma lei que estabelece, modifica ou extingue um imposto (ou que acarreta uma nova despesa). Trata-se de problemas técnicos especializados para cuja apreciação eles se devem considerar normalmente menos preparados.
Estas duas razões concorrem no sentido de se dever retirar aos membros das assembleias legislativas a iniciativas em matéria de criação, alteração ou extinção dos impostos e taxas e de a atribuir exclusivamente aos governos. Mas não são necessariamente no sentido de retirar a tais assembleias a competência para criarem, modificarem ou extinguirem os impostos e as taxas da iniciativa do Governo.
Em favor da competência de decisão do Poder Legislativo em matéria financeira, e designadamente em matéria tributária, está, por sua vez, em primeiro lugar, o facto de os impostos e as taxas constituírem um sacrifício da propriedade e dos direitos privados dos cidadãos, de que o Parlamento é considerado o guarda e protector; em segundo lugar, o facto de as imposições tributárias terem, por via de regra, efeitos importantes e múltiplos na vida económica nacional, sendo, por isso, conveniente ouvir os representantes de todos os interesses em jogo; em último lugar, o facto de, através da publicidade da discussão sobre os tributos no Parlamento, se mostrar aos contribuintes o interesse público da sua cobrança.
Foram razões desta ordem - designadamente a primeira - que conduziram, na Inglaterra, à vitória completa e definitiva do Parlamento na questão da criação dos impostos em 1688-1689, altura em que o Bill of Rights declarou, de um modo geral, ilegal toda a requisição de dinheiro "para a Coroa e para seu uso, sob pretexto de prerrogativa, por um período diferente e de forma diversa daquela por que tal requisição foi autorizada pelo Parlamento". Uma vez reconhecido o princípio da votação do imposto, todas as outras fontes da receita pública foram aos poucos passando para o controle do Parlamento. Esta evolução consumou-se, como se sabe, no século XVIII 1.
Em França, em 1789, a Assembleia Nacional pôde solenemente proclamar, por uma vez, que toda a imposição tributária se teria de fazer, e só se poderia fazer, com o consentimento formal dos representantes da nação 2. E da França o sistema transmitiu-se progressivamente a toda a Europa.
Ora bem. A Inglaterra obteve a harmonização dos dois princípios - o da exclusividade da iniciativa governamental em matéria tributária e o da competência de decisão da assembleia legislativa nessa matéria - pela forma seguinte: em matéria de receitas, os membros dos Comuns não podem, sem recomendação da Coroa, propor medidas cujo resultado seja fazer pesar sobre o povo novos encargos. São, assim, proibidas as iniciativas tendentes à criação de um imposto novo, ao aumento de um imposto existente, à mudança das modalidades do imposto e à supressão da isenção de um imposto existente. Podem, pelo contrário, ser propostas por eles todas as medidas que não aumentem os encargos fiscais, tais como a redução de um imposto existente, a criação de uma taxa em troca de um serviço prestado pelo Estado 1. O que sucede é que, na prática, os deputados ingleses nunca exercem o seu direito de iniciativa e de emenda nesta matéria 2. E não o exercem, deixando-o exclusivamente ao Gabinete, porque a sua missão primordial, na medida em que façam parte da maioria, é apoiarem os projectos que envolvam a política geral do Governo. Fazendo parte da minoria, não a exercem porque a sorte das suas propostas está antecipadamente traçada. A supressão da iniciativa individual nesta matéria é, afinal de contas, como se vê, uma expressão do tico parties system inglês 3.
Já o tradicional sistema francês, praticado desde a III República, por seu turno, não conduzia a uma fórmula satisfatória de conciliação das exigências e princípios atrás expostos, admitindo não só a competência do Parlamento como a iniciativa dos deputados, individualmente e através da Comissão do Orçamento ou das Finanças. Esta iniciativa conduziu frequentemente a desfigurar o projecto orçamental do Governo, a desagravamentos tributários injustificáveis e aos consequentes desequilíbrios orçamentais 4.
Segundo a Constituição da IV República Francesa, os deputados tinham plena iniciativa em matéria de receitas, embora certas disposições do regulamento da Assembleia Nacional consignassem limitações ao direito de iniciativa e de emenda no sentido da sua redução. Simplesmente, dada a própria índole do regime constitucional, estas limitações foram ignoradas na prática 5.
Nos termos da Constituição da V República, por último, os membros do Parlamento não podem apresentar propostas e emendas cuja adopção determine uma diminuição das receitas públicas.
Em Portugal, desde a Constituição de 1822 até à de 1911, a regra foi que as assembleias legislativas interviessem na fixação dos impostos e no seu voto anual 6. Sem embargo, na nossa prática constitucional, tornou-se frequente que, fora da oportunidade da votação do projecto de orçamento, o Executivo fosse autorizado pelo Parlamento a elaborar e publicar leis tributárias avulsas ou reformas tributárias amplas. De toda a maneira, os normas editadas pelo Parlamento em matéria de impostos tiveram quase invariavelmente uma generalidade tal que o Poder Executivo ficou nesse campo com uma liberdade considerável. Desta sorte, as regras que entre nós regularam as contribuições foram quase sempre

1 Cf. C. Jèse de Science des Finances (Théorie générale du budget), 6.ª edição, p. 11.
2. Cf. Autor e obra citados p. 16.

1 Cf. M. A. Soulier, "L'Article 17 de la Constitution et ses incidences sur la réforme budgétaire", in la Réforme Budgétaire, II, 1954, p. 30.
2 Cf. Maurice Duverger, Institutions Financières, 1956, p. 348.
3 Cf. autor e obra citados, pp. 348 e seguintes ; Soulier, obra citada, pp. 30 e seguintes ; Eneyclopacdia of the social sciences, vol. III, p. 43.
4 Cf. Soulier, obra citada, p. 31.
5 Cf. Duverger, obra citada, pp. 350 e seguintes.
6 Aliás, "em recuadas épocas aparece-nos já o príncípio do voto do imposto em Cortes como ponto fundamental do direito português". Cf. Armindo Monteiro, Do Orçamento Português, vol. II, 1922, p. 149.

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mais ou menos longinquamente fundadas em vagas disposições de lei e tiveram uma feição caracterizadamente regulamentar 1.
De qualquer modo, os perigos e inconvenientes da iniciativa parlamentar, no capítulo das receitas, vieram a ser, se não conjurados, pelo menos restringidos, primeiro pela Lei de 20 de Março de 1907 e depois pela «Lei travão», de 15 de Março de 1913, que proibiu aos membros das Câmaras apresentarem projectos de diminuição de receitas durante a discussão orçamental e consagrou a legitimidade do veto financeiro do Governo para os projectos de lei que, em qualquer momento diferente desse, diminuíssem as receitas.

8. Foi provavelmente tendo em couta o facto histórico de ns normas tributárias serem entre nós praticamente todas editadas pelo Executivo, quer no exercício de autorizações legislativas, quer no exercício da sua competência regulamentar, e considerando ainda, de um lado, a natureza especial das questões tributárias, de índole marcadamente técnica e especializada, e, de outro, a incúria parlamentar neste domínio como em outros, que na Constituição vigente se consagrou a competência concorrente da Assembleia Nacional e do Governo em matéria de impostos e de taxas 2. Neste domínio, tanto pode legislar a Assembleia Nacional como o Governo.
Os Deputados por seu turno, têm praticamente (nos termos do artigo 97.º) o poder de iniciativa ou de emenda restrito à criação de novos impostos ou taxas ou à alteração dos existentes, em termos de não ser diminuída a receita do Estado criada por leis anteriores. Quer dizer: não gozam de iniciativa para a diminuição das exacções fiscais. Nada impede, portanto, que apresentem na Assembleia projectos de lei ou propostas de emenda para a criação de impostos ou taxas.
Deve salientar-se que, mesmo quando se confiasse à Assembleia Nacional a competência de decisão em matéria de receitas, também não poderia caber aos Deputados iniciativa, para apresentar projectos de diminuição destes réditos fiscais, de acordo com um cânone mais ou menos admitida hoje no direito constitucional comparado.

9. Será aconselhável modificar agora este sistema de repartição dos poderes constitucionais entre a Assembleia Nacional e o Governo?
Há-de reconhecer-se que atribuir à Assembleia Nacional competência, em princípio exclusiva, para legislar em matéria fiscal corresponderia a desconhecerem-se ns realidades e, de toda a maneira, a fechar os olhos nos graves inconvenientes que tal medida poderia acarretar. As realidades, com efeito, são estas: em toda a parte onde há governos estáveis e eficientes a regra é serem eles a monopolizar a iniciativa fiscal, ficando aos deputados, como na Inglaterra, o papel de apoiarem as medidas legislativas propostas e a função de controlarem a actividade financeira do Executivo. De qualquer modo, a nossa tradição e, portanto, as realidades portuguesas são no sentido de, como se disse atrás, ser o Executivo a legislar em matéria tributária, com grande latitude, ficando ao Legislativo o papel de atribuir autorizações legislativas ou de consignar directrizes muito vagas à actividade regulamentar do Governo. A tradição portuguesa é no sentido, em suma, de fazer da função fiscal uma função predominantemente executiva.
Depois, o Governo poderia, durante o período de funcionamento da Assembleia, ter que se debater com a inércia ou com as demoras desta na votação das medidas tributárias julgadas indispensáveis ao interesse público. Porventura pior do que isso seria o facto de as medidas legislativas do Governo, tomadas fora do funcionamento efectivo da Assembleia, em caso de urgência o necessidade pública, terem de ser sujeitas a ratificação, nos termos gerais, não vigorando, claro está, então, as limitações do artigo 97.º da Constituição. Estaria, assim, aberto o caminho para a possibilidade de criação de desaconselháreis dificuldades à vida financeira do País, no mesmo tempo que se daria oportunidade à verificação de atritos indesejáveis entre o Governo e a Assembleia. De qualquer modo, na concepção constitucional portuguesa, o Governo tem e deve continuar a ter uma posição primordial na orientação da vida financeira do Estado. É esta posição que se pretende agora abalar e comprometer, sem vantagem que se possa reconhecer. É preciso não esquecer que, inclusive num regime de tão vincadas características parlamentares como é o inglês, o Parlamento tem, na matéria que estamos considerando, um papel secundário, pertencendo a função tributária primordial e realmente ao Executivo. Será o caso de devermos abandonar uma concepção para a qual outros fundamentalmente se orientam?
Esquece-se, aliás, muito facilmente, ao pugnar-se pela restauração da prerrogativa parlamentar em matéria fiscal, que o Governo é, por assim dizer, um órgão indirectamente representativo, na. medida em que se apoia na vontade de um órgão, esse directamente representativo e responsável perante a Nação, que é o Chefe do Estado.
Esquece-se também, por outro lado, que a Assembleia Nacional tem competência para se pronunciar anualmente sobre a cobrança de impostos estabelecidos por tempo indeterminado ou por período certo que ultrapasse uma gerência (§ 2.º do artigo 70.°) e, naturalmente, sobre os impostos a estabelecer por um período anual, na ocasião da votação da Lei de Meios. Os impostos criados no intervalo das sessões, para serem cobrados durante a gerência, serão com certeza excepcionais.
Por último, não se esqueça que a Assembleia, ainda muito recentemente, conferiu ao Governo autorização para proceder ao complemento da reforma fiscal em curso, reconhecendo assim, implicitamente, que, em matérias de tal melindre e tecnicidade, melhor será deixar a decisão final no Governo e aos técnicos de que possa rodear-se.

10. Tudo ponderado, a Câmara Corporativa entende não dever apoiar a inclusão da projectada alínea f) no artigo 93.º, e, consequentemente, pensa que tem de ficar prejudicado o § único que se pretende adicionar a este artigo.

11. Em princípio, a matéria dos vários direitos, liberdades e garantias individuais, enunciados nos diferentes números do artigo 8.° da Constituição, não é regulada em leis especiais, isto é, em leis que tenham esses assuntos exclusivamente por objecto, mas sim em leis gerais, ou seja em leis que se lhes referirão no quadro da regulamentação de matérias mais amplas com as quais esses direitos, liberdades e garantias individuais têm conexão. Ora, na maior parte das vezes, não se justificará que essas matérias mais amplas sejam disciplinadas em leis propriamente ditas. Seria anómalo exigir-se que, no estabelecer-se a regulamentação delas, se enviasse à Assembleia tudo quanto dissesse

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respeito aos direitos, liberdades e garantias em questão, a fim de que aí fossem regulados em forma de lei. For exemplo: não pode concordar-se com que a disciplina do direito de propriedade, que será naturalmente fixada no Código Civil em preparação e, em porte, consta hoje, inclusive, de múltiplos regulamentos gerais e ate locais, tenha necessariamente de constituir matéria de lei, emanada da Assembleia Nacional.
Mas no § 2.º do artigo 8.º prevê-se que o exercício de certas liberdades públicas - a liberdade de expressão de pensamento, de ensino, de reunião e de associação -, bem como as condições do uso da providência excepcional do habeas corpus, serão regulados, em leis especiais. No domínio destas matérias já se justifica que se confie à Assembleia Nacional competência exclusiva. Por um lado, devendo elas ser reguladas em leis especiais, não subsistem as dificuldades de técnica legislativa que se verificam em relação às restantes. Por outro lado, o melindre muito particular que assume a disciplina de tais assuntos milita também no sentido de a confiar exclusivamente à Assembleia. Estão, na verdade, em causa, no exercício dessas liberdades, as relações mais melindrosas entre o indivíduo e a Administração, convindo portanto que lhe não pertença, em via de princípio, a disciplina jurídica básica dessas relações. As exigências do princípio da divisão de poderes têm aqui um peso que não convém ignorar.
A Câmara Corporativa, tendo em conta o que vem de expor, opta pela seguinte redacção para a alínea g): «o exercício das liberdades a que se refere o § 2." do artigo 8.º e as condições do uso da providência excepcional do habeas corpus».

12. Igualmente não repugna que as garantias fundamentais dos juizes dos tribunais ordinários, a que aludem os artigos 119.º e 120.º, constituam, necessariamente, pelo menos nos seus aspectos, básicos, matéria de lei e sejam, portanto, matéria da exclusiva competência da Assembleia Nacional. Há toda a conveniência em entregar a um órgão diferente do Governo a disciplina jurídica fundamental de uma série de actos através dos quais ele pode diminuir as garantias de independência dos juizes ordinários. A divisão dos poderes tem aqui também bom lugar para ser consagrada.
É certo que os princípios fundamentais do estatuto dos juizes talvez se devam entender como fazendo parte da «organização dos tribunais», a que o artigo 93.º já alude. Na dúvida, porém, nada se perde em deixar o assunto completamente esclarecido.
Quanto, em especial, à última parte da alínea h), a que nos estamos referindo, ela justifica-se, não só pelas razões expostas, como também pelo facto de uma regulamentação editada pelo Governo deixar à Administração a possibilidade de seguir, na atribuição de comissões aos juizes, uma política porventura nem sempre satisfatória.

13. Não vale como argumento em contrário que não se tenha, até hoje, publicado um diploma geral básico nesta matéria, estando a sua disciplina dispersa pelo Estatuto Judiciário e por múltiplos diplomas especiais que incidentalmente se lhe referem. A Câmara ou tende, com efeito, que a especial importância do assunto em causa, reconhecida, aliás, em todas as legislações, é muito decisivamente no sentido de que deva caber exclusivamente à Assembleia Nacional a fixação dos aspectos fundamentais do seu regime jurídico, ficando naturalmente reservada ao Governo a competência para desenvolver, pormenorizar e aplicar esse regime, em tantos diplomas quantos os quo forem julgados necessários o designadamente num «estatuto judiciário».
Nem se diga que a orientação sugerida pela Câmara não concorre em nada para assegurar aos juizes a garantia da independência, uma vez que essa garantia não está em conexão com a natureza do órgão de que o «estatuto» judiciário emana, tinas sim com o conteúdo e sentido dessa legislação, donde quer que ela provenha.
É, porém, óbvio que a procedência das normas não é aqui inteiramente indiferente e pode mesmo ser decisiva para se lograr uma regulamentação conveniente.
Por último, não parece que constitua bom argumento contra esta tese da Câmara e do projecto que seja sempre necessário que o Governo fique com certa liberdade de escolha, em tal domínio de assuntos, designadamente em matéria de atribuição de comissões permanentes ou temporárias aos juizes dos tribunais ordinários. O problema não é, no entanto, esse - é antes o de saber se o Governo, podendo legislar, a título de legislador normal, sobre estes assuntos, não fica com a possibilidade de instituir um regime que lhe faculte maior discricionaridade do que a que convém, quer à salvaguarda da independência dos juizes e da sua hierarquia, quer à defesa do seu prestigio perante a opinião pública.
A Câmara, na sua maioria, deu preferência a ostas considerações sobro as que alicerçaram a tese oposta, sendo de parecer que a doutrina do projecto é de manter. Optou, porém, pela seguinte redacção: «b) A matéria dos artigos 119.º e 120.º».

ARTIGO 2.º

1. Pretende-se elevar de três para cinco meses a duração das sessões legislativas da Assembleia Nacional, mantendo-se a possibilidade de o seu Presidente prorrogar o funcionamento efectivo dela até um mês e interrompê-lo, neste caso sem prejuízo da duração fixada para essas sessões. Pretende-se ainda que não haja uma data-limite para o encerramento da sessão legislativa.
Quer dizer: segundo o projecto, as sessões legislativas da Assembleia Nacional passariam a ter uma duração normal superior à que sempre tiveram as sessões legislativas em Portugal (Constituição de 1822, três meses; Carta Constitucional, três meses; Constituição de 1838, três meses; Constituição de 1911, quatro meses). É certo, porém, que, no passado, as sessões legislativas foram correntemente prolongadas.
Um tal alongamento da sessão legislativa pode ter como objectivo dar à Assembleia possibilidade de se desempenhar das novas atribuições legislativas -que no projecto se pretende reservar-lhe, e pode visar também dar oportunidade à Assembleia de efectivar, durante um período mais longo, as suas funções de fiscalização da Administração.
Tendo em conta, porém, que a Câmara não se inclina para a aprovação de todas as novas atribuições exclusivas que se pretende conferir à Assembleia, e que, de qualquer modo, a experiência mão é no sentido de provar que a Assembleia precise de ver o seu período normal de funcionamento alargado para poder desempenhar-se cabalmente das suas atribuições legislativas, não se pode dar apoio ao projecto neste ponto.
Quanto à possível alegação de que o período actual de funcionamento da Assembleia não faculta o amplo exercício das atribuições de fiscalização que se julga necessário assegurar, não parece que deva proceder. Os três meses de que a Assembleia dispõe, frequentemente elevados a quatro, não têm sido tão inteiramente aproveitados para esse efeito que se deva pensar num alargamento do período da sessão legislativa.

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De toda a maneira, ainda mesmo que viesse açora a ser ampliado o quadro das atribuições legislativas reservadas à Assembleia Nacional, o facto não seria de per si decisivo para justificar a necessidade de sessões legislativas mais amplas. Esgotada a sessão legislativa e prorrogado por um mês o funcionamento efectivo da Assembleia, se esta não pudesse cumprir com a sua "agenda", o facto não deixaria, como não tem deixado até hoje, por via de regra, de determinar uma convocação extraordinária, a exemplo do que sucede nas presentes, circunstâncias em que, designadamente para lhe dar possibilidade de se desempenhar de uma atribuição exclusiva - a revisão constitucional -, o Chefe do Estado acaba de a convocar extraordinariamente.
Sendo a Câmara deste parecer sobre o projectado alargamento da duração das sessões legislativas, supõe ficar prejudicada a ideia da eliminação da data-limite para o encerramento dos trabalhos da Assembleia. Seja, porém, como for, ela é de opinião que essa data deve subsistir, não convindo facultar que esse encerramento tenha lugar em data incerta, através da mecânica das interrupções. Militam neste sentido a comodidade dos Deputados, a conveniência do serviço público (em relação aos Deputados que exerçam funções públicas) e a necessidade de evitar que uma assembleia periódica se torne numa assembleia mais ou menos permanente.
A sessão legislativa ordinária pode, hoje em dia, em todo o caso, excepcionalmente, ultrapassar a data-limite estabelecida no § único do artigo 94.º Para que tal suceda, é Necessário que o Presidente da República a adie (Constituição, artigo 81.º, n.º 5.º). Por esta via se conseguirá satisfazer ao interesse que no projecto se teve provavelmente em couta para sugerir a eliminação da referida data.

ARTIGO 8.º

1. Tem-se especialmente em vista, com a nova redacção projectada para o § 3.º do artigo 109.º, introduzir no vigente regime constitucional de relações entre a Assembleia Nacional e o Governo uma alteração primo conspectu substancial. Segundo o actual § 3.º, só têm de sor sujeitos a ratificação da Assembleia Nacional os decretos-leis publicados pelo Governo fora dos casos de autorização legislativa, durante o funcionamento efectivo desta. O projecto de lei em exame pretende agora que todos os decretos-leis publicados pelo Governo, com exclusão apenas dos emanados no uso de autorização legislativa, sejam sujeitos a ratificação parlamentar.
A alteração não é, porém, vistas bem as coisas, uma alteração verdadeiramente muito significativa. Na verdade, quanto aos decretos-leis publicados fora do período de funcionamento efectivo da Assembleia Nacional, nada impede que qualquer Deputado, no exercício do direito de iniciativa que a Constituição e o Regimento lhe conferem, apresente os projectos de revogação ou de alteração que entender (com a única ressalva de que não devem envolver aumento de despesa ou diminuição de receita do Estado criada por aqueles decretos-leis). O exercício de uma tal faculdade corresponde, no fundo, a um requerimento no sentido de que tais decretos-leis sejam submetidos à apreciação da Assembleia, na medida pretendida por qualquer membro dela. O não exercício dessa faculdade significa que esse Deputado ratifica tacitamente, e como ele a Assembleia, qualquer desses diplomas emanados do Governo.
Em substância, portanto, o projecto uno acrescenta nada à competência, que a Assembleia hoje fundamentalmente detém para recusar a sua aprovação a legislação do Governo, publicada no intervalo das sessões legislativas ou, genericamente, fora do funcionamento efectivo da Assembleia Nacional.
Se isto é certo, é o também, em todo o caso, que a fórmula do projecto tem um determinado alcance, digamos, ideológico, visando objectivamente acentuar que a Assembleia e o Governo devem ser, não órgãos legislativos de iniciativa concorrente, cumulativa ou paralela, mas instâncias legislativas de hierarquia diferente - o Governo subordinado à Assembleia. O Governo passaria a legislar num plano de delegação permanente de faculdades fundamentalmente pertencentes apenas à Assembleia Nacional, o que explicaria que a sua actividade legislativa, de um modo geral, devesse ser submetida a um controle correctivo desta, traduzido na sua sujeição a ratificação expressa ou tácita.
Uma tal fórmula e uma tal concepção esquecem de algum modo que (como se acentuou no parecer da Câmara Corporativa, emitido sobre a proposta de lei de revisão constitucional de 1945) o Governo passou, via realidade, a ser o órgão legislativo normal e a Assembleia o órgão legislativo excepcional. Não ficou isso expresso na Constituição, "mas em certos casos importa mais a verdade real do que a verdade formal, desde que aquela não contrarie juridicamente esta, como de certo modo acontece hoje". E aí se acentuava, em reforço desta orientação, que as normas legais vão tomando, dia a dia, um aspecto cada vez mais técnico, e que esse facto aconselha a instauração de um sistema que atribuísse essencialmente ao Governo o exercício da função legislativa. As assembleias legislativas devem intervir, em princípio, apenas quando se trate de definir grandes orientações ou de assuntos ou matérias adstritos a altos interesses nacionais (cf. Diário das Sessões n.º 176, 1945, suplemento, pp. 642 e seguintes).
Não tem esta Câmara, no presente momento, razões para alterar este seu modo de ver. Por consequência, não se inclina para a aprovação da redacção sugerida para o § 3.º do artigo 109.º

2. O projectado § 3.º-A, que se pretende ver adicionado ao artigo 109.º, estabelece um regime, digamos, de excepção em relação ao que se pretende estabelecer para a ratificação dos decretos-leis que revoguem, total ou parcialmente, leis emanadas da Assembleia Nacional.
Tem de se presumir que o Governo só se dispõe a revogar ou alterar uma lei emanada da Assembleia Nacional, designadamente uma lei recente, ante muito sérios motivos para assim proceder. Da seriedade, ponderação e consciência das responsabilidades, e ainda do respeito que o Governo necessariamente tem pela representação nacional, decorre que ele se não decidirá a modificar uma posição assumida pela Assembleia, sobretudo se de recente data, fora de muito graves e ponderosas determinantes.
Quando o Governo assim procede, e justamente porque há que presumir que decide fazê-lo com base em sérios motivos de interesse público, o desejável não é facilitar a abertura de um conflito ou a simples criação de atritos entre os dois órgãos da soberania, como seguramente resultaria da aprovação de um preceito como o do projectado § 3.º-A. O mais razoável será, se não erramos, não criar a este respeito qualquer regime especial. É o caso de se deverem esperar piores resultados do estabelecimento de uma disciplina especial, instituída na base de "ressentimento" político, do que da ausência dessa disciplina e da consequente entrega do assunto ao domínio de certas normas não escritas, que poderemos chamar "normas de correcção constitucional", as quais em todos os momentos devem presidir às

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relações entre esses órgãos da soberania. Certas infracções a estos normas verificadas no passado devem ser esquecidas, tendo-se confiança em que se não repitam.

ARTIGO 4.º

1. Não julga esta Câmara dever dar a sua adesão à projectada alteração do regime de fiscalização da constitucionalidade pelos motivos que possa a expor.
No § único do artigo 123.º da Constituição, tal como se encontra hoje redigido, dispõe-se que a inconstitucionalidade orgânica ou formal das regras de direito constantes de diplomas promulgados pelo Presidente da República é insusceptível de apreciação jurisdicional, sendo exclusivamente possível de um controle político efectivado pela Assembleia Nacional, por sua iniciativa ou do Governo. Entendeu-se que num país como o nosso, em que à separação dos Poderes Executivo e Legislativo não corresponde uma equivalente e estrita separação de funções, desapareceram ou atenuaram-se os receios de uma legislação do primeiro desses poderes, não fazendo, por isso, sentido que os cidadãos dispusessem de uma arma contenciosa contra as infracções dos princípios constitucionais de repartição das competências normativas. O que sobretudo interessa os cidadãos é uma defesa contenciosa contra as infracções respeitantes ao fundo da Constituição, não uma defesa contra as infracções de valor processual ou formal.
Daí que no § único do artigo 123.º se tenha negada a legitimidade de um controle jurisdicional da inconstitucionalidade orgânica ou formal das regras de direito constantes de diplomas promulgados pelo Chefe do Estado, atribuindo-se antes à Assembleia Nacional o direito de defender as suas atribuições específicas contra as intromissões do Governo, realizadas, quer a título legislativo, quer a título regulamentar. As questões desta, ordem, repete-se, não têm, ou pretende-se que não tenham, relevância no domínio dos direitos e interesses dos cidadãos. Têm um alcance, digamos, meramente político, implicam apenas com as funções e o prestígio da Assembleia Nacional. Que seja ela, portanto, o repor as coisas no seu lugar.
Ora bem. Este regime de apreciação da inconstitucionalidade orgânica ou formal implica que caibo exclusivamente à Assembleia o apreciação de infracções que se traduzam na publicação de decretos regulamentares ilegais, isto é, contrários quer às leis, quer aos decretos-leis, e na publicação de decretos-leis que excedam as autorizações legislativas concedidas pela Assembleia ao Governo.
Não há dúvida de que estas infracções têm uma gravidade e um relevo que não são inferiores aos que se associam à publicação de decretos-leis ou decretos regulamentares no domínio das matérias, reservadas exclusivamente à lei, segundo o artigo 93.º do Constituição. Também aqui se trata, sobretudo, de preservar a competência da Assembleia, não directamente de defender os cidadãos. Que seja, portanto, a Assembleia a defender-se a si própria, sem necessidade de intervenção dos tribunais nesse sentido. Não entrem os tribunais nas querelas sobre fronteiras de competência entre o Governo e a Assembleia Nacional; não se intrometam em problemas como esses, de natureza essencialmente política. Onde a Assembleia vir a sua reserva de competência invadida, que tome o iniciativa de a defender, nos termos hoje vigentes, expressos no § único do artigo 123.º da Constituição. Se a Constituição tivesse previsto a existência de um tribunal de garantias constitucionais ou tivesse atribuído exclusivamente o uma alta instância judiciária competência paro tutelar a constitucionalidade, ainda se poderia compreender e aceitar uma modificação como a proposta. Mas num sistema em que todos os tribunais de todas as instâncias e de qualquer natureza têm poderes para não aplicar os diplomas que reputem inconstitucionais, tem de se reputar inadmissível a concessão de semelhante faculdade em relação aos diplomas do Governo que pretendidamente tenham invadido o domínio de atribuições da Assembleia Nacional.
Julga-se, inclusive, que tal modificação seria fundamentalmente prejudicial aos particulares, na medida em que ofenderia os valores de certeza e da segurança jurídica. O regime do § único do artigo 123.º, na medida em que facilita à Assembleia determinar os efeitos da inconstitucionalidade, preserva muito mais adequadamente estes valores do que o regime do corpo do artigo.
Pelo exposto, o Câmara Corporativo não recomendo a adopção da projectada alteração do § único do artigo 123.º da Constituição.

III

Conclusões

A Câmara Corporativa, pelas razões expostas durante o exame na especialidade, é de parecer que devem ser rejeitadas todas as alterações e adicionamentos projectados, com excepção dos respeitantes às alíneas g) e h) do artigo 93.º da Constituição, referidos no artigo 1.º do projecto.
Essas alíneas poderiam ter u seguinte redacção:

g) O exercício das liberdades a que se refere o § 2.º do artigo 8.º e as condições do uso da providência excepcional do habeas corpus.
h) A matéria dos artigos 119.º e 120.º

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pires de Lima. (Não concordei com a doutrina da alínea h) do artigo 93.º da Constituição, segundo o artigo 1.º do projecto, a inserir com referência aos artigos 119.º e 120.º
A semelhança do que acontece com algumas das garantias individuais enunciados no artigo 8.º, "o carácter vitalício, a inamovibilidade e irresponsabilidade dos juizes dos tribunais ordinários e os termos em que se faz a sua nomeação, promoção, demissão, suspensão, transferência e colocação foro do quadro ou em que pode ser feita a respectiva requisição para comissões permanentes e temporárias" não são tradicionalmente objecto de leis especiais. E matéria que se contém, na sua generalidade, no Estatuto Judiciário, ou está dispersa pelos diplomas legislativos que fixam a orgânica dos mais variados serviços públicos.
Compreende-se mal que fique inibido o Governo de publicar um novo estatuto judiciário, ou de reorganizar ou criar um serviço paro o qual devam ou possam ser chamados em comissão juizes dos tribunais ordinários, sem submeter o sua apreciação à Assembleia Nacional. Lembro-me especialmente da organização dos tribunais especiais, como os administrativos, os do trabalho, os militares, os do contencioso das contribuições e impostos, os das execuções fiscais, os das alfândegas, os de polícia, os de géneros alimentícios, os das reclamações e transgressões das câmaras, os das avaliações e até o Conselho Ultramarino.

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São casos estes em que não pode duvidar-se da aplicação da alínea em projecto. Dúvidas só se podem suscitar quanto às comissões dentro do próprio Ministério da Justiça, visto não haver, neste caso, nenhuma requisição de juizes, mós simples nomeação pelo Ministro.
Por outro lado, a necessária, independência da magistratura em relação ao Governo só aparentemente se assegura com a medida projectada. E que essa independência depende, não do facto de pertencer exclusivamente à Assembleia Nacional a fixação do estatuto próprio dos juizes, mas do conteúdo do próprio estatuto. Até que a Assembleia se pronuncie tudo continuará como até aqui, e não há, pela Constituição, qualquer limitação à competência da Assembleia Nacional, para intervir desde já, se entender que o actual regime não convém à necessária independência dos magistrados).
Guilherme Braga da Cruz (perfilho a declaração de voto do Digno Procurador Fernando Andrade Pires de Lima).
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Gagliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Barros.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

RARECER N.º 14/VII

Projecto de lei n.º 20

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 20, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Burros, José Cueiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O presente projecto de lei de revisão constitucional, apresentado à Assembleia Nacional pelo Sr. Deputado Duarte do Amaral, visa introduzir no documento constitucional em vigor certas modificações, todas de relevo e algumas particularmente importantes. Nenhuma objecção existe a que sobre ele a Câmara Corporativa emita o seu parecer e a Assembleia Nacional resolva em último termo: a Assembleia Nacional, por força da sua resolução publicada no Diário do Governo de 17 de Abril de 1950, está munida dos poderes constituintes indispensáveis para puder, neste momento, rever a Constituição, e o projecto de lei n.º 20 foi-lhe apresentado com observância do prazo estabelecido no § 2.º do artigo 176.º

II

Exame na especialidade

ARTIGO 1.º

1. A Câmara Corporativa já teve ocasião de versar o assunto da necessidade de eliminação do § único do artigo 84.º da Constituição e de fazer a esse respeito uma sugestão, no seu recente parecer n.º 10/VII, sobre a proposta de lei n.º 18. Desta sorte, não tem, a este propósito, mais do que manter o já sustentado e remeter para esse lugar.

ARTIGO 2.º

1. Já na proposta de lei n.º 18, com a concordância desta Câmara, se deu satisfação a algumas das alterações agora projectadas em relação ao § 3.º do artigo 95.º Assim, designadamente, reconheceu-se no parecer n.º 10/VII que não há nada que justifique a possibilidade de participação dos membros do Governo apenas nas comissões permanentes, e não nas comissões eventuais.
Sugere-se agora que nas sessões da Assembleia Nacional em que sejam apreciadas alterações propostas pela Câmara Corporativa tome necessariamente parte um delegado desta. Pelo regime actual, tal delegado pode tomar parte nas sessões das comissões - não sendo obrigatória a sua participação.
Não parece que o projecto mereça aprovação neste ponto.
Por um lado, não tem a prática revelado a necessidade da presença de um tal delegado. Não há notícia de a Câmara Corporativa ou a sua Mesa terem alguma vez reconhecido a necessidade ou a simples conveniência de a Câmara se fazer representar nas sessões das comissões da Assembleia em que se estudem os projectos ou propostas que ela previamente examinou, ou de a Assembleia ter solicitado a comparência de um delegado desta Câmara nas referidas sessões.
Depois, não pode desconhecer-se que as comissões da Assembleia reúnem por vezes paralelamente com a Câmara, não podendo esta fazer-se utilmente representar nessas comissões, justamente na altura em que elabora os seus pareceres, em especial pelo relator, que é quem, em princípio, estaria mais indicado para comparecer na Assembleia.

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Em seguida, há que ponderar que a Câmara Corporativa tem por norma elaborar os seus pareceres com toda a minúcia e desenvolvimento, não sendo natural que a Assembleia se não aperceba de todo o pensamento da Câmara e precise sistematicamente de obter esclarecimentos suplementares sobre os assuntos versados nesses pareceres.
Por último, a comparência às reuniões das comissões da Assembleia de maneira sistemática importaria para os procuradores-relatores uma sobrecarga de sacrifícios de tempo, que não se deve exigir de quem, no exercício das suas funções, não presta serviços em regime de full-time, acumulando-os frequentemente com outras funções públicas por principio absorventes.
Aliás, para se ser coerente (visto que há entre as duas hipóteses paridade de razão), deveria então ter-se proposto uma alteração correspondente ao § 3.º do artigo 104.º, no sentido de na discussão dos projectos de lei na Câmara Corporativa dever necessariamente intervir o Deputado que do projecto houvesse tido a iniciativa. E isso não se fez.

ARTIGO 3.º

1. Entre os meios de que os Deputados dispõem hoje para exerceram a competência que a Constituição, no seu artigo 91.º, n.º 2.º, confere à Assembleia Nacional para apreciar os actos da Administração em geral contam-se aqueles n que faz alusão o seu artigo 96.º: os membros da Assembleia podem - diz esta disposição - ouvir, consultar ou solicitar informações de qualquer corporação ou estacão oficial acerca de assuntos de administração pública. Estas faculdades podem ser exercidas independentemente do funcionamento efectivo da Assembleia; quando esta está em funcionamento, cumpre aos Deputados, nos termos do Regimento, usar do período de antes da ordem do dia para formular os pedidos de consulta dos processos nos serviços públicos, os pedidos de informação e de esclarecimentos sobre a execução desses serviços e sobre acontecimentos de natureza política e social.
É, em face disto, caso para pôr o problema de saber se, com a nova redacção projectada para o artigo 96.º, se acrescenta alguma coisa de relevante ao já hoje disposto neste preceito.
Se atendêssemos apenas ao texto desta disposição constitucional poderíamos ser levados a concluir que entre ele e a redacção agora proposta não há nenhuma diferença de fundo. Ante ambos as fórmulas os Deputados podem, afinal de contas, formular às estações oficiais, pelos Ministérios competentes, os pedidos de esclarecimentos que entendam sobre qualquer assunto de administração pública.
Se, porém, cotejarmos o artigo 96.º com o Regimento da Assembleia e com a prática parlamentar verificaremos que as informações e esclarecimentos pedidos pelos Deputados não são, ou de qualquer modo não têm que ser, publicados no Diário das Sessões. O presidente da Assembleia limita-se normalmente o comunicar que "estão na Mesa os elementos pedidos pelo Sr. Deputado F.", sem que o teor desses elementos obtenha, em regra, publicação. Se o Deputado interessado não quiser fazer, ou entender não dever fazer, posteriormente, na Assembleia comentário a esses elementos, designadamente sob a forma de avisos prévios, a opinião pública ficará por esclarecer. Afigura-se, por isso, a esta Câmara que há interesse em perfilhar o projecto de alteração aqui analisado.
O que se pretende agora introduzir na Constituição com o n.º 1.º proposto para o artigo 96.º é a legitimidade de os Deputados dirigirem aos Ministros perguntas por escrito, a que estes ficarão politicamente obrigados a responder, também, naturalmente (no nosso sistema não pode normalmente suceder de outro modo), por escrito, com vista ao esclarecimento da opinião pública, o que, é evidente, só se conseguirá com a inserção tanto das perguntas como das respostas no Diário das Sessões.
Até agora, os Deputados tanto podiam consultar os processos nas corporações ou estações oficiais, como ouvi-las ou solicitar delas informações, naturalmente sobre o que desses processos constava. Tratava-se, portanto, de um direito de dirigir perguntas aos serviços, não aos Ministros, isto é, ao Governo. Tanto assim que, na última parte do artigo 96.º, se dispõe que "as estações oficiais (que é como quem diz os serviços) não podem responder sem prévia autorização do respectivo Ministro".
Agora, não se tratará só de um controle parlamentar da burocracia (a que alude o projectado n.º 2.º, correspondente no actual artigo 96.º). Tem-se em vista um certo controle do próprio Governo e da sua política, pois serão as suas respostas que serão conhecidas e as suas atitudes que serão apreciadas quer pela Assembleia, quer pela opinião pública.
A ser aprovado o projecto neste ponto, virá assim a consagrar-se no nosso direito constitucional, na medida compatível com as exigências fundamentais do nosso regime, um meio de controle parlamentar admitido na prática da generalidade dos países com instituições parlamentares do tipo europeu.
As perguntas, lá fora, podem, em regra, ser escritas e orais, tratando-se, em ambos os casos, de pedidos de informações ou esclarecimentos dirigidos por um parlamentar a um ministro.
No primeiro caso (perguntas escritas), os parlamentares dirigem-se por escrito ao ministro para obterem deste uma resposta escrita, que receberá publicidade no jornal oficial, da Câmara. Se a resposta não for dada no prazo prescrito, o autor da pergunta escrita poderá transformá-la, numa pergunta oral, que, por sua vez, é um instrumento mais enérgico do que a pergunta escrita e subentende um regime parlamentar em sentido estrito, isto é, portanto, a necessária comparência do Governo nas sessões do Parlamento.
As perguntas orais são afinal também, em rigor, geralmente perguntas escritas, uma vez que, onde se admitem, se moldam pela prática parlamentar inglesa, segundo a qual o assunto sobre que o ministro deve responder na Câmara (antes da ordem do dia) lhe é, em princípio, comunicado por escrito com quarenta e oito horas de antecedência. A resposta, essa, é que é oral. O ministro responde frequentemente só com uma frase, por vezes apenas com um sim ou com um não. O autor da pergunta eventualmente replica, sempre em curtas palavras, agradece e declara-se satisfeito ou descontente. Nesta última hipótese poderá formular uma nova pergunta acessória, uma pergunta supplementary , desta vez uma pergunta realmente oral, a que o ministro responderá agora sem preparação ou de improviso. O speaker vigiará por que a troca de perguntas e respostas orais não degenere num debate anti-regimental. Mas se o deputado se não considerar ainda suficientemente informado tem a faculdade de retomar a questão no fim da sessão.
Até há pouco em França admitiam-se também as perguntas orais: em cada, sexta-feira a Assembleia Nacional inscrevia, no início da sua ordem do dia, dez perguntas orais que eram notificadas oito dias antes ao Governo. Tanto o autor da pergunta como o ministro interrogado dispunham de cinco minutos cada um, que, de resto, não chegavam, por via de regra, a uti-

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lixar completamente. O autor podia replicar, mus liem sempre usava desse direito.
Também na República Federal Alemã se admitem essas perguntas orais, mas, enquanto as perguntas escritas têm de ser assinadas por trinta deputados, as orais podem ser apresentadas por um só. São estas, compreensivelmente, as mais frequentes.
A prática das perguntas escritas é mais recente do que a das perguntas orais. Em Inglaterra só foram admitidas em 1902 e na França em 1909.
Dado o inconveniente de as perguntas orais poderem degenerar facilmente em debate, como se se tratasse de interpelações permanentes, com as consequências que se imaginam para a vida e acção do executivo, a Suíça só admite as perguntas escritas, não as orais l.
Ante a nossa orgânica constitucional, como já dissemos, só as perguntas escritas poderão admitir-se, como se propõe. Espera-se que a prática deste meio de controle parlamentar do Governo e da Administração concorra para dar um pouco mais de publicidade à vida política e administrativa do Governo e consequentemente para prevenir, em primeiro lugar, as suspeições e, depois, os possíveis arbítrios, abusos e injustiças e os simples erros da gestão governativa e administrativa em geral.
É certo que, uma vez posta em marcha a instituição que se projecta, o Governo há-de muitas vezes ter a sensação de que perde tempo com a preparação das respostas a dar à Assembleia. Se, porém, ponderar que esse é o custo de um alto serviço prestado, antes de mais, a si próprio - o de afastar suspeitas -, nunca deverá lamentar-se do tempo aparentemente perdido nesta tarefa de informar o público, ao serviço do qual, de resto, o Governo se encontra.
Não se ignora que o uso do processo das perguntas pelos Deputados pode degenerar em abuso, tornando-se, como às vezes lá fora se torna, num serviço de consulta gratuita em benefício do eleitor ou numa arma insidiosa contra os Ministros. Competirá ao Regimento da Assembleia regulamentar o exercício do direito de perguntar, em termos de impedir o mais possível que ele sirva para fins diferentes daqueles para cuja consecução a sua adopção aqui se recomenda. Ao Regimento caberá também fixar o prazo dentro do qual o Ministro deve responder2. É claro que a responsabilidade pela falta de resposta tem de ser simplesmente política. Tal como lá fora sucede, também cá há-de ser ponto de honra responderem os Ministros às perguntas dos Deputados.
Em conclusão, a Câmara dá a sua adesão à redacção proposta no projecto para o artigo 96.º e, de qualquer modo, perfilha a sua doutrina e orientação.

ARTIGO 4.º

1. Em 1951 foi posta na Câmara Corporativa a questão que, neste artigo, o projecto em exame pretende agora resolver, justamente de acordo com o que, aliás com bastantes hesitações, acabou por ser sugerido por ela (cf. o parecer n.º 13/V). A Assembleia não seguiu

1 Cf., sobro lodo este assunto, Emile Blamont, "Les Conditions du Contôle Parlementaire" in Rovus du Droit Public, 1950, pp. 389 e seguintes; Georges Burdeau, Traité de Seience Politique, tomo VI, 1957, pp. 334 e seguintes; Ilbert, El Parlamento, 1926, pp. 96 e seguintes.
2 Recordo-se que em 1951, na discussão sobre a proposta de lei que veio a converter-se na Lei n.º 2048, de 11 de Junho desse ano, o Sr. Deputado Manuel Lourinho expôs o ponto de vista de que os Deputados deveriam fazer perguntas por escrito aos Ministros, sendo a resposta escrita e obrigatória, dentro do prazo de trinta dias. V. Diário das Sessões, p. 817. então a sugestão da Câmara, certamente pelas razões que esta enunciou nessa altura: "o processo actual, no que respeita à iniciativa das propostas de eliminação, substituição ou emenda, evita o espectáculo, que por vezes poderia ser chocante, da rejeição ostensiva das propostas da Câmara Corporativa. A frequência dessa rejeição poderia tomar a aparência de um conflito entre as duas Câmaras".
A Câmara Corporativa está hoje mais inclinada para atribuir todo o peso a esta consideração, não fazendo à Assembleia Nacional a injustiça de conceber que ela não pondere sempre as suas razões e não considere com a devida reflexão as alterações que lhe são sugeridas em relação aos projectos ou propostas de lei que lhe cumpre apreciar.
Acresce que o sistema em vigor está mais de acordo com a função da Câmara Corporativa em relação à legislação. Desde que esta Câmara não funciona como segunda Câmara, não se prevendo, por via disso, uma fórmula de conciliação entre os pontos de vista dela e da Assembleia Nacional, o melhor é, realmente, não a sujeitar a ver, sem apelo nem agravo, as suas propostas rejeitadas pela assembleia dos Deputados.

ARTIGO 5.º

1. Ante o que tivemos ocasião de esclarecer em comentário ao artigo 3.º deste projecto, nada há que objectar a este adicionamento.

ARTIGO 6.º

1. A Câmara Corporativa teve ensejo de, no seu parecer n.º 10/VII, sugerir a votação da alteração do § 2.º do artigo 110.º a que neste artigo do projecto se alude.

ARTIGO 7.º

1. No seu parecer n.º 10/VII a Câmara Corporativa ocupou-se, com certa amplitude, de alterações propostas pelo Governo em relação ao § único do artigo 113.º da Constituição, que em parte coincidem com as agora sugeridas neste projecto. Cabe-lhe nesta altura apreciar a única alteração original que o projecto encerra.
A Câmara não pode acompanhar o projecto no seu propósito de facultar ao Presidente do Conselho delegar nos Secretários de Estado comparecer na Assembleia Nacional para se ocuparem "de assuntos de reconhecido interesse nacional". E a mesma posição toma para a hipótese de se seguir a sua proposta de que os Ministros possam comparecer na Assembleia, não como delegados do Presidente do Conselho, mas simplesmente autorizados por ele.
Não deve esquecer-se que a realização dos fins gerais dos Ministérios que compreendam Secretarias de Estado é fundamentalmente da responsabilidade do respectivo Ministro (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 41 824, de 13 de Agosto de 1958). Os Secretários de Estado têm competência para praticar, em princípio, apenas actos ao administração que entram nas atribuições legais dos Ministros (artigo 2.º do mesmo diploma). A situação de relativa dependência política dos Secretários de Estado em relação aos Ministros resulta vincada, ainda, pelo facto de à sua nomeação serem aplicáveis os preceitos que regulam a dos Subsecretários (artigo 1.º).
Sendo assim, parece que deve caber exclusivamente no Presidente do Conselho e aos Ministros a comparência na Assembleia Nacional para aí se ocuparem de assuntos de reconhecimento interesse nacional. Os Ministros, como responsáveis pela política geral dos seus Ministérios, são naturalmente as entidades indicadas para se ocuparem na tribuna da Assembleia dos assuntos

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de reconhecida interesse nacional que correm pelas suas pastas.
Aliás, a não ser assim, não haveria razão plausível para não admitir também os Subsecretários de Estado a comparecer na Assembleia com o mesmo objectivo.
Pelo exposto, a Câmara Corporativa não se inclina para a aceitação do proposta modificação.

III

Conclusões

Tirando as conclusões do seu exame na especialidade aos vários preceitos do projecto em análise, a Guinara Corporativa é de parecer que:

a) Não é de aprovar o artigo 1.º Ao § único do artigo 84.º da Constituição deve antes ser dada a redacção sugerida por esta Câmara nas conclusões do seu parecer n.º 10/VII;
b) Não é de aprovar a redacção projectada no artigo 2.º para o § 3.º do artigo 95.º da Constituição. Prefere-se a redacção sugerida pelo Governo na sua proposta de lei n.º 18;
c) É de aprovar a redacção projectada no artigo 3.º para o artigo 96.º da Constituição;
d) Não é de aprovar o adicionamento projectado no artigo 4.º ao artigo 97.º da Constituição;
e) É de aprovar o adicionamento de uma nova alínea, projectada no artigo 5.º, no artigo 101.º da Constituição;
f) É de aprovar a sugestão feita no artigo 6.º, coincidente, aliás, com a que esta Câmara fez nas conclusões do seu parecer n.º 10/VII;
g) É de rejeitar a redacção projectada no artigo 7.º para o § único do artigo 113.º da Constituição. A Câmara mantém a sugestão que fez a este propósito nas conclusões do seu referido parecer.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Guilherme Braga da Cruz.
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Gagliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Barras.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

PARECER N.º 15/VII

Projecto de lei n.º 21

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 21, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Barros, José Caeiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. Dispõe a Assembleia Nacional, no presente momento, de poderes constituintes, que assumiu mediante resolução publicada no Diário do Governo de 17 de Abril de 1959. Pode, portanto, proceder à revisão antecipada da Constituição Política.

2. O Governo apresentou à Assembleia uma proposta de lei de revisão constitucional (proposta de lei n.º 18).
O presente projecto de lei, de que é autor o Sr. Deputado Manuel José Archer Homem de Melo, foi, por sua vez, apresentado dentro do prazo de vinte dias, a contar da data de apresentação daquela proposta do Governo, como é imposto pelo § 2.º do artigo 176.º da Constituição. Está, portanto, em perfeita ordem para ser apreciado pela Câmara Corporativa e discutido pela Assembleia Nacional.

3. A Câmara entende que, dizendo o projecto respeito a alguns aspectos particularmente importantes do regime constitucional vigente, se impõe o seu estudo especialmente atento. O projecto em apreciação parece dominado por uma preocupação fundamental de reforçar os poderes da Assembleia, em detrimento da autoridade do Governo. Tem de se apreciar cuidadosamente o ponto de saber até onde é que, neste aspecto das coisas, se pode ir, não vamos nós, com inadvertidas modificações constitucionais, aparentemente sem grande significação, minar perigosamente o princípio da autoridade governamental, esquecendo-nos de que "não há Estado forte onde o Executivo o não é" e de que "le deputé de tous les temps, qu'il soit riche ou pauvre, de gauche ou de droite, partisan ou adversaire du regime repré-

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sentatif, tend à dévorer-tout pouvoir qui ne procède pás de lui et à élargir le sien jusqu'à instaurer ce gouvernement des deputés qui est sou rêve"1.

II

Exame na especialidade

ARTIGO 1.º

1. No seu parecer n.º 10/VII, a Câmara Corporativa deu a sua aprovação à proposta de lei do Governo visando elevar de cento e vinte para cento e trinta Deputados a composição da Assembleia Nacional. Não pareceu ao Governo, como também não pareceu à Câmara, que se devesse ir além deste número. Não se vislumbram buas razões para o exceder em mais vinte unidades. Esta composição da Assembleia não concorreria seguramente para a tornar mais expedita nu exercício designadamente da função legislativa. Por outro lado, não se tem a impressão de que seja necessário aumentar o quadro dos eleitos da Nação para que esta, no plano territorial e estritamente político, obtenha melhor representação, ou, noutras palavras, para que o valor representativo da Assembleia se reforce.
Nestes termos, a Câmara Corporativa não recomenda a aprovação da modificação projectada.

2. Na redacção proposta no projecto para o corpo do artigo 85.º nota-se uma outra divergência em relação ao texto hoje em vigor, mas conforme com a sugerida na recente proposta de lei sobre a revisão constitucional. Enquanto, pelo texto actual, o mandato dos Deputados tem a duração de quatro anos improrrogáveis, salvo o caso de acontecimentos que tomem impossível a convocação dos colégios eleitorais, pelo texto do projecto e da proposta esse mandato terá a mesma duração, salvo o caso de acontecimentos que tornem impossível a realização do acto eleitoral.
A primeira fórmula estava em consonância com a do actual § 1.º do artigo 72.º, em vias de alteração. Mas tem de reconhecer-se que a outra, agora sugerida, é preferível. Realmente, desde que no momento oportuno para a convocação dos colégios eleitorais se verifique uma situação de força maior que de todo desaconselhe essa convocação, o mandato dos Deputados deve receber a correspondente prorrogação, resultante do facto de, assim, o acto eleitoral não poder realizar-se na altura própria.
Pode também verificar-se a hipótese seguinte: na altura indicada para a convocação dos colégios eleitorais nada desaconselha ou impede uma convocação; mas, posteriormente, sobrevêm acontecimentos que não permitem a realização do acto eleitoral na data marcada. Deve então ser lícito cancelar-se a convocação e adiar o acto sine die on para outra data determinada. Também neste caso são acontecimentos que tornam impossível a realização do acto eleitoral a determinarem uma prorrogação do mandato dos. Deputados para além de quatro anos.
Desta sorte, afigura-se s esta Câmara que o artigo 85.º da Constituição devo, de preferência, ter a redacção sugerida pelo Governo na sua recente proposta de lei de revisão.

ARTIGO 2.º

1. Pretende-se, fundamentalmente, com este artigo, que os Deputados gozem, enquanto for válido o seu mandato, e não apenas durante o exercício efectivo das suas funções, das imunidades e regalias a que se referem as alíneas b) e d) do artigo 89.º da Constituição. Não se justifica o proposto quanto à alínea b), porque, como ensinou Marnoco e Sousa em relação a preceito idêntico da Constituição de 1911, tal prerrogativa foi introduzida na Constituição para não se poder dar o Deputado como jurado, perito ou testemunha, e assim impedir a sua assistência à sessão 1.
E também se não justifica o proposto quanto à alínea d). A regalia ou imunidade a que nesta alínea se faz referência visa garantir que os Deputados possam desempenhar os suas funções parlamentares; não visa conferir-lhes um privilégio. Trata-se, como também lembra Marnoco e Sousa, de regalia estabelecida, não no interesse do Deputado que dela aproveita, mas no interesse do parlamento, no interesse da própria soberania nacional que ele representa - tanto que não pode renunciar a ela 2.
Com as necessárias adaptações, os Procuradores à Câmara Corporativa têm, de resto, a este respeito, um estatuto semelhante (cf. o § 3.º do artigo 102.º da Constituição e o artigo 12.º do seu Regimento, aprovado em sessão plenária de 27 de Novembro de 1953).

ARTIGO 3.º

1. Sobre a atribuição de competência, em princípio exclusiva, à Assembleia Nacional para a criação de impostos e taxas já a Câmara Se pronunciou, em termos negativos, na sua análise ao projecto de lei n.º 19. Devolve-se, portanto, para o lugar próprio desse parecer.

2. Não se concorda com a ideia de atribuir à Assembleia, a título exclusivo, competência para a aprovação das bases gerais do regime e organização da eleição do Chefe do Estado e dos Deputados, a que se alude na alínea g), que se pretende acrescentar ao artigo 93.º Não parece que, nesse assunto, haja grande ocasião para a fixação de "bases gerais". O que justamente aí tem relevo são os pormenores técnicos do processo eleitoral. E para dispor sobre esta regulamentação puramente técnica está, em princípio, o Governo pelo menos tão bem colocado como a Assembleia. Se esta quiser ocupar-se do assunto, pode perfeitamente fazê-lo, embora não a título de exclusivamente competente para tal.

3. Também não parece que a Assembleia Nacional, deva ser o órgão constitucional exclusivamente competente para legislar sobre a nacionalidade portuguesa. Importância idêntica, para os cidadãos, à da nacionalidade, revestem-na assuntos como o estado das pessoas, a sua capacidade, os regimes matrimoniais, as sucessões e doações, etc., e não pode pensar-se em enveredar pelo caminho de os reservar à competência exclusiva a Assembleia Nacional, dados os aspectos técnicos que todos estes assuntos revestem.

4. Ao versar a matéria respeitante ao artigo 1.º do projecto de lei n.º 19, a Câmara expressou a sua concordância com o fundo do que se propõe neste projecto sobre o conteúdo da alínea i), a adicionar ao artigo 93.º da Constituição. Apenas, julga dever divergir do proposto neste projecto quanto à redacção.

1 Cf. Roger Priouret, La République des Deputés, 1959, p. 62.

1 Cf. Constituição Política da República Portuguesa, Comentário, 1913, p. 354.
2 Cf. obra citada, pp. 355 o seguintes. Cf. também Prof. Doutor Marcelo Caetano, A Constituição de 1933, 1956, p. 87.

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5. Não é viável, no critério da Câmara, conferir à Assembleia Nacional competência exclusiva para legislar nas matérias de enumeração ou descrição típica das infracções e de punição.
Trata-se, sem dúvida, de matérias da mais alta gravidade para os cidadãos e para a sociedade. Tem, todavia, de se reconhecer que o Governo se vê muitas vezes, ao legislar sobre os mais diferentes assuntos, na necessidade de incluir disposições penais avulsas nos diplomas legais que publica, não sendo praticável solicitar a todo o momento uma intervenção legislativa complementar da Assembleia quanto a esses pontos.
Não é tudo, porém, nem o mais importante. Quando se tratasse de empreender uma codificação global do direito penal, não seria praticável recorrer à Assembleia para que ela fixasse os princípios gerais em matéria de enumeração e descrição típica das infracções e de punição, ficando o Governo com competência para versar em decreto-lei todos os outros aspectos, além desses, que não podem deixar de constar de um código penal moderno: tipicidade, ilicitude e culpa, medidas de segurança, etc. A competência para versar legislativamente a enumeração das infracções e a punição deve arrastar a competência para versar todos os outros referidos aspectos. Se o Governo fica com competência para disciplinar estes últimos, há-de ter também competência para disciplinar os primeiros. Se só a Assembleia puder disciplinar a descrição típica e a punição, então só ela há-de poder disciplinar as restastes matérias próprias de um código penal.
Simplesmente, esta última orientação é inviável, dada a complexidade técnica que os outros aspectos revestem hoje em dia, no estado actual da ciência do direito criminal. Aliás, a intervenção das assembleias legislativas em matéria criminal nunca se revelou útil ao longo da nossa legislação, como se vai ver.

6. Aprovado na ditadura de Passos Manuel, por decreto de 4 de Janeiro de 1837, o projecto de José Manuel da Veiga, não foi ele abrangido pelo bil de indemnidade de 27 de Abril de 1837, continuando assim em vigor as Ordenações!
Por sua vez, o Código Penal de 1852 - ainda hoje base da mossa legislação criminal - foi aprovado por decreto de 10 de Dezembro daquele ano, sendo pura e simplesmente sancionado pelo bil de 1 de Julho de 1853.
O desinteresse das Cortes pelos problemas penais conduziu a que nunca entrasse em vigor o célebre projecto de Levy Maria de Jordão, de 1861. Proclamava José Luciano de Castro a esse respeito: "Logo depois da publicação do actual Código Penal (de 1852) fora nomeada uma comissão para entender da sua reforma. Ao cubo de alguns anos, essa comissão deu por terminados os seus trabalhos, oferecendo ao Governo um código penal modelado num sistema novo e, porventura, mais racional e completo do que o da legislação vigente. Esse trabalho chegou a ser apresentado às Cortes por um dos meus antecessores, mas nem sequer alcançou parecer da respectiva comissão. Parou aí a reforma. O projecto, apesar de louvado por nacionais e estrangeiros, lá jaz esquecido e desamparado nos arquivos parlamentares".
É certo que a proposta, de Barjona de Freitas sobre a modificação das penas e sua execução veio a converter-se na Lei de 1 de Julho de 1867. Mas também é verdade que foi votado sem que da discussão parlamentar resultasse qualquer utilidade.
Objecto de apreciação pelas Cortes foi, por sua vez, o projecto do Ministro da Justiça Lopo Vaz, de 1884, que, convertido em lei, veio a ser integrado no Código de 1852, dando lugar ao de 1886. Mas a discussão abrangeu tão-só parte da proposta, em nada contribuindo para a melhorar.
O mesmo se diga da Lei de 1893 sobre liberdade condicional e suspensão da pena.
A história das Leis de 3 de Abril de 1896, cuja origem remonta a 1894, mostra bem, por outro lado, as dificuldades com que deparavam os projectos nas Cortes relativamente a matéria penal.
Não deixa também de ser interessante observar que toda esta legislação não resultou de iniciativa das Cortes, mas do Governo.
Note-se, por outro lado, que a grande maioria das mais importantes modificações legislativas em direito criminal durante o século actual tem tido lugar sem a intervenção das assembleias legislativas, sendo certo que, se exceptuarmos a Lei n.º 1901, de 21 de Maio de 1935 (associações secretas), e a Lei n.º 2053, de 22 de Março de 1952 (abandono de família), no que toca a incriminações, e a Lei n.º 2000, de 16 de Março de 1941 (na parte referente a reabilitação), no que respeita a efeitos das penas - aliás da iniciativa do Governo e de que só se votaram as bases -, nunca a Assembleia Nacional, desde o sen funcionamento, se ocupou de matéria penal substantiva.

7. De qualquer modo, sempre seria de considerar que, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos, não seriam só essas matérias criminais propriamente ditas que poderiam requerer uma intervenção exclusiva da Assembleia: o processo penal, designadamente, poderia aspirar a idêntico tratamento. Não parece, porém, que por este caminho se deva enveredar.

ARTIGO 4.º

1. A redacção projectada para o § 3.º do artigo 95.º está, na sua primeira parte, de acordo com a proposta de lei n.º 18, que mereceu, por sua vez, a concordância desta Câmara no seu parecer n.º 10/VII.
Mas no presente projecto acrescenta-se um preceito novo ao § 3.º, em cujos termos será obrigatória a presença de um membro do Governo nas sessões das comissões, desde que a maioria dos seus membros o requeira.
Não se pode concordar com esta pretensão; em primeiro lugar, porque ela se tem de reputar desnecessária: não é de admitir que um Ministro, Secretário de Estado ou Subsecretário de Estudo se recuse a comparecer nas sessões das comissões da Assembleia Nacional, quando por estas convidado.
Depois, dada a separação de poderes, que é como quem diz a autonomia recíproca de que fruem a Assembleia Nacional e o Governo, não deixaria de repugnar aos princípios que as comissões da Assembleia dispusessem de um direito desta ordem.
Tudo desaconselha a aprovação de um tal preceito.

ABTIGO 5.º

1. A Câmara Corporativa já se ocupou do § único do artigo 113.º no seu parecer n.º 10/VII, citado. Para ele se devolve no que for pertinente também ao que neste artigo do projecto se propõe. Mas este vai muito mais longe, impondo-se, portanto, fazer-lhe algumas sumárias referências especiais.

2. Pretende-se, com a redacção proposta para tal § único, tornar obrigatória a presença de membros do Governo na Assembleia Nacional, «se um terço dos Deputados em exercício efectivo assim o requerer», para efeito de responder sobre matérias indicadas no requerimento.

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Trata-se de procurar instituir entre nós o processo de controle parlamentar do Governo conhecido por «perguntas orais», de que esta Câmara teve já ocasião de se ocupar a propósito do projecto de lei n.º 20. A diferença está em que o sistema, lá fora, não necessita, para funcionar, de um tal número de Deputados a pedir a comparência do Ministro no Parlamento, para efeitos de responder sobre o assunto de que antes lhe foi dado conhecimento; e em que a resposta do Ministro iria ter lugar, não no período antes da ordem do dia, mas em plena ardem do dia, «que constará da comunicação à Assembleia Nacional que o Governo sobre o assunto entenda fazer», circunstância que não é, compreensivelmente, sem relevo, uma vez que concorreria pura dar à resposta ministerial uma ressonância muito maior do que se tivesse lugar no período antes da ordem do dia.
Julga-se puder evitar que o sistema das perguntas orais, que se pretende ver consagrado, degenere em um verdadeiro sistema de «interpelações», na medida em que se prescreve que «sobre a comunicação governamental não poderá incidir qualquer votação da Assembleia». Mas o que se não impede é que sobre essa comunicação incida um debate espectacular, através da réplica dos autores do «requerimento» e do comentário crítico dos demais Deputados que queiram contradizer o Ministro ouvido. Ao fim e ao cabo, mesmo sem votação expressa, não seria normalmente difícil saber que posição assumira a Assembleia Nacional perante o Ministro convocado ou até perante o Governo no seu conjunto. Com o inconveniente, aliás, de se não prever o direito de o Ministro se defender, no final, da crítica que na Assembleia se fizesse aos seus actos.
O ponto até onde a Câmara julga que se pode ir, sem se atraiçoar a concepção consagrada no nosso regime constitucional, foi já exposto no seu parecer sobre o projecto de lei n.º 20 e traduz-se em admitir o processo menos enérgico, sem deixar de ser eficaz, das perguntas escritas. Admitir o sistema proposto no projecto agora em exame seria contradizer francamente, frontal mente, as ideias básicas e fundamentais do regime instituído em 1933 - seria admitir hoje, embora sob uma forma desviada ou indirecta, a responsabilidade política do Governo perante a Assembleia, quando originariamente se julgara dever preservar a autoridade do Executivo, como condição da sua indispensável eficácia, através justamente da sua separação do Legislativo. Era vez, pois, de parlamentarismo, seguiu-se, neste ponto, à letra, a concepção presidencialista da organização constitucional, segundo a qual, por um lado, os membros do Executivo não têm acesso às assembleias legislativas, uma vez que não são membros delas, e, por outro, estas assembleias não podem censurar formalmente os Ministros, cuja autoridade lhes advém de outro órgão, do Presidente da República, por sua vez também eleito pela Nação.
Não se ignora que este esquema recebeu, com o tempo, temperamentos, de tal modo que, hoje, na prática americana, existe uma certa cooperação ou ligação do Executivo com o Congresso, ou, melhor, do Executivo com as comissões permanentes, em que ele concentra na actualidade a verdadeira actividade do Parlamento americano, perante as quais, os ministros comparecem, como cidadãos, para efeito de serem interrogados a porta fechada. Em caso de desacordo, porém, o Executivo prevalece, sem que a sua acção seja verdadeiramente paralisada. De qualquer modo, não vigora na América nada que corresponda ao espectacular sistema que no presente projecto se advoga.
A Câmara Corporativa, tudo ponderado, não dá o seu apoio à projectada redacção do § único do artigo 113.º, aliás formalmente defeituosa, em especial enquanto
alude a um «representante do Governo» e a um requerimento do que constará obrigatoriamente a matéria sobre a qual a Assembleia Nacional «deseja ser ouvida».

ABTIGO 6.º

1. O alcance da modificação de redacção agora projectada é conferir aos Deputados iniciativa legislativa nas matérias que, nos termos do artigo 93.º e do artigo 150.º, n.º 1.º, são da exclusiva competência da Assembleia Nacional em relação ao ultramar. Como se depreende da leitura do actual n.º 1.º deste artigo, a Assembleia Nacional tem, sim, competência reservada em certas matérias consideradas particularmente importantes, mas essa competência só pode ser exercida «mediante propostas do Ministro do Ultramar».

2. Com o advento da Monarquia liberal e a instauração do sistema de assimilação na administração ultramarina portuguesa, a orientação que passou a dominar a nossa legislação constitucional foi a de confiar às Cortes competência para elaborar a generalidade das leis a aplicar no ultramar, com paridade de iniciativa para a Administração e para os Deputados, só a título muito excepcional se atribuindo competência legislativa ao Executivo. As necessidades, porém, impuseram que dessa faculdade excepcional o Executivo usasse com largueza, sem que o Parlamento reagisse, dado o sen clássico desinteresse pelas coisas do ultramar.
A Constituição de 1911, descurando estas necessidades, reforçou a orientação de se confiar exclusivamente ao Congresso a competência para legislar para o ultramar, como, aliás, para o resto do território português, não havendo qualquer discriminação entre o Executivo e os membros do Parlamento em matéria de iniciativa.
Em 1920, a Lei n.º 1005 introduziu uma reforma importante nesta matéria: de legislador colonial normal, o Congresso passou a ser legislador de excepção para o ultramar. Dai em diante dispôs de uma competência reservada ou exclusiva, ficando o Executivo a ser competente para as restantes providências extensivas a mais o uma colónia. Mas, em matéria de iniciativa legislativa, as coisas continuaram como anteriormente.
Em 1926, porém, nas suas «Bases orgânicas da administração colonial», João Belo introduziu neste último ponto uma alteração significativa, que foi a seguinte: a competência exclusiva do Congresso só poderia ser exercida por este mediante propostas do Ministro das Colónias. Os membros do Congresso não poderiam ter a iniciativa da generalidade das leis coloniais propriamente ditas.
O Acto Colonial e a Carta Orgânica do Império Colonial Português conservaram esta orientação. Mantiveram-na também a Lei n.º 2048 e a Lei Orgânica do Ultramar Português.
Que levou João Belo a perfilhar este ponto de vista e que levou os legisladores posteriores a conservarem-se-lhe fiéis? A razão foi que se considerou encontrar-se a generalidade dos membros do Parlamento insuficientemente informada sobre os problemas ultramarinos e, por essa época, pouco atenta e pouco interessada por tais problemas. O Executivo e, dentro dele, um Ministro, muito particularmente, têm. outra informação e outro contacto com esses problemas. O Ministério do Ultramar está naturalmente especializado nos assuntos da administração ultramarina.
Daí que, sem deixar de atribuir ao Legislativo a última decisão, convenha associar à elaboração das mais importantes e melindrosas leis respeitantes ao ultramar português justamente o Ministro do Ultramar, a entidade em último termo responsável pelas grandes linhas de orientação político-administrativa das províncias ul-

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tramarinas. O Executivo deve, portanto, continuar a ser directamente associado ao exercício da competência legislativa da Assembleia em matéria ultramarina (quando se não queira dizer, talvez mais rigorosamente, que é a Assembleia que deve continuar a ser associada ao Governo no exercício desta competência).
É a solução justifica-se tanto mais quanto é certo terem, hoje em dia, os problemas ultramarinos um melindre muito especial, que se acrescenta àquele que as matérias do n.º 1.º do artigo 150.º por natureza já oferecem. Convém, mais do que nunca, nos nossos dias, ser particularmente prudente em tudo quanto ao ultramar diga respeito. Uma iniciativa a «simpática» ou ousada, mas não realista, como sempre naturalmente se pode recear de pessoas sem contacto com o fundo dos problemas ultramarinos e possuídas das melhores intenções, poderia ser fonte de dificuldades políticas e de riscos que não convém nem correr nem enfrentar. O Executivo tem uma reserva clássica de funções: o exército, a diplomacia e o ultramar. Este deve ser o último de que deve abrir não por completo em favor do Parlamento.
Fiquemo-nos pelo sistema, de colaboração ou associação dos dois órgãos - Governo e Assembleia: o princípio da unidade política, consagrado na Constituição e na Lei Orgânica do Ultramar Português, não requer necessariamente uniformização integral de legislação. A Câmara Corporativa não apoia o projecto em mais este ponto.

ARTIGO 7.º

Tal como sucede na metrópole, para que seja exigível a observância das leis e mais diplomas no ultramar é necessário criar a possibilidade de serem conhecidos por aqueles a quem se destinam. Para serem conhecidos é necessário serem publicados. Desta sorte, a publicação é naturalmente uma formalidade essencial para conhecimento da legislação ultramarina, uma condição sine qua non da sua eficácia.
Como se sabe, a publicação consiste na inserção do texto dos diplomas muna colectânea oficial de legislação. Na metrópole, essa colectânea é o Diário do Governo. Em cada província ultramarina, por seu turno, publica-se um Boletim Oficial, em regra semanalmente. Nele serão insertos todos os diplomas que devem vigorar em cada uma delas.
Ora bem. Por força do artigo 150.º, § 2.º (e não, como se supõe no projecto, do § 2.º do n.º 3.º do artigo 150.º), da Constituição e da base LXXXVIII da Lei Orgânica do Ultramar Português, todos os diplomas emanados de órgãos metropolitanos para vigorar nas províncias ultramarinas serão aí publicados pelo Ministro do Ultramar, o qual, paia o efeito, aporá neles a menção de que devem ser publicados no Boletim Oficial da província ou províncias onde hajam de executar-se. Esta menção será escrita no original do diploma e assinada pelo Ministro.
Será de manter este regime? A Câmara entende que sim. Ele está, em primeiro lugar, de acordo com o sistema que faz do Ministro o responsável supremo pelo conjunto da administração ultramarina, sendo, como é, o chefe da generalidade dos serviços dos territórios do ultramar. Em segundo lugar, constitui uma forma eficaz de solucionar o problema de saber que diplomas elaborados na metrópole é que devem ser publicados no ultramar e nesta ou naquela província ultramarina. Deveria deixar-se uma decisão a este respeito aos serviços da imprensa oficial de cada província? O melindre de lhe deixar tal decisão patenteia-se se nos lembrarmos de que há diplomas, emanados da Assembleia Nacional ou do Governo, em que se incluem disposições de aplicação além-mar, nem sempre claras sobre o âmbito territorial da sua eficácia. A solução de publicar no ultramar todos os diplomas emanados da Assembleia Nacional ou do Governo é, por sua vez, insatisfatória. É muito mais aceitável a fórmula actual, que atribui, como se disse, ao Ministro do Ultramar competência para ordenara publicação dos diplomas legais emanados a metrópole - as leis e resoluções, os decretos-leis e os decretos e portarias. Para mais, se os serviços da imprensa oficial estão, em último termo, na sua dependência, e se se não compreende, muito bem que possam agir por iniciativa, própria, há-de caber ao Ministro, através da sobredita menção, dar-lhes a ordem de publicação.
Aliás, não é de admitir a possibilidade de o Ministro do Ultramar se recusar a publicar os diplomas emanados da Assembleia Nacional para vigorarem no ultramar ou em alguma parte dele, sobretudo tendo-se em conta - no caso das leis, das resoluções, do decretos-leis e dos decretos - que eles são promulgados pelo Presidente da República, com a referenda do Presidente do Conselho.
Por último, assinale-se que, se houvesse que perfilhar a orientação do projecto em relação aos diplomas emanados da Assembleia Nacional, não haveria razão para o não adoptar também em relação aos decretos-leis do Governo, visto que este órgão tem também competência para legislar para o ultramar, nos termos do n.º 2.º do artigo 150.º da Constituição e do n.º III da base IX da Lei Orgânica.

ARTIGO 8.º

1. Não parece de afastar a ideia geral da inserção de um novo parágrafo, no artigo 176.º da Constituição, que limite a liberdade de iniciativa dos Deputados em matéria constitucional. O sistema vigente, que faculta a cada um dos membros da Assembleia Nacional a apresentação de projectos de revisão constitucional, não satisfaz. É conveniente que se reúna à volta da ideia de certa alteração ou de certas alterações um número mínimo de Deputados, a fim de que estes exerçam uma espécie de controle ou de crítica prévia de tal ideia, não lhe permitindo apresentar-se na hipótese de não ter logrado convencer os poucos que a deveriam apoiar. Explica-se neste domínio um agravamento do processo legislativo, traduzido na exigência de um número mínimo de assinaturas para a admissão dos projectos de lei de alteração constitucional, dada a hierarquia e o carácter estável e quase sagrado que a lei constitucional tem em relação à legislação ordinária.
Não é inédito que, justamente por motivos desta ordem, as constituições exijam que as alterações projectadas devam ser apresentadas por um número mais ou menos elevado de membros das câmaras legislativas. Lembremos, por exemplo, o caso da Constituição Brasileira, que, no seu artigo 217.º, requer o mínimo de um quarto dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal a propor qualquer emenda à lei fundamental.
O que não parece é que, a entrar-se por este caminho, se deva exigir que o projecto seja subscrito por um mínimo de, apenas, cinco Deputados. Talvez algo como quinze assinaturas seja bastante para corresponder aos objectivos da alteração constitucional agora sugerida neste projecto.

2. Quanto à ideia de considerar que uniu das comissões permanentes em que a Assembleia se pode organizar - a Comissão de Legislação e Redacção - tenha, como tal, iniciativa nesta matéria, a Câmara sente uma certa relutância em a apoiar. Em primeiro lugar, criar-se-ia assim uma inconveniente hierarquização entre as comissões permanentes. Em segundo lugar,

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não parece que esta Comissão seja necessariamente de presumir a mais qualificada para preparar projectos de revisão constitucional em todos os domínios versados pela lei fundamental. É, pelo contrário, de admitir que outras sejam mais idóneas em assuntos da sua especial competência. Por último, a ser admitida a sugestão desta Câmara sobre o número mínimo de quinze Deputados necessário para a apresentação de projectos de lei, teríamos que, fundamentalmente, nove Deputados - os componentes da Comissão de Legislação e Redacção - teriam na Assembleia um estatuto especial em relação aos restantes no que respeita ao seu poder de iniciativa. Não parece que por este caminho se deva seguir.

3. A Câmara está de acordo em que o parágrafo a adicionar no artigo 176.º seja o 4.º Isto significa que o actual § 4.º passaria então a ser o 5.º

III

Conclusões

A Câmara Corporativa condensa nas seguintes conclusões a sua apreciação do projecto na especialidade:

a) O corpo do artigo 85.º da Constituição deverá ter, não a redacção projectada no artigo 1.º, mas a seguinte, correspondente, aliás, à sugerida pelo Governo na sua recente proposta de lei de revisão:

Art. 85.º A Assembleia Nacional é composta de cento e trinta Deputados, eleitos por sufrágio directo dos cidadãos eleitores, e o seu mandato terá a duração de quatro anos improrrogáveis, salvo o caso de acontecimentos que tornem impossível a realização do neto eleitoral.

b) O artigo 2.º não deve merecer aprovação;
c) Das inovações sugeridas no artigo 3.º só deve merecer aprovação a respeitante à alínea i), mas com a redacção que para a alínea g) foi por esta Câmara sugerida nas conclusões respeitantes ao artigo 1.º do projecto de lei n.º 19;
d) Da redacção do § 3.º do artigo 95.º da Constituição, proposta no artigo 4.º do projecto de lei, a Câmara recomenda a aprovação apenas da primeira, parte;
e) O artigo 5.º deve ser rejeitado;
f) Deve ser rejeitada a redacção sugerida no artigo 6.º para o n.º 1.º do artigo 150.º da Constituição ;
g) Não se concorda com a redacção proposta no artigo 7.º para o n.º 3.º do artigo 150.º da Constituição. Finalmente;
h) Concorda-se com o adicionamento de um novo parágrafo ao artigo 176.º da Constituição, que seria o 4.º, passando o actual § 4.º para § 5.º Esse novo parágrafo teria a seguinte redacção:

§ 4.º Os projectos de revisão constitucional só serão recebidos quando subscritos pelo mínimo de quinze membros da Assembleia Nacional em efectividade de funções.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella da Abreu.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Guilherme Braga da Cruz.
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Guyliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Barros.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

PARECER N.º 16/VII

Projecto de lei n.º 22

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termo do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 22, emite, pela sua secção de interesses de ordem administrativa (subsecção de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Barros, José Caeiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência da S. Exa. o Presidênte da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de alteração da Constituição Política firmado pelo Sr. Deputado Afonso Augusto Pinto res-

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tringe-se a dois pontos, qualquer deles de relevo, dignos, por isso, de constituírem objecto de um projecto de lei e revisão constitucional. Referem-se, por sinal, ambas as alterações sugeridas ao problema geral das garantias contenciosas do cidadão - a garantia da fiscalização jurisdicional da legalidade da Administração e a garantiu da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas jurídicas.

2. O projecto foi apresentado em tempo, conforme o disposto no § 2.º do artigo 176.º da Constituição. Dispondo a Assembleia Nacional, neste momento, em consequência da resolução de antecipação que votou, de poderes constituintes, nada se opõe a que a Câmara Corporativa lhe dê sobre o projecto em referência o seu parecer.

II

Exame na especialidade

ARTIGOS 1.º e 2.º

1. A função do n.º 4.º do artigo 109.º da Constituição é dar uma ideia geral das atribuições administrativas do Governo no âmbito metropolitano: compete ao Governo superintender no conjunto da administração pública. Seguidamente, faz-se nesse número uma especificação mais ou menos incompleta dos poderes em que se analisa esta superintendência. Entre os actos administrativos concretos, apenas se faz aí referência aos respeitantes à nomeação, transferência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração do funcionalismo civil ou militar.
A fonte directa deste preceito deve ter sido o n.º 4.º do artigo 47.º da Constituição de 1911, segundo o qual competia ao Presidente da Republica (como elemento do Poder Executivo e com referenda do Ministro competente) «nomear, reintegrar, transferir, aposentar, reformar, demitir ou exonerar os funcionários civis ou militares». Era por esta forma extremamente sincopada que nesta Constituição se enunciavam as atribuições administrativas do Executivo1.
A fórmula que se encontra no início do n.º 4.º do artigo 109.º - «fazendo executar as leis» -, essa encontra-se no artigo 122.º da Constituição de 1822, donde é natural que tenha sido chamada para o texto actual.
Quanto à parte final do n.º 4.º do actual artigo 109.º, a sua fonte é seguramente a parte final do n.º 4.º do artigo 47.º da Constituição de 1911. Esse n.º 4.º terminava assim: «..., ficando sempre ressalvado aos interessados o direito de recurso aos tribunais competentes». A fórmula agora usada é ligeiramente diferente: «..., com ressalva para os interessados do recurso aos tribunais competentes».
É esta fórmula que se elimina na redacção do projecto para o n.º 4.º do artigo 109.º, propondo-se no seu artigo 2.º que, em vez dela, seja adicionado um § 7.º ao artigo 109.º, concebido nos seguintes termos: «Todos os actos de conteúdo essencialmente administrativo, definitivos e executórios, dos órgãos da administração pública são susceptíveis de apreciação contenciosa, nos termos da lei, pelos tribunais competentes».
Não parece que esta sugestão seja de aplaudir.

2. Em primeiro lugar, o projectado § 7.º iria enquadrar-se num título referente ao Governo e, apesar disso, abrangeria actos praticados por órgãos diferentes nos órgãos governativos, uma vez que se refere, genericamente, a todos os actos ... dos órgãos da administração pública. Esta, considerada no seu aspecto subjectivo ou orgânico, abrange não só a administração governativa como também a administração descentralizada ou autárquica.
Depois, o parágrafo sugerido no projecto refere-se a «actos de conteúdo essencialmente administrativo» - e não há actos essencialmente administrativos, por oposição a actos essencialmente políticos ou de conteúdo essencialmente político, por muito que na lei orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 40 768, de 8 de Setembro de 1956, artigo 16.º, n.º 2.º) se tenha partido da ideia contrária. Actos políticos ou «de governo» são, se bem pensamos, todos os actos do Executivo que a lei considere absolutamente insusceptíveis de apreciação contenciosa, qualquer que seja o grau da sua vinculação legal e não obstante o seu carácter de actos definitivos e executórios. São actos que revestem todos os requisitos gerais de impugnabilidade, mas que o legislador, enumerativamente ou por meio de «cláusulas gerais», exclui do contencioso. O número destes actos é muito variável de sistema jurídico para sistema jurídico, conforme o grau de independência que o legislador em cada um deles entenda conferir ao Executivo, relativamente aos tribunais do contencioso administrativo. A história jurídica e o direito comparado revelam-nos que é de todo instável a lista dos actos políticos ou «de governo». Há sistemas em que esse número é muito restrito e há sistemas que transcendem o núcleo clássico dos «actos de governo», invadindo o sector tradicional da actividade administrativa. Isto sucede de todas as vezes que o legislador retira a garantia contenciosa a um acto da Administração, embora ele reúna todos os comuns requisitos de impugnabilidade1.
Sendo assim, nada se esclarece, nada se adianta, dizendo, como no projecto se diz, que todos os actos «de conteúdo essencialmente administrativo» ... são susceptíveis de apreciação contencioso.
Em terceiro lugar, o projecto parece orientar-se no sentido de garantir a todos os actos definitivos e executórios (excluídos os actos políticos, de que se faz provavelmente uma ideia muito restritiva) a possibilidade de apreciação contenciosa. Não se desconhece, naturalmente, que a fiscalização jurisdicional serve um interesse público da maior importância - a defesa da legalidade -, ao mesmo tempo que, através dela, se protegem, subsidiária ou reflexamente, os particulares cujos direitos ou interesses são afectados pela actuação ilegal dos agentes administrativos. Simplesmente, pode o legislador legitimamente entender que há, nesta ou naquela hipótese, um interesse público de mais peso do que o da defesa jurisdicional do direito - o interesse de deixar toda a independência aos agentes ante os tribunais, em termos de a decisão daqueles se ter de presumir correcta e legal, ainda que o não seja de facto. Quando isto sucede dizemos que o legislador deu primazia à «política» sobre o direito e a legalidade. Em vez do valor iustitia, o valor salus publica, aequitas política. Presta-se então culto, em tais hipóteses, não a uma concepção normativista da vida estadual, mas a uma concepção, digamos, «salutista». E esta a explicação para os casos em que o legislador exclui qualquer controle contencioso de certos actos da Administração e, designadamente, do Governo 2.

1 Em rigor, deve dizer-se que a Constituição de 1911 sempre ia mais longe do que isto, referindo-se no n.º 3.º do artigo 47.º à expedido de decretos, instruções e regulamentos, e no n.º 9.º a tudo quanto fosse concernente à segurança interna e externa.

1 Cf. Afonso Rodrigues Queiró, Teoria dos Actos de Governo, Coimbra, 1948,passim.
2 Cf. autor e ob. Cits., passim.

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3. Não parece, portanto, que se deva perfilhar a doutrina e a forma do § 7.º proposta no projecto. Vamos ainda pela conservação do § 4.º, tal como está hoje redigido. Tem por ele, antes de mais, a tradição, pois, na parte que ora nos interessa, vem quase sem modificações, desde a Constituição de 1911. Por outro lado, não toma partido quanto à fiscalização contenciosa da actividade administrativa em geral, referindo-se apenas ao controle jurisdicional de alguns actos administrativos. Mesmo quanto a estes, é muito duvidoso que o intuito do legislador constituinte tenha sido o de assegurar a sua impugnabilidade contenciosa, sem possibilidade de excepções. Há, pelo menos, que atentar na diferença de redacção existente entre o texto do n.º 4.º do artigo 47.º da Constituição de 1911 e o texto da parte final do n.º 4.º do artigo 109.º da Constituição vigente: enquanto naquele se dizia que ficava sempre ressalvado aos interessados o direito de recurso aos tribunais competentes, no texto actual diz-se, mais frouxamente, que fica ressalvado para os interessados o recurso aos tribunais competentes. Não será que, assim, se quis estabelecer, não uma norma rígida ou cogente, mas uma simples directiva? De qualquer modo, à Câmara não repugna um entendimento liberal deste texto, em termos de se deveram considerar inconstitucionais todos os diplomas referentes aos actos administrativos enunciados na parte final do n.º 4.º do Artigo 109.º, na parte em que retirem aos interessados o direito de interpor desses actos recurso contencioso.
Resumindo, a Câmara opta pelo texto actual do n.º 4.º do artigo 109.º da Constituição.

ARTIGO 3.º

1. A interpretação corrente do corpo do artigo 123.º da Constituição é no sentido de ele se referir, não apenas à inconstitucionalidade material de qualquer diploma, mas também à inconstitucionalidade orgânica ou formal dos diplomas não promulgados pelo Presidente da República.
A primeira objecção a fazer à projectada redacção desse corpo do artigo 123." será, pois, a de passar a abranger só a inconstitucionalidade material. Uma portaria ou um despacho genérico, por exemplo, na medida em que ofenderem os princípios da Constituição no que respeita à forma que as regras de direito devem revestir ou à competência do órgão constitucional de que devem emanar, ficariam fora do alcance da fiscalização da generalidade dos tribunais.
Não parece que se deva seguir semelhante orientação.

2. Pretende-se com o texto advogado no projecto, em segundo lugar, que, quando em qualquer tribunal se suscitar, oficiosamente ou por iniciativa de qualquer das partes, o incidente de inconstitucionalidade de um diploma, o seu julgamento seja deferido a um Supremo Tribunal, subindo até aí, naturalmente, o incidente para esse efeito.
Antes de mais, temos de observar que o projecto não é claro quanto a saber-se se as decisões desse Supremo Tribunal em matéria de inconstitucionalidade seriam eficazes ergo umnes, isto é, se teriam o efeito de uma lei derrogatória ou se, pelo contrário, teriam eficácia só em relação ao pleito em que a excepção de inconstitucionalidade se deduzir ou for suscitada, conduzindo, portanto, apenas à inaplicabilidade do diploma reputado materialmente inconstitucional.
Na verdade, ambas as soluções cabem no texto que se pretende ver adoptado.
Com ele é compatível a solução de o Supremo Tribunal decidir o incidente com eficácia erga omnes, tendo, em consequência disso, o tribunal em que o incidente
surgiu obrigação de não aplicar o diploma superiormente reputado inconstitucional.
Mas também se pode sustentar que a decisão do Supremo Tribunal seria referida apenas ao pleito em que o incidente se levantou: decidindo que certo diploma é inconstitucional, o Supremo resolve que se não aplique e mandará que assim se proceda no pleito sub judice.
a) A primeira das soluções apontadas tem o inconveniente de atribuir ao Supremo Tribunal um papel político de extraordinário relevo. Todos os diplomas, mesmo os emanados do Governo e da Assembleia Nacional, estariam sujeitos ao veto judiciário de um único tribunal, que decidiria em primeira e única instância e que teria o poder de anular todo e qualquer diploma de ordem legal. Caber-lhe-ia, portanto, inapelàvelmente, a definição dos valores e dos princípios constitucionais, tendo o legislador ordinário que se cingir a essa definição em toda a sua produção normativa. Desta sorte se acabaria por conferir a um pequeno colégio de magistrados, de mentalidade normativista, quiçá forma lista e conservadora, um poder fundamentalmente constituinte. Far-se-ia dele o melhor e mais qualificado, o definitivo intérprete, dos rumos que a legislação pode seguir. Viríamos assim a consagrar o que Lambert chamou le gouvernement des juges.
Tal orientação não parece recomendável, embora tenha sido autorizadamente defendida entre nós 1, com o argumento de que, com o sistema actual, se corre o risco da diversidade de soluções e da incerteza da jurisprudência, que só muito lentamente, pela via morosa dos recursos, viria a desvanecer-se. O poder político - acrescenta-se - hesitará em dobrar-se às decisões da 1.ª instância e não cederá no propósito da aplicação da lei antes de se esgotarem as jurisdições dos tribunais superiores. Enfim, na prática a dispersão desta competência conduz a que fique realmente sem efeito tão importante poder conferido aos tribunais.
Salvo o devido respeito, não parece que seja necessário assegurar nesta matéria um grau de uniformidade jurisprudencial que transcenda o que se julga suficiente quanto à generalidade dos pontos de direito controvertidos nos tribunais. E não se cuida que seja de deplorar que a uniformidade possível dos julgados só venha a conseguir-se pela via dos recursos e, de qualquer modo, também pela lógica formação de correntes jurisprudenciais, que, como se sabe, têm uma eficácia de certo modo equiparável à que resulta, no direito anglo-saxónico, do princípio do stare decixis.
Também não parece de lamentar que o poder político se não conforme facilmente com as decisões que, em matéria de inconstitucionalidade dos seus diplomas, sejam tomadas em 1.ª instância. Não resulta daí qualquer inconveniente que nos impressione. De resto, que o poder político tenha propriamente de «dobrar-se» perante outro poder - eis o que não parece dever augurar-se como sistema. A fórmula hoje em dia em vigor, nos termos do corpo do artigo 123.º, é muito mais equilibrada, na medida em que não erige os tribunais em geral mini poder capaz de validamente revogar as leis e decretos-leis.
Por último, não se vê que a dispersão da competência de fiscalização da constitucionalidade das leis e demais diplomas pelos vários tribunais de todas as espécies e de todas as instâncias conduza a que essa competência fique necessariamente sem efeito. Ou muito nos enganamos ou a consequência dessa dispersão é justamente a inversa. O sistema, actualmente consagrado no corpo do artigo 123.º é, fundamentalmente, mais liberal do

1 Cf. Prof. (Doutor Marcelo Caetano, A Constituição de 1933, Coimbra, 1956, pp. 149 e seguintes.

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que o sistema agora proposto, na medida em que, por via de regra, admite vários instâncias a decidir sucessivamente os incidentes de inconstitucionalidade deduzidos em qualquer tribunal e permite aos próprios juizes suscitarem e julgarem oficiosamente esses incidentes.
O sistema vigente nesta matéria tem já em Portugal as suas tradições, vindo fundamentalmente desde 1911. Não há razão nenhuma válida para que se altere. A Câmara, pelo menos, não o recomenda.
b) A segunda solução não teria nenhuma espécie de vantagens sobre o regime actual e teria, designadamente, o importante inconveniente de praticamente admitir uma única instância a decidir, no pleito submetido a julgamento, da aplicação ou não aplicação de determinada norma arguida de inconstitucional.

3. O projecto fala em Supremo Tribunal, sem esclarecer a sua composição. Será o Supremo Tribunal de Justiça que funcionará como tribunal constitucional? Será um tribunal misto, que poderá ser mesmo o Tribunal de Conflitos, composto de juizes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo, ou composto desses elementos e de outros destacados das instâncias supremas dos vários ramos do contencioso? Ou será um tribunal constitucional, nos moldes do que, em direito comparado, pela primeira vez nos nossos dias foi instituído em Fevereiro de 1920 pela lei preliminar da Constituição checoslovaca 2?
Seja como for, trata-se de abandonar um sistema que não deu motivos de queixa e de o substituir por outro que se justifica em certos países mais com vista n resolver os conflitos constitucionais de competência entre os elementos básicos de Estados federativos, do que a controlar a constitucionalidade das leis e mais diplomas. Nenhuma verdadeira necessidade temos nós de introduzir este sistema no direito constitucional metropolitano. E certo que, no ultramar, o Conselho Ultramarino funciona como tribunal constitucional único - mas, prescindindo da questão de saber em que medida é que o sistema instituído pela base LXVIII da Lei Orgânica do Ultramar Português se deve considerar de acordo com a Constituição, para o ultramar podem descortinar-se razões que justifiquem essa orientação. Designadamente, terá estado presente na consagração desse regime a ideia de evitar penosos conflitos entre a generalidade dos tribunais das províncias ultramarinas e as autoridades desses territórios, munidas de competência normativa, a propósito da regularidade constitucional dos diplomas por elas editados. Na administração ultramarina deve evitar-se tudo o que possa ser origem de atritos entre as autoridades de todas as ordens, preservar-se o seu prestígio e assegurar-se a necessária unidade de acção. O, Conselho Ultramarino ocupa justamente posição de reconhecida e eminente autoridade e é venerado pelos serviços prestados em mais de um século de governação ultramarina, fruindo do respeito, da independência e da imparcialidade indispensáveis ao exercício das funções de fiscal da constitucionalidade da legislação ultramarina. Na metrópole as circunstâncias são diferentes: aqui pode bem confiar-se aos tribunais em geral competência para a apreciação da constitucionalidade das leis. Para que não acabem por assumir um papel de relevo político indesejável, nega-se-lhes a faculdade de anular as leis, ficando apenas com a de, na contradição entre a lei ordinária e a lei constitucional, dar incidentalmente preferência a esta. Por outro lado, a dispersão das faculdades de controle da constitucionalidade das leis pelo conjunto dos tribunais não deixará de concorrer para despersonalizar e, portanto, para atenuar a supremacia política que esse controle acarreta consigo 1.
Pode ainda alegar-se, contra o sistema actualmente em vigor na metrópole, e em favor do instituído para o ultramar, que o primeiro é um sistema praticamente ineficiente, enquanto o segundo tem conduzido a resultados apreciáveis, havendo subido ao Conselho Ultramarino vários incidentes de inconstitucionalidade sobre os quais recaíram acórdãos largamente fundamentados e em geral aceites sem discrepância pela crítica 2. Simplesmente, a razão do facto está em que se tem entendido que o Conselho Ultramarino fiscaliza não apenas a inconstitucionalidade material, mas também a inconstitucionalidade orgânica ou formal, e os incidentes desta última espécie são no ultramar particularmente frequentes.

III

Conclusões

A Câmara Corporativa, tendo em mente a apreciação que do projecto fez na especialidade, pronuncia-se pela não aprovação de qualquer dos seus preceitos.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Guilherme Braga da Cruz.
José Vires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Gagliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Sarros.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

1 Como propõe o Prof. Doutor Marcelo Caetano, ob. cit., p. 154.
2 Este Tribunal era constituído por três elementos parlamentares escolhidos pelo Presidente da Republica e por quatro juízes, dois designados pela Corte Administrativo Suprema e dois pela Corte de Cassação. Tribunais constitucionais mistos deste modelo ou semelhantes foram depois criados na Áustria (1920), na Espanha (1931), na Itália (1948), na Alemanha (1949), etc. A ideia de um tribunal político-judiciário remonta a Sieyès, que na Convenção proclamou a necessidade de um jury constitutionaire. Na Constituição de 1799 previa-se um Sénat conservateur, com competência para anular sa leis inconstitucionais.
Em França foram em 1903 apresentadas às Câmaras duas propostas oeste sentido, uma, de Charles Benoist, tendente à criação de um Tribunal Supremo especial, composto de membros nomeados pelo Presidente da Republica, sob proposta das corporações representativos da ciência e da prática do direito, e outra, de Jules Roche, que visava confiar no Tribunal do Cassação em pleno a função de vigiar pela salvaguarda do Acto fundamental do Estado (cf. Biscaretti di Ruffia, Lo Stato Democrático Moderno, Milão, 1946, pp. 841 e seguintes).

1 Cf. o estudo do relator do presente parecer no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. XXVI, intitulado «O Contróle da Constitucionalidade das Leis».

2 Cf. Prof. Doutor Marcelo Caetano, ob. cit., p. 154.

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PARECER N.º 17/VII

Projecto de lei n.º 23

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 23, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarina), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Barros, José Caeiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob u presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de lei n.º 23, apresentado por um grupo de onze Srs. Deputados, u frente dos quais se inscreve o nome do Sr. Carlos Alberto Lopes Moreira, caracteriza-se por pretender reforçar ou vincar um certo número de afirmações programáticas daquela parte da Constituição referente à metrópole e ao ultramar a que a doutrina costuma hoje chamar «constituição social». De um modo geral, pode dizer-se que um projecto concebido predomina n temente com este alcance é um projecto que não quadra com os objectivos que deve visar uma lei de revisão. Não é, pois, de estranhar que, na especialidade, a Câmara Corporativa venha a pronunciar-se pela sua não aprovação.

2. Seja, porém, como for, o projecto foi apresentado em tempo (artigo 176.º, § 2.º) e sobre ele a Assembleia pode, portanto, deliberar.

II

Exame na especialidade

ARTIGO 1.º

1. Duas objecções preliminares opõem-se à aprovação deste artigo do projecto. Em primeiro lugar, não deixaria de chocar que em 1959 .se fizesse à Constituição o adicionamento de um preâmbulo, que, por verdadeira ficção, aí passaria a figurar como se dela constasse desde 1933. Desde que a Constituição não foi inicialmente votada com um preâmbulo desta ordem, não deixa de ser incongruente antepor-lho agora em termos de se querer fazer entender que ele consta dela desde início e como correspondendo a vontade do legislador constituinte de 1933. Em segundo lugar, u Nação, contra o que 110 texto proposto se diz, não votou pelos seus representantes eleitos a lei fundamental em questão. Todos sabem que ela foi aprovada pelo plebiscito nacional de 19 de Março de 1933.

2. Nas constituições do século passado e do nosso encontra-se frequentemente a invocação do nome de Deus por parte do legislador constituinte, seja ele o povo no seu conjunto, sejam os seus representantes membros de assembleias com poderes dessa ordem. Uns e outros declaram então proceder a em nome de Deus», invocam a Sua protecção ou pretendem legislar e com a Sua ajuda».
O significado geral desta invocação da Divindade pode, talvez, resumir-se no seguinte: visando a constituição estabelecer uma ordem total e instituir estavelmente um dado sistema de valores, uma determinada concepção da vida, a exigência da permanência, da estabilidade dessa ordem é servida e de certo modo assegurada na medida em que a lei que a consagra se coloca desde a origem sob a invocação e protecção do Ente Supremo. O direito constitucional estabelecido adquire um carácter de certo modo propício à sua desejada perpetuação.
Outro alcance hoje em dia não pode geralmente atribuir-se a semelhante invocação, não devendo seguir-se aquela conhecida doutrina de Cari Schmitt, na sua Verfassungslehre, de que esta sorte de preâmbulo» (e outros em que se enunciam mais ou menos vagamente certas declarações de princípios) tem uma importância de primeira urdem na construção jurídica e na interpretação e aplicação dos preceitos de determinada ordem jurídica, os quais só teriam sentido com estas «decisões políticas fundamentais». A melhor doutrina parece ser a de que tais invocações e declarações de princípios de nada servirão se não se traduzirem num sistema de normas e de instituições concretas realmente inspiradas por elas. Se é certo que estás normas e instituições carecem então de sentido se as não conexionarmos teleològicamente com essas «decisões políticas», não é menos certo que estas, por sua vez, só tom sentido constitucional na sua vinculação com aquelas.

3. Estas considerações inclinam a Câmara para que se não deva atribuir ao projectado adicionamento uma importância tal que force as consciências à sua apro-

1 Cf. Manual Gracia - Polayo Derecho Constitucional Comparado Madrid, 1950, pp. 78 o 98 o seguintes; Costantino Mortati, La Costítusione in Senso Matcriale, 1940, pp. 55 e seguintes e 131 o seguintes.

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vação: o essencial é que a Constituição, quer enquanto complexo de normas, quer enquanto conjunto de instituições, esteja o mais possível de harmonia com quanto decorre da concepção cristã da vida. Ora não pode esquecer-se que a Constituição vigente está, de um modo geral, inspirada pela concepção católica da sociedade e do Estado, perfilha a doutrina social da Igreja e chega a considerar expressis verbis a religião católica como religião da Nação Portuguesa. São particularmente de recordar, a este respeito, preceitos como os dos seus artigos 4.º, 6.º, 43.º, § 3.º, 45.º e 140.º
É, aliás, tão pouco importante a inserção de um preâmbulo do género do sugerido no projecto em analise que as leis constitucionais do próprio Estado da Cidade do Vaticano, de 7 de Junho de 1929, não se iniciam por qualquer invocação ou preâmbulo confessional do género!
À falta de um tal preâmbulo ainda poderia causar alguma estranheza se o Estado Português fosse um Estado confessional, tivesse uma religião própria ou oficial. Mas, desde que a não tem, a falta de invocação do nome de Deus não é de surpreender, para mais não tendo havido em 1933 a lembrança de fazer essa invocação nos termos em que é formulada no projecto.
Acrescente-se a isto que a inserção de um preâmbulo ou invocação desta ordem não está praticamente na tradição constitucional portuguesa.
Não deve esquecer-se também, por outro lado, ao considerar-se a sugestão do projecto, que Portugal não é apenas constituído por populações católicas ou, de toda a maneira, por populações que creiam no mesmo Deus. Na África e na Ásia contam-se por milhões os portugueses de confissões diferentes, mesmo de religiões superiores. E de admitir a possibilidade fie a alteração constitucional projectada não satisfazer muitos desses portugueses e vir a constituir um motivo de dificuldades» políticas a considerar.
Mesmo aqueles a quem as razões enunciadas não convenceram durante a discussão na Câmara depararam com a dificuldade insuperável de encontrar uma fórmula de invocação do nome de Deus, com a sobriedade, a elevação e a dignidade necessárias, e que, ao mesmo tempo, se não prestasse ao equívoco de deixar supor que fora inscrita no pórtico da Constituição desde a sua apresentação ao plebiscito nacional de 1933.

4. A Câmara Corporativa está cônscia do melindre de que se reveste a conclusão a que chegou no seu exame deste ponto do projecto. Não é, na verdade, sem constrangimento que recomenda a rejeição da inclusão, no pórtico da lei positiva suprema, de uma invocação religiosa que está de acordo com a fé, a consciência e os sentimentos cristãos da unanimidade dos seus membros. Mas uma coisa é esta fé, outra é a falta de unidade religiosa dos portugueses dos vários pontos do Mundo, que não são todos eles fiéis da mesma Igreja. Esta circunstância, muito em. especial, firma a Câmara na convicção de que o ponto de vista para que se inclina corresponde aos interesses concretos do bem comum nacional e é, no plano dos interesses da própria Igreja Católica, uma posição tolerável e inclusivamente salutar. Não pretende a Gamara Corporativa que o Estudo Português deva assumir e assuma de facto, no plano dos princípios, tinia posição neutralista e secularizante, uma posição indiferentista em matéria religiosa; trata-se apenas de atender ao facto de que suo múltiplas as divisões religiosas entre os cidadãos portugueses dos vários continentes. Ora é sabido que a, Igreja mostra sistematicamente grande compreensão pelo que o Estado, neste domínio e em outros conexos, tem de omitir por prudência política: essas omissões redundam, afinal de contas, em benefício do bem comum.

ARTIGO 2.º

1. Não se vê a necessidade da alteração de redacção que no projecto se sugere para o § 2.º do artigo 8.º da Constituição, nem se compreende, por outro lado, muito bem a inovação a que alude a última parte do texto em referência.
O texto actual é mais lógico e mais completo que o proposto agora, como poderá notar quem os coteje.
O acrescentamento, segundo o qual a «inobservância deste preceito fundamental implicará o responsabilidade prevista no n.º 4.º do artigo 115.º», põe um problema de interpretação. Que se quer dizer? Que a Assembleia Nacional ou o Governo, quando editem leis especiais com inobservância da primeira parte do parágrafo, praticam um crime de responsabilidade? Provavelmente que não. Que a inobservância das leis especiais que regularem o exercício das liberdades públicas no parágrafo enunciadas, de acordo com esse preceito, implica a responsabilidade a que alude o artigo 115.º, n.º 4.º? Mas isso é o que já resulta desta disposição. Sendo assim, não há necessidade de o repetir no próprio artigo 8.º.
Em resumo, a Câmara não adere ao projecto em mais este ponto.

ARTIGO 3.º

1. Que uma ou mais leis especiais regulem o exercício da liberdade pública de expressão do pensamento, que, portanto, Laja obrigação de publicar uma alei de imprensa, já resulta expressamente do § 2.º do artigo 8.º Não há necessidade nenhuma de o reafirmar no artigo 23.º
De qualquer modo, a fórmula de que se usa no projecto é demasiado ampla, pois, supõe-se, não cabe numa «lei de imprensa» definir todos os direitos e deveres das empresas jornalísticas, nem todos os direitos e deveres dos profissionais da imprensa.
A directriz com que o texto termina é, para uma lei constitucional, imprudente, pelas interpretações inadmissíveis a que poderia conduzir, em contradição com o pensamento geral do actual título VI da primeira parte da Constituição.

ARTIGO 4.º

1. A redacção do projecto paru o corpo do artigo 27.º da Constituição não difere substancialmente da redacção actual quanto à afirmação do princípio de que as acumulações de empregos públicos são proibidas e de que só o título excepcional são admissíveis. Neste ponto o projecto sugere apenas uma modificação de redacção, uma alteração de simples forma, que não se vê por que deva ser apoiada.

2. Além desta modificação puramente formal, o projecto consigna uma alteração de fundo, sobre que esta Câmara tem de Re pronunciar.
A situação legislativa actual em matéria de acumulação de empregos é o seguinte: não é permitido acumular, salvo nas condições previstas na lei, empregos do Estado ou das autarquias locais ou daquele e destas (Constituição, artigo 27.º). O Decreto-Lei n.º 26 115, de 23 de Novembro de 1935, estendeu a interdição aos lugares das corporações administrativas, que é como quem diz, hoje em dia, das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (artigo 24.º).
Em boa interpretação, seguida, aliás, na prática, os organismos de coordenação económica, instrumentos de acção governativa na vida económica nacional, dotados embora de personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira (Decreto-Lei n.º 26 757, de 8 de

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Julho de 1936, artigo 2.º), devem considerar-se abrangidos por aqueles preceitos respeitantes a acumulações.
Também oficialmente se entendeu que os próprios organismos corporativos se têm de considerar sob o alcance do Decreto-Lei n.º 26 115, no tocante à acumulação de empregos.
Consequentemente, em relação aos empregos de todas estas entidades públicas, as acumulações só são permitidas nas hipóteses dos §§ 1.º e 2.º do artigo 24.º e do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 26 115 - isto é, no caso de dependência de determinadas funções em relação a outras, às quais as primeiras se possam considerar inerentes, no caso de serviço em comissões ou conselhos consultivos, e no coso de lugar cuja acumulação seja autorizada em Conselho de Ministros, sob proposta fundamentada do respectivo serviço.
Tendo isto em conta, conclui-se que o específico alcance prático do projecto, neste assunto, vem a ser o de considerar inacumuláveis os empregos das empresas que explorem serviços de interesse público, ou destas com os empregos do Estado, das autarquias locais, dos organismos corporativos e de coordenação económica e das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa.

3. Este ponto tem o seu melindre e deve, portanto, ser ponderado. Pode discutir-se, antes de mais, que justiça pode haver em se distinguir, a propósito da acumulação com empregos públicos, entre empregos de «empresas que explorem serviços de interesse público» e empregos de empresas privadas em geral. Naquelas ainda se pode dizer que o funcionário ou, de um modo geral, o agente público concorre directamente para a realização de uma função de interesse público, e até, em alguns casos, para o funcionamento de um serviço público. Na generalidade das empresas privadas é que nem isso sucede. Por que há-de ficar livre a um funcionário ou agente público em geral (salva, para aquele, a necessária autorização ministerial, nos termos do § 3.º do n.º 2.º do artigo 23.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado) acumular o seu emprego com um ou mais empregos em empresas estritamente privadas, sendo-lhe vedado acumulá-lo com um ou mais empregos em empresas, igualmente privadas, que explorem serviços de interesse público? Tais empresas, repete-se, são privadas, embora explorem serviços de interesse público. Como entes privados, terão interesse em poder escolher com largueza os seus administradores (lato sensu), e poderão licitamente pôr os seus olhos em agentes públicos (ou em administradores de outras empresas do mesmo género) especialmente qualificados pelos seus conhecimentos, seriedade e tino administrativo.
A este interesse privado opõe-se, em princípio, o interesse público, o interesse do serviço em que o agente está empregado. Este interesse requer naturalmente que o funcionário tenha os seus cuidados e o seu tempo absorvidos pelo desempenho da sua função. O funcionário deve devotar-se à sua função, deve dar todo o seu tempo, toda a sua actividade ao serviço - e as ocupações exteriores têm normalmente como consequência desviá-lo dele, afectando o seu rendimento.
Do ponto de vista social, por outro lado, pode dizer-se que é necessário pôr entraves sérios a que alguns já colocados absorvam as ocupações disponíveis, em prejuízo dos valores que não encontram o emprego necessário ou que, de qualquer modo, não gozam das complacências as empresas que explorem serviços de interesse público, ou do próprio Governo.
A acumulação de emprego público com empregos privados deste género, finalmente, põe problemas de ordem moral e política quanto ao nível que, por esse processo,
podem atingir as remunerações dos funcionários, a título de ordenados, e designadamente suscita a questão de saber se é admissível que os funcionários beneficiados com a acumulação acabem por receber, a esse título, mais do que recebem como vencimento os agentes que ocupam os lugares superiores dos- vários ramos da hierarquia administrativa (Ministros).
Uma política demasiado rígida neste domínio, em que se poderia pensar a partir destas últimas considerações, seria, porém, susceptível de levar muitos dos melhores e mais categorizados funcionários a preferirem os empregos privados aos seus cargos oficiais, abandonando estes, com todos os prejuízos que daí adviriam para os serviços públicos, que não podem facilmente prescindir da experiência e do saber dos seus melhores servidores.
Acrescente-se que, a seguir-se tal política, ficaria o Governo inibido de se fazer representar junto das empresas em questão, ou de fiscaliza-las, por intermédio de funcionários públicos - e por vezes se imporá, com certeza, a designação deles para cargos de direcção, administração ou fiscalização, quer por causa das suas próprias aptidões, eventualmente singulares, quer por força da especial confiança que oferecem quanto à sua capacidade para realizarem ou assegurarem a realização, junto delas, da política económica do Governo.
No regime actual cabe ao Governo apreciar as circunstâncias que, em cada caso, aconselhem determinar ou autorizar a acumulação. Ë natural que a rigidez de uma norma precisa, especialmente de uma norma constitucional, fosse prejudicial para a salvaguarda, em cada caso, do interesse público. Ë por isso que esta Gamara não se inclina paro a redacção sugerida no projecto em exame.

4. Isto não quer dizer que se não repute útil uma regulamentação do assunto, que ponha limites à liberdade do Governo, que procure assegurar sempre e só a primazia do interesse público e que disponha também em matéria de limites aos vencimentos dos acumulantes.
Está neste momento pendente do parecer da Câmara um projecto de lei (projecto de lei n.º 27) sobre remunerações dos corpos gerentes de certas empresas. Será, porventura, de aproveitar a ocasião para se proceder a um estudo exaustivo do assunto e para se seguir a regulamentação razoável dele l.

ARTIGO 5.º

1. Não há interesse em modificar, no sentido pretendido pelo projecto, o n.º 3.º do artigo 31.º da Constituição. Por um lado, por força do princípio corporativo, tal como é entendido entre nós, já o Estado há-de impedir que qualquer dos factores da produção se desvie das finalidades sociais e humanas para cuja satisfação existe. O artigo 29.º da Constituição é particularmente nesse sentido. Por outro lado, a modificação de redacção pretendida - que se considera, repete-se, de índole pràticamente só formal- repercutir-se-ia no Estatuto o Trabalho Nacional, o n.º 3.º de cujo artigo 7.º reproduz o referido n.º 3.º do artigo 31.º da Constituição. Ora não se pode duvidar de que, quer o título VIII a Constituição, quer o Estatuto do Trabalho Nacional, devem sofrer o mínimo de alterações formais. Trata-se de disposições programáticas, cujo sentido é conhecido e coincidente, na parte agora em discussão, com a alteração que se pretende ver introduzida.

1 Deve recordar-se que, em 1051, o Sr. Deputado Mendes do Amaral apresentou um projecto de alteração, entre outras, do artigo 27.º da Constituição, em sentido idêntico no Actual. Esse projecto não chegou a ser discutido na Assembleia Nacional.

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ARTIGOS 6.º e 7.º

1. E também o novo número que se pretende adicionar ao artigo 31.º uma disposição programática, cujo sentido já se encontra expresso, quer na Constituição, quer no Estatuto do Trabalho Nacional. Resulta ele do princípio corporativo que inspira todas as disposições do título VIII da Constituição e a generalidade das do Estatuto, especialmente os artigos 29.º e 31.º, 11.º 2.º e 3.º, da lei fundamental e variadas disposições do Estatuto que ocioso seria enumerar.
Não deve haver, portanto, lugar para aprovação dos artigos 6.º e 7.º do projecto.

ARTIGO 8.º

1. Já esta Câmara se pronunciou, a propósito dos projectos de lei n.ºs 19 e 21, sobre á ideia de incluir na competência exclusiva da Assembleia Nacional a fixação de princípios gerais relativos às matérias dos n.ºs 1.º e 2.º do artigo 70.º da Constituição.
Parece, por outro lado, que também não há razão para reservar para a competência da Assembleia Nacional a matéria do n.º 3.º do artigo 70.º

2. De toda a maneira, tem de se ter em conta que, na técnica ou sistema da Constituição, é nos artigos 91.p e seguintes que se define a competência da Assembleia Nacional. No artigo 70.º não se trata disso. Pretende-se, tão-só, aí, circunscrever o quê tem de constar de lei ou decreto-lei e não pode, portanto, ser tratado no plano regulamentar. O projecto esquece isto.

ARTIGO 9.º

1. Não se justifica a alteração sugerida. Não faz hoje grande sentido que a Assembleia tenha de ratificar os decretos-leis publicados pelo Governo no exercício de autorizações legislativas durante o funcionamento efectivo da Assembleia Nacional. Se a Assembleia conferiu ao Governo unia autorização legislativa é porque confiou nele para formular sobre determinado assunto a disciplina jurídica mais conveniente. Não há-de, portanto, num momento posterior, ir averiguar se essa disciplina é ou não, do seu ponto de vista, a melhor. O que pode é verificar se o Governo transcendeu os limites da autorização recebida. A Assembleia poderá então usar dos poderes que lhe são conferidos no § único do artigo 123.º da Constituição, se acaso dessa maneira o Governo aparentar ter invadido a esfera de competência reservada à assembleia legislativa (ou dos próprios poderes do § 3.º do artigo 109.º, na hipótese diversa de o Governo ter transcendido a autorização, mas não ter invadido a esfera de competência legislativa reservada á Assembleia Nacional).
Pelo que se acaba de dizer, parece não se justificar a alteração sugerida.

ARTIGO 10.º

l. Quando em 195] se substituiu o termo «colónias» pelo termo «províncias» teve-se justamente o propósito de não deixar qualquer dúvida sobre a equiparação constitucional entre a parte europeia e a parte não europeia do território português. A terminologia anterior (colónias e império colonial) podia deixar supor que a metrópole detinha um «império», isto é, um senhorio sobre os territórios ultramarinos e que estes, portanto, se encontravam sujeitos à dominação metropolitana. Era naturalmente outro o alcance destas designações, que pretendiam exprimir a sujeição destes territórios, não ao domínio .político, mas à, civilização portuguesa. De vários preceitos do Acto Colonial se depreendia que, quanto ao mais, metrópole e territórios ultramarinos estavam em pé de igualdade, constituindo elementos solidários da mesma unidade política. Mas, seja como for, a designação actual - províncias - traduz efectivamente melhor do que a outra a equiparação constitucional de todos os territórios portugueses, dos quais uns não são colónias de outros, mas, como estes, províncias da mesma unidade política: o Estado português ou, se quiser, a Nação Portuguesa. Como quer, pois, que se compreenda ou interprete a relação entre o Estado e o seu território, a verdade é que, ante a nova lei constitucional vigente, e em especial ante o seu artigo 134.º, o território do ultramar português se encontra na mesma situação, em relação ao Estado Português, em que se encontra o território metropolitano. Suo no direito constitucional português totalmente inaplicáveis doutrinas como a que antigamente no Alemanha considerava os territórios ultramarinos alemães como territórios estranhos (Ausland), por oposição ao território metropolitano, o único que «faria parte do Estado» (Inland). Nessa concepção, os territórios coloniais «não fariam parte do Estado», embora estivessem sujeitos ao ordenamento jurídico alemão. Em certo momento, a doutrina italiana navegou em idênticas águas, considerando os territórios coloniais não como elementos intrínsecos do Estado, mas como simples apêndices ou fragmentos dele destacados, objecto de um direito real público, enquanto, por sua vez, o direito do Estado sobre o território metropolitano seria um direito sobre a própria pessoa. Nenhuma destas orientações se pode considerar conforme à nossa vigente doutrina constitucional.
Em resumo: a nova redacção, no fundo, nada acrescenta ao que já é direito vigente.

ARTIGO 11.º

1. Também a redacção do projecto para o artigo 135.º não se justifica. Em substância, trata-se apenas de englobar nele notas que já, na redacção actual deste artigo e do anterior, se encontram bem expressas ou, pelo menos, suficientemente vincadas. A redacção proposta tem, porém, além disso, a desvantagem de eliminar a afirmação indispensável de que as províncias ultramarinas são parte integrante do Estado Português. Depois, em vez de, como geralmente se admite desde a grande geração de colonialistas do último quartel do século passado, aceitar o princípio da especialidade da organização política administrativa de cada província, o projecto faz a afirmação do princípio de que as províncias ultramarinas terão a mesma estrutura da metrópole. Confira-se o artigo 138.º da Constituição e a base v da Lei Orgânica do Ultramar Português para se perceber todo o alcance da alteração sugerida. Por último, não se vê bem em obediência a que intuitos, pretende-se substituir a designação «metrópole» pela designação «continente» para referir as parcelas do território da Nação situadas na Europa. Nilo há razão para a proposta mudança de terminologia. Em primeiro lugar, o termo «metrópole» não está, que se saiba, carregado de suspeições sujeccionistas ou «colonialistas», que poderiam explicar a alteração sugerida. Em segundo lugar, é a própria Constituição que, no artigo 1.º, mostra que os territórios portugueses da Europa se não podem designar por «continente», uma vez que na Europa o território português compreende «o continente e arquipélagos da Madeira e dos Açores». Aliás, o termo«metrópole» está disperso por vários artigos do título VII, sem que se tenha proposto a sua substituição.

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730 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 58

III

Conclusões

A Câmara Corporativa, tendo em conta a apreciação que do projecto fez na especialidade, não vê razões para recomendar a sua aprovação.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Guilherme Braga da Cruz. (Não me repugna aceitar a doutrina do parecer sobre as vantagens de remeter para lei especial a questão suscitada pela nova redacção proposta para o artigo 27.º, até porque essa redacção, enfrentando com dureza talvez excessiva o problema num dos seus aspectos, deixa de todo em claro outros igualmente importantes; mas não desejo vincular-me a quaisquer considerações sobre o fundo do problema antes do estudo exaustivo» que a Câmara propõe que dele se faça a propósito da apreciação o recente projecto de lei n.º 27).
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Gagliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Barros.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queira, relator.

PARECER N.º 18/VII

Projecto de lei n.º 24

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 24, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Barras, José Caeiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de lei do Sr. Deputado Adriano Duarte Silva visa, fundamentalmente, como se dirá no exame da especialidade, pôr a Constituição de acordo com o que a Assembleia Nacional já aceitou quando aprovou a vigente Lei Orgânica do Ultramar Português {Lei n.º 2066, de 27 de Junho de 1953), não se lhe podendo, portanto, negar oportunidade. Afastar obstáculos constitucionais a que, na altura, própria, possa ser legislativamente consagrado um regime que assimile a administração de um território ultramarino (Cabo Verde) à administração metropolitana ou a uma especial parte dela, é tarefa de que a Assembleia Nacional se deve desempenhar com gosto e em que esta Câmara, por sua vez, também colabora com satisfação. Não se pode, porém, quanto ao problema prático do momento em que a integração administrativa em causa se deve operar, deixar de chamar a atenção para o que a Câmara Corporativa opinou em 1951, no seu parecer n.º 10/V.

2. O projecto de lei n.º 24 foi apresentado tempestivamente e a Assembleia Nacional, por força da sua resolução publicada no Diário do Governo de 17 de Abril de 1959, tem poderes para o apreciar.

II

Exame na especialidade

I, II e III

1. O conjunto das alterações projectadas visa, segundo parece, exclusivamente tornar constitucional o disposto no n.º II da base V da Lei Orgânica do Ultramar Português. Segundo este preceito, «quando as circunstâncias o aconselharem, poderá instituir-se no respectivo estatuto (de qualquer das províncias ultramarinas) um regime de administração semelhante ao das ilhas adjacentes».
Ficou bem claro na discussão parlamentar a seu respeito que se visou tornar possível não só a integração, em momento oportuno, da província de Cabo Verde na organização administrativa da metrópole, mas também, se as circunstâncias algum dia o aconselharem, a de qualquer outra província ultramarina.
Simplesmente, ao votar-se este preceito (que não fora, deve dizer-se, sugerido pela Câmara Corporativa no seu projecto de lei orgânica do ultramar, que serviu de base à votação na Assembleia), não se reparou nas dificuldades constitucionais que ele suscitava. Não se reparou, designadamente, em que a efectivação dele contrariaria preceitos constitucionais como os dos artigos 134.º, 148.º e 155.º
Como vencer estes obstáculos a constitucionalidade do n.º II da base V da Lei Orgânica do Ultramar Português? Ou, melhor, como tornar constitucionalmente possível a aplicação, em Cabo Verde ou em qualquer outra província, de um regime administrativo idêntico ao das ilhas adjacentes?
No projecto em análise julga-se para isso necessário tocar na redacção dos artigos 1.º, 134.º e 148.º da Constituição.

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Não parece que seja preciso alterar, para o efeito, a redacção do artigo 1.º da Constituição.
Quanto ao artigo 134.º, afigura-se-nos mais indicado dar-lhe a seguinte redacção: «Os territórios indicados na lei que defina o seu regime geral de governo denominam-se genericamente províncias e têm organização político-administrativa adequada à situação geográfica e às condições do meio social». Quer dizer: passaria da Constituição para a Lei Orgânica do Ultramar Português a indicação dos territórios com o estatuto de províncias ultramarinas. No momento em que se quiser, por exemplo, integrar Cabo Verde na organização administrativa metropolitana, ou, melhor, conferir a este território um regime de administração semelhante ao das ilhas adjacentes, não há necessidade de mais do que alterar a redacção do actual artigo 1.º dessa lei.
A proceder-se assim nem há necessidade de mexer na redacção do artigo 148.º ou de qualquer outro mais, e, por sua vez, deixa de ser necessário manter o próprio n.º II da base V da Lei Orgânica do Ultramar Português.

III

Conclusões

Ante o exposto no exame do projecto na especialidade, esta Gamara entende que:
a) O artigo 1.º da Constituição deve manter a sua actual redacção;
b) O artigo 134.º da Constituição deve passar a ter a seguinte redacção:

Art. 134.º Os territórios indicados na lei que defina o seu regime geral de governo denominam-se genericamente províncias e têm organização político-administrativa adequada à situação geográfica e às condições do meio social.

c) O § único do artigo 148.º deve conservar a sua presente redacção.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pira de Liana.
Guilherme Braga da Cruz.
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Gagliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia, de Barras.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queira, relator.

PARECER N.º 19/VII

Projecto de lei n.º 25

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 25, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Política e economia, ultramarinas), à qual foram agregados os dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Burros, José Ca eiró da Mata, José Gabriel. Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

Apreciação na generalidade

1. A competência de revisão da Constituição só deve ser usada pela Assembleia Nacional para introduzir nela alterações requeridas por novas exigências da realidade nacional - não «por um mero prurido de perfeição», como se teve ocasião de acentuar em 1951, no parecer desta Câmara n.º 15/V. Aí se acentuou também que as alterações devem corresponder a motivos de profunda necessidade política.
Considerando o projecto em apreciação, da autoria de um grupo de quatro Srs. Deputados, à frente do qual se encontra o Sr. Deputado Américo Cortês-Pinto, não pode esta Câmara deixar de expressar o parecer de que ele não preenche estes requisitos, correspondendo tão-só a uma preocupação, fora de lugar, de exactidão terminológica, senão de mera perfeição estilística.

II

Exame na especialidade

ARTIGO ÚNICO

1. No artigo 12.º da Constituição o termo «raça» aparece no contexto seguinte: «O Estado assegura a constituição e defesa da família como fonte de conservação e desenvolvimento da raça ...».
E natural que o intuito do projecto seja o de acentuar que aquilo de que no artigo se trata não é do

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732 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 58

desenvolvimento da «raça portuguesa», que no âmbito da antropologia física ou biológica não existe. O legislador constituinte não pode ter concebido a constituição e defesa da família como fonte de conservação e desenvolvimento de um grupo humano entendido, naturalisticamente, com uma especial estrutura biológica. Deve ter tido em vista, não a «raça portuguesa» sensu stricto, que não existe, como um grupo humano com um tipo físico determinado, com caracteres somáticos específicos, mas a «raça portuguesa» como «povo» ou «nacionalidade», como grupo caracterizado por uma cultura, uma moral e uma psicologia próprias, independentemente de qualquer uniformidade de tipo fisiológico.
Em tal sentido, entende-se que a expressão raça portuguesa é admissível 1.
E certo que, no plano científico (antropologia, sociologia, etc.), há quem proponha que para se designarem os grupos- humanos caracterizados pela sua psicologia e cultura, ou seja pelas suas propriedades noológicas, se empregue o termo etnia, contrapondo-o á palavra raça, no sentido de grupo humano determinado por caracteres somáticos 2. Assim, em vez da «raça portuguesa», dir-se-ia a «etnia portuguesa».
Basta, porém, que as duas- expressões se empreguem com o mesmo sentido para que não seja imperioso optar pela segunda, como no projecto se pretende. Ë, aliás, e ter em conta que a palavra «etnia» não é de uso corrente e não seria muito adequado utilizá-la no contexto do artigo 12.º

III

Conclusões

A Câmara Corporativa não recomenda a aprovação do projecto.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pires de Liana.
Guilherme Braga da Cruz.
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais.
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Calos Barata Gayliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Barros.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queira, relator.

PARECER N.º 20/VII

Projecto de lei n.º 26

Alteração da Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 26, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa -(subsecções de Política e administração geral e Política e economia ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Júlio de Castro Fernandes, Carlos Barata Gagliardini Graça, Domingos da Costa e Silva, José Augusto Correia de Barros, José Caeiro da Mata, José Gabriel Pinto Coelho e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto do Sr. Deputado Augusto Cerqueira Gumes caracteriza-se por pretender suprimir na Constituição todos os vestígios da democracia individualista e instituir, em vez dela, uma democracia orgânica, uma democracia corporativa mais ou menos pura. A ordem corporativa, independentemente de ser ou não ser já neste momento uma ordem social espontânea, viva e actuante, passaria a ser transposta para o plano político, tomando completamente lugar que a Constituição ainda reserva à democracia individualista-territorial ou, como também se usa dizer, á «democracia de massas». Trata-se, como se vê, de uma ousada inovação, bem digna de figurar num projecto de lei de revisão constitucional, qualquer que seja o juízo que no final sobre ela se tenha de emitir.

2. Apresentado à Assembleia Nacional dentro do prazo fixado pela Constituição (§ 2.º do artigo 176.º), e estando aquela munida de poderes constituintes, em consequência da resolução que tomou de antecipar a revisão constitucional, o projecto em causa está em condições de ser examinado e discutido.

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II

Exame na especialidade

ARTIGO 1.º

1. A Câmara Corporativa teve ocasião de dar o seu parecer sobre o sistema de eleição do Chefe do Estado, ao analisar recentemente a proposta de lei n.º 18 (parecer n.º 10/VII), considerando aqui reproduzidas as considerações que então a este propósito fez.
O presente projecto está de acordo em que de tal eleição participem os membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa em efectividade de funções. Exclui, porém, dos Procuradores à Câmara Corporativa, os «designados pelo Governo».
Os Procuradores em causa devem ser os que suo designados pelo Conselho Corporativo, que é, em boa verdade, hoje, um Conselho de Ministros restrito. E preciso, porém, não esquecer que a maioria desses membros da Câmara tem nela a específica função de representar o interesse geral, enquanto os restantes estão aí representando interesses parcelares de certos organismos, categorias e entes. Se, designados embora pelo Conselho Corporativo, há razões para confiar na sua alta compreensão do interesse geral para apreciar a correspondência da actividade normativa do Governo e da Assembleia Nacional a esse interesse, se justamente são escolhidos com base nos seus predicados dê reconhecida competência e isenção, não será talvez justo estabelecer em seu desfavor uma discriminação que os elimine da eleição do Chefe do Estado. Não pode esquecer-se que assim se afastariam de um acto capital da vida da Câmara elementos dos mais salientes e representativos.
Aliás, não deixa de ser curioso salientar que, neste mesmo artigo 1.º do projecto de lei, se propõe que nessa eleição participem elementos designados pelo Governo, como seriam seguramente, pelo menos, os representantes dos comandos militares.

2: Em vez de admitir a participar no colégio para a eleição do Presidente da República, ao lado dos Deputados e Procuradores, os representantes municipais do País, o presente projecto de lei pretende associar aos Deputados e Procuradores certos membros da hierarquia eclesiástica, representantes da magistratura, comandos militares superiores e representantes do ensino superior e das instituições de alta cultura.
Se, porém, consultarmos a lei orgânica da Câmara Corporativa (Decreto-Lei n.º 29 111, de 12 de Novembro de 1938, alterado pelo Decreto-Lei n.º 39 442, de 21 de Novembro de 1903) e a resolução do Conselho Corporativo de 23 de Novembro de Í957, verificamos que, excluída a magistratura, todas as demais instituições «ordens» estão já representadas na Câmara e intervirão, portanto, na eleição do Presidente da República. E se a magistratura aí não está representada é talvez em obediência n ideia de que os tribunais constituem um órgão da soberania autónomo. De qualquer modo, talvez não seja oportuno associá-la a um acto de significado político - a ela que, por princípio, serve outros valores que não a Política: os valores do Direito.
Desta sorte, não parece oportuno satisfazer ao proposto, sobre este ponto, no projecto dê lei em análise.

ARTIGO 2.º

l. O projecto pretende substituir, na eleição dos membros da Assembleia Nacional, o sistema de sufrágio individualista - territorial pelo sistema do sufrágio orgânico. Mas não deixa de ser curioso notar que o seu autor ainda em 1951, recentemente portanto, acentuando embora que «não há dúvida de que o sufrágio orgânico é o que verdadeiramente pode exprimir n realidade viva da Nação», entendia ser em todo o caso também verdade a que a Nação não está ainda estruturada na sua feição orgânica», «É preciso -continuou- deixar recriar a verdadeira consciência dos grupos e esperar que ganhem consistência os órgãos que os enfeixam e os exprimem». «Por isso, o sufrágio orgânico, se está na lógica dos nossos princípios, não está ainda indicado pelas realidades da vida nacional». (Cf. Diário dás Sessões, p. 839). Não passou tanto tempo, nem evoluíram tanto as realidades sociais que pareça justificar-se devidamente que se mude, pelo menos já, de orientação.
Pouco antes, no seu discurso de 20 de Outubro de 1949, o Prof. Doutor Oliveira Salazar confessava que o problema do futuro da Assembleia Nacional permanecia, no seu espírito, indeciso. Concordando que a Câmara Corporativa é, muito mais que a Assembleia, representativa dos interesses que se movem no seio da Nação, ponderava, no entanto, que «não parece certo que o interesse nacional seja apenas constituído pela combinação dos diversos interesses materiais ou morais, ou que, pelo menos, não haja, além destes interesses específicos e particulares de grupos, um interesse político geral relativo à Nação como ser e unidade moral». (Discursos, vol. IV, p. 435).
Não crê esta Câmara indispensável enfrentar agora este problema, por um lado, porque não se pode entender, de modo nenhum, chegada a hora de ele se pôr seriamente, e, por outro Indo, porque, no projecto em análise, a Assembleia Nacional nos surge, do ponto de vista representativo, como uma simples duplicação da Câmara Corporativa. Desacompanhado a artigo 2.º do projecto de qualquer outro preceito em que se sugira a eliminação da Câmara Corporativa, parece-nos ele naturalmente de desaprovar.

2. No artigo em apreciação pretende-se também elevar de quatro para cinco anos o mandato dos Deputados e, consequentemente, a duração das legislaturas. Nunca, na história constitucional portuguesa, a legislatura durou cinco anos. Segundo a Constituição de 22 durava dois anos; segundo a Carta, quatro anos, segundo a Constituição de 38, três anos, e três anos também conforme o segundo Acto Adicional e a Constituição de 1911.
A aproximação dos actos de renovação total das Câmaras e, portanto, o encurtamento das legislaturas, significa uma preocupação de assegurar uma correspondência mais efectiva entre a vontade da representação nacional e a vontade do eleitorado, que naturalmente se vai alterando ii medida que nos afastamos da data das eleições parlamentares. Pelo contrário, o alongamento das legislaturas implica uma probabilidade maior de desacordo entre o eleitorado e a sua representação nos últimos anos do mandato dos Deputados.
Teoricamente, a democracia realiza-se melhor com consultas frequentes ao eleitorado. Mas há outras considerações a ter em conta, que aconselham o espaçamento delas por períodos relativamente longos.
Supõe a Câmara que não deve ir-se além dos quatro anos, não seguindo, portanto, a sugestão do projecto.

3. A propósito do projecto de lei n.º 21, já a Câmara teve ocasião de dizer que não vê razões para que o número dos Deputados suba para 150, entendendo que deve ser de 130, como o Governo sugeriu na sua recente proposta de lei de revisão constitucional.

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ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 58 734

III

Conclusões

A Câmara Corporativa não recomenda a aprovação do presente projecto de lei.

Palácio de S. Bento, 11 de Maio de 1959.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Guilherme Braga da Cruz.
José Pires Cardoso.
Adriano Moreira.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais. Joaquim Moreira da Silva Cunha.
António Júlio de Castro Fernandes.
Carlos Barata Gagliardini Graça.
Domingos da Costa e Silva.
José Augusto Correia de Barros. José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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