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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 43
VIII LEGISLATURA -1963 l DE AGOSTO
ADITAMENTO AO PARECER N.º 11/VIII
Projecto de proposta de lei n.º 5O1
Propriedade da farmácia
Declaração de voto do Digno Procurador José Gabriel Pinto Coelho referente ao parecer n.º 11/VIII (projecto de proposta de lei n.º 601-Propriedade da farmácia):
l Discordo do parecer e desejo justificar a minha discordância com a seguinte declaração de voto
N&O posso admitir, salvo o muito respeito pelas opiniões em contrário, que se atribua a propriedade da farmácia exclusivamente aos «farmacêuticos», entendendo-se por esta expressão os diplomados com o curso superior de Farmácia.
Ao preconizar esta medida o projecto de proposta de lei n.º 601 invoca as exigências da saúde pública, alegando que seria extremamente perigoso que exercessem esta profissão pessoas que se determinassem apenas pelo interesse material inerente a qualquer ramo de comércio, sem outras preocupações que não fossem as de angariar lucros; pessoas, enfim, que, sem o curso de Farmácia, nem sequer terá conhecimento e consciência dos perigos que podem resultar do fornecimento e da aplicação de certos medicamentos.
Não contestamos que as pessoas nos habituadas com o curso de Farmácia, ainda que honestas e escrupulosas, não suspeitarão muitas vezes dos graves inconvenientes para a saúde que poderão derivar do uso de um medicamento. Mas não deve esquecer-se, por outro lodo, que a farmácia constitui, no aspecto económico, uma empresa comercial, que se explora, como qualquer outra, com Animo no lucro; e grossos sãos os proventos que podem auferir-se, quer com a confecção dos produtos farmacêuticos, quer com a sua simples venda
Sabemos perfeitamente que a exploração desta «empresa comercial» reclama cautelas especiais e exige conhecimentos técnicos o cientificas que habilitem a prevenir os perigos e inconvenientes para a saúde pública inerentes ao exercício da actividade
Uma coisa, porém, é a propriedade ou a «titularidade» da empresa, da farmácia-estabelecimento mercantil, outra o exercício da actividade farmacêutica Quanto a este exercício é que se tomam necessárias cautelas particulares, que só se asseguram ou realizam através da competência profissional do farmacêutico diplomado Ora para efectivar esta garantia basta que se exija que em todas as farmácias não pertencentes a «farmacêuticos» diplomados a direcção técnica esteja a cargo do um farmacêutica nestas condições.
À objecção fundamental que se formula contra esta opinião é a de que, como este director técnico diplomado é afinal um empregado do proprietário, dependente dele, a garantia pretendida fica comprometida, acabando o gerente técnico por se subordinar às pretensões do proprietário ou por ser por ele despedido se quiser manter o seu ponto do vista.
Não nos convenço a objecção, embora se tenha observado durante a discussão que a prática regista numerosos exemplos dos factos apontados.
Em primeiro lugar observaremos que pouca consciência terá das suas altas responsabilidades o farmacêutico que, perante uma pretensão do proprietário, que implica perigo para a saúde, cruza os braços e se submete, para conservar a sua posição e continuar ao serviço do um patrão desonesto ou criminoso Se a intervenção do gerente diplomado é exigência legal, o gerente despedido por resistir a uma pretensão ilegítima e perigosa não tardará a encontrar colocação noutra farmácia. E por outro lado situações dessa natureza podem evitar-se com um regime de fiscalização convenientemente organizado Se o gerente técnico tiver um departamento oficial a que se dirija, declarando as condições ora que foi dispensado, denunciando o atropelo que se pretendia que ele consentisse, o se severas sanções se estabelecerem contra o empresário sem escrúpulos, tais casos só muito excepcionalmente se produzirão
A situação do gerente ou director técnico pode ser, por assim dizer, oficializada, constituindo esses técnicos como que uma corporação, da qual sairiam por designação do Governo os dirigentes que tivessem de actuar em farmácias não pertencentes a «farmacêuticos». Para substituir o director que lhe fora designado, o empresário teria que recorrer & respectiva corporação ou «câmara», apresentando as razões do pedido de substituição
Convém, por outro lado, não esquecer que, se o proprietário é um leigo em matéria do farmácia, dificilmente lhe ocorrerá dar indicações ou fazer exigências incorrectas ao director técnico; muito menos se abalançará a discutir ou teimar com ele.
Situações dessa natureza só serão de admitir quando o proprietário seja um praticante ou ajudante de farmácia com longa experiência e com conhecimento empírico mais ou menos extenso do labor da profissão £ pelos exemplos invocados durante a discussão ficou-nos a impressão do que eram dessa espécie os casos a que se aludia.
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Mas mesmo nessas circunstâncias e Doutras afins, uma regulamentação apertada da fiscalização, que hoje praticamente não existe, afastará os abusos referidos
Nem se diga que qualquer regime de fiscalização, ainda que rigoroso, seria sempre ineficaz, dada a conhecida «brandura dos nossos costumes», isto é, a repugnância em perseguir os culpados e aplicar sanções severas. Comprova-o a prática havida no regime do Decreto n.º 23 422, do 29 de Dezembro de 1089
Invocar neste caso a brandura das autoridades é negar a gravidade dos perigos para a saúde público, que se alegam em favor do sistema sugerido no projecto.
Na verdade, como admitir que se seja negligente e complacente, na fiscalização, se os inconvenientes para a saúde pública derivados da falta de escrúpulos dos não diplomados ou da fraqueza dos diplomados são tão graves como se afirma e de facto são?
Se hoje as medidas de precaução previstas para garantir a saúde pública suo sistematicamente desprezadas, resulta isso da natural reacção contra um sistema legal que proclama o principio, considerado injusto, de atribuir a propriedade da farmácia exclusivamente aos «farmacêuticos», privando assim da possibilidade de exercer a actividade farmacêutica pessoas que muitos consideram habilitados a exercê-la.
Afirmado, porém, o principio do que a propriedade da empresa pode pertencer a não farmacêuticos, mas que então á necessária a intervenção de um diplomado como director técnico, ementando efectivamente o exercício da actividade, a situação é completamente diversa. A fiscalização o os sanções, destinadas efectivamente a prevenir os graves inconvenientes paia a saúde pública da exploração da farmácia por pessoas não convenientemente habilitadas, serão escrupulosamente exercidas e aplicadas.
O farmacêutico - diz-se - só goza de perfeita independência para observar os ditames da ética profissional quando for ele o proprietário da farmácia, patrão e não simples empregado sujeito a despedimento.
Este raciocínio supõe, porém, que o farmacêutico-proprietário, só porque é farmacêutico, sobrepõe sempre os deveres da ética profissional ao interesse material do proprietário, que explora uma empresa.
Embora admita que n preparação cultural do farmacêutico diplomado cora um curso superior é de molde a elevar o nível moral de quem explora a farmácia como negócio, parece-me arrojado afirmar que se defende melhor a saúde pública quando o farmacêutico é dono da empresa Podei á antes pensar-se que o farmacêutico não proprietário está, pelo seu desinteresse na empresa, em melhores condições para cumprir os preceitos da ética profissional.
2 Uma dos razões que tornam mais firme a nossa opinião de que a propriedade da farmácia pode ser encabeçada em pessoas que não sejam farmacêuticos diplomados por uma escola superior é o que resulta do exame dos graves prejuízos que especialmente derivam do sistema do projecto no caso do falecimento do dono de uma farmácia. A «farmácia» como empresa ou exercício mercantil é uma universalidade, porventura valiosa, que faz parte da herança, e como tal deve poder ser adjudicada a um dos mais herdeiros do falecido, ou ao cônjuge sobrevivo no caso de comunhão. O princípio que no projecto se propugna (e se acolhe ainda no Parecer) ofende clamorosamente os cânones que regem a partilha Se os herdeiros legítimos ou algum deles ou o cônjuge sobrevivo não forem «farmacêuticos», não poderão receber na partilha a universalidade-farmácia.
O testador não pode contemplar com ela, por testamento, pessoa que não seja «farmacêutico», ainda que esta se disponha a habilitar-se com o curso universitário. A farmácia terá que ser alienada para se partilhar o preço
Quanto aos herdeiros legítimos - os filhos, por exemplo -, se um deles tiver o curso de Farmácia, diz-se, no quinhão hereditário desse se poderá encabeçar o estabelecimento-farmácia. Poderá não haver inconveniente se o falecido tiver um filho único. Mas se tiver mais do que um filho, encabeçando-se a farmácia no quinhão de um deles, farmacêutico diplomado, podei á esse ter que dar avultadas tornas aos demais interessados, e já assim se vê as dificuldades que poder mm surgir, e que se evitariam se a farmácia pudesse- ser atribuída em comum s dois ou mais interessados não farmacêuticos. Dificuldades da mesmo natureza podei 5o surgir para o herdeiro único, farmacêutico, se o valor da farmácia exceder a legítima e o de cufus tiver disposto em favor do outrem da quota disponível. Idênticas dificuldades poderão surgir no caso de casamento com comunhão, seja ou não farmacêutico o cônjuge sobrevivo, sobretudo se a farmácia for o valor principal do casal.
A Câmara reconheceu o bem-fundado destas observações, e impressionada com a desordem que no caso de falecimento do farmacêutico dominaria a partilha da herança ou do casal comum, esforçou-se por minorar os efeitos desastrosos do princípio adoptado.
Assim, designadamente na nova base IV, já se admite no caso de falecimento a adquisição da farmácia por não farmacêuticos, quando a transmissão se dá a favor de herdeiros legitimarias descendentes, a favor do cônjuge que seja meeiro ou sucessor e ainda a favor de herdeiro ou legatário que seja aluno do curso de Farmácia. Amplia-se até a doutrina aos casos de ausência- em que há presunção de morte, assim como se consideram, ainda, os casos de divórcio e de interrupção da sociedade conjugal, permitindo-se a transmissão da farmácia a favor de qualquer dos cônjuges interessados na partilha, mesmo que não farmacêutico.
Mas fica ainda afastada a transmissão a favor de não poucos interessados. E se com as concessões feitas se atenuam consideravelmente os inconvenientes práticos do sistema, não deixa de existir o atropelo dos princípios que devem orientar a partilha, bem como da regra fundamental de livre exercício da actividade individual e da livre transmissão e adquisição da propriedade. As razões de ordem pública - defesa da saúde pública - com que se pretende justificar o desrespeito de tais princípios não são de invocar, uma vez que por outra forma se podem garantir as razoáveis exigências da saúde pública.
3 No projecto, para acautelar os interesses dos herdeiros não «farmacêuticos» contra os inconvenientes da Alienação imposta da farmácia, estabeleceu-se o princípio do arbitramento. O mesmo expediente se adopta fundamentalmente no parecer para os casos em que subsisto a necessidade de transmissão a farmacêuticos, se bem que aí se estabeleça uma regulamentação mais cuidada da matéria - base v.
Mas a verdade é que -abstraindo mesmo das dificuldades que apresenta a avaliação da farmácia como a de qualquer estabelecimento mercantil, pois no calculo do seu valor entram elementos imateriais, como a situação de negócios, a clientela e o crédito da empresa (aviamento) - o arbitramento constitui uma garantia puramente teórica desde que a transmissão não seja livre, estando antes limitada a adquisição a uma classe restrita de interessados - os farmacêuticos diplomados. Muitas vezes não se encontrarão na classe pessoas com recursos materiais suficientes para satisfazer o justo valor apurado no arbitramento
Às providências enunciadas na base V do contraprojecto da Câmara, se bem que atenuem os inconvenientes do sistema da alienação compulsiva, não constituem solução satisfatória. Embora ao cabo de um prazo longo, o adquirente não farmacêutico pode ver-se privado da farmácia pela caducidade do alvará.
4 No projecto só se permitia que fossem proprietários de farmácia as sociedades em nome colectivo ou por quotas em que todos os sócios fossem farmacêuticos, e isto agravava grandemente os inconvenientes da alienação forçada da farmácia, pois era evidente que assim se dificultava o recurso à associação como meio de obter os capitais necessários para a adquisição pelo justo preço arbitrado das farmácias compulsivamente postas em venda.
Procurou-se aporá no regime sugerido no Parecer corrigir o sistema e permite-se que sejam proprietários de farmácias as sociedades de qualquer espécie, e portanto as sociedades anónimas, que são a modalidade mais adequada à reunião de avultados, recursos pedidos à economia privada.
Mas esta faculdade reconhecida às sociedades de qualquer espécie de serem proprietárias de farmácias é em grande parte prejudicada pelas condições com que se restringe esse direito (base II, n.º 1).
Nas sociedades em nome colectivo é necessário que a maioria dos sócios sejam farmacêuticos, nas sociedades em comandita que os sócios em nome colectivo sejam na sua maioria farmacêuticos, e nos sociedades por quotas e anónimas que a maioria do capital pertença a farmacêuticos.
Facilmente se vê como, especialmente no que respeita às sociedades anónimas, as condições formuladas podem comprometer a liberdade proclamada, tornando-se acentuadamente difícil a reunião de capitais para a exploração ou para a adquisição da empresa.
Mas o vício fundamental do sistema é outro.
Como que se esquece a preocupação fundamental que está na base do sistema em que se exige que seja proprietário da farmácia um «farmacêutico» Ao formular esta exigência, contempla-se exclusiva e essencialmente o procedimento de quem no
estabelecimento-farmácia está em contacto com o público, atende os clientes e orienta tecnicamente a actividade exercida no estabelecimento.
Ora sendo assim, parece que a única condição a exigir em qualquer sociedade é a de que seja sócio farmacêutico aquele que toma a seu cargo a direcção técnica do estabelecimento e serve os clientes; enfim, que sejam sócios farmacêuticos o gerente ou gerentes da empresa.
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Dir-se-á que a maioria de sócios farmacêuticos ou do capital de farmacêuticos assegura aos da classe o domínio da empresa.
Mas não é isso que está em causa. O problema é o da conduta de quem no estabelecimento atende o público que acode à farmácia. Ente é que, secundo o projecto e segundo a opinião da Câmara, traduzida no Parecer, deve ser «farmacêutico» e interessado, como condição de independência. O sócio, se não é dono único da farmácia, é no entanto, como o dono, interessado directo na empresa e não simples empregado; desfruta portanto a situação de independência do farmacêutico-proprietário.
Ainda, porém, que nas sociedades se queira assegurar nos da classe o domínio da empresa - o que põe em jogo princípios e interesses, de ordem económica geral, de orientação da actividade industrial, que bem se destacam das necessidades de salvaguarda da saúde da clientela, que só invocam para restringir no farmacêutico a propriedade da farmácia - a verdade é que, no que respeita às sociedades anónimas, a condição de maioria de capital em mitos de farmacêuticos não assegura necessàriamente a estes o domínio da orientação da empresa. Basta figurar o caso de essa maioria pertencer a um só ou a poucos farmacêuticos, e ter em conta a limitação de votos estabelecida no artigo 188.º, § 8.º, do Código Comercial dos votos válidos em cada assembleia que cumpro atender; e mesmo com maioria de capital em milos de farmacêuticos podo acontecer que numa assembleia sejam os não farmacêuticos a impor a sua vontade. Só uma preferência baseada na qualidade ou atributos do votante - providência inédita no direito das sociedades - poderia assegurar o efeito almejado.
Numa palavra, se a direcção técnica da farmácia está confiada n um nu mau farmacêuticos, que como sócios são interessados a empresa, como o dono na farmácia de pessoa física, que importa a qualidade profissional dos subscritores da capital? Que inconveniente há em que não sejam farmacêuticos?
Na orientação do projecto permitia-se já (base II, n.º 3) a concessão do alvará - que pressupõe a titularidade da propriedade da farmácia - as Misericórdias e outras instituições de assistência, assim como se permitia do facto que exercessem serviços farmacêuticos (negando-se embora, formalmente a qualificação de informação a tais serviços) os estabelecimentos militares o hospitalares. A Câmara perfilhou esta orientação nas novas bases II, n.º 8, e VIII, n.º 3, ampliando até a doutrina às instituições do previdência social. Ora, sendo certo que em todos estes casos a actividade farmacêutica há-de necessàriamente ser exercida o orientada por técnicos competentes (diplomados), porque não consentir que sejam proprietárias do farmácia as sociedades e qualquer pessoa não farmacêutica, desde que a actividade seja exercida por técnicos diplomados?
5 Esta orientação pareço hoje impor-se com clareza particular desde que a Câmara, cedendo perante os imperativos da razão, foi levada a admitir a locação, a farmacêuticos ou a sociedades nas condições requeridas, das farmácias adquiridas nos termos das bases IV e V, lato é, de farmácias transmitidas a pessoas não farmacêuticas (cf base VI do parecer).
Nestas casos, sendo locatários as entidades que podem ser proprietários de farmácia - os «farmacêuticos» e as sociedades que a eles se equiparam -, a situação não afecta a saúde pública. Ora, assim se vê como falta um fundamento de lógica jurídica para (formular o princípio do que a propriedade da farmácia só pode enquadrar-se no património do farmacêutico. Neste caso - locação - é bem evidente a legitimidade da propriedade do não farmacêutico. Não podendo explorar directamente a sua farmácia, cede a exploração a um farmacêutico; mas a sua propriedade afirma-se o efectiva-se através da percepção do preço da locação.
Ora, cremos que, devidamente organizada e regulamentada a direcção técnica, por diplomados, de farmácia de não farmacêuticos, desnecessário só tornava a infracção clamorosa dos bons princípios, que importa o chamado sistema, da «indivisibilidade», designação tão aberrante como o concerto que quer exprimir
6. Tem-se observado que nada tem de estranho que se tolha ao proprietário do uma farmácia a liberdade de a transmitir em vida, por título gratuito ou oneroso, a qualquer pessoa, no que, no caso de morto, se lhe não permita a transmissão definitiva da farmácia a qualquer dos seus herdeiros, impondo-se no termo de certo prazo a transmissão a favor de quem seja farmacêutico. Nesta ordem de ideias observou-se durante a discussão que não era lícito alegar que a farmácia era um valor económico unitário que fazia parte do património do seu possuidor e deveria assim sor transmissível a qualquer pessoa, designadamente no caso de morto, desde que subsistissem era relação à sua exploração pelo adquirente não farmacêutico as garantias exigidas pela defesa da saúde pública. Situações paralelas - dizia-se - à do dono da farmácia, que morre, se poderiam dar por exemplo com o médico que tivesse exercido por largos anos clínica no seu consultório apetrechado com valiosos aparelhos de radiografia e outros instrumentos, angariando numerosa clientela. No caso de morte, a viúva ou os herdeiros não podem manter a organização e explorá-la econòmicamente, beneficiando da clientela angariada pelo falecido, ainda que assistidos por um medico contratado para o efeito. Citaram-se ainda os casos do médico dentista, com serviço de prótese e pessoal auxiliar, o do advogado possuidor de rica biblioteca.
Moa a verdade, bem patente para o jurada, é que não existe qualquer paralelismo entre os casos invocados e o da empresa-farmácia. Só esta tem natureza mercantil, só a farmácia pode qualificar-se como «empresa», em que os benefícios auferidos provêm da venda dos medicamentos que o seu titular comprem ou manipulou para vender, embora para estas operações de venda seja necessário que o dono da empresa ou pessoa que o assista possuam conhecimentos técnicos especiais. Quando morre o proprietário da farmácia, o que avulta na empresa são os produtos farmacêuticos para vender, a par com o crédito da casa, com a clientela angariada pelo falecido.
No consultório do médico, do radiologista, do dentista, do advogado, embora dotado com dispendiosa aparelhagem, não fica a morte deles nenhum stock do mercadorias para vender. A actividade do falecido não era uma exploração mercantil, mas uma profissão liberal, quo só traduz em prestação de serviços, serviços que reclamam preparação científica e aparelhagem e materiais apropriados e os valiosos objectos que se encontram nos seus consultórios ou escritórios são meros instrumentos, de que o médico, o dentista, o advogado se utilizam para exercer a sua profissão liberal. A fama, a clientela que alcançaram derivou apenas dos seus merecimentos pessoais, da sua competência científica já basta isto para só reconhecer que, a sua morte, não fica um stock, um valor, uma organização, susceptível de se transmitir e de continuar, ficando a mesma.
7 Também se observou repetidamente durante a discussão que a atribuição da propriedade da farmácia aos farmacêuticos correspondia à nossa tradição nacional, estabelecida desde remotas eras. Mas esta afirmação não é correcta. Só nos meados do século XIX se decretou nas nossas tais que a propriedade da farmácia só poderia ser atribuída a farmacêuticos habilitados com o curso de Farmácia. Nas leis anteriores apenas se declarava que só poderiam, «abrir farmácia», isto é, exercer a actividade da farmácia, as pessoas habilitadas com os devidos conhecimentos técnicos obtidos na escola do farmácia, o que é diferente o argumento, ainda que fosse exacto, não ora decisivo. E a própria reacção que na prática só desenhou contra a determinação legal revela bem que ela não corresponde a um pensamento geralmente aceite, que o público acolha como bem fundado.
8 Poderá dizer-se que, se hoje em dia a actividade da farmácia se resolva predominantemente na venda do produtos adquiridos para revenda, isto é, na revenda do especialidades fornecidos pela indústria florescente de produtos farmacêuticos, correspondendo apenas a cerca de 10 por cento ou mesmo de 5 por cento das transacções realizadas a venda de medicamentos manipulados na farmácia - o que conduz - fortemente a qualificar como comercial a actividade do farmacêutico -, verifica-se hoje, segundo afirmam os cultores da ciência, uma tendência acentuado no sentido do intensificar o fornecimento de remédios manipulados na farmácia em conformidade com a prescrição do médico. E isto não só poderá lutar contra a excessiva carestia das especialidades farmacêuticas, importadas em grande parte do estrangeiro - o que toma inacessíveis as classes menos abastadas grande número do medicamentos -, como também por se reconhecer quo os medicamentos mio podem ou não devem estandarizar-se, aplicando-se sempre com as mesmas composições e porcentagens a todos os doentes, cumprindo antes adaptá-los, embora dentro das combinações dos mesmos componentes fundamentais, às circunstâncias pessoais e patológicas dos doentes.
O farmacêutico deve assim manipular o remédio para o doente que a ele recorro. E desta forma, diz-se, a actividade farmacêutica apresenta-se predominantemente como profissão liberal, caracter que já se lhe atribuía no projecto. Daqui só pretende inferir que a farmácia tem de pertencer ao farmacêutico e só ao farmacêutico. Ela seria assim, poderemos dizer, o seu laboratório.
A conclusão, porém, não é correcta.
De facto, esta tendência, esta evolução no exercício da profissão farmacêutica deixa o problema da propriedade da farmácia no mesmo pé em que se encontrava. Não leva manifestamente a decidir que a propriedade da farmácia deva necessariamente enquadrar-se no património do farmacêutico diplomado. A evolução assinalada respeita exclusivamente à forma do exercício da actividade farmacêutico; a par com a venda do medicamentos comprados alarga-se o de medicamentos manipulados
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E se são precisas aptidões e conhecimentos técnicos para praticar esta forma de actividade farmacêutica, como já eram necessários na fase anterior da profissão, não é a circunstância do crescer o fornecimento de produtos manipulados que conduz a reservar aos diplomados a propriedade da farmácia. Esta não perde por isso o seu carácter de empresa mercantil, cuja exploração requer aliás a intervenção de técnicos habilitados, assim como a de certas indústrias - a de produtos químicos, por exemplo-, reclama- a assistência técnica de engenheiros especializados.
Não se esqueça, além de tudo, quando se afirma que o medicamento deve adaptar-se ao estado patológico e condições pessoais do doente, que não é o farmacêutico que faz essa adaptação, mas sim o médico. O farmacêutico executa a receita que o médico, que examinou o doente, prescreveu. Não parece pois justificado afirmar em presença da evolução denunciada da farmácia que por ela se revela a sua natureza de profissão liberal. A actividade do farmacêutico não consiste, como a do médico, numa prestação de serviço, ele fornece apenas o medicamento que o doente precisa comprar, assim como qualquer outro comerciante fornece a mercadoria que o cliente lhe reclama, o que não quer dizer que nesse fornecimento não tenha de obedecer a normas técnicas e até legais impostas pelo Estado no interesse do público.
Não se confunda, pois, mais uma vez o dizemos, o exercício da actividade com a propriedade da farmiicia-estabelecimento comercial.
A propriedade pode ser atribuída a qualquer pessoa. O exercício da actividade tem de confiar se a técnicos habilitados. Se o dono do estabelecimento, o titular da empresa não é um farmacêutico, a exploração desta tem de ser exercida sob a direcção de um farmacêutico diplomado.
Fica assim assegurada a defesa da saúde pública - José Gabriel Pinto Coelho
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA