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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 90
VII LEGISLATURA 1960
17 DE MARÇO
Parecer N.º 28/ VII
Projecto de lei n.º 27
Remunerações dos corpos gerentes de Certas empresas
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 27, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral, Política e economia ultramarinas e Finanças e economia geral), com os Dignos Procuradores, agregados, José Gabriel Pinto Coelho e Adelino da Palma Carlos, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente, o seguinte parecer:
Esquema
I
Apreciação na generalidade
§ 1.º Objectivos do projecto o seus presumidos princípios inspiradores....1 a 8
§ 2.º A limitação dos remunerações e o principio da hierarquia social.....4 a 9
§ 3.º A limitação das remunerações e o regime repartição do rendimento.. 10 a 14
§ 4.º A limitação dos remunerações o os imperativos de carácter social....15
§ 5.º A limitação das remunerações e a restrição das possibilidades de trabalho................................................................ 16
§ 6.º A limitação dos remunerações e os eventuais abusos do poderio económico ........................................................................ 17 a 20
§ 7.º A limitação das remunerações e A moralização da administração pública ........................................................................ 21 a 24
§ 8.º As acumulações e incompatibilidades; sua análise conjunta............ 25
§ 9.º As acumulações e incompatibilidades - pertinência dos considerações produzidas sobre limitação das remunerações..................................20
§ 10.º O imposto pessoal sobre o rendimento; caracterização económica... 27 a 29
II
Exame na especialidade
§ 11.º O aspecto formal do projecto ................... 80
§ 12.º A substancia do projecto:
A) Artigo l.º (corpo)............................. 31 a 37
B) Artigo 1.º (§ único)........................... 38
C) Artigo 2.º .................................... 39
D) Artigo 3.º (corpo)............................. 40
E) Artigo 3.º (§ único)........................... 41
F) Artigo 4.º .................................... 42
G) Artigo 5.º .................................... 43
H) Artigo 6.º .................................... 44
I) Artigo 7.º .................................... 45
J) Artigo 8.º .................................... 46
L) Artigo 9.º .................................... 47
III
Conclusões
§ 13.º Considerações finais ............... 48
§ 14.º O projecto de lei proposto ......... 49
I
Apreciação na generalidade
§ 1.º Objectivos do projecto e seus presumidos princípios Inspiradores
1. Na essência da economia do projecto de lei n.º 27 (Actas da Câmara Corporativa n.º 52, de 19 de Abril de 1959) está o propósito de introduzir algumas modificações nos regimes jurídicos que actualmente re-
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gulam: o limite máximo de remunerações (artigo 1.º); as acumulações de cargos (artigo 4.º); as incompatibilidades de funções (artigo 5.º).
De forma geral, a matéria é de há muito alvo da atenção do legislador. «Não sendo regular que um mesmo indivíduo esteja percebendo mais de uma gratificação, ainda que alguma delias seja vencida por diferente Ministério; Manda a RAINHA, pela Secretaria d'Estado dos Negócios da Guerra, que todos aquelles, que estiverem em taes circunstâncias, declarem, quanto antes, por esta Secretaria d'Estado, qual é a gratificação que preferem receber; na inteligência que, do próximo mez de Agosto em diante, só esta lhe será abonada» - assim já rezava, no tocante à remunerações por funções acumuladas, diploma com data de 26 de Julho de 1839 e publicado no Diário do Governo de 30 do mesmo mês e ano. E, pelo menos desde então até aos nossos dias, múltiplos são os diplomas legais e interpretativos reguladores não só de acumulações, como de incompatibilidades, e, em menor escala embora, de limites máximos de remunerações. No decurso da explanação que se segue haverá ocasião de a alguns desses diplomas fazer referência.
Não é também a primeira vez que esta Câmara é chamada a pronunciar-se sobre os mesmos temas. No parecer n.º 22/V, sobre a Lei de Meios para 1952 (Diário das Sessões, 3.º suplemento ao n.º 109, de 6 de Dezembro de 1951), largamente se abordaram os aspectos de incompatibilidades e acumulações e se enriqueceu até a exposição, cuja actualidade, aliás, se mantém viva, com minucioso rol dos respectivos diplomas reguladores e vigentes à data. Mais recentemente, no parecer n.º 26/VI, que incidiu sobre o projecto de lei n.º 18 (Actas da Câmara Corporativa n.º 49, de 20 de Abril de 1905), a Câmara expendeu então sobre limitação de remunerações pontos de vista , que continuam também a manter plena oportunidade. E ainda em Maio último, de novo a Câmara abordou o aspecto das acumulações no parecer n.º 17/VII, sobre o projecto de lei n.º 23 (Actas da Câmara Corporativa n.º 58, de 12 de Maio de 1959).
2. Ao contrário do verificado com o projecto de lei n.º 18, antes referido, na apresentação do qual se formularam considerandos justificativos e esclarecedores do seu teor (Diário das Sessões n.º 67, de 15 de Janeiro de 1905), o projecto de lei agora em estudo foi apresentado sem comentário ou esclarecimento algum (Diário dás Sessões n.º 94, de 16 de Abril de 19o9).
Na sua textura normativa, ele traduz com evidência uma política, e esta, como qualquer política, necessariamente se inspira em juízos de doutrina - juízos que, no entanto, não foram explicitados. Revela-se assim mais difícil a indagação doutrinária do regime proposto, indagação, todavia, indispensável para a boa inteligência do projecto.
Nestes termos, recorre-se à formulação de hipóteses ou presunções sobre quais teriam sido os princípios orientadores do projecto para, a propósito de cada um, tecer as considerações julgadas oportunas. Corre-se o risco de deixar omissos alguns desses princípios pela razão simples de não terem ocorrido; mas não se vê forma de obviar a esta eventual carência.
3. Onde foi encontrar o projecto a sua inspiração? No «princípio da hierarquia social», invocado no relatório de um dos diplomas fundamentais que regem a matéria - o Decreto-Lei n.º 26 115, de 23 de Novembro de 1935? Na desejada equidade da repartição do rendimento nacional, traduzida nos dizeres do mesmo relatório «somos uma comunidade de homens e de interesses: temos todos de viver»? Ou, porventura, no ditame eminentemente social, também referido pelo legislador no relatório citado ao afirmar: «É doloroso que alguns se vejam constrangidos a perder o supérfluo; mais doloroso é, porém, que muitos não tenham o necessário»? Teria sido, antes, no objectivo de facilitar o cumprimento do dever social do trabalho, alargando as tomadas de posição convenientes «para a absorção de novos elementos, não deixando que outros lhes ocupem todos os lugares», no dizer ainda do mesmo relatório? Ou no princípio da necessidade de vigilância sobre o poderio económico, sintetizando na expressão contida no relatório do Decreto n.º l5 538, de l de Junho de 1928, «monopolização dos lugares eminentes do Estado, dos estabelecimentos públicos e dos grandes organismos económicos nas mãos de poucos»? Ou ainda no imperativo da «moralização, regularização e eficiência do Governo e da administração pública», invocado neste último relatório? Ou, finalmente, contemplaram-se em visão ecléctica todos estes princípios doutrinários? Por imposição metodológica convém examinar os três aspectos fundamentais do projecto -limitação de remunerações, acumulações e incompatibilidades -à luz dos critérios decorrentes de cada um dos princípios doutrinários enunciados.
§ 2.º A limitação das remunerações e o princípio da hierarquia social
4. Pondere-se o primeiro aspecto assinalado, ou seja o da limitação das remunerações, à luz do princípio da hierarquia social.
Há quase uma quarentena de anos o princípio da hierarquia social, no domínio das funções públicas, ora traduzido em termos legais diferentes daqueles que mais tarde haveriam de ser consagrados. A Lei n.º 1355, de 15 de Setembro de 1922, inseria no Diário do Governo da mesma data (e de novo publicada, com rectificações, em 30 de Setembro do mesmo ano), dispunha que em caso algum o vencimento de qualquer funcionário poderia ser menor do que o vencimento do funcionário de categoria imediatamente inferior, devendo existir sempre uma diferença dentro do mesmo quadro.
A aplicação do princípio era, assim, assegurada pela interdição de atribuir ao funcionário vencimento igual ou menor do que o correspondente à categoria imediatamente inferior na escala. Hoje atinge-se, nos termos legais, a aplicação do mesmo princípio pela interdição de atribuir vencimento igual ou mais elevado do que o percebido pela categoria superior e imediata na escala. O fim é idêntico; o meio é hoje, na realidade, mais consentâneo e harmónico com a noção de hierarquia que emerge do princípio contemplado.
Logo após o movimento iniciador da Revolução Nacional, em 6 de Julho de 1926, é publicado o Decreto n.º 11 849, pelo qual se limitaram os abonos, excepto ajudas de custo, a que tinham direito os funcionários do Estado, considerando-se incluídos em tais abonos os que os funcionários percebessem de empresas particulares por serviços a estas prestados como representantes do Estado.
Mas foi em 23 de Novembro de 1935, com a publicação do Decreto-Lei n.º 26 115, que se esquematizou e concretizou a ordenação hierárquica de todo o funcionalismo público e em moldes tais que, decorridos vinte e quatro anos, ela permanece intacta, sem prejuízo das ligeiras alterações introduzidas posteriormente, as últimas pelo Decreto-Lei n.º 42 046, de 23 de Dezembro de 1958.
A par dessa hierarquização, dirigida aos servidores do Estado, o mesmo Decreto-Lei n.º 26 115 apresenta.
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no seu artigo 27.º, a extensão do mesmo princípio de hierarquia, mas com limites bem demarcados, ao campo do privado e a determinado sector público, em relação ao qual poderia admitir-se a não sujeição ao referido princípio. Essa extensão é que constitui aqui o ponto de interesse, visto que é ela, ou os seus limites, a visada no projecto em exame. Reza o referido artigo 27.º:
«Fica expressamente proibida a atribuição de vencimentos superiores aos dos Ministros aos directores e administradores de estabelecimentos do Estado, de sociedades, companhias ou empresas concessionárias ou arrendatárias em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista por força de diploma legal a que a constituição das mesmas entidades está sujeita».
No projecto perfilha-se o limite máximo vigente - o da remuneração dos Ministros - e dispõe-se no sentido de não só dilatar o alcance do respectivo preceito legal como também de definir e precisar alguns conceitos, no intuito, certamente, de evitar diversidade de interpretações.
Àquela dilatação opera-se por mais larga invasão do sector privado. De facto, se lio j e se consideram as «sociedades, companhias ou empresas concessionárias ou arrendatárias em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista por força de diploma legal a que a constituição das mesmas entidades está sujeita», no projecto visam-se, além destas, muitas outras empresas, entre as quais as simples concessionárias ou arrendatárias, ainda mesmo que, em relação a elas, se verifique não caber ao Estado o direito de participar nos seus lucros ou o Estado não ser seu accionista.
5. O Estado goza do direito e sobre o Estado impende a obrigação de coordenar e regular a vida económica e social com vista aos objectivos que decorrem da sua ética. Mas tais coordenação e regulação têm de ser processadas em plano compatível com a autoridade do Estado, isto é, em plano que se situe fora e acima do jogo dos interesses privados. For outras palavras, aquelas coordenação e regulação têm de ser superiormente. processadas, para usar do termo constitucional (artigo 31.º da Constituição).
O principio da hierarquia social pode o Estado impô-lo, por via directa, aos seus próprios serviços, no arranjo da sua esquematização e organicidade. Mas já o não pode estender, pela mesma via directa, ao sector privado, sob pena de se enlear na trama dos interesses afectos ao sector e assim perder a posição de superioridade da qual, por forma alguma, deve abdicar.
A este propósito, é terminante o preceituado no artigo 33.º da Constituição, que enuncia restritivamente as condições em que se torna legítima a intervenção do Estado na gerência das actividades económicas particulares: quando o Estado haja ti e financiar essas actividades e (repare-se na copulativa) para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos sem a sua intervenção.
6. No entanto, certas empresas (como as concessionárias de serviços públicos e outras, insertas em âmbito que adiante se definirá) apresentam uma característica que importa, no aspecto versado, assinalar. Trata-se de empresas que exibem uma razão peculiar de dependência perante o Estado (aliás, sublinhado de certo modo no artigo 59.º da Constituição), e esta razão de dependência parece constituir esteio seguro para legitimar a intervenção do Governo no sentido de acautelar a observância do princípio da hierarquia social. Decerto a contemplação deste princípio deve ser extensiva a todos os órgãos do corpo social, mas o vínculo específico que liga aquelas empresas ao Estado concede ao Governo um reforço de autoridade para lhes' impor mais estrita obediência ao referido princípio.
E assim se conclui logicamente deverem ser submetidas ao regime de intervenção pelos meios mais adequados, mas que excluam a ideia de tutela ou de actuação, directa, todas aquelas empresas que, de qualquer modo, desfrutem de privilégio ou assistência especiais, pelo Estado conferidos ou em que o Estado, por virtude de qualquer diploma, esteja presente. Justifica-se, desta maneira, a posição tomada no projecto de lei em exame quando se dilata a outras empresas o âmbito de aplicação de regime especial de remunerações aos corpos gerentes, circunscrito no Decreto-Lei n.º 26 115 apenas às empresas «concessionárias ou arrendatárias em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista por força do diploma legal a que a constituição das mesmas entidades está sujeitai. Esta mesma posição, aliás, já havia sido definida pelo legislador quando da publicação do Decreto-Lei n.º 40 833, de 29 cie Outubro de 1956, ao reservar para o Estado o direito de participar, por meio de administradores nomeados pelo Governo, na administração não ao das empresas e que seja accionista ou em que tenha participação de lucros, desde que tais posições estejam previstas em diploma legal ou nos respectivos estatutos, mas também das empresas que explorem actividades em regime de exclusivo ou com benefício ou privilégio não previstos em lei geral.
Decerto que o objectivo precípuo deste diploma não é o de impor a obediência ao princípio da hierarquia social. Mas não pode negar-se que na definição do elenco de empresas na administração dos quais n Estado chamou a si o direito de participar haveria de presidir o mesmo critério que é de invocar na concretização do âmbito de actuação do Estado, para constrangimento à rigorosa aceitação daquele princípio.
7. O Estado pode adoptar uma unidade de aferição para estabelecer o limite máximo dos vencimentos do seu funcionalismo, todo ele enquadrado num único esquema de graduações - e esta será a aplicação directa, imediata, do princípio da hierarquia social.
Mas já não pode recorrer nem à mesma unidade de aferição .nem a uma só unidade de aferição quando pretenda impor maior respeito pelo mesmo princípio aquela zona do sector privado cujos limites atrás se definiram.
Não pode recorrer à mesma unidade porque os valores, no sector privado, se reportam a denominadores diferentes dos adoptados no sector público. E fenómeno verificado em todos os países a discrepância entre as remunerações do trabalho no sector público e as remunerações de funções paralelas no sector privado, com causas que já são conhecidas e que, sumariamente, se podem sintetizar na afirmação seguinte: o trabalho, no primeiro sector, dirige-se ao funcionamento do serviço; no segundo, dirige-se, em fim último, ao objectivo empresarial, à consecução do lucro.
Não pode o Estado recorrer a uma só unidade de aferição porque na vida real o sector privado apresenta tão extensa e variegada escala de situações que tal unidade se torna em absoluto incompatível com a excessiva rigidez de um limite único, de aplicação geral. Reportando-nos apenas, como cabe, à zona do sector
privado antes referida, encontram-se nela empresas e muito diversas dimensões; há as grandes empresas, cuja gestão requer homens de larga experiência e competência provada; há aquelas com vida assegurada por uma rotina que os anos consagraram. Na mesma empresa há cargos de gerência que absorvem - e quantas vezes excedem - a capacidade de trabalho dos que os desempenham, como há outros cargos, também de
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gerência, que exigem uma fracção - por vezes mínima - da capacidade de trabalho dos que os ocupam.
Fixar um só limite, adoptar uma só unidade, equivaleria a trair, o princípio da hierarquia social, pois se destruiria, pela indiferenciação, o nexo ordenativo que este princípio implica.
Tem de reconhecer-se que o Decreto-Lei n.º 26 115, ao impor o mesmo e um só limite para as remunerações do funcionalismo público e para os corpos gerentes de algumas empresas, contidas embora em campo restrito, alinha nesta direcção. Mas o Decreto-Lei n.º 40 833, ao abranger não só essas empresas como muitas outras mais, e ao atribuir (artigo 6.º) aos administradores por parte do Estado remuneração idêntica à dos demais administradores, imprimiu profunda modificação nesse alinhamento inicial, para o tornar condizente com a orientação exposta - e tão profunda que, obviamente, parece poder levantar-se a dúvida sobre se a primeira disposição, no relativo às empresas, deve considerar-se revogada pelo segundo diploma.
Mantém-se assim a coerência desta Câmara, que já anteriormente (parecer n.º 26/VI - Actas da Câmara Corporativa n.º 49, de 20 de Abril de 1955) se manifestou no sentido de se lhe afigurar haver vantagem na revisão do preceito citado, contido no Decreto-Lei n.º 26 115.
8. Do que se diz não deve concluir-se que ao Estado permaneça interdita actuação no sentido de fazer afirmar ou acentuar mais fundo ainda, até no núcleo do sector privado, o princípio da hierarquia social. O Estado, garante do bem comum, tem o dever de zelar por que todos os elementos constitutivos do agregado nacional se subordinem nos princípios que emergem da sua ética. Mas não pode esquecer-se de que as manifestações desse zelo terão também, por sua vez, de ser condicionadas pelos mesmos princípios.
Segundo o artigo 8.º do Estatuto do Trabalho Nacional, «a hierarquia das funções e dos interesses sociais é condição essencial, da organização da economia nacional». Falando, portanto, em termos de economia nacional, a lei reconhece que a hierarquia das funções e dos interesses sociais é condição essencial para se alcançar n organização dessa economia.
Se o Estado é garante do bem comum e a Nação se encontra organizada corporativamente, às corporações deve vir a pertencer um largo papel na criação de um sólido ambiente de paz social e de um são clima de moralidade que impossibilite abusos e desvios em matéria de remunerações, que ofendam a desejada hierarquia das funções e dos interesses sociais.
Bem se diz, a confirmar este pensamento, no relatório que precede o Decreto n.º 41 875, de 23 de Setembro de 1958: a Pela sua composição, abrangendo ao mesmo tempo as entidades patronais e os trabalhadores, pela sua organização unitária e nacional e pelo carácter e amplitude das atribuições que lhes são conferidas, as corporações hão-de ser colocadas em posição de colaborar abertamente no estudo, na discussão e até, tanto quanto possível, na resolução- dós problemas ligados ao progresso económico e à paz social da Nação» - palavras que invocam afinal, em síntese, os termos fundamentais do estatuto jurídico das corporações (Lei n.º 2086, de 22 de Agosto de 1956).
Independentemente da contribuição que as corporações poderão trazer no futuro à solução deste problema, ao Estado não faltam meios de acção para promover o revigoramento nos domínios do sector privado, do respeito pelo princípio da hierarquia social - sem deixar de observar as directrizes impostas pela sua ética.
Desde a actuação -sempre dimanada de plano superior - sobre o mecanismo dos preços e sobre as formas prevalentes dos mercados, até aos critérios de consignação das despesas públicas e aos regimes fiscais, desenvolve-se, nos campos económico e financeiro, uma série de recursos ao dispor do Estado para encontrar a desejada forma congruente de intervenção; outros recursos ainda podem ser encontrados no campo social. Dos meios oferecidos pela fiscalidade, o imposto pessoal sobre rendimento não será o que apresente maior grau de eficiência, mas é decerto o mais acarinhado pela opinião pública. A ele se fará adiante mais demorada alusão. For agora dir-se-á apenas que os seus efeitos são imediatamente visíveis -e daí, porventura, a sua popularidade-, dispondo de poder de adaptação à superabundância e redundância da concretização da vida, pelo que se presta a servir de instrumento ás correcção dos desvios de obediência ao princípio da hierarquia social.
9. O projecto em análise, ao fixar para limite de remuneração de certas funções do sector público e do sector privado o nível de remuneração de uma função pública situada em elevada posição da hierarquia (a função de Ministro), é possível que também se inspirasse no intuito de conseguir um certo paralelismo, um determinado equilíbrio de relação, entre as remunerações no sector privado e as remunerações no sector público, para funções de categoria idêntica - tanto quanto é possível definir u identidade de categorias. . Sabe-se que é reduzido o nosso escol de valores. A solicitação, por parte do sector privado, de elementos de escol já hoje se revela intensa e decerto se intensificará mais ê mais, nu medida em que se for processando o nosso crescimento económico. Daí a crescente dificuldade de prover certas funções do sector público, aquelas que exigem maior número e melhores qualidades dos que devem desempenhá-las.
O problema, no entanto -há que reconhecê-lo-, põe-se relativamente a nível de director-geral, ou inferior, e a margem que ficaria às empresas, obrigadas apenas a não exceder os vencimentos dos Ministros, ainda seria largamente suficiente para manterem a concorrência com o Estado na conquista das melhores competências.
§ 3.º A limitação das remunerações e o regime da repartição do rendimento
10. Considere-se ainda o aspecto da limitação das remunerações, mas agora do ângulo da modificação do regime cie repartição do rendimento.
No domínio da teoria económica está acentuando-se o reconhecimento da necessidade de rever as clássicas nomenclaturas não só dos rendimentos cuja agregação vai constituir o rendimento nacional, mas também dos participantes na repartição do mesmo rendimento. Todas elas, afinal, assentam na distinção dos tipos de factores de produção e das espécies dos seus possuidores. E, assim, a simples enunciação de salários, juros, rendas e lucros, de Say e de Walras, como ate a falseada, de salários e mais-valia, de Marx, constituem nomenclaturas que têm traduzido óptica exclusivamente técnica - a da técnica da produção. Se no campo restrito da teoria da produção a ciência económica poderia Aceitar, sem reservas de maior, as primeiras categorias de rendimentos e as correlativas categorias dos seus beneficiários, a mesma ciência económica, quando passe a ocupar-se da teoria da repartição, parece que já não pode contentar-se com critério tão estreito, antes terá de considerar esse elemento de ordem técnica como um, e apenas um, dos dados que intervêm no processo repartidor. O outro dado, a considerar na análise
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do fenómeno da repartição, consiste na estrutura institucional da comunidade e na forma como os indivíduos e grupos se comportam perante tal estrutura, ou, por outros termos, no modo como cada um dos membros da comunidade se insere no conspecto económico e obtém, por virtude dessa inserção, uma fracção do rendimento nacional. Decerto que o tipo de factor produtivo que cie carreou paru a. formação do produto constitui um, mas só um, dos elementos caracterizadores desse modo de inserção. E tanto assim é que a cedência do mesmo factor produtivo - o trabalho, por exemplo - ao processo de produção pode originar rendimentos não se dirá em absoluto distintos, mas susceptíveis de diferente caracterização.
11. Nesta ordem de ideias, e porque importa as considerações que se seguem, convém abordar um ponto que se mostra relevante para, a matéria em análise e que diz respeito ao grupo que genericamente pode apelidar-se de prestadores de trabalho. Os corpos gerentes dos estabelecimentos do Estado ou de quaisquer empresas privadas, quando considerados pelo direito a haverem uma remuneração, não susceptível de se classificar como lucro, pela sua acção gestiva - e ó este o ângulo de visão que parece ter presidido ao conceito do artigo 1.º do projecto de lei em apreciação -, são prestadores de trabalho, tal qual os outros servidores dos mesmos organismos, dirigentes em escala inferior, ou executivos, Podem, sem dúvida, alguns elementos dos corpos gerentes assumir dupla individualidade, ou ainda múltipla individualidade, em relação à mesma empresa, e por essa razão fazer parte simultaneamente de outro ou de outros grupos de participantes no rendimento. Mas a circunstância, a verificar-se, não invalida a sua figuração no grupo dos participantes a título de trabalho.
Ora no seio deste grupo podem diferenciar-se várias categorias, quando se atender à forma como os seus componentes só inserem no complexo económico para partilharem do rendimento nacional, ou seja o modo por eles utilizado para a percepção do rendimento, os processos- a que recorrem para criarem o fluxo do poder de compra necessário à sua subsistência. Não interessam aqui, para esta finalidade, nem o montante do rendimento individual, nem a aplicação que deste se faça, senão na medida em que esses dois elementos possam reagir sobre o comportamento usado pelo beneficiário para a sua obtenção.
E assim, entre os assalariados - aplicando a todos os componentes do grupo, esta designação genérica, que um uso puramente convencional de certo modo adulterou - podem distinguir-se os manuais, que mantêm contacto directo com a matéria e sujeitos às contingências derivadas desse contacto, e os não manuais. Estes, por sua vez, podem assumir a qualidade de simples assalariados de execução; de assalariados qualificados desempenhando funções de categoria mais elevada (por disporem de um capital imaterial, uma cultura de nível superior ao da maioria dos membros da comunidade); finalmente, de assalariados de circunstância, como alguns lhes chamam, ou seja os administradores, que juridicamente considerados formam os órgãos da empresa, englobando nessa categoria todas aquelas unidades que no projecto de lei se consideram membros dos corpos gerentes. É evidente- que esta enumeração de categorias não goza do dom da exclusividade; o estudo específico de determinada comunidade poderia ditar outra diferente, dotada de menos ou de mais dilatada discriminação.
12. Á categoria dos administradores é caracterizada pela relativa independência das suas decisões. Se compartilham da administração de várias empresas, o que não é raro, acresce ainda o campo de exercício da sua liberdade de acção. As suas remunerações, os seus salários, dependem, em estreita medida, do grau de prosperidade das empresas que servem, mas é de notar que não há dependência necessária entre os lucros da empresa e essas remunerações, pois ainda que a empresa registe prejuízos nem por isso o administrador deixa de ser remunerado. Esta caracterização, a que poderiam aditar-se outras, nomeadamente de carácter institucional e jurídico, distingue a categoria dos administradores, na repartição do rendimento, das outras categorias de assalariados.
Quanto a estas últimas, tem-se procurado dar-lhes, de forma geral e por toda a parte, crescente protecção distributiva, quer através do salário directo, quer através do salário indirecto. Luta-se contra o egoísmo de alguns - entre, nós os contratos colectivos de trabalho e os despachos de regulamentação do trabalho são sinal do empenho que se tem posto nessa luta -, a quem custa convencer que o salário já não deve ser considerado como o simples preço do factor produtivo trabalho, antes como a remuneração de um ser humano, pois o homem, quando cede o seu trabalho ao processo produtivo, cede algo que se incorpora nele próprio, no seu ser físico, e no seu ser anímico. Ver o trabalho em si, sem atender às condições da sua cessão, é não ver os homens por detrás do esforço quê emprestam.
É nesta sequência que o salário vai perdendo por toda a parte, dia a dia, a correspondência com o trabalho, medido unicamente pela quantidade fornecida. Ao salário directo, já de si, pela limitação do mínimo do seu quantitativo, a afastar-se daquela sumária medição valorativa, vem acrescer o salário indirecto, consubstanciado na série de prestações sociais (abono de família, subsídio na doença, assistência médica, pensão de reforma, auxílio na maternidade, protecção contra acidentes, etc.), este a debilitar, nada vez mais, a correlação entre o montante do salário global e o contributo do assalariado para o produto nacional, avaliado exclusivamente pela quantidade de trabalho que ele prestou. Pode até chegar a anular-se essa correlação, como é o caso da reforma, doença, ou invalidez, em que o subsídio ao assalariado não responde a qualquer actual esforço produtivo da sua parte.
Se, nestes termos, o salário directo é fixado em contemplação de certo número de parâmetros, de índole diversa, entre os quais avulta, sem dúvida, o valor do trabalho oferecido, a fixação do salário indirecto tem caracterizadamente a feição subjectiva, atenue à pessoa do assalariado. É exemplo irisante o critério ultimamente adoptado pelo Governo nu fixação do abono de família, variável consoante o número de filhos do servidor do Estado, sem qualquer dependência do nível do salário directo.
Estas prestações sociais são- em regra, e sobretudo no que respeita ao sector privado, concedidas através de organismos que constituem o elo de solidariedade entre as empresas e os trabalhadores e, por vezes, também entre as empresas e todos os membros da comunidade, quando se verifique a intervenção do Estado, através o seu orçamento.
Mas embora com esta dupla caracterização, que as distingue do salário directo, sem dúvida as prestações sociais constituem, um complemento desse salário, um salário indirecto, cujo adicionamento ao primeiro vai compor o salário global.
13. É incontestável que a melhoria do salário global, sobretudo à custa do acréscimo do salário indirecto, tem favorecido, aliás por imperativo da justiça, os assalariados das categorias médias e inferiores. E tal
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melhoria, pela segunda das características assinaladas, traduz uma redistribuição do rendimento, transferindo para salários parte do que até então se inscrevia como juros, rendas ou lucras. Quer dizer, tem-se verificado, e continuará decerto a verificar-se, a redistribuição vertical do rendimento, isto é, novos arranjos distributivos entre os grupos primários dos participantes.
Mas a justiça social, que imprime com vigor crescente a sua marca no complexo das relações Humanas, exige mais. Hoje proclama-se, em seu nome, uma nova aspiração: além da redistribuição vertical, ó necessário processar a redistribuição horizontal do rendimento, isto é, importa modificar também o jogo da sua repartição entre as várias categorias componentes do mesmo grupo de participantes. Em resumo, a redistribuição deve ser, a um tempo, vertical e horizontal, ou, para usar de léxico já consagrado, a redistribuição deve ser obliqua. Em outros termos, a redistribuição de tipo puramente funcional deve ceder lugar a redistribuição que seja, a um tempo, funcional e pessoal ou, ainda, a redistribuição simplesmente comutativa deve ser corrigida pela redistribuição distributiva.
Apesar de ainda serem raras, mesmo lá fora, as iniciativas de redistribuição horizontal, encontra-se entre nós recente exemplo nos Estatutos do Banco de Fomento Nacional (Diário do Governo n.º 176, 1.º série, de 3 de Agosto de 1959), quando neles se prescreve a participação dos empregados nos lucros do mesmo Banco (3 por cento), em paralelo com a participação dos conselhos de administração e fiscal (l por cento), participações que preferem à distribuição de dividendo às acções, não podendo este exceder 8 por cento. E vem a propósito acentuar três notas relevantes. A primeira, que respeita à redistribuição horizontal, está na diferenciação, em favor dos empregados, das percentagens de participação; a segunda, de alto significado na redistribuição vertical, refere-se à prioridade concedida àquelas participações sobre a distribuição dos lucros aos accionistas, o que significa ficar a remuneração destes condicionada a participação dos assalariados; finalmente a terceira, com implicações em ambos os tipos de redistribuição, consiste na limitação dos lucros distribuídos - dividendo máximo de 3 por cento.
É verdade que já ha 33 anos o decreto orgânico do Banco de Angola (Diário do Governo n.º 180, 1.ª série, de 17 de Agosto de 1926) previa também a participação do pessoal; mas então não nos lucros, antes no remanescente destes, após a distribuição do dividendo, fixado expressamente em 8 por cento. E tal participação igualava a participação dos corpos gerentes -10 por cento daquele reliquat. Pode notar-se neste dispositivo um assomo de redistribuição horizontal, na medida em que se prevê a participação dos empregados, ao lado dos corpos gerentes, nos lucros do Banco. Mas não só a iniciativa, quanto a essa redistribuição, se apresentava débil pela igualdade das percentagens atribuídas às duas categorias de beneficiários, como se desprezava a redistribuição vertical, concedendo prioridade a distribuição de dividendo, sujeito este embora a um limite máximo, sobre a referida participação.
14. Ora no projecto em apreciação estipulo-se a limitação de remunerações dos assalariados de circunstância, o que significa, ceteris paribus, ser reforçado o montante dos lucros das empresas à custa dos excedentes ao limite fixado. Cria-se, desta forma, uma redistribuição de exclusiva verticalidade, e para mais de sentido contrário ao comandado pela política-social. Acresce ainda que nenhum efeito se suscita atinente ã redistribuição horizontal.
Não se julgue, no entanto, que o incitamento a este tipo de redistribuição se deve processar sem quaisquer reservas. Ainda que, directamente interessados, nela intervenham apenas componentes do mesmo grupo de participantes do rendimento, ao movimento de transferência não são estranhos, pelas suas consequências, os outros grupos; não se trata, para estes últimos, de uma simples rés inter alios acta.
É que a referida transferência, processando-se no sentido das unidades de maior nível de 'rendimento para unidades de menor nível de rendimento, arrasta implicações sobre o aforro, e portanto sobre o investimento e também sobre o consumo. Esta última até pode dar origem à inflação dos preços, susceptível de anular, ou mesmo superar, o benefício das unidades contempladas pela redistribuição, se de tal forma vissem diminuídos os seus salários reais. For outro lado, e sobretudo numa economia como a nossa, em via de desenvolvimento, a debilitação da poupança, com os seus reflexos no investimento, pode prejudicar a política de crescimento económico.
Isto significará porventura que a redistribuição tem de ser promovida com ritmo não demasiadamente acelerado, para que não surjam efeitos depressivos sobre o dinamismo do crescimento e o prejuízo daqueles cujo benefício se procura. A mesma prudência ainda é aconselhável pela contemplação dos parâmetros de ordem, ética e de ordem psico-sociológica, sempre presentes em qualquer fenómeno económico e nomeadamente neste, da redistribuição dos rendimentos; cita-se, em especial, a rigidez das estruturas mentais de alguns sectores do corpo social, a qual tem de ceder lugar a uma plasticidade propícia à a temi n cão de antagonismos, por vexes insidiosamente alimentados. Como tantas vezes sucede na economia, providências impopulares produzem no tempo os seus bons frutos.
E a dominar este conspecto tenha-se presente que a redistribuição do rendimento tem por fim último a melhoria geral das condições de vida, mas que esta só poderá ser alcançada se, a por de todas as outras providências, cada um produzir mais no mesmo tempo, cada um aumentai- a sua produtividade.
Para finalizar apenas uma nota mais. Não seria possível enfrentar certos problemas, como o da redistribuição do rendimento, se não fora verificar-se essencial condição prioritária: a estabilidade do valor da moeda. No número de Setembro último do boletim do The First National City Bank of New York, e conforme ja foi referido no relatório que precede a proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1960, figuram ordenados 35 países, para cada um dos quais se indica a depreciação d na respectivas moedas, medida pelo aumento do custo oficial da vida ou pelo índice dos preços de consumo. Obedecendo a ordenação dos 35 países à decrescência do índice do valor da moeda em 1958 relativamente ao valor de 1948 (índice 100), Portugal encabeça a lista, logo no primeiro lugar, com o índice 94, seguido imediatamente pela Suíça, com o índice 90, e pelos restantes 33 países com índices sucessivamente decrescentes. Há três dezenas de anos desfrutamos esse dom, que muito recentemente ainda um eminente economista, inspirador do chamado «milagre alemão» (como se fora milagre o trabalho produzir seus frutos ...), disse dever ser inscrito entre os direitos fundamentais de todos os cidadão. E desfrutamo-lo em resultado de uma política iniciada e prosseguida indefectivelmente até aos nossos dias. Mas são passados 30 anos; talvez seja bom recordar o que a precaridade da memória dos homens tenha ajudado a esquecer.
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§ 4.º A limitação das remunerações e os imperativos de carácter social
15. Pondere-se agora o proposto sobre limitação de remunerações, admitindo que com ele se visa uma finalidade eminentemente social.
Quase todas as considerações produzidas anteriormente são válidas e tempestivas neste particular. Na realidade, abordaram-se vários aspectos sociais, ou na sua pureza ou na sua concomitância com aspectos económicos. Só se acrescentarão, por isso, breves notas que, parece, se tornam necessárias.
O preceito proposto poderia conduzir, como já se disse, à mutação de salários em lucros, ao benefício dos prestadores de capital, em detrimento de alguns prestadores de trabalho. Decerto, com tal providência, na parte relativa à amputação dos proventos dos últimos, os assalariados de circunstância, se aborda um aspecto social - o do contraste entre altos e baixos salários. Mas parece não ser completa a solução, porque, pretendendo-se acudir a um anseio social, se vai afinal responder negativamente a outro anseio, porventura dotado de maior vigor do que o primeiro.
Na realidade, por motivos e pretextos sobejamente conhecidos, verifica-se uma tendência para o antagonismo entre capital e trabalho. Está na ética do Estado obviar a tal tendência, fazendo-a substituir pelo espírito de cooperação e solidariedade. A expressão deste princípio encontra-se bem patente na Constituição (v. g. artigos 31.º e 35.º) e no Estatuto do Trabalho Nacional (v. g. artigos 11.º, 14.º, 20.º e 32.º).
Ainda se viu recentemente, nos estatutos do Banco de Fomento Nacional (artigo 18.º, § único), admitir-se a possibilidade de a participação nos lucros, por parte do pessoal, poder revestir a forma de «títulos de trabalho», com o objectivo de associar os empregados aos interesses do Banco, objectivo, aliás, previsto também na. Constituição (artigo 36.º) e já prosseguido anteriormente por outras empresas.
Os termos do projecto, com os efeitos atrás assinalados, militam afinal contra esta orientação salutar. E, como já se disse, há o maior interesse, de todos os pontos de vista, em atenuar sucessivamente, até anular, os antagonismos de certos grupos de participantes na distribuição do rendimento, nomeadamente cedentes de. trabalho e cedentes de capital, antagonismos resultantes da rigidez das mentalidades que os animam.
Neste aspecto teria extraordinária relevância qualquer iniciativa dirigida à inspiração de providências destinadas a ampliar a aplicação do limite mínimo de salário, princípio consignado no artigo 24.º do Estatuto do Trabalho Nacional e a que acima (§ 2.º) já se fez referência.
§ 5.º A limitação das remunerações e a restrição das possibilidades de trabalho
16. A consideração do projecto sobre limitação das remunerações, agora observado do ângulo de pressuposta restrição das possibilidades de trabalho, parece não oferecer justificação suficiente.
O exame psico-sociológico - com a inevitável precariedade que lhe é peculiar - dos elementos afectados pela providência em vista leva a supor que o objectivo não seria alcançado, pelo menos totalmente. Na verdade, os assalariados superiores, ou de circunstância, não são movidos exclusivamente pelo proveito material; aspiram também, no desempenho dos cargos que ocupam, à consagração social, à satisfação, porventura eivada de sentimento a que a vaidade não é estranha, de participar na direcção das grandes empresas, e ainda talvez à perspectiva das possibilidades de elevação na escala hierárquica social. Deste modo, e admitidas embora, como cabe, as excepções à regra, não seria de esperar, na generalidade dos casos, a desistência, do desempenho das funções que a esses assalariados estão cometidas motivada pelo simples, facto de se impor uma limitação rigidamente uniforme dos seus proventos.
Por outro lado, parece que o aspecto focado perde relevância ao ponderar-se o que entre nós se está passando no momento actual. Levantam-se com frequência sérias dificuldades em encontrar quem retina o mínimo de condições indispensáveis à direcção de organismos económicos e se disponha a assumi-la, dificuldades que não se limitam ao sector privado, mas se deparam até no sector público. É bem patente a míngua de elementos de escol, fruto, porventura, de uma estagnação de que só há algumas décadas nos estamos libertando, mais acentua da mente na última, e ainda de «todos não sermos demais». E enquanto não se atenuar de forma sensível esta escassez, que afecta a eficiência social, há de reconhecer-se a licitude de certas acumulações em empresas privadas, que, aliás, a Constituição (artigo 40.º) não proíbe, mas apenas contraria. Em contraste com esta exiguidade, é incontestável que entre nós se verifica uma acentuada capilaridade social; são, por felicidade, relativamente numerosos os exemplos de ascensão dos mais aptos, sem quaisquer pergaminhos que não sejam as suas comprovadas qualidades de trabalho. E este panorama decerto se acentuará na medida em que for incentivado o processo de crescimento da nossa economia em que todos estamos empenhados e que levará ao revigoramento da acção anuladora de quaisquer vestígios de diferenciação de estratos sociais.
§ 6.º A limitação das remunerações e os eventuais abusos do poderio económico
17. Considere-se o projecto no mesmo aspecto da limitação das remunerações, mas agoira do ângulo da pretendida oposição ao despontar dos possíveis abusos do poderio económico.
O fenómeno do crescimento económico não se limita ao alargamento das dimensões dos elementos constituintes do sistema económico; a observação histórica revela que ele é susceptível de implicar também alterações na própria estrutura do sistema. Uma dessas alterações diz respeito às formas dos mercados; na medida em que o crescimento se processa, os mercados exibiriam mais acentuadas tendências oligopolísticas e oligopsonísticas, com origem, na generalidade Mós casos, no agrupamento de empresas, que passariam assim a exercer o domínio dos sectores-chave, muitas vezes reforçado por ligações financeiras a que os grupos resultantes recorreriam.
Tais grupos de interesse polarizariam o domínio económico, domínio que porventura se alargaria a outros campos, nomeadamente, o político, pela influência exercida sobre os poderes públicos - e seria esta última a característica, que permitiria apelidar de grupos de pressão aqueles grupos de interesse. E essa pressão, por parte dos grupos de empresas, sobre a própria estrutura política poderia até vir a exercer-se através da dissimulação dos manejos, prática que tão caracteriza; lamente se apodou de lobbysm, na intenção de atribuir a tais manejos o ambiente propício das antecâmaras.
Sem dúvida o crescimento económico no quadro da produção impõe o recurso a novas combinações produtivas, a novas técnicas, já adoptadas em outras comunidades mais evoluídas ou, nos dias de hoje, em que a descoberta cedeu lugar à invenção, acabadas de conceder pela ciência. E a evolução histórica da técnica assinala-se pela exigência de crescentes dimensões de algumas unidades de produção. Está aí a razão da
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tendência para a extensão das dimensões das empresas, como está aí também uma das razões, porventura a fundamental, da criação de agrupamentos de empresas como solução conciliatória dos ditames da técnica e dos desejos de sobrevivência de unidades preexistentes, sujeitando-se estas embora a amputações da sua liberdade de acção. A evolução desenvolve-se, como querem alguns, no sentido do capitalismo atomístico para um capitalismo molecular.
18. Se no campo empresarial este sentido do processo histórico faz surgir a eventualidade da criação do poder económico pela formação de grupos de interesse, aos inconvenientes desse poder se deverá obstar pela chamada de dois outros poderes com susceptibilidades de actuação também no domínio do económico: o poder sindical e o poder do Estado, poderes compensadores na terminologia já consagrada. E a forma mais correcta de estabelecer o jogo desses três poderes é dispô-los e enquadrá-los de tal sorte que. as respectivas forças constituam um sistema cuja resultante responda ao bem comum - o sentido do capitalismo benéfico, capitalismo progressivo ou, mais expressivamente, da economia de organização.
Em outros termos, para que seja salvaguardado b interesse colectivo é necessário institucionalizar os três poderes, ou, numa palavra, importa conceder-lhes organicidade corporativa. E a verdade deste asserto assume tal evidência que em países ainda apegados a um pluripartidarismo político com representação, e onde se verificam as pressões dos três poderes, não salutarmente canalizadas pela via institucional, antes defeituosa e perigosamente exercidas através dos partidos políticos, cujos programas doutrinários ficam de tal sorte postergados, se levantam vozes a reconhecer os malefícios de um regime híbrido definido pela sobreposição de um arremedo corporativo, sem existência legal e, portanto, com presença apenas de facto, a uma orgânica que com impropriedade se apoda ainda de politicamente representativa. O mesmo significado assume a recente proposta, da Comissão Cohen, em Inglaterra, de criação de um conselho representativo das Trade Unions, das organizações patronais e do Estado, para a negociação de contratos colectivos de trabalho. E assim naquelas comunidades não assinaladas por economias de direcção central o pendor para a organização corporativa é um facto, reconhecido umas vezes; outras, talvez por necessidade de política partidária, ainda não declarado.
Torna-se necessário um Estado forte, com autoridade que dimana, da independência e da isenção, sem ligações políticas que arrastem a compromissos. Só um Estado forte pode, com o seu poderio, manter o equilíbrio das outras duas forças em presença - a dos grupos empresariais e a dos grupos sindicais. Mas que cuidado e vigilância exige o exercício do poder do Estado! Ele tem de se conter nos limites estritamente marcados pelo interesse colectivo e pelo risco de se tender para a estatização socializante, para um cripto-estatismo ou, como querem alguns, socialismo sem programa, campo árido em que deixam de ter voz o estímulo e a iniciativa criadora de que só as unidades privadas são detentoras.
19. Somos, constitucionalmente, uma república unitária, e corporativa. A esse princípio ético se dirige, como importa, a nossa legislação. Nela se encontra fortemente assinalado o desígnio de substituir à luta ou oposição pela cooperação ou solidariedade, como nela se sublinha a consagração de um Estado forte e a este se impõem limites no exercício do poder económico.
E assim, só para citar, além da Constituição, um dos diplomas fundamentais, se invoca o Estatuto do Trabalho Nacional. Logo no seu artigo 2.º se ditam os fins a contemplar na organização económica da Nação: «realizar o máximo da produção e riqueza socialmente útil e estabelecer, uma vida colectiva de que resultem poderio para o Estado e justiça entre os cidadãos». No artigo 4.º traça-se já uma fronteira intransponível ao exercício do poder estadual: «O Estado reconhece na iniciativa privada o mais fecundo instrumento do progresso e da economia da Nação», fronteira cuja definição o artigo 6.º completa nos seguintes termos: «O Estado deve renunciar a explorações de carácter comercial ou industrial, mesmo quando se destinem a ser utilizadas no todo ou em parte pelos serviços públicos, e quer concorram no campo económico com as actividades particulares, quer constituam exclusivos, só podendo estabelecer ou gerir essas explorações em casos excepcionais, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos «em a sua acção ...». Depois, no artigo 7.º, define-se o sentido de actuação do Estado:
O Estado tem o direito e a obrigação de coordenar e regular superiormente a vida económica e social, determinando-lhes os objectivos e visando designadamente o seguinte:
1.º Estabelecer o equilíbrio da produção, das profissões, dos empregos, do capital e do trabalho;
3.º Conseguir o menor preço e o maior salário compatíveis com a justa remuneração dos outros factores de produção ...;
4.º Promover a formação e o desenvolvimento da economia nacional corporativa num espírito de cooperação que permita aos seus elementos realizar os justos objectivos da sociedade e deles próprios, evitando que estabeleçam entre si oposição prejudicial ou concorrência desregrada, ou que pretendam relegar para o Estado funções que devem ser atributo da actividade particular;
5.º Reduzir ao mínimo indispensável a esfera do . seu funcionalismo privativo no campo da economia nacional.
As imposições aos detentores dos factores produtivos são enumeradas da seguinte forma: «A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade» - assim reza o artigo 11.º; no artigo 14.º particulariza-se: «Sobre o capital aplicado em explorações agrícola, industrial ou comercial impende a obrigação de conciliar os seus interesses legítimos com os do trabalho e os da economia pública»; no artigo 20.º continua-se: «Compete às entidades patronais cooperar com o Estado e com os organismos corporativos na melhoria das condições económicas dos seus trabalhadores dentro dos justos limites ...», estes definidos, num sentido de perfeito equilíbrio, no artigo 16.º, ao dispor-se que os interesses ou os direitos do trabalho não podem prevalecer so- bre o direito de conservação ou amortização do capital das empresas e sobre o direito do seu justo rendimento, e ao particularizar-se, agora em relação ao trabalho, no artigo 22.º: «O trabalhador intelectual ou manual é colaborador nato da empresa onde exerça a sua actividade e é associado aos destinos dela pelo vínculo corporativo».
E até se encontra expressa no Decreto-Lei n.º 23 049, de 23 de Setembro de 1933, que instituiu as regras de organização facultativa dos grémios, a menção do repúdio pelo «predomínio das plutocracias», como um dos deveres a eles impostos - eles, os grémios, «órgãos representativos das entidades patronais e do capital», como esclarece o mesmo diploma.
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Este é o sentido, nítido e claro, da nossa legislação, de que ficam apontados apenas alguns excertos.
20. Perante este conspecto não parece que assuma significado o projecto, nos termos em que foi apresentado e no tocante à limitação das remunerações dos corpos gerentes, como forma de oposição a eventuais abusos de poderio económico.
Em primeiro lugar, a aplicação generalizada de uma providência rigidamente uniforme nem concede eficiência repressiva, nem permite a distribuição de justiça. Os casos que em cada momento podem deparar-se assumem, tal diferenciação, tão profundas dessemelhanças, tão variados efeitos, que a justiça na repressão, a ser esta tempestiva, assim como a eficiência da mesma repressão, só poderão alcançar-se pela perquisição e julgamento de cada um. Bem se diz no relatório que precede o projecto de lei contra o abuso dó poderio económico apresentado às Câmaras Legislativas da Bélgica em Junho de 1959 não ser aconselhável tomar atitude apriorística a favor ou contra as- potências económicas; o Governo, lê-se no mesmo relatório, não condena os agrupamentos empresariais, antes se limita a reconhecer a sua existência e por ela o perigo do poder económico. Provada que seja a realidade de abuso, e só em tal caso, procedem então as penalidades. É que, como aí se diz - e acima já se fez menção desta nota -, o fenómeno do agrupamento de empresas, tantas vexes criticado, não deve ser sistematicamente considerado como um mal no estado presente da economia europeia: procede, em tantos casos, de uma evolução inelutável. Além disso, apresenta muitas vezes vantagens importantes que, ainda aio dizer do mesmo relatório, a doutrina económica e a experiência tem tornado evidentes: redução de custos, pela racionalização da produção; estudo colectivo e completo dos mercados, para corrigiu- certos inconvenientes da concorrência desregrada; adaptação exacta dos investimentos às necessidades ditadas pelos mercados; especialização de empresas; organização e distribuição de mercados e consequente- redução dos custos de venda; prevenção das flutuações exageradas dos preços, do produto e do emprego, etc. Com fundamento nestas considerações, o projecto de lei citado prescreve penalidades, mas sem lhes emprestar precisão: providências julgadas oportunas para pôr termo ao abuso verificado. Só nos, casos de não cumprimento das penalidades impostas ou de reincidência, o projecto de lei belga adopta maior concretização: interdição de, em prazo determinado, ser chamada a funções do administração pessoa ja titular do mandato análogo em sociedade concorrente no mercado visado, etc.
Por outro lado, o projecto de lei em apreciação, nos termos em que foi concebido, e como antes já se notou, destituía rendimentos-salários, para os titular rendimentos-lucros. A concentração de (rendimento no sector empresarial, desta forma produzida, militaria com efeitos contraproducentes, contribuindo porventura para o acréscimo do poderio económico, caso ele já se desenhasse, e revigorando a eventualidade do abuso desse poderio.
E assim, na hipótese de se julgar que o Governo deve no momento actual usar de maior energia na afirmação dos princípios consignados na lei e relativos à defesa do sistema económico contra os malefícios do abuso do poderio de algumas unidades privadas, não seria o projecto era exame, pela forma que lhe foi imprimida, o instrumento de colmatação dessa possível lacuna. Na sua formulação teria que presidir outro sentido e deveria ser atribuída ao Governo mais vasta latitude de julgamento e de acção.
§ 7.º A limitação das remunerações e a moralização da administração pública
21. Finalmente, dos pressupostos admitidos como eventualmente inspiradores da proposta em análise, na parte relativa à limitação de remunerações, resta considerar o do imperativo da moralização da administração pública.
Os pressupostos anteriores implicam, pelo menos em parte, e directa ou indirectamente, atitudes do Governo. Estas atitudes, por princípio apriorístico, hão--de emergir de um sentido de moralização e eficiência. Algumas das considerações que vão seguir-se constituem forçosamente repetição, em termos diversos embora, de algo do que atrás fica dito.
A época actual postula a existência de um Estado forte. E este postulado distingue-se pela universalidade da sua aceitação: os sistemas políticos das mais opostas tendências aceitam-no incondicionalmente.
Para ser forte, o Estado necessita usufruir de poder de constrangimento. Mas este poder de constrangimento pode ser violência -e é nalgumas comunidades -ou pode ser força- como exigem os nossos princípios constitucionais.
Tal força há-de dimanai- da autoridade que só a moral empresta. E para que esta não seja maculada, o Estado tem de garantir e conservai- a essência da unidade nacional pelos laços da paz, da solidariedade, da coordenação de todos os elementos que compõem o complexo de energias e de interesses nacionais, de forma a conservar-se sempre fora e acima de todos esses interesses; se neles se enleia, neles se corrompe.
22. O Estado Corporativo generalizou a descentralização institucional. Facultou a organização de instituições representativas de certos interesses - ou promoveu-a, a título transitório, quando a iniciativa privada ainda não se manifestara - e deixou a tais instituições a autodirecção dos interesses representados, reconhecendo-lhes até a qualidade de entidades de direito público e atribuindo-lhes funções inerentes, como a celebração de contratos colectivos de trabalho. Os sindicatos, Casas do Povo e dos Pescadores (estas, organismos de cooperação social) e grémios, como órgãos primários, as federações e uniões, como órgãos secundários, e as corporações, como órgãos superiores, constituem a expressão orgânica dessa institucionalização.
Esta ordenação, que não afoga a actividade privada nem a iniciativa individual, tem de representai- a solidariedade e a cooperação, dirigidas ao interesse supremo que é o da Nação e com o mérito de a actividade de cada um não ser funcionalizada sob a égide do Estado. Desta solidariedade e cooperação haverá de resultar a criação do ambiente moral propício à não existência de factos condenáveis, tornando desnecessária a intervenção correctora do Estado.
23. Mas se a corporação é um órgão social distinto do Estado, ao qual cabe tornar efectiva a subordinação do interesse individual ao interesse colectivo, tal não significa que o Estado permaneça abúlico, como simples espectador, ou, quando muito, como agente garante da ordem. A moralização da administração pública e da vida do País é matéria da competência específica do Estado. A este pertence também a coordenação da acção corporativa e a sua fiscalização; incumbe-lhe ainda, sempre em plano superior, estimular, incitar, orientar, animar, auxiliar a iniciativa privada, seja qual for a forma legítima por que ela se revele, e manter condições indispensáveis -e variáveis no tempo - a esta revelação. Assim, o Estado, para colaborar na prosperidade de todos e de cada um, impli-
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citamente terá também de corrigir os desmandos ou os desvios ide actuação que ameacem ferir o interesse nacional. Para tanto usará da força que lhe advém da autoridade, esta concedida pelo prestígio moral - o Estado Necessita ser forte.
Por esta razão o Governo deve manter contínua vigilância para que não sejam ofendidos os princípios que consagram ti posição superior do Estado perante o agregado nacional. Em especial, o Governo deve a todo o custo evitar qualquer acto ou gesto que possa constituir motivo, mesmo pretexto, para no conceito público se gerar a ideia de que ele se enredou na trama dos interesses privados; o sou prestígio, a sua autoridade, a sua força, portanto, seriara danosamente afectados. E, por translação, lesar-se-ia no mesmo sentido o próprio Estado.
24. Em tais termos, se o Estado garante do interesse comum, e se este, no juízo do Governo, está a ser afectado por determinadas tendências, reveladas no sector privado, o Governo não pode, nem deve, assistir apático ao aparecimento dessas tendências. Deve intervir, mas para intervir, sem risco de afectar a sua autoridade, terá de manter em permanente contemplação os princípios dos quais a sua força emerge. E, assim, importa que ele, ajuizando do condicionamento circunstancial no tempo, recorra a meios que obviem a tal ofensa, mas assumindo o seu papel do garante do bem comum e mantendo-se em plano que domine o referver dos interesses em jogo.
E porque não seria possível encontrar mais perfeita síntese do que fica dito, transcreve-se o seguinte passo do relatório do diploma que instituiu a organização facultativa dos grémios (Decreto-Lei n.º 24 715, de 3 de Dezembro de 1934):
Tem-se afirmado repetidas vezes que o Governo não tem em vista absorver as actividades nacionais, nem quanto ao seu exercício nem quanto à sua direcção. Ressalvado o papel que o Estatuto do Trabalho Nacional lhe confere, tudo se orienta no sentido de preparar a autodirecção da economia por meio dos organismos corporativos - única fórmula susceptível de conservar o que se afigura essencial para dar àquela uma ordenação sã: a iniciativa privada, a concorrência legítima, a cooperação metódica e leal das actividades organizadas, o Estado independente e forte para coordenar todos os interesses em ordem ao bem comum.
§ 8.º As acumulações e Incompatibilidades; sua analise conjunta
25. Terminado o exame do primeiro aspecto fundamental revelado na economia do projecto em análise - o da limitação das remunerações -, importaria considerar neste momento o das acumulações, a que se seguiria o exame do terceiro aspecto, o das incompatibilidades.
Mas acumulações o incompatibilidades são, como já se afirmava no relatório do Decreto -n.º 15 538, de l de Junho de 1928, «duas faces do mesmo problema». Padece que haverá vantagem em trotar conjuntamente os dois aspectos, tanto mais que, sendo em regra os diplomas que a eles se referem comuns, se evitará de tal sorte a exagerada repetição de citações.
Desde já se faz notar que no projecto se atribui, extensivamente, ao vocábulo «acumulação» (artigo 4.º) conceito mais lato do que aquele que de certo modo se tornou tradicional e foi até agora perfilhado, como regra, pela legislação. Segundo este último, as acumulações respeitam simplesmente a funcionários públicos movendo-se no quadro das funções públicas (V. relatório do Decreto n.º 15 538, de l de Junho de 1928); no projecto aplica-se o termo com referência a indivíduos não necessariamente funcionários públicos e movendo--se nos domínios do sector privado, aliás cora critério semelhante ao perfilhado pelo artigo 40.º da Constituição. E no relativo a incompatibilidades o conceito legal também foi, no projecto, de certo modo ampliado quando ultrapassou a interdição da simultaneidade do exercício de certas funções públicas e particulares e Lhe atribuiu força imperativa diferida no tempo.
A preocupação dos governos pelo problema das acumulações e incompatibilidades está nitidamente expressa na longa teoria de diplomas que desde há muito as regulam. Já antes se citou (n.º 1) disposição de 1839. Por Decreto de 15 de Junho de 1870 proíbem-se as acumulações nas aposentações, jubilações e reformas e determina-se a incompatibilidade da pensão de inactividade com qualquer vencimento do serviço activo pago pelo Estado ou por estabelecimento subsidiado pelo Estado, salvo - e a excepção tem sabor por a vermos também invocada em legislação dos nossos dias - se daí resultar economia para o Tesouro.
Sem qualquer preocupação de enunciar exaustivamente os diplomas relativos à matéria, citaram-se estes por se situarem, no tempo, pelos meados do século XIX e revelarem, por isso, uma atitude que já vem de trás. E a uns tantos outros se faz em seguida referência.
Com data de 18 de Setembro de 1919, a Lei n.º 888 impõe um limite às remunerações do funcionalismo publico, ainda que elas provenham de acumulações - sentido semelhante ao desenhado no projecto em apreciação, mas com a flagrante diferença de apenas se circunscrever ao funcionalismo público.
A Lei n.º 1356, de 15 de Setembro de 1922, refere também as regras a seguir no abono de melhoria de vencimentos em caso de acumulação de funções públicas.
O Decreto n.º 8488, de 17 de Novembro de 1922, que estipula do mesmo modo sobre abonos em caso de acumulação, apresenta um considerando digno de reter: «a acumulação de funções no mesmo indivíduo representa para o Estado uma diminuição de despesa, pois que o funcionário deixa de perceber uma parte importante do vencimento inerente ao lugar que acumula, competindo-lhe, até, num grande número de casos, uma simples gratificação».
O Decreto n.º 12 527, de 23 de Outubro de 1926, que revogou o ao tempo ainda muito recente Decreto n.º 12 493, de 13 de Outubro de 1926, denuncia o ambiente emociona] peculiar as grandes mutações políticas. Ainda não decorrera um ano sobre o início da Revolução Racional. E a própria revogação de um decreto dez dias após a sua publicação, para o substituir por novo diploma regendo matéria análoga, mostra à evidência a excitação do momento.
Logo no seu artigo 1.º esse decreto estabelece uma série de incompatibilidades: de numerosas funções públicas (Ministro ou Subsecretário de Estado, membro do Poder Legislativo, director-geral, Chefe de repartição, vogal dos conselhos de administração dos serviços do Estado, magistrado, etc.) com numerosas funções do sector privado, e quer estas fossem remuneradas, quer exercidas gratuitamente (advogados, consultores jurídicos, membros dá direcção, administração ou conselho fiscal de empresas ligadas ao Estado por laço contratual e das que explorassem o comércio bancário). Estas incompatibilidades manter-se-iam durante o desempenho das funções públicas e durante os três anos consecutivos à data em que elas tivessem cessado. Por outro lado, e como atenuação do rigor, admitia-se
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que os indivíduos eleitos ou nomeados para as funções públicas enunciadas, à excepção dos Ministros e Subsecretários de Estado, e que fossem representantes do Estado ou pelo Estado indicados para membros dos conselhos do administração o fiscais das empresas mencionadas, pudessem continuar nos seus lugares.
A severidade do preceito era levada ao ponto de (artigo 3.º) os funcionários públicos que houvessem renunciado, por incompatibilidade, nos seus lugares nas empresas não poderem ser substituídos- por seus ascendentes ou descendentes por consanguinidade ou afinidade, nem por irmãos ou cunhados. Por outro lado (artigo 7.º), os membros dos corpos gerentes dos bancos emissores não poderiam acumular essas funções com outras idênticas em quaisquer sociedades ou empresas.
Mais tarde, em 23 de Junho de 1927, passado agora já um ano sobre o deflagrar da Revolução Nacional, surge o Decreto n.º 13 810, relativo a acumulações. Por ele se determina a proibição de acumulações de soldos, ordenados ou vencimentos de categoria dos funcionários públicos;- verificando-se acumulação de cargos públicos, o funcionário receberia por um deles a totalidade das remunerações que lhe coubessem e pelos restantes somente a remuneração de exercício. O Decreto n.º 14 594, de 19 do Novembro do 1927, dispõe semelhantemente e de forma especial em relação aos funcionários docentes.
Mais um ano volvido, começa a notar-se acalmia da atmosfera emocional; o legislador apega-se mais às realidades e vai perdendo o sentido excessivo da renovação, de tudo considerar obsoleto e carecedor de reforma. .Não estão ainda, porém, lançados os novos fundamentos políticos do Estado. Publica-se então, com data de l de Junho de 1928, o Decreto n.º 15 538. O relatório deste decreto já constitui notável sistematização, enunciação clara do problema e prenúncio de algumas ideias mestras que haveriam de inspirar os princípios mais tarde constitucionalizados. Deste relatório já acima foram aspados alguns passos. Mas convém, para completa inteligência da evolução do pensamento e concluir da serenidade e agudeza da observação do legislador, invocar mais alguns. A assinalar fortemente a nota de transitoriedade de algumas providências consignadas no diploma, escreveu-se: «... o que quer dizer que uma ou outra disposição agora prescrita poderá desaparecer numa futura revisão deste diploma quando restabelecido um certo equilíbrio profissional e social e diminuídos os perigos de influências estranhas num poder público já fortalecido. Agora exige a salvação nacional que todos aceitem a cura dolorosa de tantas enfermidades ...». Era o decidido e confessado reconhecimento de que não se havia ainda chegado ao fim, que as disposições promulgadas constituíam um passo, ainda não o último, para o encontro da boa solução.
Noutra passagem desenha-se com precisão o condicionalismo moral do regi-me das incompatibilidades: «A incompatibilidade natural proveniente do exercício de cargos que suo desempenhados nas mesmas horas regulamentares mal se compreenderia que houvesse de ser legalmente definida num país de administração pública regular; as incompatibilidades de ordem moral provêm da repugnância natural de certas funções ou do perigo e inconvenientes que podem resultar do seu exercício pelo mesmo indivíduo. Estes perigos e inconvenientes variam com o nível da moralidade pública, e privada, e nada custa a reconhecer que, postos determinados casos pessoais, mal algum adviria de se continuar permitindo o exercício simultâneo de certos lugares; mas há-de também reconhecer-se que à ordem pública interessa sobremodo que o exercício das actividades públicas e privadas seja regulado de modo que se não possa abusar ...» - o que quer dizer, regular o uso para evitar o abuso.
No relativo a acumulações o mesmo relatório repete condição já antes invocada pelo legislador: «... e verifica-se em muitos casos que a acumulação de funções permite ao Estado uma certa economia, sem prejuízo do serviço publico».
Segue-se a definição do princípio orientador das novas disposições: «A conjunção destes factos e destes princípios levou a adoptar fórmulas de transigência entre o interesse das finanças do Estado, as exigências do serviço público e a necessidade de permitir uma remuneração condigna aos funcionários».
No seu articulado, o decreto em referência segue o esquema do decreto anterior (n.º 12 527, de 23 de Outubro de 1926), que por ele fica revogado, mas, conservando incompatibilidades previstas em outras leis e regulamentos, introduz inovações que convém referir. Assim, omitiu de entre as funções públicas nomeadas as de membro do Poder Legislativo; eliminou a cláusula do diferimento por três anos, consecutivos à cessação das funções públicas, das incompatibilidades - pormenor assaz relevante no exame do projecto em causa-, como eliminou a disposição relativa à impossibilidade de substituição do funcionário que renunciasse aos lugares do sector privado por indivíduos a cie ligados por determinados laços de parentesco. Ampliou o campo de jurisdição do regime das incompatibilidades ao prescrever que nenhum funcionário público poderia exercer nas empresas visadas pelo decreto (as ligadas ao Estado por laços contratuais e as que explorassem o comércio bancário) mais do que um dos lugares designados no mesmo decreto, assim como estipulou que nenhum funcionário publico poderia ocupar qualquer desses lugares, naquelas empresas ou em quaisquer outras, quando os assuntos que interessassem a estas corressem pela direcção-geral ou repartição a que o funcionário pertencesse. Prescreveu a incompatibilidade absoluta dos lugares que tivessem de ser desempenhados dentro das horas regulamentares dos serviços públicos. Criou uma limitação importante: os membros dos corpos gerentes rias empresas indicadas no decreto só poderiam exercer qualquer das funções também nele indicadas em duas dessas empresas, excepção feita dos governadores e corpos gerentes dos bancos emissores por privilégio concedido pelo Estado, aos quais não se permitiu esse duplo exercício.
No tocante a acumulações estatuiu-se que nenhum funcionário público poderia acumular com o seu próprio cargo mais de outro do Estado, corpo ou corporação administrativa a que competisse qualquer vencimento.
Várias providências e esclarecimentos (pareceres da Procuradoria-Geral da República, 'portarias, despachos ministeriais e até um decreto-lei, o n.º 24-414, de 25 do Agosto de 1934) se sucedem, com o objectivo da regulamentação dos regimes de incompatibilidades e acumulações.
Mas, entretanto, surge a nova Constituição Política, que alterações sucessivas, as últimas das quais por força a Lei n.º 2100, de 29 de Agosto de 1959, foram adaptando à mutabilidade de aspirações e exigências. No artigo 27.º consigna-se o princípio da proibição das acumulações, salvo nas condições previstas na lei, e dispõe-se que o regime das incompatibilidades será definido em lei especial. O já citado artigo 40.º estatui que serão dificultadas, como contrárias à economia e moral públicas, as acumulações de lugares em empresas privadas. Finalmente, os artigos 90.º e 110.º ainda se referem a acumulações, o primeiro respeitante aos membros da Assembleia Nacional, o segundo relativo aos Ministros. Em 23 de Novembro de 1935 é publicado o Decreto-Lei n.º 26 115, diploma que avulta neste panorama le-
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gislativo como elemento ordenador e esclarecedor, realização concreta da previsão expressa no relatório do Decreto n.º 15 538, de l de Junho de 1928, segundo a qual «uma ou outra disposição agora prescrita poderá desaparecer numa futura revisão deste diploma, quando restabelecido um certo equilíbrio profissional e social a diminuídos os perigos que de influências estranhas num Poder Público já fortalecido». Haviam decorrido sete anos; afirmara-se o relativo equilíbrio profissional e acentuara-se o fortalecimento do Poder Público.
Ainda que este diploma diga fundamentalmente respeito ao funcionalismo público, em especial no relativo a acumulações, convém, para ilustração da matéria, referenciar um ou outro ponto do relatório e do articulado susceptível de contribuir para a definição dos princípios informadores da atitude assumida pelo Governo.
Indicam-se no relatório as razões da permissão legal da acumulação, «traduzida em uso tão frequente no nosso funcionalismo», na expressão do mesmo relatório. Entre elas menciona-se «a impossibilidade de prover convenientemente alguns lugares em país tão pobre de competência s como o nosso». Há-de notar-se que, tal como então, ainda hoje a circunstância referida não diz respeito apenas ao sector público,' aniles se estende também e necessariamente ao sector, privado; ela não pode ser esquecida nem na apreciação do problema que o projecto visa, nem, sobretudo, na solução que se lhe pretenda dar. Outra razão alegada é sa estrita dependência de algumas funções em relação a outras das quais as primeiras se poderiam considerar prolongamento, o que levou em muitos casos a torná-las como simples inerências de outras, embora com remuneração distinta»; é também condição que assume plena validade no sector privado e como tal deve ser considerada na ponderação do problema posto.
No articulado, a orientação tomada, quanto a acumulações, foi a prescrita no artigo 24.º: nenhum funcionário abrangido pelo decreto poderá exercer mais de um lugar remunerado dos quadros permanentes, quer do Estado, quer dos corpos ou corporações administrativas; exceptuam-se (artigo 25.º) as acumulações autorizadas em Conselho de Ministros, só podendo ser concedida autorização tratando-se de acumulação de cargo para o qual não esteja fixada retribuição bastante para o seu exercício independente, em harmonia com o vencimento que a esse cargo corresponderia no grupo aplicável, de entre os descritos no decreto referido.
Definem-se posteriormente casos de incompatibilidade ou esclare-se o regime de acumulações (Decreto-Lei n.º 26 116, de 23 de Novembro de 1935, Decreto-Lei n.º 26 487, de 31 de Março de 1936, parecer da Procuradoria-Geral da República In Diário do Governo n.º 157, 2.º série, de 7 de Julho de 1958, etc.), assim como se revigora o carácter restritivo imprimido a certos abonos ao funcionalismo público, como suplementos e subsídios, no caso de se verificarem acumulações de cargos (Decreto-Lei n.º 33 272, de 24 de Novembro de 1943, Decreto n.º 34 430, de 6 de Março de 1945, Decreto-Lei n.º 35 886, de l de Outubro de 1946, Decreto-Lei n.º 39 842, de 7 de Outubro de 1954, etc).
Merecem citação especial, por quase exclusivamente se dirigirem ao sector privado e pelo rigor do prescrito, não só referente a incompatibilidades, como a outras restrições impostas a membros de corpos gerentes de instituições de crédito, o Decreto-Lei n.º 41 403, de 27 de Novembro de 1957, que previu a reorganização do sistema do crédito e da estrutura bancária e o Decreto-Lei n.º 42 641, de 12 de Novembro de 1959, que regulamentou o anterior e completou as suas disposições.
E, para finalizar esta sumária- resenha legislativa, é oportuno referir uma nota relativa ao tratamento que a legislação fiscal reserva às acumulações. Como é do conhecimento geral, os contribuintes do imposto complementar que aufiram anualmente, por virtude de acumulações de mais de um cargo público ou particular ou do exercício de profissão liberal acumulado com qualquer dos mesmos cargos, remuneração global superior a 120 contos ficam sujeitos a taxas de adicionamento sobre o excedente a 120 contos, que vão de 10 por cento a 20 por cento, consoante o valor daquela remuneração.
§ 9.º As acumulações e incompatibilidades - pertinência das considerações produzidas sobre limitação das remunerações
26. Por obediência a critério metodológico, seria agora de considerar o problema das acumulações e incompatibilidades daqueles mesmos ângulos de visão adoptados no exame do aspecto relativo a limitação de remunerações. Todavia, reconhece-se que, no tocante a Acumulações, o projecto dita, afinal, o limite máximo da remuneração de cada cargo exercido em acumulação e o limite máximo do conjunto dessas remunerações. Deste modo se perfilha o meio de acção já consagrado no tocante a limitação das remunerações. E como acresce a circunstância de, também no relativo a acumulações, os efeitos se dirigirem a empresas privadas, tal como se verifica quanto a limitação das remunerações, assumem aqui total pertinência as considerações formuladas a propósito da simples limitação das remunerações, prevista no projecto, tornando-se desnecessária, portanto, a sua repetição.
No tocante às incompatibilidades, por estas constituírem a segunda face do mesmo problema, a idêntica conclusão se chegará. Mas neste aspecto, e dada a concretização do projecto, definindo o alcance do dispositivo pelas funções de Ministro, Secretário ou Subsecretário de Estado e governador de províncias ultramarinas, algo parece dever acrescentar-se. Dada, porém, a natureza das considerações a fazer, melhor cabimento elos terão quando se proceder ao exame do projecto na especialidade.
§ 10.º O imposto pessoal sobre o rendimento; caracterização económica
27. Quando acima se abordou o aspecto da limitação das remunerações, observado do ponto de vista do princípio da hierarquia social, fez-se referência ao imposto sobre o rendimento, como um dos meios mais popularizados, de que se poderia lançar mão para corrigir o que, em cada momento, se entenda constituir desvio da justa repartição do rendimento. A referência foi então intencionalmente sumária, para não prejudicar a sequência da exposição e a sua boa inteligência. Julga-se oportuno não fechar estas notas de apreciação na generalidade do projecto em causa sem formular algumas considerações sobre o referido meio de correcção.
Está o País empenhado no prosseguimento de uma política de desenvolvimento económico, todos ansiando que nele se imprima ritmo acelerado. O decurso normal desse processo apresenta uma série do implicações a que pode não ser estranho o imposto sobre o rendimento.
Vulgarizou-se o brocardo, e o conceito que ele exprime, segundo o qual uma das faces daquela política é investir, para produzir, e produzir, para consumir. Se em traços largos e grosseiros a divisa acusa certo fundamento, ela carece de substanciais correctivos para a limitar aos devidos termos.
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E assim é que, basilarmente, tem de se considerar como essencial para o crescimento se processar em termos salutares ser ele dotado de equilíbrio. Só este equilíbrio afastará a eventualidade dos estrangulamentos de alguns sectores do sistema económico e garantirá quer a eficiência do investimento como fonte de produção, quer a eficiência da produção como estímulo ao consumo. O equilíbrio é atingido se o investimento for simultaneamente dirigido a grande número de sectores e se à escolha destes sectores e à determinação do grau da intensidade do investimento em cada um deles presidir o critério ditado pelas preferências dos consumidores.
28. Não é tarefa fácil para os governos imprimir aos investimentos as- direcções mais convenientes e graduá-los nos limites aconselhados, mormente se o complexo económico funciona em sistema de economia de mercado, ou até mesmo predominantemente de mercado. No domínio restrito do imposto, usado este como instrumento da política do crescimento económico, a fiscalidade deve prosseguir objectivos que se situam além dos simples resultados globais; assim, importa actuar sobre a afectação dos recursos produtivos, de modo a favorecer as actividades susceptíveis de melhor induzirem ao crescimento e, mais, desfavorecer as outras. Desde a isenção do imposto concedida às novas actividades desejáveis, o estímulo ao autofinanciamento, ou seja ao reinvestimento dos lucros, na medida em que ele se não tornar danoso ao processo de crescimento, o incitamento a ritmos acelerados de reintegração de capitais, até ao castigo do entesouramento e dos jogos especulativos dos detentores de capitais, vai uma gama de providências atinentes a consecução do objectivo almejado. Simplesmente, determinar o momento da sua adopção, o alcance a conceder a cada uma delas, o grau de intensidade que lhes deve ser atribuído, é problema eriçado de enormes dificuldades, tanto maiores quanto é certo não poder estar o julgamento isento de grande dose do critério subjectivo do julgador.
Por outro lado, a fiscalidade pode actuar sobre o consumo, de modo a alterar o quadro das preferências dos consumidores, a modificar a estrutura do consumo. Aqui, se bem que o imposto sobre o rendimento possa ser chamado a actuar, assume maior relevância, no instrumental estratégico, o imposto indirecto, que, por intermédio da discriminação dos bens de consumo, pode, ao fim e ao cabo, fazer recair maior peso de fiscalidade sobre os fruidores de mais altos rendimentos, em benefício dos de menores rendimentos.
Mas o problema oferece alguns outros aspectos. A concretização do investimento, a formação de capital real, é função primordial de fluas variáveis: a propensão para o aforro e a propensão para o investimento - a primeira, geradora da oferta de fundos a ele destinados; a segunda, geradora da procura desses fundos.
Abstraindo do eventual entesouramento, a propensão para o aforro depende do nível de rendimento. Se o imposto vai ferir profundamente o rendimento, os efeitos reflectir-se-ão na propensão ao aforro, e, consequentemente, do lado da oferta de capital, na cadeia investimento-produção-consumo.
Por sua vez, a propensão ao investimento, geradora da procura de fundos, depende, de entre outras variáveis, da eficiência marginal do capital ou, em outros termos mais rudimentares, ainda que menos rigorosos, da remuneração mais ou menos elevada dos capitais, isto é, dos lucros. Se esta remuneração não for sensivelmente mais elevada que a taxa de juro, não interessa ao empresário, real ou potencial, procurar capitais para os investir! Se o imposto vai limitar os lucros, e portanto enfraquecer aquela remuneração, a ponto de ela em pouco superar a concedida pela taxa de juro, ficará afectada a propensão para o investimento, e, por consequência; também a cadeia investimento-producão-consumo.
Caberiam aqui considerações relativas à aplicação, por parte do Governo, das receitas originadas no imposto, bem como às aplicações que os detentores dos rendimentos lhes poderiam dar eventualmente; não se formulam, porém, para não tornar a exposição excessivamente densa.
29. Todos estes considerandos mostram à evidência a delicadeza com que deve ser utilizado o imposto sobre rendimentos e que perigos acarreta, sobretudo em países que se encontram em fases não muito adiantadas de crescimento económico, qualquer providência menos ponderada levada a efeito através desse imposto. Por eles se explica também a predominância do imposto indirecto nos sistemas fiscais dos países que se situam naquelas fases de desenvolvimento económico. Ela representa - com reserva da justiça, que se supõe sempre imperante - a forma de conciliação dos três objectivos de um sistema fiscal ideal: conseguir a arrecadação de receitas importantes; manter alto nível de aforro; conservar elevada remuneração dos investimentos.
Certo é, porém, que da parte de alguns países em pleno crescimento económico se revela tendência a imprimir aos seus sistemas fiscais feição semelhante à dos sistemas fiscais de países evoluídos, nomeadamente dos países anglo-saxões, pelo empolamento da parte do imposto directo sobre os rendimentos. Uma das invocações justificativas dessa tendência é, na realidade, ponderosa: maior justiça social, fundada na progressividade do referido imposto. Mas o reconhecimento da verdade de tal invocação não obsta a que devamos entender como essencial o balanço da vantagem apontada com a caracterização económica do mesmo imposto, à qual, em termos breves, de acabar de fazer referência.
Só uma nota mais. O actual imposto, denominado «imposto complementar», incide com peso igual sobre rendimentos provenientes do trabalho e sobre rendimentos provenientes do capital, da terra ou mistos. Existe correspondência entre o grau de desenvolvimento económico e a estrutura fiscal óptima adaptável a esse grau. Em cada fase do crescimento económico a estrutura fiscal tem de caracterizar-se pela sua adaptação à matéria tributável e aos recursos disponíveis e pela aptidão de estímulo à evolução do sistema económico para o grau superior de desenvolvimento. É evidente que este imperativo, em face da complexidade, apresentada pela realidade da vida, não pode traduzir um conceito estrito ou uma concepção de alto rigorismo. Marca, em todo o caso, um limite desejável e para o qual se deverá procurar tender tanto quanto possível.
Ora, se bem que nalguns países mais evoluídos o sistema adoptado quanto ao imposto sobre o rendimento seja o da imposição global, a técnica mais correntemente seguida, nomeadamente nos países em franco crescimento económico, é a de imposições distintas, consoante a origem dos rendimentos.
II
Exame na especialidade
§ 11.º O aspecto formal do projecto
30. O projecto de lei apresenta-se, na sua feição normativa, com a forma de articulado minucioso. Ora o artigo 92.º da Constituição determina que as leis votados pela Assembleia Nacional se devem restringir à
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aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos. Se bem que o mesmo artigo negue validade à eventual contestação, com fundamento na violação desse princípio, da legitimidade constitucional de quaisquer preceitos contidos nas leis, verdade é que nenhuma vantagem há, antes desvantagem, em não obedecer à referida determinação, sem prejuízo embora do reconhecimento de casos precedentes em contrário (v. g. Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948). Acresce, no caso vertente, uma circunstância que mais impele a essa obediência. Trata-se, fundamentalmente, de uma intervenção do Estudo na actividade do sector privado. Já de si é motivo suficiente para deixar, em certa medida, ao Governo, como órgão em permanente contacto com a vida do agregado nacional, o julgamento, decorrente no tempo e variável no seu decurso, das providências a tomar, dos instrumentos a usar e das oportunidades de actuação. Mas, além, disso, e como já se expôs quando da apreciação na generalidade, a atitude que em cada momento o Governo a propósito tomar envolve tal soma de melindres, de contingências, mesmo de dúvidas, sobre a eficácia de certa providência, que se torna incompatível com a rigidez monolítica forçosamente ditada pelo carácter estrito e minucioso da norma.
Na proposta que esta Câmara apresentará nas conclusões deste parecer, com origem no projecto em exame, adoptar-se-á, por estas razões, o critério da enunciação das bases gerais do regime jurídico a vigorar; naturalmente, a designação «artigo» do projecto cederá lugar à designação «base».
§ 12.º A substância do projecto
A) Artigo 1.º
31. O corpo do artigo 1.º do projecto de lei apresenta-se nos seguintes termos:
Artigo 1.º Os corpos gerentes dos estabelecimentos do Estado e das sociedades, companhias ou empresas:
a) Concessionárias ou arrendatárias;
b) Em que o Estado tenha direito a participação uns lucros ou seja accionista com, pelo menos, 10 por cento do capital social;
c) Que explorem actividades em regime de exclusivo ou com benefício ou privilégio não fixados em lei geral;
d) Em que se verifique o previsto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 40 833;
independentemente de terem a sede social no continente, nas ilhas adjacentes ou no ultramar, quer se revistam da forma de administração, direcção, comissão executiva, fiscalização ou qualquer outra, não podem perceber remuneração superior à atribuída aos Ministros de Estado, desde que residam ou exerçam a actividade na metrópole.
A referência aos corpos gerentes dos estabelecimentos do Estado parece tornar-se supérflua, uma vez que se trata de limitação das remunerações dos elementos desses corpos gerentes e se adopta como limite o da remuneração dos Ministros. Com efeito, tal limitação e o mesmo limite já hoje se encontram estabelecidos legalmente no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, e sem que se verifiquem excepções ou dúvidas na aplicação deste preceito legal.
A enunciação das empresas visadas carece de mais demorado exame. Antes, porém, de nele entrar convém dizer que a Câmara entende - e igual foi certamente o propósito dos autores do projecto - que a referência a corpos gerentes não pode abranger os membros das mesas das assembleias gerais das sociedades por acções. Este ponto de vista baseia-se, quanto às sociedades anónimas, no artigo 171.º do Código Comercial, que atribui a administração das mesmas sociedades a uma direcção e a fiscalização desta a um conselho fiscal; por outro lado, o artigo 183.º atribui no presidente da assembleia geral ou a quem as suas vezes fizer, e aos secretários, funções que estritamente se dirigem ao funcionamento da assembleia. A mesma conclusão é fundada, quanto às sociedades em comandita por acções e às sociedades cooperativas por acções, nos artigos 201.º e 207.º do Código Comercial, que afinal remetem para as disposições aplicáveis às sociedades anónimas.
32. O artigo 1.º do projecto enumera as empresas em quatro alíneas.
A primeira alínea respeita às empresas concessionárias ou arrendatárias. É evidente que se quis abranger apenas as empresas ligadas ao Estado por contrato de concessão ou arrendamento, e não também as ligadas por idêntico contrato a qualquer entidade privada, esta última sem qualquer vínculo estadual.
Se qualquer dúvida, por absurdo, subsistisse, desaparecia por força da doutrina do artigo 2.º do projecto. Segundo este artigo, a consideram-se igualmente submetidas ao regime estabelecido nesta lei as sociedades, companhias ou empresas que mantenham perante as abrangidas pelo artigo 1.º qualquer das relações de natureza das definidas para estas relativamente ao Estado». Se à última parte, intencionalmente aqui grifada, st» conceder, como importa, um sentido de generalização, significará que todos as empresas relacionadas no artigo 1.º mantêm, no pensamento dos autores do projecto, relações com o Estado; em tal caso, das empresas concessionárias ou arrendatárias só as empresas beneficiárias de concessões ou arrendamentos de serviços públicos ou de bens de domínio público são atingidas pelo artigo 1.º
Na opinião da Câmara, e conforme se procurou demonstrar em várias passagens deste parecer, qualquer providência do tipo da que se propõe deverá contemplar as empresas concessionárias ou arrendatárias acima referidas.
33. A segunda alínea visa as empresas «em que o Estudo tenha direito a participação nos lucros ou seja accionista com, pelo menos, 10 por cento do capital social». A disposição faz surgir imediatamente um reparo. O Governo pode, em determinado momento e por forças circunstanciais de diversa ordem, verificar a necessidade ou a vantagem em adquirir acções de uma sociedade, representativas de mais de 10 por cento do capital da mesma sociedade. Desde logo tem de ser atribuída ao Estudo a qualidade de accionista com mais de 10 por cento do capital e, ipso facto, também, reconhecido o direito de participar nos lucros (dá-se, eventualmente, a simultaneidade das condições que o texto admite sejam, como de facto pode suceder, disjuntivas). Estas condições com andam a sujeição daquela sociedade ao regime proposto. Decorrido tampo, diga-se alguns meses ou semanas, ou mesmo alguns dias, o Governo conclui já não haver interesse, ou até não ser conveniente, em o Estado manter a propriedade dos títulos adquiridos e, por isso, procede à sua venda. Desde esse momento, por o Estado ter perdido qualquer uma, ou, no caso, as duas qualidades que determinavam a aplicação do regime proposto a sociedade em questão, esta liberta-se do mesmo regime. Quer
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dizer, durante aquele período, enquanto o Estado estava presente como accionista, os corpos gerentes viam limitadas as suas remunerações; terminado esse período (de meses, de semanas ou até de dias, por hipótese) as remunerações dos corpos gerentes voltavam a não obedecer a qualquer limite. Há aqui, a par de dificuldades de ordem prática, criação de situações anómalas, a denunciar um certo vazio de significado.
Em tais termos, julga a Câmara deverem ser consideradas, neste aspecto, apenas as empresas em que o Estado seja accionista ou em cujos lucros tenha participação, mas desde que tais posições estejam previstas em diploma, legal ou nos respectivos estatutos.
34. A terceira alínea respeita às empresas «que explorem actividades em regime de exclusivo ou com benefício ou privilégio não fixados em lei geral». Esta qualificação repete ipsis verbis a adoptada no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 40 833, de 29 de Outubro de 1956, diploma a que se fez já larga referência. Nada há a observar.
35. Finalmente, a quarta, e última qualificação das empresas é definida pela referência ao artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 40 833. Trata-se das sociedades concessionárias de serviço público ou de utilização de bens do domínio público, e, portanto, já referidas, como concessionárias, na primeira alínea (o que constitui ociosa repetição), dos sociedades que beneficiem de financiamentos feitos pelo Estado ou por ele garantidos, das empresas de navegação consideradas de interesse nacional e, ainda mais, nos termos daquele invocado artigo 2.º, «das referidas na parte final do corpo do artigo anterior», ou seja do artigo 1.º Ora na parte final do corpo do artigo 1.º referem-se as «sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo ou com benefício ou privilégio não previstos em lei geral» - novamente uma repetição, agora das empresas já citadas na alínea c) do artigo em comentário. Excluídas as repetições, ficam as sociedades que beneficiem de financiamentos feitos pelo Estado ou por ele garantidos, para as quais é compreensível o fundamento da sujeição ao sistema proposto (e o artigo 33.º da Constituição a elas faz referência), e as empresas de navegação consideradas de interesse nacional. Quanto a estas últimas, julga-se que se pretendeu abranger tanto as de navegação marítima como as de navegação aérea (supõe-se não se terem considerado, por desnecessário no momento presente, as de navegação fluvial).
É fàcilmente perceptível a razão por que o legislador, ao conceber o Decreto-Lei n.º 40 833, incluiu as empresas de navegação consideradas de interesse nacional no número das visadas no diploma, para as sujeitar à aceitação mo seu seio de delegados do Governo. Mas já não e do mesmo modo perceptível o motivo por que, para efeito de limitação de remunerações dos seus corpos gerentes, as empresas de navegação consideradas de interesse nacional foram no projecto distinguidas de outras empresas que, não explorando, embora, a navegação, são porventura, ou possam vir a ser, consideradas de interesse nacional.
Quanto à alínea em apreciação, é parecer da Câmara deverem ser consideradas agora apenas as empresas que beneficiem de financiamentos por parte do Estado ou por ele garantidos.
36. Outro aspecto ainda a observar no proposto artigo 1.º é o do quantum do limite da remuneração dos membros dos corpos gerentes - o atribuído aos Ministros.
É de observação comum o fenómeno que se está passando entre nós, repetição, no fim de contas, de análogo fenómeno já verificado em comunidades que ultrapassaram o estádio de crescimento em que nos encontramos. Na medida em que a iniciativa privada, no tocante a empreendimentos, vai tomando corpo, a solicitação, por parte do sector, de competências e valores, vai acentuando-se. Porque muitos desses elementos se encontram adstritos aos serviços públicos, desenha-se, de início, a sua translação do sector público para o sector privado, concorrendo para tal o maior nível de remuneração deste último, a compensar não apenas certas vantagens objectivas que o primeiro daqueles sectores concede (aposentação, etc.), mas também regalias de ordem mais subjectiva (menor risco de cessação de funções, categoria social porventura mais elevada, etc.). Segue-se depois outra fase, durante a qual o sector privado se vê coagido a elevar ainda mais o nível de remuneração, pois as suas necessidades de recrutamento crescem e se torna necessário vencer as resistências de alguns mais renitentes a deixarem o sector público e também as hesitações dos timoratos recém-lançados na vida, naturalmente mais inclinados a dirigir-se para as funções públicas, em que a luta das competências é menos dura e decisiva. É do conhecimento geral este movimento de transferência assinalado nos últimos tempos, sobretudo por parte de funcionários públicos mais jovens e, por isso, não tendo atingido ainda altas categorias na hierarquia pública, e também aquele segundo aspecto, de atracção, por parte do sector privado, exercida sobre os jovens que acabam de concluir a sua preparação escolar com assinalado ou mesmo com relativo mérito.
É inegável que o fenómeno levanta um problema que respeita à crescente deficiência no provimento dos quadros do funcionalismo público, aspecto já atrás referido, quando da apreciação na generalidade (n.º 9). O que interessa aqui dizer é que é inútil, e por vezes contraproducente, lutar contra as leis sociais - e é um facto observado a elevação do nível das remunerações no sector privado paralela ao decréscimo dos custos da produção do mesmo sector, como é facto observado a relativa rigidez das remunerações no sector público, resultando destas duas forças tendenciais o crescente afastamento das remunerações do primeiro sector das remunerações do segundo sector. E tal fenómeno verifica-se em todos os países, nomeadamente nos mais evoluídos. Tenha-se, porém, presente aquela justa e oportuna observação formulada no relatório que antecede o Decreto-Lei n.º 33 272, de 24 de Novembro de 1943: «... deve notar-se que as condições de trabalho nas actividades privadas não são, pela sua maior precariedade, perfeitamente comparáveis às do serviço público e que, quando as diferenças excederem os limites do razoável e justificável por aquela circunstância, o Estado deverá - no caminho já encetado - usar da política tributária para estabelecer justas compensações».
Além do mais, e como antes já se referiu, a exiguidade, entre nós, do efectivo dos elementos de escol parece também contra-indicar a referência, no sector privado, a nível de remuneração adoptado no sector público.
Por outro lado, a circunstância, a que antes se aludiu, da extrema diferenciação das dimensões das empresas e do grau de labor e de responsabilidade dos vários cargos de gestão na mesma empresa inculca a pluralidade dos limites de remunerações.
Parece então que, além do recurso ao imposto pessoal sobre o rendimento, se deveria atribuir ao Governo, para efeitos de limitação, o recurso a diplomas especiais, em que se tivesse em consideração a categoria e
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actividade das empresas e a natureza das funções e da maior ou menor efectividade de colaboração na gestão das empresas, o que poderia tombem ser conseguido através da aprovação dos estatutos das empresas, ou da homologação das deliberações das assembleias gerais, das comissões de vencimentos ou outros órgãos encarregados, segundo os estatutos, de fixar as remunerações.
37. O artigo em exame prescreve a extensão da sua aplicação às empresas nele nomeadas, independentemente de a sua sede se localizar na metrópole ou no ultramar, mas, por outro lado, restringe essa mesma aplicação aos membros dos- corpos gerentes que residam ou exerçam a actividade na metrópole, o que significa ficarem exceptuados os membros dos corpos gerentes das sociedades com sede no ultramar e residindo ou exercendo a sua actividade também no ultramar (ou no estrangeiro). Julga-se esta interpretação correcta, pois a expressão final de corpo do artigo 1.º do projecto, «desde que residam ou exerçam a actividade na metrópole», de certo se refere nos membros dos corpos gerentes, e não aos corpos gerentes em si próprios, uma vez que, nos termos imediatamente anteriores da mesma disposição, «não podem perceber remuneração superior à atribuída aos Ministros de Estado», forçosamente se dirige aos primeiros, e não aos segundos.
Ora, segundo o artigo 150.º da Constituição, a Assembleia Nacional é concedida atribuição de legislar para o ultramar só mediante propostas do Ministro do Ultramar e em matérias expressamente designadas no mesmo artigo, no elenco das quais só não conta o objecto do projecto de lei em exame.
É facto que o § 3.º do mesmo artigo 150.º nega o direito de contestação, com fundamento na violação desse artigo, da legitimidade constitucional dos preceitos contidos nos respectivos diplomas, mas parece não se poder justificar uma violação premeditada, como seria a de abranger, desde já, no âmbito das disposições projectadas, as empresas com sede social no ultramar. Nada impede que, no futuro, o Governo, colhida a experiência na metrópole, adapte ao ultramar os princípios que, sobre a matéria, vierem a ser promulgados. Entretanto, não parece que se ofenda o mencionado preceito constitucional se, além das empresas ultramarinas com sede na metrópole, ficarem igualmente abrangidas aquelas cuja administração nela funcione, entendendo-se que esta previdência não atinge os administradores que desempenhem os seus cargos no ultramar (ou no estrangeiro).
B) Artigo 1.º (§ único)
38. Ao corpo do artigo 1.º segue-se, no projecto, um § único, concebido nestes termos:
§ único. Considera-se para o efeito deste artigo:
a) Como remuneração dos Ministros não só o vencimento como qualquer subsídio a que tenham direito a título permanente;
b) Como remuneração dos corpos gerentes não só todas as retribuições fixas, seja qual for a sua natureza, como a eventual participação nos lucros, gratificações de qualquer espécie por funções de administração, consulta, fiscalização ou outras, bem como o montante dos impostos pessoais dos corpos gerentes pagos pela sociedade, companhia ou empresa, e as importâncias atribuídas para despesas de deslocação ou representação pessoal, na parte que excedam as ajudas de custo atribuídas aos Ministros.
A alínea a) do parágrafo em análise constitui sequela imediata da ideia que presidiu, no corpo do artigo 1.º, à fixação da remuneração atribuída aos Ministros, como limite máximo das. remunerações dos corpos gerentes. No comentário acima produzido a propósito desta última disposição já se expuseram os inconvenientes ou desvantagens que tal fixação acarretaria.
Quanto à alínea b), ela deixa transparecer com clareza duas intenções: a primeira, de evitar subterfúgios tendentes a falsear o quantitativo global de remunerações, mediante a titulação de algumas componentes destas últimas com designações propícias a desvirtuar a sua natureza; a segunda, de pôr cobro à eventual translação de impostos pessoais sobre elementos dos corpos gerentes para as respectivas empresas.
Estas duas intenções respondem a juízos que se têm generalizado, porventura com o exagero que se sabe acompanha sempre, na mentalidade popular, a suposta atribuição de benesses aos que ocupam mais elevadas posições na hierarquia social. E por isso, se bem que, em rigor, a elas não devesse ser feita alusão na lei, porque subentendidas e devidas na actuação do Governo dirigida ao objectivo consignado, talvez se possa reconhecer vantagem em as deixar. expressamente afirmadas, dando-se satisfação a um anseio que, na realidade, se tem ultimamente avolumado. E, a propósito, duas observações. Não se prevê no projecto o condicionamento da participação nos lucros, por parte dos corpos gerentes, à participação nos mesmos lucros por parte do restante pessoal das empresas - e parece oportuno prevê-lo quanto às empresas de interesse colectivo. Também não se prevê no projecto qualquer impedimento a nina prática que, a manter-se, constituiria possível subterfúgio à orientação pretendida: a remuneração devida a uma empresa das consideradas no artigo 1.º pelo exercício de cargo em corpo gerente de outra empresa reverter a favor da pessoa que exerce a representação da primeira, pessoa que nessa qualidade faz parte dos corpos gerentes desta última. E afigura-se também oportuno consignar a, proibição de tal prática.
C) Artigo 2.º
39. Segue-se, no projecto de lei, o artigo 2.º, apresentado com o seguinte texto:
Art. 2.º Considerara-se igualmente submetidas ao regime estabelecido nesta lei as sociedades, companhias ou empresas que mantenham perante as abrangidas pelo artigo 1.º qualquer das relações da natureza das definidas para estas relativamente ao Estado.
Este artigo 2.º é, no contexto do projecto de lei, complemento da classificação de empresas exposta no artigo 1.º, razão por que, no próprio projecto, melhor caberia como parágrafo deste último artigo.
Trata-se, afinal, de definir «empresas subsidiárias» na terminologia já consignada pelo Decreto-Lei n.º 40 833, e, assim, parece que só vantagem haverá em seguir a definição que o mesmo diploma adoptou: desde que metade, pelo menos, do capital de uma empresa pertença a outra, deverá considerar-se aquela subsidiária desta.
D) Artigo 3.º (corpo)
40. O artigo 3.º do projecto dispõe o seguinte:
Art. 3.º A fiscalização do disposto nos artigos 1.º e 2.º incumbe aos delegados ou comissários do Governo, ou, na sua falta, a delegados a designar pela Inspecção-Geral de Finanças, à qual cabe, em todos os casos, a superintendência e orientação da fiscalização.
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Não parece que a função de comissário do Governo, e ainda menos a de delegado do Governo - colocado, este último, par inter pares, no seio dos corpos gerentes -, se compatibilize, na prática, com o género de fiscalização previsto na projectada disposição transcrita.
Referem-se a essas funções, no tocante aos comissários do Governo, o artigo 178.º do Código Comercial e legislação complementar: o Regulamento de 10 de Outubro de 1901 (que criou a designação comissários), o Regulamento de 13 de Abril de 1911, a lei orçamental de 30 de Junho de 1913, o Decreto n.º 24, de 7 de Julho de 1913; no relativo aos delegados do Governo, o Decreto-Lei n.º 40 833, de 29 de Outubro de 1956. Se bem que os preceitos legais nestes diplomas contidos admitam o género de fiscalização de que se trata, tal fiscalização tornar-se-ia decerto susceptível de carecer de eficiência.
Acresce que o âmbito das empresas visadas pelo regime a criar é, como adiante se verificará pelas bases propostas, mais dilatado do que o hoje demarcado para a presença necessária de comissários ou delegados do Governo. E se é certo que a projectada disposição, acima transcrita, prevê a falta desses agentes e a ela pretende prover, certo é também que daí resultaria uma prolixidade de regimes de fiscalização, sempre atentatória da simplicidade e boa ordem, que importa manter.
Para mais, e agora no relativo a sociedades por acções, a Lei n.º 1995, de 17 de Maio de 1943 (que veio a suceder à Lei n.º 1936, de 18 de Março de 1936), criou um novo regime de fiscalização a que, não há muito, o Governo fez referência quando, no Decreto-Lei n.º 41 403, de 27 de Novembro de 1957 (artigo 68.º), atribuiu ao Ministério das Finanças o estudo das condições em que poderão ter execução os princípios directores do mesmo regime.
Já, de certo modo, um diploma recente, o Decreto n.º 42 501, de 9 de Setembro de 1959, limitado ao ultramar, estabeleceu para quaisquer empresas que pretendam obter concessões de utilidade pública ou beneficiárias de idênticas concessões em cuja actividade venham a intervir dinheiros públicos, um sistema condicionador que oferece relevância, neste aspecto. Trata-se, além da determinação, quando julgado necessário, de o conselho fiscal ser coadjuvado por auditores (à semelhança do previsto na Lei n.º 1995, antes citada), de submeter à aprovação os respectivos estatutos e sujeitar esta aprovação a registo na conservatória do registo comercial.
Já antes se fez menção, a propósito de limites de remunerações dos membros dos corpos gerentes das empresas, à possibilidade de os fixar através da aprovação dos estatutos, como uma das alternativas a encarar e a emparceirar com outras, como a da aprovação das deliberações das assembleias gerais, comissões de vencimentos ou outros órgãos encarregados, segundo os estatutos, de fixar aquelas remunerações - e isto salvo se a referida limitação não dimanasse de regras fixadas em diplomas especiais.
Parece, assim, que não há vantagem, e de certo modo se tornaria vicioso prever, na lei, a atribuição da função fiscalizadora expressa em novos moldes, divergentes, porventura, daqueles que o Governo está encarando no estudo referido no Decreto n.º 41 403.
B) Artigo 8.º (§ único)
41. Segue-se no projecto o § único do artigo 3.º, do seguinte teor:
§ único, ficam a constituir encargo da sociedade, companhia ou empresa quaisquer despesas efectuadas ou gratificações que o Ministro das Finanças entenda dever atribuir pelo exercício da fiscalização.
Tendo em vista o que se disse no número anterior sobre a projectada fiscalização e sobre a solução sugerida, perde cabimento a matéria contida neste parágrafo. De resto, a ideia nele preconizada de fazer suportar por cada empresa os gastos com a fiscalização que sobre ela incide não parece das mais consentâneas com as realidades. Em primeiro lugar, prestar-se-ia sempre à crítica, por parte das empresas, de supostas arbitrariedades do Poder Público, concedendo gratificações ou autorizando despesas reputadas por elas excessivas ou inúteis; depois, não constitui boa regra administrativa fazer pagar directamente o elemento fiscal pela entidade fiscalizada.
Veja-se, a propósito, o princípio consignado na base XXI da Lei n.º 1995, segundo o qual cada empresa contribui para os encargos globais da fiscalização com uma percentagem sobre a importância da sua contribuição industrial ou sobre o capital nominal.
F) Artigo 4.º
42. O artigo 4.º do projecto apresenta-se nos seguintes termos:
Art. 4.º A acumulação de cargos nos corpos gerentes das sociedades, companhias ou empresas abrangidas pelos artigos 1.º e 2.º desta lei e, bem assim, com os de quaisquer outras sociedades civis ou comerciais só será consentida quando a remuneração, nos termos da alínea b) do § único do artigo 1.º, em cada um for inferior ao vencimento dos Subsecretários de Estado, mas em qualquer caso o conjunto das remunerações totais não poderá exceder a atribuída aos Ministros de Estado.
Trata-se de disposição semelhante à do artigo 1.º do projecto no aspecto de limitação de remunerações, mas agora dirigida as acumulações e com gravame dos inconvenientes já apontados a propósito, quando da análise daquele artigo, por se prever limitação dúplice: a da remuneração de cada um dos cargos e a da totalidade das remunerações.
O objectivo, aqui, é dificultar acumulações de cargos em empresas privadas, fim expressamente visado, no artigo 40;º da Constituição, e, por consequência, em absoluto pertinente. Os meios, consignados para o atingir é que não parecem ser recomendáveis.
Dilata-se, em larga medida, a acção interventiva do Estado, pois se ultrapassa o âmbito das empresas indicadas no artigo 1.º, para a estender a qualquer sociedade, civil ou comercial. Todos os inconvenientes referidos na apreciação genérica e na apreciação especial se encontram assim fortemente agravados.
Acresce que a disposição proposta criaria um condicionalismo gerador de situações chocantes, como a que resultaria de um indivíduo membro dos corpos gerentes de duas sociedades, uma abrangida pelo artigo 1.º ou 2.º e a outra não abrangida por qualquer destes artigos, perceber pelas funções exercidas em qualquer delas remunerações inferiores às dos seus colegas de uma ou de outra que não acumulassem. Mais frisante ainda seria o contraste entre a situação, desse mesmo indivíduo ou de qualquer outro que acumulasse cargos nos corpos gerentes de duas ou mais sociedades, todas abrangidas pelo artigo 1.º ou 2.º, e cujas remunerações, portanto, estavam sujeitas a limite, com aquele indivíduo que acumulasse, como membro dos corpos gerentes, funções apenas em sociedades não abrangidas pelo artigo 1.º ou 2.º, em relação
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às quais não seria aplicável qualquer limitação de remunerações.
Poderá argumentar-se que são pretensas as situações exemplificadas, atendendo a que os contrastes de remunerações constituem exactamente o resultado da aplicação intencional de um meio restritivo ao exercício de acumulações e que no decorrer do tempo natural seria elos desaparecerem pela progressiva .desistência dos investidos em funções acumuladas. A parte este efeito se tornar duvidoso, é necessário não esquecer a perturbação que tais situações criariam 110 seio das empresas e o motivo que elos concederiam às críticas sobre uma intervenção estatal, contrária nos termos constitucionais.
Parece que a forma mais razoável de ir concedendo maior latitude à resolução do problema das acumulações, problema bifronte, como já se acentuou, será considerá-lo pela outra face, a das incompatibilidades, determinando-as, por agora, em relação àquelas empresas que em especial se entenda caírem na alçada na orientação propugnada.
G) Artigo 5.º
43. O artigo 5.º do projecto é apresentado nos seguintes termos:
Art. 5.º Todos aqueles que hajam exercido as funções de Ministro, Secretário ou Subsecretário de Estudo ou de governador das províncias ultramarinas não poderão, durante os cinco anos posteriores à exoneração do cargo, exercer quaisquer funções administrativas, executivas, directivas ou fiscais, por escolha ou eleição, nas sociedades, companhias ou empresas abrangidas por esta lei, sempre que estas sejam, ou tenham sido, dependentes dos respectivos Ministérios ou governos ultramarinos ou sujeitas à fiscalização dos mesmos.
Doutrina semelhante já havia sido, como se viu, consignada no Decreto n.º 12 527, de 23 de Outubro de 1926, mas reduzido o prazo de incompatibilidade a três anos, em vez de cinco (artigo 1.º, § 1.º). Definiu-se atrás o clima, o ambiente emocional em que foi gerado esse diploma. Vivia-se então, como é natural, aquele entusiasmo eufórico da profunda transformação política apenas iniciada; o anseio de corrigir, não caldeado pela reflexão serena, lera os reformadores a marcar limites que mais tarde n reconsideração calma faz recuar, em obediência aos ditames da razão. São nítidos, neste caso, alguns sintomas denunciadores da atmosfera em que se concebeu o diploma referido. Ele veio revogar, como se notou, decreto que uma curta semana antes havia sido publicado a regular a mesma matéria (n.º 12 493, de 13 de Outubro de 1926, publicado em 15 de Outubro), e nele se previa série longa de funções, do Legislativo, do Executivo e outras, que suscitavam incompatibilidade durante os três anos consecutivos seguintes à cessação dessas funções, com lugares nos corpos gerentes de certas empresas privadas. E fácil, pelo seu exame, avaliar da forma como as ideias, as sugestões, os alvitres, desordenadamente se atropelavam.
Acentuou-se acima o carácter de transição para ambiente de maior acalmia, revelado pelo Decreto n.º 15 538, de 1 de Junho de 1928. Agora já não se citam algumas das funções antes previstas, como se elimina a cláusula da extensão das incompatibilidades por três anos.
Surge depois o Decreto-Lei n.º 26 115, de 23 de Novembro de 1935, já não ostentando aquele carácter de transição, mas, pelo contrário, imprimindo feição definitiva à matéria promulgada. As suas disposições - ou a intencional omissão de certas disposições anteriores - são fruto natural de determinados pressupostos, entre eles o da consolidação das regras da moral, da honestidade e do decoro, no privado e no público. E, assim, continua, como é natural, a manter-se a omissão do diferimento, por três anos, de algumas, incompatibilidades, ou, se se quiser, a omissão das incompatibilidades sucessivas. Os diplomas que se seguiram, relativos aos serviços dos vários Ministérios e inspirados na doutrina do Decreto-Lei n.º 26 115 (Decreto-Lei n.º 26 116 e outros, constantes da lista que figura no parecer n.º 22/V, já referido), reportam-se a incompatibilidades, mas apenas simultâneas.
Desta forma, o projecto faz renascer, ampliada detrás para cinco anos, prática que a legislação consagrara mas que tivera duração efémera, certamente por não poder resistir à análise desapaixonada do seu conteúdo e alcance. Na verdade, a providência proposta apresenta-se de tal melindre que bem merece cuidada ponderação.
Em primeiro lugar, trata-se de tão altas funções - Ministro, Secretário e Subsecretário de Estado e governador das províncias ultramarinas - que é pouco todo o cuidado em não afectar, ao de leve que seja, o seu prestígio e, portanto, a sua autoridade. A proibição expressa no projecto não conterá implícita a suspeita, só por se entender que ela visa, exactamente, a defesa dos empossados naquelas altas funções, contra a mesma suspeita; se não fora a proibição prevista, assim se pensou decerto, ela, a suspeita, poderia vir a atingi-los injustamente. Mesmo desta forma, o raciocínio reveste-se de tão grande melindre que põe em risco o prestígio das aludidas funções.
Em segundo lugar, quando na mentalidade comum, como por felicidade acontece entre nós - e é essa uma das grandes, ainda que despercebidas, vitórias da Revolução Nacional -, se enraizou profundamente o respeito pela Administração, graças à honestidade que a inspira, a imediata condenação no conceito pública daquele governante que claudicasse na observância desse princípio de honestidade constituiria já severa pena e nada impediria quo a essa pena acrescesse outra, judicial, decorrente do processo que o próprio Governo moveria, na devida e legítima defesa da sua autoridade. São bem explícitos os artigos 114.º e 115.º da Constituição, o primeiro na imputação, a cada Ministro, de responsabilidade política, civil e criminal pelos, actos que legalizar ou praticar; o segundo, classificando como crimes de responsabilidade determinados actos, dos Ministros, Secretários e Subsecretários de Estado, entre eles os que atentarem (n.º 6.º) contra a probidade da Administração. Analogamente, e agora com vista aos governadores das províncias ultramarinas, os artigos 154.º e 157.º da Constituição acautelam suficientemente a defesa dos princípios morais.
Em terceiro lugar, a admitir-se como justificada a intenção de defesa contra a suspeita, que ditou os termos da proposta, justificação de certo modo equivalente se deveria conceder a idêntica intenção, mas dirigida aos cinco anos anteriores ao início do desempenho das funções governativas; o risco de difamação, a seguir-se a linha do pensamento inspirador do projecto, tanto poderia estar na investidura do Ministro cessante nas funções de director de uma empresa como na elevação do director da empresa às altas funções ministeriais. E então seria de dez anos o prazo necessário para ilidir a presunção suspeitosa ...
Finalmente, e como já se acentuou, reconhece-se que ainda se pode dizer muito modesto o nosso escol de valores; bem se referia no relatório do Decreto-Lei
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n.º 26 115 «a impossibilidade de prover convenientemente alguns lugares em país too pobre de competências como o nosso». Acresce que dia a dia é menos invejável o desempenho das funções governativas, quer pelo peso das responsabilidades inerentes, que a progressiva série de implicações da vida corrente torna sempre, maior, quer pelo espirito de sacrifício que tal desempenho cada vez mais exige, quer ainda por não conceder as possibilidades de rendimento que o sector privado oferece, o que é agravado ainda pelas necessidades de representação impostas pelo cargo. E daí ser diminuto o número daqueles que querem e podem, pelo seu valor, ascender às funções governativas, menor ainda que o reduzido número daqueles que não querem, mas poderiam aspirar às mesmas funções. Parece assim que são suficientes os preceitos constitucionais e que a doutrina do projecto seria danosamente perturbada com esta extemporânea intromissão.
H) Artigo 6.º
44. E concebido nestes termos o artigo 6.º do projecto:
Art. 6.º Exceptuam-se do disposto nesta lei os representantes eleitos de organizações económicas estrangeiras, quando não tenham a nacionalidade portuguesa de origem, em todos os casos em que o Conselho de Ministros, em despacho fundamentado, considere a participação dessas organizações de muito interesse para o desenvolvimento económico do País.
A disposição acabada de transcrever parece susceptível de levantar problemas no domínio jurídico, pela generalização de tratamento que estabelece ao conjunto dos que não têm a nacionalidade portuguesa de origem, adentro do qual se contam os que a passarem a ter, por aquisição, e os que se mantêm estrangeiros. Para estes últimos, não se vê qualquer fundamento para a eventual excepção preconizada, e de certo modo repugna, neste particular, a diferenciação a favor do estrangeiro; se assim é, com maioria de razõa se conclui da mesma forma para os estrangeiros naturalizados portugueses.
Acresce que a mesma disposição, ao exigir, como condição relativa às organizações económicas estrangeiras, muito interesse para ó desenvolvimento económico do País, daria origem a enormes e porventura invencíveis dificuldades de execução em estabelecer os limites entre o simples interesse e o muito interesse.
Mas abstraindo destes reparos, que poderiam ser obviados por modificações na redacção, o artigo 6.º proposto encara um pormenor cuja definição e alcance hão-de depender, em larga, se não inteira, medida, da feição que o Governo julgar procedente imprimir à política preconizada. Estatuir sobre a matéria seria, possivelmente, criar fontes de discordância na actuação do Governo e, consequentemente, dificuldades que porventura comprometeriam o sucesso das providências tomadas.
I) Artigo 7.º
45. O artigo 7.º do projecto reza o seguinte:
Art. 7.º Para todos os efeitos desta lei consideram-se os serviços autónomos, os organismos corporativos ou de coordenação económica, bem como as instituições de previdência e os capitais de qualquer deles, equiparados, respectivamente, ao Estado ou a capitais do Estado.
A equiparação visada deve ser observada de dois ângulos de visão: um, o da limitação das remunerações e regime de acumulações e incompatibilidades, no sector Estado; outro, o da caracterização de certas empresas privadas, no respeitante à relação de dependência do Estado que elas apresentem.
Considere-se o primeiro ponto de vista.
A propósito do artigo 1.º, já se aduziram as razões por que parecia inútil repetir preceitos em vigor, nos mesmos termos em que eles se encontram expressos - e isso acontecia em relação à limitação de vencimentos no quadro do funcionalismo público.
A invocação, neste projectado artigo 7.º, dos serviços autónomos parece desnecessária. Não se trata, decerto, de serviços autónomos dos corpos administrativos, porque não seria de admitir a preocupação de equiparar estes serviços ao Estado e não prever a mesma equiparação para os próprios corpos administrativos, que, aliás, se tornava desnecessária. Visam-se, portanto, os serviços autónomos do Estado, e esses sem dúvida alguma se encontram abrangidos pela designação «estabelecimentos do Estado» usada no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115.
A equiparação prevista para os organismos corporativos fere indubitavelmente princípio elementar da orgânica corporativa, para a qual se está, com felicidade, acentuando, no momento presente, o sentido de autodeterminação, que, aliás, desde a origem a informa, mas que, mercê da necessidade de formação educativa, de sua natureza lenta, se tem mantido atenuado até agora. A disposição em causa nega esse princípio, com a agravante de sugerir, por equiparação expressa, a nociva estatização dos órgãos corporativos; a este respeito, assume forte significado a orientação do legislador quando, pelo Decreto-Lei n.º 42 046, de 23 de Dezembro de 1958 (artigos 5.º e 6.º), ao tornar extensivas determinadas disposições do Decreto-Lei n.º 26 115 a funcionários ou empregados de alguns organismos, não incluiu nestes últimos os organismos corporativos.
É certo que este significado veio a sofrer mais tarde atenuação, quando, por despacho proferido pelo Conselho de Ministros em 17 de Setembro de 1947 (Diário do Governo n.º 226, 1.ª série, de 29 de Setembro de 1947), ao interpretarem-se as disposições do Decreto-Lei n.º 26 115, se tornou a limitação dos vencimentos extensiva aos funcionários dos organismos corporativos. Na alínea a) do mesmo despacho esclarece-se: «... não podendo nenhum servidor, quer do Estado, quer dos corpos administrativos, quer de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa ou dos organismos corporativos, ou de coordenação económica, mesmo na hipótese de exercício cumulativo ou no desempenho de funções especiais, perceber importância total superiora.
Todavia, ou a interpretação assim dada peca por demasia de latitude, ou ela goza, pelo contrário, de idoneidade. Num caso ou noutro, tornar-se-ia desnecessária a referência: no primeiro, por ser conveniente reparar um excesso; no segundo, por o Governo já ter expressamente consagrado a interpretação.
Acresce que certas disposições, a aceitar-se a pretendida equiparação, se tornavam flagrantemente irrelevantes; é o caso da aplicação dos limites de remunerações aos corpos. gerentes dos sindicatos, funções cujo desempenho é, por lei, gratuito.
A invocação das «instituições de previdência» também parece merecer reparo. Em primeiro lugar, só há vantagem em obedecer às designações já consagradas
pela lei; no caso, a designação adoptada é «instituições e previdência social» (Lei n.º 1884, de 16 de Março de 1935). Em segundo lugar, e nos termos legais, a disposição abrange, além das instituições de previdência dos organismos corporativos, das caixas de reforma ou
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de previdência, das instituições de previdência dos servidores do Estado e dos corpos administrativos, também as associações de socorros mútuos, organismos, estes últimos, no seio dos quais a intervenção do Estado seria sempre perturbadora e muitas vezes supérflua; basta lembrar o caso de alguns, intitulados montepios, cujos corpos gerentes, pelo menos em um deles e que ocupa lugar proeminente no meio mutualista, exercem as funções sem remuneração de qualquer espécie.
A referência aos organismos de coordenação económica é desnecessária, pois, além de lhes serem atribuídas funções oficiais (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 26 757, de 8 de Julho de 1936), é da competência do Ministro a fixação dos vencimentos ou gratificações dos presidentes e vice-presidentes das comissões reguladoras e das juntas nacionais e dos directores e directores adjuntos dos institutos (§ único do artigo 7.º do mesmo diploma).
Isto, quanto a limitação das remunerações. No tocante a acumulações e incompatibilidades, a equiparação prevista no artigo em exame não teria qualquer efeito diferente daquele que resulta da legislação em vigor, uma vez que o estatuído no projecto quanto a acumulações não respeita aos funcionários públicos e quanto a incompatibilidades especifica quatro categorias de funções públicas: Ministro, Secretário de Estado, Subsecretário de Estado e governador de províncias ultramarinas.
Considere-se agora o segundo ponto de vista, segundo o qual importa definir o conceito de Estado para efeito da caracterização dos investimentos em certas empresas privadas.
Neste aspecto torna-se, na realidade, necessário prever disposição esclarecedora, uma vez que podem surgir dúvidas sobre se, por exemplo, a posição de accionista ou de participante de lucros numa empresa, ocupada por um organismo de coordenação económica, deve, ou não, ser equiparada à posição tomada pelo Estado.
No relativo a serviços autónomos do Estado (e que preferível é designar por estabelecimentos do Estado, designação que, aliás, se adoptou no artigo 1.º do projecto e se harmoniza com os termos do Decreto-Lei n.º 26 115) e aos organismos de coordenação económica, nenhuma dúvida se levanta.
Quanto aos organismos corporativos, seriam válidas as considerações acima produzidas quando se abordou o aspecto da limitação de remunerações, se não fora tratar-se agora de aplicação de capitais. A circunstância, então referida, de ainda se conservar atenuado o sentido de autodeterminação dos organismos corporativos assume no caso muito maior relevância, pois necessariamente se tem de admitir caber ao Estado o papel de orientador na aplicação de capitais de que os mesmos organismos disponham. Se assim é, parece que, enquanto a autodeterminação não for plena, tais organismos devem equiparar-se, para o efeito em questão, ao próprio Estado.
No que toca às instituições de previdência social, parece não se levantarem dúvidas quanto às instituições de previdência dos organismos corporativos (se estes últimos devem ser equiparados, necessàriamente as suas instituições de previdência também o devem ser) e às instituições de previdência dos servidores do Estado ou dos corpos administrativos. Quanto às caixas de reforma ou de previdência, nenhuma dúvida se levanta em relação às dos servidores do Estado ou dos corpos administrativos; e as outras, do sector privado, não diferindo, nem em natureza, nem em regime jurídico, das instituições de previdência dos organismos corporativos (caixas sindicais), parece ser-lhes também adequada a equiparação.
No relativo às associações de socorros mútuos, quando inseridas no sector privado, essas não apresentam qualquer caracterização que justifique assimilação ao Estado, para o efeito em causa; seria até, porventura, mais um golpe desferido contra o princípio mutualista, já de si tão enfraquecido entre nós.
Em síntese, poder-se-á dizer que, para o fim em vista, devem ser equiparadas ao Estado as instituições de previdência suciai para as quais está prevista a inscrição obrigatória, uma vez que as associações de socorros mútuos, únicas instituições a excluir, são de inscrição facultativa.
J) Artigo 8.º
46. Preceitua o artigo 8.º do projecto:
Art. 8.º São revogados o artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115 e o § 1.º do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 40 833, bem como todas as leis especiais que disponham diferentemente.
Para boa inteligência do conteúdo transcrito indicam-se os textos das disposições cuja revogação se prevê:
Artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, de 23 de Novembro de 1935:
Art. 27.º Fica expressamente proibida a atribuição de vencimentos superiores aos dos Ministros, aos directores e administradores de estabelecimentos do Estado, de sociedades, companhias ou empresas concessionárias ou arrendatárias em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista por força de diploma legal a que a constituição das mesmas entidades está sujeita.
§ 1.º do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 40 833, de 29 de Outubro de 1956 (transcreve-se também o corpo do artigo, cuja leitura é imprescindível para boa compreensão do § 1.º do mesmo artigo):
Art. 6.º Os administradores por parte do Estado terão remuneração idêntica à dos demais administradores (não seria revogado).
§ 1.º Nos casos em que essa remuneração exceda o vencimento atribuído aos Ministros de Estado, o cargo de administrador por parte do Estado não será acumulável com qualquer outro em corpos gerentes de sociedades civis, ou comerciais (parágrafo a revogar).
As revogações previstas são contra-indicadas na linha de pensamento directora das considerações anteriores. Quanto ao artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, manter-se-ia em relação aos estabelecimentos do Estado e seria tacitamente revogado, na parte referente às empresas, pelas novas disposições a promulgar - se é que, como atrás se referiu, não é já de aceitar essa revogação pelo disposto no § 1.º do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 40 833. Quanto à revogação deste último preceito, ela perde fundamento, uma vez que se aceita, como se viu, deverem os limites das remunerações dos corpos gerentes de empresas ser desligados do limite fixado no projecto.
L) Artigo 9.º
47. O artigo. 9.º, e último, do projecto preceitua:
Art. 9.º Esta lei aplica-se:
a) Quanto aos vencimentos fixos, desde o mês imediato ao da sua publicação;
b) Quanto às demais retribuições, desde o começo do ano social em curso naquela data.
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A disposição, no que toca à alínea b), revela-se de tal dureza que, em muitos casos, a sua aplicação, mesmo sem nímio rigor, seria ofensiva de direitos e, porventura, até inexequível. É o caso de summum, jus, summa injuria. De facto, se a lei fosse publicada próximo do termo do ano social, as gratificações ou outras retribuições, excepto vencimentos fixos, percebidas pelos membros dos corpos gerentes nos meses decorridos desde o princípio do mesmo ano teriam de ser reembolsadas à entidade que as havia pago, na parte excedente ao limite fixado. Por força da lei, seriam deste modo alteradas, com efeito retroactivo, condições do contrato, ainda que possivelmente tácito, entre a mesma entidade e os referidos membros dos corpos gerentes, que muito bem poderiam ter-se negado ao desempenho das funções se previamente conhecedores das inovas condições impostas. E a dar-se o caso de qualquer desses indivíduos já ter falecido o reembolso poderia ser impossível.
Mas parece que a disposição oferece as mesmas características das últimas comentadas, isto é, a sua feição de pormenor classifica-a de inadequada aos termos gerais de enunciação dos regimes jurídicos, feição que, como já se assinalou, o artigo 92.º da Constituição preceitua para as leis votadas pela Assembleia Nacional.
III
Conclusões
§ 13.º Considerações finais
48. Do exposto anteriormente pode concluir-se julgar esta Câmara merecer atenção e novo tratamento a matéria visada no projecto em exame. A essa atitude levam as considerações que se produziram na apreciação na generalidade do referido projecto, todas elas influenciadas pela preocupação de se defender a moralização do administração pública e dominadas pelos imperativos de carácter social - pela justiça entre ou cidadãos que o artigo 29.º da Constituição impõe como um dos objectivos da organização económica da Nação.
No domínio da especialidade, e ao fazer a análise dos vários artigos do projecto, já tomou esta Câmara posição quanto à conveniência de se legislar em determinado sentido e quanto à medida em que seria de perfilhar o que se contém no articulado do projecto.
As bases que a seguir se apresentam inspiram-se no que se escreveu e também no seguinte:
Julga a Câmara justificar-se a ampliação do regime legal regulador das acumulações e incompatibilidades, assim como a intensificação do recurso ao imposto pessoal sobre o rendimento, como corrector dos proventos excessivos, resultantes do exercício de cargos em corpos gerentes de empresas privadas. Parece ainda a esta Câmara impor-se a adopção de providências atinentes a evitar a translação dos encargos fiscais com incidência nas remunerações dos dementas dos corpos gerentes das empresas, para estas últimos, assim como de providências destinadas a impedir a viciosa classificação das mesmas remunerações, com o fim de iludir normas limitativas ou fiscais. Também julga a Câmara dever promover-se, relativamente às empresas de interesse colectivo, a generalização da prática de fazer comparticipar o pessoal nos lucros quando os corpos gerentes usufruam de tal benefício.
No tocante a limitação de remunerações pelo exercício de cargos nos corpos gerentes, à Câmara parece dever ela ser extensiva a todas aquelas empresas que apresentem uma razão peculiar de dependência do Estado, um determinado vínculo de subordinação ou sujeição ao Estado. Entende, porém que essa limitação deve oferecer um poder de maleabilidade suficiente para se adaptar com justeza - e com justiça - à multiplicidade e diversidade dos casos que a vida real apresenta.
Se para certas empresas, de reduzida actividade o fácil gestão, a remuneração de Ministro constituiria limite excessivamente elevado, para outras, sobre cujos elementos gestores recaem enormes responsabilidades e a exigência de pesado labor, o mesmo limite, na escala nacional e da generalidade dos outros países, seria reduzido. Por outro lado, e considerada uma empresa, nos seus corpos gerentes há funções para o desempenho das quais o esforço solicitado não justificaria, limite tão elevado, como outras funções há de tal forma exigentes de constante presença e actuação, poder de decisão e sentido das responsabilidades que só outro limite, mais alto, com elas seria conforme.
Desde que há empresas em relação às quais vigoram, previstas em diplomas especiais ou em contratos, disposições que não obedecem nos preceitos que se propõem, convirá prever desde já a impossibilidade de prorrogações ou celebrações de novos contratos em que se consagrem situações excepcionais no tocante ao regime das remunerações. Se os princípios jurídicos impedem a revogação unilateral de disposições contratuais ou constantes de diplomas especiais, manda a justiça e a moral que não continuem a subsistir, para além dos prazos de vigência actuais, situações à margem do regime geral que se estabelecer.
Finalmente, e na sequência do que se disse a propósito do artigo 1.º (n.º 37), julga-se que as regras enunciadas seriam de aplicar, por ora, apenas à metrópole, ainda que para o efeito se incluíssem as empresas cuja actividade se exercesse no ultramar, mas desde que a sua sede ou administração se localizasse ou funcionasse na metrópole.
§ 14.º O projecto de lei proposto
49. Com a justificação que decorre de todas as considerações produzidas, a Câmara apresenta o seguinte texto, em substituição do projecto de lei n.º 27:
Projecto de lei
BASE I
O Governo ampliará e generalizará a actual regulamentação das incompatibilidades e acumulações, determinada pelo artigo 40.º da Constituição Política, e tomará providências para corrigir os proventos excessivos resultantes do exercício de cargos em corpos gerentes de empresas privadas.
BASE II
Para a consecução dos fins indicados na base anterior, deve especialmente o Governo:
a) Utilizar o imposto pessoal sobre o rendimento como corrector dos proventos referidos na mesma base;
b) Impedir que os encargos fiscais com incidência nas remunerações provenientes do exercício de cargos em corpos gerentes de empresas privadas sejam por estas suportados;
c) Adoptar as providências necessárias para que as limitações e encargos fiscais que incidam sobre aquelas remunerações recaiam sobre a sua totalidade, seja qual for a forma ou título que se atribua às mesmas remunerações.
BASE III
1. Consideram-se em situação especial para o efeito do disposto nas bases seguintes:
a) As empresas de que o Estado seja accionista ou em cujos lucros tenha participação, desde que tais po-
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sições estejam previstas em diploma legal ou nos respectivos estatutos;
b) As empresas concessionárias ou arrendatárias de serviços públicos ou de bens do domínio público;
c) As empresas que explorem actividades em regime de exclusivo ou com benefício ou privilégio não previstos em lei geral;
d) Às empresas que beneficiem de financiamentos feitos pelo Estado ou por ele garantidos.
2. São equiparados ao Estado, para os efeitos da alínea a) do número anterior: as autarquias, ns estabelecimentos do Estudo, os organismos corporativos ou do coordenação económica e as instituições de previdência social obrigatória.
BASE IV
O Governo promoverá que a participação dos corpos gerentes nos lucros das empresas privadas referidas na base anterior dependa da atribuição de idêntico benefício ao pessoal em serviço nas mesmas, pela forma e na medida consideradas socialmente justas.
BASE V
1. O exercício de funções em corpos gerentes de empresas abrangidas pela base III não é acumulável:
a) Com o exercício de mais de uma dessas funções em empresa também abrangida pela base III;
b) Com o exercício de mais de uma dessas funções em sociedades subsidiárias da mesma ou de outras sociedades abrangidas também pela base III;
2. É também incompatível o exercício de funções em corpos gerentes das empresas abrangidas pela base III com o desempenho de cargos da idêntica natureza em mais de uma sociedade subsidiária.
3. Para os efeitos desta lei, desde que metade, pelo menos, do capital de um empresa pertença a outra, considera-se aquela subsidiária desta.
BASE VI
A remuneração correspondente ao exercício por uma empresa abrangida pela base III de cargos em corpos gerentes de outra empresa constitui obrigatoriamente receita da empresa-sócia, não podendo a tal título ser abonada por qualquer das empresas seja que quantia for à pessoa que exercer a representação da sociedade, desde que tal pessoa faça parte dos corpos gerentes desta.
BASE VII
A remuneração dos membros dos corpos gerentes das empresas abrangidas pela base III deverá ser limitada:
a) Ou segundo regras a fixar em diplomas especiais, tendo em atenção a categoria e a actividade das empresas, a natureza das funções e a efectividade da colaborarão na gestão da empresa;
b) Ou mediante a aprovação dos estatutos, quando deles constem os elementos definidores da remuneração, ou da homologação das deliberações das assembleias gerais, comissões de vencimentos ou outros órgãos encarregados pelos estatutos de fixar as remunerações, tendo-se também em atenção os critérios estabelecidos na alínea anterior.
BASE VIII
No termo dos períodos em curso, os contratos existentes e celebrados entre o Estado e as empresas abrangidas pela base III que tenham dado origem às situações previstas na mesma base não poderão ser renovados sem que tenham caducado quaisquer disposições constantes de diploma especial ou de contrato que aos respectivos corpos gerentes atribuam regime diverso do estabelecido nesta lei e nos diplomas que a regulamentarem.
BASE IX
A presente lei é aplicável a todas as empresas que tendam sede na metrópole ou cuja administração nela funcione, ainda mesmo que a sua actividade seja exercida no ultramar.
Palácio de S. Bento, 14 do Março de 1960.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Afonso Rodrigues Queiró (1 - Não tive a satisfação de poder concordar com boa parte da apreciarão na generalidade, parecendo-me inconcludentes várias das, aliás, verdadeiramente doutas e eruditas considerações aí feitas.
2 - Quanto ao contra projecto proposto pela Câmara, não lhe dei o meu voto nos dois pontos seguintes:
a) Providências para corrigir os proventos excessivos resultantes do exercício de cargos em corpos gerentes de empresas privadas (bases I e II). Não me pareceu aconselhável utilizar discriminatòriamente o nosso imposto pessoal sobre o rendimento (imposto complementar), em relação a proventos provenientes do trabalho, para mais incertos quanto ao seu montante e duração. Por outro lado, sustentei ser pràticamente impossível impedir que estes encargos fiscais discriminatórios se repercutam sobre as empresas, vindo a ser, afinal de contas, suportados por elas.
b) Limitação das remunerações dos membros dos corpos gerentes das, lato sensu, chamadas empresas de interesse colectivo (bases III e VII). Pareceu-me deverem estes proventos sofrer limitações, não pelos motivos aduzidos no parecer, mas apenas porque a designação dos membros desses corpos gerentes não é sempre, notoriamente, fruto de opções de carácter puramente económico-administrativo, quer quando se trata das assembleias gerais a elegê-los, quer quando se trata da administração pública a indicar os seus representantes. Se a escolha dos membros dos corpos gerentes correspondesse sempre o apenas a um juízo sobre a idoneidade deles como administradores, não seria legítimo limitar-lhes a lei os vencimentos, dado que, apesar de tudo, estamos perante empresas privadas. É curto que, nestas empresas, há quem seja eleito pelas assembleias gerais exclusivamente com base nos seus méritos como administrador, não parecendo justificado que se limitem legalmente as remunerações que as empresas estão dispostas a atribuir-lhe. Mas aqui, como em outros casos, «tem de pagar o justo pelo pecador»: não é viável distinguir, a este respeito, entre os que são eleitos sem interferência do motivos extra-administrativos e os que o são com intervenção de motivos
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desta ordem. Não vejo, por isso, outra solução senão a lei estabelecer indistintamente limites que sejam o mais baixos possível - não tão baixos, porém, que induzam os administradores de verdade a desinteressar-se do emprego da sua actividade em tal género de funções.
Entendi, por outro lado, que a lei em preparação pode bem pronunciar-se sobre as limitações a estabelecer, não considerando procedentes as razões que no parecer se aduzem para deferir ao Governo a sua fixação. Nesta orientação, inclinei-me para que a lei consigne duas limitações diferentes, e apenas duas: uma para as remunerações dos representantes da Administração e entidades equiparadas nos corpos gerentes das empresas de interesse colectivo; outra para os restantes elementos dos corpos gerentes. Os primeiros, em meu modo de ver, por uma questão de hierarquia e de justiça relativa, nunca deveriam receber remuneração superior à dos Ministros; os segundos não poderiam perceber remuneração superior a mais 50 por cento.
3 - No parecer desta Câmara n.º 17/VII ficou previsto que, nesta oportunidade, se estudaria o problema da acumulação de empregos públicos com empregos em empresas privadas, designadamente de interesse colectivo. Não consegui da Câmara que correspondesse agora ao que ficou então por lembrança. Julgo que a regulamentação do problema do limite das remunerações ficará claramente incompleta sem a adequada disciplina deste aspecto do estatuto da função pública).
Augusto Cancella de Abreu. (Assino «vencido» o presente parecer porquanto, não me convencendo ou não me bastando os argumentos da sua generalidade - ou não interessando, na sua extensa divagação, no ponto de vista em que me coloco - mantenho a minha concordância com os critérios por que se traduz a generalidade do projecto de lei apreciado.
Com efeito, tenho a opinião de que a Assembleia Nacional e, portanto, a Câmara Corporativa não devem deixar de estabelecer, elas próprias, o limite concreto das remunerações visadas. Não reconheço dificuldade na indicação, pelo que respeita à metrópole, de um único limite geral, pois se trata de um limite, e não de uma fixação de vencimentos. E entendo que não só essa limitação como outras providências propostas sobretudo se impõem pela sua conveniência política - da qual a Assembleia Nacional é órgão especial de apreciação e o principal julgador, não sendo aconselhável nem curial que protele e relegue para o Governo decisões de tal alcance ou que se furte às próprias disposições eficientes de pormenor.
Por outro lado, também se me afigura que os restantes preceitos do projecto de lei, no seu conjunto e alguns especialmente, respondem melhor do que os do parecer tis exigências morais de uma justa sobriedade social e à urgência das correcções que a nossa consciência política e a opinião nacional reclamam com insistência.
Pelo que respeita à apreciação na especialidade - chamem-se ou não «bases» as diferentes parcelas em que a matéria se divida, pois o que constitucionalmente importa é o conteúdo, e não a nomenclatura - também não voto os comentários do parecer sobre os pormenores do projecto de lei, sem prejuízo do respeito que merecem os raciocínios desenvolvidos, muitos dos quais, quanto a mim, apenas deslocados na oportunidade.
Sem me ocupar de aspectos restritos de redacção, observo apenas o seguinte sobre esses pormenores do projecto de lei:
a) No seu artigo 1.º deverá referir-se, logo de início, assim como no § único, aos membros dos corpos gerentes» e não «os corpos gerentes»; e convirá definir melhor as entidades abrangidas na alínea a) do corpo do artigo, esclarecendo expressamente que se trata de todas as concessionárias ou arrendatárias do Estado ou dos corpos administrativos, portanto de todas as que sejam de interesse colectivo;
b) Ao texto do artigo 2.º convirá aditar «ou aos corpos administrativos»;
c) Para evitar efeito retroactivo, convirá substituir na alínea b) do artigo 9.º as palavras «desde o começo do ano social em curso naquela data» por «desde a data dessa publicação».
Creio ainda que na futura lei se deverá incluir duas novas disposições: uma equivalente à sugerida na base IV do presente parecer e relativa ao condicionamento da participação nos lucros das empresas, outra equivalente à sugerida na base VI do parecer e relativa à remuneração pelo exercício de funções em representação das empresas.
Considero que também será útil que fique expressamente esclarecida na futura lei a aplicação de sanções pela falta de cumprimento das diferentes disposições que contém).
Fernando Andrade Pires de Lama.
Guilherme Draga da Cruz. (Perfilho a declaração de voto do Digno Procurador Afonso Rodrigues Queiró).
José Pires Cardoso.
Albano Rodrigues de Oliveira.
António Trigo de Morais. (A fixação, expressa em lei, do limite de remuneração dos corpos gerentes das empresas metropolitanas ou ultramarinas, com sede ou administração na metrópole, em que o Estado esteja representado, considero-a exigência primeira de ordem moral no momento presente, por contribuir para a supressão de desníveis, causadores de sérias preocupações à consciência cristã da Nação e por constituir caminho aberto para uma mais justa distribuição de bens).
António Jorge Martins da Motta Veiga.
Eugênio Queirós de Castro Caldas.
Francisco Pereira de Moura. (Dou inteiro acordo às conclusões do parecer consubstanciadas no sistema de bases que a Câmara apresenta. Mas pela própria importância e melindre da matéria, lamento que não se tenham ensaiado alguns passos de discussão, em sentido m ais concreto, acerca dos limites de remuneração, pois essa tentativa poderia revelar-se muito útil no caso de vir a
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transformar-se em lei a base VII do texto de substituição do projecto. E também não me parece suficientemente explícito o motivo essencial que leva a Câmara a perfilhar o fundo doutrinário do projecto, e que é, a meu ver, um desejo de moralização de vida social e política portuguesa, circunstância que confere à intervenção carácter absolutamente excepcional, a corrigir abusos, mas também, sem qualquer dúvida, urgente.
Ainda afirmando todo o respeito que me merece a opinião da Câmara, não posso aceitar as ideias expostas nos n.ºs 10 a 14 do parecer sob o título «A limitação das remunerações e o regime da repartição do rendimento».
Efectivamente, constitui o termo de toda a argumentação a hipótese de a aplicação do projecto promover uma redistribuição contrária aos princípios da política social, na medida em que transfere remunerações dos «trabalhadores» da administração das empresas para a conta de remunerações do capital, não suscitando, além disso, qualquer efeito de redistribuição pessoal.
Ora, em primeiro lugar e a ser assim,- não compreendo que se sancione uma medida de consequências absolutamente incompatíveis com os princípios sobejamente defendidos pela Câmara em outros pontos do parecer; e considero deslocada, além de muito discutível, a justificação encontrada em termos de crescimento económico, para aceitar essa ausência de redistribuição pessoal do rendimento.
Mas - e é o segundo ponto, para mim o fundamental - não creio suficientemente estabelecida a hipótese que atrás se referiu. Assentando o raciocínio em uma teoria «sociológica» da repartição, não encontra correspondência na realidade portuguesa a cisão entre o grupo dos administradores e o grupo dos proprietários ou capitalistas das empresas (que na economia do parecer se entendem sempre sem referência nos pequenos accionistas): todas estas situações correspondem a um único e bem diferenciado grupo sócio-económico, sendo totalmente artificial a separação que se fez, ainda imbuída das análises «funcionais» da repartição que se quis, e bem, pôr de lado. Mais ainda: não parece válida nos termos propostos a admissão da cláusula cesteris paribus, que constitui mero expediente teórico facilitando os raciocínios, mas está claramente ultrapassada, nas aplicações em discussão: pois nem o rendimento a distribuir é invariante, nem a dicotomia «salário» dos corpos gerentes-lucros das empresas esgota as categorias reais de participações nesse rendimento.
De tudo concluo que o princípio da limitação das remunerações dos corpos gerentes também encontra defesa à luz de uma doutrina propondo mais justa repartição do rendimento, independentemente de outros argumentos em que se apoie, e sem embargo de reconhecer que não constitui o mais adequado processo para alcançar essa justiça distributiva.
Em mais dois pontos tenho de fazer alguns reparos. A doutrina do § 4.º da discussão na generalidade, respeitando aos «imperativos de carácter social», surge-me como mera repetição de afirmações e análises já anteriormente produzidas, cora parte das quais, aliás, venho de me declarar em discordância. E o trecho final do § 7.º (n.ºs 23 e 24) afigura-se pouco claro: realmente, se o Estado deve «corrigir os desmandos ou os desvios de actuação que ameacem ferir o
interesse nacional e se «o Governo deve manter contínua vigilância para que não sejam ofendidos os princípios que consagram a posição superior do Estado perante o agregado nacional», creio que a ausência de intervenção a corrigir abusos, designadamente quando estiverem em causa empresas ligadas ao sector público, é que põe em risco a ideia de independência do Estado, podendo levar a opinião a acreditar que o Governo «se enredou na trama dos interesses privados». Deixar tais funções correctivas à organização corporativa, seja qual for o escalão e a modalidade a que se faça apelo, parece-me perigosa demissão do Poder Público, que, por acréscimo, nem sequer encontra qualquer justificativo do ponto de vista da doutrina e da concepção corporativa tais como eu as entendo). Adelino da Palma Carlos. (Votei contra a limitação das remunerações. O imposto pessoal sobre o rendimento é, quanto a mim, o único corrector dos proventos que deve ser utilizado. Vencido neste ponto, aprovei o parecer e as bases nele sugeridas).
José Gabriel Pinto Coelho. (Não posso aceitar de forma alguma a base IV, em que afinal se proclama o princípio de que só é admissível a participação dos corpos gerentes nos lucros das empresas privadas quando o restante pessoal ao serviço das mesmas goze de idêntico benefício.
Advertirei desde já que esta atitude não significa de modo algum que se rejeite a participação do pessoal ou dos trabalhadores nos lucros das empresas. Considero antes perfeitamente admissível esta forma de retribuição do trabalho, que nada tem de contrária ao direito.
A retribuição normal do trabalho prestado para a consecução ou realização do empreendimento, que constitui o fim ou objecto do ente social, é o salário, tomada a expressão no seu sentido amplo, sendo o lucro a contrapartida ou remuneração do capital investido na empresa. Mas nada tem de chocante atribuir-se ao trabalhador, que exerce uma função meramente executiva, uma remuneração suplementar e eventual, retirada dos lucros. Tem essa forma de remuneração a vantagem de estimular os trabalhadores a realizar um esforço mais produtivo, interessando-os nos resultados da exploração exercida. Sempre tenho acolhido com simpatia todos os meios de assegurar ao pessoal das empresas, que fornece actividade de trabalho, melhores condições de existência e sobretudo meios suficientes de subsistência.
Mas o que não posso admitir é que se confunda e se equipare a actividade de trabalho do pessoal, de natureza puramente executiva, com a actividade de direcção ou administração da empresa, equiparação que está implícita no princípio formulado de que só pode admitir-se participação dos corpos gerentes nos lucros desde que se assegure essa participação também ao pessoal trabalhador.
É certo que, embora nas empresas colectivas (sociedades) os corpos gerentes ou órgãos de direcção sejam constituídos por sócios, pois só nas sociedades por quotas excepcionalmente se admite que os gerentes sejam pessoas, estranhas à sociedade, a participação que aos dirigentes, como tais, se atribui nos lucros é verdadeira remuneração do trabalho de direcção que prestam, como remuneração é o vencimento fixo que, com base nos estatutos, se lhes concede. Tanto
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assim que este vencimento lhes é devido, quer haja lucros, quer não.
Mas, repito, é ilegítimo equiparar este trabalho, esta actividade dos gerentes ou administradores, ao trabalho puramente executivo do pessoal.
Não pode abstrair-se de que os corpos gerentes da sociedade (a administração) são os órgãos constitucionais da pessoa colectiva. A vontade por eles manifestada tem-se como sendo a vontade da própria pessoa colectiva, sujeito de direito. Costuma, por isso, dizer-se que os elementos componentes- destes órgãos emprestam a sua vontade à pessoa colectiva, criação artificial do direito, que, como tal, não é provida de vontade própria, como a pessoa física.
Isto nos mostra já como a actividade ou trabalho dos membros dos corpos gerentes - os administradores - se destaca do trabalho que presta o pessoal. Ao trabalho de direcção e orientação que realizam se devem essencialmente os lucros da exploração social; e suo os administradores os verdadeiros responsáveis pelos resultados desfavoráveis, quando os não tenham determinado circunstâncias exteriores, que excedem as suas possibilidades de previsão e de defesa.
Tão especial é a sua posição no complexo económico da empresa que, como já acentuámos, essas funções são por princípio apanágio dos sócios. E ao referir-se a elas á lei fala na «faculdade de administrar», atribuída aos sócios, que tanto pode ser conferida no próprio pacto social como por acto posterior. Além disso, quanto às sociedades anónimas, a lei exige dos directores a prestação de caução, sem o que não poderão entrar em exercício, o que tudo concorre para distinguir esta actividade da do pessoal.
Tão evidente é a índole particular da actividade dos membros dos corpos gerentes que, quando se consideram como assalariados, se lhes á correntemente na linguagem económica a designação de assalariados de circunstância, também usada no parecer desta Câmara. E neste aparece bem vincada a diferença existente entre os «assalariados de circunstancia» e os outros assalariados, cuja retribuição apresenta características especiais, sendo formada tanto pelo salário directo como pelo salário indirecto, que, nas suas diversas formas, mal se conceberia que fosse aplicável aos primeiros (v. n.ºs 11 e 12 do parecer).
Compreende-se, pois, perfeitamente que se arbitre uma pequena percentagem nos lucros aos administradores (corpos gerentes) sem que igual vantagem seja concedida aos trabalhadores em geral. Trata-se de uma forma de premiar o acerto da sua obra de gestão, a forma feliz por que souberam orientar a exploração. Se considerarmos que os administradores são sócios dotados da faculdade peculiar de administrar, a concessão de uma percentagem nos lucros pode estabelecer-se até a partir da ideia de que estes, podem, por determinação especial dos estatutos, ser atribuídos aos sócios por critério diverso da proporcionalidade com as suas quotas no capital.
O que, portanto, tem para mim de chocante o princípio enunciado na base IV é a colocação em pé de igualdade, no que toca à participação nos lucros, de duas classes inteiramente diversas de prestadores de actividade de trabalho e, consequentemente, de actividades de índole inteiramente diversa. Uns, sócios da empresa, revestidos da faculdade de administrar esta; outros, estranhos à empresa, simples prestadores de trabalho executivo. A actividade dos primeiros é de direcção e superior orientação da exploração social; a dos segundos é de pura execução da tarefa que por aqueles lhes foi cometida, ainda, que alguns deles sejam dotados de aptidões especializadas, que nem todos possuem.
O princípio contido na base IV está, pois, em contradição com a doutrina do parecer, quando nele se assinala a diferença que destaca os assalariados de circunstância» dos demais assalariados.
A equiparação destes dois termos, no que respeita à participação nos lucros, reflecte de algum modo a tendência, que se vai infelizmente acentuando, no sentido do que podemos chamar a hipertrofia do valor do factor produtivo - trabalho, no complexo económico da empresa. Considerando-se em tempos remotos os trabalhadores vítimas da ambição e do egoísmo do capital, desencadeou-se um vigoroso e intenso movimento no sentido de proteger aqueles contra os abusos dos detentores do capital. Nessa corrente marca uma posição relevante a encíclica Rerum Novarum, inspirada por admiráveis princípios de boa moral cristã.
Mas dessa corrente, dominada por sãos princípios de justiça social, quiseram apoderar-se certos elementos exaltados que procuram subverter os dados do problema, exacerbando num ambiente de ódios a chamada luta de classes. Foram assim levados ao exagero de sobreestimar o valor do trabalho, do mesmo passo que procuram aviltar o do elemento «capital». A própria organização política da sociedade humana passa nesta orientação a configurar-se como «a república dos trabalhadores». Não é outra a visão política do comunismo.
Como reacção contra este erro altamente prejudicial surge a política de coordenação e colaboração de capital e de trabalho, inspiradora do nosso Estatuto do Trabalho Nacional. Esta se nos afigura a orientação razoável. Mas é necessário preservá-la de todas as infiltrações mais ou menos directas e aparentes do exagero que deixámos assinalado da valoração do factor trabalho, que tem como reverso o aviltamento do capital.
Tão-pouco posso dar a minha concordância aos princípios que informam, no contraprojecto, os disposições sobre acumulações e incompatibilidades.
Nessas disposições, como, aliás, nas que respeitam à limitação das remunerações, abstrai-se aptidão ou competência das pessoas para o exercício de funções nos corpos gerentes - mais especialmente na direcção ou administração - das empresas. Vê-se no investimento num cargo social apenas a conquista de uma fonte de receita, de um rendimento. E isto depois de se reconhecer, como se reconhece no parecer, que escasseiam os valores no nosso meio social e que se torna por vezes difícil encontrar nas classes de elite as competências necessárias para orientar o dirigir certas empresas. A preocupação dominante, que faz esquecer tudo o mais, é impedir que alguns acumulem grandes ganhos, embora estes provenham do seu trabalho e do reconhecimento dos seus especiais merecimentos,
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representando o prémio do estudo e da experiência de muitos anos.
Invocam-se então princípios vagos de moral social e de mais justa distribuição da riqueza, como se fosse imoral conseguir altos proventos como remuneração de trabalho honesto e fosse injustiça social atribuir mais volumosa remuneração a quem dá provas de maior merecimento e é capaz de maior actividade de trabalho.
E o que torna o critério ainda mais estranho, para não dizer absurdo, é que, se uma pessoa, mesmo de mediana cultura, consegue, por felizes circunstâncias, -alcançar na indústria altos lucros e acumular uma fortuna, se um cirurgião ou um advogado de talento percebem no fim de cada ano grossas quantias em honorários, o público não se choca, nem julga ofendida a moral social. O sucesso destes profissionais só lhes granjeia cada vez mais sólida clientela. Não se reclamam para estes felizes medidas especiais que assegurem mais equitativa distribuição da riqueza. Só os proventos de remuneração dos membros dos corpos gerentes das empresas reclamam tais providências.
Não julgo razoável o critério, e penso que as chamadas reclamações da opinião pública, em que se pretende apoiar a «necessidade política» das providências contidas no projecto em discussão, se inspiram em sentimentos menos elevados do que aqueles que se proclamam. Não creio por isso que se deva dar ouvidos a tais reclamações, além de tudo, porque com isso se não alcança qualquer vantagem política. Temos que ver antes com que sectores de opinião deve o Estado contar e quais, são as esferas sociais que mais concorrem para o progresso e riqueza da Nação). João Faria Lopes, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA