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REPÚBLICA PORTUGUESA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 51

VIII LEGISLATURA 1963 16 DE DEZEMBRO

N.º 14/VIII

Projecto de decreto-lei n.º 516/VII

Colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 105.º da Constituição, acerca do projecto de decreto-lei n.º 516/VII, elaborado pelo Governo sobre a colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres, emite, pelas suas secções de Interesses de ordem espiritual e moral e Interesses de ordem administrativa (subsecção de Justiça), sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

SUMÁRIO

Introdução

1. Objecto do parecer.
2 Destino legal do cadáver na regulação portuguesa.
3. Especialidades da matéria do projecto em exame
4. Direito comparado.5. Elaboração e conteúdo do projecto

I

Apreciação na generalidade

§ 1.º Problemas suscitados pela matéria do projecto

6. Atitudes e práticos correntes acerca do cadáver
7. Posição da doutrina jurídica.
8. Aproximação do problema dos direitos relativos a personalidade.
9. Importância das relações do tratamento jurídico do cadáver com a construção jurídica da personalidade; motivo por que não pode proceder-se aqui ao estudo dessa mataria.

§ 2.º Perspectivas fundamentais do homem e da sua morte perante a doutrina cristã

10. Razão do ser deste estudo.
11. A personalidade humana e tis suas coordenadas fundamentais.
12. O significado da morte
13. A redenção o a ressurreição dos mortos.
14. Valor atribuído ao corpo humano e, em especial, ao cadáver pela doutrina exposta.

3.º Esboço de uma concepção personalista do direito

15. Síntese dos principais soluções doutrinárias acerca da natureza jurídica do cadáver e problema por elos suscitado.
16. Crise actual da distinção entre pessoa e coisa
17. Necessidade de se examinarem as principais perspectivas do
direito, segundo uma concepção personalista 16 Carácter de natural e essencialmente intrínseco do direito
19. Primado da pessoa humana concreta
20. A condição das coisas
21. Tipos fundamentais de situações doe pessoas, a ordem jurídica subjectiva
22. Os chamados direitos sobre pessoas, em especial

§ 4.º Aplicação da concepção personalista aos problemas Jurídicos do cadáver, em geral, e ao objecto do projecto, em particular

28. Natureza jurídica do cadáver
24. Confirmação da natureza atribuída ao cadáver pela análise dos direitos comummente reconhecidos a respeito dele.
25. Síntese dos princípios a que devem obedecer os direitos sobre o cadáver.
26. Formulação genérica dos problemas suscitados pelo aproveitamento de tecidos e órgãos do cadáver
27. Latitude dos fins terapêuticos e de investigação cientifica, como objectivos do aproveitamento do cadáver.

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28 Apreciação dos fine propostos perante outros fins intrínsecos
do falecido
29 Apreciação dos fins propostos perante os fins intrínsecos de
outras pessoas
30 Problemas específicos resultantes de a colheita de tecidos e
órgãos ter de recair no cadáver de pessoas recém-falecidas
31 Estruturação das situações jurídicas fundamentais, relativas
ao aproveitamento de cadáveres para os fins propostos 82 Conformidade genérica do projecto com os princípios defendidos.

II

Exame na especialidade

§ 1.º Observações prévias

33 Sistematização da presente parte do parecer
34 Elementos utilizados neste estudo

§ 2.º Aspectos comuns

35 Finalidades admitidas para a colheita de tecidos e órgãos cadavéricos
36 Local da colheita
37 Entidades competentes para a colheita e destino dos tecidos e órgãos recolhidos
38 Sistematização do diploma projectado e outros aspectos comuns

§ 3.º Aspectos particulares

39 Princípios fundamentais - a estruturação das colheitas em conjunto
40 Condições subjectivos da colheita
41 Condições objectivos da colheita
42 Execução da colheita
48 Utilização dos tecidos ou órgãos recolhidos
44 Responsabilidade e penas
45 Observações finais

III

Conclusões

Artigo 1.º a artigo 20.º

Introdução

1. OBJECTO DO PARECER - O projecto de decreto-lei n.º 516/VII, sobre o qual a Câmara Corporativa foi ouvida, versa sobre a colheita de órgãos e tecidos em cadáveres humanos.
Não se trata de regular toda e qualquer colheita efectuada em cada veies, e ainda menos regular, em conjunto, o destino destes O projectado decreto-lei tem por objecto o regime jurídico da utilização de órgãos e tecidos, extraídos do corpo de pessoas recém-falecidas, para uns terapêuticos, por meio de enxertos em corpo vivo, e, acessoriamente, paia nus de investigação cientifica.
Este aproveitamento de cadáveres não é o único possível, tal como o enxerto de órgãos ou tecidos de morto no vivo não é a única forma conhecida de enxertos no corpo humano.
Convém, por isso, para melhor localizar o problema e estimar a matéria em causa, começar-se por, nesta introdução, analisar em geral o destino do cadáver segundo a legislação vigente e verificar quais as formas de aproveitamento porventura já aí consagradas. E cumpre também daí uma pequena notícia acerca do direito comparado, no que se refere ao objecto do diploma em estudo, e acerca da elaboração deste.

2. DESTINO LEGAL DO CADÁVER DA LEGISLAÇÃO PORTUGUESA - Comecemos, pois, por examinar o destino legal do cadáver, a fim de melhor caracterizar as especialidades do projecto em exame e de, com mais rigor, se poder aquilatai dos desvios que ele pi e tende imprimir a orientação actual.
Em geral, o destino do cadáver resume-se na inumação. Por evidente desnecessidade prática, a lei sem sequer enuncia o princípio de que o corpo das pessoas falecidas deve ser sepultado, e limita-se a regular os termos em que se deve efectuar o enterramento (Código do Registo Civil, artigos 239º e seguintes), a única excepção prevista paia esse princípio é a da cremação, que, embora condenada pela Igreja Católica em razão do significado que se lhe tem pi e tendido atribuir, a nossa lei permite em termos mais ou menos restritos (código citado, artigos 243.º e seguintes)
Independentemente, porém, da inumação do cadáver, a lei admite que este seja objecto de certas providências, que redundam em aproveitamento dele para determinados nas de interesse geral os fins de investigação judiciária e os de investigação cientifica e ensino.
Suo estas aplicações excepcionais que nos interessa examinar, em virtude da evidente relação que podem ter com o objecto deste parecer
O exame de cadáver es para fins de investigação judiciária é muito antigo, e não parece desinteressante referir-se que já nos fins do século XVI e princípios do século XVII alguns juristas portugueses debateram o problema de saber se era lícita a exumação de cadáver es paia neles se fazerem exames destinados a esclarecer suspeitas de crime e a colhei provas forenses, questão que resolviam afirmativamente, embora dando conta das dúvidas que então se suscitavam não só acerca da licitude dessa exumação, mas também do valor probatório dos indícios colhidos em cadáveres, já depois de sepultados (1).
Na legislação vigente o preceito mais genérico é o do artigo 226.º do actual Código do Registo Civil, no qual se estabelece que, "havendo indícios de morte violenta ou quaisquer suspeitas de crime ou declarando o médico ignorar a causa da morte, deve o funcionário do registo civil, a quem o óbito for declarado, abster-se de lavrar o assento e comunicar o facto às autoridades judiciais ou policiais, a fim de estas promoverem a autópsia do cadáver e as demais diligências necessárias à averiguação da causa da morte e das circunstâncias em que teia ocorrido".
Além desta disposição, deve mencionar-se o artigo 84.º do Código de Processo dos Tribunais do Trabalho, que, além dos casos de morte devida a acidente de trabalho (hipótese compreendida na de morte violenta, prevista no Código do Registo Civil), admite a autópsia de cadáveres de pessoas falecidas em consequência de doenças profissionais
Estas autópsias encontram-se reguladas em legislação bastante dispersa. Além dos artigos 181.º e 191.º do Código de Processo Penal, há que observar-se o disposto nos antigos 6.º e 7.º da Cai ta de Lei de 17 de Agosto de 1899 e no Regulamento dos Serviços Médico-Legais de
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(1) Jorge Cabedo, Decisiones Suprems Senalus Regns Lusitaniac, Lisboa, 1608, parte I, dec CLXXIV - Na judex possit ex officio cadavere mortuorum crure e sepulcris ad ea inspicienda, cum praesumptio sit defunctum mortuum esse vulucre aut veneno2, Melchior Febo, Decisiones Senatus Regns Lusitaniac, Lisboa, 1619, parte I, Arestum CLI, Mendes de Castro, Pratica, Lusitana, tomo I, Lisboa, 1619, livro V, capítulo I, n.º 85. Os casos discutidos são dois, ocorridos, respectivamente, em 1592 e 1615, mas Cabedo refere que os desembargadores mais antigos lho haviam confirmado que sempre se havia procedido por forma idêntica à daqueles casos.
Extraímos estes elementos de uma nota inédita do Dr. Nuno Espinosa Gomes da Silva, amavelmente cedida pelo autor.

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16 de Setembro do mesmo ano, mormente nos artigos 18.º a 15.º, e no Decreto de 8 de Fevereiro de 1000, cujo capitulo II estabelece os questionários a que devem obedecer os exames médico-forenses.
É de notar que nesta legislação não se prevê apenas a autópsia, mas ainda a exposição do cadáver para reconhecimento e a colheita de vísceras destinados a análises forenses.
A segunda ordem de providências excepcionais acima referida tem em vista os fins de investigação científica e de ensino, como se deixa dito.
O aproveitamento dos cadáveres para estes fins, particularmente para os estudos de anatomia, já é muito antigo, embora, como se sabe, durante muito tempo tenha sido efectuado clandestinamente Os nossos juristas do século XVI já se ocupavam da questão da licitude da entrega de cadáveres aos médicos para os estudos de anatomia, embora se referissem apenas aos despojos mortais dos condenados à pena capital O problema, que B ar tolo já debatera na Idade Média, mas deixara indeciso, é resolvido por aqueles juristas favoravelmente a concessão dos cadáveres aos médicos, e apenas se dividem as opiniões no tocante ao problema de saber a quem compete ordenar essa concessão - se ao juiz, se ao príncipe(2).
Tendo em vista a legislação especificamente respeitante a estudos universitários, deve observar-se, antes de mais, que os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1353 ]á mandavam expressamente que o lente respectivo fizesse anatomia de membros particulares seis vezes coda ano, o três gerais (liv III, tit v, § 23)
O Compêndio Histórico aproveita esta fixação do número de sessões de anatomia para atribuir o atraso deste ramo de investigação médica aos "maquinadores" daqueles estatutos, os "denominados jesuítas", e faz, a propósito, longa história e panegírico deste sector da ciência(3).
Talvez para corresponder ao pensamento do Compêndio, os estatutos pombalinos contêm vários preceitos que são bem exemplo da legislação despótica do tempo
Assim, dispunha-se no n º 12 do livro m, pai te i, título III, capítulo II, desses estatutos.

Para uso da Anatomia servirão os cadáveres dos que morrerem nos dois Hospitais, da Universidade e da Cidade, e dos que foi em justiçados, no caso de os haver Faltando uns e outros, servi tilo os cadáveres de quaisquer pessoas, que falecerem na cidade de Coimbra. E para evitar qualquer falta, que nisto possa haver Sou servido dar ao Heitor, e à Congregação da Faculdade todo o pleno poder, e autoridade, para fazerem conduzir para o Teatro Anatómico os cadáveres necessários, e para obrigar em a consentir nisso a todas, e quaisquer pessoas, que quiserem repugnar a entrega deles Procedendo contra os rebeldes, como inimigos do bem público, e fautores das preocupações, que tanto dano têm causado ao progresso da medicina, e a saúde e vida dos homens.
A fim de reforçar estes princípios, estabelecia-se ainda no n.º 13.

Para que da abertura dos cadáveres se tirem todas as vantagens possíveis, que requer o progresso da Medicina Ordeno, que sendo o cadáver de pessoa, que tenha falecido no Hospital da Universidade, primeiramente se entregue ao Lente de prática, que lhe assistiu na enfermidade, para o abrir, ou mandar abrir pelos Discípulos à sua vista, para averiguar na presença deles a causa da sua morte, para rectificar o juízo, que tinha feito da doença, e para instruir aos mesmos discípulos no resultado, que da dita inspecção se deve tu ar, a fim de proceder com mais acerto em outros casos semelhantes, segundo o que lhe será encarregado no lugar competente.

E o n.º 14 acrescentava

Sendo porém o cadáver de qualquer pessoa, a quem não tenha assistido algum dos Lentes de Prática, o Médico, que lhe assista, será obrigado, debaixo de pena de suspensão perpétua do exercício da Arte, a dar por escrito a qualquer dos ditos Lentes a História exacta, e circunstanciada da enfermidade, e dos remédios, que lhe aplicou. Também assistirá à abertura do dito cadáver, que o Lente fizer na presença dos seus Discípulos, e à Prelecção, que sobre o resultado dela fizer na Sala das Conferências Uns, e outros cadáveres, feita a referida abertura, ficarão à ordem do Lente da Anatomia. O qual entrará no Teatro com seus Discípulos a fazer as operações preparatórias nas partes relativas ao Curso de suas Lições, e Demonstrações.

Não se pode negar ousadia a estes estatutos neles se previa, praticamente, verdadeira expropriação de cadáveres e se fixavam os meios idóneos para obrigar os interessados a consentir na entrega dos cadáveres, se foiçavam os médicos assistentes a revelar aos lentes de Prática os pormenores da doença e do tratamento, sem se atender ao segredo da profissão, e se obrigavam os mesmos médicos a assistir as autópsias e às prelecções que o lente a respeito delas fizesse.
Podem, por isso, considerar-se moderadas as disposições subsequentes.
O Regulamento das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto, de 23 de Abril de 1840, contém os seguintes preceitos.

Art. 101.º Os Professores de Clínica demonstrarão e observarão todos os casos de anatomia patológica que se oferecerem nos seus Cursos Clínicos
Art. 102.º Os Professores destas duas cadeiras devem começai as lições clínicas pela visita dos doentes, à qual seguir-se-á a parte oral, e as autópsias, se as houver, poderão todavia, junto à cama do doente, fazer aquelas observações que lhes parecerem necessárias naquele lugar. O tempo que devem demorar-se em tudo isto, é hora e meia, podendo apenas, em caso de precisão, prolongá-lo meia hora mais.

Estes preceitos parecem impor as autópsias como obrigatórias, visto neles se estabelecer, nomeadamente, que os professores de clínica demonstrai ao e observarão todos os casos do anatomia patológica que se lhes oferecerem nos respectivos cursos Esse entendimento parece ter sido claramente consagrado no Decreto de 18 de Agosto de 1910, que mantém em vigor os artigos 101.º e 102.º do citado Regulamento das Escolas Médico-Cirúr

() Podem citar-se Gaspar Vaz, no n.º 22 do seu Commmentarium in leg, imperium ff de juriditions omnurum judicum, publicado em Lião, em 1658, na compilação intitulaada Commentaria in Varia Jurisconsultorium Responsa, Manuel Soares da Ribeira, Annotationes a Commentariorum, Variaruniq Resolutionum Júris Civilis Communis et Regu de António Gomez, Veneza, 1572, António da Gama Tractatus de Sucramentis praestandis ultimo supplícro damnatis, ac de testamentis, anatomia, et corum sepultura, 1559.
Extraímos estes elementos da citada nota inédita do Dr. Nuno Espinona Gomes da Silva (supra, nota n.º 1).
(3) Compêndio Histórico, ed de 1772, parte II, cap. III, § 67, p 841.

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gicas, e de cujos artigos 2.º e 3.º se infere que a família não pode opor-se a autópsia de estudo.
Assim, no artigo 2.º mostra-se expressamente que a autópsia pode ser efectuada mesmo quando o cadáver é reclamado pela família, visto aí se fixar a seguinte doutrina.

Quando tenha havido reclamação para enterro, tanto na autópsia como no arranjo exterior do cadáver, se guardarão escrupulosamente os preceitos e os cuidados exigidos pela comparência do corpo em cerimónias fúnebres, sem ofensa da piedade afectuosa das famílias.

E, por seu lado, o artigo 3.º preceitua

A família, como tal reconhecida, quando pretenda que a autópsia ao cadáver se abrevie, ou mesmo se não pratique, fará a sua solicitação directa ao respectivo professor, ou quem as suas vezes fizer, que a atenderá, conciliando-a até onde for possível, com as imposições da investigação científica e do aprendizado médico.

Não parece legítimo, pois, duvidai-se de que, nos termos deste Decreto de 18 de Agosto de 1910, as autópsias de estudo promovidas pelas antigas Escolas Médico-Cirúrgicas (hoje Faculdades de Medicina de Lisboa e do Porto) podem ser executadas independentemente de oposição por parte das famílias ou de reclamação dos cadáveres para enterramento particular.
Em relação a Faculdade de Medicina de Coimbra, não conhecemos outra legislação que não sejam as citadas disposições dos velhos estatutos pombalinos, que supomos não terem sido derrogadas por qualquer disposição posterior Aliás, elas encontram-se confirmadas por um regulamento interno - o Regulamento da Casa Mortuária do Hospital da Universidade -, que, embora sem aprovação do Governo, parece ainda hoje vigorar como ordem interna de serviço (4).
O Regulamento da Casa Mortuária, redigido em estuo narrativo e não preceptivo, começa por no artigo 1.º dizer que ca casa mortuária compreende uma repartição destinada a prevenir os enterros prematuros, ou casa mortuária propriamente dita, onde se conservam os cadáveres por vinte e quatro horas, em camas apropriadas e com os aparelhos indicadores de pequenos indícios de vida, outra repartição destinada ao serviço de autópsias, observações microscópicas e análises químicas, e uma terceira repartição paia depósito de cada veies, onde se demoram ata que são levados para o cemitério ou para o teatro anatómico da Universidade».
E no artigo 14.º estatui esse regulamento

Os professores da Faculdade de Medicina requisitam por escrito, do administrador, os cadáveres de que precisam para o teatro anatómico, e os clínicos do hospital, que tiverem de proceder a autópsias desligadas do ensino da Faculdade, também fazem requisições semelhantes Todas estas requisições chegam ao administrador por intermédio do facultativo interno, a quem compete a regularização de todo aquele serviço.

Para regularização destes sei viços os artigos 5.º e 6.º fixam as condições e as horas a que o padre capelão há-de fazer a encomendação dos cadáveres - o que deverá estar terminado às 9 horas da manhã - e o artigo 7.º estabelece que «das nove horas em diante ficam as repartições da casa mortuária à disposição dos clínicos do hospital para o exame e averiguações, que desejem fazer em todos os cadáveres, que não tenham sido reclamados para o teatro anatómico da Universidade».
Por seu lado, o artigo 11.º regula a remoção dos cadáveres da casa do depósito para o cemitério ou paia o teatro anatómico da Universidade e, depois de prevenir em especial os «casos de enterro com funeral previamente autorizado pelo administrado», preceitua no § 1.º

A concessão para enterro com funeral é pedida em requerimento ao administrador pela família do defunto ou por quem a represente, e o despacho para a concessão deve sempre ressalvar as reclamações para autópsias, em proveito da ciência médica ou de averiguações judiciais Não havendo quem requeira o enterramento por aquela forma, o cadáver é entregue ao carro municipal encarregado destas conduções para o cemitério, ainda que pertença a doente que tenha entrado para qualquer das três classes dos que pagam o seu tratamento.

Pelas disposições citadas se vê claramente que, no sistema deste regulamento, se mantém o princípio de os cadáveres dos doentes falecidos no hospital da Universidade se encontrarem obrigatoriamente sujeitos ao aproveitamento para os estudos da Faculdade, tal como acontecia nos velhos estatutos pombalinos. E, seja por ainda estarem em vigor estes preceitos, seja por eles haverem sido incorporados em normas consuetudinárias, o certo é que, ao que parece, são eles que ainda hoje regem esta matei ia na prática da Faculdade de Medicina de Coimbra, segundo informações particulares que gentilmente nos foram prestadas.
Considerando-se, em conjunto, tudo quanto deixamos exposto, deve concluir-se que as Faculdades de Medicina têm o poder de dispor, para os seus estudos de anatomia e para outros fins de investigação e de ensino, dos cadáveres das pessoas falecidas nos seus hospitais, sem que as respectivas famílias a isso se possam opor.
Conhecem-se, todavia, outras disposições legais a que já se tem atribuído o alcance de esclarecei ou revogar os preceitos anteriormente citados, em termos de as autópsias clínicas só serem admissíveis quando a família do falecido a tal não se opuser e os cadáveres não forem reclamados para inteiramente particular.
Nesse sentido se podem invocar, antes de mais, os regulamentos do Hospital de S José e anexos, datados de 1901.

(4) O Decreto de 22 de Junho de 1870, que continha o Regulamento dos Hospitais da Universidade, dava competência ao administrador respectivo para propor ao Governo os regulamentos e reformas necessários para a administração económica e serviço técnico dos hospitais e estabelecimentos anexos (artigo 4.º, n.º 4.º), e estabelecia no artigo 21.º que os regulamentos internos estatuíam sobre todo o serviço técnico, e os encargos e obrigações de todos os empregados dos hospitais e estabelecimentos da sua dependência, com aprovação do Governo.
Ao abrigo destas disposições foram elaborados quatro regulamentos, entre os quais o Regulamento da Casa Mortuária citado no texto, e que se encontram publicados em folheto da autoria de A A da Costa Simões, com o título de Regulamentos Internos dos Hospitais da Universidade de Coimbra e Anotações Respectivas.
Do prefácio da 3.ª edição deste folheto, datada de 1882, deduz-se que só um desses regulamentos - o dos quartos particulares - teve aprovação régia por Decreto de 7 de Janeiro de 1878, mas que os restantes permaneceram em vigor ao abrigo do n.º 10.º do artigo 4.º do citado Decreto de 22 de Junho de 1870, no qual só comete ao administrador o «prover a todos os mais actos de administração interna e externa que legalmente se derivem do seu cargo».

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a Regulamento Geral dos Serviços Clínicos do Hospital Real de S. José e Anexos, de 10 de Setembro de 1901, permite, no artigo 3.º, que os indivíduos falecidos nas enfermarias sejam autopsiados pelo respectivo director na sala de dissecações da Escola Médico-Cirúrgica ou do Hospital e o Decreto de 24 de Dezembro do mesmo ano criou naquele Hospital um laboratório geral de analises clínicas destinado a esclarecer os problemas de diagnóstico e outros do investigação clinica que lhe fossem apresentados pelos médicos e cirurgiões dos serviços do referido Hospital (artigo 1.º) e que compreendia várias secções, das quais a primeira era destinada a análises anátomo-patológicas (artigo 2.º, n.º 1) Os artigos 305.º, § único, e 307.º do Regulamento Geral dos Serviços Clínicos do Hospital Real de S. José e Anexos, de 24 de Dezembro de 1901, revelam, porém, que essas autópsias não ao podem efectuar se houver reclamação por parte das famílias.
Assim, o § único do artigo 305.º deste último regulamento estabelece:

Deve ser respeitado o direito das famílias ou dos amigos dos falecidos a fazerem-lhes enterro separado do que é regulamentar noa hospitais, e a fazerem amortalhar os seus mortos com os fatos que, como doentes, trouxeram para o hospital ou com outros que tragam de fora nessa ocasião, mas, para que possam usufruir tal regalia, é necessário que o participem antes de findas as 24 horas e se sujeitem ao cumprimento de quaisquer processos de higiene que o estado do cadáver ou a qualidade da doença aconselhar às autoridades hospitalares a quem compete determiná-los.

E, por seu lado, o artigo 307.º preceitua

A saída dos cadáveres da casa de observações para a sala de dissecações da Escola Médico-Cirúrgica, quer sejam reclamados para estudo, quer para autópsias à ordem dos directores das enfermarias, não poderá realizar-se sem conhecimento da repartição fiscal, que deve autorizar o guarda a permiti-la ou a recusa-la, depois de verificar se a respeito de tais cadáveres há alguma reclamação das famílias para enterro ou se sobre eles tem de haver procedimento judicial.

Por efeito destas disposições a autópsia não é permitida, pois, quando o cadáver tiver sido reclamado para enterramento separado do regulamentar dos hospitais A mesma doutrina se poderá ver consagrada na Portaria n.º 40, de 22 de Agosto de 1918.
Aí se estabelece que o Governo, pelos Ministérios do Interior, Justiça e Instrução, providencie para que fiquem a disposição das faculdades de Medicina, para seus estudos, os cadáveres dos falecidos nos hospitais, asilos e casas de assistência pública quando, dentro das doze horas seguintes ao falecimento, não sejam reclamados pelas famílias para procederem ao seu enterramento e determina ainda que os cadáveres, enquanto se encontrem à disposição das Faculdades, podem ser reclamados pela família, mas serão entregues apenas depois de findos os estudos convenientes, salvo se houver interesse para a ciência na conservação deles na posse das Faculdades
A Procuradoria-Geral da República, no seu douto parecer n º 59/59, de O de Junho de 1960 (Boletim do Ministério da Justiça n.º 105, de Abril de 1961, pp 401 e sega ), depois de opinar que o Regulamento das Escolas Médico-Cirúrgicas de 1840 não esclarece devidamente se as autópsias clínicas são ou não obrigatórias para as famílias, defende a doutrina de que o Regulamento de 24 de Dezembro de 1901 e a citada Portaria n.º 40 devem considerar-se decisivos para o efeito de se entender que essas autópsias só são permitidas quando os cadáveres não forem reclamados pelas famílias.
Não noa parece, todavia, e não obstante a proficiência com que o assunto se acha debatido naquele douto parecer, que em rigor jurídico seja aquela a boa doutrina
Na verdade, o Decreto de 18 de Agosto de 1910, acima citado, á perfeitamente explícito ao revelar a obrigatoriedade das autópsias em causa, já porque, tendo esse diploma em vista «rectificar e aditar as disposições reguladoras dos serviços de autópsias, de tanta importância para o ensino pleno da clínica e habilitação dos futuros médicos» (como se diz no respectivo preâmbulo), não pode atribuir-se outro significado a afirmação de que se mantêm em vigor os artigos 101.º e 102.º do regulamento de 1840, já porque aquela orientação se deduz clara e explicitamente, como se viu, dos citados artigos 2.º e 8.º desse diploma.
Contra estas disposições terminantes não pode prevalecer uma simples portaria, nem um decreto, aliás de âmbito restrito ao Hospital de S. José e anexos, de data muito anterior àquele diploma de 1910, e cujos efeitos, para mais, este tinha a manifesta intenção de remediar.
E também não parece aceitável o argumento, invocado pela Procuradoria-Geral, de que o artigo 2.º daquele Decreto de 18 de Agosto de 1910, ao prever a execução de autópsias no caso. de cadáveres reclamados para enterro, se poderia entender como referente a autópsias exigidas por autoridades judiciais, e que o artigo 8.º do mesmo diploma, ao estabelecer que a solicitação da família de que se abrevie ou omita a autópsia deve ser atendida, conciliando-se ato onde for possível com as imposições da investigação cientifica e do aprendizado médico, se poderia entender como tendo em vista os casos em que a família faz aquela pedido som reclamar o cadáver para enterramento.
Nada há, na letra ou no espírito do Decreto de 18 de Agosto de 1910, que autorize esta interpretação restritiva, tanto mais quanto a intenção expressa nesse diploma é, manifestamente, obviar à falta de cadáveres
Parece-nos ser outra, muito diversa da proposta pela Procuradoria-Geral, a forma de conciliar este diploma e as demais disposições de que extraímos a regra de as autópsias efectuadas pelas Faculdades de Medicina não dependerem da vontade das famílias com o Regulamento do Hospital de S. José, de 1901, e com a Portaria n.º 40, de 1918 aquela legislação, que primeiramente apontámos, tem por objecto directamente as autópsias promovidas pelas Faculdades de Medicina e que incidem nos cadáveres de indivíduos falecidos nos seus serviços clínicos, enquanto o regulamento de 1901 e a Portaria n.º 40 se referem aos cadáveres de pessoas falecidas em outros estabelecimentos - hospitais não universitários e, na Portaria n.º 40, também os das que tiverem morrido em asilos ou outros estabelecimentos de assistência - e tanto para o efeito de autópsias promovidas pelas Faculdades, como para o das ordenadas pelos directores das enfermarias A possibilidade de oposição da família só se encontra prevista para estes últimos casos, ou seja, em resumo, o das autópsias de cadáveres de indivíduos falecidos fora dos serviços clínicos das Faculdades de Medicina.
É certo que o Regulamento de 24 de Dezembro de 1901 evidencia alguma confusão entre os serviços do Hospital de S. José e os da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, facto susceptível de esbater aquela distinção por nós enun-

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ciada, e essa confusão pode ainda ser agravada pela circunstância de o Decreto com forca de lei de 13 de Dezembro de 1910 ter suprimido a primeira secção (análises anátomo-patológicas) do laboratório de análises clinicas do Hospital de S José para a integrar na Escola Médico-Cirúrgico (serviço devolvido aos Hospitais Civis mais tarde pelo Decreto n.º 4563, de 12 de Julho de 1918, artigo 76.º, e pela Lei n.º 1785, de 22 de Junho de 1925, artigo 1.º, § único). Mas também é verdade que, mesmo sem se tomar em consideração o âmbito limitado do Regulamento de 1901 e do Decreto de 13 de Dezembro de 1910, não pode deduziu-se deles qualquer doutrina sobre as autópsias promovidas directamente pelas Faculdades de Medicina, por isso que naquele regulamento se distingue sempre a hipótese de elas serem efectuadas por iniciativa da Escola Médico-Cirúrgica do caso de serem ordenadas pelos directores das enfermarias, e no artigo 4.º do citado Decreto de 13 de Dezembro de 1910 se consagra expressamente o direito de os médicos hospitalares continuarem a fazer os seus exames no laboratório que transitava para a Faculdade de Medicina, confirmando-se assim que esta legislação tem em vista duas categorias diversas de autópsias, discriminadas pela entidade que toma a respectiva iniciativa.
Parece-nos, portanto, que a solução mais correcta consiste em se distinguirem as autópsias promovidas pelas Faculdades de Medicina e que tenham por objecto os cadáveres das pessoas falecidas nos respectivos serviços clinicas, e as daquelas pessoas que morrem fora desses serviços, e quer aqueles exames sejam promovidos directamente pelos directores das enfermarias onde os falecidos se achavam internados, quer sejam devidos a iniciativa das Faculdades de Medicina a disposição das quais sejam colocados os cadáveres. No primeiro caso a autópsia pode efectuar-se ainda que o corpo dos falecidos seja reclamado pela família, no segundo caso, pelo contrário, a autópsia só será permitida se a família se não opuser e não declarar pretendei efectuar particularmente o enterramento
E, no tocante especialmente às autópsias devidas a iniciativa hospitalar, só o regulamento de 1901 parece permiti-las e - que saibamos - ele só é aplicável aos Hospitais Civis de Lisboa Os outros estabelecimentos da mesma natureza não terão direito de promover autópsia, a qual, em relação a cadáveres não entregues às Faculdades de Medicina, só poderá ser ordenada pelas autoridades judiciais e para ser efectuada pelas entidades competentes (os institutos de medicina legal nas áreas comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra).
Do ponto de vista prático, porém - e neste aspecto damos toda a razão à Procuradoria-Geral da República -, parece indiscutível que, ou por efeito de reacção espontânea dos costumes, ou em consequência da imperfeição das leis citadas e da mencionada confusão, latente em algumas delas, dos serviços do Hospital de S. José com os da Faculdade de Medicina de Lisboa, se tem generalizado, pelo menos nesta última cidade, a prática de não efectuar autópsias quando os cadáveres sejam reclamados pela família, tendo-se caído assim, em todos os casos, na orientação que, numa interpretação rigorosa, parece vigorar apenas para os Hospitais Civis de Lisboa. Acresce que, segundo consta, foi esse o regime expressamente mandado observar provisoriamente no Hospital de Santa Mana, de Lisboa, por despacho do Ministro do Interior de 25 de Janeiro de 1955, com o fundamento de, constituindo esse Hospital conjuntamente com os Hospitais Civis os hospitais centrais da zona sul, só quando devidamente justificado se poderia criar um regime especial pata qualquer deles. E, homologado o citado parecer da Procuradoria-Geral da República por despacho de 13 de Abril de 1961, do Ministro da Saúde e Assistência (Diário ao Governo n.º 119, 2.ª série, de 19 de Maio de 1961, p 3415), aquele regime tornou-se, de facto, extensivo a todos os hospitais universitários.
Para se apreender devidamente a realidade deve observar-se, no entanto, que, como é fama pública, este sistema tem dado lugar a que muitos médicos hospitalares, desejosos de proceder a autópsias de estudo, declarem às famílias que, por insuficiente conhecimento da causa da morte, só poderão passar a competente certidão de óbito depois de proceder em a autópsia. Trata-se de um simples expediente e sofisma, gerado pelas limitações impostas, de direito ou de facto, a estes actos de investigação médica.
A fim de completar esta resenha da legislação referente ao aproveitamento dos cadáveres para fins de ensino e de investigação, compete ainda mencionarem-se dois pontos especiais em primeiro lugar, que a Reforma Prisional, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 26 643, de 28 de Maio de 1936, admite, no artigo 374.º, que se proceda a autópsia de reclusos falecidos em estabelecimentos prisionais, para fins de investigação científica, se o Ministro da Justiça o autorizai, ouvidas as famílias, e que o § único do mesmo artigo estabelece que os cadáveres dos reclusos poderão ser entregues à Faculdade de Medicina da localidade onde se deu o óbito, nos mesmos termos em que o são os dos hospitais, e, em segundo lugar, que as próprias autópsias judiciárias também abrangem finalidades pedagógicas e científicas, como se deduz claramente do disposto no artigo 2.º da Carta de Lei de 17 de Agosto de 1899 e dos artigos 2.º, 14.º e 15.º do Regulamento dos Serviços Médico-Legais, de 16 de Setembro do mesmo ano.
Do conjunto da legislação citada podem deduzir-se os seguintes princípios de interesse para o nosso estudo.

a) O destino normal do cadáver consiste em ser consumido por meio de inumação, mas, excepcionalmente, a lei admite certas formas de aproveitamento, tais como exposição paia reconhecimento, exames, autópsias, colheita de tecidos ou vísceras pata exames laboratoriais, etc,

b) Estes aproveitamentos podem ter ou fins de investigação judiciária, ou fins pedagógicos e de investigação científica, e no próprio pensamento dite leis há certa interpenetração destas duas categorias de fins,

c) Os aproveitamentos referidos na alínea anterior são obrigatórios quando destinados a fins de investigação judiciária,

d) Quando tenham por fim a investigação científica e o ensino, esses aproveitamentos, de acordo com a interpretação rigorosa dos leis vigentes, seriam independentes da vontade das famílias, no coso de se tratar de cadáveres de pessoas falecidas em estabelecimentos universitários, enquanto só podei iam ter lugar na ausência de oposição das famílias, no caso de a morte se ter verificado noutros estabelecimentos de saúde e assistência, e, no caso de reclusos, mediante autorização do Ministro da Justiça, ouvidas as respectivas famílias,

e) 0s aproveitamentos mencionados na alínea antecedente encontram-se hoje, todavia, sujeitos sempre a condição de os cadáveres não sei em reclamados pelas famílias, e isto não só por imposição dos costumes, mas também por efeito de decisões administrativas,

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f) Quer a inumação, quer as autópsias e de tecidos ou vísceras, só podem efectuar-se, em regra, depois de decorridas 24 horas, contadas a partir da morte ou, no caso de autópsias efectuadas nos Institutos de Medicina Legal, contadas desde a entrada dos cadáveres no respectivo necrotério.

3. ESPECIALIDADES DA MATÉRIA DO PROJECTO EM EXAME - De quanto só acaba de expor pode concluir-se que o projecto de decreto-lei que é objecto deste parecer está muito longe de pretender introduzir um princípio de utilização dos cadáveres que repugne à orientação das leis vigentes.
Se se atendesse apenas aos fins de investigação científica, poderia supor-se, num juízo precipitado, que o assunto contemplado no projecto não merecia sequer regulamentação em diploma autónomo.
É certo que o intuito principal do diploma projectado é o de permitir colheitas de tecidos ou órgãos com fins terapêuticos. Mas também neste aspecto se deve chamar a atenção para o facto de, já na legislação vigente, foi permitida a colheita de vísceras para fins de interesse geral e se admite até a autópsia num caso em que ela, directamente, é determinada por interesse particular - o caso da autópsia de indivíduos falecidos em virtude de doenças profissionais.
E, considerando-se que a terapêutica por meio de enxertos de tecidos ou órgãos alheios pode não aproveitar peças cadavéricas, mas sim elementos extraídos do corpo de homem vivo ou de irracionais, poderia perguntar-se, inclusivamente, se não seria melhor integrar os fins de investigação científica e de ensino na legislação vigente, e criar-se um regime especial para todos os casos de terapêutica por meio de enxertos
Estas dúvidas podem servir para pôr em relevo a circunstância de, como se deixa dito, o projecto aqui analisado não se afastar sensivelmente das directrizes gerais das leis em vigor acerca do cadáver. Tomadas em si mesmas, contudo, essas dúvidas são desprovidas de fundamento.
Na verdade, mesmo admitindo-se que o projecto considera o fim de investigação cientifica com autonomia (o que adiante se terá de esclarecer), não pode negar-se ao diploma projectado a necessária unidade e homogeneidade.
E que, como logo de começo se acentuou, o diploma em causa considera as colheitas de tecidos e órgãos que, para os fins nele previstos, se hajam de efectuai no corpo de pessoas recém-falecidas.
Esta especialidade importa problemas importantes, quer de ordem técnica, quer de ordem jurídica, moral e religiosa No primeiro aspecto, avulta o problema da verificação da morte, pois as colheitas aqui consideradas têm de ser realizadas antes de se verificar a alteração dos tecidos por efeito de autólise, e, conseguintemente, quando maior receio pode haver de a morte ser aparento. Do segundo ponto de vista suscitam-se variados problemas relacionados com o respeito devido ao cadáver e aos sentimentos de piedade dos familiares, e respeitantes ainda ao próprio culto religioso, aspectos que tornam necessárias certas precauções técnico-jurídicas, estabelecidas em favor das pessoas investidas em direitos ou deveres relacionados com o cadáver.
Por outras palavras- a especialidade deste projecto não reside em ele, contra o espírito da legislação e dos costumes correntes, admitir o aproveitamento dos corpos de pessoas falecidas para fins de utilidade pública ou particular, mas sim na circunstância, que lhe dá homogeneidade, de esse aproveitamento haver de sei feito em lapso de tempo muito limitado, facto que é origem de problemas de ordem vária e com indiscutível melindre

4. DIREITO COMPARADO - A descoberta do novo aproveitamento de cadáveres, relativo a técnica dos enxertos de tecidos ou órgãos humanos, tem levado, em diversos países, a publicação do leis semelhantes ao decreto-lei cujo projecto nos compete examinar.
Conhecemos os diplomas seguintes, indicados por ordem cronológica.

a) França- Decreto n.º 47-2057, de 20 de Outubro de 1947, que, para efeitos da doutrina do artigo 42.º do decreto provisòriamente aplicável de 17 de Abril de 1943, introduziu uma nova alínea no artigo 27.º do decreto provisoriamente aplicável de 81 de Dezembro de 1941 (5), já anteriormente tinha sido introduzida uma alteração semelhante e com igual fim no mesmo artigo 27.º pelo Decreto n.º 47-1902, de 26 de Setembro de 1947 (6),
b) Espanha Lei de 18 de Dezembro de 1950 (7),
c) Inglaterra Decreto de 26 de Julho de 1952, denominado «decreto-lei dos enxertos de córnea, 1952» e um regulamento sobre a doação do cadáver para investigações médicas (8),
d) Itália Lei de 3 de Abril de 1957, n.º 235 (9)

Todos os diplomas citados prevêem a colheita de tecidos ou órgãos do corpo de pessoas recém-falecidas. Mas o decreto inglês, de 26 de Julho de 1952, só se refere à colheita de córneas, e a lei italiana de 3 de Abril de 1957 à da córnea, do globo ocular ou de outras partes do corpo especificadas em regulamento.
O fim para que, em geral, se permite esta colheita, é o fim terapêutico. O decreto francês de 20 de Outubro de 1947, porém, refere-se também às necessidades científicas.
No respeitante ao local da colheita, estas leis mandam-na efectuar, geralmente, em institutos universitários e hospitais constantes de relação oficial, o decreto italiano permite a colheita no local da morte, quando o falecido a haja autorizado.
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(5) In Recued Sirey, 1948, Lois Annotees, p 1148, col 2.ª
Sobre este decreto pode ver-se André Decocq, Essas dúne Théorie Générale des Droits sur la Personne, 1960, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, pp 207-208.
(6) In Recued Sirey, 1948, Lois Annotées, p 1177, col. 1.ª
(7) Transcrita por Castán Tobefias, «Los derechos de la personalidad», na Revista General de Legislacion y Jurisprudencia, 1952, p 42, nota n.º 109. Sobre esta lei, além do citado estudo de Castán Toberius, podem ver-se J Latour Brotóns, «El cuerpo humano como objecto de derecho», na mesma Revista, 1955, pp 166 e segs, e J Loprz Berenguer, «Naturaleza y Contenido del Derecho sobre el Proprio Cuerpo», in Anales de la Universidadde Murcia, 1950-1951, pp 195 e segs, especialmente pp 209 e segs.
(8) Conhecemos estes textos em tradução fornecida pelo Ministério da Saúde e Assistência.
(9) In Lex/Legislazione italiana/Raccolta Cronologica, ano XLIII, n.º 12, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torineso, p 663. Sobre este diploma vejam-se De cupis, in Novissimo Digesto Italiano, dirigido por Antonio Azaro e Ernesto Eula, Unione Tipografico-Editrice. Torinese, vocábulo «cadavere (Diritto sul)», no vol. II, p. 657, e Michele Pesant, in Enciclopedia del Diritto, Gruffrè Editore, vocábulo «cadavere (Diritto Civile)»,vol v,p 769. Sobre a proposta que deu origem a este diploma e respectiva discussão veja-se G. A. Belloni, «I morta per la salvezza dei vivi», in Giustisia Penale, vol. LVI (1951), parte prima, cols 408 e segs.

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Todos estes diplomas prevêem a colheita no caso de o falecido nela ter consentido e, no caso de faltar esse consentimento, permitem-na nos estabelecimentos oficialmente autorizados, se não houver oposição-da família. Mas o decreto francês de 26 de Setembro de 1947 admite essa colheita mesmo no caso de a família se opor, quando efectuada em estabelecimentos hospitalares designados pelo Ministro da Saúde e da População, e quando o médico-chefe a ordenar por necessidade de ordem científica ou terapêutica, fora desses estabelecimentos, as colheitas devem efectuar-se nos termos do decreto de 17 de Abril de 1943, o qual só as permite com o consentimento da família, ou se esta não se manifestar ou o defunto não tiver família (10).
Finalmente, todos estes diplomas sujeitam as colheitas, em geral, à autorização dos chefes de serviço ou dos estabelecimentos hospitalares, além de outras formalidades que, para esta introdução, não têm interesse especial.

5. ELABORAÇÃO E CONTEÚDO DO PROJECTO - A iniciativa da elaboração do projecto de um diploma sobre a utilização de tecidos e órgãos de cadáveres para fins terapêuticos partiu, segundo consta, de uma representação feita, há cerca de treze anos, pela Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa à Subsecretaria de Estado da Assistência.
Este departamento governamental mandou então ouvir as Faculdades de Medicina e os Conselhos Médico-Legais, e consultou também a Procuradoria-Geral da República, que, sobre o assunto, proferiu o douto parecer n.º 35/52, de 27 de Novembro de 1952.
A questão não teve porém seguimento até à criação do Ministério da Saúde e Assistência, em 1958, o qual consultou de novo a Procuradoria-Geral da República, que veio a dar novo parecer, com o n.º 60/59, de 14 de Janeiro de 1960 (11), e ouviu diversas outras entidades Essas diligências constituem os precedentes imediatos da proposta em exame, a qual, elaborada pelo então Ministro da Saúde e Assistência, Dr. Henrique Martins de Carvalho, foi enviada à Câmara Corporativa conjuntamente com uma colecção dos pareceres das entidades ouvidas, tais como as Faculdades de Medicina, os Conselhos Médico-Legais, os Hospitais Civis de Lisboa, o Instituto Maternal, o Instituto Nacional do Sangue e o representante do Patriarcado de Lisboa no Conselho Coordenador daquele Ministério.
O bem elaborado relatório do projecto, em alguns aspectos apoiado em números concretos, põe em evidência a extrema importância das normas que se pretende promulgar, e acentua que se procurou observar na elaboração do novo diploma cuidadosa prudência, a fim de se encontrar «aquele justo mas difícil equilíbrio entre o respeito ancestral que ao homem merece o cadáver de outro homem e as imposições científicas que, sem menosprezo por aquele respeito, obrigam a utilizar os cadáveres humanos para benefício dos diminuídos, dos feridos e dos doentes».
As disposições do projecto revelam, efectivamente, estas preocupações de equilíbrio e de prudência Nelas se regulam todos aqueles pontos que, em geral, vimos.
estarem contemplados na legislação estrangeira acima citada, mas em muitos pormenores o projecto é mais minucioso e cuidadoso do que ela, e, mais do que isso, afasta-se das soluções mais radicais, procurando satisfazer quanto possível ao respeito devido para com o morto e para com os direitos individuais e familiares
Por isso mesmo o projecto fica, até, em alguns aspectos, aquém da legislação portuguesa relativa a outros aproveitamentos do cadáver, cuja orientação expusemos acima, e esse facto, ao mesmo tempo que revela o escrúpulo que foi elaborado, torna-o, em muitos pontos, mais ajustado aos princípios morais e jurídicos que devem dominar a matéria, pelo menos enquanto necessidades graves de ordem pública não tornem legítimo, perante os mesmos princípios, o recurso a soluções mais prontas e eficientes.

I

Apreciação na generalidade

§ 1.º Problemas suscitados pela matéria do projecto

6. ATITUDES E PRÁTICAS CORRENTES ACERCA DO CADÁVER - Não nos vamos referir aqui, em pormenor, às atitudes dos povos primitivos, nem aos numerosos mitos, antigos ou ainda subsistentes em povos atrasados, relacionados com a morte e com o cadáver.
Não seria este o lugar próprio para o fazer, mas não será despiciendo recordar-se que, desde os tempos mais remotos, os homens se preocuparam com a sorte das pessoas falecidas e manifestaram a crença de que a morte não põe termo a toda a existência humana, e que alguma coisa há, para além dela, na qual os homens se sentem fortemente interessados.
À parte certas práticas menos vulgares, como a de cremar os cadáveres ou a de os expor a acção destruidora da chuva e das aves de rapina, em quase todos os povos tem vigorado o costume de inumar os cadáveres, e os túmulos constituem, em muitos casos, as relíquias mais eloquentes e ricas das civilizações ]á desaparecidas Esses túmulos revelam frequentemente o respeito e a veneração prestados aos mortos, quando não o temor destes, e apresentam claros vestígios de verdadeiro culto rendido à memória das pessoas falecidas
Os mortos eram, entre os povos primitivos, ao mesmo tempo respeitados e temidos, e os vivos prestavam-lhes culto, mas muitas vezes também exerciam sobre eles actos de violência, quer com o fim de evitar que os mortos voltassem para perseguir os vivos ou vingar a própria morte, quer para se aproveitar em das virtudes e da protecção dos falecidos, como se diz acontecer ainda hoje com certos canibais.
O que nos interessa é registar os sentimentos que, através dos séculos, se têm dedicado aos mortos e progressivamente se têm aperfeiçoado, sentimentos esses dos quais aquelas práticas e crenças primitivas certamente são, afinal, interpretações intuitivas e grosseiras.
E, deste ponto de vista, pode afirmar-se que o cadáver tem sido sempre objecto de veneração e de respeito, sentimentos que são extensivos à sepultura, e que a morte e a inumação constituíram sempre acontecimentos que os homens rodeiam de actos de culto religioso.
É bem significativo o facto de uma das mais antigas e belas animações que se conhecem do direito natural ter sido pronunciada em defesa do dever de sepultar os mortos como acto de veneração e de culto relacionado com eles.
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(10) André Decocq, ob cit , pp 207 e 208
(11) Este parecer, homologado cor despacho do Ministro da Saúde e Assistência, acha-se publicado, conjuntamente com o anterior, de 1952, acima citado, no Boletim do Ministério da Justiça n.º 94, de Março de 1960, este a pp. 49 e seguintes e aquele à pp 62 e seguintes, e encontra-se editado em separata do mesmo Boletim com o título de Condição Jurídica do Cadáver - Aspectos Jurídicos da Utilização de Material Cadavérico em Cirurgia, Lisboa, 1960

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O exemplo de Antígona, que, contra as ordens o ameaças de Creonte, por suas mãos sepultou o irmão falecido, constitui, sem dúvida, um elevado símbolo do amor fraterno com que a literatura clássica para sempre enriqueceu as tradições da humanidade Mós a fala, tão modesta como firme, com que a piedosa donzela justifica o seu acto não é menos grandiosa e solene afirmação da crença na existência daquelas leis, «promulgadas pelos deuses imortais», «que não estão escritas e que ninguém pode apagar» - aquelas «leis que não são de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos e que ninguém poderá jamais dizer quando nasceram».
E é verdadeiramente impressionante, na verdade, que esta tomada de consciência do direito natural, brotada no pensamento de um povo pagão, tenha recaído precisamente no dever de honrar e respeitar o corpo dos mortos.
Tão natural é o dever de sepultar os mortos que as leis nem sequer o afirmam expressamente e apenas se preocupam em regular as condições a que deve submeter--se a inumação. Não ignoram, todavia, aquele dever, nem desconhecem o significado ético ligado às honras prestadas aos mortos, como resulta do facto de a lei penal não só punir as injúrias contra eles dirigidas, mas também incriminar a violação das sepulturas e o vilipêndio do cadáver (Código Penal, artigos 417.º e 247.º)
Infelizmente não se pode deixar de registar a circunstância de a morte provocar, em muitos casos, o simples sentimento de pavor e de, em outros casos, se manifestar alguma tendência para se negar qualquer valor ético ao corpo dos mortos, e se chegarem a praticar contra o cadáver actos de verdadeiro desprezo ou violência.
Estas atitudes podem explicar-se como indícios de materialismo, mas não deixam também de, no fundo, exprimir a perturbação dos homens perante o mistério da morte e do destino a que, por efeito dela, são votados os seres humanos e o seu corpo em especial.

7. POSIÇÃO DA DOUTRINA JURÍDICA - Os indícios de contradição e de incongruência que encontramos nas atitudes correntes acerca do cadáver não deixam de ter correspondência, em certa medida, na posição tomada pela doutrina jurídica a respeito dos problemas por este suscitados. Na verdade, são manifestas as hesitações e divergências dos jurisconsultos, seja no que se refere ao cadáver em si mesmo, seja no tocante às relações que a natureza e o regime dele podem apresentar com problemas jurídicos mais amplos, respeitantes à construção jurídica da personalidade e dos seus direitos estruturais.
Em geral, os autores reduzem o problema da natureza jurídica do cadáver à questão de saber se ele deve qualificar-se como coisa e, na hipótese afirmativa, qual é a categoria de coisas em que pode enquadrar-se.
Não falta quem de solução negativa à primeira destas questões O Dr. Cunha Gonçalves, por exemplo, entende que o cadáver não é coisa porquanto se, pela morte, s. . B personalidade fica extinta, o cadáver, como resíduo ou invólucro dela, é ainda objecto de respeito, sendo punido quem o desacatar (Código Penal, artigo 247.º e parágrafos), e certo é que uma simples coisa não tem de ser respeitada (12)»
E já se julgou entre nós que e os restos mortais de qualquer indivíduo juridicamente não podem ter-se como coisas para os tornar susceptíveis de apropriação e propriedade, nos termos dos artigos 866.º, 479.º e 2167.º
do Código Civil, mas sim como pessoa, embora destituída de vida, e, quando menos, relíquias dela»(13)
Mais generalizada é, todavia, a opinião de que o cadáver constitui uma coisa. Partindo-se da divisão rígida de toda a realidade exterior ao direito em pessoas e coisas, deduzida de postulados puramente formais e logicistas, entende-se que o cadáver, não sendo pessoa, é forçosamente coisa, era esta, por exemplo, a argumentação do Dias Ferreira, quando afirmava que «o cadáver está indubitavelmente compreendido na categoria das coisas, por ser coisa tudo o que carece de personalidade (artigo 369.º)» (14)
Àquilo em que geralmente se manifesta divergência entre os autores é, apenas, a questão de saber se o cadáver é coisa no comércio ou coisa fora do comércio
Esta última é a solução defendida, por exemplo, por Dias Ferreira(15), por Fadda e Bensa(16), por Degni(17) e por De Cupis(18), e também sustentada pela Procuradoria-Geral da República (19).
Outros autores há que, pelo contrário, sustentam que o cadáver é coisa no comércio, pelo menos em termos mitigados Assim, Ferrara sustenta que em geral o cadáver é coisa extra commercrum, mas, por vontade do testador ou disposição da lei, pode ser objecto de direitos e tornar-se portanto coisa no comércio (20) Opiniões semelhantes defendem o Doutor Cabral de Moncada (21) e J Lopez Berenguer (22)

8. APROXIMAÇÃO DO PROBLEMA DOS DIREITOS RELATIVO À PERSONALIDADE -A generalidade da doutrina jurídica inclina-se, por conseguinte, paia a solução de qualificar o cadáver como coisa.
Não é difícil, todavia, ao compulsar-se qualquer obra jurídica sobre o assunto, verificar-se que a natureza assim atribuída ao cadáver não traduz com rigor o pensamento profundo dos autores Para se ver que essa é a realidade basta considerar a circunstância de quase sempre os problemas relacionados com o cadáver sei em versados a propósito dos chamados direitos de personalidade.
E compreende-se bem que assim seja.
Antes de mais, e por muito tecnicistas que os autores se confessem ou se mostrem no pormenor de suas construções, eles não podem deixar de ser sensíveis às tradições e às crenças respeitantes ao cadáver, e essas são todas no sentido, como só viu, de atribuir a este significado ético e de o aproximar de realidades de carácter moral e religioso, insusceptíveis de caberem na mera ideia de coisa
Por outra parte, os próprios problemas jurídicos que, em geral, se suscitam acerca do cadáver apresentam estreitas ligações relacionadas com questões genéricas relativas à personalidade.

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(12) Tratado ao Direito Civil, Coimbra Editora, 1920, Coimbra, vol. I, p 304 Cf vol. III, p. 55.
(13) Sentença de 81 de Agosto do 1874, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, vol vil, p. 845.
(14) DIAS Porreira, Código Civil Português Anotado, 2.º ed , Imprensa da Universidade, 1894, Coimbra, vol. i, p. 6.
(15) Obra e lugar citados.
(16) Nota ao § 40 do Diritto delle Pandette, de Windscheid, Unione Tipografico-Editnce, Turim, 1902, vol. i, p. 618
(17) Degni, Le Persone Pinche, Unione Tipografico-Editnce, Turim, 1989, p 199
(18) De Cupis, I Diritti della Pononalità, Dott. A. Giuffrè - Editore, Milão, 1950, p 77
(19) Citado parecer de 27 de Novembro de 1952, in Condição Jurídica do Cadáver, p 9.
(20) Diritti delle Persone e di Famiglia, Casa Editrice Dott Eugênio Jovens, Nápoles, 1941, p 104
(21) Lições de Direito Civil, 8.º ed , Atlântida, Coimbra, 1969, vol. II, p 88.
(22) 0b cit. p 205

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Assim, logo o destino geral do cadáver, a consumpção por meio de enterramento ou, anòmalamente, por cremação, levanta problemas de regime que põem em jogo direitos directa ou indirectamente ligados à personalidade.
Em todo esse regime se manifesta, com especial interesse para o nosso estudo, a vontade do próprio falecido ou das pessoas de sua família.
Relativamente aos funerais e enteiramento o Código Civil manda expressamente observar as disposições do falecido, no artigo 1899, n.º 1, e o Código do Registo Civil de 1932 estabelecia no artigo 327.º que as solenidades dos funerais se regulariam pela vontade do falecido ou, na falta de declaração dele, pela vontade de sua família. E, note-se, paia esta segunda hipótese não se manda observar a vontade dos herdeiros (como seria de espetar se o cadáver constituísse uma coisa que testasse do falecido), mas sim das pessoas de família, e, como se tem entendido, o direito dos familiares, baseado nas relações pessoais deles com o morto, não só é independente da qualidade de herdeiro, mas dele sei reconhecido por ordem determinada pelo grau de intimidade dessas relações, outrém diversa da que a lei fixa para a sucessão legitima, ou seja, deve atribuir-se em primeiro lugar ao cônjuge, depois aos filhos, etc
O Código do Registo Civil de 1958 não contém qualquer disposição análoga i, do citado artigo 827.º do código anterior, mas, do regime fixado paia a cremação, deduz-se que o pensamento do código se ajusta aos princípios que acabámos de enunciar.
Como se sabe a Igreja Católica proíbe, em regia, a cremação dos cadáveres (Codex Júris Canonici, cânon 1203, §§ 1.º e 2.º), não porque em si mesma ela seja responsável, mas por, com frequência, ser defendida com um sentido essencialmente anti-religioso, e por isso submete os infractores a penas canónicas. Já esta circunstância constitui exemplo de um problema de regime jurídico que transcende por completo a simples regulamentação das coisas o regime não é determinado directamente em função do que representa o cadáver em si mesmo ou aquela for rua de o consumo, mas fim em atenção a relações de ordem ideológica que se pretende estabelecer entre a clemação e outras realidades que lhe são totalmente estranhas. Como quer que seja, a lei civil admite ou tolera a cremação, mas exige, para ela se efectuar, além de outras condições, a determinação expressa do falecido feita por escrito [Código do Registo Civil, artigo 244.º, alínea a) do n.º 2], também aqui é decisiva, como se vê, a vontade do falecido. Nesta matéria, todavia, a lei confere relevância especial à vontade dos familiares, por quanto não se contenta com a declaração do falecido exige que a incineração seja requerida pelo cônjuge sobrevivo, ou, não existindo este, pela maioria dos descendentes de maioridade do falecido ou, na falta de todos, pelo parente mais próximo (código citado, artigo 244.º, n.º 1).
Não é despiciendo mencionar-se o facto de a lei requerer, para a clemação, a apresentação de atestado médico comprovativo de que a morte resultou de causa natural, confirmado pela autoridade sanitária competente, à qual incumbe informar sobre a inexistência, no caso concreto, de qualquer inconveniente na incineração [código citado, artigo 244.º, alínea b) do n.º 2], e ainda dizer-se que, em caso de morte violenta, a incineração só poderá ser autorizada depois de realizada a autópsia e com o parecer favorável do agente do Ministério Público (ibid , artigo 244.º, n.º 3). Tudo são precauções legais que revelam que o regime jurídico do cadáver não é traçado a partir do que ele representa em si mesmo, mas de circunstâncias relativas à pessoa a quem pertencia e a respectiva morte
Todo o regime jurídico do cadáver nos encaminha paia esta última conclusão, mas é de especial interesse ponderar-se o papel atribuído pela lei à vontade do falecido e dos familiares.
Quanto ao funeral e enterramento, já se disse que é decisiva a vontade do defunto. Ora é evidente que este facto coloca directamente um aspecto do regime do cadáver no círculo dos direitos que a própria pessoa tem sobre si mesma e sobre o seu corpo podei á classificar-se o cadáver de coisa e sustentar-se até sei ele coisa no comércio, por sei susceptível de constitui! objecto de direitos, mas a verdade é que o direito de dispor do cadáver paia efeitos de funeral e enterramento pertence ao próprio falecido e por conseguinte, enquanto este é vivo e o seu corpo se acha fundido na sua pessoa.
Claro que se poderá dizer, para salvar os aspectos formais da dou ti ma jurídica, que o direito em questão respeita a uma coisa futura. É obvio, contudo, que este modo de ver não corresponde ao conteúdo ideológico e sentimental do regime em causa, por isso que, indiscutivelmente, ele é moldado pela ideia de disposição do corpo próprio, como tal o que está em causa não é uma coisa, e ainda menos uma coisa futura, antes se tem em vista o destino que o corpo, em atenção ao que é em vida, deve ter depois da morte
Conjuntamente com a vontade do falecido, a lei considera ele vau te a das pessoas de sua família, seja subsidiariamente (caso da inumação), seja cumulativamente (caso da incineração) Nesta última hipótese, a lei constitui, em favor dos familiares, um direito que só surge depois da morte e, por isso, recai directamente sobre o cadáver, é manifesto, contudo, que esse direito assenta em fundamentos idênticos aos do direito concedido ao defunto em vida e que tem natureza análoga à dele, não se trata, por conseguinte, de um direito sobre uma coisa, como tal, senão de direito relativo ao corpo de uma pessoa, se bem que morta.
Por outro lado, é legítimo aproximar a disposição do cadáver da que as pessoas vivas podem fazer de partes do seu corpo, e não é difícil enunciai hipóteses em que progressivamente nos vamos afastando da ideia de coisa.
Assim, é lícito dispor-se de uma parte separada do corpo (cabelo, por exemplo), como é legítimo celebrar-se contrato acerca de partes que hão-de vir a ser separadas do corpo, ou ainda do próprio corpo na sua integridade (por exemplo o contrato que tenha por objecto a alteração do corpo, por meio de intervenção cirúrgica). Sem querer discuta o valor moral de todos estes casos, ou de todas as modalidades com que eles podem apresentar-se, bastamos por em evidência que as razões invocáveis para se defender a eficácia da vontade em tais hipóteses, ou para se lhe impor restrições, são afinal as mesmas que poderão aduzir-se a respeito da disposição do cadáver e das limitações impostas a vontade, relativamente ao destino deste.
E tudo quanto se tem dito é aproximável do regime estabelecido para os aproveitamentos do cadáver para fins científicos ou judiciários o que sempre pesa na lei é a consideração da pessoa, e não o cadáver olhado exclusivamente no seu estado presente.
Quer dizer contra a ideia tecnicista de que o cadáver é uma coisa ou, para se explicarem os direitos concedidos ao próprio homem sobre o seu corpo depois da noite, uma coisa futura verifica-se que todo o regime legal tem em vista aspectos em que o cadáver reflecte a pessoa a quem pertenceu em vida e as relações dela com outras pessoas, os factos da sua vida e as crenças ou princípios por que se orientava. De um ponto de vista substancial, longe do o cadáver nos aparecer como coisa, presente ou futura,

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surge-nos tratado na lei como pessoa, se se quiser, presente ou passada.
Tudo quanto se deixa dito nos mostra a razão por que a maioria dos autores, se bem que apegados à concepção do cadáver como coisa, verse os problemas respectivos não a propósito das coisas, mas dos direitos relacionados com a personalidade.
E essa é, precisamente, a conclusão a que devemos chegar seja qual for a natureza atribuída ao cadáver, visto isoladamente, o regime jurídico dele só é compreensível quando integrado no conjunto dos problemas morais e jurídicos suscitados pela personalidade humana e por toda a sua projecção na ordem jurídica.

9. IMPORTÂNCIA DAS RELAÇÕES DO TRATAMENTO JURÍDICO DO CADÁVER COM A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DA PERSONALIDADE, MOTIVO POR QUE NÃO PODE PROCEDER-SE AQUI AO ESTUDO DESSA MATARIA - As considerações feitas no número antecedente mostram-nos que, paia o estudo rigoroso e completo do cadáver, poderia ter muito interesse procedei-se ao prévio desenvolvimento de toda a problemática jurídica da personalidade, nomeadamente no tocante aos chamados direitos de personalidade, aos direitos da pessoa sobre o próprio corpo e aos direitos sobre a pessoa de outrem.
São bem conhecidas as controvérsias que tais problemas têm levantado, e as incertezas e dificuldades que hoje imperam em toda esta matéria. Esse estado da doutrina só revela, a nosso ver, a grande importância dos problemas em causa se pudéssemos tomar a letra a asserção, feita pelo Prof. Cabral de Moncada (23) acerca deste tema, de que tudo se pode sustentar quando se trata de construções puramente teóricas como estas, ou sequer pudéssemos dizer com De Cupis (24) que se trata de um problema de construção dogmática, de interesse essencialmente teórico, e que, quando se tenha clara consciência dos fins práticos do direito, logo se advertirá nos limites da importância de tais problemas - se pudéssemos subscrever estas afirmações, nem sequer deveríamos fazer aqui qualquer referência aos problemas em questão.
Infelizmente o tema não nos pareço assim tão desprovido de interesse e de projecção prática.
Tal como a Eltzbacher, também a nós parece incompreensível que o direito se ocupe da categoria do ter e despreze a do sor (25) - que o direito proteja o homem naquilo que ele tem, e o abandone naquilo que ele é.
E, convictos, como estamos, de que a eticidade - e com ela, a juridicidade - pertence à própria essência do homem e de que, portanto, o direito não ó simples superstrutura artificialmente sobreposta à realidade, como veste que possa talhar-se ao sabor da moda ou do capricho individual, não oremos que a missão do jurista seja apenas a de erguer construções lógicas estranhas à realidade, como quem compõe figuras geométricas com peças separadas umas das outras, a elaboração doutrinal destina-se a revelar a verdade jurídica, e, ainda que esse fim possa sei demandado por meio de técnicas diferentes ou por linhas de pensamento variáveis, o objecto em si não muda e nele há-de residir o critério para apreciar os resultados obtidos.
O problema tem tanta mais acuidade quanto não basta, em questões deste tipo, destrinçar o verdadeiro do falso, como sucederia em muitos sectores das, ciências positivas o homem não é apenas um ser natural, mas também cultural - as ideias, os hábitos, os exemplos, incorporam-se no seu sei e condicionam-lhe o comportamento, por isso os erros, em matérias deste género, uma vez difundidos e assimilados, adquirem realidade interna, instalam-se na vida do homem como vírus que lhe altera os tecidos ou neles provoca reacções anormais, e frutificam em modos de procedei contrários à realidade profunda da personalidade.
E, bem a nosso pesar, temos de reconhecer que é isto o que se tem passado com o tema que nos ocupa.
A teoria dos direitos sobre a personalidade tem estado entregue a toda a espécie de abstracções e ao mais intenso tecnicismo. Daí aquelas infindáveis controvérsias, em que a distância se aduzem os mesmos argumentos sem se consegui convencer os adversários, daí, também, aquela estranha tendência para se assimilarem realidades que o senso comum impõe como diferentes, ou para cindir outras cuja essência é manifestamente unitária - para cindir até o próprio homem, não obstante a unidade essencial do seu sei.
Não admira, pois, que Windscheid, posto que só em razoo de os conceber como direitos absolutos, aproxime perigosamente os direitos sobre a pessoa própria dos direitos leais, e diga que a vontade é decisiva quanto a pessoa própria como nos direitos reais o é quanto a coisa (26). Nem que Rogum vá mais longe e sustente que os chi eitos reais e os potestates têm a característica comum de serem poderes sobre entes considerados como coisas mortes, os homens, objectos das segundas, são atingidos por elas com abstracção da sua alma - os direitos de potestade e de família (que para este autor constituem os direitos sobre a pessoa de outrem, isto é, sobre pessoa alheia) recaem no homem encarado como coisa, e não suo mais do que direitos reais, especializados pelo seu objecto(27). Nem sequer que Carnelutti ainda seja mais ousado, e afirme que o homem funciona umas vezes como pessoa e outras como coisa, e que esta última é a posição dele quando objecto de direitos sobre pessoa própria ou sobre pessoa alheia (28).
Toda a distância que possa mediar entre estes autores, seja quanto ao valor relativo deles, seja quanto ao estado de adiantamento da doutrina jurídica nos lugares e tempo onde escreveram, só serve paia acentuar como neste terreno movediço podem brotar as mais estranhas e perigosas ideias Perigosas, sim, pois - por inócuas que sejam as intenções dos autores e por mais restritos que se apresentem os sectores em que eles se movem - é óbvio que as teses deste tipo criam um clima próprio para a prática evoluir efectivamente no sentido de o homem deixar de ser homem e passar a sei visto, na realidade, como coisa.
E a prática não se tem feito rogada. Muito longe, embora, de se descortinar qualquer nexo de causalidade directa entre cada opinião e cada facto, a verdade é que, paralelamente às hesitações e malabarismos da doutrina, as ideias correntes e os factos da vida prática têm agravado consideràvelmente a situação do homem dos direitos sobre a pessoa própria, baluartes da segurança individual, passou-se ao poder de dispor do próprio corpo e a tendência para legitimar os contratos mais estranhos e para mercadejar com o próprio corpo, e dos direitos sobre a pessoa alheia, restritos a aspectos essenciais da sociedade e do homem, degenerou-se para toda a espécie de aproveitamentos ou utilizações do homem como simples objecto.

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(23) Ob. cit., vol I, nota n.º 2 à p. 74.
(24) I Diritti delia Personalita, p 26
(25) Die Handlungelahighet, I, 1901, p. 310, criado por De Cupis, ob. cit., p. 24.
(26) Diritto delle Pandette, od e vol cits , p 177
(27) La Règle de Droit, F Rouge, Libraire-Éditeur, Lausana, 1889, pp 258 o 259.
(28) Toria General o del Diritto, 3.ª edição. Soc Ed del «Foro Italiano», Roma, 1951, pp 125 e segs Mais adiante (infra, nota 85) daremos uma notícia mais completa desta teoria

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E quando não querem sancionar essa tendência, pelo menos nas modalidades mais extremistas, os legisladores são tomados de preocupações de que os antigos foram isentos e vêem-se obrigados a fixai limites à livre disposição das pessoas, com isto mesmo, porém, denunciam o desagravamento dos factos (26).
Também neste ponto se pode dizer, à semelhança do que Savigny afirmava acerca das leis romanas sobre a família (30), que as legislações, isoladas dos costumes, podem dar uma ideia muito impei feita da realidade social - muitas vezes a ausência de certas garantias legais significa a harmonia e correcção dos costumes, tal como, em muitos casos, o reconhecimento delas, em vez de representar a conquista de uma segui anca até aí inexistente, é antes imposta pela necessidade de reagir contra costumes ou tendências contrários e reprováveis.
A obra de Decocq, Essar d'une théorte genérale des droits sur la personne, reflecte claramente o espírito de que é animada a evolução legislativa e jurisprudencial dos tempos modernos, no tocante ao problema que nos ocupa. Dominado pela concepção voluntarista e empirista do direito, tão característica de importantes sectores da doutrina francesa, não só procura ai rolar e descrever toda a espécie de direitos sobre pessoa alheia, consagrados pelas leis e pela prática dos tribunais, mas fala também e constantemente na «sacialidade» da pessoa, a qual diz fundada num «sentimento irracional», na sacralidade do cadáver, nos «tabus» e na «aura mágica» da pessoa, no «dogma da intangibilidade» do corpo humano, e chega a afirmar que, paia numerosos autores, a impossibilidade de terceiros adquirem direitos sobre o corpo de pessoas alheias sem o consentimento delas constitui um «dogma aceite em virtude de uma fé reflectida, ou considerado como uma verdade revelada», e, não sem aprazimento, legista as manifestações da «dessacralização» das pessoas e do cadáver, e do recuo do dogma da intangibilidade e da tendência para a dessacralização da pessoa (31).
Não se diga, pois, que estes problemas têm interesse meramente teórico, nem se pretenda, sequer, que eles sejam estranhos às questões versadas no presente parecer e relativas ao cadáver.
Todos os aspectos em que se desdobra o tema dos direitos relacionados com a personalidade são solidários entre si, e as hesitações e incertezas da doutrina, aliadas aos progressivos abusos da prática, mostram que teria a maior importância definem-se com rigor os fundamentos racionais dos atributos e prerrogativas que hão-de defender o homem não só do seu semelhante e da sociedade, mas até dos desvios próprios. E importa reconhecer-se que todos as limitações inconsideradas dessa defesa, toda a brecha aberta nesse reduto sem as devidas precauções, têm sempre grande probabilidade de contribuir para desorientar as ideias e para enfraquecer as garantias da personalidade
Nestas preocupações deve ter lugar de relevo a sorte do cadáver humano. Além dos nexos directos, existentes entre as questões a ele respeitantes e os problemas relativos a personalidade, é de grande importância o reflexo que as concepções correntes e as opiniões científicas, acerca do corpo de pessoas falecidas, podem exercer sobre a resolução da problemática geral da personalidade. O respeito e veneração pelo cadáver é, já o dissemos, velho como o mundo, e, se bem se pensai, ver-se-á que ele tem constituído eficacíssima garantia para a personalidade destituído de vida, incapaz de se defender e abandonado, portanto, à piedade e a honra dos vivos, o cadáver tem sido um dos mais fortes diques opostos à torrente dos desarmamentos e do materialismo, desprezem-se os despojos do homem, tomem-se eles como coisas, transformem-se em meros objectos, e em breve se começará a perguntar se há diferença entre eles e o velho moribundo, o imbecil, o delinquente perigoso ou o simples doente que já em si traga o germe da morte.
Entre todos os sectores deste tema há relações profundas e, por assim dizer, intrínsecas, que hão-de estar presentes a quem pretenda ter a visão integral e rigorosa de todos os aspectos em que ele se desdobra. Mas há mais, ainda há entre eles relações extrínsecas, criadas por simples contiguidade ou analogia, que tornam agudos, para o conjunto da questão, os próprios problemas particulares de cada um desses aspectos.
Por tal razão, poderia afigurar-se indispensável, para o nosso objectivo, examinar-se o complexo desses problemas em toda a sua extensão e profundidade Não pensamos, todavia, que seja conveniente ou, ainda menos, necessário alargar, por essa forma, o âmbito do nosso estudo.
Na verdade, a própria complexidade desses problemas não nos permite levar a cabo essa importante tarefa Para o fazermos, seria necessário traçar-se o quadro das concepções fundamentais acerca dos direitos que, numa fórmula propositadamente vaga, temos chamado direitos relacionados com a personalidade, e dar conta das principais dúvidas que eles têm suscitado.
Enveredar por esse caminho sua, porém, transcender por completo o nosso tema e - o que seria pior - permitir que ele se dissolvesse numa exposição forçosamente extensa, deixando de constituir o objecto principal das nossas indagações, e não e deslocado observar-se até, a este respeito, que um dos males de que tem padecido a teoria jurídica do cadáver consiste, exactamente, em ela ser desenvolvida, em geral, como acessório de outras construções de maior relevo As considerações acima feitas põem em evidência a necessidade de nunca se esquecer que essa teoria se encontra em íntima relação com a da personalidade, mas não devem sei motivo para desviarmos a atenção daquilo que é, na realidade, o objecto directo do estudo que nos cumpre fazer.
Por outro lado, para se evitarem as dificuldades com que se tem debatido a doutrina dos chamados direitos de per-

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O artigo 5.º do Código Civil italiano estabelece, nesta ordem de ideias. «Os actos de disposição do próprio corpo silo proibidos quando causem limitação permanente da integridade física ou quando sejam por outra forma contrários a lei, à ordem pública ou aos bons costumes».
O anteprojecto do novo Código Civil Francês (Avant-projet de Code Civil presente par la Comission de Reforme du Code Civil, I parte, Librairie du Recueil Sirey, Paris), por seu lado, consagra no artigo 151.º a proibição dos netos de disposição de todo ou de parte do próprio corpo, quando impliquem ofensa gravo o definitiva à integridade do corpo humano, salvo quando justificada pela arte médica.
Mais recentemente, o Ministério da Justiça português publicou o projecto do livro i do futuro Código Civil (Código Civil, livro I, parte geral, 1.ª revisão ministerial, Lisboa, 1981), onde se contém a seguinte disposição, inspirada em preocupações análogas às das citadas anteriormente.
Art 59.º (Limitação voluntária dos direitos de personalidade) - 1 Toda a limitação voluntária imposta ao exercício dos direitos da personalidade é nula, quando contrária aos princípios da ordem pública.
2 Se não for nula, a limitação voluntária ó sempre revogável, ainda que com obrigação de ressarcir os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.

(36) Traité de Droit Romain, trad do alemão, I, Firmin Didot Frères, Paris, 1840, p 344.
(37) Ob cit, passim, mormente os n.ºs 15, 20, 26, 27, 46, 52, 54 e 282, texto e epígrafes que os antecedem ou constam do índice

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sonnlidade seria sempre necessário rever-se essa doutrina à luz de uma concepção substancial da personalidade Mas uma vez que assim se proceda e se lancem as traves mestras da ordem jurídica em harmonia com uma concepção personalista já se disporá das bases necessárias para se construir a doutrina jurídica do cadáver sem necessidade absoluta de se versarem todos os problemas relativos aos direitos de personalidade, com essa orientação se conseguirá, ainda, a vantagem de não diluir o objecto deste estudo numa matéria muito mais vasta, no conjunto da qual sem dúvida ele surgiria devidamente enquadrado, mas, afinal, ao mostraria também um tanto subalternizado.
Por todos estes motivos, em vez de tomarmos como fulcro das nossas pesquisas os direitos de personalidade, achamos preferível investigar directamente os fundamentos profundos da resolução dos problemas que especificam e visamos, e que residem nos aspectos gerais e extra jurídicos da personalidade humana, bem como nos corolários fundamentais que daí devem inferir-se acerca da estrutura básica da ordem jurídica Assentes esses fundamentos, enfrentaremos abertamente os problemas relativos ao cadáver, tomando, do conjunto das questões respeitantes aos direitos relacionados com a personalidade, apenas aquelas que mais estreitamente se prendem com essa matéria.
Em obediência a este programa, começaremos no texto subsequente por examinai as perspectivas fundamentais do homem e da sua morte a luz da doutrina cristã, à qual nos acolhemos pelos motivos adiante expostos, e tentaremos, em seguida, definir as linhas fundamentais de uma concepção personalista do direito ajustada a essas perspectivas Posto isso, procuraremos construir directamente a doutrina jurídica do cadáver tal como ela deve brotar daquela concepção personalista do direito.

§ 2.º Perspectivas fundamentais do homem e da sua morte perante a doutrina cristã

10. RAZÃO DE SER DESTE ESTUDO. - Abandonando pois o estudo ex professo da construção técnico-jurídica da personalidade e dos direitos com ela relacionados, e procurando colocar-nos apenas no plano das concepções fundamentais quo, aliás, sempre teriam de sor examinadas para proceder correctamente a essa construção, o primeiro problema que se propõe à nossa consideração é o de saber se o corpo do homem e o cadáver em especial têm carácter sagrado, como se lhes tem atribuído, ou se não se trata antes de simples «tabu» ou mera «aura mágica», como, segundo dissemos, já se tem pretendido.
Para se responder a esta pergunta e, no conjunto do tema, se saber distinguir o que é efectivamente fundamental do quo corresponde a simples desvio ideológico ou a verdadeira superstição, parece-nos indispensável tentarmos uma síntese dos ensinamentos da doutrina cristã a respeito do homem, da sua natureza, da sua morte e do sou fim último.
Ao cristianismo se deve, na verdade, o pleno reconhecimento do valor da personalidade humana, e esse não é, decerto, um dos menores benefícios que ele outorgou a humanidade, visto que, longe de se ter reduzido a simples teoria ou programa de reforma, logrou penetrar na propila vida e moldar aquele tipo especial de civilização, ao qual muitos chamam ocidental, mas que, por antonomásia, é também apelidada de civilização cristã.
Decerto poderiam existir outras formas de civilização inspiradas pelo cristianismo. Mas a verdade é quo, vista em si mesma, aquela pode reivindicar, com justiça, o nome na custa, porquanto assenta em estruturas - aliás de valor universal - que só o cristianismo pode erguer e sustentar, e, mesmo naqueles cambiantes particulares, resultantes do qualidades e tendências dos povos do Ocidente da Europa e dos seus seguidores, essa civilização é verdadeiramente filha do cristianismo, pois só no clima por ele criado aquelas tendências e qualidades conseguem o florescimento pujante que, no decurso da história, têm distinguido aqueles povos desde o advento do cristianismo.
Mas, para se poder beneficiar do progresso moral e cultural assim alcançado, importa que as verdades custas sejam tomadas como são, no seu significado profundo e integral, e não apenas em aspectos formais ou marginais.
Com efeito, nem as estruturas de que falamos, nem o alento dado àquelas tendências e qualidades dos povos ocidentais podem relegar-se para a categoria de simples aquisições do passado, susceptíveis de medrarem por si, desenraizadas da terra mater onde brotaram À medida em que progridem o materialismo e a religião, os fundamentos da civilização cristã vão sendo abandonados ou transformados em meras práticas de rotina ou fórmulas vazias de conteúdo vivo. E a experiência demonstra que, assim deturpadas e privadas da seiva essencial, essa rotina e essas fórmulas acabam por se erguer contra os valores nelas mesmas expressos - são como os tecidos cancerosos que, tomando súbito e desordenado desenvolvimento, acabam por destruir o organismo de cujo equilíbrio se emanciparam Por isso muitas vezes se tem visto sacrificar, em nome dos valores da personalidade, não apenas alguns aspectos secundários da mesma personalidade, mas a dignidade mesma e até a vida do próprio homem.
Por esse motivo nos parece indispensável, para se compreender a influência decisiva do cristianismo na defesa da personalidade, e nele haurir as luzes cada vez mais necessárias para a firmar, dizer alguma coisa sobre a concepção cristã do homem, e, ainda que em síntese, cumpre fazê-lo quanto possível por forma integral - única verdadeira - e portanto sem mutilar essa concepção e sem ocultar os seus fundamentos especificamente religiosos, pois o esquecimento ou obliteração dela precisamente a transformariam em mentira estéril ou, mais ainda, maléfica e perigosa.
E não nos devem embaraçar neste ponto quaisquer preocupações acerca de eventuais divergências de opinião Trata-se afinal de exprimir aquele clima que anima o nosso povo e o autoriza a vindicar para si a religião e a moral cristas (Constituição Política, artigos 48.º, § 8.º, e 45.º), e a alma dos povos, como a de todos os verdadeiros comunidades, não se restringe ao somatório ou justaposição mecânica das opiniões ou tendências individuais brota da maneira de ser, das inclinações e dos costumes, da experiência, e das tradições, do influxo, enfim, das personalidades que, no passado ou no presente, são intérpretes das ideias e sentimentos colectivos, impulsionadoras da vontade comum e propagadoras da missão a que todos os membros da comunidade hão-de votar-se A comunhão em tais ideias e sentimentos, o comprazer-se coda um na forma de vida por eles inspirado, o empenho em cumprir aquela vontade comum, a todos anima do mesmo espírito, ainda quando a diferença de idade, de condição social e cultural ou de crenças e opiniões não permita a alguns participarem da plena vivência do espírito comum, e todos afinal, sem quebra da verdade individual nem ofensa da consciência própria, se tornam, por este modo, solidários nos benefícios e nos méritos alcançados colectivamente na vida comunitária

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E para nós, que no cristianismo forjámos a nossa alma nacional, é menos do que nunca descabido tomar consciência dos factores que a formam, quando se trata de apreciai uma lei essencialmente relacionada com os valores da personalidade, e cujas repercussões podem ir até muito além de quanto os seus preceitos regem directamente.
Outro motivo, ainda, impõe a análise destas concepções fundamentais, inerentes a nossa cultura a necessidade de as leis respeitantes à personalidade e, nomeadamente, ao cadáver não ofenderem os convicções correntes, no que têm de respeitável, sem contudo se deixarem embai açaí por ideias erróneas ou meramente adventícias Ora o que há de digno de consideração em tais convicções resulta, precisamente, das concepções custas acerca do homem, da sua vida e morte, e do seu cadáver, mas, confundidos com elas, pode haver erros e superstições que as desvirtuem, e de que o legislador pode licitamente libertar-se ou tentar consegui, e, para se fazer a destrinça correcta destes vários elementos, é indispensável conhecerem-se as ideias fundamentais do cristianismo, mesmo para aqueles que, embora as não aceitem integralmente, desejem honestamente respeitá-las como ideias dominantes.
Tudo isto nos obriga,, por isso, a tentar uma síntese da doutrina cristã acerca destes problemas, antes de procurarmos enunciar as nossas posições relativamente às questões que nos cumpre apreciar.

11. A PERSONALIDADE HUMANA E AS SUAS COORDENADAS
FUNDAMENTAIS - A grandeza e a dignidade do homem, e a par e em contraste com elas a constante insatisfação, a fraqueza e pequenez perante as audácias dos seus ideais, a caducidade, enfim - essas duas ordens de aspectos antagónicos cujo conflito exprime todo o drama da humanidade, mas lhe permite também alcançar, pela história dos valores superiores, a glória e a felicidade -, assentam as suas raízes, segundo a concepção custa, na própria génese do universo e do tempo e na missão que neles foi atribuída ao género humano
A simples razão natural pode, de per si, encaminhar-nos nesse sentido, e, por isso, sa filosofia perene» oriunda do pensamento grego ]á nos permite atingiu importantes aspectos daquela concepção, não obstante aquele pensamento ser anterior ao cristianismo e isento de qualquer influência da Revelação e mesmo quando completado e desenvolvido por autores cristãos, como Santo Tomás, não receber dos ensinamentos da fé mais do que sugestões, depois explicadas e confirmadas por via racional.
Assim nos demonstra aquela filosofia que, reflectindo-se sobre o homem e sobre o Mundo, se é levado a conclui que todo o universo é criado por Deus ser absoluto, dotado de todas as perfeições em grau infinito e criador e ordenadar de todos os outros sei es Existindo. Ele todo o bem possível, a perfeição que as intui as podem atingiu é sempre reflexo e participação na perfeição divina, é sempre imagem (ainda que embaciada pelas deficiências próprias dos seres finitos) daqueles aspectos dessas perfeições de Deus que, conhecidas por. Ele em si mesmo, constituem as ideias divinas ou arquétipos, que são modelo das criaturas e lhes determinam o ser e a actividade, e que, para cada um delas, são a forma, o elemento que põe a respectiva matéria em acto e organiza e rege as operações que lhe suo próprias.
Partindo destas premissas e da distinção entre matéria e foi ma, e potência e acto, revela essa filosofia como todo o acto tende a comunicar-se e todo o ser em potência é inclinado para atingir ou integrar a sua forma, tomando-se acto O bem é difusivo e o ser é (...), e por esse motivo em todo o ser que se encontre em acto imperfeito há a inclinação natural para integrar a sua forma, inclinação a que Santo Tomás chama apetite natural e que, em grau sucessivamente mais elevado, se manifesta nos sei es desprovidos de conhecimento, naqueles que são dotados de conhecimento meramente sensitivo e no próprio homem, a quem foi facultado possuir o conhecimento intelectual e o correspondente apetite racional, a vontade.
Esse «apetite», qualquer que seja a natureza respectiva, revela que todos os seres criados são inclinados por imposição da própria essência para um bem, para um resultado «apetecido» consciente ou inconscientemente, que ainda não possuem e para o qual caminham - resultado que, por isso mesmo, paia eles representa um fim. Nisto se evidencia o princípio da finalidade, imposta a tudo quanto existe no universo e que pressupõe uma inteligência, transcendente e ordenadora, e uma vontade que exige o cumprimento desse fim e determina a natureza dos seres por forma a incliná-los para o demandarem Por isso se afirma que o fim é a causa das causas.
No homem encontram-se as três formas de «apetite». Nele se manifestam, antes de mais, exigências naturais, independentes do conhecimento sensível ou racional, como sejam as de viver e a de conservar-se e desenvolver-se Igualmente se apresentam nele formas de apetite sensitivo em que se compreendem algumas exigências de extrema importância para a realização da personalidade, tais como a exigência da inviolabilidade da dignidade e intimidade próprias e a aspiração vital de amar e ser amado. Finalmente, existe no homem o apetite intelectual ou vontade, que se dirige ao bem em si mesmo, e, portanto, a um bem susceptível de ser apreendido pela razão e, como tal, objecto adequado das potências humanas mais elevadas.
Nos aspectos mais nobres, destas tendências, para se realizai, o homem não permanece, aliás, confinado nos limites das suas inclinações internas Segundo o pensamento de Santo Tomás, o conhecimento implica a apreensão dos «formas» dos seres conhecidos, facto pelo qual a alma humana se toma em tudo quanto conhece e tende a realizar essas formas que possui em si mesma. E, formulando e combinando juízos sobre a idealidade imanente nos seres do universo, o homem descobre novas idealidades que passam a constituir «formas» novas, as quais, em obediência às próprias leis do ser, tendem a actuar-se Daí ser lícito, em certa medida, afirmar-se que o homem tem o poder de criar, pois concebe formas novas e age para as pôr em acto, nesta perspectiva se encontra a interpretação metafísica da indústria, da arte, da invenção, das criações humanas de toda a espécie uma terra cultivada, uma árvore podada, uma casa, uma cidade um país, a civilização inteira, suo a alma humana materializada - são como que ura sei ampliado, um prolongamento que o homem outorga a si mesmo, difundindo a sua idealidade imanente (12).
Todos os tipos de «apetites» que se apresentam no homem resultam da própria essência dele desligados de tudo o que, na condição presente da humanidade, possa implicai desvio ou deturpação da natureza, são exigências ontológicas da personalidade, e manifestações da finalidade e da ordem criadas por Deus, ordem na qual até a vontade livre tem de integrar-se, por isso que é movida pela razão e esta é, precisamente, participação na inteligência ordenadora de Deus.
Por tal motivo os «apetites», no que têm de profundo e radical não são meras tendências adquiridas, nem obra da vontade humana, não constituem realidades extrín-

(32) Sentillanges, La Philosophie da St Thomas d'Aquim, II, Aubier, Editions Montaigne, Paris, 1940, p 231

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secos por qualquer modo dependentes do arbítrio do cada indivíduo ou dos seus semelhantes, em termos de perderem a lazão do sei logo que, por deficiência de idade ou do inteligência, cada um seja inapto para os conhecer, ou logo que a satisfação dessas exigências pareça aos outros homens desprovida de interesse Fundados na vontade de Deus e intrinsecamente constitutivos da essência humana, impõem-se ao respeito do coda um e de todos os homens - são ditames das leis próprias do ser, por imposição das quais o para além do conhecimento ou do alvedrio, quando existam, cada ente reclama o bem que lhe é próprio e que constitui o complemento e realização da sua forma.
A firmar-se quo todos os «apetites» revelados pela natureza e enquanto conformes a esta se impõem ao respeito dou homens não significa, todavia, que todos eira devam ou, sequer, possam satisfazer-se paralelamente e em toda a extensão e plenitude.
A simples consideração dos tendências que se desenvolvem no homem nos demonstra que elas se orientam, em geral, para bens caducos e parcelares, incapazes de satisfazerem aos anseios profundos da alma humana, bens que muitas vezes silo contraditórios e, em alguns aspectos, chegam a mostrar-se nefastos, a luz de outras solicitações mais importantes Forque apresentam estes caracteres, tais bens silo vistos, normalmente, como meios para atingiu outros a quo se atribui maior valor, circunstância que, por si, Logo faz escalonai e hierarquizar os fins demandados pelo homem, e, por outra parte, à medida que pendemos do preferência para certos bens e os procuramos atingir como hm, mais nos apegamos a eles e nos sentimos inclinados a esquecer os outros tudo, no homem, se move por amor ao bem, e amar é optar e, por tanto, renunciar em verdade, por sobre todas as suas tendências parcelares e, quantas vezos, antagónicos, o homem aspira a um bem superior e unitário, que vê como ideal e considera o único apto para lhe proporcionai a felicidade.
Em tudo isto se evidencia, afinal, a unidade do ser humano, a qual há-de corresponder a uma forma único, cujo complemento representará, precisamente, a satisfação integral e harmónica de toda a personalidade.
A realização ou actuação do homem não reside, por conseguinte, na satisfação desordenada de todas as inclinações e energias que o animam, mas na conquista de um bem superior, capaz de preencher o forma que é lei do seu sei - um bem que constitui o fim para o qual tudo, no homem, se acho ordenado, e que por isso deve chamar-se fim último.
Na medida em que é livre e, por conseguinte, senhor dos seus actos e dos seus destinos, o homem tem de respeitar a hierarquia dos fins, através dos quais caminha pura o seu fim último sob pena de se negar e destruir a si mesmo, tudo nele - desde as tendências inferiores até o poder de «criar» por meio da realização das formas novas que concebo- há-de subordinai-se o coordenar-se em função de fim supremo.
Por isso Sertillanges adverte que a mais bela e nobre das criações humanas é o próprio homem, e que, aliás, a criação interior e exterior se acham ligadas entre si podendo agir sobre o mundo externo, agindo sobre nós mesmos, ó no trabalho interior que encontramos a melhor condição para o exterior, tal como o sentido humano das obras externas só pode ser dado pelo princípio imanente donde derivam K por isso a aite, que, pura Santo Tomás, é a recta ratio factibilum depende da moral, que é a recta ratio agibilium (...)
Assim se chega, pela interpretação metafísica do homem o do seu agir, à conclusão de que a ética - a ético que já Aristóteles fundava na noção de acto, como realização da forma de cada ser, e no de ideal, bem como na natureza divina das formas (...) - não constitui mera superstrutura sobreposto à natureza por convenção e rotina é, no campo da actividade racionai e livre, a expressão de exigência ontológica do completamento do forma pela realização do fim último, e mergulha, por conseguinte, as suas raízes no âmago do essência do homem e da própria origem dele - a criação por Deus, autor e ordenador de tudo quanto existe.
Estas verdades, que a razão natural pode alcançar, ficam, todavia, muito aquém daqueles estiemos de elevação e nobreza a que a Revelação cristã eleva o homem, ao mesmo tempo que desvenda a pequenez e caducidade de todas as realidades humanas e terrenas quando contempladas em si mesmas.
Pelos motivos acima expostos, é exactamente a concepção do homem inspirada por essa Revelação que, em especial, nos interessa desenvolver aqui Ti atando-se, porém, de fazer uma exposição objectiva do doutrina crista, vamos muito propositadamente seguir de perto os ensinamentos ao alguns especialistas autorizados, embora com a preocupação de os sistematizar e sintetizar por foi ma a pôr em evidência os aspectos de maior relevo paia o nosso tema
Segundo essa doutrina, Deus - Deus pessoal, omnipotente e eterno, uno e trino - criou todo o universo por um acto de amor Transbordando de amor pelo Bem infinito que n'Ele se contém melhor, que Ele pessoalmente e -, quis que esse Bem se manifestasse foro de si membro, e por isso criou seres que reflectissem e propagassem o mesmo Bem, e assim honrassem aquele Amor que os faz brotar do nada
Por tal motivo, os próprios seres inertes ou irracionais, por mais. insignificantes que pareçam, têm, no plano da citação, uma grande dignidade, pois se destinam a glorificar Deus e, encaminhados pelas leis causais por Ele ditadas, exercem essa missão com fidelidade e encontram nela a plena satisfação da sua essência e toda a felicidade de que são capazes.
Esses entes, todavia, cumprem o seu fim apenas objectivamente - não conhecem a razão sublime por que existem, nem podem, por consequência, saborear o Amor que lhes dou o sei Mas tão grande é esse Amor que Deus quis móis ainda quis criar seres dotados de razão e de liberdade, aptos para o conhecerem, amarem e servirem, em de, por essa forma, manifestarem consciente e livremente a glória divina e, como prémio, alcançarem a bem-aventurança de contemplar a Deus, face a face.
Do entre esses seres se destaca o homem, composto de corpo e de alma, e por isso especialmente dotado para pi estai a Deus a glorificação subjectiva no meio dos seres materiais do universo. Animado de alma espiritual e imortal, provido de razão e de liberdade, o homem é capaz de conhecer a Deus e de O amar e servir, e, pelo corpo material, enformado pela alma, vive no mundo e em contacto com ele e em condições, portanto, de contemplar nas coisas as grandezas divinas e de nelas fazer frutificar a irradiação de Deus, colaborando na glorificação objectiva que a Ele pi esta toda a natureza.
As exigências do Amor criador vão, contudo, ainda mais longe. Deus não é apenas a «causa primeira» ou «primeiro

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(...) Obra o volume citados, pp. 231 e 282
(34) Vide, sobre este e outros pontos versados atrás, Sertillanges, obra e volume citados, pp. 282 e segs o 175 e sega, e o vol I, pp 104 o segs

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motor» que se contente com o dar à criação o impulso inicial e logo a abandone ao logo da mera causalidade material ou à iniciativa das vontades livres, desprovidas de todo o apoio divino. Ao invés, Deus ama profundamente a Sua obra e dedica-lhe constante e infinita solicitude. É Ele que, em cada momento, sustenta o sei de todas as criaturas por uma actividade directa, sem a qual nada poderia subsistir, e Ele é quem opera, como agente principal, na actividade de tudo quanto existe, mediante a sua providência, encaminhando assim o universo, segundo um plano eterno, paia o fim paia que o criou, sem suprimir, aliás, a actuação real das criaturas E nem os seres livres - o homem, designadamente - são isentos desse governo, conquanto Deus os oriente por influxos de seu infinito amor que os não privam ria liberdade, antes os supõe responsáveis e capazes de mérito ou demérito a Providência dirige a cada homem um apelo constante para que se eleve até Deus e, por isso, longe de tornar supérflua a actividade humana, é ela quem lhe assegura sentido, forca, confiança e orientação, e que, em cada momento, lhe oferece oportunidade jamais renovada para que ele responda àquele apelo, contribuindo para que o Mundo atinja o estado que, sem tal contribuição, nunca chegaria a conseguir (35).
Faia o desempenho dessa missão, Deus não se limitou a colocai o homem no Mundo, como simples parte ou aspecto dele. antes o criou, segundo a Escritura, á Sua imagem e semelhança Estia parecença do homem com Deus é plena do mais profundo e intenso conteúdo, mas manifesta-se, acima de tudo, naqueles atributos que fazem dele uma pessoa Os traços divinos que resplandecem no homem são os mesmos que aparecem na narração bíblica da acção criadora majestade, transcendência, poder e vontade soberanos, isto é, a personalidade de Deus Estas características surgem no homem enquanto Deus o fez partícipe delas A semelhança divina, de que fala a Escultura, tem de procurar-se, pois, na personalidade do homem, na sua autonomia ontológica, na sua capacidade de consciência e de vida próprias (3B)
Por sobre os aspectos puramente naturais, que, por si, tanto enriquecem já a personalidade do homem, Deus criou este num estado de especial perfeição, fecundo em dons pretextarias (a imortalidade do corpo, designadamente) e sobrenaturais que, muito acima das capacidades naturais, outorgavam ao homem o convívio íntimo com Deus e o faziam participar da própria vida divina
Com estes dons naturais e sobrenaturais, o homem foi criado com dignidade profunda que nenhum outro ser terreno pode igualar.
Mas não se trata aqui de simples diferença genérica entre os seres inferiores e a «espécie humana», tomada globalmente. Cada homem é um ente essencial e absolutamente singular. Pelo seu corpo, o homem recebe, é certo, a influência dos antepassados e possui, portanto, caracteres comuns a todos os homens (todos, segundo a fé cristã, derivam de um só progenitor) e, em especial, aos seus familiares e compatriotas que de mais perto lhe tocam, a alma, porém, cada alma é criada singular e concretamente por Deus, ainda que adaptada ao corpo comunicado pelos pais (37), e esta circunstância assegura a pada ser humano individualidade e singularidade verdadeiramente radicais.
Por isso, a natureza humana é sempre única e idêntica, mas realiza-se por forma diversa em cada um dos indivíduos. As diferenças dependem da especial dotação divina dotado de um dom divino especial, o indivíduo entra neste Mundo para aí ser um ente especial e singular, em nenhum outro indivíduo da mesma espécie se realiza a natureza humana do mesmo modo que nele - cada homem é um novo ser humano, por assim dizer. A peculiaridade fundada no dom especial não é um elemento singular que se manifeste em aspectos singulares essa peculiaridade comunicada ao homem por Deus é algo que compenetra todo o ser dele, que lhe determina as representações e ideias, os conceitos, os sentimentos, as inclinações, as tendências e desejos, e lhe dá certo temperamento ou tonalidade geral, uma certa orientação fundamental, um certo modo de gozai e amar, uma certa forma de constância e de tenacidade, comunicando-lhe, por todos estes factores, um carácter determinado (38). A individualidade humana é, pois, a realização de uma essência na existência de um exemplar não reiteráveis e insubstituível (39).
Individualidade e existência são, na verdade, duas noções conexas, tal como o são as de universalidade e essência. A tendência para dedicar excessiva atenção ao universal em prejuízo do individual, se não resulta de uma mentalidade panteísta, refere-se ao puro Deus pensante, o sor individual, pelo contrário, conduz-nos a vontade amante do Deus Criador - um Deus que pensa o que una, sem dúvida, mas que não pensa no universal como o homem cada ser individual é um pensamento singular de Deus, e Deus ama-o com amor único e insubstituível (40)
Desta singularidade resulta que cada indivíduo tem uma missão particular paia desempenhar e na qual ninguém pode substituí-lo, se existisse mais um ou menos um homem, e por mais insignificante que fosse, visto exterior e superficialmente, a história humana seria diferente do que é (40). Cada homem possui a plenitude de um sei singular e individual, e a vontade criadora de Deus confia-lho com o encargo de o fazer valer - cada pessoa individual deve responder perante Deus pela valorização moral deste ser único e insubstituível (42).
Esta doutrina põe em evidência, por forma intensíssima e que vai muito além daquilo de que os homens, mesmo cientes, têm habitualmente consciência, o valor grandioso de cada ser humano. Não é só o existir paia conhecer, amar e sei vir a Deus, consciente e livremente, não é só o ser semelhante a Deus e poder participar da Sua vida divina, muito acima das forças naturais, nem só o ser chamado à bem-aventurança eterna da intimidade com Deus - é tudo isso, sim, mas tudo isso destinado a cada homem em concreto, que Deus criou por um acção singular de vontade amantíssima e que quer fazer participar pessoalmente na Sua glória eterna.
Com tal doutrina, porém, não se defende o individualismo e o egoísmo. Voltado para si mesmo, fechado no mundo estreito do seu egoísmo, o homem não vê senão a sua pequenez e isolamento, não sente senão o horror da mais insaciável insatisfação ou da mais estéril das existências, e aniquila a sua personalidade e o seu ser, como, na velha fábula, Narciso se perdeu ao apaixonar-se e ao inclinar-se para a própria imagem.

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(...) Sobre a conservação e governo do Mundo por Deus, veja-se Michael Sechmais, Teologia Dogmática, vol II, Dios Criador, trad espanhola, Ediciones Rialp, Madrid, 1959, pp 185 a 170.
(...) Ibid, pp. 803 e 804
(...) Ibid , p 844.
(...) Ibid., p. 887.
(...) Bernard Haring, La Loi du Christ, trad francesa, Desclée & Cle, Bélgica, vol I, p. 111.
(...) Haring, obra e volume citados, p. 112
(41) Michael Schmaus, obra e volume citados, p 304 e 337.
(") Haring, obra e volume citados, p. 112.

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A semelhança do homem com Deus implica a imitação de Deus, isto é, a aplicação do homem a viver na mistérios da transcendência e do amor de Deus, e a cultivar em si a capacidade para se engolfar nesses mistérios e para realizar em si mesmo a vontade criadora de Deus.
Como adverte Schmaus (43), a pessoa distingue-se da natureza em virtude de se autopossuir, da sua responsabilidade o da nua finalidade própria, por um lado, e em razão da transcendência, por outro Transcendência significa orientação para o «tu» (coexistência), parti o mundo (existência no mundo) e, em definitivo, para Deus (o homem transcende infinitamente o homem).
O primeiro destes aspectos da transcendência corresponde ao «encontro» de cada um com os seus semelhantes Cada homem representa; como se disse, um modo particular de realização, numa existência concreta, de uma mesma essência, e é esta que encerra os valores universais, próprios da humanidade Por isso, só erguendo-se acima da sua individualidade e descobrindo e amando nos outros esses valores universais é que o homem pode ter plena consciência daquela essência e realizar integralmente os valores nela contidos (44).
Para alcançar este objectivo há-de cada um tomar, por um lodo, consciência da própria individualidade e singularidade, bem como dos valores privativos delas, não porém em atenção a si mesmo, mas a Deus de que eles são um reflexo, e, precisamente por esta última consideração, há-de, por outro lado, abrir a fuma à simpatia pelos outros, procurar compreendê-los e respeitá-los no que têm de únicos e concorrer para que eles possam realizar e expandir, como seres racionais e livres, os bens que por sua parte encerram Por outras palavras deve coda um, era primeiro lugar, possuir-se a si próprio, disciplinando e hierarquizando as suas tendências e gostos, a sua inteligência e vontade, cultivando-se e descobrindo a missão que lhe cabe exercer, e respeitando e defendendo a própria intimidade e integridade, e deve, a par disso, respeitar a intimidade dos outros, ajudá-los a por seu lado desenvolvei em e aperfeiçoarem a sua individualidade, e, sem quebra daquela intimidade, vibrar de simpatia pelo bem existente nos outros e dar-lhes o contributo do seu bem individual
Procedendo assim, os homens, apreendendo o seu» e o «tu» em toda a extensão da sua singularidade, por um lado, e da sua transcendência, por outro, tendem b unir-se num «nós», no qual cada um se sente plenamente integrado sem perder o que é próprio e sem esquecer os outros, e por este modo se forma, numa palavra, a comunidade.
As comunidades, ainda que representem «acidentes», visto não poderem subsistir por si, sem os indivíduos que as compõem, constituem realidades vivas animadas de espírito colectivo e diferenciadas pela diversidade dos próprios membros, pelas características mais ou menos próximas destes, pela maior ou menor contiguidade de origem ou de lugar, pelos ideais que lhes silo peculiares, e, em suma, pela simpatia mais ou menos intensa que os une; e adquirem, por tudo, individualidade específica, com a sua missão própria, e são tão queridas por Deus como os próprios indivíduos (45).
O segundo dos aspectos da transcendência do homem assenta no seu encontro com o mundo, a fim de, nele, descobrir, amar e desenvolver a glorificação de Deus.
Entre ns consequências da semelhança divina do homem conta-se, segundo a narração bíblica, a posição, de senhorio no mundo - o homem é imagem o semelhança de Deus, e por isso é representante de Deus sobre a terra(46) «Deus disse façamos o homem a Nossa imagem, como Nossa semelhança, e que ela domino sobre os peixes do mar, as aves do céu, todos os animais selvagens e todos os animais que rastejam sobre a terra Deus criou o homem à Sua imagem, a imagem de Deus o criou, varão e mulher os criou Deus abençoou-os e disse-lhes sede fecundos, multiplicar-vos, encher a terra e submetei-a, dominar sobre os peixes do mar, as aves do céu e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra» (47).
Este domínio outorgado ao homem não significa, todavia, que ele possa fazer da terra tudo quanto lhe aprouver. O «cultivar da terra», de que fala a Escritura, é um mandado divino, e o homem não é proprietário, mas administrador da terra - o verdadeiro proprietário dela é Deus, cuja vontade há-de realizar-se pela colaboração leal do homem (48).
«Deste texto deduz-se que Deus não deu ao mundo a forma definitiva Deus entregou ao homem a Sua obra para que a continuasse. O homem há-de continuar o que Deus começou Deus manifestou grande confiança no homem ao incumbi-lo da missão de completar a Sua obra e o homem é responsável pelo estado em que possa encontrar-se o mundo» (40).
Os dois aspectos da transcendência humana, anteriormente descritos, revelam uma outra particularidade que os completa e amplia o quo para nós tem interesse muito especial - a historicidade do homem.
Já dissemos que, segundo a narração bíblica, Deus confiou ao homem o senhorio do mundo para que ele, Sua imagem, continuasse a obra da criação, e que, nessa tarefa, cada um tem uma missão no desempenho da qual ninguém o pode substituir, por outra porte, tombam assinalámos a tendência essencial dos homens para se unirem em comunidades dotadas igualmente de uma missão especial e fundadas na simpatia e proximidade dos homens e, portanto, na missão particular de cada um deles Oro é evidente que, por todos estes aspectos, a vida dos homens é essencialmente solidária, e não apenas em cada momento, através das comunidades em que se integram, mas também no decurso do tempo, ao homem foi dado «cultivar a terra» e, portanto, cabe-lhe extrair progressivamente da criação todas as possibilidades de revelação e de glorificação de Deus que ela encerra.
À vida e a obra de cada homem não nos surgem, portanto, desligadas do passado nem indiferentes para o futuro Cada um insere-se num momento da história, no qual encontra acumulada o herança biológica, cultural, ética e religiosa do passado, e é perante esse condicionalismo - ao qual se dá o nome de «destino» - que ele há-de fazer valer o poder criador da sua vontade livre e prestar ou recusar a colaboração que lhe é pedida Neste encontro com o passado, que lhe limita as possibilidades mas também as estimula, o homem, cada homem, deve retrabalhar a herança dos seus antecessores e é, por isso, responsável pelo futuro (50).
Os caracteres distintivos da personalidade humana e a missão singular que a cada homem compete desempenhar através da sua vida e da sua participação na comunidade e

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(46) Schmaus, obra e volume citados, p 308
(47) Cf. Haring, obra e volume citados, pp. 112 e 113.
(48) Ver sobre este assunto Haring, obra e volume citados, pp 113 e segs., e Schmaus, obra e volume citados, pp. 859 e segs.
(46) Schmaus, obra e volume citados, p 308.
(47) Génesis, I, 26 a 28
(48) Schmaus, obra e volume citados, p. 309
Ibid., pp. 308 e 809.
(...) Haring, obra e volume cita pp. 129 e 180.

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na história devem levar-nos a reconhecer, com Romano Guardini, que o ser do homem não pode exprimir-se pelo simples conceito de «natureza», como sucede com os animais Cada um destes tem a sua «natureza», que contém tudo quanto pertence ao respectivo sei e que, por suas leis, lhe rege todo o desenvolvimento, por isso, o crescimento, a maturidade, a decrepitude e a morte dão-nos n métrica compassada dessas figuras encerradas em si mesmas Pelo contrário, a existência do homem não se realiza pelo desenvolvimento e conservação de uma «natureza», mas sim pelo curso de uma história nele, ele encontra o que existe foi a de si, toma posição, conhece o risco, age e obra, e nesse encontro se determina o seu ser pessoal. A natureza humana é tanto resultado do encontro como é pressuposto dele e por isso a natureza total não se acha no começo, mas sim no termo. A existência do homem não parte de si mesma para a si mesma voltar de novo, como círculo que se fecha sobre si - é antes o arco de cálculo que permite ao homem atingir aquilo que o defronta. Não se trata, insiste-se, das simples relações de permuta em que o animal vive com as coisas que o rodeiam e que são apenas o seu ambiente, a extensão da sua individualidade, se é que não deve dizer-se antes que aquele forma com elas um todo, composto de seres individuais e de. universo ambiente, seja como for, essa totalidade é determinada de antemão por natureza. Em contraste, o homem possui verdadeiro poder de começar, é senhor dos seus actos e integra-se, por foram única, na categoria do «aberto», só ele é capaz de encontro e é a partir deste que indefinidamente ele se realiza (...)
Todas estas facetas da concepção do homem deduzida da Sagrada Escritura nos conduzem, por fim, ao último e mais alto aspecto da transcendência da pessoa humana o ser destinada a Deus Criado em estado de elevado grau de perfeição, o homem não encontro- em si, no entanto, nem o seu fim, nem a sua realização Foi criado para conhecer, amar e servir a Deus e para, através dessa missão, atingir a bem-aventurança de contemplar Deus face a face. Dizer-se isto, porém, não significa que lhe pertença apenas praticar aqui ou acolá, por entre actos desprovidos de sentido divino, alguma boa obra ou prestar á Deus um ou outro acto de culto tudo na vida do homem se destina ao servo-divino - a ciência e a técnica, a contemplação é-o trabalho, a oração, o repouso e o sustento, o matrimónio' e a família, a vida em comunidade, o progresso e a união das gerações através do tempo -, tudo é servir directamente a Deus, tudo representa formas de desvendar as maravilhas do amor criador, de as fazer frutificar e multiplicar, tudo é forma de as difundir pelos outros homens e tudo deve ser feito por cada um em nome de Deus. E não se trata de pôr em acto a vida de um ente mítico, como o deus dos panteístas, mas sim de servir um Deus pessoal, infinitamente bom e justo, que cria cada homem concretamente por um acto de amor, que o faz Seu semelhante e lhe confere uma missão singular no completamento da Sua obra, que o chama à responsabilidade pelo cumprimento dessa missão, mas o ama profundamente e o convoca para R felicidade sem par de com Ele conviver para toda a eternidade.
A própria história só é precisamente tal quando referida àquilo que a transcende e só é verdadeira e só é verdadeiramente humana quando vista perante o modo como começou e como há-de terminar. Se no princípio dela mais não houvesse do que o acaso ou a evolução determinista sem ordenador, ou se, como fim, apenas espetasse de novo o acaso ou o eterno regresso, a história não passaria de produto do acaso ou de um processo terrífico do devir sem termo. O que transforma em história inteligível os acontecimentos a que o homem está submetido e o próprio agir dele é, no começo, a Palavra de Deus e, no fim, um julgamento. «No princípio era o Verbo Tudo foi feito por Ele, e, sem Ele, nada se fez do que foi feito» (Jo I, I, 15). Eis o que dá sentido fecundo à história - o ter sido fundada pelo Verbo criador e confiada ao homem paia que ele a realize Em cada circunstância histórica o homem deve pi acurar compreender a Palavra que Deus lhe dirige estar alerta na história é estar atento a Deus (52).
A singularidade, a autonomia pessoal, o domínio do mundo como representante de Deus e seu administrador em nome d'Ele, a vida em comunidade, a historicidade, tudo são, em resumo, características do homem que lhe conferem profundíssimo valor, mas que só têm verdadeiro significado quando orientadas para Deus, para Aquele que criou o homem e constitui o seu fim e o seu prémio.
O homem é, por essência, uma imitação de Deus e para ele alcançar a perfeição é-lhe essencial agir de acordo com essa semelhança. Toda a tentativa paia se emancipar, paro, autonomizai a existência humana, é, pois, contrária às exigências ontológicas, é violência contra a natureza humana e implica, necessariamente, o envelhecimento final (53).
Assim entroncamos de novo naquele corolário a que já nos conduzira a interpretação metafísica do homem, tal como a apresenta a filosofia perene a de que a sujeição do homem a ética resulta da essência mesma dele - é fruto da exigência ontológica de se realizar por um bem transcendente, na conquista do qual se empenha todo o esforço da autonomia humana, mas que a esta mesma se impõe como razão de ser da própria existência do homem.
Esta ideia acha-se, porém, extremamente enriquecida pela Revelação dista O fim ultimo, para o qual o homem tende por inclinação radical de todo o seu ser, ê verdadeiramente Deus, como já antevia a filosofia antiga Mas não se trata apenas de o homem se entregai à contemplação intelectual do Acto Puro, tão sublime como distante, mas de dispor toda a sua vida paira o cumprimento de uma missão que lhe foi confiada pessoal e singularmente por um acto de profundo amor. E aquela inclinação radical de que falámos não é simples influxo de uma fria lei que leve cada ser, ainda que inconscientemente, a reclamar o bem apto para lhe integrai a forma, é antes um apelo vivo e pessoal de Deus, ditado por amor sem igual, e susceptível de despeitar a semelhança divina do homem e de lhe inspirar a gratidão e o entusiasmo próprios de quem se sabe chamada a convivei com Deus, em intimidade muito superior aquela que permitiriam as forças da natureza. E põe este modo a exigência ontológica do cumprimento do fim último e de ordenação de toda a vida para ele não representa apenas a da privação de um bem necessário ou a atracção exercida pela perspectiva da felicidade é Vim impulso vital nascido das tendências mais nobres do homem, compelidas pela necessidade essencial de prestai a Deus a honra e a glória que lhe são devidas.

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(...) Romano Guardini, Les Fins Dermiros trad francesa, Les Editions du Cerf, Paris, 1951, pp 22 e segs.
(52) Cf. Haring, obra e volume citados, p 181
(...) Cf Schmaus, obra e volume citados p 128

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Este bosquejo da concepção cosmológica do cristianismo há-de rematar-se portanto, com a seguinte conclusão o homem não contém em si o seu fim nem a sua perfeição e nada há nele que tenha real valor quando olhado em. absoluto, se, todavia, o contemplarmos à luz da sua criação divina e da sua missão sublime para com Deus. ele adquire, ou, melhor, cada homem adquire valor verdadeiramente infinito, só mensurável pelo alto significado da semelhança com Deus.

12. O SIGNIFICADO DA MORTE - Criado assim O homem integralmente para Deus, todo o desenrolar da vida e da história há-de ter por tema fundamental a posição que ele tomar em relação a Deus e as sementes, boas ou más, que essa posição irá lançando no decurso da mesma vida e da mesma história. É nesta perspectiva que, precisamente, se enquadra a concepção cristã da morte, ponto de interesse muito particular para o nosso estudo.
Como se deixa dito, o homem, em vez de viver no círculo fechado de uma natureza, é antes um ser «aberto» destinado a realizar-se pelo encontro com a realidade transcendente. E, como sustenta Romano Guardini, o encontro decisivo do homem é o encontro com Deus, o Real por excelência, e só vivendo como deve esse encontro é que o homem se torna aquilo que o Criador quis que ele fosse (54).
Foi esse motivo, logo nos alvores da humanidade o homem teve de tomar uma decisão fundamental foi criado em alto estado do perfeição, mas essa perfeição foi posta a prova (55) e o homem não quis corresponder ao apelo de Deus - «quis ser como Deus», isto é, viver por si e para si (56), o essa decisão não só lhe corrompeu a natureza, mas quebrou também a união dele com Deus, privando-o dos dons subrenaturais o preternaturais, nomeadamente, de entre estes últimos, do dom cta imortalidade do corpo.
Assim entrou a morte na história da humanidade O primeiro homem não foi apenas o número inicial de uma série de homens, mas o antepassado da raça, trazia-a, pois, em si na totalidade, e a decisão dele fixou-lhe o destino (57), comunicando-lhe paia sempre o peso das consequências da sua falta - o pecado original.
Os materialistas e positivistas vêem a morte como facto puramente natural que representa o fim de tudo para cada homem, os idealistas e espiritualistas, inspirados mais ou menos conscientemente no dualismo ontológico, contra o qual o cristianismo tem lutado desde os seus primórdios e que vá a matéria como fruto do mal, consideram o corpo a prisão da alma e a morte como libertação e condição da felicidade eterna.
Nem uns nem outros correspondem, porém, à intuição e aos anseios de todos os homens Todos sentem haver na morte qualquer coisa de absurdo e de contrário à natureza, todos querem apegar-se a uma esperança que liberte o homem do peso desse destino acabrunhante e todos sentem erguer-se no espírito esta pergunta ansiosa - porquê e para quê existe a morte?
A resposta do cristianismo é muito diversa de qualquer daquelas duas O homem não é só corpo, nem só alma - possuía, antes do pecado original, o atributo da imortalidade corporal, não decerto por imposição da própria natureza, mas como dom gratuito de Deus. Por isso se poderá dizer com Guardini que a morte não tem carácter «natural», mas sim carácter «histórico» (58) definivel não apenas pela natureza, mas também pela história, o homem foi criado na imortalidade, mas rompeu os laços que o prendiam a Deus e, com esse facto, incorreu na pena cuja cominação tinha sido decretada por Deus para o caso de o homem não cumprir o seu mandado o homem passou a estar sujeito à lei da morte e transmitiu à sua descendência o peso terrível dessa falta.
Quão dolorosa seja esta pena só a doutrina cristã acerca da natureza humana no-lo podo revelar plenamente O homem é, por essência, composto de dois elementos. A alma é a lei configuradora do corpo, a «forma» essencial que determina, estrutura e anima a matéria, esta só assim enformada pela alma e sujeita a lei e à força estruturante dela é corpo humano O corpo é, porém, a expressão da alma, e toda a vida do espírito é condicionada pelo corpo (59). A alma não vive autonomamente, antes se actua no corpo e opera por meio dele, a tal ponto que é possível duvidar-se de que na existência humana haja um só acto «puramente espiritual» e de que todos os actos não sejam, antes, ao mesmo tempo espirituais e corporais, isto é, actos humanos, diz-se que a alma está «no corpo» e entende-se por tal que ela é o princípio da vida deste, o conteúdo da sua aparência íenoménica, o sentido histórico do corpo em sua permanência e mobilidade, mas também poderia dizer-se que o corpo «está na alma», no sentido de que esta o contém como instrumento do seu agir, como revelação da sua presença oculta, como lugar, situação e matéria da sua existência histórica, como estrutura e actividade (60).
Por tudo isto se podo concluir quanto a morte tem de trágico e doloroso. Não é simples fim, simples suspensão da continuidade, nem representa mero acontecimento de facto, desprovido de sentido humano Ë, antes, a separação dramática da alma e do corpo, representa a agonia para este, condenado a corromper-se e a ser destruído, mas submete também a dolorosa agonia a alma que, destinada a actuar-se e a viver por esse corpo, passar a estar privada dele sem pordcr, contudo, a vocação para a matéria que ela tinha conformado e sem a qual não poderá exercer muitas das suas operações A morte é, por outra parte, uma pena, um sofrimento imposto como reparação do pecado, sofrimento tanto mais agudo o opressivo quanto se apresenta aos olhos dos homens como em si mesmo absurdo e desprovido de razão de ser natural.
Nesta realidade está, também, não obstante, o sentido positivo, a grandeza da morte Aceitando-a e sofrendo-a como ela é, o homem submete-se pessoalmente à pena universal e nela assume a parte que lhe cabe na expiação do mal que ensombra a história da humanidade Morrer é, afinal, dar testemunho de tudo quanto há de mais profundo e importante no homem, na sua condição histórica actual o bem da vida em toda a sua grandeza, a destinação dessa vida à glorificação de Deus e a oferta desse bem supremo para a expiação das infidelidades dos homens, rejeitar deliberadamente esse testemunho é, por isso, negar todo o valor da vida, enquanto aceitá-la magnânimamente e vivê-la na fidelidade a Deus é o acto mais elevado e nobre de toda a vida.
A morte não ficou, todavia, para sempre reduzida a esta conteúdo, decerto rico, mas dolorosamente desprovido de esperança, porque uma nova luz veio iluminar a terra

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(54) Ibid., p. 24.
(55) Ibid , p. 24.
(56) Ibid , p. 26.
(57) Ibid., p. 27.
(58) Ibid, p 22
(59) Schmaus, obra o volumes citados, pp. 851 e segs.
(60) Guardini, ob. cit, p 101

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13. A REDENÇÃO E A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS - Como é óbvio, a glorificação de Deus, fim supremo da criação, não foi prejudicada pelo facto de o primeiro homem ter desviado de Deus a sua vida e a história da sua descendência. Mesmo sem o concurso da vontade humana, esse fim ter-se-ia cumprido sempre, mas Deus quis reintegrai a humanidade no seu caminho, quis redimi-la, a fim de que a cada homem fosse de novo possível atingir a bem-aventurança eterna.
Sem apagar a mácula original lançada sobre a generalidade dos homens, e sem eliminar o drama que ela inseriu na história da humanidade, Deus enviou à terra o seu Filho, para que, tornando-se. Ele homem também e integrando-se nessa história, expiasse os pecados de todos os homens pelos merecimentos da Sua vida e morte.
Gomo nenhum outro ser humano, Cristo sofreu "a morte em todo o seu horror. Não foram só as ingratidões, as traições, as torturas, os vexames; não foram só os sofrimentos atrozes de uma das formas mais cruéis de matar, nem a ignomínia da morte imposta aos criminosos mais vis, nem sequer a injustiça da condenação Custo viveu, na sua paixão, todo o peso do mal contido na revolta dos homens contra Deus, toda a consciência do significado profundo da morte como expiação, todo o sofrimento da alma separada do corpo, sofrimento tanto mais atroz quanto ninguém, como Ele, jamais possuiu o segredo do valor da vida.
Mas, sofrendo assim a plenitude da dói contida na pena imposta aos homens, Cristo venceu a morte Quando falava da sua morte, Jesus anunciou sempre que havia de ressuscitar (61), e, na verdade, o ensinamento cristão «assevera que Custo, depois de morrei, se ergueu de novo pelo poder soberano de Deus Vivo, paia uma vida nova e, não obstante, humana Não declara apenas que a sua alma era eterna e que, na eternidade, recebeu um esplendor divino, nem somente que a sua imagem e a sua mensagem se tornaram energia criadora de vida no caiação daqueles que creram n' Ele - vai mais longe e afirma que o corpo de Cristo, depois da sua morte, retomou a vida por uma forma mais eminente, que a sua alma, tomada pela força do Espírito Santo, impregnou e transformou o seu corpo, que foi na plenitude do seu ser humano-divino que Ele entrou na glória eterna (62)».
Com a paixão e a ressurreição de Custo, a morte sofreu uma transformação profunda. A Redenção, por elas operada, trouxe a todos os homens a promessa de que também eles, depois de morrerem, haviam de ressuscitar. A morte deixou de ser o simples cumprimento da justiça de Deus, a morte brutal, para além da qual restava apenas a indestrutibilidade da alma. A morte de Cristo deu outro carácter à morte, restituindo-lhe, não a forma mas o sentido daquele que devei ia ter sido o fim do primeiro homem a transição para uma vida nova, ao mesmo tempo eterna e humana (63) A morte conservou a dói profunda de pena, mas passou a ser iluminada pela certeza de que, como dom gratuito e pelo podei amantíssimo de Deus, agora constitui simples passagem, dolorosa e dura, embora, para uma nova existência, aceitá-la como tal - aceitá-la como participação na morte e na obra redentora de Cristo - já não é apenas o expiar sem esperança, mas colaborar na própria Redenção e na glorificação que a Deus há-de prestar, no fim dos tempos, a humanidade restaurada pelo seu amor.
Nesta profunda mudança de perspectiva, não se trata da descoberta de um remédio contra a morte o que seria pura magia, nem tão-pouco de uma nova ética da morte, que apenas represente um progresso de comportamento humano superior. A realidade da morte permanece, mas acha-se inclusa num novo contexto da vida e transformou-se na passagem para uma vida nova, penetrada de divino e eternamente humano, pois que para lá da nossa própria morte se encontra também a ressurreição (64). Tudo quanto a morte acarreta de opressão e de desagregação, de impotência e de agonia, tudo isso se contém na morte de Cristo, mas isso é para nós uma das faces daquela realidade da qual a ou ti a face se chama ressurreição (64).
Por esto modo, Cristo, morto e ressuscitado por nós, venceu a morte e trouxe essa promessa sublime da ressurreição de todos os mortos.
Se o género humano não tivesse quebrado, pelo pecado do seu primogénito, a união íntima com Deus, o tempo teria, apesar de tudo, um fim, e os homens ascenderiam n bem-aventurança eterna por uma forma que a Revelação não desvenda (66).
Pela queda de Adão, a morte entrou, porém, na história da humanidade, com todo o honor que, para cada alma imortal, representa o ser separada do corpo para que for criada e sem o qual não pode ter a plenitude própria, e esta pena terrível continuou, aliás, a ser imposta a todos os homens, e Cristo, Deus e homem ao mesmo tempo, sofreu-lhe, como ninguém mais, toda a dor e todo o opróbrio.
Mas, graças aos seus merecimentos, os outros homens serão chamados de novo & vida pelo poder de Deus, a alma, «forma (em sentido metafísico)» do corpo, congregará e animará outra vez a matéria e restaurará a unidade do composto humano, restituindo a cada um o seu corpo, não todavia no estado actual, sujeito ao tempo, mas sim como «corpo espiritual», e será assim em corpo e alma que cada homem, segundo as suas obras, sei á chamado a vivei a felicidade ou o castigo para toda a eternidade.
A crença na ressurreição da carne é um ponto capital da fé cristã e a contradição radical de todas aquelas ideias que, baseadas no dualismo ontológico, procuram rebaixar o corpo e ver a morte como libertação da alma O homem é essencialmente composto de corpo material e de alma espiritual, e, por isso, se a alma separada subsiste e mantém os suas operações fundamentais, passa a existir por uma forma que já não corresponde plenamente à vida humana, mesmo no que tem de mais espiritual, e se neste todo formado de corpo e alma se encontra a essência do homem, ambos os elementos devem participar no prémio ou no castigo que cabe à sua vida, e só assim, aliás, o homem poderá ter a plena vivência do castigo ou da bem-aventurança eterna.
Para cumprir a missão que Deus lhe confere e alcançar esse prémio sublime, deve o homem lutar, em cada instante da sua vida, por difundir o «Reino de Deus», pois a Redenção não suprimiu a historicidade que o caracteriza, antes deu novo impulso e novo sentido a toda a história Cristo, filho de Deus vivo, feito homem, ingressou na história do mundo como realidade visível, de tal sorte que nenhuma decisão O pode jamais desconhecer cada momento da história deve tomar posição perante Este que é o coração da mesma história, e até a vontade de ladear esse facto, entre todos capital, é já uma tomada

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(62) Guardini, ob cit., p 31.
(62) Guardini, ob cit., p 33.
(63) Guardini, ob. cit., p. 35
(64) Guardini, ob cit, p 36.
(65) Guardini, ob cit, p 40
(66) Guardini, ob cit, p. 26.

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de posição de alcance decisivo (67). O homem, submetido ao tempo, encontra-se em cada momento da história perante a imensidade do passado e do futuro, mas do passado destaca-se esta dupla realidade crucial a queda de Adão e a Redenção de Cristo Em cada momento ele ó o filho de Adito, mas também, e muito mais ainda, é aquele que Cristo salvou e que o convida a segui-lo Unido a Cristo, que é ao mesmo tempo presente e transcendente à história, pode não só retrabalhar a herança do seu primeiro pai, mas também vencer-lhe Intimamente o mal (68).
A interferência entre a influência persistente do primeiro Adão e a do Segundo cria na história uma tensão formidável, temível e fecundíssima ao mesmo tempo suprimi-la é render homenagem especial ao Senhor da história. Tal é a missão que a humanidade inteira, unida a Cristo, seu Chefe, é convidada a cumprir, e cada hornem deve colaborar nela no lugar que lhe pertence (69).

14. VALOR ATRIBUÍDO AO CORPO HUMANO E, EM ESPECIAL, AO CADÁVER PELA DOUTRINA EXPOSTA - Se, como desejaríamos, pudéssemos examinar toda a teia das relações do nosso tema com a problemática geral da personalidade, caberia ponderar-se, neste passo, o extremo valor que ao homem atribui a concepção cristã tal como a procurámos sintetizar Valor não absoluto, decerto, contrariamente ao que tem pretendido o individualismo antropo-cêntrico dos tempos modernos, pelo qual se lançou no mundo a semente das abstracções e dos mitos, dos egoísmos e dos ódios, que hoje tão dolorosamente atormentam a humanidade, mas valor transcendental que, referindo a Deus tudo quanto exorna o homem, confere a este grandeza o felicidade infinitamente superiores as que ele jamais poderia atingir por si mesmo.
Suposta, porém, a necessidade de nos limitarmos ao objecto especifico deste parecer, cumpre pôr-se em relevo, quando menos, o significado e valor que, segundo aquela concepção, se devem atribuir ao corpo em geral e, em particular, ao cadáver do homem.
Como deixámos entrever por diversas vezes, a compreensão correcta do homem tem sido, desde há muito, desvirtuada por uma corrente de pensamento que, na sua forma extremista, atribui a um princípio do mal, contraposto a Deus (dualismo ontológico), a criação da ma-( teria e que, por tal motivo, o corpo do homem é um carácter da alma, fonte do mal e origem do pecado, e é determinado à destruição libertadora para a alma, único elemento do homem proveniente de Deus
Estas ideias conduzem praticamente, como é fácil de ver-se, aos mesmos resultados que o materialismo, ainda que partindo de fundamentos muito diversos O ódio à matéria, em nome de um espiritualismo que, na realidade, restringe a obra e o poder de Deus no Universo, por um lado, e, por outro, a pretensão de tudo reduzir à matéria, com o fim de negar o próprio Deus, são atitudes de espírito que sempre redundam, afinal, em recusar ao corpo do homem todo e qualquer valor moral e sobrenatural e sempre vêm por isso, a legitimar AS piores aberrações contra a dignidade humana.
Ao longo dos séculos, o cristianismo tem tido inúmeras vezes de lutar contra estes erros e sempre tem proclamado que Deus é o autor e o fim de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E, em particular, de quanto acima
fica dito se deduz, com clareza, como é intensa e nobre a parte que cabe ao corpo na missão superior do homem, feito a imagem e semelhança de Deus.
A criação do mundo material para nele se reflectir e manifestar a glória de Deus, a formação do homem pela infusão da alma na própria matéria da terra, por forma a que, assim composto de alma espiritual e de corpo material, fosse apto para viver no meio dos seres sensíveis e neles descobrir e fazer frutificar a glorificação do Criador, a instituição do matrimónio que, constituindo a união íntima e integral de dois seres humanos no corpo e na alma, sempre foi visto como imagem e representação dos mais altos mistérios de Deus - o matrimónio pelo qual os dois progenitores, unidos numa obra em que participa todo o seu ser, assim no moral como no material, colaboram directamente com Deus na foi maculo de novos homens, o facto de ter sido sobre o corpo que especialmente as penas impostas pelo pecado original, de entre ns quais avulta a morte com todo o sofrimento causado à alma pela privação do corpo para que foi criada, a encarnação do Verbo divino, que para redimir os pecados dos homens quis fazer-se realmente homem, tendo, por sua Mãe, a Virgem liberta do pecado original, recebido o seu corpo da própria posteridade de Adão, a morte de Cristo, na qual se concentra todo o horror inerente à expiação dos pecados, a sua Ressurreição e a sua Ascensão aos céus em verdadeiro corpo e alma humanos, a promessa da ressurreição dos mortos, para que a vida futura,, na ventura ou na desdita eterna, seja vivida pelo homem integral -, tudo são verdades de fé que, por entre muitos outras que poderiam citar-se, demonstram que a imensa dignidade transcendental do homem não respeita nó a alma, mas sim a todo o composto humano e que, não por virtude própria do homem, mas pelo seu fim transcendente e eterno, o corpo é verdadeiramente sagrado, como todo o ser humano.
Mais ainda quando o homem se encontra no estado de graça, a vida divina que se lhe comunica não reside apenas na alma, mas em todo o ser humano, e por isso diz S Paulo que os corpos dos cristãos suo membros de Cristo (70) e apresenta o desregramento sensual como verdadeira profanação e sacrilégio, visto que os diversos pecados são exteriores ao corpo, ao passo que aquele é cometido contra o próprio corpo (71), que é templo ao Espirito Santo (72).
Não pode pôr-se em dúvida, por conseguinte, que nem o falso espiritualismo, oriundo do dualismo ontológico, nem o materialismo traduzem a apreciação justa do corpo humano. O pensamento cristão tudo refere a Deus, autor pessoal e amantíssimo de quanto existe e fim superior de todas as criaturas, mas com isso, muito longe de minimizar o valor do homem ou de qualquer dos seus

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(67) Cf. Haring, obra e volume citados, pp 131 o 132
(68) Ibid., pp 132 e 133
(69) Ibid., p 133
(70) 1.ª Epístola aos Coríntios, 6, 15
(71) Este versículo de S. Paulo tem sido diversamente entendido, suscitando-se dúvidas, nomeadamente, pelo facto de S Paulo não se referir a embriaguez e ao suicídio, que também incidem sobre o corpo (cf. nota respectiva no Novo Testamento, II, Lisboa, 1960, do cón José Falcão, p 101). Se nos é licito formular uma opinião n tal respeito, diremos que nesses pecados - a embriaguez e o suicídio - o corpo é atingido directamente como objecto ou vítima, por tal forma que quando os efeitos respectivos começam a manifestar-se nele já o pecador pode estar arrependido do acto quo os origina. Na sensualidade, pelo contrário, o corpo toma acção directa como agente - esse pecado o uma obra directa do próprio corpo (sem se excluir, evidentemente, a necessidade do elemento psicológico correlativo) e, portanto, é, em ai mesma, uma (profanação do corpo, ponto este que, precisamente, S. Paulo quer pôr em evidência e que tem relevante interesse para a doutrina por nós exposta no texto.
(72) Epístola citada, 6, 18 e 19.

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elementos, confere-lhe um grau de elevação muito superior, não só ao dos outros seres terrenos, mas até ao que a natureza humana por si poderia postular; com razão, pois, Schmaus (repetindo, aliás, um pensamento de Pascal) afirma, num trecho por nós já citado, que um homem transcende infinitamente o próprio homem.
Da doutrina exposta se extrai também, com igual clareza, qual o valor e dignidade do cadáver para a concepção cristã do homem.
Antes de mais, importa pôr-se em relevo que, ao contrário do corpo vivo, o cadáver humano não tem finalidade directa, em si mesmo considerado. O homem, e tudo o que nele existe, nomeadamente o corpo, destina-se directa e intrinsecamente ao serviço de Deus como pessoa, isto é, como ente singular e autónomo, de actuação confiada à própria liberdade e responsabilidade, e é por isso dotado de dignidade que nenhum outro ser da terra pode igualar. Inversamente, o cadáver em si mesmo não tem qualquer finalidade - é ele próprio a negação da ideia de fim, pois o destino, a que está condenado, outro não é senão a destruição; matéria constitutiva de um corpo humano, mas abandonado pela alma, «forma» essencial do homem, é como a pegada impressa na areia, que o mais leve toque ou a mais branda aragem desfarão em pó informe e disperso. Verdadeiramente o cadáver, na expressão da Escritura, não é senão pó, terra, cinza e nada.
Tentar-se impedir ou disfarçar a corrupção do cadáver - fornecer-lhe alimentos ou armas, como usavam fazer alguns povos primitivos, ou embalsamámos ou pintá-los, como algures ainda hoje se pratica - só pode ser, por isso, ou superstição ou vaidade e ostentação dos vivos. A verdade do cadáver - a verdade dramática e dolorosa - é a destruição, o regresso ao pó e até a duração dele e a possibilidade de artificialmente a prolongar são indício dessa realidade, visto que, por paradoxal que pareça, a estabilidade e permanência da matéria do corpo sem alma é sinal e efeito da morte, sabido como é- que a matéria do corpo vivo está em constante eliminação e renovação; o simbolismo, animado de verdadeira piedade, prefere as honras das flores e das velas, que, com o viço e com a luz, representam a alma imortal e a presença do morto na memória dos outros homens, e que, com o seu mesmo murchar e consumir-se, dão testemunho de aos vivos ser sensível a trágica sorte do cadáver na qual eles querem acompanhá-lo com algo que lhes pertença e os represente.
A dignidade do cadáver não se funda no que ele é actualmente, mas naquilo que de foi, e também nó contraste entre o presente e o passado, e no que ele há-de vir a ser na eternidade.
Que há, com efeito, no cadáver para ele se impor ao respeito dos vivos?
Como corpo, ele fez parte de um ser humano; comungou nos fins e na dignidade dele; recebeu o ser de ascendentes venerados ou interveio na geração de entes queridos; foi liame entre o falecido e aqueles que o estimaram; integrado na vida desse homem, quinhoou nos seus méritos e nas suas faltas e deixou impressos os seus traços em inúmeros objectos que persistem em recordá-lo; participou no culto de Deus e, esperemo-lo, foi templo do Espírito Santo; foi companheiro de uma alma imortal que para ele foi criada e que, no presente, sofre com a destruição dele e padece com as limitações impostas às próprias operações. Honrar o cadáver é venerar tudo isto - é respeitar a memória do homem de que ele foi corpo, é sentir mágoa com a ruína de tudo isso quanto se amou ou dignificou, é apiedar-se dos sofrimentos da alma separada. Para cristãos, honrar o cadáver é, ainda, confessar, contrita e humildemente, o significado da morte como expiação dos pecados em que - quem o sabe? - os que o choram talvez hajam colaborado; é aceitar a morte como participação no sacrifício de Cristo, que para si tomou a pior parte dessa expiação; é respeitar nessas cinzas, prontas a desfazerem-se em pó, a esperança de que hão-de voltar à vida sob uma forma mais perfeita e elevada. Tal é, segundo a concepção cristã que temos vindo a expor, o valor do corpo humano e do cadáver, em especial - valor que, decerto, não reside neles próprios, senão na dignidade transcendental do homem, mas que, por isso mesmo, é realmente imensa e deve ter-se por merecedora de toda a veneração.

§ 3.º Esboço de uma concepção personalista do direito

15. SÍNTESE DAS PRINCIPAIS SOLUÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO CADÁVER E PROBLEMA POR ELAS SUSCITADO. - Já anteriormente demos a conhecer o estado da doutrina jurídica relativamente à natureza do cadáver.
Para alguns autores, o cadáver não pode qualificar-se de coisa, antes deve aproximar-se da personalidade jurídica. Esses são, todavia, autores que se fundam mais em intuições oriundas das tendências e atitudes correntes a respeito do cadáver do que em princípios de ciência jurídica, conscientes e reflectidos, e, por tal motivo, não tem logrado conquistar a opinião comum dos jurisconsultos.
Outros, pelo contrário - a maioria, cumpre reconhecer-se -, sustentam que o cadáver se deve enquadrar na noção jurídica de coisa, e apenas se dividem no tocante à classificação dele nas várias espécies por que se repartem as coisas; para uns, tratar-se-á de coisa no comércio, para outros, de coisa fora do comércio, e, finalmente, outros ainda, defendem soluções intermédias e por vezes pouco definidas. Todos, porém, se sentem inclinados a cotejar os problemas suscitados pelo cadáver com a doutrina referente às pessoas e aos direitos a elas relativos; com este facto provam, no entanto, que não conseguem fugir às intuições que vimos inspirarem o primeiro grupo de autores e que, por causa delas, se vêem compelidos a, de certo modo, cair em contradição.
A par deste segundo grupo de doutrina, a prática tem revelado forte tendência, por nós apontada acima, no n.º 9, para «dessacralizar» a pessoa, sujeitando-a a um tratamento jurídico que, progressivamente, a aproxima da condição das coisas.
Olhando-se às orientações mais generalizadas, vê-se, pois, que elas conduzem a soluções híbridas e incaracterísticas, e por isso mesmo muito perigosas. Estas correntes doutrinárias começam por sustentar que o cadáver é coisa, e depois inclinam-se para definir o regime dele em função da teoria das pessoas; e se por este modo parecem revelar certo pendor de cambiante personalista e humanista, não é menos verdadeiro que ao fazê-lo contribuem para esbater a diferença radical que separa as pessoas das coisas. Correntes práticas, por seu lado, sem se darem ao trabalho de procurar outra justificação que não seja a da observação empírica da vida jurídica, tendem para colocai-as pessoas na situação de coisas; folgando com o recuo da «sacralidade» das pessoas, por elas vista como simples preconceito eu superstição. Embora movendo-se em terrenos diversos, estas duas ordens de tendências implicam um movimento convergente de aproximação das pessoas e das coisas, privando as soluções da doutrina jurídica de real interesse científico e prático e abrindo caminho às

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piores aberrações; e o cadáver, tal como outras realidades por assim dizer intermédias (partes separadas do corpo humano vivo, por exemplo), passa a constituir, em semelhante perspectiva, o perigoso traço de união entre a pessoa e a coisa, e por conseguinte a ponte por onde a doutrina referente :a esta última pode invadir é campo da primeira.
O nosso problema acha-se, pois, desprovido de verdadeira solução.
Discutir-se a natureza jurídica do cadáver não é apenas procurar-se para ele uma qualificação ou mero enquadramento em categorias já conhecidas, sem influência real no regime jurídico dele, e antes em termos de permitir a obliteração desse regime por considerações estranhas à solução assim encontrada. «Natureza» é, segundo a Escola, a essência de um ser, enquanto olhada como princípio das operações próprias desse ser; natureza jurídica de certa realidade será, portanto, a essência desta enquanto princípio das manifestações dela na vida jurídica, ou seja, enquanto vista como fonte do regime que lhe é imposto por lei e directriz profunda da estruturação e da actuação dessa realidade no mundo do direito. O problema da natureza jurídica do cadáver não pode resolver-se, por isso, descortinando-se para ele simples qualificação ou rótulo formal, tomado apenas como ponto de partida para uma teoria que lhe pode ser, afinal, mais ou menos estranha; para lhe dar solução correcta importa antes descobrir-se e estruturar-se aqueles aspectos da essência do cadáver que, de acordo com essa mesma essência, devem dominar o tratamento jurídico a que ele há-de ser submetido.
Pôr outro lado, não é difícil verificar-se que o carácter de certo modo indefinido e incongruente das soluções dadas à nossa questão resulta, em última análise, dos vícios profundos de que tem sido inquinada doutrina jurídica - moderna, e não será ousado dizer-se que o cadáver constitui uma daquelas realidades que, fugindo ao esquematismo extremista da doutrina, representam pontos de crise das construções adoptadas pela generalidade dos autores. É óbvio que, visto à luz dos princípios acima expostos acerca do homem e da sua morte, e contemplado portanto numa perspectiva ontológica e realista, o cadáver não pode ser considerado pessoa, mas possui um valor intrínseco profundo e de suma importância para a vida humana; ora a ciência jurídica hodierna, toda moldada em esquemas abstractos e formais, não pode apreender este duplo aspecto, e por isso é impotente para resolver, por forma satisfatória, a questão da natureza jurídica do cadáver.
Pelos motivos acima expostos (n.º 9) não temos possibilidade de discutir esta questão em toda a sua amplitude. Sem embargo, e como resulta das considerações agora feitas, o nosso problema só pode resolver-se se nos conseguirmos emancipar da orientação corrente e soubermos transplantar para a teoria jurídica os ensinamentos da concepção cristã acerca do homem, o que só é praticável se revirmos as posições jurídicas fundamentais adoptadas pela doutrina.
Por este motivo, e sem abandonar os estreitos limites que impusemos à nossa investigação, temos de começar por pôr em evidência certos aspectos relativos à ideia de pessoa e de coisa, que um estudo mais aprofundado do problema revelaria constituírem o fulcro dos vícios de que enfermam as construções correntes entre os juristas.

16. CRISE ACTUAL DA DISTINÇÃO ENTRE PESSOA E COISA.- A doutrina jurídica moderna tem-se desenvolvido, em geral, sob o influxo de certas tendências e atitudes de espírito que, moldando embora as construções jurídicas desde os mais profundos dos seus alicerces, não são verdadeiro produto da elaboração científica do direito, antes representam formas - melhor se- diria deformações - que o pensamento jurídico tem recebido do conjunto das correntes filosóficas e políticas dominantes nos últimos séculos.
Queremo-nos referir particularmente àquelas formas de pensamento a que, para usar de terminologia já consagrada (73), podemos chamar «decisionismo» e «normativismo», modalidades de pensamento essas hoje em certa medida já em declínio, mas que - ou independentes e bem estremadas, ou associadas umas às outras em estranhas simbioses - nos tempos modernos têm imperado no espírito dos jurisconsultos, quase com absoluto exclusivismo.
Como é sabido, para o decisionismo, a lei constrói arbitrariamente as realidades jurídicas, ao sabor da vontade dos governantes ou da maioria dos, membros da sociedade (a «vontade social», captada por meios empíricos). Para
o normativismo, eivado de idealismo e logicismo, a doutrina jurídica transforma-se numa pura técnica formal, reduzindo-se a realidade jurídica a conceitos técnicos e a relações lógicas entre eles descobertas por simples processos racionalistas.
São variadas as correntes gnoseológicas, metodológicas e, até, políticas que conduzem a estas formas de pensamento jurídico, e, por esse motivo, pode divergir muito, de caso para caso, o conteúdo com que se apresentam as construções doutrinárias nas quais elas se manifestam.
Esta circunstância- poderia embaraçar-nos bastante se fosse necessário analisá-las todas para chegarmos à nossa conclusão. O que nos interessa, todavia, não são os fundamentos e a formulação das diversas opiniões, porquanto a própria variedade destas as priva do valor objectivo e da autoridade indispensável para representarem o conjunto da doutrina; interessa-nos, sim, o tom geral desta acerca dos postulados em que deve assentar a resolução dos problemas suscitados pelo nosso tema -tom geral que, aliás, em muitos revela mais o contágio de orientações em voga do que tomadas de posição reflectidas e estruturadas-, e a verdade é que, vistos nessa tonalidade dominante, há, entre os representantes dos mencionados tipos de pensamento, a homogeneidade suficiente para nos ser lícito partir do conjunto da doutrina, sem tentar apurar os pormenores das construções em que ela se ramifica.
Feita, portanto, esta ressalva, de que não se trata de expor um corpo de doutrina, mas tão-sòmente de salientar alguns aspectos gerais da orientação corrente que maior influência exercem na nossa questão, começaremos por pôr em evidência o carácter de extrínseco que essa orientação atribui ao direito.
A disciplina jurídica, seria estranha à essência do homem alguns, como os liberais, diriam mesmo que ela lhe é fundamentalmente contrária - e resultaria apenas de necessidades sociais ou de conflitos de interesses; a vida humana seria, de per si, desprovida de significado ético e jurídico, e seria a vontade social ou a norma que, por assim dizer, do exterior e artificialmente, a sujeitaria ao império do direito, o qual, por isso mesmo, só poderia apoiar-se na coacção e teria sempre o carácter de positivo - consistiria sempre num conjunto de normas vigentes de facto em certa e determinada sociedade.
Deste carácter de extrínseco da ordem jurídica deriva, como primeira consequência, a natureza formal das noções básicas do direito, nomeadamente das de pessoa e coisa.

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(73) Veja-se o estudo de Carl Schmidt Sobre as três modalidades cientificas do pensamento jurídico, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 26, pp. 5 e segs., e n.º 27, pp. 5 e segs.

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Já em fases remotas da ciência jurídica, os cultores dela viam na susceptibilidade de se ser titular de direitos e deveres o sinal jurídico da pessoa, e, movendo-se em ambiente sempre algo saturado de abstracção - em certa medida por efeito da natureza mesma da ciência jurídica -, nunca se esqueciam de advertir que alguns sei es humanos por vezes não foram considerados pessoas, em razão de lhes ser negada capacidade para serem sujeitos de direitos e obrigações - os escravos -, tal como sempre sucedeu que outros entes recebessem da lei, por abstracção jurídica, essa capacidade sem serem homens.
Esta concepção enferma do vício manifesto de identificar a personalidade com a capacidade jurídica, quando, na verdade, esta última é uma qualidade ou atributo que pressupõe uma substância que lhe sirva de suporte, a qual só pode ser a pessoa, na integralidade da sua essência, a própria personalidade de entes meramente jurídicos não deve levar a esvaziai-te o conceito de personalidade de todo o conteúdo substancial para o tornar adaptável a esses entes, antes deve construir-se, separadamente, como realidade analógica, isto é, como realidade que, por analogia (em sentido metafísico), se reconhece participar das características da personalidade humana, sem que, todavia, se possa reduzir a ela e sem que seja lícito formar com uma e outra um só género de que elas sejam espécies.
Seja como for, o certo é, porém, que aquela concepção para a qual a personalidade se identificava, para efeitos do direito, com a capacidade jurídica, uma vez que foi suprimida a escravatura, passou a constituir meia abstracção e deixou de ter em si mesma consequências directamente danosas no fundo os autores - ao tempo geralmente defensores do direito natural - não esqueciam que, por detrás da pessoa jurídica, existia o homem vivo e real, ao qual nunca era negada capacidade, e tanto bastava para tomar essa concepção em princípio inócua. Tal era o pensamento do nosso Código Civil ao estatuir, no artigo 1.º, que só o homem é susceptível de direitos e obrigações e que nisso consiste a sua capacidade ou a sua personalidade jurídica.
O progresso das modalidades de pensamento acima apontadas, acompanhadas de todo o cortejo das doutrinas nas quais elas se inspiram - idealismo, positivismo, pragmatismo, etc -, veio, contudo, alterar o significado desta e de outras abstracções Como é sabido, a abstracção é um método indispensável, pois, enquanto não se elevar acima dos casos concretos, o estudioso não poderá formular conceitos, nem descobrir leis ou princípios, e não exercerá, por conseguinte, actividade científica - non datur scientia do indivíduo, o objecto estudado em cada ciência, em si mesmo considerado, não é, porém, abstracto, mas concreto - concreto na sua realidade ontológica, mesmo quando gerado por abstracção, como sucede com as ideias, os números, os nomes, os inventos, as obras-de-arte, etc Ora o que aconteceu na ciência jurídica foi que, por influxo das referidas modalidades de pensamento, os autores esqueceram estas verdades e deixaram de simplesmente, como lhes cumpris, pensar em abstracto as realidades concretas que estudavam, para passarem a concebê-las como se, efectivamente, elas fossem puras abstracções.
Por esta forma, a personalidade jurídica, mesmo para autores insuspeitos de compromissos com orientações aberrantes, tornou-se simples qualidade abstracta, resultante exclusivamente da acção criadora da toda poderosa lei
São eloquentes, a tal respeito, as palavras com que De Cupis abre o seu livro relativo aos direitos de personalidade:

A personalidade, ou a capacidade jurídica, define-se comummente como a aptidão para se sei titular de direitos e deveres jurídicos, não se identifica nem com os direitos nem com os deveres e não transcende a essência de uma simples qualidade jurídica.
Esta qualidade é um produto do direito positivo, e não uma substância que este encontre já constituída na natureza e que ele se limite a registar tal como a encontra a aptidão para se ser titular de direitos e deveres não é menos vinculada ao ordenamento positivo, e em função dele, do que o são os próprios direitos e deveres (74).

Neste clima pensante o vocábulo «pessoa» - persona -, que tanto se enobrecera no decurso dos tempos, parece querer regressar ao começo da sua carteira semântica, mas com alcance bem pior do que o primitivo: ele que, da velha máscara teatral, passara a designar o papel desempenhado pelo actor e, depois, a função de cada indivíduo na sociedade, para logo vir a representar o próprio homem que o exerce, parece tender agora para se reduzir a simples máscara ou veste abstracta que a lei impõe ou retira como muito bem lhe apraz.
E tão fundo é este abismo cavado entre a teoria jurídica e as realidades humanas que a personalidade, de princípio identificada com a capacidade em abstracto ou mera susceptibilidade de direitos e obrigações (constante e igual em todos os homens), tende em alguns autores a assimilar-se à capacidade em concreto, tornando-se ainda mais i estrita e contingente.
Veja-se, por exemplo, a forma por que De Cupis continua as considerações acima transcritas Afirma ele, como só viu, que sa aptidão para se ser titular de direitos e deveres não é menos vinculada ao ordenamento positivo, e em função dele, do que o são os próprios direitos e deveres», e logo prossegue:
nem sempre e em toda a parte o direito positivo atribuiu aos indivíduos humanos, simplesmente enquanto tais, uma qualificação deste género, e esta, quando o direito positivo lhe dá existência, tanto pode sei geral como circunscrita. Assim, pode acontecer que o ordenamento jurídico atribua a certos indivíduos aptidão para serem titulares apenas de obrigações, e não também direitos, e quando tal aptidão se estende aos direitos, pode ser limitada a determinada espécie destes, em correlação com razões que podem identificar-se com o sexo, com a religião, como ainda com a nacionalidade, a raça, a classe social, e assim por diante (75).

No mesmo sentido parece pronunciar-se Carnelutti, se bem que em termos algo contraditórios Com efeito, referindo-se ao facto de ser característico dos ordenamentos jurídicos modernos o princípio de que todo o homem é sujeito de direitos ou pessoa perante o direito, ele adverte que «tal princípio deve entender-se no sentido de que não há homem algum que não seja sujeito de relações jurídicas, e não no sentido de que a subjectividade ou a personalidade jurídica seja atribuída a todos os homens na mesma medida» e que «há uma quantidade de razões, boas ou más, pelas quais, de homem para homem, tal medida pode variai, e assim um homem pode ser sujeito de relações jurídicas das quais um outro não pode ser sujeito» (76).
E Carnelutti acrescenta ainda mais

A capacidade jurídica é portanto a medida da personalidade jurídica reconhecida a cada homem ou, por

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(74) I Diritti della Personalità, p 15
(72) Obra e lugar citados
(76) Teoria Generais del Diritto, p. 119.

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outras palavras, a medida da participação dele no ordenamento jurídico (77).

Conclui estas asserções, porém, observando que a capacidade, diferentemente da personalidade jurídica, não é um teimo fixo, mas variável, o que significa que, se todos os homens têm idêntica personalidade, inversamente não tom idêntica capacidade jurídica (72), estas palavras parecem continuar o sentido das anteriores, mas o certo é que as afirmações transcritas não deixam de ajustar a personalidade n capacidade em concreto, e não deixam de manifestar, por isso, a tendência que pretendemos assinalar.
O esvaziamento da ideia de personalidade de todo o conteúdo substancial e a tendência, ora posta em relevo, para a circunscrever à medida concreta da capacidade reconhecida a cada indivíduo não representam, contudo, a última palavra do formalismo nesta matéria Por efeito mesmo daquelas formas da conceber a personalidade, a doutrina sente-se inclinada para deslocar esta de plano e para a caracterizar numa base que agrava muito o alcance da orientação em causa e abre caminho às piores consequências.
Até este ponto, e por muito que a personalidade já se encontre afastada da realidade viva do homem, ela, embora vista como simples produto da lei, ainda se nos apresenta como qualidade ou atributo de cada ser humano, do qual resulta para este uma posição de relevo singular no mundo jurídico. O erro, porém, não perdoa a quem o serve, e é a própria lógica destas ideias que vem inverter os termos do problema, fazendo ver na personalidade, em vez de fonte da condição jurídica do homem, uma simples consequência dessa condição, da qual passa a depender inteiramente.
Da personalidade humana, tal como atrás a deixamos caracterizada, resta, na concepção exposta, apenas o vestígio de um dos seus traços distintivos - a transcendência Vimos que o homem vive voltado para fora de si mesmo em busca de algo que o transcende e sem o qual não pode atingir a própria realização, e, como acentuámos seguindo Schmaus, essa atitude fundamental orienta-se em três sentidos, a existência no mundo, a coexistência com outros homens (comunidade) e o dirigiu-se para Deus. Nada disto aparece explicitamente na noção formal de personalidade, mas há nela um traço que ainda se pode dizer pertinente a esta característica da pessoa aquilo a que os autores costumam chamar «alteridade», isto é, a contraposição e referência a outrem, sem a qual não se compreenderia a ideia de personalidade.
Simplesmente, porque se esvaziou esta ideia de todo o conteúdo substancial e ainda por influência do individualismo (dominante no século passado e, em muitos aspectos, no presente), a alteridade traduz-se exclusivamente no facto de a pessoa ter capacidade para ser sujeito de direitos. Mas a capacidade em si mesma não satisfaz à ideia de alteridade, pois se apresenta como imanente em cada homem, visto isoladamente, por isso os autores sentem-se inclinados para construir a ideia de pessoa sobre o pressuposto de ela ter direitos ou deveres efectivos. Por seu lado, o dever tem sido encarado por um prisma negativo - é o reverso do direito, e consiste no limite imposto à vontade de uma pessoa para evitar a ofensa do direito de outra Por esta forma a ideia de personalidade só ganha verdadeira consistência quando alguém é investido num direito contra outro indivíduo, ao qual é, correlativamente, imposto um dever para com o primeiro, por outras palavras, a realidade viva da personalidade e do direito reconduz-se necessariamente a constituição e desenvolvimento de relações jurídicas.
A relação de direito, o vinculam júris, é, decerto, uma figura de há muito conhecida e com real interesse para a ciência jurídica, mas adquiriu no pensamento dos jurisconsultos modernos um lugar por tal modo primordial e absorvente que se tornou causa de graves deformações do direito.
Foi sobretudo Savigny quem propugnou a ideia de que a relação de direito constitui o fulcro da realidade jurídica Propondo-se determinar as fontes de direito, afirma ele que este, considerado tal como, na vida real, nos rodeia e penetra por todos os lados, se apresenta como um poder de vontade do indivíduo, poder que especialmente se manifesta quando, negado ou atacado, a autoridade judicial lhe reconhece a existência e a extensão por meio de um julgamento. A forma lógica deste impõe, porém, alguma coisa de mais profundo - a relação jurídica, da qual cada direito especial é apenas uma face, olhada abstractamente (70) O julgamento de um caso particular é dominado por uma regra de direito, mas, assim como o julgamento encontra a sua raiz viva e a sua potência de convicção na apreciação de uma relação jurídica, assim a regra de direito tem por base as instituições, por modo que, se coda elemento da relação jurídica tem uma instituição que o domina e lhe serve de tipo, pelo mesmo modo cada julgamento é dominado por uma regra, e este segundo encadeamento, obrigando-se ao primeiro, encontra nele a sua realidade e a sua vida (80). Por isso Savigny pôde dizer que toda a relação jurídica se compõe de dois elementos - de uma matéria, que é a própria relação e constitui o elemento de facto, e outro, a ideia de direito que regula essa relação, e é o elemento plasticizante que enobrece o facto e lhe impõe a forma de direito (81), e por isso ele veio também lançar as fundações da distinção dos ramos de direito baseada na classificação das relações jurídicas (82), donde proveio a chamada classificação germânica dos ramos de direito civil e das relações jurídicas correspondentes.
Estas ideias, robustecidas pela autoridade resultante do facto de terem inspirado a sistematização do Código Civil Alemão, exerceram grande influência na evolução posterior da ciência jurídica e, ainda que adaptadas a outras correntes, vieram a dominar a mentalidade dos juristas por forma quase absoluta e, decerto, muito paia além do que impunha o pensamento de Savigny. A relação jurídica tornou-se não só o esquema universal onde toda a realidade do direito por força se enquadraria, mas a quinta essência mesma do jurídico, por forma a que a relação jurídica estaria para o direito como a ideia de ser para a metafísica E a opinião do Prof Cabral de Mancada, que afirma que tudo na sua visão jurídica das coisas, tudo no seu pensamento jurídico, se reduz a «categoria» «relação jurídica», inclusive o próprio conceito de «sujeito de direito», visto que este mesmo não pode conceber-se sem a noção de existência de outros «sujeitos» com os quais esse primeiro entra em relação (83).
Este agigantamento da ideia de relação jurídica e, mais ainda, a absorção de todo o jurídico nesse conceito têm

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(79) Traité de Droit Roma m, vol cit , pp. 7 e 8.
(...) Ibid., pp. 9 e 10
(82) Ibid., pp 827 o 828
(82) Ibid , pp. 828 o segs
(82) Lições de Direito Civil, vol. I, p 272, texto e nota.

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sido causa das maiores deformações e deturpações em numerosos sectores da teoria do direito, desde o desconhecimento pi ático da base ética do direito e da entidade e dinamismo vivos da ordem jurídica, até a ignorância da comunidade como forma da vida jurídica (84), ao desprezo das relações entre o homem e a norma, à obliteiocao dos chamados «direitos absolutos», como os direitos reais e os de personalidade, etc. O que em particular nos interessa aqui é apenas, todavia, o ponto precisamente posto em evidência nas citadas palavras do Prof Cabral de Moncada a circunstância de, à luz desta orientação, o sujeito de direito só sei compreensível como elemento da relação jurídica.
De tanto se esvaziar o conceito de pessoa, reduziu-se a alteridade, própria dela, a existência de relações de direito entre os homens Mas, posto assim o problema, insensivelmente se é levado a colocar a relação logicamente antes da ideia de pessoa, e esta passa, portanto, a só ser caracterizável pela posição que ocupa nas relações jurídicas.
Sucede, porém, que os sujeitos não são os únicos elementos constitutivos da relação, e é neste ponto que, precisamente, se vai inserir a consequência mais danosa que esta construção introduz no nosso tema.
No clima de pensamento cujos tópicos fundamentais temos vindo a apontar, os homens viveriam, em princípio, isolados uns dos outros ou como tais seriam vistos pelo direito Mas as actividades humanas incidem sobre o mundo exterior, portanto sobre um terreno comum, donde proviriam inevitáveis «conflitos de interesses» e a função do direito consistiria em resolver esses conflitos, demarcando o campo da liberdade dos homens, ou seja atribuindo direitos a uns e deveres a outros Assim nasceriam as relações jurídicos, as quais teriam, por isso mesmo, como tem de luta ou de colaboração, um objecto exterior, uma como
«Coisa» era, numa formulação mais antiga, tudo aquilo que não tinha personalidade (cf. o artigo 369.º do Código Civil). Cedo, porém, os autores advertiram em como este conceito era demasiadamente amplo e, por motivos análogos aos que presidiram a evolução da ideia de pessoa, passaram a delimitá-lo por uma circunstância formal, a de a realidade considerada ser objecto de direito coisa seria tudo aquilo que fosse susceptível de ser objecto de direito, conceito quando muito delimitado negativamente pela figura da «prestação», sem interesse para o nosso objectivo.
De princípio, este conceito de coisa era, explícita ou implicitamente, aplicado apenas às realidades desprovidas de personalidade entender-se-ia por «coisa» tudo aquilo que, não tendo personalidade jurídica, fosse susceptível de ser objecto do direitos.
É evidente, todavia, que em tal noção há um vício grave, desde que se aceitem os postulados em que ela se funda se a noção de coisa se deduz fundamentalmente da posição de objecto que as realidades exteriores ocupam na relação jurídica, isto é, se ela é delimitada por uma função extrínseca, que, por seu lado, só tem sentido quando contraposta à situação da .pessoa, é óbvio não ser
lícito excluir-se da ideia de coisa aquelas realidades que, na relação jurídica, ocupem a posição de objecto, e não a de pessoa Por outras palavras se as noções de pessoa e de coisa não têm conteúdo próprio e apenas são definiveis pela situação que ocupam nas relações jurídicas - situação de sujeito ou situação de objecto -, não é lógico restringir-se a ideia de coisa para, do seu âmbito, se excluírem quaisquer realidades que, nessas relações, desempenhem o papel de objecto, e entre essas realidades, dirão os seguidores da orientação em exame, estão as próprias pessoas.
Eis, portanto, o resultado para que a doutrina se deixou arrastar ao lançar-se no perigoso declive do formalismo o próprio homem pode ser «coisa», se ocupar nas relações jurídicas a posição de objecto E com isto se quebram as, últimas amarras que prendiam a personalidade ao homem - tudo se perde na voragem da abstracção pela abstracção e do esquecimento da essência e do valor intrínseco dos seres humanos.
A exposição que deixamos feita não representa - mais uma vez o acentuamos - uma teoria pròpriamente dita, susceptível de ser imputada a este ou àquele autor. O nosso intuito foi somente o de recolher e estruturar os elementos disseminados pela doutrina corrente, por modo a formar como que uma imagem composta desta última, poderá suceder que ela não coincida precisamente com o pensamento de determinado ou determinados autores, mas - disso estamos convictos - essa imagem traduz com suficiente aproximação o conjunto da doutrina, tal como pode surpreender-se, por assim dizer, pela sobreposição das formulações correntes dos autores. E, aliás, variável a parte que cada um toma na formação desta corrente de pensamento alguns formulam-na expressamente em termos lógicos (85), outros revelam aceitá-la conscientemente, se bem que deixando implícitas algumas premissas utilizadas, outros ainda limitam-se a perfilhar ns conclusões desta orientação sem lhes aprofundarem os fundamentos, e não falta sequer quem, norteando-se em geral por directrizes decisionistas ou normativistas - e concorrendo portanto para as difundir -, evite, por motivos extrajurídicos, os corolários mais extremistas a que elas deveriam conduzir.
O certo é que, no clima criado pelo decisionismo e pelo normativismo logicista, a «coisificação» do homem en-

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(84) Dai resulta como manifestação tão grave como típica, o parcelamento da família em meras relações inorgânicas (já em radical oposição às ideias de Savigny - cf. Traite, I, pp 889 e segs ) e até a negação da autonomia do direito de família com o fundamento de ns relações, por ele regidas, se poderem reconduzir a outros tipos conhecidos, como era opinião, por exemplo, do Prof José Tavares, in Os Princípios fundamentais ao Direito Civil, vol I, 2.ª cd, Coimbra Editora, Lda. Coimbra, 1930, p 295.
(85) Uma das formulações mais características e harmónicos desta corrente é a de Carnelutti (Teoria Generale, pp 107 e segs , 111 e segs , 114 e segs e 125 e segs ). Não podemos expô-la, mesmo resumidamente, pois ultrapassaria os limites naturais deste parecer, mas não queremos deixar, pelo menos, de dar acerca dela uma pequena notícia, para ilustrar as considerações feitas no texto.
O ponto de partida de Carnelutti é a «situação jurídica», realidade resultante da contraposição de duas «partes», em virtude de ambas se acharem numa relação de interesse com o mesmo bem ou coisa, a situação jurídica tem, pois, três elementos, «partes», «bem» e «relação jurídica», entendendo-se por esta a ralação que liga, duas pessoa» em conflito do interessa sobre uma coisa A relação jurídica não nos aparece, assim, como n realidade global, mas sim como um dos elementos desta; trata-se, no entanto, ao simples divergência de terminologia, pois a «situação jurídica» é precisamente o mesmo que usualmente se designa por «relação jurídica», e o próprio Canelutti observa que, residindo a juridicidade da situação jurídica naquele elemento a que chama «relação jurídica», esta expressão se emprega com frequência pêra significar a própria situação (ob cif , p 110).
Ê pela análise da situação jurídica, assim entendida, e usando conceitos formais que Carnelutti procura afinar as noções de «pessoa» e de «coisa». Daí resulta que, embora reconheça como características essenciais da pessoa a autoridade e a liberdade, e diga até que só a pessoa possui a propriedade de se expandir para fora de si mesma, o que não pode explicar-

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contra ambiente extremamente favorável e é fácil reconhecer-se quanto essa facto enfraquece a defesa jurídica da personalidade e como, em especial no tocante ao cadáver humano, ó grave a responsabilidade que lho pode caber nos piores desregramentos da teoria e da prática.
Á doutrina jurídica cumpria assegurar na vida social, pela contemplação das essências e pela firmeza dos princípios, a estrutura capaz de manter todos e cada um dos homens na posição que lhes pertence por natureza e garantir o respeito devido à autonomia pessoal e ao corpo humano, vivo ou morto, tem-se deixado, porém, resvalar para as maiores hesitações e incongruências, quando não para as soluções mais aberrantes, e bem se compreendem, por isso, os estranhos desvios da prática, a que já fizemos referência.
Importa, em tais condições, reconduzir-se a ciência jurídica aos sãos princípios pelos quais o homem, conquanto não possa considerar-se dono de si mesmo (ou, melhor, precisamente porque o não ó o porque o seu fim e perfeição lhe não pertencem), não tenha o direito de consentir em que, na teoria ou na prática, o rebaixem à vil condição das coisas.

17. NECESSIDADE DE BE EXAMINAREM AS PRINCIPAIS PERSPECTIVAS DO DIREITO, SEGUNDO UMA CONCEPÇÃO PERSONALISTA - À crise actual da distinção entre pessoa o coisa, que acabámos de descrever nas linhas gerais, põe em causa as concepções profundas do direito e só pode vencer-se revendo-se as ideias básicas donde há-de partir-se para definir aquelas duas realidades a luz da doutrina jurídica
13 óbvio, porém, que os limites naturais do um trabalho da natureza do presente parecer não permitem versar o problema em toda a sua amplitude e profundidade E, aliás, não seria próprio desta Câmara tomar posição perante controvérsias puramente doutrinais para se inclinar para esta ou aquela solução, que sempre teria de apresentar certas facetas pessoais.
Desde que se queira, todavia, apreciar o projecto em exame perante critérios jurídicos rigorosos, não se poderão deixar de considerar aqui os aspectos fundamentais do problema, e por isso vamos tentar fazer um esboço de uma concepção personalista do «direito, restringindo-nos àquilo que nela se afigure mais relevante e mais adequado a concepção do homem de que, segundo dissemos, temos de partir para o nosso estudo.
Vista nestes estreitos limites, a crise actual desenvolve-se em torno da possibilidade de a pessoa ser objecto de direitos em termos aparentemente semelhantes aos das coisas Partindo-se de posições doutrinárias que apresentam o homem como isento de qualquer vínculo ético e dominado por interesses que, por influxo do positivismo, mais ou menos francamente se declaram egoístas, e concebendo-se o direito como simples superstrutura sobreposta à natureza humana com o fim de resolver os conflitos levantados entre esses interesses, coordenando estes em relações jurídicas, vem-se a reduzir todas as realidades do mundo do direito a ideia de relação jurídica e a caracterizar-se a pessoa, tal como acontece com a coisa, pelo simples aspecto do lugar ou função que desempenha nessa relação.
As pessoas e as coisas aparecem-nos assim colocadas no mesmo plano formal, e por conseguinte como realidades em certa medida contíguas. E aquelas outras realidades que, como as partes separadas do corpo vivo ou o cadáver do homem, verdadeiramente não podem qualificar-se, num critério de bom senso, nem como pessoas, nem como coisas equiparáveis às do mundo exterior, têm de enquadrar-se forçosamente, para esta orientação, em algumas daquelas realidades, geralmente são confinadas na noção de coisa, mas submetidas a princípios que são mais próprios das pessoas, e daqui resulta que passam a constituir, entre as pessoas e as coisas, uma zona de penumbra que mais esbate a diferença entre aqueles dois pólos fundamentais a mais facilita a transição de um deles para o outro.
Só a revisão dos postulados fundamentais do direito nos permitirá vencer esta crise, demonstrando-nos que, respeitando-se a própria natureza do homem, se tem de concluir que as pessoas e as coisas se movem sempre em planos essencialmente distintos e que a noção de pessoa tem o primado entre todas as outras noções jurídicas relativas a situação do homem e nunca pode sei, por isso, aproximada da ideia de coisa.
Demonstrar esta tese e os corolários a que conduz acerca do cadáver humano é o objectivo que, com a brevidade possível, nos propomos atingir nos números subsequentes.

18. CARÁCTER DE NATURAL E ESSENCIALMENTE INTRÍNSECO DO DIREITO - Como primeiro passo desta nossa investigação, cumpre-nos demonstrar que o direito é um elemento intrinsecamente constitutivo da essência do homem, e não simples coloração exterior e artificial, como resulta das concepções decisionistas e normativistas a que nos temos referido Para versar esse aspecto da questão, importa, antes de mais, pôr em evidência a origem natural do direito e assentar ideias acerca da forma como ele se distingue da moral.
Ao examinarmos a concepção custa do homem, verificámos que ele foi criado a imagem e semelhança de Deus, verdade sublime que se manifesta, antes de mais, na personalidade humana o homem é um ser racional e livre dotado de certo poder de criar e a quem foi conferido o senhorio do mundo, e por isso se possui a si mesmo como ser radicalmente autónomo. Não vive, porém, fechado em si mesmo, antes é aberto ao encontro com o mundo exterior, com os outros homens, assim na comunidade como na história, e acima de tudo ao encontro com Deus como todos os seres incompletos, ele experimenta a exigência ontológica da realização por um bem

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-se senão pela força do espírito, Carnelutti não deixa de considerar o homem como coisa - coisa sus generis, uma coisa-pessoa.
A especialidade da construção está no modo do se conciliarem estes dois aspectos contraditórios. O homem teria aã características gerais da coisa, mas, além delas, teria os qualidades própria da pessoa, a pessoa não seria um atributo do homem, mas um doa elementos que o compõem (ob cif, p 114), e, por isso, o homem não seria uma «não coisa», mas sim uma «mais do que uma coisa» - como pessoa, seria sujeito e, como coisa, seria objecto (ibid p 125).
O facto de em geral não se distinguirem estes elementos do homem seria a causa de relutância manifestada pela doutrina relativamente aos chamados «direitos sobro a pessoa própria» e «direitos sobre a pessoa alheia» no entendei de Carnelutti, enquanto o homem ao confundir com a pessoa, melhor, enquanto não se distinguir no homem a pessoa da coisa, a repugnância da doutrina acerca daquelas figuro» é legitima o, por isso, não há direitos sobre a pessoa, mas direitos da pessoa, isto, porém, não quererá dizer que haja só direitos do homem, e não direitos sobre o homem, precisamente porque o homem não ó só pessoa, moa também coisa (ibid , p. 127).
Sem se ignorar o brilhantismo com que se apresenta esta construção, ó manifesto o exagero de abstracção em que ela cai; a pessoa não ó um elemento do homem, nem sequer um atributo dele - é o próprio homem, cada homem, como ente concreto e vivo, e a pessoa (humana) só é compreensível através de todos ns aspecto» peculiares ao homem, evolando-se em fumo logo que for contemplada como realidade distinta dele

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transcendente, exigência que é a expressão da ordem instaurada por Deus, e portanto da razão e vontade divinas, e que para o homem corresponde à glorificação subjectiva de Deus por entre os outros seres do mundo exterior e os outros homens e que para cada um destes constitui uma missão sagrada e singular que se lhe impõe independentemente da sua vontade ou da dos seus semelhantes, mas que reclama dele a adesão pessoal e livre e que para ele constitui o ideal e a felicidade.
O homem é um ser autónomo Mas não o é porque possa, sem se negar ou se destruir, eximir-se ao cumprimento desse fim último, mas porque a glorificação subjectiva exige a participação pessoal e livre de cada ser humano, segundo os dons e a vocação particular que o distinguem de todos os outros e, na comunidade e no história, lhe conferem uma missão em que ninguém pode substituí-lo O homem é um ser autónomo, mas é dotado desta característica como meio paia atingir um fim sagrado, cujo cumprimento é para ele uma necessidade racional e uma exigência ontológica de todo o seu ser.
De tudo resulta haver no homem três princípios básicos de actuação cuja consideração é fundamental para o nosso objectivo antes de mais, o homem é dominado pela exigência ontológica de realização do seu fim último, exigência comum a todos os seres, mas manifestada no homem acima de tudo pelo apetite racional que constitui a vontade, em segundo lugar, o homem é dotado de autonomia para que esse fim seja exercido com adesão pessoal e a consciência e a responsabilidade próprias de um ser racional e livre, finalmente, evidencia-se no homem a necessidade racional de aplicar a sua autonomia ao cumprimento do fim último, o que representa o dever de ser fiel a esse fim, dever que constitui o elemento coordenador dos dois aspectos antecedentes - é o princípio que vincula e harmoniza a exigência de um fim predeterminado e fixo com a autonomia radical da pessoa humana.
O dever constitui por esta forma um elemento integrante e essencial da própria estrutura da personalidade e representa a participação do homem, como ser racional e livre, na razão e vontade divinas, que são fontes de todo o universo e de toda a ordem nele estabelecida Porque assim é, o dever exprime uma ordem transcendente e absoluta dotada de validade universal, revela, por isso, a existência de uma sei, que não é mais do que a aplicação da lei eterna que rege todo o universo aos actos do homem como ser racional e livre.
A autonomia humana como meio necessário para atingir o fim último implica, porém, a descoberta de mas intermédios que sirvam de caminho paia alcançar esse fim e na determinação dos quais impera a liberdade do homem com o consequente poder de optar e de criar e influi ainda a singularidade dos dons e da vocação especial de cada homem e da missão particular que lhe compete cumprir. O fim último do homem desdobra-se, assim, durante a vida terrena, em fins de pormenor que se escalonam sucessivamente como meios e fins uns dos outros, mas que se têm de hierarquizar e coordenar em função do fim último, correspondentemente a lei revelada pelo dever básico de fidelidade ao fim último desdobra-se em leis ou normas que não são estranhas umas às outras, antes contêm o principio dessa hierarquização e coordenação dos fins humanos e constituem por isso uma ordem, à qual geneticamente podemos dar o nome de ordem ética.
Mas esta ordem não é formada por elementos homogéneos a própria natureza humana impõe que nela se desenvolvam sectores com características diferenciadas.
A natureza humana não revela apenas o devei abstracto de cumprir o fim último, nem, portanto, simples normas de conteúdo formal, como seriam as que impusessem a necessidade de atingir esse fim ou de fazer o bem e evitai o mal. A razão natural apreende espontaneamente diversos princípios que são aplicações necessária e universalmente válidas do dever de fidelidade ao fim último impõe, antes de mais, aquelas regras gerais do honeste vivere (com os seus corolários da necessidade de rectidão de carácter, de lealdade, de boa fé, etc ), do neminem laedere e do suum ourique tribuere, e determina ainda numerosas aplicações do dever básico a aspectos práticos da vida, tais como as normas que impõem o respeito da vida e da honra própria e alheia, a necessidade de viver em comunidade e, portanto, de se realizar o bem comum e de haver autoridade incumbida de o promover e defender, a necessidade da família e do casamento monogâmico, a garantia do acesso a propriedade e à efectiva liberdade de a fruir, como meio de assegurar a autonomia pessoal e da família, etc.
Ora, desde que tais princípios se mostram como consequências racionais e necessárias do dever de fidelidade ao fim último, participam da obrigatoriedade deste e apresentam-se à consciência como ditames de Deus, criador e ordenador da natureza humana Por esta forma essa natureza revela um conjunto de princípios, de verdadeiras leis obrigatórias e universais, que constituem a lei natural
Esta lei abrange, todavia, apenas os princípios que se mostrem evidentes e necessários a todas as consciências rectas e esclarecidas e não autoriza, por isso, a defendei, em nome da natureza - como pretendeu o jusnaturalismo setecentista -, simples aplicações de pormenor, apenas aconselháveis segundo as circunstâncias ou critério pessoal de alguns homens, por mais ilustrados e honestos que sejam.
À vida da comunidade e a realização do respectivo bem comum não são, contudo, possíveis sem que se especifiquem todas essas aplicações de pormenor dos princípios da lei natural às circunstâncias especiais da vida, e, portanto, na medida em que têm de ser ajustados às condições particulares de cada comunidade, ou em que podem variar cora as opiniões individuais, ou até na medida em que é necessário optar-se arbitrariamente entre várias orientações, entre si incompatíveis, mas igualmente aceitáveis em princípio (pense-se, por exemplo, na escolha do lado direito ou esquerdo da via pública para a circulação dos veículos) Em muitos casos a experiência e a prática continuada de certas orientações geram na comunidade a convicção de que essas orientações exprimem o que é justo, motivo pelo qual elas passam a beneficiar da obrigatoriedade imanente na ideia de justiça e a constituir verdadeiras leis ou normas, ditas consuetudinários em razão daquela sua origem Mas sempre que - como hoje é regra - não se formam essas normas, o bem comum exige que alguém fixe os princípios reguladores desses aspectos da vida social não directamente regidos pela natureza, e é logicamente à autoridade que o compete fazer, visto sei missão dela promovei e defender o bem comum, e precisamente porque a lei natural exige a comunidade e a autoridade, esses princípios ditados por esta assumem o carácter de verdadeiras leis, cuja obrigatoriedade não decorre do seu conteúdo intrínseco (em si mesmo contingente), mas sim do facto de serem necessárias por foiça da própria natureza do homem e da comunidade por ela exigida.
São estos as leis positivas, as quais, em virtude do seu mesmo fundamento e função, têm de conformar-se à lei natural, cujos princípios sempre hão-de estar presentes,

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por esse motivo, seja na interpretação e estudo científico dessas leis, seja na elaboração das leis positivas novas Este último é, precisamente, o ponto que especialmente interessa paia o objectivo deste trabalho.
Outra distinção que importa fazer-se nas formas assumidas pela ordem ética no seu desenvolvimento e desdobramento é a que separa n moral do direito
Para as doutrinas de origem idealista ou positivista, a moral seria uma disciplina essencialmente individual e subjectiva, reservada ao foro íntimo de cada homem, o direito, pelo contrário, seria formado por um conjunto de normas dotadas de objectividade em razão de consubstanciarem o «mínimo ético» indispensável à vida social e de se destinarem a garantir o bem comum e serem assistidas de coacção Este modo de ver não é, todavia, aceitável, e constitui, ata, o ponto de partida dos erros graves a que essas doutrinas têm conduzido.
Antes de mais, o pretenso carácter individual e subjectivo da moral é contrariado pelo testemunho universal da consciência humana, que sempre tem apresentado as normas de moral como obrigatórias, carácter este que, em muitas hipóteses, se apresenta com evidência muito superior à da obrigatoriedade de numerosas leis jurídicas positivas. Por isso mesmo, quando alguém contempla outra pessoa que, de boa fé, age em desconformidade com as regras morais, não pensa encontrar-se perante outra moral, mas sim na presença de um erro. O fundamento natural e divino de toda a ética impõe, na verdade, que as normas de moral, nesta integradas, tenham carácter objectivo e obrigatório
Também não são aceitáveis os critérios apontados para demonstrar que a objectividade e a obrigatoriedade sejam privativas do direito.
Não é exacto que o direito constitua a consagração do «mínimo ético» indispensável à vida social  convicção geral dos homens rectos apresento-lhes, na verdade, como tão importantes ou mais do que grande parte das leis jurídicas os deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo, bem como os deveres de piedade familiar, de fidelidade conjugal, de patriotismo, eto. E aquela tese é formalmente desmentida pela realidade sociológica: se o direito consagrasse o mínimo ético indispensável, a observância dele, por definição, deveria sei suficiente para a subsistência da sociedade, quando a realidade sempre tem mostrado que o abaixamento do nível moral enfraquece e dissolve a sociedade e mina e destrói o próprio direito, por isso mesmo, a invasão do campo da moral pelo direito, que, na teoria exposta, deveria representar elevação do nível moral, muitas vezes constitui simples defesa contra a dissolução dos costumes, quando não até tolerância para com actos contrários à moral. Na concepção em exame, as leis jurídicas deveriam representar a estrutura moral da sociedade, quando, na verdade, nos dão acerca dela uma ideia contrária à realidade, a tal ponto que o abandono de certa matéria pelo direito pode significar a intenção, por parte do legislador, de elevar o nível moral das leis jurídicas (56).
Também não é verdade que o facto de se dirigirem ao bem comum ponha as normas de direito em contraste com os da moral, pois toda» as leis se orientam primariamente para esse bem comum. Todas elas se fundam, com efeito, no fim último do homem, o qual pertence realmente a todos o por todos tem de sor procurado com a convicção de que a cada um pertence uma missão particular e insubstituível na realização desse bem em que todos são interessados, por isso mesmo, todos os preceitos da moral visam o bem comum, seja como seu objecto directo (preceitos que impõem o dever de caridade, de veracidade, etc ), seja como aspecto daquilo que, nos deveres para consigo mesmo ou para com Deus, cada homem deve realizar em benefício dos outros, na comunidade e na história (87). Segundo a mensagem cristã, toda a lei se resume em dois princípios fundamentais - amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a nós moamos, nenhuma lei pode, consequentemente, deixar de tomar em consideração, em primeira linha, o bem do próximo igual ao nosso, e portanto o bem comum.
De repudiar é também, finalmente, a opinião de que o direito seja por essência assistido da coacção Sempre se admitiram como jurídicas numerosas leis desprovidas de garantia coercitiva (direito internacional, direito canónico e muitas normas de direito interno, nomeadamente de direito constitucional e de família) e é muitas vezes perante ofensas sofridas em condições de não ser possível ou eficaz o recurso a coacção que se tem consciência mais viva do direito o do dever Por outro lado, a coacção mostra-se ineficaz e não chega mesmo a efectivar-se sempre que a generalidade das pessoas não está convencida da obrigatoriedade da lei (pense-se, por exemplo, na resistência oferecida por muitas sociedades, através de séculos, à proibição do duelo e às penas para ele cominadas pelas leis eclesiásticas e civis), a verdade á que, se a experiência demonstra que a coacção é frequentemente adoptada no direito e adequada à natureza dele, também não deixa de faltai em muitos casos e de ser ineficiente em muitos outros. E compreende-se bem que assim seja, pois a coacção é estranha ao fundamento do dever, seja do ponto de vista material, em que a obrigatoriedade se baseia na vontade de Deus ou da autoridade nela fundada, seja do ponto de vista formal, porque a lei só obriga efectivamente quando a generalidade das pessoas tem acerca dos respectivos preceitos a opinio jurus vel necessitai». À verdadeira função da coacção consiste, quando exista «opinio júris», em defender esta contra as desilusões ou desenganos que a impunidade da injustiça poderia causar nos homens honestos, e em fortalecê-la, intimidando os possíveis infractores pela consciência de que a repressão será real e geralmente aprovada, quando não existe a opinio juris desaparece a razão de ser da repressão, e esta torna-se, aos olhos de todos, um mal injustificado, a própria consciência moral leva então a reprová-la e a iludi-la, quanto possível
Deve reconhecer-se, portanto, que a coacção não é necessária ao direito, mas simplesmente adequada à natureza dele e própria para o fortalecer, desde que ele se encontre firmado na convicção moral dominante na sociedade. A coacção não é fundamento do direito, mas efeito da opinio juris, e só nessa medida é realmente eficaz

(36) A abolição da regulamentação legal da prostituição, par exemplo, não representa, em princípio, um recuo moral do direito, mas o intento de eliminar um ouso de tolerância das leis para com praticas imorais Para ilustrar as afirmações feitas no texto, recorde-se o que diremnq acima, parafraseando o trecho de Savigny citado na nota 30 deste parecer.
(87) E elucidativa a opinião do Santo Tomás acerca deste problema (Sumina Theologica, I-II, q 90 a 2). Referindo-se à lei em geral, o mesmo antes de enunciar as grandes divisões das leis, sustenta ele que toda a lei é ordenada primariamente para o bem comum a lei assenta na ração, que é regra e medida dos actos humanos, e aquilo que, no agir, a lei tem de ter em vista primariamente á o fim último, e par isso tem de respeitar acima de tudo a ordem relativa a esse fim, que & a bem-aventurança. Por outro lado, sendo a parte ordenada para o todo, e sendo o homem individual parte da comunidade, ó necessário que a lei atenda, antes de mais, a ordem adequada à felicidade comum. E por isso qualquer preceito particular só terá razão de lei enquanto for ordenado para o bem comum.

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Para nós a distinção rigorosa entre a moral e o direito é aquela que pode deduzir-se da doutrina de Santo Tomás acerca do justo e da virtude da justiça (SR), e que assenta no objecto de cada um desses sectores da ética e' na perspectiva por que esse objecto é encarado.
A moral ocupa-se de todas as virtudes morais e tem como preocupação dominante o aperfeiçoamento de cada um dos homens a que se dirige como meio de os conduzir à salvação.
O direito ocupa-se da justiça, a qual é uma virtude orientada para outrem, ad alterum (89). A preocupação dominante dele não é aperfeiçoar o homem por ele visto como agente, mas garantir aquilo que pertence a outrem, e tem em vista, por conseguinte, assegurar a cada um o que lhe é devido, o suum cuique tribuere (90).
Esta distinção baseia-se no reconhecimento de que as acções do homem para consigo mesmo são suficientemente rectificadas pela correcção das paixões, operada pela generalidade das virtudes. Mas as acções referentes a outras pessoas necessitam de rectificação especial, não apenas a respeito do agente, mas também daquele a quem se dirigem, e por isso tem de haver acerca delas uma virtude especial que é a justiça Tal é o motivo por que a justiça exige sempre a É claro que a moral tem de preocupar-se com a justiça, pois não pode haver aperfeiçoamento pessoal nem salvação sem o cumprimento da justiça For isso esta é uma virtude (92), e uma virtude preclara entre todas, visto fundar-se na vontade e, portanto, nos aspectos mais nobres da alma, e ainda por se referir não só ao agente, mas também a outrem (92).
Por seu lado, o direito não pode desconhecer as outras virtudes, antes, as tem de prescrever na medida em que a observância delas constitui dever de cada um para com os outros homens À justiça deve, até, reconhecer-se como virtude geral, por isso que, sendo o homem parte da comunidade, o bem de todas as virtudes, seja referente ao agente, seja-o a outras pessoas singulares, é sempre referível ao bem comum (94). Por isso todas as virtudes têm de ser ordenadas para o bem comum por uma virtude especial que é precisamente a justiça, tomada na modalidade particular a que se dá o nome de justiça legal (95).
É diversa, porém, como se disse, a perspectiva por que a moral, por um lado, e o direito, por outro, se ocupam das virtudes que não são seu objecto especifico A moral preocupa-se com a justiça por causa do bem do agente a rectidão para as virtudes prescritas por ela apura-se em relação ao agente por um meio termo, um médium rationis, entre as paixões internas (96). O direito quando impõe a justiça tem em vista, principalmente, as acções exteriores (99), e por isso o meio termo que define a virtude tem na justiça a natureza de real e objectivo (98), susceptível de se determinar independentemente da forma por que o agente o realiza (9U) Este facto não prejudica, aliás, a natureza de virtude moral atribuída a justiça pois que o medium rei, pelo qual ela se determina, é também um médium rationis, e por isso não falta na justiça a raao vtrtutis moralis (10º), o caracter de real, próprio do meio termo da justiça, significa, no entanto, que esta virtude tende, acima de tudo, a garanta às pessoas diversas do agente aquilo que lhes é devido.
A moral e o direito têm por conseguinte, a mesma natureza e fundamento, mas versam sobre objectos específicos diferentes e encaram-nos por perspectivas diversas. Daí resulta que, embota indissoluvelmente unidos na base, quando se desdobram em normas de pormenor por forma a constituírem «ordens» positivas, tendem a apresentar caracteres diferentes, e tanto mais diferentes quanto mais se aproximam das normas da periferia A moral, tendendo ao aperfeiçoamento e salvação daquele a quem dirige os seus ditames, tem em vista tudo quanto é necessário para esse objectivo, incluindo a justiça, mas abrange os sectores íntimos da personalidade, e não só se ocupa dos deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo, mas pode até estender, analógica e metaforicamente (101), a ideia de justiça aos deveres para com Deus e do agente para consigo próprio, bem como a atitude interna de cada um para com os outros (justiça nos pensamentos) Por este motivo, a moral tem extensão muito mais vasta do que a do direito, mesmo no tocante a justiça, em compensação, tem de confiar no mérito e na responsabilidade, e, por isso, não pode ser demasiadamente pormenorizada, antes tem de, nas aplicações concretas, deixar ampla margem & consciência moral, orientada pela virtude da prudência, à qual compete determinar os meios necessários ao exercício das outras virtudes e fixar o justo meio entre todas elas(102), e por isso mesmo, também, a moral não pode ser assistida de coacção Finalmente, os preceitos morais tendem a apresentar-se como universalmente válidos.
O direito, tendo em vista garantir às pessoas diversas do agente aquilo que lhes é devido, apresenta objecto mais i estrito - apenas aquilo que exige e permite essa ideia de garantia (a justiça propriamente dita e os aspectos das outras virtudes enquanto reclamadas pelo bem comum) Como a moral, necessita de recorrer, também, a consciência moral, visto lhe interessar em muitos casos a adesão viva e sincera do homem ao dever, e por isso considera até aspectos básicos da personalidade (pense-se, por exemplo, nas teorias criminalistas da culpa na f01 mação da personalidade e dos tipos normativos de autor, no princípio da boa fé, etc), e em muitos sectores tem de confiai a observância de muitas das suas normas ao cumprimento de deveres genéricos, orientado pela prudência (dever de diligência, de perícia profissional, etc). Mas pode, em certa medida, abstrair do mérito e do demérito e, portanto, determinar directamente as aplicações pormenorizadas pela simples prudência do legislador ou pela mera referência à diligência média e recorrer à concessão externa, nessas aplicações de pormenor depende estritamente das condições concretas e das opiniões e critérios da autoridade, e por isso tende a dividir-se em «ordens» positivas, privativas de cada comunidade, ordens que não constituem simples ramificações ou subdivisões do direito, como se poderiam observar na moral (moral familiar, moral internacional, moral profissional, etc), mas verdadeiros sistemas integrais (isto é, com a pretensão de abarcar a generalidade de aspectos da vida), autónomos (isto é, dotados de dina-

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(...) Summa Theologica, II-I, q 57 e 58
(...) Ibid, q 58, art 2, resp
(...) Ibid, II-II, q 57, art 1 e 58, art 1 e 11
(91) Ibid, q 58, art 2, resp e ad 4
(92) Ibid, q 58, art 3
(93) Ibid, q 58,art 12, resp
(94) Ibid, q. 58, art. 5 resp.
(95) Ibid, q 58, art 6, ad 4
(96) Ibid, I-II q 60, art 2, resp e q 64, art 2, resp; II-II, q. 57, art. 1, resp e 58, art 10, resp.
(97) Ibid, I-II, q 60, art 2, resp e q 64, art. 2, resp II-II q 58, art 8, resp e art 9, ad 2 e art 10, resp
(...) Ibid, q 58, art 10, resp
(...) Ibid, I-II, q 60, art 2, resp; II-II, q 57, art. 1, resp
(100) Ibid , II-II, q 58, art 10, ad 1
(101) Ibid , II-II, q 58, art. 2, resp e ad 1 e 2
(102) Ibid , II-II q 47, art 5 e 6.

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mismo e de auto-suficiência) e, portanto, necessitados de serem coordenados entre si, e não apenas justapostos.
Este diverso aspecto que a moral e o direito revestem nas zonas de periferia riflo prejudica, contudo, a identidade de natureza e de fundamento, tal diversidade resulta apenas da perspectiva por que cada um, partindo embora dos mesmos princípios básicos (a lei natural), encara o objecto quo lhe é próprio e específico.
Todas as considerações anteriores nos levam a reconhecer a função intrínseca e essencial da moral e do direito na vida humana.
Partindo da exigência ontológica de realização de um fim último, predeterminado e fixo, e, a par dela, da autonomia radical do homem, logo tivemos de reconhecei o dever básico de fidelidade àquele fim, como meio essencial de ajustar a este aquela autonomia Esse dever básico revela a existência de leis destinadas a conformar com esse fim as actividades parcelares do homem e que tendem a desenvolver-se em diversos planos e sentidos - leis naturais e leis positivas, leis morais e leis jurídicas, estas últimas ainda com a tendência para se diversificarem em ordens distintas, segundo as comunidades em que se formam Estas ordens brotam, assim, naturalmente, do próprio dever básico de fidelidade ao fim último e não representam, por isso, meros limites convencionais à liberdade do homem, como pretendia o liberalismo, nem simples normas arbitrárias derivadas da necessidade social ou do capricho da autoridade, enquanto são conformes à lei natural, derivam, antes, do modo de ser próprio do homem, e por isso, conquanto diversas entre si, fundam-se todas nos mesmos princípios básicos e correspondem a aspectos essenciais da estrutura da vida humana.
Àqueles diversos sectores em que, por este modo, se desenvolvem e desdobram as leis derivadas do princípio básico de fidelidade ao fim último não correspondem, portanto, a zonas recortadas arbitrariamente na vida do homem e susceptíveis de mutuamente se desconhecerem ou contradizerem, mas sim extractos diversos da estrutura natural do homem e da sua actividade. No seu conteúdo concreto, esses extractos podem envolver aspectos mas ou menos fixos nu variáveis, podem ser impostos pela natureza ou mostrarem-se dependentes do arbítrio ou das circunstâncias, podem tender para o mesmo universalista, como a moral, ou para o pluralismo de ordens diferenciados, como o direito, mas, mesmo na medula em quo assim ao apresentam (e desde que não contrariem a lei natural), correspondem, quando vistos no plano ontológico, maneira de ser essencial do homem, como ente autónomo, com missão singular para exercer na vida individual e no seio da comunidade o aberto à realidade transcendente e, portanto, com natureza que se define tanto pelos resultados obtidos como pela base donde parte a actividade humana, mas que, em toda a sua expansão e no exercício do seu poder criador, o essencialmente subordinado à ordem ética, emanada do seu fim último
liste carácter integral que, através das suas manifestações pluriformes, assume a ordem ética é, portanto, consequência intrínseca da própria natureza humana Sem um fim último, fixo e sublime, o homem seria um ente absurdo e contraditório, condenado à condição de aspirar, por exigência radical e ontológica, a um bem supremo que nunca poderia atingir, mas sem autonomia o homem perderia a nobreza e sublimidade da missão que há-de desempenhar relativamente a esse fim, visto se tornar então inapto para atingir este pelo seu esforço e mérito, e, portanto, com adesão viva da sua pessoa Para que, todavia, não falte nenhum destes dois aspectos, é essencial a existência de um princípio que ajuste a autonomia do homem ao cumprimento do seu fim, e que isto é outro senão o dever básico de fidelidade a este último, a que temos aludido
Significa isto que não pode haver manifestação alguma da autonomia que não esteja sujeita a esse dever básico e que nenhum acto humano pode, por conseguinte, ser eticamente indiferente Todos os actos - decerto com valores relativos muito variáveis e por isso hierarquizados - hão-de ser bons ou maus, lícitos ou ilícitos e justos ou injustos.
Esta subordinação à ética nem sequer respeita apenas tios autos do homem, vistos isoladamente Na medida em que tais actos são actuação da personalidade, a ética (e portanto tanto a moral como o direito) confere-lhes sentido e valor de conjunto Por isso a vida (na acepção de existência do homem, actuante por entre factores exteriores à vontade, que ora a- coadjuvam ora a contrariam, mas sempre lhe oferecem oportunidade para se aproximar do bem e da justiça) não é simples sucessão de factos, mas actuação diuturna das potências contidas na personalidade, e por isso com significado de conjunto, em que cada acto remata e reelabora o passado e prepara, no bom ou no mau sentido, o futuro, através da vida o homem vai, assim, acumulando mérito ou demérito, enriquecendo ou empobrecendo a personalidade e tornando-a assim mais ou menos apta para o cumprimento do fim último, até que no momento da morte se fixa definitivamente o valor dessa vida e do homem que a viveu Nesta perspectiva se afirma que o jovem mártir ou herói viveu plenamente e que a morte dele «envergonha a velhice ociosa».
Por isso, sem se conhecer a «vida» de um homem não se conhece verdadeiramente este dentro dos limites da impei feita realização do homem na existência terrena, a vida é o acto da personalidade, mas é-o enquanto encarada como subordinada à ética, e portanto como julgada por cia perante o fim último do homem.
Limitar-se a moral ou o direito a meros aspectos restritos da vida, contrapondo-se o «homem moral» ao «homem jurídico» ou ao «homem político» ou ao «homem económico», é, por conseguinte, cindir-se a personalidade e a vida por forma tão absurda como seria a de se imaginai um homem sem cor ou sem volume. A ética é um princípio intrínseco e essencial do homem e, para a vida dele, é como o imã para a limalha de ferro é ela que lhe dá sentido e sem ela a vida é como a limalha sem a acção magnética - não passa de um amontoado de poeira sem figura e sem harmonia.
O direito, como modo de ser da ética, é por isso um aspecto desse princípio e dimensão essencial do homem, e portanto igualmente intrínseco e essencial, e não mera superstrutura exterior e arbitrariamente imposta à natureza humana
Mas, para desempenhar esta função de princípio estruturante do homem, tem de sempre ser conforme à natureza dele e às leis fundamentais que ela revela e impõe, se assim não for, não será direito, mas «torto», será a violação e deturpação do próprio homem.

19. PRIVADO DA PESSOA HUMANA CONCRETA - Assente a solução que, a respeito da interpretação geral do fenómeno do direito, parece adequada à concepção cristã do homem, cumpre tomar-se agora posição sobre alguns pontos básicos da estrutura da ordem jurídica, vista à luz das conclusões precedentes.
O primeiro aspecto que importa salientar-se é o de que a ideia de pessoa humana, ou, melhor, a pessoa humana viva e concreta, tem o primado em toda a construção do direito

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As doutrinas normativistas e decisionistas, seguindo por caminhos vários, concentram toda a atenção nos aspectos periféricos, nos epifenómenos do direito (poderes, direitos, relações jurídicas, etc ), caracterizando-os sem o apoio de qualquer noção básica e portanto por forma artificial e apriorística. E é destas noções, de conteúdo puramente formal, que deduzem as noções centrais, como a de pessoa, capacidade, etc, adaptando-as a essas noções formais e despojando-as, por conseguinte, de todo o conteúdo material.
Na concepção personalista que vimos desenvolvendo, o direito (como a moral) é essencialmente inerente à pessoa humana.
Só quanto a ela o direito tem razão de ser Como toda a ética, ele desempenha, na verdade, a função de coordenai a autonomia com a exigência ontológica da realização de um fim predeterminado e fixo. Por isso mesmo, o direito seria inadmissível a respeito de seres irracionais, visto eles não serem livres e o fim deles sei- assegurado pelo funcionamento das leis causais. E, transitando-se para um extremo oposto a este, tão-pouco ele seria adequado às pessoas divinas, por isso que possuem em si mesmas a perfeição e não se destinam a qualquer fim, untes são o fim de tudo quanto existe - o bem e a justiça são-lhes imanentes. Pelo contrário, o homem é um ser racional e livre, mas não possui em si mesmo a perfeição, antes é chamado a realizar-se por um bem transcendente reclamado pela própria essência, por tal motivo levanta-se quanto a ele o problema, único entre os seis terrenos, de exercer a autonomia para um fim necessário e fixo, e é à ética, e portanto ao direito, que compete coordenar este» dois aspectos, desempenhando a respeito do homem a função das leis causais acerca dos seres inferiores, mas por forma adequada à natureza de racionai e livre que o distingue.
Por outra parte, só o homem pode apreender e cumprir o direito, pois só ele tem razão para participar consciente e activamente na lei, e só ele é livre de ajustar os seus actos os exigências da mesma lei.
Finalmente, o direito não é somente adequado à natureza humana. É-lhe essencial como toda a ética, segundo já demonstrámos, pois representa o meio teimo racionai entre dois princípios de actuação que sem ele seriam divergentes e contraditórios a exigência ontológica de um fim supremo e fixo e a autonomia radical, intrinsecamente constitutiva da pessoa humana.
O direito é, assim, essencial e privativo do homem como pessoa - como ente singular e autónomo, racional e breve, e destinado a um fim transcendente, fixo e necessário.
Dizer-se que, por estes motivos, o direito é essencialmente inerente à pessoa humana, é afirmar-se implicitamente que o fim dele é o do próprio homem - fim transcendente, infinitamente elevado e nobre, que não pertence ao homem mas a Deus, e contudo confere àquele a imensa dignidade resultante do carácter sagrado desse fim.
Disto se infere que as directrizes fundamentais do direito hão-de ser a de concorrer para assegurar a realização do fim do homem e a de salvaguardar a dignidade que para este resulta do mesmo fim.
De tudo se infere que o desenvolvimento do direito, seja como ordem, seja como corpo de doutrina, tem de assentar na noção de pessoa humana Sendo o direito essencialmente privativo da personalidade humana e destinando-se a assegurar o fim e a dignidade que lhe são próprias, todas as normas jurídicas e todas as construções científicas hão-de respeitar esses objectivos, sob pena de negarem a própria essência do direito, quer recusando, em aspectos de pormenor, a personalidade e a sua dignidade, quer atribuindo esta a entes que não sejam pessoas. Nada, na ordem como na constituição científica do direito, pode parte de postulados foi mais, estranhos à personalidade, antes tudo tem de assentar no respeito do fim supremo e da dignidade do homem.
Examinadas as relações jurídicas, por exemplo, à luz destes princípios, impõe-se reconhecei que aquilo que nelas há de específico consiste precisamente em serem jurídicas, e portanto relacionadas com o direito, como princípio essencial e privativo do homem Os seres irracionais também têm necessidades, também contactam uns com os outros e lutam pela vida, mas esses factos ou suo pui as manifestações da natureza, entregues ao jogo das leis causais, ou são vistos com referência à actividade do homem, e então esses seis podem ser objecto do direito, mar, esta circunstancia só tem sentido quando vista à luz dos interesses do homem e adequada à natureza deste. Mesmo quando o próprio homem aparece como objecto da actividade de ou ti o homem, a situação assim criada, para ser jurídica, tem de satisfazer aos fins do direito - assegurar a realização do fim supremo do homem e salvaguardar a dignidade intrínseca deste
Este fim coloca o homem, antes de mais, perante o próprio direito, numa relação ética fundamental, estabelecida no âmago mesmo da personalidade e da vida por um diálogo directo entre o homem e a lei, vista esta como expressão da razão e vontade divinas. E essa relação, ao mesmo tempo fonte e cúpula de todas as outras, não constitui coisa diversa do próprio dever básico de fidelidade ao fim último.
Negar-se-ia, por consequência, o próprio fim do direito, se se abstraísse dessa relação ética fundamental e se pretendesse extrair do homem simples utilidades, reduzindo-o à função de instrumento. E para se contestar essa pretensão aberrante, não pode construir-se um conceito puramente formal de pessoa para depois se deduzir dele que o homem nem sempre se apresenta em conformidade com essa noção, deve partir-se, antes, da ideia de que o homem é sempre pessoa e que, qualquer que seja a situação dele no direito, só pode tratar-se de situação realmente jurídica, se for conforme à personalidade humana.
Um último aspecto se infere de tudo quanto fica exposto quando se afirma que o direito é inerente à personalidade e que o fim dele é salvaguardar a dignidade desta e concorrer para a realizar pelo cumprimento do fim último, não pode ter-se em vista a pessoa humana como realidade abstracta, mas sim o homem como ser real e concreto.
É muito frequente, mesmo entre autores confessadamente personalistas, cair-se neste pecado da abstracção e sustentar-se, por exemplo, que o indivíduo existe para o Estado e o Estado para a pessoa humana. Não é difícil ver-se, todavia, que tal enunciado subordina o homem vivo e real a um mito abstracto semelhante ao da «vontade colectiva» de Rousseau ou até ao «homem» do humanitarismo liberal e revolucionário - aquele «homem» em nome de cujos direitos se têm sacrificado inúmeros seres humanos concretos e inocentes.
Como resulta da síntese, acima feita, da concepção cristã do homem, este é um ser singular, criado concreta e individualmente por Deus e votado a um fim supremo que é chamado a atingir pessoal e livremente Por natureza ele vive unido aos seus semelhantes, assim, na comunidade como na história, mas nem por isso deixa de ter um fim pessoal e singular que, aliás, interessa, como tal, a todos os outros homens, como objecto de uma missão particular conferida a cada um e no desempenho da qual cada um é insubstituível.

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O carácter de essencial e de privativo do homem que distingue o direito baseia-se na autonomia e no fim último do ser humano, e por isso só faz sentido quando visto concretamente em relação a cada homem e, através dele, a cada comunidade, e não a «pessoa humana», vista abstractamente. O que está em causa não são «fins», «interesses» ou «qualidades», mas o homem concreto e vivo, cuja realização o direito tom de assegurar.
Se se aceitasse qualquer concepção para a qual os valores da personalidade humana fossem dissociáveis da qualidade de homem real, o dever básico de fidelidade ao fim supremo e a correspondente relação ética fundamental tomariam a natureza de realidades extrínsecas, das quais qualquer poderia libertar-se arbitrariamente, e o direito e a moral sei iam irremediavelmente desagregados, no lugar deles imperai ia apenas a violência, como pretendia o anarquismo, ou o direito e a moral sei iam relegados para as camadas inferiores da humanidade, acima das quais dominai ia a super-homem, como na moral de Nietzsche.
E nem mesmo em relação aos homens que aparentemente nulo podem atingir o rim supremo por meio da vida normal o direito lhes pode negar a qualidade e dignidade de pessoas. O fim do direito é o fim do próprio homem e pertence a Deus, e é portanto superior ao próprio direito, por outro lado, esse fim não é atingido integralmente na vida actual, mas sim na futura, em que o homem será liberto das limitações terrenas que se oponham à realização desse fim, e em qualquer caso, para além da acção do homem e do direito, Deus governa o Afundo pela sim providência e assegura a todos os meios necessários para atingirem o seu fim último.
Tudo isto significa que, mesmo quando os meios disponíveis pelo direito pareçam ineficazes, ele não pode negar o fim do homem, nem privar este das garantias necessárias para a realização desse fim.
O direito não tem em vista, por conseguinte, apenas a generalidade abstracta dos homens, nem somente aqueles que, de entre eles, pareçam melhores ou mais cultos, mas todos e cada um dos homens em concreto, com toda a sua dignidade de pessoas, mesmo que naturalmente eles se afigurem inúteis para si mesmos ou para os outros
Por isso são de repudiar como antijurídicas, como manifestações do «torto», e não do direito, todos os sistemas que neguem a alguém a qualidade de homem (escravatura), ou distingam entre os homens indivíduos ou roços superiores e inferiores (anarquismo, racismo) ou de algum modo particular, ainda que para efeitos restritos, reduzam o homem concreto a condição não humana ou neguem valores essenciais da personalidade, impedindo o homem de atingir o seu fim supremo.
Todas essas posições são contrárias a essência do direito e às prescrições da lei natural, e as regras que as pretendessem, impor não poderiam ser havidas como verdadeiras normas jurídicas não valeriam pelos seus imperativos, porque, contrárias a razão, não poderiam ser licitamente acatadas e, como objecto do labor científico, não podei iam ter mais valor do que os fenómenos teratológicos para o estudo da anatomia seriam «monstros», só por contraste susceptíveis de revelarem a verdade do direito.
Na base de toda a ordem jurídica encontra-se, portanto, a pessoa, como ente individual dotado de razão e de liberdade e destinado a um fim transcendente, fixo e necessário, cuja realização ao direito compete assegurar.
A máxima omne jus hominum causa introductum est não deve tomai-se com o significado restrito de que o direito só pode dirigir-se ao homem, por só ele ser capaz de o apreender e cumprir, por forma a admitir-se que, no entanto, o direito se lhe dirija paia o sujeitar ao interesse alheio ou colectivo Deve antes entender-se no sentido de que tudo quanto existe no direito se destina ao homem concreto e vivo e de tudo quanto negar esta verdade não será direito, mas torto.

20. A CONDIÇÃO DAS COISAS - Demonstrado que o direito é privativo do homem e essencialmente inerente à personalidade e assente que, por isso mesmo, é a ideia de pessoa humana, concreta e viva, a primeira das noções que nos surgem ao estruturar a ordem jurídica, cumpre procurarmos determinar, agora, qual é a perspectiva em que, na concepção personalista defendida, devem ser encaradas as coisas.
Nos sistemas formalistas e positivistas o direito é exterior ao homem - não passa de uma superstrutura artificial que lhe é imposta por motivos estranhos a própria essência dele. Por isso tais sistemas têm conduzido a crise da distinção entre pessoa e coisa, por nós acima descrita esvaziando essas realidades de conteúdo material e não tendo na sua acção outra directriz nem outra preocupação que não sejam as de adaptar os homens a fins contingentes e utilitários e a reger-lhes a vida por princípios preconcebidos, puramente formais, o direito veria o homem como pessoa apenas na medida em que ele próprio o tratasse como tal, e as pessoas e as coisas mover-se-iam no mesmo plano e seriam realidades quase contíguas, apenas separadas por figuras intermédias em características -entre as quais se contaria o cadáver humano - que as ligariam por uma zona de suave penumbra e mais acentuariam, assim, a contiguidade tendencialmente estabelecida entre elas. Até os sistemas liberais, em que a primazia reconhecida à liberdade pareceria dever opor-se, como forte barreira, a «desumanização» do homem e do direito, facilmente se deixam, na realidade, arrastar pelo declive das abstracções, a ponto de muitas vezes sacrificarem o homem real ao capricho da maioria ou ao interesse do mais forte e industrioso, quando não a simples mitos desprovidos de conteúdo verdadeiramente humano.
A concepção personalista impõe-nos um modo de ver profundamente diverso Princípio estrutural e intrínseco da personalidade e destinado a assegurar o cumprimento do fim último reclamado pela essência humana, o direito não assenta em abstracções e não pode construir-se com elementos puramente formais. Não é ao «homem» ou à «pessoa», como entidades irreais e abstractas, que ele se dirige, mas ao ser humano vivo e concreto, criado singularmente por Deus para uma missão igualmente concreta e singular, e, por isso, é a esse homem, a cada homem, que ele há-de garantir a dignidade que é apanágio da sua natureza e que há-de assegurar as condições indispensáveis para o cumprimento daquele fim último, que é, afinal, o fim e razão de ser do próprio direito.
Ainda, pois, que certo homem pareça inútil, ainda que nele se não vejam mais do que encargos para os outros ou se pense que ele, como simples instrumento ou escravo, poderia proporcionar à colectividade vantagens superiores à da sua actuação livre, mesmo que ele se mostre danoso para a sociedade ou se revele desprovido de toda a razão e liberdade e necessite de ser regido pelos outros homens - mesmo que assim aconteça, nem por isso o direito poderá norteai-se por directrizes exclusivamente utilitárias e antes teia de respeitar e tratar esse homem como tal, porque ele pertence a Deus e a Ele é destinado, porque é dotado de alma imortal, sempre susceptível, pelo poder de Deus, de atingir o fim último, e, enfim, porque ao direito cumpre defender a dignidade imensa que, por estes motivos, pertenço a todos

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e a cada um dos homens, por muito inúteis ou maléficos quo se afigurem aos outros A justificação e o sentido fundamental de todo o direito residem no fim paia que ele existe e que outro não é senão o hm último e supremo dos homens, aquele fim sublime a que todos os homens são chamados, sem excepção, e, porque assim é, por maior que possa parecer a inutilidade ou a incapacidade de um ser humano, sempre na orientação do direito acerca dele há-de prevalecer o respeito por esse fim sagrado a que ele é votado individual e concretamente - proceder-se por outro modo será negai-se a própria essência e fundamento do direito
Muito diversa é, pelo contrário, a condição das coisas, tal como a podemos inferir da concepção cristã do mundo, acima delineada.
As coisas do mundo exterior, quando vistas em si mesmas e nas operações que lhes são próprias, também tendem para um fim último - a glorificação objectiva de Deus - e, quando entregues exclusivamente as suas forças, elas cumprem fielmente esse fim, segundo os ditames da lei eterna e em virtude do influxo do governo do mundo pela Providência.
Sabemos, todavia, que a realidade do mundo exterior se encontra submetida ao senhorio do homem para que ele a domine e cultive, por forma a dela extrair toda a dose de bem, toda a potência de glorificação objectiva do Criador que nela se contém Em última análise, essa realidade exterior não tem, portanto, um fim próprio e autónomo existe para que o homem descubra os aspectos de bem nela ocultos e os revele e faça frutificar de acordo com a sua vontade e, consequentemente, em conformidade com o fim próprio dele.
Nesta concepção, o mundo exterior existe para o homem e este vive para Deus Por isso a pessoa e a coisa se distinguem pelo carácter de intrínsecos ou extrínsecos dos fins a que podem ser votadas.
Às «coisas» têm simples fins extrínsecos. Na aparência natural a semente serve para multiplicar a planta, mas o homem não violará a natureza se a comer ou dela extrair matérias-primas, se a deixou germinar e desenvolver-se, se consentiu que brotasse a planta, não agirá contra a natureza se a cortar para se aquecer, para edificar a casa, para fabricar utensílios, etc , se lhe foi permitido florescer, aí teremos a planta coberta de flores, na aparência natural destinadas a engendrar o fruto donde provirá a semente de novas plantas, e, todavia, nenhuma ofensa se cometerá contra ai natureza se se colherem essas flores para ornamentar o ambiente do homem ou o fruto para o alimentar e assim se fizer frustrar o fim que a natureza lhes parecia assinar. Tudo isso é legítimo, afinal, porque tudo na planta está sujeito ao domínio do homem e, quando visto como objecto da actividade deste, tudo há-de ser apreciado, não por fins próprios dela, mas pela subordinação do homem aos seus fuás superiores
À pessoa, pelo contrário, tem fins intrínsecos fins que não pertencem ao homem, mas a Deus, e dos quais aquele não pode afastar-se licitamente e que ninguém pode violar - fins que não podem, por título algum, ser subordinados a quaisquer aplicações capazes de os negar ou de os privar de realização.
Nesta diferente posição que o homem e o mundo exterior ocupam reciprocamente na ordem da criação está, segundo cremos, a chave da distinção correcta e de alcance mais geral das funções próprias da pessoa e da coisa no campo do direito À coisa não tem fins privativos e satisfaz a sua natureza tanto melhor quanto mais. intensamente serve os fins do homem, incumbido precisamente de extrair do mundo material a máxima potencialidade de bem nele acumulada, e por isso o único critério de apreciação ética do aproveitamento das coisas reside nos próprios fins do homem, aos quais ele tem de ser fiel em todos os actos da sua vida, sirva de exemplo ao que dizemos a desintegração do átomo que, com o sei a maior das violências pelo homem cometidas contra a natureza física - é o ataque radical à estrutura e equilíbrio profundo da matéria -, nem por esse motivo merece ser qualificada de boa ou de má em si mesma será lícita, se não louvável, ou constituirá crime nefando, conforme a intenção com que for produzida e o maior ou menor respeito ou menosprezo, por parte do agente, dos deveres de justiça e de caridade para com os outros homens Inversamente, a pessoa - a pessoa humana, aquela que nos interessa aqui - não pertence a si mesma nem pode ser reduzida ao senhorio de qualquer ser terreno está sujeita a fins superiores que há-de realizar por sua vontade e mento, mas de que é responsável e que não pode atraiçoar.
O contraste, assim estabelecido, entre a condição das pessoas e a dos coisas vem acentuar o primado das primeiras por nós anteriormente defendido. Às coisas, enquanto chamadas paia o círculo da actividade humana, também têm lugar próprio na ordem jurídica, a função que aí lhes pertence pode, porventura, ser até mais ampla que aquela que lhe tem sido atribuída pela doutrina corrente, obcecada, como esta tem sido, pela preocupação de as enquadrar a força na posição de objecto das relações jurídicos Seja como for, por em, o certo é que tudo quanto as coisas representam para o direito se há-de justificar, sempre, pela redução delas a meios utilizáveis para fins humanos. Ou como objecto da actividade do homem, ou como ponto de referência tomado pelo direito para definir e regulai a actuação deste, ou por qualquer outra forma, as coisas t>ó podem interessar ao direito como partes, efectivas ou potenciais, da esfera do domínio humano sobre a realidade circundante.
Às pessoas, essas, nunca podem ser degradadas ao nível de objecto ou de meio, e nunca podem, portanto, deixar de ser vistas como suportes de fins intrínsecos e sagrados.

21. TIPOS FUNDAMENTAIS DE SITUAÇÕES DAS PESSOAS, A
ORDEM JURÍDICA SUBJECTIVA - O direito é, como temos visto, o elemento estruturante da personalidade e da vida em função do fim último e sagrado do homem À função dele não pode consistir, por conseguinte, apenas na qualificação ou apreciação valorativa da actividade ou da vida humanas, antes vai muito mais longe e pretende orientai essa actividade e essa vida para a consecução daquele fim supremo.
Ora existem no homem, segundo também dissemos, três princípios básicos de actuação a exigência ontológica da realização do fim último, a autonomia e o dever de fidelidade a esse mesmo fim.
Desses três princípios, o primeiro - a exigência ontológica de realização do fim último - é uma aspiração profunda, expressão da lei eterna e, portanto, da razão e da vontade divinas que a ditaram, essa exigência é análoga a de todos os outros seres criados e, embora destinada a manifestar-se por formas adequadas à natureza racionai e livre do homem, em si mesma, no que tem de mais radical, é independente da razão e da liberdade abrange todos os homens, sem excluir as crianças e os loucos, sem excluir mesmo o simples embrião humano. Este princípio é, por consequência, valido para cada um dos homens e impõe-se a todos eles, independentemente da capacidade, da opinião ou da vontade de qualquer deles em especial

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Pelo contrário, a autonomia e o dever silo manifestações da própria exigência ontológica, tal como ele se apresenta no ser humano para a realização do fim de glorificação subjectiva de Deus, só atingível mediante a consciência e a liberdade. Estes dois princípios respeitam, pois, a actuação livre do homem para a satisfação da própria exigência ontológica da realização do fim ultimo
Quer isto dizer que essa exigência ontológica é uma pura potência, enquanto a autonomia e o dever são essa mesma potência posta em acto, tal como ela se apresenta encarnada na actividade livre do homem.
Sendo assim, é óbvio que o direito, enquanto se destina a orientar o homem, tem por objecto directo a autonomia e o dever Deve nortear-se, como á evidente, pela exigência ontológica na qual assenta o próprio fundamento; mas, na medida em que pretende dirigir a actividade livre do homem, deve incidir sobre aqueles dois princípios de actuação que, precisamente, são manifestações dessa actividade - a autonomia e o dever À função do direito, examinada por este prisma, consistirá, portanto, em definir* aquilo que o homem pode fazer ou não no exercício da autonomia, isto é, em reconhecer-lhe o poder ou faculdade moral de agir ou não agir, e impor-lhe a necessidade racionai de agir ou não agir por forma que o exercício da autonomia se ajuste ao fim último, o que redunda em impor-lhe o dever de agir ou não agir por certa forma.
Significará isto que toda a actuação do direito se reduz em conferir poderes e em impor deveres?
É essa a concepção corrente, resultante - posto que por vias diversas - do normativismo e do positivismo.
Nessa concepção o direito reduzir-se-ia a um conjunto de normas que, genérica e abstractamente, definiriam poderes e deveres, e estes mesmos não seriam mais do que o verso e reverso da mesma realidade - a sobreposição de uma vontade ou interesse a outra vontade ou interesse - previstos como meios de resolver conflitos de interesses e de os transformar em relações jurídicas Dal o afirmar-se que existe directa e exacta correspondência entre as leis e o direito tal como á vivido em concreto pelo homem, o que constitui o ponto de partida para aquela tendência doutrinária, atrás assinalada, para se estudarem as realidades jurídicas como se elas fossem puras abstracções, em vez de elas serem estudadas em abstracto, sim (como impõe a natureza da ciência), mas sem se perder de vista que elas, na verdade, existem em concreto E nesta forma de pensamento se gera igualmente o geometrismo jurídico, inspirador das maiores deformações da doutrina, como sejam aquelas que levam a esbater-se a diferença profunda que separa as pessoas das coisas.
Modernamente a doutrina jurídica tem reagido por forma sensível contra este abstraccionismo e geometrismo, inclinando-se para uma concepção concreta do direito e da ordem jurídica. Em geral, essa tendência á mais adequada à realidade, mas origina um risco sério de, no campo do direito, se cair numa espécie de concretismo, semelhante à chamada «moral de situação», o que arrastaria afinal para a própria negação do direito como ordem geral
A concepção personalista que vimos expondo leva-nos a repudiar tanto o abstraccionismo puro quanto esse novo concretismo jurídico. Fortando-se dela, ser-se-á levado a reconhecer no direito dois aspectos essencialmente interdependentes e complementares que correspondem àquilo que pode haver de verdadeiro em cada uma daquelas posições extremas.
For um lado, não pode deixar de se aceitar que a realidade jurídica em si mesma é concreta.
Antes de mais, á essa a conclusão imposta por todas as considerações anteriores O direito é um elemento estruturante da personalidade e esta é essencialmente concreta - é a realização de uma essência comum numa existência singular e concreta A personalidade existe para um fim concreto, definido pela vocação - a missão concreta por meio da qual cada homem há-de contribuir pessoalmente para a realização do fim último em que todos são chamados a comungar. A exigência ontológica da realização desse fim, imanente em cada homem, bem como a autonomia e o dever de fidelidade aquele fim, apresentam necessariamente tonalidades concretas correspondentes a essa vocação. Finalmente, em razão de tudo isto, o primeiro elemento de estruturação da ordem jurídica é a pessoa humana tomada em concreto, e as coisas, que concretas são, só entram no mundo do direito em virtude da posição que ocupam perante o homem e como objecto do senhorio deste sobre o mundo exterior.
Mas há mais ainda Tentando-se aprofundar a ideia de que a função do direito, como princípio orientador do homem, se traduz em conferir poderes e em impor deveres, verifica-se que estes redundam na apreciação de actos humanos - tudo está em reconhecer que certos actos são lícitos, e portanto permitidos, ou obrigatórios, logo devidos, ou ilícitos, e por conseguinte proibidos. Acontece, todavia, que os actos humanos não têm significado ético sem se considerar o fim concreto para que são praticados; o acto de entregar a outrem certa quantia em dinheiro, por exemplo, pode ser, consoante o fim em vista, um acto lícito de empréstimo, ou depósito, ou doação, como pode ser um acto devido, de pagamento, como pode constituir até o acto ilícito e criminoso de suborno, de mandato criminoso, etc, e se procurássemos qualificar o acto de matar outro homem, necessariamente teríamos de averiguar qual o fim que o norteia, para sabermos se se trata do acto lícito de legítima defesa, do acto devido por um carrasco, em países onde haja pena de morte, ou antes do acto criminoso de homicídio, com todas as suas variadas formas por vezes dependentes de fins especiais, como no caso do crime de roubo com homicídio; e até os actos praticados para um fim genericamente lícito podem ser proibidos quando constituam abuso de direito.
A significação ética dos actos depende ainda do objecto em que recaem e das circunstancias em que são praticados, actos há que, por exemplo, são lícitos quando praticados pelo proprietário sobre coisa própria e que seriam ilícitos quando dirigidos a coisa alheia, mas que, neste último caso, também podem ser lícitos perante determinadas circunstâncias (por exemplo, o corte de ramos de árvores de prédios vizinhos, quando ultrapassem a respectiva estrema)
Recorde-se, finalmente, que o desenvolvimento das leis, a partir do preceito básico revelado pelo dever de fidelidade ao fim último, se faz por desdobramento deste fim, e portanto mediante a especificação da própria exigência ontológica relativamente a cada um dos fins de pormenor em que aquele se decompõe; e é neste enquadramento, tão concreto como esses fins de pormenor, dependentes da autonomia e da orientação particular da vida de cada homem, que se hão-de integrar os poderes e deveres que lhe são outorgados pelo direito
E se voltarmos de novo a atenção para a forma como Santo Tomás constrói o direito e a justiça, veremos que para ele o objecto da justiça é o j«a, entendido como algo de objectivo e concreto, pomo um médium rei estabelecido entre as operações ou coisas exteriores e uma pessoa, algo que dá a medida da justiça em relação a essas operações ou coisas perante tal pessoa, e se traduz, para esta, no «um, no quo lhe é devido O fulcro do direito e da justiça reside, portanto, em alguma coisa de concreto - um meio real -, e não em normas abstractas ou em atitudes subjectivas, seja de quem for.

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Simplesmente - e é esse o segundo aspecto essencialmente implicado pela concepção personalista, como acima se disse -, este carácter concreto do direito não o liberta , da lei geral, como poderia resultar de uma concepção ética, fundada no individualismo radical ou no existencialismo ateu.
Todo o direito se funda na exigência ontológica de realização do fim ultimo, e assenta portanto na própria lazão e vontade de Deus, criador de todo o universo e na ordem por Ele instaurada na criação, e todo o direito se há-de fundar também, por isso mesmo, na lei natural, revelada pela própria natureza e que outra coisa não é senão a lei eterna, promulgada por Deus, enquanto aplicada a actuação racionai e livre do ser humano.
O direito, nos seus fundamentos e nos seus desenvolvimentos racionais, é uma forma de o homem participar na lazão divina e há-de apresentar-se, por conseguinte, com o carácter e o valor de universal, ainda que seja susceptível de, nos desenvolvimentos periféricos, se ajustar ao condicionalismo próprio de cada comunidade Por seu lado, a personalidade humana, cuja realização é fim do direito, representa um modo de ser particular, a realização numa existência singular de uma mesma essência, e é esta que encerra os valores universais da humanidade, por isso. só erguendo-se acima da sua individualidade e amando nos outros homens esses valores universais é que o homem pode ter plena consciência daquela essência e realizar integralmente os valores nela contidos (10>) Sendo assim, paia o direito poder orientar o homem há-de baseai-se nesses mesmos valores universais e portanto assentar em princípios de aplicação gemi, e não em soluções da casos concretos.
Estes princípios destinam-se a criar o direito e a estabelecê-lo e firma-lo na vida social Mas não constituem de per si, ou pelo menos não esgotam eles próprios, o direito vivo, este é uma proposição justa entre homens, e só pode actuai-se, por isso, em casos concretos, como concretos são os próprios homens
Para Santo Tomás a lei é a não, a «forma» do direito assim como na mente do artista preexiste uma ideia que é regra da obra de arte, assim também a razão determina o justo de um acto por uma ideia preexistente na mente, como regra de prudência, a que se chama lei «quando é escrita». À lei não é portanto, pròpriamente, o direito mesmo, mas certa razão do direito (104).
Esta parece ser, com efeito, a doutrina verdadeira.
O direito realiza-se em concreto e só em concreto existe em acto, mas não se actua ao sabor de capuchos ou de opiniões subjectivas, e nem sequer pela meia apreciação ética de situações individuais desligada de quaisquer outros juízos de valor, actua-se, antes, de acordo com regras racionais, de valor geral ou até universal (direito natural), que constituem formas ou causas formais do justo, concreto, e ainda causa exemplar (pense-se nos «tipos» legais, no Tatbestand dos autores germânicos) e causa eficiente na medida em que, por causalidade moral, impõe a própria observância.
Essas regras gerais ou universais - as leis, em sentido lato - tendem, assim, a constituir com as situações por elas enformadas uma verdadeira ordem, a que poderá dar-se o nome de «ordem jurídica subjectiva» ou «concreta», a qual é, em cada momento, a actuação das formas contidas na «ordem jurídica objectiva» ou «abstracta», integrada pelas mesmas leis
Tanto a ordem jurídica objectiva, como a subjectiva, são animadas de intenso dinamismo cuja finalidade é, precisamente, conservar e desenvolver a ordem subjectiva em harmonia com a objectiva, e ainda defendê-la, pela reacção da ordem objectiva contra o ilícito ou torto.
Este dinamismo manifesta-se, em grande parte, pela própria autuação concreta das normas, por forma por assim dizer endógena. Em muitos aspectos, todavia, opera-se por meios exógenos, constituídos por factos estranhos ao dinamismo interno de cada situação) aos quais a lei atribui relevância ou causalidade jurídica, paia o efeito de f azei em actuai princípios de dinamismo da ordem subjectiva, de entre esses factos, destacam-se as «operações» e «actos» do homem a que a lei confere relevância com o fim de garantir ao próprio homem, singularmente considerado, a possibilidade de interferir por sua iniciativa no desenvolvimento do dinamismo da ordem jurídica subjectiva (autonomia da vontade, no sentido mais amplo).
Por esse motivo a ordem jurídica objectiva, além de conter «formas» de carácter substantivo (formas de situações), cria e impulsiona também «formas» de carácter adjectivo para fazei actuar os factos por meio dos quais se opera o dinamismo jurídico.
Ao esforço constante da ordem jurídica objectiva para enformar a subjectiva, por meio do impulso dos factos para tal previstos e da reacção contra o torto, pode dar-se o nome, consagrado em linguagem usual menos precisa, de vida jurídica.
E é ao conjunto destes três elementos - a ordem jurídica objectiva, que contém as formas do direito, a subjectiva, que é a matéria onde tais formas se hão-de actuai, e a vida jurídica, expressão do dinamismo por que se opera tal actuação - que propriamente se dá o nome de direito.
Para se fazer uma ideia exacta das situações das pessoas perante o direito, é necessário, de acordo com o quo acabamos de referir, determinarem-se os tipos gerais dessas «formas» pelas quais se actua e concretiza o direito Essas formas correspondem às situações individuais, em torno das quais se congregam os poderes e deveres que, como se disse, a lei não pode conferir ou impor genericamente, em lazão de os actos humanos não serem susceptíveis do apreciação ética directa, sem se considerarem concretamente os fins, os meios e as circunstâncias em que são praticados, tais situações fazem parte, por isso mesmo, dos elementos determinantes daquele 718 concreto que, segundo Santo Tomás, é objecto da justiça
Procurando traçar um esquema tão breve e sintético quanto possível disso a que, para usar uma expressão vaga e geral, temos chamado «situações», a primeira realidade concreta que devemos mencionar é constituída pelas pessoas, em si mesmas.
As pessoas surgem perante o direito com a sua exigência ontológica de realização do fim último, exigência cuja satisfação lhes e devida Desencadeiam, por isso, na ordem jurídica uma pretensão geral de serem respeitadas e satisfeitas nessa exigência ontológica de actuação, pretensão que, tomada em geral, constitui a capacidade jurídica em abstracto E, em função de situações particulares de cada pessoa (os «estados», nomeadamente), o direito tem de reconhecer a pessoa considerada uma medida concreta de relevância daquela pretensão, conferindo-lhe certa capacidade jurídica em concreto.
Mas a exigência ontológica, em si mesma, manifesta-se imediatamente em certos aspectos concretos que fazem parte - e parte fundamental - das situações concretas das pessoas, trata-se de explicitações directas da própria exigência ontológica, operadas por simples abstracção para revelar e garanta a consistência concreta dessa exigência

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Nesta ordem do ideias, devem mencionar-se, antes de mais, situações de caracter substantivo- nelas encontramos, por um lado, os chamados direitos de personalidade, que se traduzem na própria exigência ontológica da actuação do homem, na medida em que ela, de per si, implica a exigência de viver, de agir autonomamente, de ser inviolável nos aspectos íntimos da personalidade, de participar no senhorio do homem sobre o mundo exterior (acesso à propriedade), etc, e, por outro lado, alguns deveres genéricos que suo imediata manifestação da exigência de cumprimento do fim ultimo, tais como o respeito da dignidade própria, o honesto vivere o agir com lealdade e boa fé, o neminem laedere, etc. Secundariamente, e por forma já derivada, a exigência de realização implica certas situações genéricas, de natureza adjectiva ou instrumental, a que poderemos chamar «direitos integradores», em virtude de não valerem por si mesmos, mas como situações genéticas destinadas a integrar ou preencher o conteúdo de outras situações, estarão neste caso o chamado direito de defesa, o direito de acção judicial, o direito do disposição e aquisição, eto
Para além destas situações fundamentais, temos de entrar numa zona da situação concreta das pessoas para a compreensão da qual convém recordarem-se alguns aspectos já versados.
Como se disse, o desenvolvimento das leia é imposto pelo desdobramento do fim humano, o qual se opera em função de diversas realidades a autonomia pessoal, a vocação singular e colectiva dos homens, as circunstâncias concretas, o estado de cultura, etc.
Vimos igualmente que o fim último do homem não é egoísta, pois inclui ^necessariamente o contributo de cada ser humano para a realização dos outros, seja na comunidade, seja através da história O fim último é integral, abrange todo o bem próprio e alheio - por isso mesmo dissemos que toda a lei tem em vista o bom comum -, e essa natureza particular do fim supremo reflecte-se em todos os aspectos do desdobramento do mesmo fim Por isso mesmo, os poderes e deveres, respectivamente desdobramentos da autonomia e do dever básico de fidelidade ao fim último, não correspondem, como geralmente se pretende, a aspectos egoístas e altruístas contrapostos, antes envolvem sempre, com maior ou menor intensidade, o bem próprio e o alheio; nada há, portanto, de absurdo em poderes conferidos predominantemente para o bem de outrem, e em deveres impostos, acima de tudo, para o bem daquele a quem vinculam.
Recorde-se, finalmente, que a qualificação ética dos actos, e consequentemente n criação de poderes e deveres, não pode fazer-se directamente pela apreciação dos actos humanos em si mesmos. Na tarefa de apreciar esses actos importa ter-se presente, como se disse, o fim concreto com que são praticados e os meios (nomeadamente coisas exteriores) utilizados, bem como as circunstâncias concretas que os rodeiam.
Os fins, com a sua dupla incidência do bom próprio o alheio, e as coisas, hão-de ser portanto os primeiros elementos utilizados pela lei para organizar as situações concretas e para especificar os aspectos do exercício da autonomia (poderes) e do dever de fidelidade ao fim último (deveres especiais) que hão-de impulsionar concretamente o dinamismo próprio dessas situações
Como se opera, todavia, essa estruturação das situações pessoais?
Para respondei a esta pergunta impõe-se entrar em contacto com realidades de natureza muito controvertida, nomeadamente com os direitos subjectivos e as relações jurídicas. Fazê-lo é colocarmo-nos, todavia, na contingência de introduzir nesta investigação elementos de acentuado carácter pessoal, pouco próprios de um trabalho dessa índole, não vemos, no entanto, processo de evitar, tal risco, se quisermos chegar aos princípios que nos hão-de permitir versar o nosso tema pela forma que julgamos adequada à concepção do homem, acima exposta Vamos por isso prosseguir na nossa caminhada, evitando o mais possível, porém, tudo aquilo que represente construções de técnica jurídica mais susceptíveis de desencadear controvérsias.
À primeira figura que nos surge é logo, precisamente, uma das mais debatidas da ciência jurídica* o direito subjectivo.
São inúmeras as dificuldades que a doutrina tem encontrado ao tentar definir esta categoria Cremos, todavia, que essas dificuldades têm resultado especialmente da circunstância de os elementos a que a doutrina jurídica sói recorrer (em particular as ideias de vontade ou de poder de vontade, e a de interesse) não se mostrarem adequados & ideia que, intuitiva e empiricamente, todo o homem faz do «seu direito» qualquer coisa que existe nele e que subsiste independentemente do seu conhecimento e vontade (o direito subjectivo pode pertencer a crianças ou a loucos), mas que lhe confere prerrogativas sobre os outros homens e que estes têm de respeitar; qualquer coisa que ó inerente à pessoa e que lhe outorga uma situação de privilégio perante as outras
Procurando-se, porém, os elementos por - assim dizer todo que a lei utiliza para construir o direito subjectivo, parece poder dizer-se que eles se reduzem, em última análise, aos três seguintes: um fim concreto) os meios, especialmente coisas, próprios para o atingir, e uma série de vínculos jurídicos destinados a assegurar a utilização desses moios para a consecução daquele fim.
Temos, antes de mais, um fim humano Em razão do que acima expusemos, este fim, como desdobramento que é sempre, da exigência de realização do homem, tem de ser um fim concreto; mas a análise dos direitos subjectivos revela-nos que ele é sempre visto como dotado de valor objectivo é fim de um homem determinado, mas tem valor cognoscível pelos outros e susceptível de se impor ao direito.
Em segundo lugar, o direito subjectivo importa. A existência de uma coisa ou bem concreto, utilizável para a realizarão daquele fim.
Finalmente, o direito subjectivo envolve um conjunto de vínculos jurídicos (poderes no sentido de licitude, pode* rés de produzir efeitos jurídicos ou podei es potestativos, deveres especiais, ónus ou deveres livres ) por meio dos quais a lei assegura a efectiva aplicação daquela coisa ou bem & realização do referido fim concreto um conjunto de vínculos jurídicos por meio dos quais a lei afecta juridicamente a coisa ou bem à consecução de um fim concreto de pessoa ou pessoas determinadas (...).
Estes elementos técnicos não revelam precisamente aquela consistência especial que, na visão intuitiva atrás mencionada, faz do direito subjectivo algo de inerente a pessoa. Se, porém, os aproximarmos da doutrina exposta anteriormente, poderemos encontrar com facilidade a forma como esses elementos técnicos manifestam aspectos profundos da personalidade.
O fim que se descobre no direito subjectivo, considerado como privativo de coitas pessoas, mas ao mesmo tempo visto como dotado de valor objectivo, só tem sentido,

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(...) Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prêstar e o Dever da Indomnisar, vol I, Lisboa, 1944, pp 74 o segs.

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perante a nossa exposição anterior, como sendo precisamente um daqueles fins em que se desdobra o fim último e supremo do homem Quer essa finalidade particular seja absoluta, no sentido de ser exigida pela natureza, quer resulte da autonomia e poder criador do homem, sempre ela se apresentará, como fim humano que é, como um daqueles fins intermédios em que o homem tem de desdobrar o seu fim último para o atingir. Esses fins integram-se, portanto, na exigência ontológica da actuação da personalidade pelo cumprimento do fim último.
Por outro lado, a função do direito no seu desenvolvimento e desdobramento em leis de pormenor consiste exactamente em orientar o homem por forma que, na realização dos seus fins de pormenor ou intermédios, ele exerça a autonomia própria em conformidade com aquela exigência ontológica, isto é, em harmonia com o dever de, em toda a sua vida, ser fiel ao fim supremo.
De tudo deve concluir-se que, quando a lei garante a utilização de certo bem para determinado fim, o que faz é assegurar a satisfação de um aspecto a exigência ontológica da realização do fim último O direito subjectivo consiste fundamentalmente, portanto, e seja qual for a construção técnica que dele se faça, numa explicitação da exigência ontológica de realização do fim último ou, o que é o mesmo, de actuação da personalidade humana.
A lei não cria, propriamente, o direito subjectivo. O que ela faz é recortar, da exigência ontológica de realização do homem, certo aspecto respeitante a determinado fim de pormenor, para lhe garantir a satisfação nesse aspecto Â. matéria do direito subjectivo existe no próprio homem e é inseparável dele, mas necessita de ser desdobrada e dinamizada em relação a um fim de pormenor e aos meios para ele utilizáveis, e a função que a lei desempenha no tocante ao direito subjectivo consiste, precisamente, em concretizar ou explicitar certo aspecto da exigência ontológica para, no respectivo âmbito, garantir a satisfação de uma finalidade capaz de a integrar.
Recorrendo-se aos elementos técnicos acima referidos, podemos dizer que o direito subjectivo consiste num aspecto ou manifestação da exigência ontológica da actuação da personalidade que a lei explicita e garante mediante a afectação jurídica de certo bem a uma finalidade capaz de integrar esse aspecto da mesma exigência.
Nesta noção podem abranger-se os próprios «direitos de personalidade», desde que se enquadrem na ideia de «bem» realidades imanentes no próprio homem. Esses «direitos» são aspectos, imediatos como se viu, da exigência ontológica de integração do homem, e são concretizados e garantidos pela lei mediante a afectação das próprias potências ou faculdades humanas (vida, liberdade, etc) à consecução de uma finalidade capaz de integrar esses aspectos da exigência. É certo que ao por analogia se pode dizer que tais potências ou faculdades constituem «bens» utilizáveis pelo homem, mas a verdade é que em todo o mundo jurídico constantemente deparamos com realidades irredutíveis umas às outras, mas que participam todas na razão comum do jurídico e que é a ideia de justo, realidades que por isso não podem confinar-se num mesmo género, mas são análogas e justificam um tratamento semelhante e até, frequentemente, o mesmo nome E neste campo da analogia, os chamados direitos de personalidade merecem bem o nome de direitos, pois, mais do que nenhuns outros, representam realidades inerentes ao homem e que lhe são indispensáveis como meios para integrar o seu fim último.
Esta aproximação dos chamados direitos de personalidade dos restantes direitos subjectivos serve, ademais, para acentuar um ponto que se deve pôr em relevo para a plena compreensão dos direitos subjectivos.
Como tudo o que é jurídico, sem excluir a própria personalidade e capacidade, os direitos subjectivos só têm sentido quando referidos ad alterum. Esta característica corresponda, todavia, a um elemento constante e universal do jurídico, e não serve, por tal motivo, para caracterizar figuras de pormenor como a do direito subjectivo Em certos casos, este exige a colaboração especial de pessoas diversas do titular, mas, quando tal acontece, essa colaboração vem adicionar-se à respeitabilidade geral das situações jurídicas, na qual mais propriamente se concentra a referência genérica do direito a outrem, noutras hipóteses, pelo conttrário, aquela colaboração pode ser dispensável, por isso que a noção de direito subjectivo, em si mesma, não impõe qualquer relação especial com outra pessoa - para se dar a afectação jurídica que estrutura o direito subjectivo bastam, em princípio, os poderes conferidos ao titular e, quando muito, a garantia resultante dos poderes e deveres genéricos inerentes à personalidade.
Estas considerações encaminham-nos para a descoberta de novos tipos de situações jurídicas.
Ao estudarmos a personalidade humana, verificámos que ela apresenta dois aspectos fundamentais. Por um lado, o homem autopossuir-se e é autónomo, aspectos que revelam constituir ele um ente essencialmente singular e distinto dos outros, com finalidade própria em cujo cumprimento ninguém pode substituí-lo. Por outro lado, porém, o homem é dominado pela necessidade de se transcender a si mesmo, o que, entre outros aspectos, se manifesta na tendência para o encontro com os outros homens - nessa necessidade de se aproximar dos outros, de viver os problemas deles e de cooperai na salvação deles.
Ora, nos tipos de situações concretas até agora examinados - e pressuposto, embora, o carácter integral do fim humano, no sentido de abranger tanto o bem próprio como o alheio - o que encontramos é predominantemente a afirmação daquele primeiro aspecto da personalidade E isso, com efeito, aquilo que directamente ressalta da consideração da personalidade e da capacidade jurídica em si mesmas - são aspectos do homem singularmente considerado, os poderes e deveres genéricos implicam apenas referências abstractas a outrem, e por vezes respeitam imediatamente ao próprio sujeito, como no dever de viver honestamente, por fim, u, noção de direito subjectivo não exige de per si, como se disse, qualquer colaboração especial de outras pessoas.
Como é evidente, porém, o segundo dos aspectos da personalidade atrás citados também reclama satisfação pelo direito o homem necessita de colaborar, por forma especial e concreta, com os seus semelhantes e a experiência demonstra que, na verdade, os homens se colocam em situações particulares, nas quais se vinculam reciprocamente por meio de poderes e deveres, com vista a um resultado de conjunto que só podem atingir convenientemente pela colaboração de uns com os outros.
Nesta ordem de ideias, e para não citarmos por agora senão uma figura clássica, se enquadram os «contratos», categoria essa relacionada com a ideia de um acordo pelo qual duas ou mais pessoas entre si estabelecem poderes e deveres especiais como meio de se assegurarem mutuamente vantagens que umas podem proporcionar às outras ou transferem entre si algum direito, ou por outra forma garantem reciprocamente qualquer cooperação na realização dos fins demandados por cada uma delas ou por todas em conjunto.
Numa visão ontológica do direito, surgem-nos, pois, dois tipos fundamentais de situações, correspondentes aos dois aspectos da personalidade que deixámos assinalados Por um lado deparamos primeiramente com situações desti-

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nadas a enquadrar a autonomia radical da pessoa, estilo neste caso os chamados direitos de personalidade e os direitos reais, com os quais claramente se tem em vista assegurar ao homem a livre fruição das faculdades próprias e o exercício efectivo do senhorio sobre o mundo exterior. Mas, a par de tais situações, encontramos outras baseadas na colaboração, e que, de um ponto de vista metafísico, só suo explicáveis polo facto de no homem coexistir com a autonomia a transcendência e a consequente inclinação para o encontro com os semelhantes.
É certo que, num esforço de geometrismo, se poderia aproveitar a referência ad alterum, própria de todo o jurídico, para se caracterizar em as situações daquele primeiro tipo pelas relações estabelecidas com terceiros, em virtude das quais estes ficariam vinculados pelo dever de não prejudicar o titular dessas situações E, de igual modo, poderiam unificar-se os dois tipos de situações, caracterizando-os a todos, mesmo os que o baseiam no acordo a na ideia da cooperação, como simples composições de conflitos de interesses egoístas e irredutíveis.
A verdade é, contudo, que ninguém que seja desprovido de preconceitos poderá admitir que o direito a viver se reduza a não ser morto, ou que a propriedade de um belo parque ou de um bom livro não consista acima de tudo na possibilidade do passear e fruir o primei i o ou de se recriar com a leitura do segundo Correlativamente, impõe-se reconhecer que a colaboração dos homens á uma realidade e uma necessidade, e que é ela, nos seus aspectos primitivos, aquilo que os contraentes em geral procuram.
O grande erro da distinção entre «direitos absolutos» e «direitos relativos», e, o que é mais, o erro de se reduzirem a relações jurídicas todas as realidades do direito, consistem precisamente em se ignorar o que há de substancial, vistas as coisas por um prisma teleológico, nas várias modalidades de situações jurídicas A fundamentação moral o racionai da propriedade é, por exemplo, comummente procurada na necessidade de se garantir a independência e a dignidade das pessoas pela segurança de elas poderem dispor, a seu bel-prazer, assim no presente como no futuro, dos bens necessários a actuação livre da personalidade.
A classificação mais geral das situações jurídicas, perante uma visito ontológica da personalidade, é, pois, a que reparte as situações jurídicas em situações do autonomia e em situações de cooperação, e é ela que nos permite atingir a verdadeira ideia de relação jurídica.
A relação jurídica constitui, na verdade, o tipo mais simples de situação de cooperação e corresponde precisamente àquelas figuras que a doutrina clássica caracterizava pela ideia de «contrato» e de figuras análogas («quase-
contratos»).
Analisando-se esses tipos clássicos, verifica-se que neles se encontra uma associação de pessoas em torno de fins que, em geral, são restritos a cada uma das partes, mas em que cada uma destas assume poderes e deveres especiais normalmente recíprocos, isto é, poderes e deveres particulares de cada uma dessas partes, mas complementares uns dos outros.
Existe, porém, outra forma de colaboração, também consistente em relações entre homens ou associação de pessoas, mas nas quais estas procuram atingir fins mais vastos em que comungam igualmente, e entre si estabelecem um vínculo especial que, em vez da contraposição de «partes», típica do contrato, as unifica num «nós» em que elas se sentem integradas, mesmo quando assumem posições diferenciadas. Esta figura corresponde à «instituição-pessoa» de Hauriou e de Georges Renard, ou à ideia de «comunidade» tanto em voga nos sociólogos o juristas modernos.
No campo estritamente jurídico as instituições ou comunidades envolvem relações e associações de pessoas, mas apresentam, como traço mais saliente, a particularidade de os direitos e situações dos membros respectivos se acharem aglutinados em tomo de um fim de conjunto e por isso sujeitos a um regime diverso do que seria natural paia coda um desses direitos ou situações, e que só é explicável, exactamente, pela subordinação e adaptação a esse fim de conjunto (196).
No campo das situações jurídicas do colaboração cumpre, pois, distinguem-se duas categorias especiais os relações jurídicas, de que são protótipo os contratos, e, em segundo lugar, as comunidades.
A capacidade, o direito subjectivo, a relação jurídica e a comunidade não suo espécies de situações, mas modos de ser ou categorias do situações Na verdade, essas figuras entrecruzam-se e sobrepõem-se umas às outras, numa escala de progressiva complexidade. Assim, todas supõem a capacidade jurídica; as relações jurídicas abrangem direitos subjectivos, embora muitos vezes o âmbito destes não coincida com o daquelas (o direito a certa prestação, por exemplo, pode ser absorvido era várias relações jurídicas e compreender meios de satisfação que não implicam relações especiais anteriores como acontece com o pagamento por terceiro); por seu Indo, as comunidades compreendem normalmente direitos subjectivos e relações jurídicas.
Mas cada tipo de situações, quando absorvido noutros mais complexos, pode assumir configuração especial, inexplicável, se não absurda, quando não seja interpretado à luz dos princípios próprios do tipo mais complexo em que é absorvido.
Estas considerações têm particular pertinência no tocante à comunidade. Nela se encontram, com frequência, direitos subjectivos sujeitos a desvios de regime pode suceder, por exemplo, que os actos de aquisição praticado? por uma pessoa confiam realmente a propriedade a outra (cf artigo 144.º do Código Civil), ou que a alienação de certo direito esteja dependente do consentimento de pessoa diferente do titulai (código citado, artigo 1191.º) ou possa ser efectuada por quem não é sujeito do direito alienado (ibid , artigo 1118.º). E nas comunidades aparecem também figuras híbridas ou anómalas, como sejam a dos chamados «direitos reflexos» (interesses protegidos indirecta e reflexivamente pela protecção de outros interesses - exemplo interesses dos industriais, protegidos indirectamente pelo condicionamento industrial), a dos «interesses legítimos» (interesses de uma generalidade de pessoas, protegidos directamente, mas não por forma individualizada, mas sim global - exemplo o interesse da segurança no trânsito ou da saúde pública, protegido por regulamentações e fiscalizações públicas), e a dos deveres comuns aos membros da comunidade, mas não encabeçados em pessoas determinadas, cujo cumprimento se deixa & iniciativa privada ou é imposto segundo a maior ou menor necessidade, mediante repartição equitativa (exemplo a defesa militar -recorde-se que no passado chegou, por vezes, a ser entregue ao voluntariado ou imposta por sorteio -, a defesa civil, nomeadamente contra incêndios e calamidades semelhantes, a assistência física e moral aos doentes, a prestação de sangue para transfusões, etc).
Numa visão de conjunto, e olhando as situações concretas que ficam para além da personalidade e capacidade jurídica e das situações básicas a elas inerentes, e consi-

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(...) Cf. Curso de Direito do Família, Apontamentos das Lições do Prof. Gomes da Silva, publicados pela Associação Académica da Faculdade do Direito de Lisboa, Lisboa, 1960, vol. I, pp 128 e seguintes e 130 e seguintes.

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derando especialmente, portanto, as situações derivadas, poderemos dizer que estas apresentam três modos de ser fundamentais os direitos subjectivos, as relações jurídicas e as, comunidades.
Os, dois últimos tipos mencionados são complexos as relações jurídicas abrangem ou entrelaçam-se com direitos subjectivos, e as comunidades compreendem direitos subjectivos e relações jurídicas especiais, além de figuras híbridas ou anómalas
Soo as situações destes vários tipos que sei vem de centros nos quais se concretizam as normas jurídicas abstractas e através dos quais se operação apreciação e qualificação dos actos humanos, paia o efeito de se definirem os poderes e deveres, nas suas diversas modalidades (poderes-licitude, poderes potestativos, deveres especiais pròpriamente ditos, ónus ou deveres livres, etc).
Todas essas situações são criadas em concreto. Já enunciamos os aspectos gerais do direito que a este conferem o carácter de concreto, quando posto em acto Mas, agora que determinamos os tópicos fundamentais da estrutura de ordem jurídica subjectiva, poderiamos mencionar muitos ou 11 os aspectos susceptíveis de confirmar esse carácter, como sejam a influência das circunstâncias pessoais sobre a entidade concreta das situações, a integração destas no conjunto das situações do respectivo titulai, a adaptação dos poderes e devei es tio condicionalismo concreto em que se actuam, etc , a necessidade de abreviarmos esta exposição não nos permite, todavia, desenvolver tais pontos, cujo exame muito contribuiu» paia a plena compreensão do carácter concreto das situações.
Um aspecto merece, porém, menção particular a influência que exerce sobre cada situação o facto donde ela emerge, não só pelas suas características genéricas (espécie e regime do facto de que se trate), mas também em virtude da ligação concreta desse facto com outras situações, dos vícios que o possam inquinar, da possibilidade concreta de impugnação a que esteja sujeito, etc. Os factos são «moldes» em que se concretiza a causalidade eficiente das leis, e as situações concretas não assentam directamente nestas, mas sim nesses factos - na formação das situações a lei intervém já moldada e adaptada às condições em que elas devem surgir, e os factos, que assim desempenham a função de uma espécie de transformadores da lei, constituem verdadeiras fontes de direito concreto. Vistos pelo prisma dessa função de esteio e molde dos direitos subjectivos, durante toda a vida destes, os factos designam-se geralmente pelo nome de «títulos» dos direitos subjectivos, paia os factos informadores e impulsionadores das relações jurídicas e das comunidades não há denominação genética consagrada, mas é, decerto, considerando-os pelo prisma daquela função que eles se designam por «contratos» ou «quase-contratos» (quando se diz, por exemplo, que se interpreta ou cumpre um contrato), e se fala na «constituição» da comunidade estadual ou nos «estatutos» das comunidades secundárias.
As situações são criadas, assim, singularmente e por efeito de verdadeiras fontes de direito autónomas, e por isso nascem como que isoladas, dal resulta a possibilidade de surgirem, em concreto, situações contraditórias e incompatíveis, como pode ver-se dos artigos 789.º e seguintes e 1578.º e 1580.º do Código Civil Por esse motivo, a lei, paia estabelecer e conservai o conjunto das situações como verdadeira ordem, lança mão de clivei sós meios para as coordenai, não só com as demais situações do mesmo titulai, mas também com as de terceiros, neste último aspecto a lei recorre aos poderes e deveres genéricos, ao condicionamento, mediante processos vários, dos efeitos reflexos dos factos e situações concretas, a regras especiais de preferência e até a princípios de conciliação concreta, como são os consagrados nos artigos 14.º e 15.º do Código Civil.
Assim se cria e fomenta a ordem jurídica concreta e subjectiva, a qual não surge como fruto de soluções dispares e isoladas, antes emerge das «formas» contidas na ordem jurídica abstracta. A ordem jurídica concreta é, porém, a verdadeira e plena actuação do direito, conseguida não só pela reacção da ordem abstracta outra os factos ilícitos, mas ainda pela consagração de factos através dos quais se concretiza a causalidade das leis e se adaptam estas às condições concretas, num esforço constante de renovação e reintegração, correspondente ao que se chama a «vida jurídica».
A maleabilidade e variedade que, em virtude desta estrutura e dinamismo, reveste a ordem jurídica concreta tem interesse muito especial para nós, pois nos encaminha para a resolução dos problemas respeitantes ao último ponto que nos importa versar e que é aquele que mais directamente se prende com o nosso tema os direitos sobre pessoa alheia.

22. Os CHAMADOS DIREITOS SOBRE PESSOAS, EM ESPECIAL - Para completarmos o exame das perspectivas fundamentais em que se desenvolve a concepção personalista do direito, importa versarmos um último ponto, que é, precisamente, o que mais directamente se prende com o objecto do presente parecer os chamados direitos sobre pessoas.
A especialidade deste problema resulta de existirem direitos que se exercem por actos materiais ou psíquicos praticados sobre pessoas, independentemente ou contra a vontade delas. E essa realidade que, na aparência, coloca as pessoas em situações análogas às das coisas e que, na orientação geometrista do direito, tem levado a equipai ar as pessoas as coisas.
Sendo essa a particularidade relevante de tais direitos, devemos afastar do número destes e do campo da nossa observação certas modalidades de direitos que não apresentam aquela característica. Queremo-nos referir a certos direitos cujo exercício incide realmente sobre pessoas, mas que pressupõem o consentimento destas e não admitem a execução forçada em espécie, estão neste caso muitos dos pretensos direitos sobre pessoas, de origem contratual, tais como aqueles cujo exercício se traduz em actos praticados sobre pessoas a titulo de violências desportivas (luta, pugilismo), de experiências ou tratamentos médicos, da utilização de pessoas como meios de publicidade, etc. Em todas estas hipóteses se exige o prévio consentimento do interessado ou de quem o represente e (visto não se admitir a execução forçada) a submissão voluntária aos actos em questão, esta submissão representa, pois, verdadeira prestação, e aqueles direitos não têm realmente, por isso mesmo, natureza que os possa aproximar dos direitos sobre coisas (...). Esta espécie de direitos não tem, por tal motivo, interesse paia a nossa investigação e os problemas que suscita a respeito dos direitos relacionados com a personalidade não residem no exercício deles sobre pessoas, mas na questão de saber se é ou não lícita a disposição da própria personalidade paia a submeter a tais direitos

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(107) O carácter puramente obrigacional da sujeição a estes direitos encontra-se bem vincado, por exemplo, no artigo 59.º do projecto de Código Civil (parte geral), acima transcrito na nota 29 por efeito desse preceito, o contraente que se recusar a submeter-se a uma limitação voluntária dos direitos de personalidade apenas ficará sujeito a responsabilidade civil, e nunca poderá ser objecto de execução forcada em espécie, visto lhe ser licito revogar livremente o compromisso tomado.

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Arredadas estas hipóteses do nosso caminho, importa dedicarmos a atenção aos verdadeiros direitos sobre pessoas, os quais em geral se apresentam apenas em função do comunidades Tais são os direitos de punir ou de exigir a submissão da» pessoas a provas e a exames forenses, direitos próprios da sociedade civil, e aqueloutros, de origem familiar, que vinculam os cônjuges e submetem os filhos aos pais.
Comecemos por examinar as características próprias dos chamados direitos sobre pessoas, voltando-nos, antes de mais, para a finalidade para que se dirigem.
Vimos que a pessoa concreta é o primou o elemento da estrutura da ordem jurídica subjectiva e quo é dotada de fins intrínsecos, nos quais se compreende, porém, não só o bom próprio mau também o alheio.
A finalidade dou chamados direitos sobre pessoas só pode consistir, portanto, na realização desses fins intrínsecos, seja como garantia, para cada indivíduo, dos fins que lhe são devidos, seja como meio de essa pessoa satisfazer a fins alheios quo se achem compreendidos no próprio fim dela.
E na verdade não é difícil verificar-se que assim finalidade não deixa de existir nos casos típicos mais conhecidos.
Assim, verificam-se, antes de mais, direitos conferidos paia realização do fins do próprio sujeito passivo, é isto o que se passa, por exemplo, com a protecção de anormais, que, quando estes são inofensivos, tem em vista exclusivamente a segurança, a saúde e a dignidade respectivas.
Noutras hipóteses, encontramos direitos cujo fim directo reside no próprio titular e só par este pode ser atingido. Trata-se de direitos a obter de certa pessoa algo que é devido ao titular e, vistos por este aspecto, deveriam corresponder, por parte do sujeito passivo, a deveres, especiais e constituir, portanto, direitos a prestações. Mas são construídos, antes, como direitos sobre pessoas, em razão do o resultado pretendido só ser integralmente atingível quando produzido pelo próprio titular Disto é exemplo o direito de punir do Estado o delinquente tem o dever de reparar o dano causado na ordem moral da sociedade, sofrendo para isso o mal da pena (cf. Código Civil, artigo 2364.º, e Código Penal, artigo 27.º)» e poderia, pois, construi-se o direito de punir como direito a uma prestação consistente no cumprimento espontâneo da pena (como em certa medida se admite em relação à pena de multa imposta por certas contravenções), mas, seja, para se afirmar o poder da autoridade pública, seja paia não prejudicar a acção intimidativa do exemplo de punição, soja para não se prescindir do certo aspecto de humilhação resultante do cumprimento coercitivo, seja, até, para se evitar o que o cumprimento espontâneo pudesse ter de chocante (a execução voluntária da pena do morte, onde existe, consistiria no suicídio), entende-se que a pena tem de ser cumprida por meio de actividade directa da autoridade sobre o sujeito passivo, e daí resulta que o direito de para, embora tenha por objecto uma verdadeira prestação, é estruturado como direito sobre pessoas.
Há, finalmente, direitos que se destinam a fins pertencentes simultaneamente ao titular e ao sujeito passivo, por forma que a realização do fim de um se confunde com o bem do outro, e vice-versa Suo exemplos desta categoria os direitos paternais e os direitos conjugais correspondentes ao chamado débito conjugal.
Em todos estes casos se trata de direitos que ou se destinam a fins intrínsecos do próprio sujeito passivo ou tom por objectivo efectivar n colaboração deste, como pessoa, no cumprimento de fins do titular, ou soo orientados, até, nestes dois sentidos, simultaneamente. Este último caso pode exemplificar-se com os podei es paternais assim, o exercício do cuidados e desvelos dos pais para com os filhos, mesmo quando tem lugar independentemente da vontade deles ou até contra ela, constitui uma forma de realizar fins intrínsecos dos filhos (desenvolvimento moral e físico destes), ao mesmo tempo que representa para os país o desempenho de uma missão essencialmente inerente ao estado de vida que adoptaram, e portanto também a consecução de fins intrínsecos deles.
Demonstrado assim que os chamados direitos sobre pessoas silo orientados para fins intrínsecos, cumpre examinar uma outra característica que os distingue, e que consiste em elos se encontrarem sempre na dependência de direitos subjectivos o de deveres propriamente ditos, portanto de relações jurídicas.
Os chamados direitos sobre pessoas nunca surgem puros, isto é, reduzidos a simples poderes sobre pessoas. Pelo contrário, esses direitos ou se enquadram em d u eitos ou deveres propriamente ditos do sujeito passivo, ou implicam a existência de direitos e deveres recíprocos do titular e desse sujeito passivo
No caso de direitos sobre pessoas, conferidos para realização de fins do sujeito passivo, é evidente que este tem direito a que esses fins sejam satisfeitos. No caso dos anormais, acima citado, é óbvio que tais pessoas, quando dotadas de suficiente consciência e liberdade, dispõem do poderes, para assegurar os fins em causa, por outro indo, a lei rodeia-os de garantias contra abusos, e por isso a sujeição delas ao poder de outrem, como direito sobre pessoas, é simples meio de assegurar um fim próprio, ao lado de outros meios destinados ao mesmo objectivo, e, em conjunto com estes, dá lugar a um verdadeiro direito do sujeito passivo.
Por sou lado, os direitos concedidos para a realização de fins próprios do titular, ou são directamente englobados na execução forçada de um dever especial (por exemplo, a sujeição forçada a exames forenses), ou excluem a execução espontânea, como acontece com o direito de punir, mas assentam em verdadeiros deveres (veja-se a noção de responsabilidade criminal constante dos citados artigos 2864 º do Código Civil e 27.º do Código Penal). Note-se que, neste último coso, esses deveres subjacentes mio são puramente teóricos, pois, conquanto não possam cumprir-se espontaneamente como qualquer dever de efectuar uma prestação, manifestam-se como verdadeiros deveres em vais consequências secundarias, é o que se verifica, por exemplo, no tocante ao direito do punir, com o carácter ilícito da evasão de condenados (artigo 196.º do Código Penal), com a exigência de colaboração do réu na descoberta da verdade e com a exigência da prestação, por parte dos condenados, de trabalho e outras actividades educativas com o fim de regeneração, e, mesmo nos aspectos em que a pena é independente da vontade do delinquente, ele não lhe pode ser aplicada quando ele não esteja na posse das suas faculdades mentais, o que significa que a lei exige dele, pelo menos, um sofrer, um para consciente.
A mesma integração em direitos ou deveres propriamente ditos se encontra, por fim, nos direitos sobre pessoas destinados a fins respeitantes simultaneamente ao titular e ao sujeito passivo. Assim, os poderes dos pais sobre os filhos integram-se manifestamente no dever que incumbo aos pais de defender e educar os filhos, bem como no direito correlativo destes a serem educados e protegidos, entrecruzam-se também com o dever dos filhos de (...) os pais e de lhes pi estarem obediência, devei que tende a substituir a simples sujeição à execução voluntária dos mandados dos pais, substituição essa exigida,

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aliás, pela finalidade da educação, visto como esta deve implicar progressivamente a participação pessoal dos filhos e portanto a substituição gradual do simples parte pelo cumprimento de deveres propriamente ditos O mesmo poderia dizer-se dos direitos conjugais, devendo até reconhecer-se serem muito restritos os aspectos em que podem descobrir-se verdadeiros poderes sobre pessoas, aspectos nos quais eles se encontram sempre organizados em torno do debito conjugal que, por definição, á um dever.
Além da finalidade intrínseca e da estreita ligação com verdadeiros direitos e deveres, os chamados direitos sobre pessoas distinguem-se, ainda, pelo facto de visarem sempre a personalidade no seu conjunto.
Nos direitos conferidos para realização de fins do sujeito passivo, como é manifesto, tem-se directamente em vista a segurança, a saúde e a dignidade da pessoa.
Nos direitos conferidos para fins do titular, a pessoa do sujeito passivo não interessa exclusivamente como instrumento. Por isso esses direitos ou interessam para se obterem elementos da pessoa, como tal (é o caso dos exames forenses), ou, mais ainda, esses direitos têm por objecto actos de execução susceptíveis de provocar nas pessoas reacções desejadas pelo titular (sentimentos de expiação, arrependimento, regeneração, intimidação), reacção própria da pessoa como tal, e que a execução deve procurar atingir como sua finalidade e justificação últimas, daí a necessidade do pati consciente.
Os direitos paternais e conjugais têm em vista, por natureza, atingir aspectos integrais da personalidade (expansão e fruição da pessoa, aperfeiçoamento moral, desenvolvimento dos afectos familiares, etc).
Todos estes direitos visam, por conseguinte, a personalidade no seu conjunto, e não aspectos limitados dela, como as «utilidades» de uma coisa.
Para além destas características e por força delas próprias, os chamados direitos sobre pessoas são sempre limitados pelo respeito devido à pessoa como tal e dos seus fins intrínsecos No espírito desses direitos está sempre implícita a exclusão de todos os actos desumanos ou indecorosos e a concomitante necessidade de se fomentar e favorecer o cumprimento de todos os fins intrínsecos, é assim, por exemplo, que os direitos familiares se têm de considerar sempre dominados pela necessidade de se fomentar o desenvolvimento moral de todas as personalidades interessadas e de intensificar entre elas o culto dos afectos e da responsabilidade pessoal.
Em resumo, poderemos mencionar como características dos chamados direitos sobre pessoas a destinação deles a fins intrínsecos destas, a estreita ligação com direitos e deveres propriamente ditos, a orientação para a personalidade no seu conjunto e a consequente limitação pelo respeito devido às pessoas como tais e aos seus fins intrínsecos.
Disto tudo resulta que os direitos sobre pessoas têm fins e natureza semelhantes aos de todos os direitos e deveres propriamente ditos inerentes à personalidade, com os quais se encontram, aliás, em estreita ligação.
O que dá configuração especial a tais direitos é somente o facto de eles se exercerem por meio de actos que incidem directamente sobre pessoas Exemplo típico de quanto afirmamos nos é dado pelo direito de punir, por isso que a lei considera a execução da pena cumprimento de um verdadeiro dever pessoal por parte do delinquente e o sujeita a regime efectivamente moldado por essa ideia
Enunciados assim os caracteres dos direitos sobre pessoas, convém confrontar estes com os direitos sobre coisas.
Nesta última categoria de direitos verifica-se que os actos de exercício recaem muitas vezes sobre coisas (uso, fruição, transformação, etc). Mas nem sempre acontece assim mesmo entre os poderes do proprietário e, portanto, no seio do direito real máximo, alguns poderes se encontram que não recaem directamente sobre a coisa (o poder de alienar, por exemplo) e em outros direitos sobre coisas faltam em absoluto quaisquer poderes directos sobre estas, como é próprio das servidões de vista, da hipoteca, etc.
Não é, por isso, do facto de tais direitos se exercei em por meio de autos praticados sobre as coisas que se extrai a ideia de que eles se podem qualificar de direitos «sobre coisas».
Essa qualificação resulta, antes,, daquilo a que comummente se chama carácter de imediato ou «imediateza» dos direitos reais, realidade que se traduz na possibilidade de o direito se exercer independentemente da colaboração de terceiro Por isso dissemos que os direitos reais são formas de garantir a autonomia, em contraste com outros direitos que são formas de colaboração
Pelo contrário, nos direitos sobre pessoas encontramos manifestamente formas de colaboração que apenas têm de especial (e portanto de essencial) o facto de se exercerem por actos que incidem sobre pessoas.
Deste confronto se conclui que a assimilação das duas espécies de direitos e da correspondente posição que neles ocupam as pessoas e as coisas ó profundamente superficial o errónea.
Nos direitos sobre coisas, a ideia expressa pelo vocábulo «sobre» não respeita à incidência dos actos de exercício, mas à autonomia desse exercício (imediateza) Nos direitos sobre pessoas, a expressão «sobre pessoas» respeita à incidência dos actos de exercício, sem a qual eles seriam direitos ou deveres como outros quaisquer, e é estranha a autonomia do exercício, visto serem por essência formas de colaboração.
Por outro lado, os direitos sobre pessoas são sempre circunscritos ao âmbito de fins especiais e intrínsecos, e sempre limitados pelos outros fins intrínsecos das pessoas Inversamente, os direitos sobre coisas visam ao aproveitamento de «coisas», isto é, realidades com fins extrínsecos, e por isso mesmo o direito leal por excelência é o domínio resultante da afectação jurídica de uma coisa, na generalidade das suas utilidades efectivas ou potenciais, aos fins (sem distinção) de certa pessoa determinada, e toda a coisa sobre a qual recaem direitos está, em princípio, sujeita a domínio, os outros direitos sobre coisas ou aparecem como desmembramento do domínio ou até, mais simplesmente, como encargo ou oneração dele.
Como complemento destas observações convém fazerem-se algumas considerações de ordem terminológica.
Ao direito sobre coisa tem-se dado o nome de jus in re, não para exprimir o aspecto (nesta espécie de direitos contingente e variável) da incidência dos actos exteriores por que se manifesta, mas para ti aduzir a afectação da coisa em si mesma, nas suas utilidades, como revelação do senhorio do homem sobre o mundo exterior.
Nos direitos sobre pessoas tem-se em vista, com o vocábulo «sobre», apenas a manifestação exterior desses direitos, por isso que eles visam a pessoa na sua integralidade e constituem uma forma de colaboração humana.
Não se trata, portanto, de direito sobre pessoa ou jus in persona, mas sim de jus in personam.
Usamos esta locução com interna independência relativamente a outros sentidos que lhe hajam sido dados pelos jurisconsultos do passado. Tomamo-la com o simples signi-

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ficado literal da preposição in, usada com acusativo para com, a respeito do, com respeito a (...), significado que em português se traduz bem pela locução para com, combinação de preposições que, precisamente, substitui in com acusativo a exprime disposição de ânimo em relação a alguém ou algo(109)
Assim, pois, como se diz «severidade para com os perversos», «indulgência para com os ignorantes», «veneração para com os pais», «deveres para com a pátria», podemos dizer, embora seja terminologia fora de uso, direitos para com as pessoas.
Jura in personam ou direitos para com as pessoas, eis, por conseguinte, a denominação correcta dos impropriamente chamados direitos sobre pessoas
Fará concluir esta análise, importa pôr em evidência a natureza comunitária dos direitos para com as pessoas.
Que estes direitos se desenvolvem no seio de comunidades á ponto que logo de começo pusemos em evidência e é ele que nos explica a natureza particular de tais figuras.
Como tivemos ocasião de dizei, a comunidade á uma forma de associação de pessoas em que estas se unem num «nós», comungando indistintamente num bem comum
Na comunidade, muito mais intensamente do que noutros tipos de situações, pesa sobre os direitos subjectivos e sobre as relações jurídicas a fusão do bem próprio de cada membro com o bem de outras pessoas, sem possibilidade de se distinguir o que é fim de uns ou de outros ou o que é favorável a uns ou a outros.
Daí derivam aqueles desvios de regime impostos a direitos subjectivos e a relações jurídicas, a que acima aludimos, assim como aquelas figuras híbridas a que também fizemos referência - os direitos reflexos, os interesses legítimos e os deveres comuns sem titular fixo.
Ora tudo quanto temos exposto acerca dos direitos para com as pessoas nos mostra que eles constituem mais uma figura híbrida destinada a realizar o bem comum em que todos os membro» da comunidade participam e no qual não pode discernir-se qualquer coisa de exclusivo relativamente a algum deles.
Na verdade, esses direitos, numa primeira categoria, destinam-se a fins 4o sujeito passivo, que por deficiência deste têm de ser satisfeitos independentemente da vontade dele ou até contra essa vontade, nestes casos o sujeito passivo está, quanto ao fim, na posição de titular de direito, enquanto o titular propriamente dito se encontra em relação a esse fim na posição de pessoa obrigada, mas aparece também como titular de direito, porque ele pessoalmente (ou a comunidade por ele representada) participa naquele fim como próprio e necessita, para bom de si mesmo, de que ele seja satisfeito.
Nas outras modalidades de direitos para com pessoas verifica-se, mutatis mutandie, fenómeno semelhante Em todos os casos eles se explicam pela reunião na mesma pessoa de interessado em certo fim e de chamado a cumpri-lo, o que é sempre justificável pela solidariedade dos membros da comunidade e pelo carácter por assim dizer difuso do bem comum.
A natureza dos direitos para com pessoas é, pois, análoga à dos interesses legítimos e dos deveres comuns não encabeçados em sujeitos determinados Repare-se que estas duas categorias surgem muitas vezes combinadas, dando lugar a situações complexas de estrutura muito semelhante à dos direitos para com presta assim, todos os membros da comunidade têm conveniência e necessidade de defesa colectiva ou de garantias da saúde pública (interesses legítimos), mas -precisamente porque isso faz parte do bem comum todos têm, em princípio, o dever de assegurar esses fins, e por isso a posição de titulares ou de sujeitos passivos resulta apenas de em casos concretos se abstrair de um ou do outro aspecto; e em casos extremos aquela necessidade comum pode implicar poderes sobre pessoas (por exemplo no caso de vacinações forçadas), o que bem mostra a homogeneidade profunda de todas estas situações.
De tudo se infere que os direitos para com as pessoas são essencialmente diversos dos direitos sobre coisas.
As coisas estão sujeitas a direitos em consequência do senhorio do homem sobre o mundo exterior e para a consecução de fins extrínsecos, exclusivos do mesmo homem.
Em contraste, os direitos para com as pessoas resultam da intensificação do carácter comum dos fins demandados pelos membros da comunidade e, consequentemente, pela intensificação de um dos traços profundos, da personalidade humana, que é o encontro e a cooperação com os seus semelhantes. E se, por vezes, nessa cooperação parece esbater-se a individualidade do sujeito passivo, tal não resulta da assimilação às coisas, senão de se acentuar a interdependência e solidariedade dos membros da comunidade.

§ 4.º Aplicação da concepção personalista aos problemas jurídicos do cadáver, em geral, e no objecto do projecto, em particular

23. NATUREZA JURÍDICA DO CADÁVER - Finda esta digressão pela concepção personalista do direito, que saiu, talvez, demasiadamente longa para um trabalho como este, mas nos parece realmente frutuosa, podemos entrar, agora, nos problemas específicos do nosso tema, começando pelo da natureza jurídica do cadáver.
«Natureza jurídica» é, segundo se disse, a essência de uma realidade jurídica, enquanto princípio das manifestações dela no mundo do direito Perguntar-se qual seja a natureza jurídica do cadáver equivale, pois, a perguntar-se o que seja ele, qual seja a essência dele, na medida em que essa essência determine as manifestações jurídicas respectivas - as repercussões que a existência do cadáver tem na ordem jurídica e os princípios cuja actuação ela desencadeie
E, suposto tudo quanto temos dito acerca da natureza do direito e dos elementos básicos com que se estrutura a ordem jurídica, quer no aspecto concreto, em que vive e se actua o direito, quer no objectivo e abstracto que contém as «formas», as idealidades susceptíveis de pôr em acto as situações concretas, fácil é ver-se que a questão formulada não pode resolver-se a partir da simples contemplação formal das funções ou situações em que o cadáver possa encontrar-se Buscar-se a solução por tal caminho seria cair-se, de novo, no dédalo do geometrismo, como quem ajusta peças de um painel de azulejos orientando-se apenas pelos contornos exteriores, sem atender às figuras que lhes dão sentido, e seria ainda cair-se no risco de se reduzir a questão da natureza à da qualificação, procurando-se integrar o cadáver noutras figuras conhecidas sem se admitir que ele possa ser algo de sui generis.
A solução do nosso problema tem girado, como se sabe, em torno desta alternativa pessoa ou coisa Podemos aceitá-la também, como ponto de partida, mas havemos de discutir a questão perante a estrutura e a hierarquia de elementos da ordem jurídica e tentar en-

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(...) Pedro Brou, Lexicon Latino-Português, voc. «in».
(...) Augusto Epifânio da Silva Dias, Sintaze Histórica Portuguesa, 4.ª ed., Lisboa, Livraria Clássica Editora, p. 128.

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contrar para o cadáver não somente um nome, mas a essência dele e os princípios que emergem da sua natureza e devem orientar a condição jurídica do corpo do homem falecido.
Poderá o cadáver qualificar-se de pessoa ou de relíquia ou resíduo da personalidade, como ]á se sustentou entre nós (supra, n.º 7)?
Que ele não seja pessoa, fácil é demonstrar-se. A personalidade é apanágio dos seres, racionais e livres, que se possuem e são radicalmente autónomos, e no entanto se apresentam como transcendentes e capazes do encontro com outros seres, e á óbvio que todas estas características faltam no cadáver desprendido da alma imortal que é sua forma, o corpo do homem reverte à condição de matéria dispersa e informe, e não possui nem inteligência nem autonomia.
Não é tão-pouco aceitável qualificá-lo de resíduo ou relíquia da personalidade Na concepção do homem acima sustentada, a alma espiritual, o elemento mais- nobre do composto humano, subsiste para além da morte e mantém-se apta para realizar algumas das suas operações, além de guardar a memória do corpo a que esteve unida e a vocação para de novo o recompor e animar Naquela concepção tem de reconhecer-se, portanto, que o ou do homem falecido subsiste s se conserva a personalidade dele, decerto essa personalidade já não vive na comunidade terrena e não pode sei atingida directamente feio direito, mas não é menos certo que a existência real dela não permite considerar o cadáver resíduo ou relíquia dessa personalidade. Se algum dos elementos do homem pudesse compadecer-se comi tal qualificação, esse seria a alma, que persiste como eu autónomo, e não o cadáver, que foi, por assim dizer, desintegrado da personalidade, mas nem mesmo à alma podei ia atribuir-se a condição de relíquia ou resíduo, visto ser uma substância espiritual, indivisível e incorruptível.
O cadáver não é pessoa, nem sequer resto ou relíquia de uma pessoa é, repetimos, uma matéria informe, destinada à destruição e à dispersão.
Não sendo pessoa, será então coisa?
Também esta solução é radicalmente inaceitável.
Norteando-nos pela distinção teleológica das pessoas 6 das coisas, acima enunciada, podemos afirmar com segurança que o cadáver não pertence ao número das coisas.
Estas consistem, como fica dito, em entidades sujeitas ao senhorio do homem e por isso dominadas por fins extrínsecos, e não pode duvidar-se de que o cadáver esteja afecto a fins intrínsecos e seja, por isso, e em harmonia com o direito natural, insusceptível do ser aplicado a anos extrínsecos.
O cadáver tem fins intrínsecos, dizemos nós, mas contém precisar esta asserção
Em si mesmo - como já observámos -, o cadáver é própria negação da finalidade, o destino dele consiste em corromper-se e desagregar-se, até se volver em pó e
a nada Sobre ele projecta-se, contudo, a dignidade da «essa de quem fez parte, e, por esse motivo, logo por regência da moral e do direito natural, ele deve ser (...) e venerado, em homenagem a essa mesma dignidade.
Recorde-se, antes de mais, que o corpo participa plenamente na dignidade da pessoa humana. Em corpo e alma o homem criado à imagem e semelhança de Deus, e
todos os actos dele, mesmo os mais espirituais, o pó toma parte directa, por isso não é só na alma, mas também no corpo ô pelo corpo, que ao homem cumpre cultural e desenvolver em si mesmo aquela parecença divina.
Quando o homem se encontra na graça de Deus, no expresso ensinamento do Apóstolo, o corpo dele é templo do Espírito Santo Do mesmo corpo advém ao homem a aptidão para viver no seio do mundo material e para nele desempenhar a missão sublime de apreender e fomentai a glorificação objectiva de Deus, cabendo-lhe afeiçoar a si mesmo esse mundo e, continuando a obra divina, oferecê-lo a Deus, renovado e engrandecido. Pelo corpo se unem todos os homens na comunhão da mesma origem e se entrelaçam em comunidades e na história, e, também pelo corpo, se encaminha cada um deles para dar à humanidade e ao mundo aquela forma definitiva em que há-de manifestar-se e resplandecer a plena glorificação de Deus. Tendo-se o homem desviado do seu rumo, foi ainda no corpo que, em especial, ele sofreu as penas da sua falta, de entre os quais avulta a aniquilação do corpo pela morte, com todo o sofrimento e todas as limitações infligidas à alma separada.
Finalmente, para entrai na história e de novo lhe imprimir o sentido verdadeiro, o Filho de Deus fez-se homem, tomando corpo humano da própria carne dos homens, e, pela sua paixão e sacrifício na cruz e pela sua Ressurreição, venceu a morte, dando-lhe significado novo, sempre doloroso embora, mas iluminado pela esperança de o corpo voltar à vida e, outra vez unido. À alma, participar na glória eterna, e, por este modo, como se não fora já muito o ser o corpo humano sublimado pelo parentesco de sangue com Custo, ele adquiriu, na promessas da ressurreição, a dignidade, ainda maior, de sei chamado a compartilhar para sempre o convívio íntimo e glorioso com Deus.
Se tal é, porém, a dignidade do corpo humano, igualmente digno e merecedor de respeito deve ser o cadáver humano. Desprezá-lo é ofender a memória de tudo isso que ele foi em vida e tudo quanto ele há-de vir a ser quando, pelo poder de Deus, ressurgir de entre os mortos. Venerá-lo é honrai a dignidade do corpo que ele foi, é persistir nos sentimentos que uniam os vivos ao falecido o apiedar-se da alma separada desse corpo, é confessar o significado cristão da morte e glorificar antecipadamente a grandeza da ressurreição.
O cadáver, de per si, é pó, terra, cinza e nada. Com isto, todavia, não se pretende equipará-lo a qualquer pó ou a qualquer terra aquela verdade é profundamente dramática e dolorosa, ao mesmo tempo que repassada de confiança e deferência para com Deus, pois é afirmada acerca do cadáver como corpo, que foi, de um homem, e como cinzas com as quais Deus há-de, um dia, recompor, sob 'forma mais elevada, o corpo desse mesmo reparam. Reconhecer-se que o cadáver é pó não é rebaixá-lo ao nível da matéria bruta, mas confessar o nada a que o pecado reduziu o homem, e é, também, proclamar, com reverência e esperança, que só Deus o pode salvar e restaurai Aceitai-se a realidade do cadáver não é, portanto, negar-se-lhe qualquer valor humano, muito pelo contrário, é contemplai-se e respeitar-se nele a plena verdade do homem um punhado de poema que Deus, assim como por amor unira a uma alma imortal, assim faz tombai no nada para expiação dos pecados, mas que, pelos merecimentos de Cristo, há-de voltar de novo à vida a fim de, segundo os seus mentos ou dementas, fria a bem-aventurança ou padecer o castigo por toda a e tem idade.
Conquanto desprovido de finalidade própria, o cadáver representa, por conseguinte, um estádio da existência humana e deve, por isso, ser visto à luz dos fins e da dignidade da pessoa humana, aliás subsistente. Exige a natureza que, através dele, seja respeitada a pessoa de quem foi corpo e cuja alma sobrevive e sofre com a separação,

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exige a fé que nessas cinzas se venere o corpo glorioso que o homem há-de possuir na vida eterna. Exige mais a natureza' exige para a realização dos fina doa homens vivos que eles prestem ao cadáver, por forma adequada, a homenagem por cies devida a pessoa a quem pertenceu e, mais ainda, a Deus que o criou e redimiu e um dia o há-de ressuscitar O cadáver acha-se submetido, por isso, não só aos fins da pessoa de quem foi corpo, mas também nos fins intrínsecos daqueles que ela precedeu na morte.
A crença na alma imortal e na subsistência de muitas das suas operações impõe, como se acentuou, a conclusão do que permanece a personalidade do morto Decerto essa personalidade nenhum reflexo directo e autónomo pode ter na ordem jurídica, na qual por isso lhe é negada toda a capacidade Mas a origem profunda do direito, que reside no dever de fidelidade ao fim último do homem, o, bem assim, a identificação básica da moral e do direito e a submissão a lei natural impõem a necessidade de a ordem jurídica assegurar, na medida do possível, o cumprimento dos fins a que deve considerar-se sujeito o cadáver e que, embora não próprios dele, mas da pessoa, suo fins intrínsecos como todos os que são ligados a essência da personalidade
Em caso algum, conseguintemente, o cadáver pode ser aplicado a fins extrínsecos e qualificado de «coisa».
A nossa conclusão está, pois, a vista: o cadáver não é nem pessoa, nem coisa, mas, em atenção ao que foi e ao que há-de vir a ser, por um lado, e, por outro, aos fins da personalidade, sempre subsistente, de que fez parte e aos das outras pessoas que com ela estiveram em relação, o cadáver está subordinado a fins intrínsecos, próprios das pessoas, e só pode ser tomado polo direito como acessório ou extensão das pessoas.
Que esta conclusão não cause surpresa ela é lógica consequência da perspectiva por que se encaram os realidades jurídicas quando se parte da concepção personalista do direito, acima esboçada.
Na concepção dominante, oriunda do decisionismo e do normativismo, a pessoa e a coisa são encaradas no mesmo plano formal, como simples elemento da relação jurídica Por isso todas as realidades entrelaçados por essa relação hão-de ser, forçosamente, ou pessoa ou coisa* se o esquema do todas as estruturas jurídicas é sempre o mesmo e se, para as realidades preexistentes, só há nele a posição de sujeito ou de objecto, é manifesto que essas realidades se hão-de integrar necessariamente numa dessas posições o só podem ser, portanto, ou pessoas ou coisas. E, como já advertimos, a circunstância de os autores não conseguirem libertar-se das intuições provenientes das convicções e atitudes usuais acerca do cadáver e de por isso caí em soluções híbridas (supra n.º 16) tem concorrido, realmente, para estabelecer, entre as pessoas e as coisas, uma zona de penumbra, muito propicia para esbater a diferença entre elas e assim agravar o formalismo da distinção das duas realidades.
Muito diversa é a nossa concepção, e logo também os corolários a que deve conduzir.
Se assentámos em que o direito e a moral se acham unidos na base - aquela exigência ontológica de realização do fim último cuja satisfação é assegurada pelo duplo princípio da autonomia e do devei de fidelidade a esse fim - e se concluímos que toda a ordem ética se acha subordinada a lei natural, que outra coisa não é senão a lei eterna adaptada à actividade livre do homem, forçoso nos é também entender que o direito deve respeitar, nos aspectos que lhe são acessíveis, os reflexos daquele fim último, mesmo paxá além da morte e do desaparecimento da capacidade jurídica Se defendemos que toda a ordem ética é teleclógica em razão de se estruturar em função dos fina das pessoas humanas que nela têm a primazia e se distinguem das coisas pelos seus fins intrínsecos, igualmente havemos de exigir que e direito respeite esses fins intrínsecos, onde e como quer que eles se manifestem. E se, paia nós, o direito vive essencialmente em concreto e se actua por meio de uma ordem de situações, enformadas pelas ideias e fins contidos na ordem das leis, e se entendemos, portanto, que ele vive em situações concretas, constituídas separada e singularmente, por igual modo temos de admitir que essas situações não podem reduzir-se a esquemas ou a figuras uniformes, antes têm de ser adaptáveis, com maleabilidade, aos fins especiais por que são enformadas E por tudo isto havemos de concluir que nada impõe logicamente que as realidades de que é formada a ordem das situações jurídicas tenham de se reduzir, necessariamente, a pessoas e a coisas.
Com este modo de ver - já o dissemos - não caímos num concretismo jurídico, que seria condenável, e tilo pouco, com o afirmarmos o carácter fundamentalmente concreto da ordem, jurídica, arrumamos a ciência do direito. Essa ordem, como se viu, é a actuação de uma ordem jurídica objectiva, preenchida pelas normas que são expressão dos fins superiores do homem, os quais se filiam todos no fim último e supremo, por isso as situações concretas correspondem a «formas» racionais, hierarquicamente subordinadas a um fim único e portanto emanadas daquelas «ideias» que deram o ser ao homem, e, vistas assim, têm, como em nenhuma outra concepção, conteúdo racional e lógico. A diferença não está em uma concepção do direito ter base racional que falte na outra, reside, sim, no tipo se conteúdo lógico que cada uma delas descobre na realidade jurídica conteúdo permanente artificial, formal e geométrico, numa, e conteúdo ontológico e teleológico, noutra - a nossa, precisamente.
E, contemplando a realidade neste «reino dos fins», força é reconhecer-se que o primado da pessoa há-de imperar em tudo quanto só enquadre nos seus fins intrínsecos, ainda que tenha de transcender as próprias pessoas, tal como o mundo das coisas não pode ser fechado a priori, sob pena de, para o direito, se limitar o senhorio do homem sobre a realidade exterior, precisamente aberta a novas descobertas e conquistas do homem.
Este último ponto é patente. Na noção técnica mais generalizada e equilibrada, «coisa» é a realidade que, não tendo personalidade jurídica, é susceptível de ser objecto de direitos, por isso não será coisa, ou será coisa fora. do comércio (como afirma o nosso código, partindo de uma noção mais lata), tudo aquilo que não for apto para sei objecto de direitos Assente tal ideia, e admitido que, por força dela, as coisas fora do comércio não podem ser objecto de apropriação (Código Civil, artigo 269 º e seguintes), seguir-se-ia logicamente que seriam irrelevantes para o direito, se não ilícitos, os actos de apropriação de alguma daquelas realidades que, em certo momento, não fossem susceptíveis de apropriação exclusiva, mesmo que viesse a descobrir-se o meio de as reduzir a propriedade privada E óbvio, porém, que o bom senso e o espírito da lei impõem a conclusão inversa sempre que uma realidade qualquer se torne aproveitável pelo homem, logo ela ingressa no mundo dos coisas, como já aconteceu ou parece estar para acontecer ao ar líquido, ao ar comprimido, a electricidade, aos raios cósmicos, à energia solar e até aos astros diversos da Terra e às riquezas que neles se encontrem. O elenco dos coisas não é, pois, fechado por natureza, antes se mostra elástico e em constante expansão

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Com as pessoas passa-se, mutatis mutandis, fenómeno semelhante. A pessoa humana concreta tem o primado da ordem jurídica subjectiva e reivindica do direito a defesa dos seus nos intrínsecos. Se eventualmente estes fins se achai em consubstanciados indirectamente em realidades que não sejam pessoas mas participem da dignidade delas, por extensão, essas realidades só poderão receber do direito tratamento análogo ao das pessoas, e nunca aquele que é próprio das coisas.
As pessoas e as coisas existem, por isso, em planos essencialmente diferentes e projectam a sua condição para além das suas fronteiras concretas, sem que jamais possam encontrar-se E o direito, ao escolher o tratamento a que há-de sujeitar determinado ser, deve, antes de mais, decidir se ele é extensão das pessoas ou simples coisa,, e só depois o poderá regulamentar.
Esta é, em resumo, a natureza do cadáver é uma realidade que, não sendo pessoa, se acha submetida aos fins intrínsecos das pessoas, e há-de, consequentemente, ser regida pelos princípios relativos as pessoas, em tudo o que seja adequado à sua configuração particular.

24. CONFIRMAÇÃO DA NATUREZA ATRIBUÍDA AO CADÁVER PELA ANÁLISE DOS DIREITOS COMUMMENTE RECONHECIDOS A RESPEITO DELE - A tese de que o cadáver deve ser tratado pelo direito como extensão da pessoa e regulado pelos princípios aplicáveis a esta encaminha-nos naturalmente para a hipótese de que os direitos a ele respeitantes sejam análogos aos direitos para com as pessoas Se tal hipótese for verdadeira, esse facto será, ao mesmo tempo, valiosa confirmação da doutrina exposta acerca da natureza do cadáver e importante contributo para se determinar o regime jurídico a que ele deve ser sujeito.
E não é difícil verificar-se a verdade dessa hipótese.
Conforme deixámos dito, as figuras a que chamámos direitos a personam caracterizam-se, antes de mais, pela destinação a fins intrínsecos. Ora são também tipicamente intrínsecos os fins dos direitos geralmente admitidos a respeito do cadáver.
Seguindo-se a hierarquia desses fins, devemos mencionar em primeiro lugar os direitos que respeitam ao culto religioso. O cadáver é, como se sabe, objecto de culto em virtude do carácter de sagrado desde sempre atribuído a morte, e por esse motivo sempre se tem reconhecido que a prestação de honras religiosas ao cadáver constitui um direito e um dever para os vivos.
Na vida religiosa do cristianismo, de particular interesse para nós, todos os actos relativos à inumação do cadáver são rodeados e absorvidos em actos de culto, e todos se destinam portanto a fins intrínsecos das pessoas a homenagem a Deus, a dignificação do cadáver como corpo do homem e a oração pelo falecido
Sendo assim, devem igualmente ser intrínsecos os fins dos direitos respeitantes a essas honras fúnebres, direitos que, segundo os aspectos por que são olhados, pertencem às autoridades religiosas (como implicitamente reconhece o artigo 48 º da Constituição Política) e às pessoas de família do falecido e aos executores testamentários deste, aliás, nestes últimos casos, em seguimento e como complemento dos direitos, reconhecidos em vida ao indivíduo, de regular o próprio funeral [Código Civil, artigo 1899.º, n.º 1, e, por analogia, o Código do Registo Civil, artigo 244.º, n.º 1, e alínea o) do n.º 2. E mesmo quando essas pessoas se decidem por funeral não religioso, isto constitui manifestação de uma atitude fundamental acerca da orientação da vida e, posto que contrário às leis naturais e aos usos correntes, não deixa de ter em vista aquilo que se crê ou pretende apresentar como destino da própria pessoa.
Igualmente intrínsecos são os fins respeitantes à piedade familiar que, além de se conjugarem e fundirem com os fins relativos às honras fúnebres, se estendem ainda à posse do cadáver e ao túmulo, à inviolabilidade deste, à defesa da honra do falecido, etc.
Finalmente, os direitos respeitantes à destinação corrente e ao eventual aproveitamento do cadáver para exames forenses, autópsias, estudos médicos, etc embora sejam os que mais se aproximam de perspectivas utilitárias, têm, apesar de tudo, fins intrínsecos das pessoas, visto serem conferidos em atenção a um bem comum em que o falecido participava e que só através do cadáver pode realizar-se (repressão de crimes, defesa de direitos pessoais da família, aperfeiçoamento da medicina para alívio dos doentes, etc).
A enumeração destes direitos põe logo em evidência também a estreita ligação destes com direitos e deveres propriamente ditos, como é característico dos direitos paia com as pessoas. Para se ver que essa é a verdade, basta pensar-se que muitos deles têm praticamente o mesmo objecto e fim que outros direitos e deveres que, em vida do falecido, eram reconhecidos a este ou existiam para com ele Assim, alguns direitos sobre o cadáver, como os respeitantes às honras fúnebres, surgem em substituição de direitos do falecido sobre a mesma matéria. A família, por exemplo, terá o direito de regular o funeral na medida em que o defunto o não tenha feito, e pode verificar-se, até, o fenómeno de alguma das pessoas de família só ter esse direito na falta de outras, estabelecendo-se assim uma cadeia de direitos preferenciais que se estende desde o próprio falecido até aos parentes mais remotos - neste tema, o direito de regular o funeral pertencerá ao falecido, no silêncio dele ao cônjuge, na falta deste aos descendentes, etc Semelhantemente, os desvelos e cuidados religiosos e familiares dedicados ao defunto são simples prolongamento e complemento dos que se lhe prestaram em vida, tal como os exames forenses e as observações médicas podem integrar-se em processos de investigação começados em vida do falecido, inclusivamente por iniciativa dele próprio.
Por outro lado, as considerações feitas a respeito dos direitos relativos ao cadáver e da ligação em que eles se encontram com direitos e deveres de outra ordem - nos quais se incluem, até, direitos e deveres do próprio falecido - revelam-nos que nesses direitos se verifica outra característica própria do jus panorama a referência à personalidade no seu conjunto. Quase poderá dizer-se que, no tocante ao cadáver, esta característica se apresenta com especial relevo, o que bem se compreende, porquanto, não tendo ele fins próprios e interessando ao direito como extensão da pessoa, necessariamente os poderes e deveres que lhe dizem respeito hão-de ter em vista, acima de tudo, a própria pessoa, e, na verdade, desde os direitos e deveres relativos ao culto até aos exames e estudos médicos, o que está em causa é sempre, primordialmente, o homem na sua integralidade.
Como corolário das considerações anteriores é também própria dos direitos sobre o cadáver a necessidade de se subordinarem ao respeito da pessoa como tal - excluindo-se, nomeadamente, actos desumanos e indecorosos - e ao respeito dos outros fins intrínsecos. E especialmente acerca dos fins de aproveitamento forense ou escolar do cadáver que este problema pode surgir na prática e, conquanto infelizmente seja notório que muitos abusos se cometem em tal matéria, o certo é que as leis vigentes e as normas deontológicas, com maior ou menor consciência, consagram essa característica. Deve recordar-se, por exemplo, que as leis relativas ao ensino médico expressa-

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mente prevêm a coordenação das respectivas exigências com os direitos da família do defunto, e que o Regulamento da Casa Mortuária do Hospital da Universidade de Coimbra regula o serviço do capelão do Hospital precisamente para o conciliar com as necessidades do estudo universitário.
Daquela outra característica dos direitos para com as pessoas, consistente em a natureza especial deles resultar de serem exercidos por meio de actos executados sobre o próprio ser humano, nem vale a pena falar-se é evidente que só assim podem exercer-se os direitos relativos ao cadáver. Todos os outros direitos que, tendo com aqueles alguma relação, não apresentem essa característica, referem-se directamente ao falecido, e não ao cadáver, como sucede, por exemplo, com o direito de defender a memória do morto.
Finalmente, é manifesto o carácter comunitário do tais direitos. Todos eles pertencera, tipicamente, à comunidade religiosa, ou b familiar, ou a civil, e todos têm em vista o bem comum respectivo. Mesmo os direitos que apresentam fins mais acentuadamente utilitários, como sejam os de investigação judiciária e os de investigação e ensino médicos, têm obviamente em vista o bem comum e só por ele são justificáveis, e é fácil de ver-se que não diferem essencialmente de direitos reconhecidos para com pessoas vivas, as investigações judiciárias são análogas aquelas a que os vivos são obrigados para o esclarecimento de suspeitas de crimes, e verificam-se muitas vezes como simples prolongamento delas, e por igual modo a investigação e o ensino médicos não diferem, na finalidade de interesse geral, daquela a que são submetidos os doentes internados em clínicas escolares - recorde-se, por exemplo, que os estatutos pombalinos da Universidade de Coimbra mandavam que o lente de Prática abrisse, na presença dos discípulos, os cadáveres das pessoas falecidas no Hospital, para averiguar a causa da morte e rectificar o juízo que fizera acerca da doença, a fim de proceder com mais acerto em casos semelhantes, e até aos médicos particulares impunha a assistência a esses estudos quando se tratasse de falecidos fora do hospital.
Em conclusão, podemos pois afirmar que os direitos mais comummente reconhecidos a respeito do cadáver têm natureza e configuração análogas às dos direitos in personam, circunstância pela qual se confirma inteiramente a nossa tese de que o cadáver não é tratado como coisa, mas sim como extensão ou acessório da pessoa

25. SÍNTESE DOS PRINCÍPIOS A QUE DEVEM OBEDECER OS DIREITOS SOBRE o CADÁVER - Examinadas as características dos direitos para com as pessoas, e concluído que o cadáver, assim na natureza como nos direitos a ele relativos, está sujeito a tratamento análogo ao das pessoas, como extensão delas que é, podemos agora fazer breve síntese dos princípios. A que devem obedecer esses direitos sobre o cadáver.
São eles.

a) Destinação a fins intrínsecos esses direitos só se justificam quando concedidos para fins intrínsecos, isto é, quando separada ou simultaneamente tenham fins cuja consecução é necessária para se realizar a personalidade do próprio sujeito passivo e fins cujo cumprimento é devido por esse sujeito passivo ao bem comum da comunidade a que ele pertence ou pertenceu, não são admissíveis, portanto, quando se destinem a proporcionar meras utilidades susceptíveis de serem atingidas por meios sujeitos ao domínio do homem (por exemplo, a colheita de matérias-primas destinadas à indústria) ou tenham fins imorais ou fúteis (por exemplo, aproveitamentos contrários a dignidade e ao pudor ou determinados por mero interesse estético). !») Especificidade. esses direitos devem ser estritamente delimitados pelo fim a que se destinam e só no âmbito deste têm justificação.
c) Ausência de domínio como corolário dos princípios anteriores, o cadáver não pode ser objecto de domínio ou propriedade plena, ao contrário do que acontece com as coisas, as quais estão normalmente afectas, na generalidade das suas utilidades efectivas ou potenciais, aos fins de pessoas determinadas, ninguém, nem mesmo o Estado ou a família, pode, por conseguinte, arrogar-se a «propriedade» do cadáver.
d) Extra comercialidade outro corolário dos princípios anteriores é a impossibilidade de o cadáver ser objecto de comércio, não por ser coisa fora do comercio, mas precisamente por nem sequer sor coisa, nem poder ser objecto do domínio; encontram-se por vezes excepções a este princípio, o que tem feito hesitar a doutrina sobre a natureza jurídica do cadáver, mas, conhecida a identidade profunda entre os direitos sobre este e os direitos para com pessoas, fácil é ver-se que essas excepções (por exemplo, a cessão do cadáver para aproveitamentos terapêuticos ou científicos), tal como a dação de sangue ou leite em vida do dador, representam uma forma de colaboração de uma pessoa, como tal, com outra pessoa, e, portanto, não a disposição de uma coisa, mas sim uma prestação, um serviço susceptível até de ser remunerado, da mesma forma que a cessão, mesmo onerosa, da simples energia muscular do homem constitui um serviço, embora, de um ponto de vista materialista, essa energia pudesse equiparar-se à de um animal ou de uma máquina - em todos estes casos a eventual remuneração não representa o preço de uma coisa, mas a retribuição de um serviço, em cuja apreciação pesam acima de tudo aspectos pessoais.
c) Independência, em princípio, dos vários direitos que recaiam no cadáver sendo coda um deles destinado a fins específicos e a eles limitado, e não podendo existir domínio sobre o cadáver, do qual os demais direitos sejam desmembramento ou oneração, cada um desses direitos aparece, em princípio, independente dos outros
f) Necessidade de hierarquização e coordenação em concreto precisamente porque esses direitos são em princípio independentes uns dos outros, eles têm de ser hierarquizados e coordenados em concreto - todos se dirigem, por hipótese, a fins intrínsecos, mas estes podem ter valor desigual e, mesmo quando de valor inferior ao de outros, podem merecer, em concreto, maior protecção do que outros ou reclamar um mínimo de protecção que satisfaça ao respeito que lhes é devido, daí a necessidade de o regime jurídico do cadáver ter consciência da hierarquia desses fins e de procurar conciliá-los pela melhor forma possível.
g) Subordinação genérica ao respeito devido à pessoa e a outros fins intrínsecos, não basta conciliar-se esses direitos uns com os outros, nem sequer reconhecer-se que o âmbito de cada um deles é

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circunscrito ao fim respectivo, aceite como intrínseco e merecedor de protecção, porquanto é necessário que nos próprios actos de execução se observe o respeito devido à dignidade das pessoas e nos outros fins intrínsecos, em cuja satisfação o exercício desses direitos não deve interferir.

Estes são os princípios à luz dos quais devemos apreciar a matéria do projecto em exame o aproveitamento de tecidos e órgãos de cadáveres para fins terapêuticos ou de investigação científica.

26. FORMULAÇÃO GENÉRICA DOS PROBLEMAS SUSCITADOS PELO APROVEITAMENTO DE TECIDOS E ÓRGÃOS DO CADÁVER - Como se deixou dito, o projecto de decreto-lei em exame tem por objecto o aproveitamento de tecidos e órgãos do cadáver humano para fins terapêuticos ou de investigação científica. Mas, como também se acentuou, estes fins não são tomados em toda a sua amplitude, visto que o projecto tem em vista - e nisso reside a sua especialidade - a colheita de tecidos e órgãos antes de eles sofrerem alteração por autólise, ou seja de tecidos e órgãos de cadáveres de pessoas recém-falecidas.
Das particularidades próprias deste objecto resultam duas ordens de problemas, que separadamente importa discutir.
Respeita a primeira aos próprios fins a que deverão destinar-se os órgãos e tecidos em questão. Cumpre averiguar-se, de acordo com a doutrina acima exposta, se tais fins são intrínsecos, em termos de a eles se poder afectar o cadáver humano, além disso, é necessário esclarecer-se se, mesmo na hipótese de serem intrínsecos, esses fins se opõem a outros fins intrínsecos do falecido ou de outras pessoas, em condições de os tomar condenáveis ou, quando menos, de os sujeitar a limitações ou precauções especiais.
Por outro lado, o objecto do projecto envolve problemas relativos a urgência com que deve ser feita a colheita dos tecidos e órgãos, e que resulta, em termos gerais, da necessidade de ela ser efectuada antes de decorrer o prazo normal de prevenção contra a morte aparente.
Comecemos por considerar o problema do carácter intrínseco ou extrínseco dos fins a que se destina o aproveitamento projectado.

27. LICITUDE DOS FINS TERAPÊUTICOS E DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA, COMO OBJECTIVOS DO APROVEITAMENTO DO CADÁVER - Como se Referiu, o primeiro problema com que deparamos consiste em saber-se se os fins propostos têm carácter intrínseco, em termos de poderem justificar o aproveitamento do cadáver, ou se, pelo contrário, têm carácter extrínseco, e são por isso inadequados ao aproveitamento do corpo humano, quer em vida, quer depois da morte.
Esses fins são, como se disse, fins terapêuticos e fins de investigação científica. Comecemos por estes últimos, em relação aos quais o projecto apresenta menos novidade, e que, por isso mesmo, são menos susceptíveis de suscitar dúvidas.
O projecto não apresenta orientação claramente definida ao delimitar os fins de investigação, pois se refere, por vezes, a esses fins sem qualquer limitação, enquanto em outros casos os restringe a investigação relacionada com a técnica dos enxertos. A análise desse aspecto pertence, porém, à discussão do projecto na especialidade, e por isso vamos considerar o problema perante os fins de investigação em si mesmos, independentemente das limitações que, no pormenor da regulamentação, se lhes possa impor.
É claro também que aqui consideramos apenas os fins de investigação científica na medida em que esta seja necessária ou útil para o desenvolvimento da medicina humana e para o treino dos respectivos práticos. Outras investigações, nas quais se utilizasse o corpo humano ou alguma das suas partes como simples instrumento ou matéria-prima, seriam condenáveis e deveriam repudiar-se firmemente. Os fins em relação aos quais se põe o problema que vamos considerar e que, obviamente, estão no pensamento do projecto são os fins relacionados com a ciência e a prática médicas.
Considerando-os nestes limites, e abstraindo por agora dos problemas resultantes da urgência das colheitas de tecidos e órgãos, poderemos dizer que os fins de investigação científica não são novos, e não suscitara dúvidas sérias.
Desde há muito que se aceita como indiscutível a necessidade de se conhecer o corpo humano para a preparação dos médicos, como meio indispensável para o tratamento dos doentes, e ainda a necessidade de se aproveitar o cadáver para o treino dos práticos, treino que, por outro modo, teria de fazer-se no corpo de pessoas vivas, com todos os danos e toda a crueldade que daí poderiam advir.
E é evidente que, admitida a necessidade desses estudos para o aperfeiçoamento da medicina, logicamente eles se justificam pelos motivos que fundamentam o
próprio tratamento dos doentes, assunto que consideraremos mais detidamente ao versar o problema dos fins terapêuticos.
Por agora basta-nos recordar que o aproveitamento dos cadáveres para estudo dos médicos se acha consagrado tanto pelo direito como pela moral e que, ainda há anos, foi expressamente reconhecido como lícito pelo Papa Pio XII, no discurso de 13 de Maio de 1956, no qual, precisamente, se ocupou do problema dos enxertos de tecidos de cadáver em corpos vivos. Depois de salientar o valor do cadáver, o Sumo Pontífice põe em evidência que não contraria o respeito que lhe é devido a aplicação do cadáver a certos fins humanos, entre os quais se conta exactamente o de estudo e ensino médicos. « É igualmente verdade - ensina o Papa - que a ciência médica e a formação dos futuros médicos exigem um conhecimento detalhado do corpo humano e que necessitam de um cadáver como objecto de estudo». (110)
Não se afigura legítimo, por conseguinte, suscitarem-se quaisquer dúvidas acerca da licitude do aproveitamento do cadáver para fins de ensino e de investigação médicos, e o mais que se pode dizer aqui é que, segundo se crê, as investigações para que podem interessar as colheitas de tecidos ou órgãos, efectuadas ao abrigo do diploma projectado, são de natureza a atingirem a integridade do cadáver em escala muito inferior à de outras investigações, nomeadamente às que se compreendem no estudo da anatomia.
A outra ordem de fins a que o projecto destina - aliás, a título principal - os tecidos e órgãos colhidos em cadáveres e que temos de considerar com maior atenção respeita ao aproveitamento de tecidos e órgãos em enxertos em corpos vivos, destinados a corrigir deficiências ou, inclusivamente, a evitar a morte.
A nosso ver não pode pôr-se em dúvida o carácter intrínseco destes fins.
Na concepção cristã, à sombra da qual nos acolhemos o sofrimento é dos traços constantes da condição presente (...)

(110) V tradução portuguesa in Acção Medica, ano XXI, N.º 81, p. 24.

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da humanidade e acha-se em estreita relação com a personalidade e com a realização histórica do homem.
A doença e os padecimentos físicos e psíquicos são fruto da natureza corrompida pelo pecado original e do germe de morte que, por causa dele, o homem traz no próprio corpo. E, concretamente, são muitas vezes consequências de faltas cometidas pelo próprio padecente ou pelos seus ascendentes e pela própria sociedade em que vive.
O sofrimento corresponde, portanto, a uma condição comum dos homens, cuja responsabilidade não pertence, no todo ou em parte, aquele que o suporta, e que no entanto fere desigualmente os homens, sem escolher inocentes ou culpados, poderosos ou humildes, ricos ou pobres. É um mal que ameaça todos os homens indistintamente, e lutar contra ele constitui, por isso, uma exigência do bem comum, em nome da equidade e até da justiça.
Por outro lado, cada homem tem, como uma das exigências básicas da personalidade, de transcender-se e de procurar o encontro com os outros homens e com Deus.
O encontro com os outros homens implica a necessidade de os descobrir, compreender e amar, bem como a necessidade de viver os problemas deles e, portanto, de contribuir para lhes minorar o sofrimento e de procurar compartilhar com eles as provações, que são património de todos os homens.
E o encontro com Deus implica a participação nos sofrimentos alheios como expiação do mal causado pelos homens, e de que o sofrimento é consequência e castigo. Cristo, Ele próprio, encarnou precisamente para expiar as faltas dos homens e, conquanto qualquer dos seus actos tivesse valor infinito e bastante para aquele fim, quis sofrer os padecimentos atrozes da sua paixão e morte; mas, tal como em relação a morte, Ele transformou assim o sofrimento num penhor de salvação e ressurreição. E Cristo convida todos os homens a imitá-lo e, portanto, a tomar parte nessa expiação, sofrendo com Ele e, como de si mesmo dizia o Apóstolo, completando na sua carne o que falta às atribulações de Cristo (111), em obediência a essa maravilhosa solidariedade em que Ele tomou para Si parte infinitamente superior à de qualquer outro, por isso, aceitar o sofrimento próprio e compartilhar o dos outros é tomar-se parte nos padecimentos de Cristo e viver-se, com fortaleza e esperança, os trabalhos da salvação.
Dizer-se isto, todavia, não á preconizar-se uma atitude de resignação passiva, mas afirmar-se o dever de caridade de procurar minorar ou vencer os padecimentos próprios e alheios.
Para o cristão, aceitar-se a condição presente do homem, com todas as limitações que ela impõe a cada um - aquilo a que se chama destino - e aceitá-la com a consciência do que ela envolve de expiação, não é ver-se no destino uma meta para a qual se tenha de caminhar irresistivelmente, nem uma lei inflexível que conduza uns à felicidade e outros à desdita, qualquer que seja a actuação de cada um. Pelo contrário, a própria resignação perante um mal inevitável não é uma atitude passiva e de vencido, moa a transformação voluntária, por um acto interior, do sentido do sofrimento, tomado como instrumento de renovação e de salvação, e já é, portanto, uma vitória sobre o destino, conseguida naquela zona suprema da liberdade, em que é dado ao homem imprimir sentido ético a tudo quanto lhe preencha a vida, mesmo quando lhe é imposto materialmente. E, para além do que é irresistível, o destino é simples ponto de partida, é um momento de graça, oferecido por Deus ao homem como meio de se salvar e no qual ele há-de exercer a liberdade e descobrir a vocação, a missão que lhe cabe desempenhar. E o amor ao próximo, que é uma constante essencial de toda a vocação o que há-de provar-se por obras, implica necessariamente todo o esforço possível para mitigar ou vencer o sofrimento alheio.
Colocado perante a ameaça do sofrimento, o homem tem, pois, o dever de defender a saúde própria como dom precioso de Deus e de lutar pela saúde do próximo como exigência da caridade, se não da justiça, e do amor para com Deus.
Assim se verifica como é ajustado ao pensar e ao sentir cristão o entusiasmo com que Pio XII se refere à conjugação de esforços de toda a ordem por meio dos quais se tem procurado desenvolver um problema precisamente integrado no nosso tema - o tratamento da cegueira pela transplantação da córnea de um morto para um vivo. Falando do cego, diz-nos o Papa que «hoje em dia põe-se ao seu serviço a caridade e a piedade de muitos homens compreensivos, bem como os progressos da técnica e da cirurgia científica, com todos os recursos inventivos, a sua audácia e a sua perseverança. A psicologia do cego permite-nos adivinhar a necessidade que tem de uma ajuda compreensiva e como a recebe com reconhecimento» (112).
E, a propósito da psicologia do cego, Pio XII recorda a oura do cego de Jericó, operada milagrosamente por Jesus, observando que o brado do infeliz - Filho de David, tem piedade de mim! Senhor, fazei que eu veja! - ressoa ainda aos ouvidos e ao coração de todos e por isso todos lhe querem responder e prestar auxílio conforme puderem (113).
Para mostrar até que ponto esse desejo de dar saúde aos padecentes corresponde à visão cristã da doença, não parece descabido acrescentarmos nós que muitos dos prodígios operados por Cristo tiveram por objecto imediato a cura de enfermos e defeituosos, e que em muitos casos Cristo expressamente associou essas curas à fé e à salvação, como se verifica pela resposta dada ao cego, no caso relembrado por Pio XII - «Vê! A tua fé salvou-te!» - e naquele outro caso do paralítico, a cujos rogos Cristo começou por responder com o perdão dos pecados e que logo curou, para prova do poder que tinha para conceder esse perdão.
A luta contra a doença integra-se plenamente, portanto, na concepção cristã do sofrimento por tal forma que, ao mesmo tempo que é dever do homem aceitar as atribulações próprias e ajudar os outros a suportar as que os ferem, é também, e pela mesma razão, um dever de caridade e até de justiça concorrer para a conservação da saúde e para a cura dos doentes. E tanto é assim que, ainda recentemente, a Igreja reafirmou, na encíclica Pacem in terris, o direito de todos os homens a integridade física e aos meios correspondentes a um digno padrão de vida, entre os quais se conta a assistência sanitária, e proclamou que a pessoa tem direito a ser amparada no caso de doença e de invalidez (114).
Cuidar dos doentes e usar de todos os meios lícitos para lhes abrandar o sofrimento e restituir a saúde é, por conseguinte, lógica consequência da visão cristã da dor e constitui, para o indivíduo e para a comunidade, um dever de caridade e de justiça. Representa, por esse mesmo facto, (...)

(111) Epístola aos Colossenses, I, 24.
(112) Citado discurso, 18 de Maio de 1956, no lugar citado, P. 21.
(113) Ibidem.
(114) V. na edição da Unido Gráfica, Lisboa, p. 9.

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um fim intrínseco da personalidade e da comunidade, essencialmente integrado na missão que aos homens cumpre desempenhar na condição presente da existência humana.
Os fins terapêuticos para que se propõe admitir o emprego de órgãos e tecidos colhidos em cadáveres são, portanto, fins intrínsecos comuns a todos os homens e, consequentemente, aos próprios falecidos cujo corpo for para eles utilizado.
E, sendo assim intrínsecos, esses fins são adequados à natureza do cadáver e permitem criar-se, para os atingir, direitos ao aproveitamento do mesmo cadáver.

28. APRECIAÇÃO DOS FINS PROPOSTOS PERANTE OUTROS FINS INTRÍNSECOS DO FALECIDO - Assente que os fins previstos no projecto têm carácter intrínseco e são adequados à natureza do cadáver, vejamos se, no entanto, eles ofendem ou contrariam outros fins intrínsecos, em termos de haverem de ser conciliados com eles ou de se tornarem até reprováveis.
Este problema pode ser encarado em relação a fins do próprio falecido de cujo cadáver se trata e a fins de outras pessoas.
Consideremos em primeiro lugar os fins intrínsecos do próprio falecido.
Como sabemos, o cadáver está subordinado aos fins da personalidade, em cuja dignidade participa, mas não tem fins em si mesmo, de per si só, destina-se a corrupção e à destruição.
Por esse motivo só podem ser opostos aos fins a que se acha subordinado o cadáver os actos que atentem contra os fins da personalidade. Pensar-se o contrario seria atribuir-se fins intrínsecos ao cadáver em si mesmo considerado, contrapostos aos fins da pessoa e como se o próprio cadáver fosse dotado de personalidade, entendimento que, conforme se deixa dito, não é exacto.
E, colocado portanto o problema perante os fins da personalidade do falecido, parece indiscutível que a colheita de órgãos e tecidos para serem usados com fins terapêuticos - abrangidos nos fins da personalidade, como se demonstrou - não implica qualquer ofensa aos fins intrínsecos da pessoa cujo corpo sofre essa intervenção.
Pio XII, ao examinar o problema religioso e moral do enxerto da córnea de cadáveres e sem esquecer que para com estes pode haver obrigações morais, prescrições e proibições, declara expressamente que o defunto a quem se extrai a córnea não é atingido em nenhum dos bens a que tem direito, nem no seu direito a estes bens. A extirpação da córnea não é a extracção de um dos seus bens, porque a presença e a integridade dos órgãos visuais. já não têm no cadáver o carácter de bens, pois esses órgãos já lhe não são úteis e já não têm nenhum fim (115).
Esta é, na verdade, a conclusão que se impõe era geral a utilização de órgãos e tecidos de cadáveres não ofende nenhum dos fins a cujo cumprimento o defunto tenha direito.
Convém, no entanto, e para afastar todas as dúvidas possíveis, fazer referência a alguns pontos em particular.
Antes de mais, importa salientar-se que a utilização terapêutica de tecidos e órgãos do cadáver não contraria a dignidade deste, desde que se destine ao tratamento de outros homens, e a satisfazer uma necessidade real, e não meros objectivos fúteis ou indecorosos.
Com estes limites, o enxerto de órgãos e tecidos não difere, do ponto de vista moral, da transfusão de sangue de uma pessoa viva para outra (o sangue é, aliás, um dos tecidos susceptíveis de se colherem em cadáveres para fins terapêuticos), e é óbvio que nada há na transfusão de sangue que seja contrário à dignidade pessoal, mesmo quando o dador se encontre vivo, uma vez que esse sangue seja utilizado para tratar um doente ou para lhe salvar a vida. Os enxertos de outros tecidos, quando extraídos de cadáveres aos quais já não são úteis, não podem ser olhados por forma diversa são meios de melhorar ou salvar a saúde de outros homens, aplicação perfeitamente conforme à dignidade das pessoas e até aos deveres que as vinculam a todas.
Outro ponto que convém ponderar-se em particular refere-se à ressurreição dos mortos.
Como se disse, é dogma cristão o de que, nos fins dos tempos, todos os mortos serão chamados de novo à vida para, em condição mais elevada do que a actual, fruírem a bem-aventurança eterna ou sofrerem o castigo das suas faltas, em corpo e alma. E é de fé, igualmente, que esse corpo é o mesmo que o terreno por grande que seja a diferença entre o corpo terreno e o corpo transformado dos ressuscitados, este será específica e numericamente o mesmo que aquele (116).
Desta verdade de fé poderão alguns inferir, embora sem razão, que a extracção de tecidos ou órgãos de cadáveres e o emprego deles em enxertos no corpo de vivos contrariem a ressurreição e sejam por isso condenáveis.
Para pessoas pouco versadas sobre este dogma, a simples destruição anormal do cadáver poderia obstar à restauração final do corpo ou valer como prova de que ela não se verificará. Já no tempo das perseguições, vendo o cuidado que os cristãos tinham em recolher os corpos dos mártires para lhes dar sepultura honorífica, os tiranos queimavam-nos, de propósito, espalhando as cinzas ou deitando-as ao rio, porém, os fiéis, apoiados na crença dos seus mistérios, respondiam que apesar de tudo Deus conservaria os elementos para o triunfo da ressurreição (117). E, como é notório, é com o intuito de fazer crer que a ressurreição é impossível que a maçonaria tem feito (especialmente no século transacto) grande propaganda da incineração dos cadáveres, por esse motivo, e não obstante a incineração não ser intrinsecamente reprovável (salvo no que apresenta de violência escusada e de falta de apego ao cadáver por parte dos vivos), a Igreja proíbe-a e pune-a com penas eclesiásticas (Codex Júris Canonici, cân 1203, 1240 e 2339), precisamente para reprimir o significado ímpio que se lhe pretende atribuir.
Na mesma ordem de ideias, e para além da mera destruição anormal do cadáver, poderá supor-se que todos os actos e práticas dos quais resulte a confusão material de parte do cadáver com o corpo de outras pessoas envolve obstáculo a ressurreição. Já na Idade Média se argumentava contra esta com a circunstância de alguns selvagens usarem alimentar-se de carne humana. E, perante a prática dos enxertos, não falta quem pergunte em qual dos corpos deve ressuscitar a
porção enxertada e se é possível a ressurreição daqueles em que ela faltar.
Mas todas estas dúvidas e objecções são radicalmente desprovidas de fundamento.
Baseiam-se elas na ideia de que o corpo futuro há-de resultar da simples reanimação dos cadáveres, por tal modo que, necessariamente, haveria de ser formado de toda a matéria que tivesse composto o corpo terreno. Esta ideia é contudo, duplamente errónea e ingénua.

(115) Discurso de 13 de Maio de 1956, lugar citado, p. 23.
(116) Schmaus, ob cit, vol. VII, Los Novisimos, edição Rialp, Madrid, 1061, p. 281.
(117) J. A. Martins Gigante, Instituições de Direito Canónico, vol. II, 3.ª edição, Braga, 1954, p. 71, e autor aí citado.

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É-o, do ponto de vista da composição do corpo ressuscitado, por dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, o próprio corpo vivo não é constituído sempre pela mesma matéria, o que, de per si, tira todo o sentido àquela suposta exigência de que o corpo ressuscitado seja necessária e integralmente formado pela matéria do corpo vivo. Em segundo lugar, de acordo com a Revelação, o corpo ressuscitado será um corpo transformado, por tal modo que, tendo a mesma identidade que o terreno, não será igual a ele, antes terá propriedades e atributos que lhe assegurarão configuração particular, superior à presente
E é ainda errónea aquela ideia no que respeita ao processo por que se há-de operar a ressurreição. Esta não será efeito de simples causas naturais, antes será obra directa de Deus, realizada fora das leis naturais, e constituirá portanto um milagre.
As dúvidas e objecções acima apontadas filiam-se, portanto, numa concepção simplista e naturalista da ressurreição, que não corresponde nem à natureza do corpo humano, nem à forma como a Revelação nos apresenta a promessa da ressurreição. Esta consideração seria suficiente para pôr de lado tais dúvidas e objecções, mas podemos insistir um pouco no problema, examinando-o na perspectiva que correctamente se pode inferir da Revelação.
Esta afirma-nos que o corpo ressuscitado será idêntico ao terreno, mas não nos elucida acerca da realidade em que há-de traduzir-se essa identidade, e os teólogos desde há muito vêm discutindo este problema, não no intuito de descobrirem aquilo que á um mistério, mas tão-somente no de tentar averiguar quais os aspectos racionais em que a solução desse mistério presumivelmente se há-de enquadrar.
Nem mesmo, porém, com este objectivo limitado os autores conseguiram chegar a acordo sobre a questão. Para alguns, a identidade do corpo ressuscitado com o terreno implicaria, pelo menos, a subsistência de uma parte mínima do corpo terreno ou a permanência dos princípios essenciais que lhe dão o ser. Outros, partindo do conhecimento de que a matéria do corpo vivo é essencialmente mutável e de que é a alma, forma do corpo, que lhe dá unidade e continuidade, entendem que, para a identidade do corpo terreno com o futuro, bastará (em todos os casos ou apenas em hipóteses excepcionais, segundo as opiniões) que a alma do ressuscitado seja a mesma que a do vivo, visto ser corpo de uma pessoa precisamente aquele conjunto de matéria que em cada momento é enformado pela alma (118).
Não nos cumpre, evidentemente, entrar na discussão deste problema, mas apenas chamar a atenção para o facto de os próprios termos em que ele se acha formulado e os elementos de que se dispõe para o resolver ser suficiente para afastar as dúvidas e objecções baseadas no simplismo naturalista.
Desde que a Revelação ensina que o corpo futuro será o mesmo que o terreno, embora transformado, parece natural admitir-se que os elementos componentes dos corpos mortos que ainda subsistam com a impressão da «forma» venham a entrar na composição do corpo futuro. Sabe-se também que a matéria do corpo vivo está em constante renovação e que a unidade e identidade lhe é assegurada pela forma que no homem é a alma imortal.
Por outro lado, resulta da Revelação que o corpo futuro, conquanto seja específica e numericamente idêntico ao terreno, não será igual a ele, antes possuirá atributos especiais e, tratando-se do corpo dos bem-aventurados, não haverá nele as deficiências e limitações de que porventura haja padecido em vida o corpo ressuscitará com tudo o que é exigido não só pela natureza, mas também pelo decoro e perfeição do homem (119). Tudo isto nos demonstra que a identidade do corpo não exige toda a matéria do corpo terreno, tal como em alguns casos, não se poderá contentar com essa matéria.
Mas, querendo-se levar mais longe estas considerações, ainda poderemos acrescentar àqueles aspectos, geralmente considerados pelos autores, um outro que nos é sugerido pelos conhecimentos modernos.
Na verdade, não parece descabido observar-se que a unidade e permanência do corpo humano, decerto resultante do influxo da alma que é a forma substancial do homem, se opera mediante um fenómeno a que poderemos chamar a autogeração do corpo. As células do organismo resultam todas de sucessivas multiplicações a partir do ovo, e descendem todas deste; por isso, ou sejam células persistentes ou derivem de outras, inserem-se sempre nessa linhagem que, não apenas pelo aspecto da forma, mas também pelo da matéria, lhes assegura unidade e identidade através do tempo. Por seu lado, a matéria constitutiva dessas células e, bem assim, a matéria que as circunda fazem parte do corpo, porque são elaboradas e por assim dizer vivificadas pelas mesmas células, e por isso, em certa medida, sempre se podem considerar descendentes do corpo, ainda que este as capte do exterior. A matéria do corpo muda constantemente, mas não por efeito de mera substituição mecânica, como as peças partidas de um relógio são substituídas por outras directamente provindas do exterior e simplesmente justapostas às demais o corpo gera-se continuamente a si mesmo a partir da primeira célula, e esta, por seu lado, provém de outras fornecidas pelos pais, facto que estende a linhagem de que falámos até aos primeiros progenitores da humanidade e fundamenta a unidade de todo o género humano.
Esta realidade permite-nos formular a hipótese de que também na ressurreição as coisas se passem por modo semelhante para que o corpo futuro seja idêntico ao terreno seria necessário, mas também plenamente suficiente, que a matéria dele constitutiva se inserisse nessa autogeração. Sem isso, quebrar-se-ia a cadeia ininterrupta desde os primeiros pais, na qual assenta - e este ponto tem especial interesse teológico - o parentesco de sangue com Cristo. Mas não seria necessário mais do que uma pequena partícula do corpo terreno, pois se, pelo poder de Deus, lhe fosse dada a possibilidade de se multiplicar e reintegrar o corpo em obediência à forma substancial, em termos de toda a restante matéria descender dela, o corpo ressuscitado seria em conjunto o mesmo corpo, tão real e verdadeiramente, como na vida terrena é sempre o mesmo corpo aquela matéria que pela autogeração sucessivamente vai constituindo o composto humano através do tempo. E essa identidade fundada na identidade da alma e na autogeração da matéria por ela enformada seria tão efectiva naqueles cujos corpos tivessem subsistido relativamente intactos como naqueles cujas cinzas se achassem dispersas, visto que os elemen-(...)

(118) Sobre este problema veja-se Schimaus, ob. cit., vol. VII, p. 281 e seguintes, e L. Ciappi, La risurresions dei moris secondo la dottrina cattolica, in Christus Viclor Mortis, de J. Alfaro e outros, Libreria Editrice dell'Università Gregoriana, Roma, 1958, p. 14 e seguintes.
(119) Cf. o Catecismo Romano, na tradução espanhola de Pedro Martin Hernandez, edição da Biblioteca de Autores Crístianos, Madrid, 1956, p. 274.

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(...)tos de identificação seriam para estes tão permanentes como para os primeiros.
Seja como for, o certo é que o pouco que a Revelação nos dá a conhecer acerca do corpo ressuscitado, e os próprios termos do problema teológico suscitado a esse respeito, nos garantem a certeza de que a ressurreição não se há-de operar pela simples reunião e reanimação de toda a matéria (em muitos casos superabundante e deficiente em outros) que tenha constituído o corpo terreno. Tanto basta para repudiar as dúvidas e objecções acima formuladas e oriundas de uma concepção simplista e naturalista da ressurreição inteiramente infundada.
Outro aspecto há, porém, como se disse - e este muito mais seguro e importante -, que nos leva a rejeitar essa concepção como profundamente errónea Seja qual for a composição do corpo futuro, a ressurreição nunca resultará de causas naturais, mesmo que a matéria do corpo terreno seja, no todo ou em parte, aproveitada para o ressuscitado e ainda que intervenham na ressurreição processos semelhantes aos naturais (como seria o da autogeração dos elementos da matéria viva, uns a partir dos outros, na hipótese formulada), a ressurreição seria sempre obra directa, ao Deus A alma dos mortos encontra-se privada do poder de congregar e animar a matéria (nisto consiste, afinal, a morte) e só Deus lhe pode restituir tal poder. E é evidente que a Providência omnipotente poderá suprir todas as deficiências da matéria como terá de acontecer em relação às limitações e deformações congénitas de que o corpo terreno porventura tenha padecido.
A destruição do corpo é a dura lei da morte, seja qual for o modo por que ela se opera e ainda que envolva a confusão da respectiva matéria com a de outros corpos. Nada disso prejudica a ressurreição, todavia, e por esse motivo não pode inferir-se desta qualquer argumento contra a colheita de tecidos e órgãos de cadáveres para fins terapêuticos, nem qualquer razão de escrúpulo moral em relação a essa prática. Os mortos não têm direito à conservação do corpo, e a destruição deste, seja qual for o modo como se efectiva, não os priva de alcançarem a promessa da ressurreição.

29. APRECIAÇÃO DOS FINS PROPOSTOS PERANTE os FINS INTRÍNSECOS DE OUTRAS PESSOAS - Continuando a abstrair, por agora, dos problemas relacionados com a urgência da colheita, importa averiguar-se se o aproveitamento do cadáver para fins terapêuticos e de investigação científica ofende por algum modo os fins intrínsecos de outras pessoas.
Este problema pode apresentar-se em relação aos fins do culto religioso, aos fins do próprio beneficiário, do aproveitamento de órgãos e tecidos do cadáver, aos da comunidade em geral e, finalmente, dos familiares do falecido.
Quanto aos primeiros - os fins relativos ao culto - não parece possível descobrir-se qualquer incompatibilidade com os fins terapêuticos e de investigação científica. Somente poderá verificar-se alguma sobreposição, no tempo, das intervenções necessárias com os actos de culto, mas isso não passará de mera dificuldade material, fácil de se remover na prática.
No tocante ao beneficiário dos enxertos de tecidos ou órgãos do cadáver, é óbvio que, destinando-se tal operação a salvar-lhe a vida ou a restaurar-lhe a saúde, em princípio ela é perfeitamente conforme com os seus fins intrínsecos.
Mas não poderá essa operação ofender a dignidade e decoro do beneficiário?
Relativamente a generalidade das aplicações dos tecidos e órgãos colhidos a que visa o projecto, é manifesto não haver qualquer razão para recear essa ofensa nada pode ver-se de indigno ou indecoroso na transplantação da córnea, no enxerto de pele para tratamento dos grandes queimados, no enxerto de ossos ou vasos, etc.
Teoricamente, porém, poderá admitir-se que surjam aplicações contrárias à dignidade e ao decoro das pessoas, e talvez não apenas do beneficiário, mas também do falecido. Talvez se pudesse encarar, por esta forma, por exemplo, a transplantação de órgãos sexuais para, no corpo vivo, desempenharem função endócrina. Já se tem tentado essa operação com órgãos de animais, prática condenável moralmente, como Pio XII reafirmou no citado discurso de 18 de Maio de 1956 (120), e nem sequer é desconhecida a transplantação desses órgãos de um homem vivo para outro é frequente citar-se em livros italianos o caso de um indivíduo, internado num hospital de Nápoles, ter vendido um testículo por 10 000 liras, para ser enxertado noutro (121).
O enxerto de órgãos sexuais de cadáveres seria, a nosso ver, e em princípio, contrário à dignidade e decoro das pessoas, seja pela colocação anormal e pela função meramente endócrina a que ficariam sujeitos, seja, acima de tudo, pela influência ou desvio da personalidade que, possivelmente, resultaria dessa mesma acção endócrina.
Não parece, contudo, necessário preverem-se estes casos em especial. Quando muito se justificará um princípio maleável pelo qual sejam proibidas as aplicações de tecidos ou órgãos de cadáveres quando contrárias aos bons costumes.
No que respeita à comunidade, já vimos que devem considerar-se intrínsecos e dignos de protecção os fins terapêuticos, bem como os de investigação científica destinada ao aperfeiçoamento da medicina. A forma de os pôr em prática, porém, pode prejudicar certas condições gerais da vida social, tais como a segurança das pessoas, o decoro e respeito devidos ao cadáver e a ordem e tranquilidade pública, verificar-se-ia o último aspecto se, por exemplo, se tornasse frequente a «corrida» aos cadáveres, ou se criasse a possibilidade de estes serem reclamados directamente às famílias, em termos de estas ficarem à mercê de censuras públicas se os recusassem - pense-se, por exemplo, na perturbação a que se daria lugar se a voz pública ou até os exploradores de escândalos viessem apontar um pobre cego, propagando que ele poderia estar curado se tal ou tal pessoa ou família não houvesse impedido a colheita, em determinado cadáver, da córnea necessária para o libertar da cegueira. Este problema não apresenta, no entanto, verdadeira autonomia, pois assenta em preocupações que simplesmente devem reflectir-se no regime do aproveitamento de tecidos e órgãos cadavéricos, e que, por isso, melhor se considerarão no exame da especialidade.
O problema mais importante que pode suscitar-se a este respeito é o da averiguação da morte, mas esse ponto respeita propriamente à urgência da colheita e será ao referirmo-nos a esta que o teremos de considerar em especial. Resta-nos, portanto, o problema da compatibilidade dos fins propostos com os fins intrínsecos da família do falecido.
Já pusemos em evidência como é antiga e profunda a tendência para respeitar e venerar o cadáver, e mostrámos, até, o fundamento teológico que, a essa inclinação, atribui (...)

(120) Lugar citado, p. 18.
(121) Cf., por exemplo, Francesco Ferrara, Diritto delle Persone e di Famiglia, p. 101.

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alto significado moral e religioso. E, ao versarmos a matéria dos direitos comummente reconhecidos a respeito do cadáver, dissemos que, de entre eles, avultam os que derivam da piedade familiar.
Fácil é ver-se, perante a doutrina exposta acerca desses pontos, como a colheita de tecidos e órgãos de cadáveres pode ser dolorosa e atentatória dessa piedade dedicada aos mortos. É manifesto que a presença e a integridade do cadáver como que atenua a dureza da separação causada pela morte, e como os desvelos e cuidados observados para com ele constituem lenitivo para o sofrimento dos familiares e amigos. Evidente é também, por isso mesmo, que as intervenções necessárias à técnica dos enxertos podem ferir intensamente os sentimentos da família e a piedade por ela devida, por direito natural, ao falecido.
É certo que, segundo consta, muitas vezes as famílias aceitam de boa mente a necessidade de autópsias, mesmo quando determinadas pela mera declaração, por parte dos médicos, de ser desconhecida a causa da morte, e é certo, igualmente, que em geral não causa perturbação o emprego de substâncias, como a cal, destinadas a apressar a consumpção do cadáver. Por esse motivo se pode perguntar-se a reacção, muitas vezes verificada contra os enxertos, não resultará, acima de tudo, da ideia de que outras pessoas irão beneficiar com o corpo do falecido, e se tal reacção não exprimirá, portanto, sentimentos algo próximos da inveja.
Não pode deixar-se, porém, de reconhecer que a ideia de que a morte era aguardada por estranhos para se apoderarem do cadáver e se aproveitarem dele, envolve qualquer coisa de chocante e é por isso susceptível de ferir os sentimentos da família. E, em qualquer caso, esta sempre há-de ver a mutilação do cadáver como uma violência exteriormente oposta aos cuidados de que ela o rodeia, e sempre há-de ver nela uma prova palpável da morte, susceptível de lhe agravar o natural desgosto.
Sem embargo, visto que o morto não sofre realmente nenhum mal e que é dever de caridade e de justiça contribuir para o bem dos outros homens, parece adequado pedir-se à família um sacrifício, decerto doloroso, mas justificado por fins nobres e elevados. Do ponto de vista sentimental, o fim terapêutico é, sem dúvida, muito mais valioso do que o das autópsias forenses, por exemplo, e esse facto constitui mais uma razão forte para os familiares, ainda que dolorosamente, aceitem o aproveitamento do cadáver para esse fim.
Pio XII, no discurso já muitas vezes citado, adverte que o assentimento dado à colheita de córneas «... pode, apesar de tudo, comportar para os próximos parentes um sofrimento e um sacrifício», mas que «esse sacrifício é aureolado pela caridade misericordiosa para com os nossos irmãos que sofrem» (122).
O dano causado na ordem moral da família pode ser, pois, um mal efectivo. Mas não parece suficiente para se rejeitar o aproveitamento do cadáver, e apenas impõe, além da necessária prudência e delicadeza nas intervenções, a regulamentação cuidadosa deste aproveitamento, em termos de evitar todos os abusos e de assegurar, quanto possível, a livre expansão dos sentimentos familiares e, por conseguinte, a justa coordenação com os direitos da família.
Em geral, deve concluir-se não haver qualquer oposição entre os fins terapêuticos e de investigação científica e os fins intrínsecos de pessoas diversas do falecido. O que pode verificar-se é o entrechoque de sentimentos legítimos e portanto um certo conflito prático com os direitos de outras pessoas, particularmente os parentes próximos, direitos com os quais o aproveitamento do cadáver tem de ser coordenado e conciliado.

30. PROBLEMAS ESPECÍFICOS RESULTANTES DE A COLHEITA DE TECIDOS E ÓRGÃOS TER DE RECAIR NOS CADÁVERES DE PESSOAS RECÉM-FALECIDAS - Já acima observámos que a especialidade do projecto em exame que lhe confere unidade e autonomia reside na circunstância de a colheita de tecidos e órgãos nele prevista haver de ser feita antes de se verificarem as alterações provenientes da autólise e, por conseguinte, antes de decorrido o prazo de garantia contra a morte aparente.
Esta urgência da colheita suscita, por um lado, problemas relativos a verificação da morte e, por outro, é susceptível de dar colorido especial a alguns problemas relacionados com o aproveitamento do cadáver.
No que se refere ao primeiro ponto, é sabido que a experiência, consagrada pela lei, tem demonstrado a necessidade de fazer mediar entre a morte e a inumação ou a autópsia um prazo suficiente para se prevenir a hipótese de o falecimento ser aparente, prazo esse em geral fixado nas 24 horas.
Parece-nos fora de dúvida ser absoluta e radicalmente ilícita a colheita de tecidos ou órgãos no corpo de uma pessoa sem a prévia certeza de que esta está morta. Tal prática, envolvendo o risco de se mutilar uma pessoa viva ou de lhe causar ou apressar a morte, constituiria gravíssima falta moral e verdadeiro crime, quer se procedesse a colheita na convicção de que essa pessoa poderia estar viva, e aceitando-se com indiferença essa hipótese (dolo eventual), quer se procedesse temerariamente na esperança de não se verificar tal hipótese, admitida como possível (culpa consciente).
Mas, segundo consta, há processos técnicos suficientemente seguros de se verificar a morte e, no pressuposto de que assim é e de que tais processos são efectivamente usados, não temos motivo para condenar a colheita efectuada antes do prazo de garantia contra a morte aparente.
Pio XII salienta, precisamente, que um dos deveres dos poderes públicos consiste em velarem para evitar que um cadáver seja considerado e tratado como tal antes de se tomarem as providências necessárias para se verificar a morte (123).
As operações adequadas a este fim têm natureza estritamente técnica, e o próprio projecto se limita a estabelecer que a morte será verificada obrigatoriamente por dois médicos e segundo as regras da semiologia médico-legal que vierem a ser definidas, ouvidos os departamentos oficiais competentes e a Ordem dos Médicos, em portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e da Saúde e Assistência (artigo 6º e § único).
Não é por isso nem adequado, nem necessário, versar-se aqui esse assunto. Mas importa deixar-se bem vincado que a colheita deverá considerar-se absolutamente ilícita se não houver processos técnicos de se verificar a morte com segurança e se eles não forem efectivamente usados.
No tocante à possibilidade de a urgência da colheita de órgãos ou tecidos interferir com os fins a que, em geral, o cadáver está afecto, parece-nos que os únicos problemas que podem suscitar-se com acuidade são os que dizem respeito à piedade familiar e, em certa medida, a ordem e tranquilidade pública.
Todas as intervenções em cadáveres, não pertinentes os honras e ao culto fúnebre, são susceptíveis de ferir os (...)

(122) Lugar citado, p. 25.
(123) Lugar citado, p. 25.

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sentimentos da família e até da sociedade a que pertenceu o falecido, as colheitas de órgãos e tecidos destinados a enxertos, precisamente porque urgentes, apresentam a gravidade especial de terem de ser efectuadas nos momentos seguintes à morte, em que é mais intenso o abalo causado por esta e mais viva e dolorosa a mágoa dos familiares e a ideia de que, mal se verifica a morte, logo há estranhos para se aproveitarem do cadáver, em benefício próprio ou alheio, forma com aquela mágoa um contraste doloroso e chocante, capaz de a agravar. A este sentimento pode acrescer o receio, se não - ai deles! - a esperança por parte dos familiares, de que o corpo que se pretende sujeitar à colheita ainda esteja vivo, e a própria sociedade pode sentir-se, por tudo isto, escandalizada e perturbada com a intervenção destinada à colheita.
A verdade é, todavia, que estas circunstâncias não mudam a natureza do sacrifício imposto aos familiares - sacrifício real, decerto, e fundado em sentimentos louváveis, mas muito inferior aos males que se pretende evitar com os enxertos e, em qualquer caso, exigido pelo bem comum e pelo dever de caridade para com o próximo.
Não deve desconhecer-se, no entanto, a especialidade e importância dos aspectos postos em evidência, pois eles podem influir, até, nos pormenores da regulamentação. É óbvio, por exemplo, que as perturbações referidas podem ser mais ou menos intensas segundo o local da operação (a perturbação será manifestamente superior se ela for efectuada numa casa particular, em plena intimidade da família) e, conforme a natureza respectiva, há tecidos cuja colheita implica um aparato exterior susceptível de tornar a intervenção mais chocante do que em outros casos.
À parte estes aspectos, não nos parece, porém, que a urgência da recolha envolva problemas capazes de tornarem a colheita reprovável em si mesma.

31. ESTRUTURAÇÃO DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS FUNDAMENTAIS, RELATIVAS AO APROVEITAMENTO DE CADÁVERES PARA OS FINS PROPOSTOS - Como tivemos ocasião de dizer, a licitude ou ilicitude do aproveitamento dos cadáveres depende estritamente dos fins que se têm em vista, além disso, também acentuámos que os direitos relativos aos cadáveres estão sujeitos ao princípio da especificidade, ou seja, só podem ser reconhecidos na estrita medida dos fins especiais para que são atribuídos. Destes aspectos resulta necessariamente que a estruturação das situações jurídicas respeitantes aquele aproveitamento tem de ser norteada pela distinção dos fins com os quais este pode ter relações.
E, como se mostrou, os fins em causa podem prender-se directamente com o próprio aproveitamento ou constituir outras finalidades que devem ser coordenadas com ele. Esta distinção nos servirá, portanto, de base para a estruturação que pretendemos fazer.
O aproveitamento de cadáveres justifica-se, como deixámos dito, pelas necessidades do tratamento de doentes, necessidades que podem ser directas ou indirectas, conforme o fim em causa for um objectivo terapêutico ou a investigação científica. A satisfação dessa necessidade constitui exigência do bem comum, por força da equidade e da justiça legal, e ainda exigência dos deveres de caridade e de justiça de cada membro da comunidade para com os seus semelhantes.
Os direitos relativos ao aproveitamento do cadáver têm, por isso, como todos os outros que incidem sobre este, natureza comunitária e emergem de uma exigência do bem comum que se dirige a todos os membros da comunidade em geral, mas não a qualquer deles em particular.
Daqui resulta que, por parte da comunidade, pode falar-se num direito ao aproveitamento dos cadáveres. Mas, por parte dos membros da sociedade, tomados individualmente, não corresponde a esse direito uma obrigação especial propriamente dita a necessidade que aquele direito se destina a satisfazer é apenas a necessidade de algumas pessoas, vista pelo prisma do bem comum, para a qual basta a utilização de alguns cadáveres, sem particular determinação destes, e todos estes aspectos conduzem à conclusão de que o direito da comunidade ao aproveitamento tem como contrapartida um daqueles deveres comuns dos membros da comunidade, não especialmente encabeçado em qualquer deles. Não implica, por conseguinte, uma relação jurídica concreta com qualquer pessoa determinada.
Neste mesmo sentido se pronunciou Pio XII, ao afirmar, acerca da colheita de córneas, que «a não ser que as circunstâncias imponham uma obrigação, é preciso respeitar a liberdade dos interessados» e que, «habitualmente, o caso não se apresentará como um dever ou um auto de unidade obrigatório» (124).
Desse dever comum sem sujeito individualizado resultará, para cada membro da sociedade, por um lado o direito de dispor do seu próprio corpo para cumprimento de tal dever, e, por outro lado, o direito de obstar, por decisão própria, que o seu corpo seja objecto de aproveitamento, visto que só reconhecendo-se relevância a essa decisão se poderá respeitar a liberdade e espontaneidade do cumprimento do dever em causa.
Para além do próprio indivíduo cujo corpo se pretende utilizar, nenhuma pessoa, como particular, se poderá arrogar o poder de dispor dele. Não nos parece que, a título particular, se possa reconhecer aos médicos a faculdade de utilizarem livremente os corpos de pessoas falecidas, e nem mesmo à família deve reconhecer-se tal poder - o fundamento da utilização de cadáveres reside no bem comum e no correlativo dever geral sem sujeito individualizado, e por esse motivo o direito de dispor de um corpo concreto só pode pertencer à própria comunidade (em princípio sujeita à necessidade de oferta espontânea) e à própria pessoa a quem pertence esse corpo.
Das palavras de Pio XII, há pouco transcritas, infere-se, todavia, a possibilidade de se apresentarem circunstâncias que imponham a obrigação de se suportar o aproveitamento do cadáver. É esse, aliás, um fenómeno observável a respeito de todos os deveres comuns não encabeçados em indivíduos determinados e que dá lugar àquelas requisições de pessoas ou de coisas a que, de um modo geral, se pode dar o nome de mobilização.
Relativamente ao aproveitamento do cadáver poderia justificar-se a mobilização, por exemplo, por efeito de uma grande calamidade pública que exigisse apreciável quantidade de sangue ou de pele, e ainda em consequência do facto de todos os membros da sociedade se recusarem sistematicamente a prestar o seu corpo para a satisfação das necessidades comuns.
Temo-nos referido às situações individuais que podem corresponder à exigência do bem comum no tocante ao aproveitamento de cadáveres, mas o problema deve encarar-se também pelo aspecto das pessoas que hão-de beneficiar com esse aproveitamento.
O fundamento desse benefício é, também aqui, o bem comum e as correlativas exigências da caridade e da justiça legal. Mas, assim como o dever de prover a esse bem comum não tem sujeito individualizado, assim também parece não serem de reconhecer-se direitos concretos àquele benefício. Basta pensar-se em que, sendo esse benefício limitado às necessidades e às possibilidades (...)

(124) Citado discurso de 13 de Maio de 1956, no lugar referido, p. 24.

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comuns, e devendo em principio confiar-se a satisfação das primeiras à oferta espontânea, nunca poderia garantir-se aquele benefício como direito individual, e este ponto de vista é válido mesmo nas hipóteses excepcionais de obrigatoriedade, pois nestas haveria que coordenar-se, sempre, o aproveitamento com outros fins intrínsecos do falecido e de outras pessoas, coordenação que suscitaria problemas de acuidade muito particular nesses casos de obrigatoriedade.
A situação dos eventuais beneficiários deve enquadrar-se, portanto, na figura dos interesses legítimos em conjunto, os possíveis beneficiários devem ter as garantias legais e técnicas suficientes para satisfazer as respectivas necessidades de tratamento ou de investigação, mas cada um não terá o direito de reclamar um cadáver ou uma parte dele, como coisa devida, antes deve ficar subordinado à coordenação geral das necessidades e possibilidades da comunidade em tal matéria.
Em resumo, o aproveitamento dos cadáveres implica uma exigência por parte da comunidade que se traduz para esta num direito e num dever o de reclamar dos seus membros os meios necessários para satisfazer essa exigência e de os coordenar pela forma mais equitativa e eficaz.
Relativamente aos membros da comunidade essa exigência traduz-se, por uma parte, num dever comum não especialmente encabeçado em ninguém, donde provém, para cada indivíduo, o direito de dispor do seu corpo ou de o recusar à utilização reclamada pelo bem comum, excepcionalmente, poderá impor-se, a título de mobilização, o dever de suportar o aproveitamento do respectivo cadáver. Foi outra parte, aos eventuais beneficiários da utilização não deve reconhecer-se um direito concreto, mas sim um interesse legítimo que igualmente deve ser assegurado pela forma mais eficaz e equitativa.
Ao lado destas várias situações poderão surgir outras, dependentes de fins intrínsecos diversos dos propostos o que devem ser coordenados com eles.
Já examinámos esses fins nos n.ºs 29 e 30, e é pela doutrina aí exposta que nos havemos de orientar para determinar as possíveis situações emergentes de tais finalidades.
Assim, vimos que por parte do falecido e até do beneficiário podem verificar-se exigências de dignidade e decoro pessoal que corresponderão, por parte daquele, a limites impostos a disposição do cadáver, e, por parte deste, a limitações do aproveitamento.
Relativamente à comunidade, devem recordar-se, antes de mais, as exigências de segurança das pessoas e do respeito do cadáver. Delas resultarão, acima de tudo, deveres dos Poderes Públicos no que se refere à regulamentação e fiscalização dos aproveitamentos e, muito em especial, à verificação segura da morte.
No tocante à comunidade familiar, vimos que ela é titular de um direito próprio a satisfazer as exigências da piedade familiar.
Deste direito decorre, em primeiro lugar, o direito à existência e ao cumprimento de normas que, quanto possível, respeitem essa piedade e a conciliem com os fins da utilização do cadáver.
Outro corolário do direito à satisfação da piedade familiar deve ser o de a família se opor ao aproveitamento do cadáver. A este respeito ensina Pio XII «A extracção da córnea, mesmo perfeitamente licita em si, pode também tornar-se ilícita e violar os direitos e sentimentos daqueles a quem cabe cuidar do cadáver, os parentes mais próximos em primeiro lugar, mas pode-se tratar também de outras pessoas em virtude de direitos públicos ou privados. Não seria humano, para servir os interesses da medicina ou «fins terapêuticos», ignorar sentimentos tão profundos. Em geral, não deveria ser permitido aos médicos
empreender extirpações ou outras intervenções sobre um cadáver sem o assentimento daqueles que estão encarregados dele e talvez mesmo sem respeito por objecções formuladas anteriormente pelo interessado» (125).
Nesta ordem de ideias, entendemos que deve reconhecer-se a faculdade de recusar o aproveitamento pelo menos à família do defunto.
Vimos que a família não tem fundamento para, por si, oferecer o cadáver para aproveitamento, em razão de este se fundar num dever não individualizado, cujo cumprimento deve em princípio ser espontâneo e só pode ser reclamado pela comunidade, em nome do bem comum, mas a família é titular de um direito próprio, que tem por objecto a satisfação da piedade devida aos defuntos, e esse direito constitui título suficiente para ela se poder opor à utilização.
Problema mais delicado e duvidoso é o de se saber se esse direito da família poderá prevalecer contra a vontade do falecido. Em princípio, tratando-se de um direito próprio da comunidade familiar, poderia admitir-se a necessidade de também esta consentir na utilização do cadáver, pelo menos tacitamente - o artigo 244 º do Código do Registo Civil, por exemplo, estabelece um regime para a incineração de cadáveres que, praticamente, implica a necessidade de disposição do falecido e do consentimento da família. Atendendo-se, porém, a que a oferta do corpo próprio para fins terapêuticos ou de investigação constitui um acto louvável e se traduz não só no exercício de um direito, mas até no cumprimento de um dever, posto se trate de simples dever comum não individualizado, parece que, em princípio, a família se deve submeter à vontade do falecido. É preferível, pois, dar-se precedência ao direito de disposição do defunto sobre o direito da família, o que, aliás, é conforme à natureza destas situações jurídicas, como resulta, nomeadamente, da circunstância de, a respeito dos direitos inerentes a piedade familiar, também se fazer prevalecer o direito do cônjuge sobre o dos parentes, e, entre estes, o dos mais próximos sobre os mais remotos.
Finalmente, deve reconhecer-se a família legitimidade para velar pelo cumprimento das disposições legais relativas ao aproveitamento, e, em particular, à verificação da morte e as condições externas da colheita de tecidos e órgãos. Tanto a solidariedade familiar, como o direito próprio da família à satisfação da piedade devida ao defunto, são título bastante para aquela velar pelo cumprimento dessas disposições, em obediência a mesma orientação que, por exemplo, as leis adoptam a respeito da legitimidade para a constituição de assistentes em processo penal, aliás, a infracção às disposições reguladoras da colheita poderá revestir natureza criminal, o que acentua o paralelismo entre as duas matérias.

32. CONFORMIDADE GENÉRICA DO PROJECTO COM OS PRINCÍPIOS DEFENDIDOS - Expostos os fundamentos em que deve assentar a doutrina jurídica do cadáver e fixados os princípios que, em especial, devem observar-se acerca do aproveitamento do corpo de pessoas falecidas para fins terapêuticos ou científicos, está esta Câmara habilitada a formular um juízo genérico acerca do projecto de decreto-lei em exame, e é com aprazimento que pode reconhecer que esse diploma, em conjunto, se encontra em perfeita conformidade com a orientação atrás defendida.
O projecto começa por, no artigo 1.º, admitir a colheita de tecidos e órgãos cadavéricos para serem aplicados a fins que já mostrámos serem lícitos os fins terapêuticos e os (...)

(125) Discurso e lugar citado, p. 25.

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de investigação científica, o segundo dos quais, no entanto, parece ser considerado no projecto com certa hesitação e reserva.
Nos artigos 2.º a 4.º regulamenta-se a recolha no que respeita ao consentimento do falecido e da família e, conquanto se procure facilitar a obtenção de órgãos e tecidos e se queira providenciar sobre este assunto por forma adequada à urgência das intervenções para tal necessárias, pode sustentar-se que, em geral, se nota nestas disposições a preocupação de satisfazer cabalmente a todos os interesses em causa.
Nos artigos 5.º a 9.º fixam-se as condições técnicas e administrativas em que deve efectuar-se a colheita, e também neste ponto o projecto se mostra, nas linhas gerais, ponderado e prudente.
Finalmente, nos artigos seguintes, depois de se regulamentar a distribuição de tecidos e órgãos, proíbe-se qualquer remuneração ou indemnização pelo facto da recolha, define-se a responsabilidade pelos encargos de conservação dos tecidos e órgãos, prevê-se a responsabilidade penal por efeito das colheitas ilegais, permite-se ao Ministro da Saúde e Assistência autorizar o estabelecimento de bancos de olhos e outros órgãos por entidades públicas ou particulares, e, por fim, determina-se a data de entrada em vigor do diploma projectado.
Vistas em conjunto, as disposições deste revelam claramente a preocupação de introduzir entre nós os novos aproveitamentos do cadáver com a necessária prudência, bem como respeitar os vários fins que por eles podem ser postos em causa. E em alguns aspectos o projecto opta por soluções mitigadas, como se infere das restrições que, aliás com alguma contradição, se fazem a respeito do fim de investigação científica, assim como da proibição de qualquer indemnização pela colheita de órgãos ou tecidos, a qual, como se pode concluir do autorizado ensinamento de Pio XII, não é de rejeitar in limine, e constitui, pelo menos, uma questão moral ainda em aberto (126).
É claro que em diversos pontos a doutrina do projecto merece reparos ou necessita de ser esclarecida, mas esse aspecto pertence ao exame na especialidade. Tomado na generalidade, o projecto mostra-se, segundo cremos, em harmonia com os princípios ditados pela justiça e pela prudência e merece portanto o franco aplauso da Câmara Corporativa.

II

Exame na especialidade

§ 1.º Observações prévias

33. SISTEMATIZAÇÃO DA PRESENTE PAUTE DO PARECER - Assente a conclusão de o projecto em exame ser, no conjunto, conforme aos princípios da moral e do direito, e de evidente conveniência social, cumpre examiná-lo agora em pormenor.
Pela leitura do respectivo articulado verifica-se, no entanto, haver nele diversos aspectos comuns, em relação aos quais é indispensável tomar-se previamente posição, sem o que não poderão apreciar-se, com a devida consciência, as soluções contidas em cada preceito em particular.
Por tal motivo dividiremos esta parte do parecer em dois parágrafos distintos o primeiro será consagrado exactamente ao exame daqueles aspectos comuns, que são, afinal, alguns dos mais importantes e que dominam todo o diploma projectado, em outro parágrafo, consideraremos em pormenor cada uma das disposições ou dos grupos de preceitos em que se desdobra o projecto.

34. ELEMENTOS UTILIZADOS NESTE ESTUDO - No decorrer do exame na especialidade teremos de, por diversas vezes, invocar alguns documentos que serviram de fonte ou foram considerados na elaboração do projecto, mas que, por serem inéditos, não podem individualizar-se e citar-se com a precisão usual.
Por esse motivo convém registá-los aqui em termos genéricos.
Antes de mais, devem mencionar-se os documentos fornecidos pelo Ministério da Saúde e Assistência a esta Câmara. De entre eles merece referência particular um articulado relativo ao tema deste parecer, donde julgamos ter sido extraída a versão definitiva do projecto. Sobre esse texto, a que por convenção daremos o nome de «anteprojecto», foram ouvidas diversas entidades (Ministério da Justiça, Faculdades de Medicina, órgãos de coordenação da assistência, hospitais, etc.), e pelos respectivos pareceres e informações, acompanhados da correspondência a respeito deles trocada por essas entidades com o Gabinete do Ministro da Saúde e Assistência - peças também enviadas a esta Câmara -, pode seguir-se em muitos pontos a génese do projecto definitivo. Elementos importantes foram também cedidos ao relator pela Direcção-Geral de Saúde. Devem citar-se, em especial, um douto parecer da Faculdade de Medicina do Porto, datado de 15 de Abril de 1959 (do qual consta, nomeadamente, um articulado de bases sobre a colheita e aproveitamento de tecidos e órgãos), e um conjunto de bases elaboradas por aquela Direcção-Geral, postas em confronto com a redacção que para elas foi sugerida pelo serviço do contencioso do Ministério da Saúde e Assistência e com o texto definitivamente proposto pela mesma Direcção-Geral de Saúde. A estes elementos, de muito interesse para o nosso objectivo, chamaremos genericamente «bases».
Deve aludir-se, finalmente, a um conjunto de valiosas informações obtidas através dos ilustres Prof. Doutor Jorge Horta, antigo bastonário e representante da Ordem dos Médicos nesta Câmara, e Arsénio Nunes, director do Instituto de Medicina Legal de Lisboa.
Todos estes elementos foram de relevante utilidade e é de inteira justiça salientar-se o contributo que forneceram para o exame do projecto na especialidade.

§ 2.º Aspectos comuns

35. FINALIDADES ADMITIDAS PARA A COLHEITA DE TECIDOS E ÓRGÃOS CADAVÉRICOS - O projecto que, como fica dito, tem em vista apenas as intervenções em cadáveres de pessoas recém-falecidas, prevê a colheita de órgãos e tecidos com dupla finalidade a terapêutica e a de investigação cientifica. Refere-se, todavia, a esta última em termos de suscitar dúvidas e de tornar necessário definir-se um critério firme antes de se iniciar o exame das respectivas disposições em particular.
Na verdade, o artigo 1.º permite a colheita de órgãos e tecidos que forem considerados necessários para fins terapêuticos ou de investigação científica ligada às técnicas de enxerto de tecidos humanos. Logo o § 2.º do mesmo artigo alude, porém, a colheitas destinadas a fins de investigação cientifica sem qualquer restrição, no caso de morte devida a doença infecto-contagiosa, e, sendo certo que em tal hipótese os tecidos não podem, pelo menos em princípio, ser usados em enxertos, não há dúvida de que esse pre-(...)

(126) Discurso e lugar citados, p. 24.

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(...)certo se refere à investigação em geral e não à respeitante às técnicas de enxerto. Por seu lado, o artigo 2.º prevê, também simplesmente, a investigação como objectivo da colheita, em absoluto contraste com o artigo 8.º, que, provendo à hipótese de não ter havido autorização para a recolha, por parte de pessoas falecidas em clínicas e institutos universitários, nas instalações não particulares dos hospitais ou em quaisquer estabelecimentos oficiais de assistência, permite a colheita de tecidos ou órgãos, nas condições aí fixadas, apenas para fins terapêuticos.
O contraste verificado entre os artigos 2.º e 3.º, observável já no anteprojecto, deve ser intencional e representa a orientação de restringir as colheitas destinadas a fins científicos aos casos em que o próprio falecido as tenha autorizado.
Diversa parece ser a significação das outras divergências apontadas, nas quais não pode deixar de ver-se certa contradição. Assim, o § 1.º do artigo 1.º exceptua do disposto no corpo desse artigo, para o efeito de as proibir, as colheitas de tecidos e órgãos quando a morte for devida, entre outras hipóteses, a doença infecto-contagiosa, e o § 2.º, como excepção a tal proibição, admite-a para fins de investigação científica, tratando-se, pois, de uma excepção à excepção, parece que o § 2.º pressupõe a regra de as colheitas serem permitidas para quaisquer fins de investigação. Pelo contrário, o corpo desse artigo 1.º admite-as apenas para fins de investigação relacionada com as técnicas de enxerto, e consagra portanto um princípio mais limitado, em regra, do que aquele que se acha implícito no § 2.º.
Consultando-se as fontes do projecto, verifica-se que, na realidade, esta contradição resulta de duas interpolações que, ditadas ambas pelo mesmo intuito - o de ressalvar as colheitas destinadas a fins de investigação -, em conjunto alteraram efectivamente o sentido literal daquele artigo 1.º
Na redacção primitiva, esta disposição referia-se genericamente a «colheitas ... de tecidos ou órgãos que forem considerados necessários para fins terapêuticos ou de investigação científica e que tenham de efectuar-se nas doze horas seguintes ao óbito», e o artigo continha apenas um § único, no qual se proibiam, como hoje no § 1.º, as colheitas no corpo de pessoas falecidas em certas circunstâncias, entre as quais se mencionava o caso das doenças infecto-contagiosas.
Apreciando esse anteprojecto, o Instituto Maternal transcreve o parecer do respectivo médico anátomo-patologista, no qual se fazem sérias reservas sobre as repercussões que ele poderia ter acerca da investigação científica de rotina, e sugeria, até, a introdução de um preceito destinado a obviar às deficiências por ele apontadas (ofício de 26 de Agosto de ]960, referência n.º 7360). O Gabinete do Ministro da Saúde e Assistência declarou, contudo, não ser possível tomarem-se em consideração essas sugestões «por se entender que as mesmas respeitam mais directamente ao diploma, neste momento em preparação, sobre a regulamentação das autópsias» (ofício n º 1819, de 16 de Setembro de 1960).
Outra sorte tiveram os reparos, feitos a respeito do mesmo assunto, das Faculdades de Medicina de Lisboa e do Porto.
A primeira, em parecer datado de 27 de Agosto de 1960, depois de apontar a escassez do lapso de doze horas subsequentes ao óbito, previsto nesse artigo 1.º, produz as considerações que a seguir se transcrevem.

Esta Faculdade lastima que, apesar de no artigo 1.º se fazer referência a fins de investigação científica, todo o projecto tenha sido elaborado no sentido da utilização dos tecidos dos cadáveres humanos para fins terapêuticos.
O artigo 8.º é uma prova desta animação. Por ele se exclui explicitamente a autópsia dos elementos de investigação possíveis ao abrigo do decreto em projecto. A investigação científica, a que se alude incidentalmente no artigo 1.º, pode carecer de autópsia integral antes de doze horas ou, pelo menos, da franca abertura de uma cavidade visceral ou da cavidade craniana.
A esta Faculdade parece, por isso, que o decreto, mesmo com menor número de pormenores, poderia ter uma projecção científica mais lata e servir a ambos os fins citados no corpo do artigo 1.º
É evidente que todos estes comentários, contidos em 4), deixam de ter significação se o artigo 1.º do decreto não fizer referência a fins de investigação científica ou explicitamente se referir a investigação ligada a técnica de enxertos de tecidos humanos.

Por seu lado, no parecer da Faculdade de Medicina do Porto, comunicado ao Gabinete do Ministro da Saúde e Assistência por ofício de 11 de Agosto de 1960, liv. 2-E, n.º 283/60, e elaborado pelo respectivo professor de Oftalmologia, o Prof. Doutor Manuel da Silva Pinto, lêem-se as seguintes considerações.

De acordo com a opinião da Faculdade, continuo convencido do alto interesse científico e didáctico da autópsia clínica, realizada durante o período das 24 horas que se seguem ao óbito dos indivíduos falecidos nos hospitais escolares, cujos cadáveres, pela força do imperativo da lei, não tenham que sofrer autópsias judiciais. Penso, por isso, que o presente diploma legal deveria conter disposições que cedo ou tarde tornassem possível a efectivação das mencionadas autópsias.

E, mais adiante, com referência ao § único do artigo 1.º do anteprojecto, diz-se:
Embora se justifique a proibição das colheitas nos outros casos referenciados, não se compreende a razão por que se proíbe essa colheita em cadáveres de pessoas falecidas por doença infecto-contagiosa.
Com efeito, se o material colhido, como sempre ou quase sempre há-de suceder, não serve para fins terapêuticos, pode tornar-se da mais alta importância para a investigação científica, prevista e consentida no corpo do mesmo artigo.
Como se depreende dos ofícios do Gabinete do Ministro da Saúde e Assistência, respectivamente n.ºs 1822/60 e 1824/60, ambos datados de 16 de Setembro de 1960, os sugestões das duas Faculdades foram atendidas na redacção definitiva do projecto a da primeira pela introdução no corpo do artigo 1.º do inciso «ligada às técnicas de enxerto de tecidos humanos» e a da segunda pela introdução do actual § 2.º do mesmo artigo 1.º
Acontece, todavia, que, tomadas em conjunto, as duas modificações foram contraproducentes. É óbvio que ambas as Faculdades tinham em vista ressalvar a colheita de tecidos e órgãos para fins científicos. Simplesmente, enquanto a Faculdade de Medicina do Porto sugeriu uma excepção directa, a respeito das doenças infecto-contagiosas, a de Lisboa propôs, em alternativa, ou a exclusão de qualquer referência a fins de investigação (evidente-(...)

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(...)mente no pressuposto de, não se mencionando estes, as colheitas feitas com esse objectivo continuarem permitidas nos termos do regime vigente) ou a menção restrita dos fins de investigação relacionados com as técnicas de enxertos, é manifesto que esta alternativa se inspirava sempre na intenção de colocar fora do âmbito do projecto as recolhas destinadas a fins de investigação geral.
No entanto, com a redacção definitiva, decalcada de sugestões assim movidas do mesmo propósito, mas formalmente orientadas em sentido diverso, deu-se lugar à incongruência acima apontada e que é necessário eliminar-se.
Para esse efeito duas orientações são possíveis ou não se regularem directamente no projecto as colheitas destinadas a fins de investigação, mas - para se evitar que, a contrario, se infira a proibição delas (visto as intervenções em cadáveres serem excepcionais e a regra consistir na defesa da respectiva integridade) - consignar-se no diploma projectado um preceito que ressalve, em geral, as recolhas de tecidos ou órgãos destinadas a fins não terapêuticos, dispondo-se que elas continuariam sujeitas ao regime vigente, ou - segunda solução - prever-se expressamente a colheita para fins científicos, mas
eliminando-se as contradições e dúvidas resultantes do projecto.
A primeira solução é manifestamente a mais fácil e prática, tanto mais quanto - como se observa no parecer da faculdade de Medicina de Lisboa -, não obstante as referências do artigo 1.º ao fim de investigação científica, todo o projecto é dominado pela ideia de os tecidos ou órgãos cadavéricos serem empregados para fins terapêuticos. Importa acentuar-se, todavia, que - ao contrário do que parece supor aquela Faculdade - não há, que saibamos, regime geral que admita a colheita de tecidos ou órgãos de cadáveres, especialmente no caso de pessoas recém-falecidas, para fins de investigação científica, pode haver práticas, mais ou menos consagradas pelo uso, ou até dotadas de força imperativa como normas consuetudinárias (e ignoramos se assim acontece), ou existirem, em alguns serviços, regulamentos internos que autorizem tais intervenções, como, no parecer do Instituto Maternal, se diz existirem nos Hospitais Civis de Lisboa, mas o que não conhecemos é a existência de leis gerais nesse sentido. A ressalva do regime vigente terá sempre alcance muito limitado, como se vê, a menos que se queira estendê-la - com certo risco de abusos e incertezas - a costumes observados pela clínica hospitalar.
A segunda solução - a de se abrangerem no diploma em estudo os fins científicos - tem a desvantagem de sujeitar a investigação a um sistema fundamentalmente idealizado para as aplicações terapêuticas e que, neste ou naquele pormenor, pode ser excessivamente lato ou restrito, quando apreciado a respeito de fins diversos. Contudo, considerando-se a importância dos fins científicos e o inconveniente de se perder esta oportunidade para eles serem consagrados pela lei, em termos directos e gerais, parece ser esta última a melhor solução.
Para ela se pôr em prática, porém, é necessário ajustarem-se formalmente alguns pormenores, como adiante se verá.

36. LOCAL DA COLHEITA - Outro ponto duvidoso do projecto respeita ao local onde pode efectuar-se a recolha de tecidos ou órgãos.
Na verdade, depois de, nos artigos 2.º a 4.º se regularem as condições de consentimento, distinguindo-se as hipóteses de haver ou de faltar o assentimento do falecido e, quanto a esta segunda, os casos de a morte ocorrer em
estabelecimentos oficiais (clínicas e institutos universitários, instalações não particulares de hospitais ou quaisquer estabelecimentos oficiais de assistência), ou em locais diversos, o projecto contém a seguinte disposição.

Art 5.º As colheitas só poderão efectuar-se nas clínicas ou institutos, universitários, hospitais e estabelecimentos de assistência que forem indicados em portaria do Ministério da Saúde e Assistência, sob parecer das direcções-gerais competentes.
§ 1.º Quando se tratar de clínicas ou institutos universitários, a portaria será publicada, conjuntamente, pelos Ministros da Educação Nacional e da Saúde e Assistência.
§ 2.º Enquanto se não encontrem em funcionamento os respectivos bancos de órgãos, compete aos directores das clínicas ou institutos universitários, aos directores clínicos dos hospitais ou aos chefes dos serviços clínicos dos estabelecimentos oficiais de assistência mandar afixar, em local público, a lista dos médicos autorizados a efectuar as colheitas.

Este regime é ainda confirmado e reforçado pelo artigo 6.º, pois nele se exige que o médico que proceder à colheita apresente previamente um certificado da verificação do óbito e o documento comprovativo do consentimento, quando necessário, ao director do serviço clínico onde vai realizar-se a recolha, o que não é compatível com a possibilidade de esta ter lugar fora de estabelecimentos hospitalares ou semelhantes.
Pelo contrário, o artigo 7.º do projecto estatui o seguinte:

Art. 7.º Quando houver consentimento, nos termos do § 1.º do artigo 2.º, ou quando se verificarem as condições estabelecidas nos artigos 3.º e 4.º e seja caso de realizar-se a colheita, esta poderá ser efectuada no domicílio do falecido ou em local ou estabelecimento diferente daquele em que ocorreu o óbito. Mas o médico só poderá efectuá-la depois de feitas as verificações estabelecidas no artigo anterior.

É manifesta a contradição dos dois preceitos e - o que é pior - não se deduz do projecto qualquer elemento susceptível de esclarecer o pensamento dos seus autores.
No anteprojecto, porém, onde na redacção actual se diz, na parte final do artigo 7.º «mas o médico só poderá efectuá-la (a colheita) depois de feitas as verificações estabelecidas no artigo anterior», dizia-se «mas o médico nunca poderá efectuá-la sem fazer a prévia verificação (sic) pelos meios ao seu alcance».
Esta redacção parecia ter em mente a hipótese de um clínico isolado, o que aliás é confirmado pela palavra «médico» usada em ambos os textos no singular, quando o artigo 6.º exige a verificação do óbito por dois médicos. A aceitar-se este entendimento, poderá admitir-se a hipótese de o artigo 7.º providenciar apenas sobre o caso de o falecimento ocorrer fora de estabelecimentos oficiais; e o regime menos rígido, nele consignado, poderia então explicar-se pelo desejo de facilitar ou, talvez melhor, de não entravar as colheitas permitidas pelo defunto ou pela família, quando o óbito não tenha lugar em estabelecimentos oficiais.
Esta hipótese é confirmada pelo exame das «bases» da Direcção-Geral de Saúde e do serviço de contencioso do Ministério da Saúde e Assistência que, como se disse no n.º 34 deste parecer, serviram de fonte ao anteprojecto e ao projecto. Com efeito os n.ºs 2.º a 7.º destas «bases» formavam um grupo de disposições claramente relativas a colheitas efectuadas em ou por estabelecimentos especia-(...)

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(...)lizados, e, nomeadamente, o n.º 5.º aludia expressamente às «colheitas a que se referem os artigos anteriores», os quais - se não directamente, pelo menos em razão de se enquadrarem naquele conjunto de preceitos - só providenciavam sobre aquela hipótese particular, pelo contrário, os n.ºs 8.º a 10.º tinham em vista os óbitos, ocorridos fora daqueles estabelecimentos, de pessoas que houvessem autorizado expressamente a recolha, e adaptavam até o regime dos artigos antecedentes às especialidades deste caso, visto conferirem a fiscalização respectiva aos delegados e subdelegados de saúde da área onde se efectuassem as intervenções. Logo na redacção subsequente das referidas «bases» se abriram, porém, algumas brechas no esquematismo do sistema o artigo 5.º, em vez de se limitar às colheitas referidas nos artigos anteriores, passou a falar genericamente nas colheitas «previstas neste diploma», e os n.ºs 8.º a 10.º foram transformados no artigo 7.º (correspondente ao actual), o qual - embora reportando-se, sempre, à morte fora de estabelecimentos especializados e à existência de consentimento expresso do falecido - já exigia a verificação do óbito, nos termos do diploma em estudo. Não há dúvida, pois, de que - não obstante algumas hesitações - as «bases» em causa circunscreviam, claramente, o âmbito dos artigos 6.º e 7.º
Não é isto, todavia, o que se passa com o projecto referindo-se o artigo 5.º a «colheitas», sem qualquer restrição, e providenciando o artigo 7.º não só sobre o caso de haver consentimento nos termos do § 1.º do artigo 2.º mas também de se verificarem as condições dos artigos 3.º e 4.º (a que é aplicável o artigo 5.º e compreende a hipótese de faltar o consentimento do defunto) e exigindo, por outra parte, a verificação do óbito efectuada nos termos do artigo 6.º, é óbvio que literalmente o âmbito dos artigos 5.º e 7.º é hoje precisamente o mesmo, e que esses preceitos se encontram, por conseguinte, em absoluta contradição.
Olhando-se ao fundo da questão, parece não poder pôr-se em dúvida que o regime preferível é o do artigo 5.º - o de as colheitas serem efectuadas em estabelecimentos apropriados. Dos pareceres das diversas entidades ouvidas pelo Ministério da Saúde e Assistência e, muito particularmente, dos elementos que nos foram fornecidos pelo Instituto de Medicina Legal de Lisboa, deduz-se que, do ponto de vista técnico, é essa a solução considerada ideal por todos, e, no tocante a maioria das especialidades (pele, ossos, etc.), considera-se até impraticável a colheita fora desses locais e, designadamente, a efectuada em domicílios particulares - a única que parece possível é a de globos oculares. Por outro lado, é óbvio que seria incompreensível sujeitarem-se ao regime rigorista dos artigos 5.º e 6.º as colheitas efectuadas em clínicas ou institutos universitários ou noutros estabelecimentos previstos no artigo 3.º, e deixar-se liberdade praticamente ilimitada para as colheitas em cadáveres de pessoas falecidas noutros locais, essa liberdade envolveria, inclusivamente, o risco da completa frustração de muitos princípios consignados no projecto, nomeadamente o da verificação do óbito em condições de segurança (artigo 6.º) e o da gratuitidade da cessão do cadáver para servir de objecto à colheita (artigo 11.º).
A estas considerações acresce a de que as colheitas devem ser efectuadas por médicos habilitados com a especialidade competente e que as condições em que são feitas e em que venham a ser conservados os tecidos ou órgãos recolhidos põem gravemente em causa a utilidade dos enxertos em que venham a ser usados.
Por outro lado, a intenção, possivelmente inspiradora do artigo 7.º, de não criar dificuldades à recolha de órgãos ou tecidos em cadáveres de pessoas falecidas fora de estabelecimentos hospitalares ou semelhantes, quando elas próprias a tenham autorizado, embora digna de louvor em si mesma, afigura-se condenada a, na maioria dos casos, não ser realizável na prática.
Opõe-se-lhe, antes de mais, a dificuldade de se verificar a morte recente por processos seguros, fora de estabelecimentos apropriados na sua maior parte, os métodos que vemos apontados (electroencefalograma, electrocardiograma, radiografia depois de se ter injectado num vaso uma substância opaca ao raio X) não se apresentam como utilizáveis por qualquer médico e em qualquer local, e aquele que melhor se adapta a essas condições - a verificação de falta de circulação sanguínea por meio de arteriotomia - é precisamente o que mais receios e desconfiança inspira aos leigos, e menos aceito seria, por isso, num domicílio particular.
Além disso, a duração dos tecidos e órgãos é muito limitada, e por isso a utilização deles tem de fazer-se num lapso de tempo muito curto, excepto em alguns casos, se se recorrer a meios especiais de preparação e conservação, que supomos não estarem ao alcance de todos os médicos (127). Sendo assim, é óbvio que as peças recolhidas por vontade de pessoas falecidas fora de estabelecimentos hospitalares ou semelhantes, normalmente só serão utilizáveis para conservação em bancos especializados. Na verdade, ou a operação de enxerto é urgente, e não poderá aguardar a morte de alguém que haja disposto do próprio corpo para fins terapêuticos, ou não é urgente, e terá então de ser preparada com as precauções usuais - técnicas (exames, análises, etc.) ou de outra natureza -, o que pressupõe a possibilidade de se fixar antecipadamente, pelo menos com alguma aproximação, a época em que há-de realizar-se, em qualquer caso, o médico ou recorre a bancos onde os enxertos estejam permanentemente à disposição dos especialistas, ou tem de usar peças recentes, e em tal caso precisará de as procurar em locais onde habitualmente haja cadáveres em condições de utilização, fora destas regras só ficarão as hipóteses, que não se presumem frequentes, de falecer um dador de tecidos ou órgãos precisamente na época em que eles são necessários, ou de uma pessoa, cuja morte se prevê para época próxima e suficientemente localizada no tempo, anunciar ao especialista, com a antecedência conveniente, a vontade de o seu corpo ser aproveitado para fins terapêuticos; não parece, todavia, que tais hipóteses tenham verdadeiro interesse prático.
Todos estes motivos impõem, no entender desta Câmara, a supressão ou a cuidadosa delimitação do preceito contido no artigo 7.º O regime fundamental deve ser, nas linhas gerais, o do artigo 5.º, e apenas convém esclarecer melhor as condições em que devem ser permitidas as colheitas quando o óbito se verifica fora de estabelecimentos especializados.
Além disso, e para se evitarem dúvidas e repetições, convém igualmente alterar-se a seriação actual dos preceitos relativos às condições requeridas para as colheitas.

(127) Segundo a informação amavelmente prestada pelo Instituto de Medicina Legal de Lisboa e baseada em consultas particulares a especialistas dos vários ramos, a possibilidade de utilização das peças recolhidas varia de caso para caso assim, os ossos podem ser utilizados até um ano, conservados à temperatura de -30.º; os olhos, até 12 horas (à temperatura de - 10.º), e, corrido este lapso de tempo, são utilizáveis até um ano, desde que sujeitos a liofilização, mas os olhos assim tratados só são aplicáveis em determinados casos; as cartilagens, desde que conservadas num meio químico especial, são indefinidamente utilizáveis; a pele é utilizável durante 12 horas e, tratada por liofilização, durante um ano.

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Mesmo esclarecido assim qual deve ser o local da colheita, ainda resta uma dúvida o artigo 5.º, como se viu, só permite a colheita em clínicas ou instituições universitárias, hospitais ou estabelecimentos de assistência que forem indicados em portaria do Ministro da Saúde e Assistência, ou deste e do Ministro da Educação Nacional, diversamente, o artigo 3.º regula as recolhas no corpo de pessoas falecidas em clínicas ou institutos universitários, nas instalações não particulares dos hospitais ou em quaisquer estabelecimentos oficiais de assistência. O artigo 5.º tem em vista o local da colheita, enquanto o artigo 3.º se refere ao do falecimento, e não restringe a sua doutrina a estabelecimentos autorizados pelo Ministério ou Ministérios mencionados. Quererá isto dizer que se compreendem no artigo 3.º os cadáveres das pessoas falecidas em todos os estabelecimentos nele referidos, ficando, porém, a colheita reservada a alguns deles, ou deverá, antes, considerar-se o artigo 3.º delimitado pelo disposto no artigo 5.º?
A primeira solução obrigará presumivelmente a fazer deslocações de cadáveres, o que pode ter relevantes inconvenientes. Mas, atendendo-se a que é susceptível de atribuir maior latitude às facilidades de que o artigo 3.º procura rodear as colheitas, e considerando-se ainda que nada obsta a que os próprios serviços onde se verifica o óbito sejam seleccionados pelo processo estabelecido no artigo 5.º, parece-nos preferível a solução de reconhecer âmbito diverso aos dois preceitos poderão fazer-se colheitas, ao abrigo do artigo 3.º, no corpo de pessoas falecidas em todos os estabelecimentos para tal previstos em portaria, ainda que, nos termos do artigo 5.º, as recolhas sejam reservadas apenas a alguns desses estabelecimentos.

37. ENTIDADES COMPETENTES PARA A COLHEITA E DESTINO DOS TECIDOS E ÓRGÃOS RECOLHIDOS - Outros aspectos a respeito dos quais não se apreende com clareza o pensamento do projecto, e que convém considerarem-se em conjunto, respeitam à determinação das entidades competentes para a colheita e do destino que devem ter as peças recolhidas.
Estes pontos não se acham, com efeito, devidamente esclarecidos e alguns preceitos do projecto parecem até revelar orientações divergentes.
Assim, encontram-se, nele, preceitos susceptíveis de sugerirem que qualquer médico pode, livremente, efectuar colheitas em cadáveres, para as empregar na sua clínica. Tal parece ser o sentido, por exemplo, do artigo 2.º, § 3.º, onde se fala em «o médico que pretender efectuar a colheita», e mais ainda o artigo 7.º, que apenas se refere ao «médico», estabelecendo que ele só poderá efectuar a recolha depois da verificação do óbito nos termos do artigo 6.º Por estas disposições, parece que qualquer médico poderá proceder à colheita, ficando naturalmente na posse dos tecidos ou órgãos recolhidos.
Por outra parte, porém, o § 2.º do artigo 5.º estatui que, enquanto não se encontrarem em funcionamento os respectivos bancos de órgãos, competirá aos directores das clínicas ou institutos universitários, aos directores clínicos dos hospitais ou aos chefes dos serviços clínicos dos estabelecimentos oficiais de assistência mandar afixar, em local público, a lista dos médicos autorizados a efectuar as colheitas, e o artigo 10.º preceitua que os órgãos ou tecidos serão requisitados, para fins terapêuticos, aos estabelecimentos em que se realizem as colheitas ou a bancos especializados para este efeito, e só poderão sê-lo pelos médicos que desejem utilizá-los e que ficarão responsáveis pela conservação deles até à completa utilização. Destas normas poderá inferir-se que só determinados médicos gozarão do direito de proceder à colheita e que as peças
recolhidas ficarão na posse dos estabelecimentos onde aquela se efectuar, até serem requisitadas para o respectivo emprego.
Do ponto de vista técnico, afirma-se nos pareceres que temos presentes que a recolha só deverá ser executada por médicos habilitados com a especialidade competente. E, no aspecto jurídico, já pusemos em relevo que os médicos só em nome do bem comum poderão ser autorizados a fazer colheitas em cadáveres.
Isto não significa, todavia, que, num regime de medicina exercida fundamentalmente como profissão liberal, a colheita e a posse dos órgãos ou tecidos recolhidos deva ser reservada a estabelecimentos oficiais. Devem rodear--se, é certo, das cautelas jurídicas e técnicas, e a recolha deverá fazer-se em regra, como se disse, em locais especializados, nunca deverão, porém, socializar-se ou colectivizar-se as operações de colheita nem a disponibilidade das peças recolhidas a orientação contrária representaria gravíssima limitação ao exercício livre da medicina e à consequente liberdade de escolha do médico e daria lugar a consequências nefastas no tocante à preparação e aperfeiçoamento do corpo clínico nacional.
Procurando-se sistematizar a matéria, parece que a primeira distinção para se fazer será a de a colheita se destinar a aplicações imediatas e concretas, ou a formar reservas em bancos especializados.
Esta última hipótese poderá respeitar tanto a bancos públicos, como a particulares (cf. o artigo 14.º do projecto). Em qualquer dos casos, estes bancos terão de ser abastecidos por tecidos ou órgãos recolhidos regular e
diuturnamente e as colheitas serão, naturalmente, efectuadas pelos especialistas pertencentes aos quadros dos próprios bancos ou por brigadas organizadas pelas entidades competentes. Se os bancos forem públicos, haverá que coordenar-se este serviço com aqueles em que estejam depositados os cadáveres ou em que deva executar-se a recolha, coordenação conseguida através dos directores dos estabelecimentos em que tais bancos se acharem integrados, ou à entidade a que todos esses serviços se encontrarem subordinados. Se os bancos forem particulares, as condições de funcionamento constarão do respectivo título de autorização, segundo o artigo 14.º do projecto, e, se eles não forem auto-abastecidos, esse título terá de prever as condições de requisição de colheitas e de coordenar estas operações com o funcionamento dos serviços em que elas devam ter lugar.
Em qualquer caso, serão esses bancos que ficarão na posse das peças recolhidas e que serão responsáveis pela respectiva conservação, e será a eles que ou os serviços clínicos interessados ou os especialistas autónomos terão de requisitar os órgãos ou tecidos necessários para as operações ou estudos que devam efectuar.
Na hipótese de não haver bancos, bem como na de serem necessárias peças recentes, as colheitas serão efectuadas para aplicação em casos individuais (da responsabilidade dos respectivos especialistas e, sendo caso disso, dos directores dos serviços interessados), e há toda a conveniência em instituir-se uma entidade que seja incumbida de superintender, fiscalizar e coordenar toda essa actividade. Para este fim, poderá admitir-se porém, se assim se julgar conveniente, o sistema de autorizações permanentes a médicos determinados, que deverão constar de listas oficiais de cada estabelecimento, para efeitos de fiscalização e responsabilidade. O que pode é discutir-se se tal lista deverá tornar-se pública; a Faculdade de Medicina do Porto, por exemplo, opina que, enquanto não existirem bancos de órgãos, é compreensível que haja um ou mais grupos de médicos encarregados de proceder às colheitas para fins terapêuticos ou científicos, mas que se não apresenta com (...)

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clareza a razão ou a vantagem de ordem pratica ou técnica de se afixar em local público a lista dos médicos autorizados a executar a recolha, sistema que poderia até ser contrário aos princípios deontológicos, mas, destinando-se essas listas a garantir o exercício de direitos relativos ao cadáver, nomeadamente o de oposição familiar, e bem assim a assegurar a fiscalização das colheitas e a responsabilidade com estas relacionada, parece a esta Câmara mais vantajoso prescrever-se, como faz o projecto, a publicação dessas listas.
Como quer que seja, neste caso de colheitas destinadas a aplicações concretas, os médicos que as efectuarem, agindo no exercício da medicina como profissão liberal, serão os detentores das peças recolhidas e os responsáveis pela conservação e utilização delas.
Os sistemas sugeridos para estas duas hipóteses - a de a colheita ser destinada a bancos e a de ser feita para aplicação imediata e concreta - implicam sempre uma rotação determinada do estabelecimento ou serviço com os cadáveres aproveitados, relação que só pode assentar, normalmente, na circunstância de se tratar de corpos de pessoas falecidas em estabelecimentos ligados a tais serviços. No caso de pessoas cujo óbito se dá fora desses estabelecimentos (e pressuposto o regime de não obrigatoriedade, consagrado no projecto e que, como se disse, deve ser o adoptado em regra), falta qualquer elemento de conexão entre o cadáver e algum desses serviços e por esse motivo o processo de recolha só pode ser desencadeado em consequência de prévia determinação do falecido - à própria família se deve negar o direito de oferecer espontaneamente o cadáver, conforme se deixou dito no n.º 31 - e importa esclarecer-se o modo por que se há-de dar cumprimento a tal determinação.
Considerando a orientação defendida no número anterior acerca do local da colheita, e atendendo-se a necessidade de esta ser executada por especialistas competentes e dotados dos meios para tal exigidos, estas recolhas não poderão realizar-se por mera iniciativa privada, nem ser feitas, a título particular, por qualquer médico escolhido pela família. Logicamente, a intervenção deve ser requerida aos serviços competentes pela família ou pelos executores da vontade do falecido (herdeiros, testamenteiros, etc.) e terá de ser efectuada por médicos pertencentes a esses serviços ou por eles autorizados a executar tais operações. Poderia ainda admitir-se que, por disposição do defunto ou vontade da família, a colheita fosse executada por certo médico determinado, e este deveria então requerer aos serviços competentes a autorização necessária, se não gozasse já, em geral, da faculdade de neles efectuar tais operações, é de perguntar-se, porém, se esta hipótese - embora conforme aos princípios morais e jurídicos - tem suficiente interesse prático para valer a pena prevê-la em especial e para se arrostar com o agravamento da já grande complexidade das recolhas devidas à iniciativa do próprio defunto, quando falecido fora de estabelecimentos habilitados para as executar.
Outro aspecto desse caso particular de a iniciativa da colheita ter partido do próprio falecido reside na necessidade de se reconhecer aos serviços ou médicos interessados a faculdade de rejeitar o aproveitamento de certo cadáver, seja por motivo de carácter médico, seja em atenção à desnecessidade ou a dificuldade material da recolha - pode suceder, por exemplo, que o dador faleça em lugar muito afastado do local da colheita, em termos de esta ser impraticável ou demasiado onerosa. Nesse caso, porém, a família e os herdeiros não devem ser prejudicados nos seus direitos sucessórios ou em outros direitos de natureza privada, ainda que o falecido os haja condicionado ao aproveitamento do seu corpo.
Se a colheita se efectuar, mesmo por determinação do falecido, os encargos respectivos, sem excluir os de eventual transporte do cadáver, deverão ser suportados pelos serviços ou médicos interessados, salvo declaração expressa do dador em contrário. As colheitas são feitas no interesse público e devem fomentar-se as ofertas de cadáveres independentemente do grau de fortuna de quem as faça, e por isso não seria nem justo nem conveniente sujeitar a família ou os herdeiros às despesas da intervenção, mesmo quando determinada pelo falecido.
Um último ponto parece digno de ponderação nesta matéria do destino dos tecidos e órgãos recolhidos a aplicação que lhes for dada em concreto não deve ser tornada pública, tal como, no caso de se executar certa operação de enxerto, não deve ser revelada a origem do órgão ou tecido empregado. A orientação oposta poderia, em geral, criar atritos ou permitir extorsões por parte da família do falecido; só quando este destine as peças recolhidas ao benefício de pessoas determinadas se poderia, talvez, admitir a solução contrária.
É certo que o Artigo 9.º do projecto, na parte final do respectivo corpo, estabelece que deve constar do auto, lavrado acerca da recolha de tecidos ou órgãos, o destino dado a estes, mas esta disposição, inspirada no parecer da Faculdade de Medicina do Porto (cf. o ofício n.º 1824/60, de 16 de Setembro de 1960, do Gabinete do Ministro da Saúde e Assistência) - se bem que, pela cópia fornecida a esta Câmara, o pensamento de tal parecer não pareça muito claro neste ponto -, não prejudica propriamente a doutrina exposta, desde que o auto em questão em princípio seja usado apenas para efeitos oficiais e para fins internos dos serviços.

38. SISTEMATIZAÇÃO DO DIPLOMA PROJECTADO E OUTROS ASPECTOS COMUNS - As considerações feitas mostram que o projecto é, por vários pontos de vista, pouco definido e articulado.
Prende-se esta característica com certa falta de sistema que se observa nas disposições do diploma em estudo e que resulta provavelmente, pelo menos em parte, de a seriação dos artigos ter sido feita mais com a preocupação de evitar aspectos impolíticos de uma matéria que não se sabia como viria a ser aceite, do que com o propósito de erguer uma construção rigorosa e coerente. E também no estilo e técnica adoptados, que em diversos pontos mereceriam reparos sérios, se nota o reflexo da mesma orientação.
Se nos coubesse apreciar o projecto apenas pelo que ele é fundamentalmente - um diploma técnico, emanado de um Ministério técnico -, talvez que pudéssemos absolver estas deficiências, vendo-as como contrapartida da resolução rápida e eficaz de um problema prático importante. Desde, porém, que esta Câmara, com a responsabilidade que lhe impõem as suas tradições legislativas, se tem de pronunciar sobre o projecto, não se podem ignorar aqueles aspectos e é necessário tentar-se encontrar uma redacção que, garantindo o mais possível a maleabilidade de regime exigida por uma matéria ainda não experimentada entre nós, lhe assegure ao mesmo tempo aquele mínimo de estrutura lógica indispensável para a disciplinar. E os próprios problemas enunciados nos números antecedentes impõem a formulação de alguns princípios que, enquadrados nas directrizes fundamentais do projecto, correctas em si mesmas, as tornem mais explícitas e rigorosas.
Para esse objectivo, e tendo já em vista os pontos que nos parece necessário desenvolver, julgamos que a matéria do projecto se pode sistematizar nas seguintes rubricas:

a) Princípios fundamentais, relativos às colheitas de tecidos ou órgãos consideradas em conjunto, (...)

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b) Requisitos das colheitas em concreto, os quais podem repartir-se em requisitos subjectivos e requisitos objectivos;
c) Execução das colheitas;
d) Aproveitamento dos tecidos ou órgãos recolhidos;
e) Responsabilidade e penas;

A necessidade de assim remodelar e estruturar o diploma em exame dispensa-nos de o apreciar em pormenor em diversos pontos secundários - a fixação dos princípios fundamentais permitirá simplificar-se a redacção em alguns pontos do articulado e eliminarem-se algumas críticas, na realidade bem fundadas e em certa medida já feitas nos estudos e pareceres citados no n.º 34, mas que, naquelas circunstâncias, se tornariam, aqui, inúteis e impertinentes.
Por todos estes motivos parece dispensável fazer-se a análise minuciosa de todas as disposições do projecto. Na sequência deste estudo na especialidade, tomaremos cada uma das rubricas enunciadas e, ao mesmo tempo que exporemos a orientação preconizada, faremos referência aos aspectos mais importantes em que procurámos melhorar a redacção do diploma que é objecto deste parecer.

§ 3.º Aspectos particulares

39. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - A ESTRUTURAÇÃO DAS COLHEITAS EM CONJUNTO - Correspondem a esta rubrica os três primeiros artigos da redacção sugerida por esta Câmara e que têm paralelo, embora apenas parcial, nos artigos 1.º, 5.º, § 2.º, e 14.º do projecto.
Estas disposições têm por objecto delinear o sistema das colheitas de tecidos e órgãos, consideradas globalmente e vistas pelos três seguintes aspectos âmbito do sistema (fins e especialidade das colheitas nele abrangidas), destino imediato dos órgãos e tecidos recolhidos, e entidades competentes para promover, orientar e executar esses serviços.
O âmbito do sistema é objecto do artigo 1.º, correspondente ao artigo 1.º do projecto.
Nele se procurou acentuar o que há de particular na matéria do diploma, pelo duplo aspecto do fim para que são permitidas as colheitas e da especialidade comum que as distingue das outras possíveis intervenções em cadáveres.
No tocante aos fins, já nada mais teremos de fazer do que remeter para o que fica exposto no n.º 35. Pelas razões aí desenvolvidas, admitem-se as colheitas para fins terapêuticos e para fins científicos, e apenas há que justificar brevemente os desvios que, no texto sugerido, se observam em relação ao projecto. Preferimos falar de «fins científicos», e não de «fins de investigação científica», porque esta última locução, posto seja usada hoje com certa latitude pretensiosa, não abrange, na realidade, alguns aspectos de relevo nesta matéria, como sejam os objectivos meramente didácticos ou de simples treino profissional. Por outro lado, para fugir a desarticulação do preceito correspondente do projecto, enquanto começa por, no corpo do artigo 1.º, admitir aquele fim em termos restritos, para logo a seguir proibir em absoluto, no §
1.º, as colheitas nos casos, entre outros, de doença infecto-contagiosa, e vir depois, no § 2.º, dizer que «poderão ser exceptuadas» (por quem e como?) desse § 1.º as colheitas para fins científicos, para fugir a esta desarticulação - dizíamos - deveríamos começar por admitir, como regra, as colheitas destinadas aos dois fins, e estabelecer depois que, no caso de doença infecto-contagiosa, elas seriam permitidas só para fins científicos, terminando por enunciar os casos em que elas nunca seriam permitidas, sem se mencionar evidentemente a hipótese daquelas doenças.
Foi esta, na verdade, a orientação primeiramente adoptada na redacção do texto proposto. Pareceu, todavia, à Câmara Corporativa que a limitação referente às doenças infecto-contagiosas era susceptível de originar dúvidas, em virtude da fluidez desta qualificação, e que por isso melhor seria deixarem-se as condições técnicas das colheitas, nesse particular, a consciência profissional dos médicos e, quando muito, às instruções emanadas do Ministério da Saúde e Assistência. Por outro lado, podem verificar-se hipóteses nas quais a utilização de tecidos extraídos do corpo de pessoas afectadas de doenças infecto-contagiosas não ofereça quaisquer inconvenientes, do que será exemplo o emprego de tecidos de leprosos em pessoas que padeçam da mesma enfermidade.
Por estes motivos, preferiu a Câmara voltar ao esquema primitivo do projecto, consignando, como excepções, apenas os casos de colheitas proibidas em absoluto.
No número destas colheitas, totalmente proibidas, incluímos as contrárias à moral e aos bons costumes, em obediência aos princípios expostos no n.º 29, e, no tocante às hipóteses já previstas no § 1.º do artigo 1.º do projecto, restringimos a referência a autópsias ao caso das autópsias forenses. A redacção daquele § 1.º poderia levantar dúvidas nos casos, hoje correntes (V supra, n.º 2) e em que as colheitas podem ter interesse, de o médico hospitalar declarar que necessita de fazer a autópsia para poder certificar a causa da morte, pois a hipótese de se desconhecer essa causa é uma das que dão lugar a autópsia obrigatória (Código do Registo Civil, artigo 226.º), é claro que em tais casos o médico acaba por passar a certidão de óbito, o que afasta a autópsia judiciária, eliminando a razão de ser da dúvida formulada, mas o mais conveniente é redigir-se o preceito por forma a colocarem-se explicitamente esses casos fora do respectivo âmbito. Nessas hipóteses trata-se, afinal, das autópsias clínicas ou de estudo, pelas quais diversas entidades ouvidos sobre o projecto manifestaram grande interesse, e, se as não quisemos referir expressamente, por serem estranhas à matéria do diploma em causa, procurámos pô-las à margem deste, tanto para não prejudicar o regime que lhes seja ou venha a ser aplicável, como para não impedir as colheitas nos casos em que essas autópsias tenham lugar.
Ao lodo da finalidade das colheitas, é elemento delimitador do decreto projectado a especialidade que distingue essas colheitas das outras que podem recair em cadáveres. Consiste ela, como logo de começo acentuámos, em as intervenções previstas nesse diploma terem de recair no corpo de pessoas recém-falecidas. O artigo 1.º do projecto alude a este aspecto no ponto em que se refere às colheitas «que tiverem de efectuar-se nas dezoito horas seguintes ao óbito», mas esta redacção não parece satisfatória.
Na verdade, o lapso de dezoito horas, visto como traço delimitador do objecto do projecto (é essa a função desempenhada pela referência que se lhe faz no artigo 1.º), não tem qualquer significado, por isso que são possíveis colheitas depois daquele prazo (assim, acontece em geral com a recolha de vísceras para análises químicas médico-forenses), ao mesmo tempo que outras - precisamente compreendidas no âmbito do projecto - se têm de executar muito antes das dezoito horas. Por outro lado, a expressão «tiverem de efectuar-se nas dezoito horas » é muito equívoca, já porque é ambíguo aquele modo de dizer «tiverem de », já porque, aproximado do artigo 6.º («as colheitas apenas podem efectuar-se dentro das dezoito horas »), o artigo 1.º é anulado por ele ou anula-o ele por seu lado dizer-se que as colheitas que tiverem de efectuar-se nas dezoito horas (artigo 1.º) apenas podem (...)

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efectuar-se dentro das dezoito horas (artigo 6.º), além de representar uma logomaquia, permitiria afirmar-se, a contrario, que as colheitas que não tivessem de efectuar-se nas dezoito horas, poderiam efectuar-se fora desse prazo, deixando-se a matéria do projecto sem fronteiras definidas e tornando-se inúteis aquelas disposições.
Para se sair destas dificuldades apresentam-se dois caminhos possíveis ou aludir-se apenas, como tantas vezes temos feito no decurso deste parecer, a colheitas no corpo de pessoas recém-falecidas, ou dizer-se francamente aquilo que estabelece o contraste entre as colheitas previstas no projecto e as outras possíveis. A primeira solução poderia parecer a preferível por mais discreta, aspecto que pode não ter sido estranho à redacção do projecto, mas a segunda é mais rigorosa e parece-nos claramente a mais aconselhável. Nesta ordem de ideias, o texto sugerido declara no artigo 1.º que o diploma projectado institui o regime pelo qual são admitidas («são permitidas nos termos do presente decreto-lei ») as colheitas de tecidos ou órgãos quando estes forem necessários para fins terapêuticos ou científicos, e aquelas intervenções, para serem úteis, não possam aguardar o decurso do prazo legal de prevenção contra a morte aparente.
Assim fica, simultaneamente, delimitado o objecto do projecto e afirmada genericamente a licitude destas colheitas.
Nos artigos 2.º e 3.º, que apenas encontram correspondência parcial em alguns preceitos do projecto, nomeadamente no § 2.º do artigo 5.º e no artigo 14.º, definem-se, como se disse, o destino imediato dos órgãos ou tecidos recolhidos e a competência para as colheitas.
No n.º 37 já se pôs em evidência a necessidade de se esclarecerem estes pontos e aí se deixaram formulados alguns princípios aconselháveis em tal matéria, e a redacção dos dois artigos parece suficientemente explícita para dispensar justificação mais pormenorizada.
Na elaboração desses preceitos houve a preocupação de se satisfazer a várias solicitações aparentemente contraditórias, mas cuja conciliação é indispensável montar-se uma estrutura bem definida, mas maleável, e assegurar-se o carácter público do sistema, sem se cair na centralização e no estatismo. A doutrina daquelas disposições, vista à luz desses objectivos, parece facilmente compreensível os órgãos recolhidos, destinados a medicina oficial ou particular, podem ter aplicação imediata ou ser conservados em bancos, e a instituição destes - conquanto eles possam ser particulares, embora sempre sem carácter de monopólio - é confiada ao critério do Governo. As colheitas são sempre da competência desses bancos ou de outras entidades, públicas ou privadas, também delimitadas por providências governamentais; e cada uma dessas entidades constitui um «centro de colheita», ao qual (quando não seja particular) podem ser anexados, para efeitos deste diploma, outros estabelecimentos oficiais. Mas essa competência exclusiva não significa colectivização, mas apenas coordenação e orientação de uma entidade responsável poderão executar as colheitas tanto os médicos pertencentes aos serviços em causa como os simples particulares, desde que neles inscritos, mas haverá uma entidade que coordene esses serviços com os outros interessados (estabelecimentos onde se verifique o óbito de pessoas sujeitas a colheita e estabelecimentos que necessitem dos órgãos e tecidos recolhidos) e que faça observar a devida ordem nas colheitas, doseando-as segundo as necessidades, a precedência dos fins a que são destinadas as peças recolhidas e a urgência da utilização destas, e evitando a «corrida» aos cadáveres ou a primazia conquistada por meios menos regulares e lícitos.
Por esta forma, em vez de uma organização unitária e centralizada, poderá haver vários centros de colheitas, autónomos mas não exclusivistas. Todos os especialistas poderão ter acesso a eles, tanto para efectuar as colheitas, como para aproveitar as peças recolhidas, mas em cada centro haverá uma entidade responsável e superintendente, competente para orientar o serviço das colheitas dentro das finalidades legais e de acordo com aquilo que é princípio de todo o sistema - o serviço do bem comum. E tudo isto será montado com maior ou menor latitude, com maior ou menor intervenção dos organismos oficiais, com maior ou menor âmbito de cada centro, conforme o critério do Governo e tendo-se em atenção o parecer das direcções-gerais competentes.
Julga esta Câmara que por esta forma será possível erguer-se um sistema que ao mesmo tempo se mostre maleável e bem articulado e definido e seja dotado de suficientes garantias de coordenação e fiscalização.

40. CONDIÇÕES SUBJECTIVAS DA COLHEITA - As condições ou requisitos subjectivos da colheita acham-se regulados, na redacção proposta, nos artigos 4.º a 8.º os artigos 4.º a 6.º versam sobre a autorização ou proibição das recolhas por parte do falecido e da execução da vontade manifestada por este a esse respeito, enquanto o artigo 7.º regula as colheitas efectuadas independentemente daquela autorização, mas sem oposição da família, e o artigo 8.º consagra, em geral, o princípio da gratuitidade dessa autorização ou da abstenção de oposição familiar. Correspondem, assim, aos preceitos dos artigos 2.º a 4.º e 11.º do projecto governamental.
O diploma em estudo começa por permitir que qualquer pessoa proíba a colheita de tecidos ou órgãos no seu corpo, caso em que essa intervenção não será admitida, «salvo se a lei expressamente determinar o contrário» (artigo 2.º, primeira parte). Posto de lado este caso de o falecido ter proibido a colheita, o projecto distingue, no tocante à exigência de consentimento privado, três hipóteses: a de o defunto ter autorizado a colheita (artigo 2.º, segunda parte), a de ele o não ter feito, mas ter morrido em certos estabelecimentos, caso em que as colheitas poderão efectuar-se desde que não haja oposição da família (artigo 3.º) e, finalmente, a hipótese de não ter havido consentimento do falecido nem o óbito ter ocorrido naqueles estabelecimentos, sendo então a colheita permitida apenas quando haja consentimento do cônjuge sobrevivo ou, na falta dele e sucessivamente, de qualquer ascendente ou descendente no 1.º grau, ou de qualquer ascendente ou descendente no 2.º grau (artigo 4.º).
Na redacção proposta por esta Câmara afasta-se a última destas hipóteses, por motivos já expostos acima (n.ºs 31 e 37). Agora importa apenas analisar-se as duas restantes hipóteses, únicas previstas no texto sugerido por este parecer.
No artigo 4.º desse texto regula-se a manifestação de vontade do falecido, adoptando-se uma redacção que parece mais completa do que a do projecto (neste nada se diz, por exemplo, acerca da forma externa da proibição) e mais ajustada à linguagem tradicional das leis aí se diz, em substância, que qualquer pessoa pode proibir ou autorizar as colheitas desde que o faça por determinadas formas. E é neste último aspecto que precisamente mais necessário se afigurou rever a orientação do projecto, pois nele se consagram formas que mereceram importantes reparos por parte do Ministério da Justiça e, na verdade, não parecem satisfazer as exigências da segurança das pessoas e até ao prestígio e dignidade dos serviços.
Admite o projecto que o consentimento da pessoa de cujo corpo se trata seja prestado verbalmente ou por (...)

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escrito «o consentimento por escrito - estabelece o § 1.º do artigo 2.º - considera-se válido uma vez que conste de documento autêntico ou de documento assinado pela pessoa que autoriza a colheita, e o consentimento verbal tem-se como prestado quando for testemunhado, em documento escrito, por duas pessoas de idoneidade reconhecida, ou pela família do falecido, ou pelo médico que efectuar a colheita».
O documento autêntico é manifestamente uma forma adequada, e a única modificação que a tal respeito se pode fazer consiste em se aditar expressamente o documento autenticado. Já não é aceitável, porém, a prestação do consentimento por simples documento assinado pelo falecido a possibilidade de se provar o consentimento com suficiente segurança é, note-se, de tanto interesse para a defesa dos direitos do defunto e da família, como para garantir os próprios médicos que procedam à colheita, e o documento simplesmente assinado pelo falecido, de valor já muito escasso em geral (cf. os artigos 534.º e seguintes do Código de Processo Civil), constituiria um meio mais do que precário para se atingirem esses fins, porquanto nada há de mais fácil do que induzir um doente a assinar uma declaração cujo conteúdo ele não compreenda, e não se vê como os autores da colheita poderiam, com facilidade, ilidir qualquer prova testemunhal e circunstancial que, nesse sentido, fosse produzida contra eles. Preferiu-se, por isso, admitir, como única forma deste tipo, o documento escrito e assinado pelo dador, com a letra e assinatura reconhecidas por notário.
Menos aceitável, ainda, será o consentimento verbal, se, para ser havido «como prestado», bastar a circunstância de ser «testemunhado em documento escrito, por duas pessoas de idoneidade reconhecida, ou pela família do falecido, ou pelo médico que efectuar a colheita». Mesmo pondo-se de parte o que há de juridicamente menos correcto naquela ideia de «testemunhar em documento escrito», não parece satisfatória a simples declaração de testemunhas sem qualificação particular - diz-se que hão-de ser pessoas de «idoneidade reconhecida», mas não se esclarece por quem e como se faz tal reconhecimento - e menos ainda a simples declaração do médico que proceda à colheita, neste último caso deixar-se-ia a prova a mercê da própria pessoa interessada em produzi-la, o que, fora da hipótese do juramento, há muito excluído dos meios legais de prova (e que tinha, aliás, um fundamento especial, de carácter religioso, inexistente no caso vertente), representaria uma solução completamente aberrante.
O projecto ainda vai mais longe, porém, e admite que a família do falecido impugne a validade do consentimento verbal, o que não permite quando ele é prestado por escrito este facto constitui uma confissão implícita, por parte do legislador, de que não atribui valor real ao «testemunhar em documento escrito», o que torna aquela forma ainda mais chocante e contrária aos princípios jurídicos. E essa impugnação da validade, de que nem sequer se precisam os fundamentos e que não se sabe por quem haveria de ser julgada, viria a dar lugar, muito provavelmente, a litígios sem fim, com grave prejuízo para o prestígio dos serviços
Em conjunto, cremos não exagerar dizendo que esta forma recebida no projecto, a ser aceite, viria a constituir na prática um processo de se iludirem as pessoas simples e desprovidas de meios para litigar, mas que, para as menos ingénuas e mais abastadas, seria uma porta aberta para lançar os médicos e os serviços nas demandas mais intricadas e de êxito mais incerto.
Compreende-se que se procure facilitar a prestação do consentimento, mas não podem admitir-se, para tal, meios de prova que não ofereçam um mínimo de segurança e - quase nos atreveríamos a dizer - de seriedade, e desde que se fixem meios de prova nessas condições não há motivo para se permitir, em termos especiais, a impugnação da respectiva validade, visto não se reconhecer à família, em geral, o poder de obstar à execução da vontade do falecido, quando este autorize a colheita.
A solução sugerida por esta Câmara consiste em se admitir o consentimento verbal reduzido a auto. Há-de ele ser prestado, expressamente, perante o director ou administrador de um estabelecimento oficial e duas testemunhas insuspeitas (isto é, que não sejam funcionários desses estabelecimentos, nem médicos autorizados a executar a colheita), e deve ser reduzido a auto, lavrado por aquela entidade e assinado por ela e, quando menos, pelas testemunhas. O auto lavrado nestas condições terá, em princípio, a natureza de documento autêntico (cf. o artigo 521.º do Código de Processo Civil) e, como tal, fará em regra prova plena da declaração do falecido, só iludível pela prova de falsidade e por via judicial (cf. código citado, artigos 526.º e seguintes), hipótese para a qual se sugerem sanções penais adequadas [V o texto proposto por esta Câmara, artigo 19.º, alínea b) do n.º 2.º e alínea b) do n.º 3.º], e, mesmo quando esse auto não constitua documento autêntico, parece ser rodeado de suficientes garantias para ser aceite como meio de prova, e representar uma forma que, embora simples e prática, não deixe de ser merecedora da confiança e revestida da dignidade requeridas por um assunto de tanto melindre.
O artigo 4.º do texto proposto, onde se regulamenta a proibição ou autorização das colheitas pelo falecido, contém ainda outros princípios, em parte inspirados ao projecto e cuja justificação se apreende facilmente pela simples leitura deles. Queremos salientar apenas, por serem inteiramente novos, o preceito do § 2.º, no qual se fixa o princípio de que os efeitos da declaração verbal cessam se o declarante tiver alta do estabelecimento onde a houver feito, e o do § 3.º, onde, ao exigir-se que a proibição do falecido, feita por forma não verbal, seja comunicada ao estabelecimento interessado, se preceitua que essa comunicação, quando tenha lugar em vida do declarante, deve efectuar-se durante a doença de que ele veio a falecer, são dois princípios paralelos, ditados pela prudência e destinados a evitar que se invoque, com surpresa para os serviços, qualquer declaração ou comunicação feita há muito e praticamente desconhecida no momento da morte.
Os artigos 5.º e 6.º da redacção proposta versam sobre o cumprimento da vontade do falecido, respectivamente nos casos de proibição e de autorização.
A respeito do primeiro, declara-se, a semelhança do artigo 2.º do projecto, que em tal caso as colheitas não são permitidas, em princípio. A esta regra exceptua o artigo 2.º do projecto a hipótese de «a lei expressamente determinar o contrário», mas esta redacção não é adequada, porquanto, literalmente, aquela excepção só se verificaria quando a lei expressamente declarasse permitidas as colheitas proibidas pelo falecido, e não há qualquer preceito legal em que se contenha esse princípio, por isso, ao consagrar-se aquela excepção, em si mesma indispensável, se preferiu dizer que não são permitidas as colheitas proibidas pelo falecido, salvo quando elas forem ordenadas por lei. A essa excepção se acrescenta uma nova a de as recolhas, apesar de proibidas pelo falecido, serem autorizadas pelo Ministro da Saúde e Assistência por grave mo-(...)

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(...)tivo de interesse público - trata-se de um afloramento daquele princípio, exposto no n.º 31, segundo o qual excepcionalmente se pode admitir a «mobilização» de cadáveres, em nome do bem comum, o que é conveniente ser consagrado a par da regra do respeito pela proibição do falecido, a fim de se prevenir o risco da recusa sistemática da concessão do cadáver e até, simplesmente, para evitar que se crie ambiente favorável a essa recusa.
O artigo 6.º, inteiramente novo, regula o caso de o falecido ter autorizado a colheita. A doutrina aí condensada acha-se justificada no n.º 37 deste parecer.
Fixados assim, nos artigos 4.º a 6.º, os princípios relativos à hipótese de o falecido ter manifestado alguma vontade a respeito do possível aproveitamento do seu corpo, o artigo 7.º do texto proposto, paralelamente ao artigo 3.º do projecto, permite a recolha de tecidos ou órgãos no caso de não haver proibição nem autorização do defunto, e de também faltar a oposição da família, desde que o óbito se haja verificado em determinados estabelecimentos.
A orientação do texto proposto é, fundamentalmente, análoga à do projecto, mas o melindre do assunto aconselha a que se ponderem alguns dos seus aspectos mais importantes.
Como atrás se referiu, em princípio o projecto, tal como o texto desta Câmara, consagra a regra da voluntariedade. Neste caso de faltar a manifestação de vontade por parte do falecido, ainda esse princípio é respeitado, pois, como se deixa dito no n.º 31, o direito de aproveitar o cadáver pertence directamente à comunidade, como contrapartida de um dever comum, não enraizado especialmente em qualquer dos membros daquela, de suportar essa utilização, daí resulta que, propriamente, a vontade individual não intervém nesta matéria para legitimar a colheita em si mesma (visto ela se fundar naquele direito da comunidade), mas sim para individualizar a actuação desse direito pela escolha de alguma das atitudes que aquela natureza do dever em causa faculta a cada indivíduo - autorizar ou recusar que recaia no seu corpo o aproveitamento devido por todos os membros da comunidade em conjunto, mas por nenhum em particular. Quando o falecido não autorizou nem proibiu a utilização do seu corpo, quando ele se absteve em vida de exercer o direito de tomar uma daquelas atitudes, a comunidade fica, em princípio, liberta de qualquer obstáculo e pode exercer o seu direito livremente. Esse direito pode, todavia, entrar em concorrência com outros, nomeadamente com os direitos da família, e, se a esta não deve facultar-se a iniciativa da colheita, não se lhe pode negar o direito, por si independente da atitude passiva do falecido, de se opor àquela intervenção, e é precisamente essa a solução adoptada - a recolha poderá efectuar-se se a família se não opuser. E, para que não se tome ilusória a possibilidade dessa oposição em virtude da urgência com que se tem de efectuar a colheita, permite-se no texto sugerido que essa oposição seja deduzida antes da morte, é uma orientação mais equitativa, mas envolve, note-se, o risco de diminuir a disponibilidade de cadáveres.
Se a estas considerações acrescentarmos que, no sistema proposto, as colheitas - mesmo quando destinadas à clínica particular - se acham subordinadas ao bem comum, não poderá deixar-se de reconhecer a legitimidade das intervenções previstas no artigo 7.º do texto sugerido e no artigo 3.º do projecto elas representam o exercício de um direito próprio da comunidade, na ausência de manifestações de vontade que poderiam restringi-lo licitamente - a proibição do falecido ou a oposição da família.
Mas, reconhecida embora essa legitimidade, ainda se pode suscitar um problema delicado o de essas colheitas - efectuadas por mera iniciativa, por assim dizer, pública - se limitarem aos casos em que o óbito tem lugar em certos estabelecimentos.
Para exercer o seu direito, a comunidade tem obviamente de utilizar qualquer critério de selecção dos cadáveres, pois, a não ser assim, cair-se-ia lealmente no sistema da obrigatoriedade. Simplesmente, poderá perguntar-se se aquele critério adoptado - o de o óbito ocorrer em instalações não particulares de certos estabelecimentos de saúde ou assistência - não consistirá afinal em se tomar como critério de selecção o estado de fortuna das pessoas, infringindo-se aquela recomendação de Pio XII, segundo a qual não é justo que os corpos dos doentes pobres estejam destinados, em princípio, ao serviço da medicina, enquanto o não estão os dos doentes ricos, quando a verdade é que o dinheiro e a situação social não deveriam intervir em matéria em que se manifestam sentimentos delicados (128).
A questão é melindrosa, mas, no parecer desta Câmara, não deve resolver-se por forma desfavorável à colheita.
Para se efectuar esta - no exercício de um direito próprio da comunidade, repete-se - importa escolherem-se os cadáveres pelo modo mais adequado ao bem comum e ao respeito devido a outros fins intrínsecos que estejam em causa, nomeadamente os que se prendem com a piedade familiar. Ora, no aspecto do bem comum, não há dúvida de que os cadáveres dos doentes falecidos nos hospitais (especialmente em instalações não particulares) são os que oferecem as melhores condições encontram-se depositados em serviços que tomam prontamente conhecimento do óbito, onde é conhecida a causa da morte e portanto o próprio estado do doente, e acham-se, por assim dizer, na posse desses serviços e portanto em condições de, para a colheita, não ser necessário devassar-se ou perturbar-se a vida da família. No que respeita aos fins desta, também é certo que seria muito mais grave a busca de cadáveres de pessoas falecidas fora de instalações comuns - agravar-se-iam todas as causas de atrito e de melindre resultantes da necessidade de os promotores de colheitas terem de entrar em domicílios ou locais particulares, de terem de abordar directamente a família e de perturbar o ambiente de intimidade e de luto que nela pudesse haver, etc.
A utilização dos cadáveres depositados em instalações comuns não difere, na realidade, do aproveitamento dos doentes internados em hospitais, para o ensino da medicina o treino dos médicos, como se pratica nos hospitais escolares e nos estágios noutros estabelecimento análogos, e o certo é que os doentes procuram muitas vezes esses hospitais, aceitando aquele aproveitamento, em razão das melhores condições de tratamento, da mais elevada categoria dos médicos, etc., como que dando, assim, tácito consentimento àquela prática. Isto mesmo se pode dizer também das colheitas efectuadas no cadáver de pessoas internadas fazem-se, no fundo, pela mesma razão e com o mesmo espírito com que se procede àquelas práticas de ensino e aprendizagem, e com que estas são aceites, pelo menos tacitamente, pelos próprios doentes e suas famílias.
Não são pois os pobres, como tais, os sujeitos à colheita os pobres falecidos fora dos hospitais também estão isentos dessas intervenções. São, sim, os internados em instalações comuns e por causa das condições mais adequadas aí existentes e do menor risco de perturbar as famílias interessadas.
Não pode ignorar-se, todavia, a circunstância de, no aspecto de facto, poder verificar-se a coincidência sistemática entre a situação de pobreza e a subordinação à (...)

(128) Cf. discurso de 18 de Maio de 1936, no lugar citado, p. 25.

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colheita. A verdade é, no entanto, que seria muito mais chocante a requisição de cadáveres de pessoas falecidas fora dos estabelecimentos referidos, e que, por esse motivo, aquele aspecto reprovável que o aproveitamento de cadáveres pode apresentar na prática só poderá remover-se difundindo-se o costume de os próprios indivíduos oferecerem espontaneamente o seu corpo para os fins terapêuticos ou científicos.
Declarados os motivos por que se aceitou a doutrina dos preceitos que estamos comentando, resta chamar-se a atenção para um ponto especial em que o texto sugerido se afasta do projecto o da legitimidade para se deduzir a oposição familiar.
O artigo 3.º do projecto permite a oposição a «qualquer das pessoas indicadas no § 2.º do artigo anterior», ou sejam o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens e, sucessivamente, os ascendentes ou descendentes no 1.º grau e os ascendentes ou descendentes no 2.º grau. Poderia pôr-se o problema de a faculdade de oposição ser extensiva a outros parentes (irmãos, sobrinhos, etc.) e até a outras pessoas, tais como os tutores de incapazes, mas, considerando-se a necessidade de se facilitarem as colheitas, e atendendo-se a que elas, de per si, são legítimas e que aqui se trata apenas de as conciliar com as exigências da piedade familiar parece-nos aceitável a orientação seguida pelo projecto neste ponto. O que já não se afigura correcto é a limitação daquela faculdade ao 1.º e 2.º graus da linha recta não é usual, nas leis, imporem-se limites à relevância do parentesco na linha directa, o que bem é compreensível em razão da intimidade derivada desse vínculo, e nem sequer pode temer-se que a abolição desse limite prejudique na prática as colheitas, porquanto devem ser muito raros os casos em que o falecido tenha ascendentes ou descendentes para além do 2.º grau (isto é, tenha bisavós ou trisavôs, ou bisnetos ou trinetos) em condições de deduzirem oposição. Por esse motivo se propôs que sejam admitidos a opor-se quaisquer ascendentes ou descendentes, sem limite de grau.
E também não se faz entre eles qualquer discriminação O artigo 3.º do projecto refere-se a qualquer das pessoas indicadas no § 2.º do artigo 2.º, forma de dizer que pode inculcar ser admissível a oposição de cada uma dessas pessoas, sem se estabelecer entre elas qualquer precedência, mas, como o citado artigo 3.º remete para o § 2.º do artigo 2.º, e neste se confere o direito, aí previsto, de impugnar o consentimento verbal do falecido, em primeiro lugar ao cônjuge, e, na falta dela, e sucessivamente, aos seus ascendentes ou descendentes no 1.º grau e aos ascendentes ou descendentes no 2.º grau, pode perguntar-se se a respeito da oposição regulada no artigo 3.º também é de observar esta ordem de preferências. Pareceu melhor à Câmara não adoptar esta última solução, e antes permitir a oposição a qualquer dos familiares indicados, porque a prova da existência ou inexistência de outros familiares com melhor direito seria bastante complicada é fácil a alguém provar que é avô ou neto de outrem, mas já é muito difícil produzir, com a urgência e simplicidade requeridas pelo caso, a prova de que o falecido não tem vivos o pai ou a mãe, ou um filho, por exemplo, a isto acresce que as preferências entre parentes são compreensíveis quando há conflito entre eles, e não - como acontecem aqui - quando somente se põe o problema de existir ou não um familiar mais próximo que se haja abstido de agir.
Finalmente, e seguindo-se esta última ordem de ideias, estabelece-se no texto proposto que, embora o direito de oposição pertença a qualquer dos familiares indicados, o consentimento expresso do cônjuge inibe os parentes de se oporem, tal como o de um parente mais próximo impede a oposição por parte de outro mais remoto. Nesta hipótese há conflito positivo entre a atitude de duas pessoas, conflito que é mister resolver-se por uma ordem de precedência, e a prova dos vínculos familiares já não oferece dificuldade, porque, feita ela por cada um dos interessados a respeito da relação que o vinculava ao falecido, logo resulta, por simples confronto das duas posições, qual é aquela a que a lei atribui primazia.
O grupo de preceitos relativos às condições subjectivas da colheita termina, no texto proposto, com o artigo 8.º, correspondente ao artigo 11.º do projecto.
Nesta última disposição, estabelece o projecto que «o cadáver humano, ou qualquer das partes do mesmo, não pode ser objecto de transacção de carácter lucrativo», e, por esta redacção, poderia pensar-se que o principio em causa é estranho nas condições subjectivas da colheita.
Esse princípio acha-se formulado, porém, em termos tão vagos e genéricos que se afigura de certo modo deslocado no projecto. E nem sequer ele é intrinsecamente aceitável mesmo pondo-se de lado os actos - sem dúvida compreendidos na letra do artigo - pelos quais alguém, com intuito lucrativo, se incumbe de transportar ou de embalsamar um cadáver, ainda assim ficariam proibidos por aquele preceito actos usuais e não reprováveis, como sejam a venda de esqueletos ou de peças anatómicas para fins de estudo e a venda de múmias e outras relíquias de carácter arqueológico, susceptíveis de serem adquiridas a título oneroso, nomeadamente por museus.
Aquilo que o projecto tem em vista é, decerto, proibir que alguém condicione a sua automação, expressa ou tácita, ao pagamento de qualquer remuneração, e por isso nos pareceu tratar-se de um preceito relativo às condições subjectivas da colheita - o do carácter gratuito da prestação de consentimento.
Mesmo entendido, assim, em termos restritos, o princípio em causa ainda é porém controvertível. Como adverte Pio XII, com a sua suprema autoridade, a questão de saber se deve recusar-se sempre qualquer remuneração continua ainda por resolver sem dúvida que se cometeriam graves abusos se se exigisse uma retribuição, mas seria ir-se muito longe se se julgasse imoral a aceitação ou qualquer exigência de remuneração - o caso é análogo à transfusão de sangue, acerca da qual se pode dizer que é um mérito para o dador o recusar qualquer remuneração, mas não é necessariamente defeito o aceitá-la (129).
A chave do problema está, segundo nos parece, nas considerações feitas acima, no n.º 25, alínea d) o cadáver não pode ser objecto de transacções lucrativas porque não é coisa, e não pode portanto ser objecto de comercio, mas a cedência voluntária dele para fins a que possa ser aplicado dignamente, tal como a cessão, em vida, de sangue ou de leite, constitui um serviço que, embora seja especialmente meritório quando gratuito, pode ser remunerado, desde que a
respectiva retribuição não seja vista como preço de uma coisa, antes seja determinada e paga como compensação adequada a um serviço humano, a uma forma de colaboração entre homens.
Sem embargo, porém, de em tais condições a remuneração ser admissível, julga esta Câmara que, em geral, a orientação do projecto é prudente. São notórios os abusos cometidos por muitos angariadores particulares de sangue, e esse facto mostra ser tanto mais conveniente (...)

(129) Discurso o lugar citado, p. 24.

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evitarem-se abusos semelhantes em relação ao aproveitamento de cadáveres, quanto se trata de uma matéria ainda não experimentada entre nós em termos legais e apta, como nenhuma outra, para gerar susceptibilidades e escândalos.

figurou-se justo, contudo, alargarem-se um pouco mais as excepções admitidas pelo artigo 11.º do projecto. Nele se permite, depois de se proibirem todas as transacções lucrativas sobre cadáveres, que o dador condicione o aproveitamento do seu corpo ou de parte dele «à atribuição de determinado donativo em favor de obras de assistência». Ora, se se aceita, e bem, este princípio, não se pode deixar de reconhecer como moral o acto pelo qual, com espírito semelhante, o falecido tenha condicionado a utilização do seu cadáver a certo benefício para a própria família. Decerto não haverá obra de assistência que mais natural e desejável possa parecer a uma pessoa do que beneficiar aqueles que lhe são queridos e mais próximos lhe são, e por esse motivo pareceu justo permitirem-se as disposições com esse objectivo. Por outro lado, o que pode ser chocante e escandaloso é o acto dê se dispor de um cadáver alheio em troca de vantagens materiais, ou o de conseguir um benefício actual para autorizar o aproveitamento futuro do próprio corpo, isto é, «vender-se» um consentimento que deveria ser dado por caridade ou justiça; nada disto se passa, porém, nas disposições mortis causa: aqueles que dispõem do seu corpo sem nenhuma vantagem actual procedem, em princípio, com simples fim humanitário, e este não é desmentido se, àquela disposição, essas pessoas acrescentarem outras, destinadas a serem cumpridas depois da morte, pelas quais consigam assegurar um benefício futuro a pessoas que lhes sejam queridas.
Pareceu, também, vantajoso substituir-se a expressão «obras de assistência» por «fins de assistência», visto aquele vocábulo obras ter em matéria assistência!, pelo menos na linguagem corrente, o sentido restrito de «instituições» ou até de «instituições particulares», sentido que não seria adequado. E aditaram-se aos fins de assistência os fins pios, tomados no sentido de finalidade de carácter religioso; o qualificativo «pio» poderia, até, ser o único empregado, pois a noção legal de legado pio abrange hoje tanto os fins religiosos como os assistenciais (cf. o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 39 449, de 24 de Novembro de 1953, com a redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 43 209, de 10 de Outubro de 1960), mas, porque não se trata de verdadeiros legados e por ser útil afastar-se toda a possibilidade de dúvida, preferiu-se dizer «fins pios ou de assistência».
Para terminar, resta-nos responder a uma objecção possível: a de a redacção proposta não abranger alguns actos reprováveis que poderiam cair sob a alçada do artigo 11.º do projecto, como seriam os de pagar ou receber quaisquer quantias, acima das autorizadas, para adquirir órgãos ou tecidos lìcitamente recolhidos, ou para conseguir de pessoas encarregadas de velar por cadáveres (funcionários- de hospitais ou de agências funerárias, por exemplo) a complacência necessária para se efectuarem colheitas não permitidas por lei. A objecção seria ilusória, pois, na maioria dos casos pelo menos, esses actos não caberiam também no artigo 11.º do projecto, visto que, em geral, não representariam «transacções» sobre cadáveres ou parte deles, por serem praticados por pessoas desprovidas de poderes sobre os cadáveres, e terem por fim, não tanto o pagamento de um preço, por estes, como a retribuição ilícita de infracções a deveres funcionais. São actos imorais, sim, mas muito mais próximos do suborno ou corrupção, e por isso a proibição directa deles não tem lugar próprio no regime estabelecido pelo diploma projectado; por esse motivo, e para os não deixar a descoberto, mas também não se introduzirem nesse regime matérias estranhas, pareceu mais correcto atingi-los apenas por via penal, e para esse fim se inseriu no artigo 19.º do texto proposto a disposição da alínea d) do n.º 3.º

41. CONDIÇÕES OBJECTIVAS DA COLHEITA. - Os artigos 9.º a 12.º, que; no texto sugerido por esta Câmara, correspondem à presente rubrica, contêm, sem desvios apreciáveis, a doutrina dos artigos 5.º a 7.º do projecto, adaptada aos princípios fundamentais dos artigos 2.º e 3.º do novo texto.
Neles se fixam, em primeiro lugar, as regras respeitantes ao local da colheita. Poderia parecer mais lógico começar-se por estabelecer a necessidade de verificação do óbito, por ser essa a primeira e a mais importante das condições objectivas da recolha; mas, como facilmente poderá concluir-se da leitura dos preceitos em causa, a ordem sugerida é a preferível em virtude do enquadramento que os princípios reguladores do local da colheita oferecem para o regime das restantes condições objectivas.
A regra consagrada, relativamente ao local da intervenção, é a constante do artigo 5.º do projecto e já se encontra justificada no n.º 36 deste parecer. Todavia, para não se deixar de atender, na medida do possível, aos motivos inspiradores do artigo 7.º do projecto (literalmente oposto àquele, como se disse), e ainda para prevenir futuras facilidades conquistadas pelo eventual aperfeiçoamento da técnica, permite-se excepcionalmente, no § único do artigo 9.º do texto proposto, que a entidade superintendente na colheita (o director do respectivo centro), em harmonia com instruções emanadas do Ministério da Saúde e Assistência, autorize, a título genérico ou em casos particulares, que essa intervenção seja executada em outro local, quando atendendo aos meios disponíveis e à natureza da operação, se certifique de que esta pode ser efectuada em condições convenientes.
Os artigos 10.º a 12.º do texto desta Câmara contêm matéria correspondente u do artigo 6.º do projecto. Mas, em vez de se condensar num só artigo a fixação do prazo facultado para a colheita, e a verificação do óbito e aspectos complementares, e de acerca destes últimos pontos, se começar por exigir a apresentação de um certificado de óbito a certa entidade, para depois se regular a própria verificação da morte, deixando-se implícita a exigência dessa formalidade essencial, seguiu-se uma ordem inversa e mais lógica: estabeleceu-se no artigo 10.º a necessidade e os termos da verificação do óbito, e regula-se o atestado que os verificadores devem passar, e, em seguida, prescrevem-se no artigo 11.º as formalidades que, com base nesses e noutros documentos, devem ser satisfeitas pelo médico quê vai efectuar a colheita, e, finalmente, no artigo 12.º prevê-se o prazo durante o qual a colheita é legítima, matéria que, por distinta das anteriores, deve ser autonomizada em preceito próprio.
Fundamentalmente, a orientação destas disposições é igual à do projecto, mas - como se disse já - procurou-se adaptá-la aos princípios fixados nos artigos 2.º e 3.º do texto proposto por esta Câmara. Nomeadamente, tentou-se construir um sistema coerente em que se mantivesse, em todas as hipóteses, a possibilidade de fiscalização eficaz e ao mesmo tempo se evitasse a incongruência de se prescrever um regime apertado e rígido para as colheitas efectuadas em estabelecimentos especializados, permitindo-se que, fora deles, essas intervenções se regessem por princípios vagos e portanto muito mais latos (cf. o n.º 36 deste parecer).
Julga-se que o sistema sugerido, sem agravar sensìvelmente o formalismo que deve rodear as colheitas, tem o

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mérito da harmonia e coerência e assegura, em todos os casos, a subordinação destas operações ao bem comum e à superintendência das entidades especialmente incumbidas de velar por ele nesta matéria.

42. EXECUÇÃO DA COLHEITA - Nesta rubrica podem compreender-se os artigos 13.º e 14.º do texto sugerido, correspondentes aos artigos 8.º e 9.º do projecto.
A doutrina dos dois textos é sensivelmente idêntica e não necessita de justificação pormenorizada.
Cumpre salientar-se, no entanto, que no artigo 13.º do texto sugerido se procurou acentuar a necessidade de as colheitas serem executadas com o respeito devido ao cadáver, querendo-se, com tal exigência, não propriamente limitar as colheitas, mas sim regular-se o modo de as efectuar, trata-se, portanto, de afloramento de uma regra geral, aplicável a todas as intervenções em cadáveres, mas que não deixa de ser oportuno recordar-se aqui.
Para dar satisfação a observações das Faculdades de Medicina de Lisboa e do Porto que pareceram justificados procurou-se também, ao enunciarem-se as limitações impostas na execução das colheitas, esclarecer expressamente que estas podem abranger as mutilações ou dissecações necessárias para verificações indispensáveis à utilização dos tecidos ou órgãos recolhidos.
Finalmente, no § único do mesmo artigo 13.º estabeleceu-se que os elementos de prótese, que poderão usar-se para recompor os cadáveres, devem, em princípio, ser constituídos por matéria consumível conjuntamente com os tecidos do corpo Sabe-se que na prática já tem acontecido que, ao recolher-se a ossada de uma- pessoa falecida anos antes, só encontram, por exemplo, as órbitas preenchidas por olhos de vidro, a surpresa causada por um facto deste género é, necessariamente, muito chocante e dolorosa para a família do defunto, e, estamos certos, não é tecnicamente difícil evitá-la pelo processo que sugerimos e nos parece imposto pela deferência devida à piedade familiar.

43. UTILIZAÇÃO DOS TECIDOS OU ÓRGÃOS RECOLHIDOS - A matéria compreendida nesta rubrica encontra-se regulada, um pouco superficial e dispersamente, nos artigos 10.º e 12.º do projecto, aos quais correspondem os artigos 15.º a 18.º do texto proposto por esta Câmara.
Os princípios estabelecidos nestes últimos preceitos inspiram-se directamente nas disposições do projecto, mas procuram clarificá-las e pô-las de acordo com os princípios fundamentais fixados nos artigos 1.º a 3.º do texto sugerido.
Assim, o artigo 15.º, relativo à requisição de órgãos ou tecidos recolhidos, refere-se apenas aos bancos, e não também aos estabelecimentos onde for executada a colheita, como faz o artigo 10.º do projecto, porque os órgãos recolhidos ou se destinam a aplicação imediata, e não podem ser requisitados por entidades diferentes daquelas que efectuaram a colheita, ou hão-de estar conservados em bancos, e só a estes podem ser solicitados. Também se prevê a requisição para os fins do artigo 1.º, e não apenas para fins terapêuticos, como se lia no artigo 10.º do projecto.
No § 1.º do artigo 15.º do texto sugerido comete-se aos directores dos bancos a satisfação das requisições pela ordem e na quantidade que parecerem equitativas em função do fim a que se destinam os órgãos ou tecidos recolhidos. E um princípio paralelo ao que se estabelece na parte final do § 2.º do artigo 3.º a respeito das próprias colheitas, e constitui mais uma manifestação de que estas intervenções, mesmo quando efectuadas por entidades particulares, são dominadas pelo bem comum.
O § 2.º do artigo 15.º regula a responsabilidade pecuniária pelas despesas da colheita, conservação e distribuição dos órgãos e tecidos recolhidos, em termos semelhantes uns do artigo 10.º do projecto, mas subordinando-se essa responsabilidade a tabelas aprovadas pelo Ministério competente.
No artigo 16.º do texto sugerido regula-se aquela «responsabilidade» dos médicos a que se refere a parte final do artigo 10.º do projecto e que, neste, não se apreende bem se é responsabilidade técnica ou, antes, responsabilidade pecuniária, como acontece no artigo 12.º do projecto. Esclarece-se expressamente que se trata de responsabilidade técnica, e discriminam-se as hipóteses de recolhas efectuadas para aplicação directa e de os tecidos ou órgãos serem requisitados a bancos.
No artigo 17.º estatui-se a regra de sigilo a respeito do destino dos órgãos ou tecidos recolhidos, assim como da respectiva origem, regra essa já justificada na parte final do n.º 37 deste parecer.
O artigo 18.º completa este grupo de disposições, regulando o reembolso, em favor dos médicos de clínica particular, das despesas de colheita, conservação e distribuição, sujeitando-o a tabelas aprovadas pelo Ministro da Saúde e Assistência e exigindo-se que o pagamento se faça mediante nota especificada, visada pelo director do respectivo centro de colheita, assim se procurou evitar abusos ou suspeitas desprestigiantes, fáceis de surgir nesta matéria. Este preceito corresponde ao artigo 12.º do projecto, mas, na redacção dele, fugiu-se a fazer referência ao local da aplicação, nomeadamente ao domicílio, onde parece bastante difícil fazer-se a utilização de enxertos.

44. RESPONSABILIDADE E PENAS - A matéria desta última rubrica acha-se compendiada nos artigos 19.º e 20.º do texto sugerido e corresponde ao disposto no artigo 13.º do projecto.
Neste último preceitua-se que «todas as colheitas praticadas em contravenção do disposto neste diploma sujeitam os infractores às penas e demais responsabilidades estabelecidas para as autópsias realizadas ilegalmente». Esta disposição é também aplicável, por força do § 4.º do artigo 2.º, àqueles que não proporcionem às pessoas que pretendam deduzir oposição à colheita o acesso imediato às entidades a quem se devem dirigir para esse efeito.
Estes preceitos não parecem satisfatórios a esta Câmara.
Antes de mais, é muito vaga aquela referência às «penas e demais responsabilidades estabelecidas para as autópsias realizadas ilegalmente». É possível que o projecto tivesse em vista as disposições que certamente deverão constar de um futuro diploma regulador das autópsias e a cuja próxima publicação se alude em diversos trabalhos preparatórios do projecto. A verdade é, porém, que o que conta são as disposições ora vigentes e, de entre elas, só o artigo 247.º, § 2.º, do Código Penal parece susceptível de incriminar as autópsias ilegais, alias por modo indirecto, pois o que nele se pune são, propriamente, os factos directamente tendentes a quebrantar o respeito devido à memória do morto ou dos mortos, sem violação de túmulo ou de sepultura, é, portanto, um preceito de aplicabilidade duvidosa e cuja interpretação tem, para mais, suscitado divergências na doutrina e na jurisprudência (130).
Por outro lado, é óbvio que «as colheitas praticadas em contravenção do disposto» no diploma em estudo são sus-(...)

(130) Sobre esta questão veja-se o citado parecer n.º 59/59, de 9 de Junho de 1960, da Procuradoria-Geral da República, no Boletim do Ministério da Justiça
n.º 105, de Abril de 1961, pp. 401 e segs.

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(...)ceptíveis de apresentar gravidade muito variável não mereceriam igual tratamento, por exemplo, aqueles que se limitassem a executar uma colheita depois de terem decorrido as dezoito horas em que ela era permitida e aqueles que efectuassem essa intervenção sem o óbito se encontrar verificado nos termos legais, ou contra a expressa proibição do falecido. Acresce que há, nesse diploma, aspectos cuja violação não consiste na prática de colheitas ilegais e que, não obstante, são dignos de serem sancionados pela cominação de penas. Assim acontece com o princípio da gratuitidade da cessão do cadáver, a contravenção do qual já a Procuradoria-Geral da República propunha se aplicasse aquele § 2.º do artigo 247.º do Código Penal (131), e, mais ainda, com a segurança e veracidade da certificação do óbito para efeitos da colheita. Pelo § único do artigo 246.º do Código Penal, o facto de um médico passar a certidão de óbito de um indivíduo que, depois, se reconhece estar vivo, é punido com prisão agravada com multa, pena inadequada à extrema gravidade que essa infracção pode ter nesta matéria de colheita de tecidos ou órgãos, e, se é certo que, apesar daquela disposição, o médico não deixaria de incorrer em outras sanções, se as colheitas efectivamente se executassem no corpo de um vivo por ele dado como morto, também é verdade que - mais que não seja era vista do fim da intimidação - o melhor é consignar-se doutrina expressa a esse respeito, prevendo-se, inclusivamente, o agravamento das penas aplicáveis, em atenção à gravidade da matéria em causa.
Por todos estes motivos se elaboraram os artigos 19.º e 20.º do texto sugerido, nos quais se procurou prever as infracções mais importantes e se tentou dosear as penas por forma tanto quanto possível ajustada a respectiva gravidade.
Importa, no entanto, não se desconhecer que as colheitas de tecidos ou órgãos podem ser reclamadas por circunstâncias de tal forma prementes e graves que alguns dos actos incriminados neste diploma sejam praticados em condições de ao agente não ser humanamente exigível um comportamento diverso.
Por isso se introduziu, no artigo 19.º do texto sugerido, um preceito pelo qual se procurou quebrar a rigidez do sistema em relação às infracções em que essas circunstâncias podem verificar-se mais facilmente e em condições de merecerem maior atenção.

45. OBSERVAÇÕES FINAIS - Antes de terminar, esta Câmara deseja reafirmar o aplauso que, em geral, deu ao projecto de decreto-lei em estudo, não só pela oportunidade e interesse prático que ele oferece, mas também pela preocupação, nele claramente manifestada, de respeitar os princípios de justiça e a prudência exigidos por uma matéria cheia de melindre e ainda não regulada entre nós.
A Câmara pensa, até, que, na nova redacção proposta para o diploma examinado, mais não fez do que estruturar os princípios dominantes do projecto, mais ou menos explícitos no texto deste e nos respectivos trabalhos preparatórios.
Nessa nova redacção procurou-se encontrar, com harmonia e coerência, um sistema que garantisse as várias solicitações, por vezes aparentemente contraditórias, que se erguem em redor deste complexo tema.
Tentou-se delinear uma estrutura definida, mas sem se preconizar uma organização propriamente dita, rígida e pesada. Montou-se um sistema onde são claros o império e a primazia do bem comum, sem se cair na centralização ou no estatismo, e por isso se manteve sempre desperta a preocupação de se respeitar o exercício e a responsabilidade da medicina privada, embora enquadrando-a naquele sistema directamente dominado pelo interesse geral. Procurou-se, por fim, rodear o aproveitamento dos cadáveres das garantias legais, técnicas e administrativas indispensáveis, assegurando-lhe, todavia, a máxima maleabilidade e, quanto possível, a maior simplicidade nos aspectos meramente formais.
Conquanto se trate de matéria tão restrita como especializada, nela se diligenciou, afinal, por observar aquele equilíbrio, difícil mas ideal, entre a iniciativa autónoma das pessoas e dos organismos, por um lado, e, por outro, as exigências do bem comum, equilíbrio tão característico da mentalidade ético-social da nossa Constituição Política e tão radicalmente contrário à liberdade ilimitada e infrene, como à centralização e à colectivização.
Neste propósito houve que confiar, em numerosos pontos, à acção do Ministério da Saúde e Assistência grande parte dos pormenores do regime proposto, e por isso não seria difícil apodar-se este de simples estrutura formal, de conteúdo indeterminado. Mas tal crítica seria injusta, pois os grandes traços do regime e as directrizes que marcam o espírito do sistema são bem claros e precisos. Demais, só assim era possível edificar-se uma estrutura que, simultaneamente, fosse maleável e segura, e, por esta forma, o número e âmbito dos centros de colheita será mais ou menos extenso, as condições do aproveitamento de cadáveres mais ou menos severas ou benévolas e a intervenção dos Poderes Públicos mais ou menos ampla ou discreta, consoante o que for sendo exigido pela experiência, e, de começo, só a prudência e o senso dos executores da lei poderão tornar real e vivo aquele difícil equilíbrio de princípios e de exigências práticas que se procurou encontrar ao redigi-la.

III

Conclusões

Em síntese, a Câmara Corporativa dá a sua plena concordância às providências legais consubstanciadas no projecto em exame, o qual lhe merece o mais franco aplauso, seja pelo seu interesse e oportunidade, seja pela justeza de princípios com que foi elaborado.
Mas, para melhor estruturação e harmonia do sistema e de acordo com o que fica exposto a respeito do exame na especialidade, sugere a Câmara que a redacção do projecto seja substituída pela seguinte.

ARTIGO 1.º

(Cf. o artigo 1.º do projecto)

É permitida nos termos do presente decreto-lei a colheita, no corpo de pessoa falecida, de tecidos ou órgãos de qualquer natureza, nomeadamente ossos, cartilagens, vasos, pele e globos oculares, quando eles forem necessários para fins terapêuticos ou científicos e essa intervenção, para ser útil, não possa aguardar o decurso do prazo legal de prevenção contra a morte aparente.
§ único. Ainda que autorizadas pelo falecido, as colheitas não podem efectuar-se ao abrigo deste artigo quando forem contrárias à moral ou aos bons costumes, ou (...)

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quando se verifique o caso de morte sem assistência médica, de morte violenta ou qualquer outro em que, por lei, deva proceder-se a autópsia forense.

ARTIGO 2.º

(Cf. o artigo 14.º do projecto)

Os tecidos ou órgãos destinam-se a ser utilizados em estabelecimentos oficiais ou na clínica particular, e podem ser recolhidos ou para aprovisionamento de bancos onde sejam conservados para esses efeitos, ou, directamente, para aplicação em casos determinados.
§ único. Compete ao Ministro da Saúde e Assistência determinar, por portaria, a criação de bancos gerais ou especializados em olhos ou outros órgãos ou tecidos, e bem assim autorizar a instalação deles por entidades particulares, mandando-lhes passar, para esse efeito, alvará donde constem as condições da autorização, sempre sem carácter de monopólio.

ARTIGO 3.º

(Cf. os artigos 5.º e 14.º do projecto)

A colheita de tecidos ou órgãos é da exclusiva competência dos bancos previstos no artigo precedente e, ainda, das clínicas e institutos universitários, e dos hospitais e casas de saúde, públicos ou privados, que, sob parecer favorável da Direcção-Geral de Saúde, a tal forem autorizados por portaria do Ministro da Saúde e Assistência e, também, do Ministro da Educação Nacional, no caso de estabelecimentos universitários.
§ 1.º Cada banco ou estabelecimento autorizado constituirá um centro de colheita e, quando não pertencer a entidades privadas, a sua acção poderá estender-se a outras clínicas ou institutos universitários, ou aos estabelecimentos de saúde ou assistência do Estado, das autarquias locais ou de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa que, para esse efeito, lhe foi em anexados por portaria nos termos do corpo deste artigo.
§ 2.º O director de cada banco ou estabelecimento autorizado nos termos do corpo deste artigo será director do centro respectivo, competindo-lhe coordenar o funcionamento deste com o dos estabelecimentos anexos, para os efeitos deste diploma, e superintender no serviço de colheitas, por forma a assegurar a satisfação equilibrada das necessidades públicas e privadas, em conformidade com o disposto no artigo 2.º e com as instruções aprovadas pelo Ministro da Saúde e Assistência.
§ 3.º A recolha será executada por médicos habilitados com a especialidade competente, segundo os casos, e constantes da relação mandada afixar em lugar público pelo director do centro a cujo quadro pertençam ou em que se hajam inscrito para este efeito.

ARTIGO 4.º

(Cf. o artigo 2.º do projecto)

Qualquer pessoa, maior ou emancipada, pode proibir ou autorizar que, depois de morta, sejam extraídos órgãos ou tecidos do seu corpo para os fins do artigo 1.º desde que o faça por alguma das seguintes formas:
1.º Por declaração verbal, reduzida a auto;
2.º Por documento por ela escrito e assinado, com a letra e a assinatura reconhecidas por notário;
3.º Por documento autêntico ou autenticado;
§ 1.º A declaração verbal a que se refere o n.º 1.º do corpo deste artigo deve obedecer aos seguintes requisitos:
1.º Ser expressa, não produzindo efeitos a mera resposta afirmativa a perguntas formuladas pelas pessoas que a ela assistam;
2.º Ser prestada perante o director de algum dos centros oficiais de colheita, ou, no caso de o declarante se encontrar internado em estabelecimento anexo a um desses centros, perante o respectivo director ou administrador, e, em qualquer caso, ainda na presença de duas testemunhas de maioridade que possam ler e escrever e não sejam funcionários dos mesmos serviços, nem médicos constantes da relação prevista no § 3.º do artigo 3.º;
3.º Ser reduzida a auto, lavrado pela entidade que a receber e assinado por ela e pelas testemunhas;
4.º Ser esse auto assinado pelo declarante ou conter a menção expressa de que ele não o assina por se encontrar impossibilitado de o fazer;
§ 2.º A declaração, prestada nos termos do parágrafo anterior por pessoa internada em algum dos estabelecimentos aí referidos, fica sem efeito se ela tiver alta do mesmo estabelecimento.
§ 3.º A proibição, feita pela forma prevista nos n.ºs 2.º e 3.º do corpo deste artigo, só produzirá efeitos em relação aos bancos ou estabelecimentos referidos no n.º 2.º do § 1.º se for comunicada, durante a doença de que o declarante vier a falecer ou até três horas depois do seu óbito, ao respectivo director ou administrador, ou ao director clinico do serviço onde o declarante se encontre internado ou haja falecido, ou a qualquer dos médicos constantes da relação prevista no § 3.º do artigo 3.º que esteja presente no mesmo serviço.
§ 4.º Todo o pessoal dos serviços a que se refere este artigo é obrigado a proporcionar as condições necessárias para serem feitas es declarações de autorização ou proibição e a facilitar o imediato acesso às entidades referidas no parágrafo precedente das pessoas que, acompanhadas de duas testemunhas, pretendam fazer a comunicação aí prevista.

ARTIGO 5.º

(Cf. o artigo 2.º do projecto)

Não é permitido efectuar-se a colheita de tecidos ou órgãos no corpo de pessoa que a tenha proibido nos termos do artigo anterior, salvo se ela foi ordenada por lei ou autorizada por portaria do Ministro da Saúde e Assistência, por grave motivo de interesse público.

ARTIGO 6.º

No caso de autorização, a recolha será requisitada a qualquer dos centros de colheita pela família, pelos herdeiros ou pelos testamenteiros do falecido, e poderá ser oficiosamente determinada pelo director de algum desses centros ou a ele requisitada pelo director de algum dos estabelecimentos anexos, quando a autorização tiver sido prestada perante essas entidades ou lhes tiver sido comunicada, ou quando o óbito tiver ocorrido nos respectivos serviços.
§ 1.º Não obstante a autorização do falecido, a colheita não se efectuará se o director do centro a não julgar útil para os efeitos do artigo 2.º ou se não se verificarem todas as condições legais e técnicas para tal necessárias.
§ 2.º A rejeição da colheita autorizada pelo falecido, nos termos do parágrafo antecedente, não prejudica os direitos, sucessórios nem outros direitos privados resultantes da morte, ainda que o dador os haja condicionado à efectivação dessa colheita.

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§ 3.º Se se proceder à colheita autorizada pelo falecido, todos os encargos respectivos, incluindo os de deslocação de pessoal ou material e os de transporte do cadáver, serão suportados pelo centro que a houver determinado, salvo se o dador expressamente os tiver imposto aos seus herdeiros ou legatários.

ARTIGO 7.º

(Cf. o artigo 3.º do projecto)

Se não tiver havido proibição nem autorização relevante, em conformidade com o artigo 4.º, e a família do falecido não se opuser, a colheita de tecidos ou órgãos pode efectuar-se desde que o óbito tenha tido lugar em instalações não particulares de algum centro oficial de colheita ou dos estabelecimentos a ele anexados nos termos do § 1.º do artigo 3.º
§ 1.º A oposição familiar pode ser feita pelo cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, ou por qualquer dos ascendentes ou descendentes do falecido, mas essa oposição não é permitida aos parentes se o cônjuge consentir na colheita, tal como não é facultada aos descendentes no caso de assentimento dos ascendentes, ou, em cada uma destas categorias, aos parentes mais remotos se houver consentimento de algum parente em grau mais próximo.
§ 2.º Esta oposição pode ser feita ou em vida do doente, por carta registada com aviso de recepção e dirigida ao director ou administrador, ou ao director clínico do serviço onde aquele se encontre internado, sendo-lhe aplicável o disposto no § 2.º do artigo 4.º, ou até três horas depois do óbito, em harmonia com o disposto nos §§ 3.º e 4.º do artigo 4.º
§ 3.º Para os efeitos da parte final do parágrafo anterior, qualquer das entidades referidas nesse preceito ou o médico que se proponha fazer a colheita deve, logo que se dê o óbito, participar por escrito esse facto, no domicílio indicado no boletim de inscrição do doente, a qualquer das pessoas mencionadas no § 1.º, por intermédio de algum dos funcionários do respectivo serviço, o qual cobrará recibo da participação ou, se ele for recusado ou não for encontrada nenhuma daquelas pessoas, lavrará auto dessa ocorrência, assinando-o conjuntamente com duas testemunhas ou com algum agente da autoridade que esteja presente.
§ 4.º No caso de oposição relevante, observar-se-á o disposto no artigo 5.º
§ 5.º Se não for possível participar o óbito nas duas horas subsequentes a este e não houver oposição espontânea, a colheita é permitida a partir da quinta hora posterior ao falecimento.

ARTIGO 8.º

(Cf. o artigo 11.º do projecto)

É ilícito e nulo todo o acto pelo qual alguém receba ou pretenda adquirir, para si ou para outrem, direito a receber qualquer remuneração pelo facto de autorizar ou de não se opor a que se façam colheitas de órgãos ou tecidos no cadáver próprio ou no de outra pessoa.
§ único. É válida, porém, a disposição pela qual o falecido tenha imposto ao serviço que, por ele autorizado, determine a colheita de tecidos ou órgãos do seu corpo, o encargo de custear o seu funeral ou de aplicar certa quantia, que não exceda o preço usual deste, a fins pios ou de assistência, ou em donativos em favor das pessoas indicadas no § 1.º do artigo 7.º

ARTIGO 9.º

(Cf. os artigos 5.º E 7.º do projecto)

As colheitas, qualquer que seja o lugar do óbito, só podem efectuar-se em instalações apropriadas dos serviços mencionados no corpo do artigo 3.º deste diploma.
§ único. Os directores dos centros de colheita podem, todavia, em harmonia com as instruções aprovadas por portaria do Ministro da Saúde e Assistência, permitir, a título genérico ou em casos singulares, que as colheitas efectuadas pelos respectivos serviços se façam em lugar diverso do prescrito neste artigo, desde que se certifiquem de que, pelos meios disponíveis e pela natureza dessas intervenções, estas se podem executar aí com as condições técnicas convenientes e sem quebra do decoro e do respeito devidos ao cadáver e às pessoas que o tenham a seu cargo.

ARTIGO 10.º

(Cf. o artigo 6.º do projecto)

Nenhuma colheita de tecidos ou órgãos se pode efectuar nos termos deste decreto-lei sem que o óbito seja verificado pelo menos por dois médicos, segundo as regras de semiologia médico-legal que, ouvidos os departamentos oficiais competentes e a Ordem dos Médicos, forem definidas por portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e da Saúde e Assistência.
§ único. Os médicos verificadores passarão em triplicado um atestado de óbito assinado por todos eles, no qual se mencione a identidade do falecido, a data, hora e local da morte e a causa que a tiver determinado, se relatem as observações feitas e os resultados obtidos e se declare que o cadáver se encontra em condições de nele se fazerem as colheitas previstas neste diploma.

ARTIGO 11.º

(CF. o artigo 6.º do projecto)

O médico que proceder à colheita não pode iniciá-la sem que o director do respectivo centro lance o seu visto em todos os exemplares do atestado de óbito a que se refere o § único do artigo anterior e no documento comprovativo do consentimento, quando necessário, ficando esse documento e um daqueles exemplares arquivados no respectivo serviço.
§ 1.º Outro exemplar do atestado pertencerá ao médico que efectuar a colheita e um terceiro será por ele remetido sob registo do correio, nas 24 horas seguintes à intervenção, ao delegado ou subdelegado de saúde competente.
§ 2.º No caso de a colheita, ao abrigo do § único do artigo 9.º, se efectuar fora da localidade onde funciona o respectivo centro, o visto a que se refere o corpo do presente artigo pode ser substituído pelo do delegado ou subdelegado de saúde competente, sendo o terceiro exemplar do atestado e o documento comprovativo do consentimento, quando necessário, remetidos ao director daquele centro, em conformidade com o disposto no § 1.º

ARTIGO 12.º

(Cf. o artigo 6.º do projecto)

As colheitas previstas neste diploma só podem efectuar-se dentro das dezoito horas seguintes ao óbito.

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ARTIGO 13

(Cf o artigo 8.º do projecto)

Na execução das colheitas deve observar-se rigoroso respeito pelo decoro do cadáver e evitar-se mutilações ou dissecações não necessárias para a recolha dos tecidos ou órgãos e para as verificações indispensáveis e utilização destes e por forma a quanto possível não prejudicar a realização da autópsia, se vier a mostrar-se necessária.
§ único. Depois da operação deverá ser restabelecida a morfologia do corpo, podendo usar-se para esse efeito elementos de prótese que, na medida do possível, devem ser formados de matéria consumível conjuntamente com o cadáver

ARTIGO 14

(Cf o artigo 9.º do projecto)

Para cada colheita será lavrado, em duplicado, um auto, no qual se registarão a identidade do falecido, a data e hora da verificação do óbito, o nome dos médicos verificadores, o visto e a remessa de documentos exigidos no artigo 11.º, a hora e circunstâncias da operação e o destino dado aos órgãos ou tecidos recolhidos, nos termos do artigo 2.º.
§ único. Os dois exemplares do auto serão assinados pelo médico que efectuar a operação e pelo director do respectivo centro, ficando um exemplar arquivado neste e sendo o outro remetido, no prazo de 24 horas e sob registo do correio, à delegação ou subdelegação de saúde competente.

ARTIGO 15.º

(Cf o artigo 10.º do projecto)

Os órgãos ou tecidos conservados em bancos podem ser requisitados pelos directores dos serviços ou pelos médicos especialistas que pretendam utilizá-los para os fins do artigo 1.º.
§ 1.º Compete ao director dos bancos satisfazer as requisições pela ordem e na quantidade que lhe parecer equitativa em função dos fins a que se destinem os órgãos ou tecidos solicitados.
§ 2.º As entidades privadas que requisitarem órgãos ou tecidos pagarão, a título de compensação pelos encargos da colheita, conservação e distribuição, as taxas fixadas por portaria do Ministro da Saúde e Assistência.

ARTIGO 16.º

(Cf o artigo 10º do projecto)

A responsabilidade técnica pela conservação e utilização dos órgãos ou tecidos requisitados nos termos do artigo anterior passa para a entidade requisitante logo que eles lhe sejam entregues, tal como cabe inteiramente ao médico que efectuar a colheita no caso de esta se destinar directamente a aplicação em casos determinados.

ARTIGO 17.º

Não é lícito, salvo em cumprimento de mandado judicial, revelar à família ou herdeiros do falecido a aplicação concreta dada aos tecidos ou órgãos recolhidos, nem ao beneficiário a origem dos que forem utilizados para fins terapêuticos.

ARTIGO 18.º

(Cf o artigo 12.º do projecto)

Os médicos que, para fins terapêuticos, usarem tecidos ou órgãos cadavéricos na clínica particular, terão direito a ser reembolsados pelo beneficiário das taxas pagas nos termos do artigo 15.º e de outras despesas de colheita e conservação, sempre de acordo com as tabelas aprovadas por portaria do Ministro da Saúde e Assistência e mediante nota especificada, visada pelo director do centro em que o médico interessado esteja inscrito ou, não o estando em nenhum, pelo delegado ou subdelegado de saúde competente.

ARTIGO 19.º

(Cf o artigo 2.º, § 4.º, e o artigo 13 º do projecto)

Além da responsabilidade criminal, civil e disciplinar em que, nos termos gerais de direito, incorram os infractores deste diploma, são puníveis:

1.º Com a pena de prisão até dois anos.

a) Aquele que proceder à colheita de tecidos ou órgãos no corpo de pessoa falecida, se para tal não estiver autorizado nos termos do § 3.º do artigo 3.º, ou se agir sem o óbito se encontrar certificado nas condições do artigo 10.º,

b) Aquele que falsamente lavrar auto de autorização verbal do falecido e aquele que, conhecendo essa falsidade, fizer colheitas de tecidos ou órgãos ao abrigo da suposta autorização,

2.º Com a pena de prisão até um ano.

a) Aquele que proceder à colheita de tecidos ou órgãos no corpo de pessoa falecida, sem autorização desta, ou com a proibição dela ou oposição da família, nos casos em que aquela autorização seja exigível, ou esta proibição ou oposição seja relevante,

b) Aquele que assinar como testemunha um auto de autorização verbal de colheita por parte do falecido, sabendo que esse auto é falso,

c) Aquele que receber alguma remuneração para consentir ou não se opor a que se façam colheitas no cadáver de outra pessoa e aquele que der essa remuneração, a qual será perdida em favor da assistência pública,

d) Aquele que, fora dos casos previstos no § 2.º do artigo 15.º e no artigo 18.º, dê alguma quantia para efectuar uma colheita de tecidos ou órgãos nas condições deste diploma, ou para obter esses mesmos tecidos ou órgãos, e aquele que receber essa quantia, a qual será perdida em favor da assistência pública,

3.º Com pena de prisão até seis meses.

a) Aquele que efectuar alguma colheita de tecidos ou órgãos no corpo de pessoa falecida, em contravenção dos preceitos do presente decreto-lei ou de outras disposições aplicáveis por força dele, quando não se verifique nenhuma das circunstâncias previstas nos números anteriores e suas alíneas,

b) Aquele que receber alguma remuneração para autorizar que, depois de morto, sejam extraídos tecidos ou órgãos do seu corpo e aquele que der essa remuneração, a qual será perdida em favor da assistência pública,

c) Aquele que infringir o disposto no § 4.º do artigo 4.º e no § 2.º do artigo 7.º na parte referente àquele preceito, ainda que o faça apenas por meio de atitudes dilatórias ou evasivas, tendentes a dificultar as declarações, comunicações ou oposições aí previstas.
§ único. Não tem lugar a punição prevista neste artigo relativamente ao médico que procedeu a colheita

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ilícita, ou àquele que deu alguma remuneração proibida por este diploma, quando o hajam feito na convicção de que esses factos constituíam meio único e indispensável de evitar a morte iminente de uma pessoa, em termos de não ser moralmente exigível que procedessem por outra forma.

ARTIGO 20.º

Será agravada, segundo as regras gerais, a pena dos crimes de homicídio voluntário ou involuntário, ou de ofensas corporais voluntárias ou involuntárias, quando a infracção for cometida por meio de algum dos seguintes factos.
l.º Certifica-se um óbito para os efeitos do artigo 10.º deste diploma, quando com isso se dê ocasião a que se proceda a uma colheita no corpo de pessoa viva;

2.º Proceder-se a colheita sem se encontrar verificado o óbito nos termos do artigo 10.º ou, tendo-se suscitado dúvidas sobre ele, se a intervenção recaiu efectivamente no corpo de pessoa viva.

Palácio de S. Bento, 6 de Dezembro de 1963.

António dos Reis Rodrigues
Domingos Cândido Braga da Cruz
Fernando Baeta Bissaia Barreto Rosa
João José Lobato Guimarães
João de Castro Mendes
José Augusto Vaz Pinto
José Damasceno Campos.
José Gabriel Pinto Coelho
Manuel Duarte Gomes da Silva, relator.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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