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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 37
VIII LEGISLATURA - 1963 22 DE ABRIL
Projecto de lei n.º 19/VIII
Reembolso, pelos subsequentes usuários, dos custos de linhas ou instalações novas que os consumidores de energia eléctrica hajam pago às entidades distribuidoras
BASE I
Os consumidores de energia eléctrica que hajam pago às entidades distribuidoras os custos de linhas ou instalações novas necessárias a satisfação das suas requisições de fornecimento poderão exigir, dentro do prazo de dez anos, a contar da data da entrada em serviço de tais linhas ou instalações, que os subsequentes usuários das mesmas os reembolsem desses custos, por rateios
em proporção das extensões de linhas por cada qual aproveitadas.
BASE II
Competirá às entidades distribuidoras calcular, cobrar e liquidar aos interessados estes reembolsos.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 18 de Abril de 1963 - O Deputado, Carlos Monteiro do Amaral Netto.
Projecto de lei n.º 20/VIII
Valorização da vida local
1. De há muito se manifesta no País acentuada preocupação pelo declínio da nossa vida local, traduzido na escassez de escóis locais e na penúria financeira e política das autarquias. Esta preocupação vem assumindo, com o decurso dos anos, forma clamorosa nalguns sectores, ou desapontamento daquilo que ainda resta de uma élite local, gravemente comprometida na sua vitalidade e nas suas possibilidades de revigoramento.
O Governo conhece as dificuldades encontradas, a cada passo, para descortinar pessoas capazes, a quem possa confiar a gestão dos concelhos ou mesmo dos distritos; há-de sentir a falta de gente para constituir qualquer comissão política ou de cultura, de âmbito e formação concelhios ou distritais, não desconhece que, em muitas vilas, já hoje é preciso andar de candeia, como o filósofo da Grécia, para descobrir alguém em condições de ocupar o lugar de presidente da câmara.
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E preciso encarar o problema com decisão e também com sensibilidade política. Um escol de carácter local pode representar factor poderoso no equilíbrio político e social do nosso país, além de constitua grande reserva de elementos, escol insubstituível, onde se poderiam vir a recrutar muitos dos grandes servidores da Nação.
2. Vai o Estado injectando de obras a província, num esforço a que é preciso fazer justiça, esforço enorme, tenaz, persistente. Mas a vida local agoniza, à míngua de escóis estáveis, e as autarquias continuam quase indigentes, face às tarefas que delas se reclamam e que devem cumpra. No Parecer sobre as Contas Gerais do Estado de 1968, no volume respeitante à metrópole (Lisboa, Imprensa Nacional, 1960), a Assembleia Nacional fez uma incisava referência às «Pressões regionais» (pp VI e VII), como factor «perceptível há muitos anos» que «transparece, porém, mais intenso e clamoroso nos últimos tempos e adquiriu até vigor que surpreende em certos casos». Acrescenta o parecer.
Recentes medidas legislativas e financeiras procuram enfrentar problemas instantes, como os relativos ao abastecimento de água e salubridade, caminhos e estradas regionais, electrificação e outros. E embora se considere viável, com recursos financeiros visíveis, executar um plano de melhorias locais, a grandeza do problema ainda não é de molde a poder considerá-lo resolvido num próximo futuro - sobretudo quando se verifica que muitas autarquias locais não dispõem de receitas adequadas a realização de projectos indispensáveis ao bem-estar e progresso nas condições de vida dos povos que administram.
Têm, pois, os recursos do Estado de suprir as deficiências locais de modo a evitar que o País se transforme num retalho de zonas ricas e de zonas pobres, de regiões dotadas com o indispensável à vida e ao progresso e de zonas em que, por deficiência de meios financeiros, se perpetuam rudimentares condições higiénicas e outras.
Todas estas circunstâncias podem transformar-se, com o tempo, num factor político que enfraqueça a unidade nacional e leve a reclamações e queixumes, aliás já audíveis naquelas áreas aonde ainda não foi possível levar o sopro renovador que caracteriza a política nacional.
Não cabe no âmbito da iniciativa parlamentar acudir às dificuldades regionais atrás referidas, mas apontam-se, neste relatório sucinto, para acentuar as incidências que porventura manifestem na decadência da vida local tal como havia sido notado, já em 1957, nas conclusões de exaustivo ciclo de trabalhos do Centro de Estudos Político-Sociais.
Como células vivas do corpo da Nação, impõe-se combater tudo aquilo que possa tender ao enfraquecimento das nossas autarquias, designadamente através de uma planificação económica com base regional. E, se foram a concentração da indústria e a procura de lugares mais bem remunerados ou de uma vida mais confortável e atraente que arrastaram as populações para os grandes centros, há que promover a desconcentração industrial, realizar maior descentralização dos serviços públicos, dotar as localidades com um mínimo de atractivos e de conforto, valorizar, o mais possível, a posição política dos municípios (Problemas de Administração Local, edição do Centro de Estudos Político-Sociais, Lisboa, 1957, pp 557 e 558).
3. No presente projecto de lei alinham-se princípios gerais, em que poderá assentar uma regulamentação cuidada é criteriosa do Governo. E preciso romper, abrir caminho. Nada mais se pretendeu do que elaborar algumas bases gerais, segundo as quais se poderá porventura processar, após indispensável regulamentação, certo revigoramento da vida local, bem como a dignificação das autarquias, que urge transformar em elementos válidos e dinâmicos da política nacional. E por sabermos corresponderem a um anseio do País se enunciam sob a forma de projecto de lei.
Quer queiramos ou não, grande realidade política está ali, nas autarquias, naqueles pedaços de tema, onde vivem e sofrem almas simples, cujos horizontes reduzidos lhes ampliam, na diversificação de perspectivas, os problemas e as ansiedades.
Nos grandes meios vivem-se, em geral, as abstracções porque todos, no fim de contas, mais ou menos deixamos enlear-nos. Pode gritai-se por uma doutrina, agitar-se uma bandeira política, pode, enfim, criar-se grande barafunda à volta desta ou daquela personalidade. Na terra, não! Os problemas agigantam-se à medida que o horizonte diminui, as perspectivas transformam-se inteiramente, e quase tudo gira ao redor de problemas concretos, comezinhos, imediatos.
Há uma lei de cartografia segundo a qual a nitidez da carta está na razão inversa da grandeza da escala. Quanto maior for a escala, menor haverá de ser a nitidez do mapa. Esta lei é também exactíssima para se compreender a verdadeira grandeza dos problemas locais à medida que diminui a escala, assumem proporções maiores os assuntos e os conflitos. E se, no grande mundo, ou no mapa de grande escala, pormenores diversos se diluem ou se apagam, nos pequenos mundos eles emergem, avolumam-se, tomam proporções notórias.
Aspecto significativo todos os exércitos actuam à base de cartas de pequena escala, pois só assim podem conhecer e reconhecer o terreno que pisam, os acidentes que os espetam, as cotas traiçoeiras que porventura se ocultem aqui ou além.
Na vida social há-de ser o mesmo, se quisermos trabalhar com segurança e com eficácia. Temos de ser realistas, e o real está ali, onde os homens no geral entendem que mais vale uma boa água de rega e lima do que toda uma filosofia política, e que mais vale um fontanário a tempo e horas, ou um caminho de carro ao pé da porta, do que dez discursos dos melhores discursadores.
Mas, assim como através de uma pequena fresta, ou de uma nesga de janela, se pode contemplar e abarcar a imensidade do céu, também numa pequena teria se têm a percepção e a consciência nítidas de toda a grandeza do Mundo e dos graves problemas da Pátria. A vida local é na verdade, o espelho do Mundo. A nossa gente diz «quem vê o seu povo vê o Mundo todo».
4. Indeclinável dever do Estado é fixar o homem à terra ligá-lo a ela por vínculos sólidos e duradouros. O sentido de pátria pequena constitui o cerne do melhor patriotismo. O homem preso à sua terra por vínculos morais familiares sociais e patrimoniais é elemento são e factor de ordem. O mesmo não acontecerá com o nómada, o desgarrado, o desenraizado, desprendido dos limites que na sua terra o envolveriam. Por outro lado, o localismo, o amor da terra, o bairrismo, são forças actuantes e muito poderosas. É dever do Estado aproveitá-las em toda a sua plenitude.
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Usando da faculdade conferida pelo artigo 97.º da Constituição Política, sem deixar de atender à 2.ª parte do referido preceito constitucional, e nos termos das disposições regimentais aplicáveis, faço entrega na Mesa da Assembleia Nacional do seguinte projecto de lei.
BASE I
É dever do Estado promover o desenvolvimento dos recursos humanos das autarquias locais, acelerando a formação de base e superior dos naturais que devam servir nos quadros das actividades públicas e privadas.
BASE II
Para a realização do objectivo fixado na base anterior, as leis e os regulamentos deverão estabelecer um condicionalismo que assegure a estabilidade das famílias, contrarie o êxodo dos valores locais para os grandes centros, bem como o nomadismo burocrático, estimulando o amor à teria e o sentido do dever de servir nos quadros locais.
BASE III
Para satisfazer simultaneamente os valores locais e a unidade da família, as leis e os regulamentos devem favorecer a fixação dos casais na mesma localidade sempre que mando e mulher exerçam uma actividade profissional, especialmente nos quadros do funcionalismo.
BASE IV
1 Os lugares dos quadros da administração civil, incluindo a administração local e os órgãos ou serviços locais da Administração Central, sejam ou não de livre nomeação, devem ser preferentemente preenchidos por naturais da terra ou por pessoa que ali haja fixado residência definitiva.
2 Esta preferência estende-se os permutas de lugares do funcionalismo, que serão permitidas e estimuladas quando se destinem a fixar os permutantes, ou um deles, na teria da naturalidade, ou a assegurar a estabilidade da sua família.
BASE V
A legislação do trabalho e, especialmente, os contratos colectivos de trabalho deverão orientar-se pelos princípios fixados na presente lei, prevendo designadamente a situação dos casais em que um dos cônjuges exerça uma função pública e o outro uma actividade privada.
BASE VI
1. Para a constituição dos corpos administrativos ou outros órgãos colegiais das autarquias só podem ser eleitos os naturais e pessoas que ali hajam fixado residência definitiva.
2 Quando a nomeação do presidente da Câmara recaia em pessoa que não seja natural do próprio concelho nem ali haja fixado residência definitiva, na portaria de nomeação deverão constar os motivos determinantes da escolha.
BASE VII
O auxílio prestado pelo Estado, por autarquias locais ou institutos públicos para a formação escolar de qualquer nível dos particulares, a título individual, designadamente por meio de bolsas de estudo, deve subordinarão a preferência de o beneficiário servir na terra da naturalidade, no domínio da especialidade obtida e por tempo duradouro.
BASE VIII
A planificação do desenvolvimento regional haverá de ter em conta a necessidade de prever a valorização do escol local e a criação de empregos para a plena utilização dos técnicos formados.
BASE IX
A mobilização dos recursos públicos, incluindo os taxas e os impostos, deverá atender à necessidade de uma repartição que habilite os órgãos das autarquias locais a exercer plenamente as suas funções de gestores do bem comum local.
BASE X
Tendo em vista a necessidade de enriquecer os quadros das províncias ultramarinos, será facilitada a fixação no ultramar de casais em que ambos os cônjuges exerçam uma profissão, prevendo-se especialmente a possibilidade de comunicação entre os quadros metropolitanos e ultramarinos.
BASE XI
O Governo promoverá a publicação dos regulamentos necessários à boa execução da presente lei.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 16 de Abril de 1963 - O Deputado, Júlio Alberto da Costa Evangelista.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA