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REPÚBLICA PORTUGUESA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 124

VII LEGISLATURA 1961 27 DE FEVEREIRO

PARECER N.º 38/VII

Projecto de decreto-lei n.º 515

Arborização rodoviária

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 105.º da Constituição, acerca do projecto de decreto-lei n.º 515, elaborado pelo Governo, sobre a arborização rodoviária, emite, pela secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral, Justiça e Obras públicas e comunicações), à qual foi agregado o Digno Procurador António Pereira Caldas de Almeida, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade.

1. Consulta o Governo a Câmara Corporativa acerca do projecto de decreto-lei n.º 515, que revela a sua intenção de suprimir o último período de um parágrafo de um artigo do Estatuto das Estradas Nacionais.
Em face de um diploma de objecto tão restrito, mal pode supor-se, de início, que esta extrema simplicidade formal encubra um problema com aspectos verdadeiramente substanciais.
No entanto, assim é, como se verá.

2. Relatando os antecedentes do preceito de lei que se propõe alterar, o relatório do projectado diploma começa, precisamente, por formular o problema substancial ao dizer que «desde longa data ... as plantações nas estradas suo objecto de reclamações por parte dos
proprietários confinantes ...», os quais, e alegando prejuízos para as construções ou para as culturas ..., pretendem conseguir a remoção do arvoredo rodoviário ou, pelo menos ..., o corte dos ramos que pendem sobre as suas propriedades» (n.º 1).
Mas, depois de invocar um exemplo histórico relativo ao caso, o relatório passa logo ao plano do direito positivo.
Recorda o preceito do artigo 2317.º do Código Civil, segundo o qual é lícito aos particulares plantar árvores a qualquer distância da linha divisória das propriedades, podendo, porém, o proprietário vizinho cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno ou os ramos que sobre este penderem, embora sem ultrapassar a linha perpendicular divisória, se o dono das árvores, sendo rogado, o não fizer no prazo de três dias. E nota que até à promulgação do Estatuto das Estradas Nacionais nunca aquele direito foi reconhecido aos proprietários confinantes com as estradas.
Pelo contrário, vários regulamentos previam a possibilidade legal para a Administração de suprimir os ramos do arvoredo particular que se estendessem sobre o leito das estradas ultrapassando o plano vertical correspondente à linha divisória do chão do domínio público. Assim dispuseram, sucessivamente, o § 2.º do artigo 157.º do Regulamento da Conservação, Arborização e Polícia das Estradas, aprovado pelo Decreto de 21 de Fevereiro de 1889, o § 2.º do artigo 67.º do Regulamento da Conservação, Arborização, Polícia e Cadastro das Estradas, aprovado pelo Decreto de 19 de

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Setembro de 1900, e, finalmente, o § 3.º do artigo 88.º do Regulamento das Estradas Nacionais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36 816, de 2 de Abril de 1948.
Da simples leitura destas normas legais tira o relatório a conclusão de que nunca o citado artigo 2317.º do Código Civil foi aplicável aos proprietários particulares em relação às árvores do domínio público, designadamente as implantadas nas estradas nacionais, conclusão aliás consagrada pela jurisprudência (n.º 2) e que se abona ainda com as soluções dadas ao mesmo problema pelo direito vigente e pela jurisprudência firmada em França (n.º 3).

3. Em seguida o relatório do projectado decreto-lei refere, resumidamente, a alteração de regime jurídico feita pela Assembleia Nacional, da qual resultou a situação que o diploma em estudo se propõe fazer desaparecer.
Ora, convém fazer a Listaria do preceito vigente com um pouco mais de pormenor.
Publicado em 2 de Abril de 1948 o Decreto-Lei n.º 36 816, na sessão da Assembleia Nacional do dia 16 do mesmo mês propôs o Sr. Deputado Antunes Guimarães, que ele fosse submetido a ratificação (Diário das Sessões n.º 146). Seguindo esta petição seus trâmites, foi aquele diploma apreciado em sessão da Assembleia Nacional e, submetido a ratificação, foi esta concedida com emendas (idem, n.º 182).
Deste facto resultou, nos termos regimentais, ter-se o diploma transformado em proposta dê lei, pelo que, tendo esta sido enviada à Câmara Corporativa, aqui foi elaborado sobre ela o parecer n.º 36 da IV Legislatura (ideia, suplemento ao n.º 189).
No § 3.º cio artigo 88.º do estatuto aprovado- pelo Decreto-Lei n.º 36 816 dispunha-se textualmente:

Se houver árvores que, embora situadas fora da faixa referida no corpo deste artigo, estendam os seus ramos sobre a zona da estrada definida no artigo 10.º e desse facto possam resultar quaisquer inconvenientes para a mesma ou para o trânsito, poderão ser cortados pelo pessoal dos serviços de estradas os ramos que ultrapassarem o plano vertical que passa pela linha limite da referida zona, se o dono dessas árvores, sendo avisado, o não fizer no prazo de três dias.

A esta disposição nada opôs ou observou o citado parecer n.º 36 [idem, idem, pp. 526 (9)]. Mas, enviado este à Assembleia Nacional e fazendo-se aí a discussão da nova proposta de lei, foi pelo Sr. Deputado Antunes Guimarães apresentada uma proposta de aditamento àquele §.3.º, que dizia textualmente:

... reconhecendo-se o mesmo direito aos proprietários confrontantes, em relação a árvores existentes na área das estradas.

Posta em discussão esta proposta, não suscitou qualquer observação, e, submetido a votação, foi o aditamento aprovado (idem, n.º .199, p. 715). E no texto aprovado pela Comissão de Legislação, e Redacção, decreto da Assembleia Nacional, ao § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais foi aditado o seguinte:

Igual direito é reconhecido aos proprietários interessados, em relação a árvores existentes na área das estradas (idem, 7.º suplemento ao n.º 199).

Tal é a redacção que se acha transcrita ipsis verbis no lugar próprio do diploma em vigor - o § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei n.º 2037, de ] 9 de Agosto de 1949.

4. Delineados os termos do problema posto pelo projecto de decreto-lei à consideração da Câmara, é fácil tirar uma ilação. O Governo pretende eliminar uma parte de um preceito de lei por cuja força, sem, atenção nos antecedentes reguladoras da matéria, se torna aplicável às relações entre o Estado e os particulares, em certo sector delimitado, o regime jurídico próprio da mesma matéria aio campo do direito privado.
Não lia dúvida de que esta intromissão de um princípio de direito civil aia esfera de acção do direito administrativo é anómala. Mas a infinita variedade das situações sociais pode, em princípio, levar o legislador a agir sem preocupações rígidas de equilíbrio e de harmonia de sistema. Daí aquilo que aparenta, ser ilógico e mesmo aberrante poder ser, afinal, socialmente útil e, portanto, digno de consagração legal.
Por este modo, o problema agora em discussão deve ser visto não somente pelo seu aspecto formal e, por assim dizer, abstracto, mas também pela sua face substancial e concreta: tem ou não razão de ser o preceito que o Governo se propõe eliminar?
É o nó da questão.

5. Para optar pela negativa pode dizer-se que a arborização das estradas se reveste de utilidade pública, pela segurança dos terrenos que facilita, pelas sombras que proporciona durante o Verão, pelo relevo que muitas vezes dá às paisagens. E é fora de dúvida que uma bela fieira de árvores ornamentais pode transformar-se num motivo de desfeamento se as copas delas aparecerem desequilibradas por cortes feitos somente segundo o critério do respeito por uma linha limite imaginária, isto é, se os golpes dados revelarem mutilações sistemáticas.
Em reforço desta orientação podem invocar-se por analogia e até por maioria de razão as restrições ao direito de propriedade que o Estatuto impõe aos donos dos terrenos marginais das estradas.
Com efeito, só por motivo de consideráveis prejuízos em. prédios existentes pode ser autorizada a remoção de árvores do Estado sitas na zona da estrada, devendo, ainda assim, ser pagas pelo interessado as despesas a efectuar (artigo 138.º).
Por outro lado, a nenhum, proprietário é, em geral, permitido fazer cortes de árvores, não só na zona da estrada como ainda na faixa de terreno que se estenda até 5 m da linha limite desta zona, sem prévia autorização [artigos 87.º e 127.º, alínea 7;)].
E também aos proprietários confinantes será negada autorização para o corte ou poda profunda das árvores cuja manutenção tal como se encontram seja conveniente por contribuir para o embelezamento ou segurança da estrada (artigo 133.º).
Se os direitos dos proprietários à livre utilização, remoção e transformação das suas próprias árvores estão assim cerceados, seria decerto incongruente admitir que a simples invocação de um prejuízo pudesse permitir-lhes exigir ou fazer cortes nas árvores do Estado.

6. Mas é preciso ver a outra face do problema.
A falta de discussão na Assembleia Nacional acerca do aditamento ali proposto, do qual resultou o acrescentamento ao primitivo § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais, priva o intérprete de um dos melhores elementos para o apuramento da justificação da vontade da Assembleia. Mas, por outro lado, a facilidade com que, submetido a votação, foi aprovado induz a crer ter o discutido aditamento significado que essa vontade era geral e tinha um fundamento óbvio; e este só pode ter sido o intuito de impedir os prejuízos que podiam dimanar da situação legal anterior.

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Na verdade, a possibilidade desses prejuízos deriva das repetidas quedas de folhas e, sobretudo, da incidência de sombra durante o Verão e do escorrimento da água da chuva no Inverno, factos estes geralmente nefastos às culturas e até às habitações.
Estes inconvenientes sito do conhecimento geral e a eles começa por aludir o relatório do projecto em discussão; lembrando mesmo as queixas dos proprietários que deram origem a um parecer da Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas, cujas recomendações, aliás todas tendentes a disciplinar e orientar a arborização marginal das estradas, foram mandadas observar por Portaria de 19 de Fevereiro de 1875.
Ora, se o prejuízo para as propriedades confinantes com as estradas existe, de facto, deve a lei, pelo respeito que merece o direito de propriedade, permitir, em princípio, seja evitada a sua continuação.

7. Reduzido a estes termos, pode dizer-se que o problema é o do conflito entre dois interesses, público um e privado o outro.
Tudo se simplificaria se, no plano dos valores relativos, o interesse público fosse de tal maneira valioso em relação ao outro que devesse postergá-lo. Mas não é o caso; também o interesse privado tem valor eminente, segundo os princípios da ordem social em vigor.
Pode, assim, dizer-se que ambos os interesses são dignos da protecção da Lei, e, por isso, o conflito terá de se resolver mediante uma fórmula de equilíbrio entre eles. E tal fórmula só não deverá ser empregada quando se tratar de árvores cuja integridade deva ser respeitada, precisamente por deverem considerar-se de específico interesse ornamental.
Nestas condições, torna-se manifesto que o comando legal cuja revogação o- projecto em discussão se propõe decretar não deve subsistir tal qual está redigido. o Acresce que não pode haver paralelo entre os poderes da Administração e os dos particulares, porque o não há entre a situação de uma e as dos outros. Enquanto para os particulares o corte dos ramos das suas árvores que pendem sobre as estradas será normalmente uma operação simples, feita debaixo da vista directa dos donos, e para a qual o prazo de três dias parece razoavelmente bastante, para a Administração o prazo é pequeno.
Não pode deixar de ter-se em conta que a operação de corte lucrará em ser feita nas épocas próprias, por pessoal adestrado e' em obediência a processos que poupem o mais possível as árvores atingidas, enfim dentro de uni condicionalismo adequado à defesa de um interesse geral.
Ora, se se aceitar esta orientação, é patente que o prazo previsto na lei vigente é absolutamente impróprio. O aviso dos interessados ao pessoal do serviço das estradas, a comunicação deste aos superiores hierárquicos, as ordens para o trabalho e a execução dos cortes, tudo em três dias, é uma sucessão de actividades incompatível com a acção, naturalmente morosa, de uma administração hierarquizada.

8. Por este modo, e em resumo, a Câmara Corporativa dá a sua aprovação, na generalidade, ao projecto do decreto-lei em apreciação.

II

Exame na especialidade

9. É tão escasso o âmbito do projecto em causa que a discussão dele na generalidade e na especialidade dificilmente se podem apartar. Por isso, na segunda só se vê lugar para dizer que a Câmara entende dever o projectado decreto-lei ser substituído por um diploma em que, constituindo o actual artigo único daquele o artigo 1.º, em artigo 3.º se acrescente ao artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais, em substituição da parte suprimida do seu § 3.º, um novo parágrafo, no qual se dê satisfação nos modos de ver expostos na generalidade.

III

Conclusões

10. Pelos fundamentos expostos, é parecer da Câmara Corporativa que o projecto de decreto-lei em discussão deve ser substituído por outro com a redacção seguinte:

Artigo 1.º É suprimido o último período do § 3.º do artigo 88.º do Estatuto das Estradas Nacionais, aprovado pela Lei n.º 2037, de 19 de Agosto de 1949.
Art. 2.º Ao mesmo artigo 88.º é aditado o seguinte:

§ 4.º Quando na zona das estradas haja árvores que estendam os seus ramos sobre propriedades particulares e desse facto resultem apreciáveis prejuízos, os legítimos possuidores daquelas poderão requerer se proceda ao corte dos iramos que ultrapassarem o plano vertical definido no parágrafo anterior.
Os requerimentos serão apresentados durante os meses de Outubro, Novembro, Dezembro e Janeiro, indicando-se neles o número e a localização das árvores e os prejuízos que causam.
Nos quinze dias posteriores à apresentação dos requerimentos a direcção de estradas decidirá se as árvores devem ou não considerar-se de interesses histórico, ornamental ou paisagístico ou se, independentemente dessa circunstância, devem considerar-se relevantes os prejuízos invocados.
A decisão será notificada aos interessados no prazo de três dias.
No caso de indeferimento com base no carácter ornamental ou paisagístico das árvores, caberá recurso, no prazo de dez dias, para o presidente da Junta Autónoma de Estradas. Se o indeferimento se fundamentar no carácter histórico das árvores, caberá recurso para o Ministro da Educação Nacional. Do indeferimento baseado na falta de relevância dos prejuízos invocados cabe recurso hierárquico nos termos gerais.
Deferido o requerimento, procederá o pessoal dos serviços das estradas aos cortes que lhe forem ordenados, no prazo de oito dias. Decorrido este prazo sem os cortes terem sido efectuados, poderão os requerentes faze-los.

Palácio de S. Bento, 10 de Janeiro de 1960.

Afonso de Melo Pinto Veloso.
Afonso Rodrigues Queira (entendi que, não estando as estradas, como parcelas do domínio público, sujeitas à generalidade das restrições de interesse privado, não há que atribuir aos proprietários confinantes o direito de exigir o corte dos ramos do arvoredo plantado na zona de terreno que as estradas pertence. No conflito entre o interesse privado e o interesse público

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da viação, aquele deve ceder em favor deste. É neste sentido, segundo creio, o direito comparado, e é também a favor desta solução a tradição do nosso direito. Acresce que uma disposição como a advogada no presente parecer ficaria sendo incoerente em relação a outras, citadas no preâmbulo do projecto de decreto-lei, pertencentes ao Estatuto das Estradas Nacionais. Votei, por isso, pela aprovação do projecto tal como foi apresentado à Câmara).

Augusto Cancella de Abreu.
Guilherme Braga da Cruz.
José Pires Cardoso.
João Mota Pereira de Campos.
José Gabriel Pinto Coelho.
Adelino da Palma Carlos.
José Frederico do Casal Ribeiro Ulrich.
Albano do Carmo Rodrigues Sarmento.
António Pereira Caldas de Almeida.
José Augusto Vaz Pinto, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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