Página 503
REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
VIII LEGISLATURA - 1964 7 DE MARÇO
PARECER N.º 15/VII1
Projecto de lei n.º 21/VIII
Alterações ao Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937
(Uso de acendedores e isqueiros)
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos ao artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 21/VIII, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecção de Justiça), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Jorge Martins da Motta Veiga, Fernando Emygdio da Silva, Manuel Jacinto Nunes e Pedro Mário Soares Martinez, sob a presidência de S, Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
I
Apreciação na generalidade
1.º
Preliminares. Justificabilidade do projecto
1. Apresentado à Assembleia Nacional o projecto de lei n º 21/VIII, contendo "alterações ao Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937 (uso de acendedores e isqueiros)", foi este enviado à Câmara Corporativa para sobre ele incidir o respectivo parecer.
E a primeira pergunta para a qual parece dever a Câmara buscar resposta cabal é a que respeita à justificação ou fundamentação de uma providência legislativa sobre a matéria. Fundamentação em que distinguiremos dois aspectos em face da lei, a qual, quanto a um projecto de lei inovadora surgido no seio de um órgão de soberania como a Assembleia Nacional, consiste puramente na sua constitucionalidade, e em face da justiça e do bem comum.
2.º
Fundamentação legal
Constitucionalidade
2. Examinaremos, assim, antes de mais, o aspecto da fundamentação em face da lei -legalidade, lato sensu - do projecto apresentado, a qual se traduzirá na sua constitucionalidade.
Demonstrá-la-emos rapidamente em face dos dois preceitos constitucionais que poderiam - sem fundamento - ser chamados à colação o artigo 92.º e o artigo 97.º da Constituição Política.
3. Quanto ao artigo 92º - Cabe à Assembleia Nacional, nos termos do artigo 92.º da Constituição Política, a "aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos", embora este preceito seja juridicamente uma lex imperfecta, como
Página 504
504 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
se vê da sua parte final, mal ficaria a Câmara Corporativa não apontar imediatamente qualquer desvio ou violação que a esse preceito se pretendesse fazer.
No entanto parece que, sob este prisma, não sofre dúvida razoável a constitucionalidade do projecto. Com efeito, ele incide sobre "bases gerais de um regime jurídico" - o do uso de acendedores e isqueiros. Que o objecto desse regime jurídico seja de relativamente pequena importância, já não é relevante para o efeito de aplicação do preceito constitucional referido. A Assembleia Nacional é soberana quanto à escolha da matéria que versa legislativamente, só quanto à forma lhe impõe limitações o citado artigo 92.º. Esta disposição poderá exigir a revisão de preceitos pesada e minuciosamente redigidos, como o da base II do projecto, mas esse ponto caberá melhor aquando do exame na especialidade.
4. Quanto ao artigo 97.º - Também ao projecto, na sua generalidade, não tem aplicação a proibição contida na parte final do artigo 97.º da Constituição Política. A esse respeito poderiam levantar-se - sem razão - dúvidas em face dos preceitos das bases IV e V, essas dúvidas, analisá-las-emos quando do exame na especialidade.
3.º
Fundamentação axiologica
Quanto ao conteúdo a mérito actual
5. Resta agora a justificação do projecto em face da justiça e do bem comum.
E sob este prisma há dois pontos a considerai; primeiro, quanto ao conteúdo da inovação proposta, e aqui ainda se podem distinguir dois aspectos, o do seu mérito actual - será o regime proposto melhor que o vigente, que se pretende substituir? - e o do seu mérito potencial - não haveria regime melhor ainda, que se lhe pudesse substituir? Em segundo lugar, há a considerar a forma pela qual a inovação se pretende operar - será de alterar-se o regime vigente por meio de lei (em sentido formal)?
Todos estes aspectos serão considerados sucessivamente no parecer.
6. E assim, encaremos o primeiro, o mérito da inovação tal como se apresenta (independentemente de como se poderia apresentar).
O conteúdo inovador do projecto assenta em dois pontos principais.
A) Alargamento do prazo de isenção a pessoas não residentes na metrópole,
B) Atenuação das medidas previstas contra o uso ilegal de acendedores e isqueiros, sobretudo pela supressão da sua incidência pessoal.
7. A) Dado que esta finalidade inspira uma única disposição do projecto, a da base IV, reservaremos a sua análise para quando do exame na especialidade.
8. B) A ideia mestra do projecto, segundo parece à Câmara Corporativa, é a da atenuação, através muito particularmente da supressão da incidência pessoal (1), das medidas tomadas contra o uso ilegal de acendedores e isqueiros. Como tal ideia inspira quatro das cinco bases do projecto (com exclusão apenas da base IV), parece curial examiná-la nesta parte do parecer, reservada à apreciação na generalidade.
Esta linha de orientação é seguida quer quanto às medidas processuais (captura, custódia), quer quanto às próprias penas.
Assim, dispõe o projecto que o não pagamento imediato da multa só envolve captura do infractor em caso de não identificação (base II). Limita-se assim o âmbito de uma medida que, não sendo em rigor uma pena, no entanto se lhe assemelha pela imposta restrição da liberdade pessoal.
E antecipe-se desde já que parece à Câmara inteiramente de aplaudir este sistema. Mas o ponto será retomado quando do exame na especialidade da base II.
Quanto às penas, restringe-se a sua pessoalidade, quer a de origem - as multas aplicadas a funcionários públicos não são elevadas ao dobro (base V) - , quer a de incidência - as multas deixam de ser convertíveis em prisão (base I) e deixam de ter reflexos ou efeitos profissionais ou disciplinarem (base III).
Parecem à Câmara de aplaudir sem reservas estas inovações.
Agora, na apreciação do projecto na generalidade, a atenção incidirá apenas sobre o que parece ser o seu objecto essencial, a abolição da incidência pessoal das medidas tomadas contra o luso ilegal de acendedores e isqueiros (2).
A ideia fundamental do projecto parece ser realmente a de limitar a sanção de um delito (contravenção) que lesa unicamente (e só reflexamente) os interesses patrimoniais do Estado, a medidas de natureza e incidência também ùnicamente patrimoniais. Bastaria este paralelismo lógico talvez para justificar o regime do projecto, mas parece à Câmara Corporativa que ele pode basear-se ainda na seguinte linha de considerações, que se procurará em seguida demonstrar mais pormenorizadamente.
A) As penas curtas de prisão, ou as situações equivalentes, como a custódia, são de evitar na medida do possível,
B) Sobretudo no caso de crimes que poderíamos dizer de pura criação legal, como o que está em causa,
C) E designadamente tratando-se de uma infracção fiscal.
A) Contra as penas curtas de prisão tem-se a doutrina penalista pronunciado, e como a questão interessa neste ponto - a prisão por uso ilegal de acendedores ou isqueiro não pode ir além de dez dias (3) - convém examiná-la com maior minúcia, até porque parece à Câmara Corporativa que a importância do projecto vem menos das soluções em si que dos princípios que põe em causa.
Contra o sistema penal dos tempos antigos, elevaram-se no século XVIII vozes de protesto, entre as quais se salienta a de Beccaria, em Itália.
(1) Nesta abrange-se a incidência profissional (cf base III [...] fine)
(2) Incidência potencialmente pessoal, no caso da conversão da multa em prisão.
(3) 20 sendo o infractor funcionário público - a multa é de 250$ (Decreto-Lei n.º 28 219, de 7 de Junho de 1937, artigo l.º § 1.º), elevada ao dobro "se o delinquente for funcionário do Estado, civil ou militar, ou dos corpos administrativos" (artigo 2.º do mesmo diploma, cuja revogação se propõe - base V do projecto) e é convertida em multa a 25$ por dia (artigo 11.º do mesmo diploma, cuja revogação igualmente se propõe - base I do projecto)
Página 505
7 DE MARÇO DE 1964 505
A este momento de reacção, sentimental e destrutivo, seguiu-se um momento de reflexão, lógico e construtivo, que deu origem à chamada- escola clássica (do direito penal).
Nesta escola clássica chocaram-se pois os mais nobres sentimentos humanitários com a mais fria e muitas vezes desapiedada lógica.
A pena curta privativa de liberdade é o resultado do encontro destas duas tendências.
Da tendência humanitária, que preconizava a abolição das antigas penas cruéis e infamantes e a sua substituição pela pena privativa da liberdade-que, segundo o parecer da comissão revisora do Código Penal Português de 1852, deveria teòricamente ser a única pena.
Mas também do seu orgulhoso logicismo de jurisprudência de conceitos, porque nunca a escola clássica se preocupou em apurar se todas estas penas privativas de liberdade, mesmo quando extremamente curtas, seriam ainda eficazes, cumpririam realmente a sua função social.
O problema da função social, ou da eficácia, ou do fim da pena criminal, foi relegado pela escola clássica para plano muito secundário.
A pena corresponde ao delito como o efeito à causa, pune-se porque e não para que (teorias absolutas da pena criminal, que encontraram apoio firme em Kant e Hegel-Koestlin).
Punindo-se porque, o grande princípio a que deve obedecer a pena é o da sua matematicamente exacta adequação à gravidade do delito cometido, o efeito deve corresponder à causa. Um cume muito grave exígua uma punição muito prolongada, um outro pouco grave, outra pouco prolongada.
E mesmo que o jogo matemático destes princípios se traduza numa prisão de dois dias, esta será de aplicar-se, ainda que não sirva absolutamente para nada.
Já em 1864 em pleno domínio da escola clássica, Bonneville de Marsangy (4) se insurgiu contra as penas curtas de prisão, consubstanciando as suas reflexões na seguinte fórmula "a pena privativa de liberdade não deveria ser nunca pronunciada quando a pena pecuniária basta à repressão".
A evidência dolorosa deste princípio levou-o a intervir activamente nos Congressos Penitenciários Internacionais de Londres (1872) e Estocolmo (1878), mas sem resultado, devido ao triunfo então absoluto e mundial dos princípios da escola clássica.
Coube à escola positiva um novo movimento humanitário contra o logicismo excessivo da escola clássica.
Acima do crime como ente jurídico abstracto pôs o delinquente real, o uomo delincuente hominis causa omne [...] constitutum est.
Reflexo desta orientação foi o primado dos problemas do fim, função social e eficácia da pena, resolvidos segundo o inegável axioma de Plutão nemo prudens [...] peccatum, scd ne pecectur.
O fim da pena não é repressivo, mas preventivo, segundo outra técnica terminológica, toda a repressão (entendida como qualquer reacção da sociedade contra o crime) deve ter fim preventivo. É preciso que a pena seja, não só justa, mas também útil ou eficaz.
É um dos resultados a que quase unânimente chegou a análise positiva dos problemas penais foi o seguinte. Les courtes peines privatives de la liberté sont presque toujours inutiles et même invisibles (5).
Em suma a pena curta privativa de liberdade é inútil e prejudicial. A sua eficácia preventiva não está em correlação com os prejuízos que causa.
Neste sentido se pronunciaram, como nota o criminalista espanhol Cuello Calon (6), penalistas como Mittelstadt, Rosenfeld, Franz von Liszt, Heilborn, Vila Miquel, Cuche, etc. , congressos e associações de juristas, como os Congressos Penitenciários de Roma (1883), S. Petersburgo (1890) e Paris (1895), aos quais podemos juntar os de Londres (1925), os Congressos Internacionais da União Internacional de Direito Penal (Bruxelas, 1889, Berna, 1895, Cristiânia, 1891) e os dos Juristas Alemães de Bremen (1895).
Todas estas entidades, juricientistas e colectividades honar voluntatis condenaram a pena curta privativa de liberdade e pediram a sua substituição por outras medidas.
Um dos maiores criminalistas desta plêiade, Adolphe Puns (7), resume neste trecho todas as críticas que se dirigiram ao instituto em exame.
786 Les peines do courte durée sont onéreuses, car dans, tous les pays l'entretien du détenu dans la prison, quelle que soit la perfection du régime pénitentiaire, ne sera jamais un moyen d'amendement ou de régénération.
Elles n'auront pas d'effet intimidant sui les endurcis qui, en général et quand la détention est courte, se trouvent mieux en prison que chez eux.
Elles sont enfin nuisibles aux individus encore doués de sentiments d'honneur, car elles dégradent, découragent le détenu, le rabaissent aux yeux de sa famille et de ses compagnons, elles affaiblissent en lui la notion de dignité personnelle, dans bien des cas elles enlèvent au malheureux sa place ou ses clients et le poussent à l'aviognerie ou au vagabondage.
L'État supporte donc de ce chef des charges lourdes et mutiles. De plus les prisons sont encombrées d'une population flottante liviée à un va-et-vient perpétuel qui rent la mission du personnel de surveillance difficile et empêche de fournir un travail régulier aux détenus disposés à travailler.
787 D'autre part, l'Etat a intérêt à réduire le rôle de la prison parce que 1'emprisonnement appliqué à ceux pour qui cette peine n'est pas indispensable entame le fonds d'honorabilité et de dignité qui est le patrimoine moral d'une nation.
Parece à Câmara Corporativa particularmente relevante esta parte final.
Cuello Calon (8) acrescenta a estes inconvenientes a corrupção resultante do contacto com os delinquentes e a perda definitiva dos que entram no cárcere possuindo ainda um resto de moralidade.
Edgard Frére resume um artigo seu cheio de interesse (por exemplo, concretiza a expressão "pena curta privativa
(4) Amélioration de la loi criminelle, Paris, 1864, vol II, p. 251
(5) Beknert et Cornil, "Les Courtes Peines de Prison", in Revue de Droit Penal et de Criminologie, ano 19.º, p 932
(6) Penologia, Madrid, 1920, pp. 216 e seguintes
(7) Science Penale et Droit Positif, Bruxelas, 1899, p 467
(8) Ob. Cit., pp 217 e 218.
Página 506
506 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
de liberdade" como sendo a de duração inferior a seis meses) com esta frase edificante.
C'est donc à juste titre que l'on affirme que les courtes peines de prison créent des recidivistes (9).
O indivíduo que as sofre perde o amor próprio e a consideração dos que o cercam, em muitos casos pode desadaptar-se socialmente.
Chez les individus plus sensibles, une peine d'emprisonnement, même courte, fera naître des sentiments de révolte et cet individu peut devenir un être anti-
-social (I0)
Vê-se assim como os penalistas criticam a pena curta de prisão (independentemente de ser ou não aplicada por conversão de outra pena). Não parece curial estabelecê-la senão por igualmente fortes razões contrárias. Vejamos se existem.
B) É de Garofalo uma distinção que, tratando problemas criminais de jure condendo, parece à Câmara Corporativa ter alto valor a distinção dos delitos (ou crimes, lato sensu) em delitos naturais e aquilo a que Garofalo chamava, era contraposição e completamente fora do significado hoje usual da expressão, delitos políticos. Retendo a ideia fundamental do criminologista italiano, deve reconhecer-se uma profunda distinção entre os crimes que correspondem a violação de uma norma recebida e defendida como essencial pela ética social (positiva) (11), e aqueles que sancionam penalmente um acto que a ética social positiva não condena, e até algumas vezes impõe. Não convém chamar a estes últimos delitos políticos, como fez Garofalo, dado o sentido hoje corrente da expressão, chame-se-lhes, convencionalmente, crimes (lato sensu) ou delitos do pura criação legal.
Destes, alguns há através da criação dos quais a ordem jurídica pretende justamente actuar sobre a ética social positiva e torná-la (segundo a sua concepção) mais perfeita - é o caso típico do duelo. Mas há outros que representam pura e simplesmente a punição de actos para os quais não é fácil encontrar outra sanção eficaz.
A aplicação de penas de carácter pessoal aos agentes de crimes de pura criação legal, deste último tipo, representa a deliberada degradação moral, pela ordem jurídica, de uma pessoa que em nada mostrou falta de princípios éticos ou morais A sua mais coerente justificação ainda se encontra numa ideia de prevenção geral. Mas é preciso não esquecer que a ideia de prevenção geral como fim da pena transforma o homem num mero instrumento da ordem jurídica, a usar "para que os outros vejam", e é assim contrária ao personalismo de origem cristã, que não devemos permitir que os técnicos da eficiência - os quais, cegos pelos fins, vêem em tudo instrumentos a usar para a sua prossecução - posterguem da ordem jurídica portuguesa.
Ora o uso ilegal de acendedores o isqueiros é sem dúvida alguma um crime (12) de pura criação legal na sociedade, à luz da sua ética positiva ou natural, não se pode considerar reprovável (13) o não possuir licença de isqueiro. Parece portanto justificado à Câmara Corporativa que as medidas a tomar contra aqueles que usem ilegalmente acendedores e isqueiros se mantenham livres de toda a incidência de degradação moral.
Poderá suceder que a pena seja assim menos eficiente, mas é sem dúvida mais justa.
Tanto mais que o objecto jurídico da infracção é a protecção da rentabilidade de um imposto - não o do próprio imposto do selo sobre os acendedores e isqueiros, mas mais propriamente a protecção do rentabilidade do regime tributário especial dos fósforos.
Este regime já não é hoje o de um monopólio fiscal, como foi entre nós até 1925, mas o de uma indústria em regime tributário especial, consistente sobretudo num imposto de fabrico, que se pretende seja o mais possível rendoso. Mas parece à Câmara Corporativa em qualquer hipótese exacto que não e justificável a intervenção do Estado qua tale na vida económica, designadamente favorecendo ou impedindo tipos de consumo, com o fim primário do conseguir receitas. Sobretudo, repita-se, quando essa intervenção tente fazer persistir certas formas de consumo e actividade (p ex. , fósforos), impedindo o progresso ou, que seja mesmo, a meia moda- de actividades e consumos diferentes (p ex., acendedores e isqueiros). Então o poder do Estado é usado para impor aos seus súbditos uma verdadeira servidão pessoal, sobre pondo ao interesse geral o interesse particular do Estado - e são coisas distintas. Parecem à Câmara Corporativa válidos estes princípios não só em doutrina económica e financeira, como em face da nossa Constituição Política, maxime artigo 81.º.
A única justificação leal do monopólio dos fósforos, diz Pascaud, é a de que as pessoas se habituaram já a ele(14), mas em rigor é essa também só a justificação de qualquer forma de protecção tributária da sua venda e consumo.
C) E ainda a natureza de infracção fiscal que reveste o acto de uso ilegal de acendedor ou isqueiro vem ao encontro destas considerações.
É doutrina amplamente dominante entre nós que a multa imposta por infracção fiscal não é em regra convertível em prisão (15) Ora, não vemos qualquer razão
(9) "Les Courtes Peines de Prison", parte I in Revue de Droit Pénal et de Criminologie, ano 19.º, p 872.
(10) Frére, ob. cit. p 273.
(11) "E então chamaremos delito natural à ofensa dos sentimentos profundos e instintivos do homem social" (Garofalo), Criminologia, 2.ª edição, Turim, 1891, p 9).
(12) Lato sensu - trata-se de uma contravenção. O que aliás se pode discutir. V p ex. Dr. Mouteira Guerreiro, "Direito Processual Tributário", in Boletim da Direcção-Geral das contribuições e impostos n.º 22, p 1736.
O que tudo revela é a dificuldade da construção da figura jurídica da infracção fiscal, certo que se trata de um delito com uma natureza híbrida, toda peculiar, ora a comparticipar da teoria da contravenção, ora da teoria do crime, suscitando sanções que pressupõe ora um ilícito civil, ora um ilícito penal.
Sobre o ponto, ver também Dr. Mouteira Guerreiro, "Em Torno da Infracção Fiscal", in Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 37 e 38, pp 117 a 153, e Domingos Martins Eusébio, "Subsídios para uma Teoria da Infracção Fiscal", in Ciência e Técnica Fiscal n.º 55, pp 107 e seguintes.
(13) A não ser como desobediência a uma lei, mas por este raciocínio qualquer acto ilícito deveria ser punido.
(14) Pascaud ("Les Monopoles d'Etat et leurs Funestes Consequénces Économiques", in Revue Critique de Legislation et de Jurisprudence, ano 52. º, 1903, pp 416-
-417).
Nous ne concluons pas à la supression des monopoles des tabacs et des allumettes, le temps nous y a accoutu més, et en matière de finances il faut savoir se garder de toute innovation qui fait table rase du passé si l'on ne peut pas se rendre un compte exact des conséquences qu'elle produira dans l'avenir.
(15) Prof. Beleza dos Santos, "Ilícito Penal Administrativo e Ilícito Criminal", in Revista da Ordem dos Advogados, ano 5 º p 57, Dr. Mouteira Guerreiro, As Transgressões no Direito Fiscal, Viana do Castelo, 1943, pp. 78 a 81, Dr. Manuel Cortes
Página 507
7 DE MARÇO DE 1964 507
- qualquer dignidade criminal especifica - para abrir uma excepção quanto ao uso ilegal (sem licença) de acendedores ou isqueiros.
Tendo o Decreto-Lei n.º 39 187, de 25 de Abril de 1953, amnistiado "todas as contravenções puníveis com pena de multa" (artigo l º, n º 2), levantou-se o problema de saber qual o âmbito de aplicação deste diploma em matéria fiscal. As dúvidas foram resolvidas pela Portaria n º 14 516, de 27 de Agosto de 1953, confirmada pelo Decreto-Lei n º 39 785, de 25 de Agosto de 1954, distinguindo entre crimes fiscais [fundamentalmente os actos ilícitos declarados puníveis e regulados pela lei penal, e sujeitos ao regime do direito criminal comum, mas incidindo sobre matéria fiscal-p. ex., a simulação em prejuízo do Estado, artigos 455 º do Código Penal e 99 º, § l º, do Regulamento de 23 de Dezembro de 1899, hoje revogado e substituído pelos artigos 162 º e seguintes do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (16)], contravenções de natureza penal, fundamentalmente (17) quando punidas com multa convertível em prisão, e infracções de natureza administrativa, quando punidas com multa não convertível. E indica a mesma portaria três exemplos de contravenções de natureza penal.
As transgressões aduaneiras (18), cuja gravidade advém do prejuízo que causam a uma economia proteccionista,
As infracções fiscais de funcionários fiscais, particularmente obrigados a absterem-se delas (19),
O uso ilegal de acendedores e isqueiros, nos termos do Decreto-Lei n º 28 219.
Salta à vista a desproporção entre a gravidade dos dois primeiros exemplos e do último. Na verdade, não descobre a Câmara Corporativa qualquer razão para considerar o uso sem licença de um acendedor ou isqueiro facto mais grave do que a maioria das transgressões fiscais, e por isso a qualificar como infracção de natureza penal, e não administrativa.
Acresce que, segundo o regime actualmente vigente, a imposição de uma sanção potencialmente pessoal é cometida, não a um órgão de soberania (como o tribunal - artigo 71 º da Constituição Política), mas ao chefe de secção de finanças (embora com recurso) - artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n º 28 219, de 24 de Novembro de 1937, e é aplicada, não mediante a due process of law, per legale judicium, mas "sem estrita observância de fórmulas" (artigo 6.º do mesmo diploma). É certo que a conversão em prisão é requerida pelo Ministério Público ao juiz (artigo 11 º), mas a função deste é - parece - meramente homologatória. Talvez não formalmente, mas materialmente, há aqui uma violação do básico princípio nulla poena sinc judicio.
9. O exame à luz do direito criminal e financeiro do sentido geral da inovação proposta parece assim à Câmara justificá-la inteiramente, quanto ao seu mérito actual.
Quanto ao conteúdo e em mérito potencial
10. Mas não seria possível, para regular o uso de acendedores e isqueiros, um regime mais perfeito ainda?
Refere-se a justificação da apresentação do projecto em análise, feita à Assembleia Nacional por um dos seus autores, o Deputado Sr. Alberto de Meireles, à "circunstância de ser desconhecida nos restantes países a exigência de licença para uso de acendedores e isqueiros" (20).
Em regra, realmente, o regime é diferente em países estrangeiros (21), e um regime, muito usado nesses países, e que portanto se apresenta como possível e assim como alternativo em relação ao do projecto, é o regime da cobrança de um imposto único sobre o isqueiro ou acendedor, imposto que, como todos os indirectos, seria pago imediatamente pelo fabricante ou importador, ou pelo vendedor, mediante a aposição de um selo metálico ou contrastaria oficial, mediatamente pelo adquirente, cujo preço seria aumentado pelo mesmo imposto. Seria portanto um imposto de fabrico e importação, ou então de consumo, integrado no regime tributário especial dos flamíferos.
Esta solução é diversa, quer da vigente, quer da do projecto. Parece à Câmara Corporativa dever limitar-se a lembrá-la como possível, sem a sugerir ou defender. Na verdade, tal solução oferece vantagens, mas também inconvenientes. Tem a vantagem da maior comodidade - o adquirente do acendedor ou isqueiro paga de uma vez só o direito à sua utilização, sem se ter de preocupar com o pagamento anual da licença ou com os riscos da sua omissão, que se podem figurar como imposições de natureza pessoal, de certo modo vexatórias. Talvez tenha até a vantagem de uma maior rentabilidade - abrangerá mesmo os isqueiros e acendedores de uso doméstico, os quais, dado que aos fiscais não é permitida a entrada em casa alheia para fiscalização, hoje de facto não pagam licenças, e além disso facilita a tarefa da fiscalização e diminui assim o respectivo custo. Tem, porém, a desvantagem da oncrosidade para o contribuinte primeiro, porque o imposto único, para ser correspondente (22) ao valor do anual (mesmo tomando em linha de conta a duração provável dos objectos), terá forçosamente de ser relativamente elevado, elevado sobretudo em relação ao custo do próprio objecto (aliás, de forma alguma indispensável e cuja venda e consumo fortemente se ressen-
Rosa, "Natureza Jurídica das Penas Fiscais", in Boletim da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos n.º 19, pp 1269 a 1277, n.ºs 20-21, pp 1571 a 1575, n.º 22, pp 1759 a 1770, Dr. Mouteira Guerreiro, "Em torno da Infracção Fiscal", in Ciência e Técnica Fiscal n.ºs 37-38, p. 129, Vítor da Silva Garcia, "A Infracção Fiscal", in Ciência, e Técnica Fiscal n.º 46, p 512, Domingos Martins Eusébio, "Subsídios para Uma Teoria da Infracção Fiscal", in Ciência e Técnica, Fiscal n º 55, pp 127 e 128. "A multa fiscal é assim uma pena não criminal" - Dr. Cortes Rosa, ob. cit., p 1278; cf Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, vol. II, p 162.
(16) Aprovado pelo Decreto-Lei n º 41 969, de 24 de Novembro de 1958.
(17) A portaria indica como característica da contravenção fiscal de natureza penal a intransmissibilidade aos herdeiros da multa correspondente antes do trânsito em julgado da sentença que a imponha.
(18) Artigos 11. º, 50.º, 51.º e 151.º do Contencioso Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei n º 31 664, de 22 do Novembro de 1941.
(19) Decreto n.º 17 731, de 7 de Dezembro de 1929.
(20) Diário das Sessões, 1964, p 2935.
(21) Mas em Itália, um decreto-lei de 11 de Junho de 1956 substituiu o direito único sobre o isqueiro por um direito anual a cargo do utente ou detentor, pago mediante a aquisição de um selo "que o utente pode aplicar sobre o aparelho ou sobre um qualquer documento de identificação pessoal" - Renato Alessi, Monopoli Fiscali, Imposte di Fabricazione, Dasi Doganali, Turim, 1956, p 232.
(22) Parece à Câmara Corporativa que seria inconstitucional, por força da parte final do artigo 97.º da Constituição Política, um projecto de lei abolindo a licença de isqueiro, sem criar uma fonte de receita em princípio equivalente e compensatória.
Página 508
508 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
tiriam), em segundo lugar, porque hoje a licença é do utente, que com um mesmo dispêndio fiscal pode ter assim dois, três, quatro, dez isqueiros, ao passo que segundo o sistema alternativo suportaria um dispêndio proporcional.
Quanto à forma
11. Dado que a inovação proposta, como se explicou atrás, diz fundamentalmente respeito a uma restrição injustificada ao direito de liberdade dos cidadãos portugueses - direito originário, como o qualifica o artigo 359 º do Código Civil - e representa um salutar e diríamos mesmo exemplar retorno aos sãos princípios do direito contra o tecnicismo da eficiência a todo o custo, responsável da aluvião crescente de normas incriminatórias e reforçadoras da severidade das sanções, é inteiramente justificado que tal inovação seja discutida no seio da Assembleia Nacional.
Bastava aliás, repita-se, tratar-se de matéria que toca o direito de liberdade dos cidadãos portugueses.
E parece à Câmara Corporativa dever a matéria ser resolvida fundamentalmente em face dos princípios, sem quaisquer considerações derivadas da rentabilidade dos impostos e taxas envolvidos. Só quando se apresentarem alguns factos de ordem e natureza histórica serão insertos alguns números referentes a essa rentabilidade (cf infra, n.º 16)
12. Com estas considerações, julga a Câmara Corporativa ter coberto as principais questões que a apreciação do projecto na generalidade pode suscitar.
Antes de passar, porém, ao exame na especialidade, parece-nos ser útil para o esclarecimento desta matéria uma rápida vista de olhos sobre o seu aspecto histórico.
4º
Esquema da história do regime geral do uso de acendedores e isqueiros
13. Um rápido bosquejo da história do regime fiscal dos fósforos e restantes flamiferos pode desdobrar-se em dois períodos:
1 º período - de 1891 a 1925,
2 º período - de 1925 aos nossos dias
14. l.º período - de 1891 a 1925 -Começaremos o resumo histórico em 1891. Nesse ano, "a lei de Meios de 30 de Junho de 1891 autorizara o Governo a pôr em concurso o exclusivo da fabricação dos fósforos, adoptando-se por base de licitação a receita anual, líquida para o Tesouro, de 250 000$" (23).
A razão com que se havia justificado o pedido de autorização desta medida era a crise (24), "crise financeira agudíssima" (25), aliada à verificação da fraca tributação da indústria (26).
O exclusivo seria temporário - pelo prazo de doze anos. Talvez por o prazo ser tão reduzido, o concurso que a Lei de Meios de 1891 permitia ficou deserto (27). Depois de outras medidas tributárias (28), um decreto (n º 1) de 14 de Março de 1895, de Hintze Ribeiro, veio permitir a adjudicação do exclusivo da fabricação dos fósforos pelo prazo máximo de 30 anos.
No relatório deste decreto lêem-se duas frases curiosas. A primeira é, textualmente, a seguinte "preferíamos não ter de decretar um monopólio". A segunda é a referência às dificuldades da indústria dos fósforos, já então "em luta com os artefactos que a todo o custo procuravam substituir-se ao consumo dos fósforos".
O contrato de exclusivo com o concessionário autorizado por este decreto foi celebrado em 25 de Abril de 1895, por 30 anos (cláusula l.ª)(29), e nesse contrato, na cláusula 26.ª, lia-se que "o Governo, pelo modo que julgar mais conveniente, regulará a importação e venda de qualquer artigo destinado a substituir o uso de pavios fosfóricos, por forma a não diminuir o consumo dos fósforos nacionais".
Já é extraordinário que o Governo se obrigue a garantir que os seus súbditos consumam fósforos. Mas mais extraordinárias parecem ainda as medidas que o Governo nesse sentido sucessivamente tomou.
1 º Os artigos 83 º a 87 º do Regulamento sobre os Exclusivos de Fabricação de Fósforos e Isca, aprovado pelo Decreto de 4 de Julho de 1895, e de que o artigo 83 º nos dá o teor.
Para evitar a diminuição no consumo dos fósforos nacionais, quando essa diminuição provenha da importação ou produção no País e respectiva venda de artigos destinados a substituir o uso de pavios fosfóricos, o Governo poderá proibir a sua importação, ou restringi-la por meio da elevação de direitos, ou tributar a sua venda e produção conforme for mais conveniente (30).
2 º A proibição de importação de acendedores de cigarros Titan (Decreto de 5 de Novembro de 1905);
3 º A proibição de importação de quaisquer acendedores portáteis análogos (Decreto de 3 de Abril de 1911);
(23) Prof. Caeiro da Mata, Monopólios Fiscais, p 162.
(24) "A situação financeira é difícil, embora esteja longe de ser desesperada , o acréscimo das receitas públicas indeclinável. Por isso nos pareceu conveniente lançar mão das condições especiais em que se encontram o fabrico do álcool industrial e o dos fósforos. Essas indústrias que noutros países rendem receitas avultadas, ou deixaram de produzi-las em Portugal, ou não deram nunca receitas apreciáveis" - Relatório da proposta de lei n.º 8 de 1891 (Lei de Meios), sessão n.º 22 de 1891, p 10
(25) "A primeira tentativa para o exclusivo do fabrico de acendalhas, palitos ou pavios fosfóricos foi feita em 1891, com a mira de obtenção de maior receita para o Estado, que estava atravessando uma crise financeira agudíssima" - Parecer da comissão de finanças da Câmara dos Deputados acerca da proposta de lei de que saiu a Lei n º 1770, de 25 de Abril de 1925, in Diário da Câmara, dos Deputados, sessão n º 60 de 1925, p 19.
(26) "A indústria e comércio dos fósforos, que constitui em França uma fonte importante de receita pública, entre nós nada tem produzido, porque insignificante é a tributação industrial e de mínimo rendimento os direitos pautais. Daí o pensamento do Governo, adoptado pelas vossas comissões, de pedir a esta indústria um imposto em benefício da Fazenda Pública. E para chegar-se a este resultado, à semelhança do que em França existe, pareceu também melhor sistema o do exclusivo" - Parecer das comissões da Fazenda, Orçamento e Administração Pública acerca da proposta de lei n º 8 de 1891, in Diário da Câmara dos Senhores Deputados n.º 22, de 1891, p. 4.
(27) Cf Prof. Caeiro da Mata, ob. cit., p 163.
(28) Cf Prof. Caeiro da Mata, ob. cit., pp 163 a 165, Relatório do Decreto n º l de 14 de Março de 1895.
(29) "Se para o Governo a medida foi boa, o mesmo não se poderá dizer a respeito do público, para o consumidor o contrato só teve como resultado ver subir o preço, ao mesmo tempo que na qualidade dos fósforos se dava o facto inverso" - Prof. Caeiro da Mata, ob. cit., pp 167 e 168.
(30) No artigo 86 º dispõe-se que, se se preferir a tributação, esta será regulada "de modo a evitar o seu consumo"
Página 509
7 DE MARÇO DE 1964 509
4 º A prescrição de que tais acendedores seriam apreendidos e inutilizados "por meio de fogo" (artigo l.º do Decreto de 14 de Dezembro de 1912);
5 º A proibição de fabrico, venda e uso de quaisquer acendedores portáteis análogos (a pedra de referência é sempre o - historicamente importante - acendedor Titan) - Decreto n º 83, de 23 de Agosto de 1913 (31),
6 º A prescrição de entrega a Companhia Portuguesa de Fósforos (presumivelmente para serem destruídos pelo fogo) de todos "os acendedores portáteis que forem apreendidos em contravenção das prescrições legais, e que, por tal motivo, são julgados perdidos a favor da Fazenda" (Decreto n º 9473, de 7 de Março de 1924).
Ficou assim o País condenado, a bem do fisco, a usar fósforos ou pelo menos acendedores essencialmente diferentes dos Titan, e desde que com isso não diminuísse o consumo daqueles. A situação manteve-se até 1925, em que a expiração do prazo de 30 anos do exclusivo repôs o problema em causa.
15. 2.º período - de 1925 à actualidade - A discussão iniciou-se na Câmara dos Deputados, pela apresentação de uma proposta do Governo que, submetida a parecer das comissões parlamentares e a discussão, se transformou (com alterações, claro) na Lei n º 1770, de 25 de Abril de 1925 (a qual entrou em vigor no dia seguinte).
Por essa lei, terminava o monopólio dos fósforos. O fabrico destes era livre às sociedades "que entreguem ao Estado, do seu capital social realizado, 25 por cento em acções ou quotas privilegiadas, com preferência sobre os lucros até 8 por cento", ou às empresas individuais ou pelo menos com capital não representado em quotas ou acções que dessem ao Estado uma participação a fixar (base A da lei). Criava-se além disso um imposto de fabrico. Ainda hoje é este o regime fundamentalmente em vigor (32).
Como medida de condicionamento da circulação jurídica em Portugal de acendedores e isqueiros, havia na Lei n º 1770 a base C do artigo 1.º, a qual dizia:
Os acendedores portáteis e isqueiros só serão permitidos depois de pagarem um imposto do selo que não excederá 30$ cada um, além do custo do selo metálico e das taxas de contrastaria que forem exigidas. O Governo poderá fixar os tipos de acendedores a admitir a selagem e o imposto a pagar pela isca.
Esta base, porém, estava mal redigida, não se proíbe ou permite um objecto, mas só um acto que sobre ele incida, e no caso concreto ficava-se sem se saber bem, a atender a base, o que era em rigor permitido condicionalmente se só o fabrico, se o fabrico e venda, se só a venda, se até mesmo o uso. Mas o entendimento mais natural da base era que o que era sujeito a tributação era a colocação à venda, pagando-se o imposto uma vez só, por cada isqueiro (como na solução alternativa de que se fala supra, n º 10).
Simplesmente, o regulamento da Lei n.º 1770 - Decreto n • 10 838, de 9 de Junho de 1925 - estabeleceu nos seus artigos sistema diferente.
Depois de no seu artigo 35.º, coerentemente com a cessação do monopólio, ter
estatuído que "é livre a importação, fabrico e venda de acendedores portáteis, isqueiros e quaisquer outros objectos portáteis destinados ou aplicáveis a substituir o uso dos palitos ou pavios fosfóricos, desde que sejam de tipo prèviamente aprovado pelo Governo, por intermédio da Inspecção-Geral dos Fósforos", submetia a imposto de selo, quanto a acendedores e isqueiros
A sua venda e exposição ao público (artigo 36.º),
A sua importação (33) (artigo 38.º),
O seu uso (artigo 37 º),
Os dois primeiros impostos eram pagos por uma só vez (por selo metálico), o último era anual, e é a primeira vez que nos surge no nosso direito fiscal a licença de isqueiro (34). Parece que o regulamento excedeu a lei quanto a este ponto.
E "o uso de acendedores portáteis ou isqueiros e os objectos a que se refere o artigo 35º, e ainda a sua simples detenção quando prontos a funcionar, sem a licença a que se refere o artigo 37.º" era considerado descaminho, e punido com a multa - aplicada em regulamento (mas que, parece, seria inconvertível) - do quíntuplo ao décuplo do imposto respectivo (35) e com o "perdimento dos objectos do delito" (36).
O Decreto n.º 11 148, de 15 de Outubro de 1925, aprovou em seguida um modelo oficial de acendedor a gasolina e um modelo oficial do isqueiro (a isco de pano), proibindo "a importação, fabrico, venda e uso de quaisquer outros tipos de acendedores portáteis ou isqueiros diferentes dos adoptados por este decreto, qualquer que seja a sua forma ou fins, e ainda a sua simples detenção, desde que, de qualquer modo, em público ou em particular, se destinem a substituir o consumo de fósforos de indústria nacional ou importação legal"(37).
(31) De cujo relatório se extrai;
Tendo a Companhia Portuguesa do Fósforos reclamado contra o facto, lesivo para os seus interesses e para os do Estado, de se estarem fabricando no País acendedores portáteis de gasolina, análogos àqueles de produção estrangeira cuja importação foi proibida.
(32) Com as alterações dos Decretos n.ºs 12 025, de 30 de Julho de 1926, 22 326, de 17 de Março de 1933, 29 336, de 31 de Dezembro de 1938, e 36 036, de 14 de Dezembro de 1946
(33) Além dos direitos aduaneiros.
(34) Artigo 37.º do Decreto n.º 10 838, de 9 de Junho de 1925.
O uso dos acendedores e objectos referidos no corpo do artigo 35.º fica sujeito ao imposto do selo de 30$, pago anualmente por meio de licença, que será passada pelas repartições de finanças dos concelhos ou bairros das residências dos portadores.
§ único. O imposto do selo será, dentro do cada ano civil, de quantia invariável, seja qual for a data do seu pagamento.
(35) Portanto, 150$ a 300$ - a multa podia ser superior à que se aplica hoje (250$).
(36) O fabrico de acendedores e isqueiros de tipo não aprovado pelo Governo o a exposição, venda e uso de acendedores e isqueiros a que faltasse o selo metálico era considerado transgressão e punido com a multa de 20$ a 3000$ (artigo 83º) A partir do Decreto n.º 11 042, de 28 de Agosto de 1925, os acendedores e isqueiros apreendidos deixaram de ser entregues à Companhia Portuguesa dos Fósforos e passaram a ser (inutilmente) inutilizados na Inspecção-Geral dos Fósforos.
(37) De notar é também o artigo 2.º deste decreto.
São sempre considerados portáteis quaisquer tipos de acendedores cuja aplicação mais geral seja o uso doméstico, desde que os seus portadores sejam encontrados a deles fazer uso em público, devendo como tais ser apreendidos e ficando os seus contraventores sujeitos às penalidades cominadas no artigo 82.º do Decreto n.º 10 838, de 9 de Junho do corrente ano.
Note-se que focamos o assunto só em linhas gerais; senão deveríamos referir os Decretos n.ºs 11 056, de 11 de Setembro de 1925, e 11 389, de 8 de Janeiro de 1926, que contiveram medidas de ocasião.
Página 510
510 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
Este algo estranho decreto foi revogado pelo Decreto n.º 12 024, de 30 de Julho de 1926, cujo artigo l.º estabelecia a permissão de importação, fabrico, venda e uso de acendedores portáteis e isqueiros de quaisquer tipos. Este diploma baixava ainda 25$ o custo da licença anual (38).
O Regulamento do Imposto do Selo, aprovado pelo Decreto n.º 12 700, de 20 de Novembro de 1926, retomou a matéria e regulou-a no seu artigo 41.º. Mantendo o princípio da liberdade de importação, fabrico, venda e uso de quaisquer tipos de acendedores portáteis e isqueiros, suprimia o imposto de selo (metálico) sobre a venda e exposição ao público, e elevava de novo para 30$ a taxa anual. A tabela geral do imposto do selo alterou-a mais uma vez 3O$, se passada em l de Janeiro com validade até 31 de Dezembro, 20$, se passada em l de Julho, com a mesma validade (39).
No § 5.º do referido artigo 41.º estabelecia-se que «a instrução e julgamento dos processos para a imposição das penas cominadas serão regulados pelas disposições aplicáveis do Decreto n.º 2 de 27 de Setembro de 1894 e mais legislação que o tenha modificado».
Ora o Decreto n.º 2 de 1894 regulava o contencioso fiscal aduaneiro, e havendo desde 1922 (Lei n.º 1368, de 21 de Setembro) um contencioso das contribuições e impostos, levantaram-se justas dúvidas sobre o contencioso a que o uso ilegal de isqueiros estava adstrito. Essas dúvidas foram resolvidas (e bem) pelo Decreto n.º 21 709, de 7 de Outubro de 1932, no sentido de a matéria pertencer ao contencioso das contribuições e impostos, fundamentalmente regulado no Decreto n.º 16 733, de 13 de Abril de 1929
Registe-se também que foram variando quer a taxa da licença, quer a forma do seu pagamento.
Quanto à taxa da licença, variou
1.º Para 37$50 e 25$ (por aplicação do factor 1,25 - Decreto n º 21 427, de 30 de Junho de 1932),
2.º Para 30$ e 20$ (tabela geral do imposto do selo, quer a aprovada pelo Decreto n.º 21 591, de 11 de Agosto de 1932, quer a actualmente em vigor, aprovada pelo Decreto n.º 21 916, de 28 de Novembro de 1932, e em ambos artigo 105 º, verba XXXIV).
3 º Para 40$ e 25$ [por força da alínea j) do artigo 2 º do Decreto-Lei n º
36 608, de 24 de Novembro de 1947] - são as taxas em vigor.
Sobre estas taxas incide um adicional de 20 por cento para o Fundo de Socorro Social, actualmente por força do artigo 2 º, n º 6, do Decreto-Lei n º 45 527, de 10 de Janeiro de 1964. Desde o artigo 7 º do Decreto-Lei n º 36 604, de 24 de Novembro de 1947, e actualmente por força do artigo 7 º do referido Decreto-Lei n º 45 527, este adicional é pago «por meio de estampilhas fiscais com a sobrecarga «Assistência», apostas nos cartões em que forem passadas as mesmas licenças e inutilizadas pelos funcionários que as assinarem». Pelo que a licença de isqueiro custa (mais o valor do impresso $50) 48$, se válida de l de Janeiro a 31 de Dezembro, e 30$, se válida entre l de Julho e 31 de Dezembro.
Quanto à forma do pagamento, foi sucessivamente por meio de licença (artigo 37 º do Decreto n º 10 838, de 9 de Junho de 1925), por meio de estampilha (tabela geral do imposto do selo, aprovada pelo Decreto n º 16 304, de 28 de Dezembro de 1928) e por meio de cartão selado, como é hoje e desde o Decreto n º 16 732, de 18 de Abril de 1929 (artigo 4 º).
15. Em 24 de Novembro de 1937, o Decreto-Lei n º 28 219 - ainda fundamentalmente em vigor - regulou com certa minúcia o uso ilegal (só o aspecto ilícito) de acendedores e isqueiros, e fê-lo no seu aspecto substantivo e adjectivo.
Fixou a multa em 250$ (artigo l º, § l º), elevada ao dobro «se o delinquente for funcionário do Estado, civil ou militar ou dos corpos administrativos» (artigo 2 º).
E é de notar que as disposições deste decreto, que se pretende revogar, são inovações do mesmo decreto, sem tradições no regime anterior. Assim é quanto à convertibilidade da multa em prisão (40), quanto a captura para apresentação a autoridade fiscal, salvo em caso de pagamento voluntário da multa, e quanto à duplicação da multa e adstrição de responsabilidade disciplinar aos funcionários do Estado e dos corpos administrativos.
Quanto ao procedimento a adoptar em caso de não pagamento voluntário e imediato da multa, foi o Decreto--Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937, alterado pelo Decreto-Lei n.º 32 834, de 7 de Junho de 1943.
O Regulamento da Inspecção-Geral das Finanças, aprovado pelo Decreto n.º 32 341, de 30 de Outubro de 1942, contém o regime da fiscalização do uso de acendedores e isqueiros, confiado fundamentalmente a brigadas móveis distritais.
Este regulamento foi alterado, num ponto de importância para o parecer (referente à matéria sobre que incide a base IV do projecto), pelo Decreto n º 37 807, de 6 de Maio de 1950.
16. A título de informação, e não como base de argumentação, crê-se útil registar alguns números referentes à matéria que ficou descrita (41).
Rendimentos da tribulação dos fósforos, em número absoluto
e em percentagem do montante das receitas do Estado (a), no 1.º ano
do monopólio, 1895, e nos últimos cinco anos.
[Ver Tabela na Imagem]
(a) Em igual período de tempo e em relação ao mesmo número de caixinhas de fósforos que serviu de base para a determinação do Imposto de fabrico, foi também liquidada pela Inspecção-Geral de Finanças a importância de 71 393 088$ para o fundo do Socorro Social.
(38) O diploma seguinte, Decreto n º 12 025, da mesma data, também se referia no regime geral de tributação dos fósforos.
(39) Tabela geral do imposto do selo, Decreto-Lei n º 16 304, de 28 de Dezembro de 1928, verba XXXVIII do artigo 105 º. O Decreto n º 16 732, de 13 de Abril de 1929, regulou a forma de liquidação do imposto e o modelo da licença.
(40) Note-se que se excluem da convertibilidade os menores de 16 anos, e de qualquer responsabilidade (patrimonial ou pessoal) os menores de 14 anos - artigo 12 º
(41) Elementos fornecidos pela Inspecção-Geral de Finanças.
Página 511
7 DE MARÇO DE 1964 511
Número de licenças de uso de acendedor ou isqueiro concedidas
nos últimos cinco anos, e o seu rendimento em número absoluto
e em percentagem do montante de receitas do Estado
[Ver Tabela Na Imagem]
(a) Não estão incluídas as referentes ao mês de Dezembro.
Número de autuações nos últimos cinco anos, rendimento e percentagem de conversões em prisão.
[Ver Tabela Na Imagem]
17. É tudo quanto se oferece registar sobre o projecto quanto à sua apreciação na generalidade.
II
Exame na especialidade
Base I
18. Justamente por ser a disposição mais importante do projecto, ficou ela, parece, plenamente justificada, sem necessidade de maiores considerações, pelo que ficou exposto aquando da apreciação na generalidade.
Dá a Câmara Corporativa, como se viu, inteiro aplauso ao princípio da inconvertibilidade aqui aplicado, e não vê qualquer modificação, mesmo de forma, a propor a esta base do projecto.
Tanto mais que, pelo direito penal comum, pressuposto da conversão da multa em prisão é a impossibilidade de pagar - imposta uma multa, e não paga, procura-se executá-la patrimonialmente, e só na impossibilidade disso se converte (artigo 639 º, § 10 º, do Código de Processo Penal, redacção do Decreto-Lei n º 22 627, de 6 de Junho do 1933). Pressuposto da conversão da multa em prisão por força do artigo 11.º do Decreto n º 28 219, de 24 de Novembro de 1937, é a simples recusa de pagar, não se distinguindo a hipótese de o infractor ter bens exequíveis pura saldar a multa e o imposto ou não os ter. Todas estas incongruências ficarão sanadas por um regime mais justo.
Base II
19. O mesmo se não pode dizer da base II.
Parece à Câmara Corporativa que o pormenor de regulamentação em que a mesma base entra é contrário ao preceito do artigo 92 º da Constituição Política.
A base geral do regime jurídico que se extrai do complexo preceito da base II do projecto é, parece, a da inadmissibilidade de captura do infractor encontrado em flagrante delito, salvo para efeitos de identificação.
Parece de aplaudir esta regra, dadas as considerações feitas quando da apreciação do projecto na generalidade e dado o princípio do nosso direito processual penal, expresso no artigo 250.º do Código de Processo Penal (com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34 564, de 2 de Maio de 1945), de que só cabe captura mesmo em flagrante delito quando ao crime corresponde pena de prisão (42), de resto, só cabe aquilo que o Prof Cavaleiro de Ferreira chama efectivação coerciva da identificação(43).
Note-se que aquilo que se efectiva coercivamente é mais que a identificação. É a identificação em termos de oferecer segurança a determinação da pessoa e do seu paradeiro, para efeitos de aplicação da sanção.
E assim, o Código de Processo Penal oferece o seguinte quadro de soluções, para a hipótese de flagrante delito de crime (lato sensu) a que corresponde pena de multa.
Pode ser determinado o seu nome e residência (entenda-se residência actual e futura na metrópole em termos de poder ser movida a acção criminal) - são anotados, e o infractor não é capturado,
Não pode ser determinado o seu nome e residência - «o infractor terá de acompanhar a autoridade ou agente que o houver detido ao tribunal ou repartição competente, ou posto policial mais próximo, e aí, averiguada a sua identidade ou depositado o máximo da multa que correspondei à infracção, se esta for a pena aplicável, será posto em liberdade».
E o § 6.º do artigo 639.º do Código de Processo Penal dispõe que «quando o réu não for conhecido em juízo, não residir na comarca, ou for notoriamente havido como ocioso ou vadio, ou houver fundadas suspeitas de que pretende ausentar-se ou, por qualquer forma, esquivar-se ao pagamento, poderá o juiz exigir que ele pague imediatamente a multa, o imposto de justiça e quantias acrescidas, ou preste caução idónea, sob pena de ficar, desde logo, detido e lhe ser convertido o imposto de justiça ou a multa em prisão».
Se se pretende uma segurança suficiente na efectivação das sanções, terá de se adaptar ao presente domínio o regime, como se vê bastante completo, do Código de Processo Penal. Mas parece à Câmara Corporativa que a pouca gravidade do assunto não justifica procurar-se tão acèrrimamente a efectivação da sanção, nos casos de trabalhadores sem residência certa nem bens, que facilmente escaparão à execução coerciva da multa, a apreensão do isqueiro é por si só uma sanção a considerar relevante.
Note-se também que o regime da base II do projecto é de certo modo mais duro que o regime actual. Por este, se o infractor pagar imediatamente a multa e a importância do imposto, nunca é capturado (artigo 4 º do Decreto-Lei n º 28 219, com a redacção do Decreto-Lei n º 32 834). Pelo regime ora proposto, parece que o infractor que não se identificasse devidamente (exibindo o respectivo bilhete de identidade, ou outro documento
(42) Ou «se trate de delinquentes de difícil correcção, vadios e equiparados ou libertados condicionalmente» (artigo 250º, § único do Código de Processo Penal) Neste caso, «a possibilidade de captura deriva do poder do vigilância especial a que os delinquentes do difícil correcção, vadios e equiparados, como tais já declarados, e os libertados condicionalmente se encontram sujeitos» - Prof Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, p 391.
(43) Prof Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II n, p 384 e 385.
Página 512
512 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
de identificação suficiente, ou apresentando testemunhas que abonassem a identidade) seria sempre capturado, ainda que se oferecesse para pagar imediatamente a multa e a importância do imposto. Não se vê justificação desta dureza, nem necessidade absoluta de uma identificação segura do transgressor, caso este liquide logo o sanção que lhe é pedida.
Parece à Câmara Corporativa que à Assembleia Nacional só deveria caber emitir uma regra geral deste teor ou semelhante.
1 O infractor ao disposto no artigo l.º do Decreto-Lei n.º 28 219 encontrado em flagrante delito só poderá ser capturado pelo autuante se se recusar a pagar imediatamente a multa e a importância do imposto e além disso não provar a sua identidade e residência.
2 Capturado nos termos do número anterior, o infractor deverá ser conduzido pelo autuante à dependência policial ou posto da Guarda Nacional Republicana mais próximo, ou ao regedor da freguesia, para os efeitos da parte final do § único do artigo 250.º do Código de Processo Penal, não podendo a detenção demorar mais de 48 horas.
3 O depósito da multa, atrás previsto, terá lugar também quando se tome conhecimento de que o infractor pretende mudar a sua residência para o estrangeiro ou província ultramarina.
Cremos que esta disposição, completada com a base V e com a regulamentação que se lhe fizer seguir, salvaguarda suficientemente os direitos do Estado e a liberdade dos cidadãos.
20. A querer-se manter a regulamentação da base II do projecto, sugere-se:
O desdobramento da base, em pelo menos duas, correspondente a primeira aos quatro primeiros parágrafos gramaticais e a segunda ao último,
A substituição da referência no artigo 23º do Decreto n.º 16 733, de 13 de Abril de 1929, hoje revogado, pela referência aos artigos 108º e 109º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, aprovado polo Decreto-Lei n º 45 005, de 27 de Abril de 1963,
O aditamento, em seguida ao terceiro parágrafo gramatical, da expressão «ao qual serão aplicáveis as disposições dos artigos 137 º a 143º do Código de Processo das Contribuições e Impostos».
Base III
21. Concorda também a Câmara Corporativa em termos gerais com esta disposição, consoante resulta da apreciação na generalidade.
É certo que o artigo 2.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estudo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 32 659, de 9 de Fevereiro de 1943, define infracção disciplinar «o facto voluntário praticado pelo funcionário com violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce ou com ofensa dos deveres gerais dos cidadãos impostos pela lei ou pela moral social». Daqui poderia concluir-se que a infracção a um dever geral seria sempre concomitantemente infracção disciplinar, mas daqui teria de concluir-se então que todo o acto ilícito seria infracção disciplinar e esta reductio ad consequentias é uma reductio ad absurdum (44).
Aparte final do referido estatuto não tem correspondência nem no Código Administrativo(45), nem no Estatuto do Funcionalismo Ultramarino(46), e representa, como salienta o Prof. Marcelo Caetano, um aditamento infeliz, «pois que a violação dos deveres morais e legais dos concidadãos só pode constituir infracção disciplinar na medida em que seja a violação de um dever funcional - embora dever de conduta privada ou de fidelidade política»(47).
Parece assim à Câmara Corporativa de repudiar a consideração automática do delito de uso ilegal de acendedor ou isqueiro como infracção disciplinar. Mas já não parece de aceitar a exclusão automática também, dessa qualificação, tal como resulta da base do projecto ora em exame. Com efeito, se um funcionário qualquer usar acendedor ou isqueiro sem licença, parece que não será passível de responsabilidade disciplinar, mas se se tratar justamente de um fiscal das brigadas móveis da Inspecção-Geral de Finanças, ou se por outra razão o facto ilícito estiver próximo da função que exerce, já se compreende que uma proibição de responsabilização (tal como resulta da parte final da base em análise) seja pouco curial também.
Por este motivo parece à Câmara Corporativa dever alterar a parte final da base.
Julga também que a palavra incorrer não convém ao acto (não se incorre num crime, ou numa infracção), mas nos seus efeitos (incorre-se numa pena ou em responsabilidade).
E assim, propõe à Câmara Corporativa a seguinte redacção da base III.
Se o transgressor (48) for funcionário do Estado civil ou militar, ou dos corpos administrativos (49), será passível da multa prevista no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 28 219, incorrendo em responsabilidade disciplinar apenas no caso de a infracção, nos termos gerais de direito, constituir violação dos seus deveres funcionais.
Base IV
22. A isenção de licença para uso de acendedor ou isqueiro para estrangeiros ou cidadãos não residentes na metrópole vem do artigo 151º do Regulamento da Inspecção de Finanças, aprovado pelo Decreto n.º 32 341, de 30 de Outubro de 1942.
(44) A distinção entre deveres gerais e deveres especiais dos cidadãos é ténue de mais para nela se fundar a diferença, e não pagamento de uma dívida (violação de um dever especial) é violação do dever geral de pagar as dívidas.
(45) Artigo 559.º.
Considera-se infracção disciplinar o facto voluntário praticado pelo funcionário com violação de alguns dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce.
(46) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 40 708, de 31 de Julho de 1956, artigo 350.º.
Considera-se infracção disciplinar o facto voluntário praticado pelo funcionário com infracção de qualquer dos deveres correspondentes à função que exerce.
(47) Prof Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 6.ª edição, p 524, nota 2, cf também Do Poder Disciplinar no Direito Administrativo Português, pp 79 e seguintes. Correspondentemente, o mesmo autor (Manual cit., p 524) define infracção disciplinar «o facto voluntário praticado pelo agente com violação do algum dos deveres decorrentes da função que exerce».
(48) Ou infractor, como na base II.
(49) A redacção poder-se-ia simplificar mas convém acompanhe o preceito do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 28 219
Página 513
7 DE MARÇO DE 1964 513
Dizia esta disposição:
Os cidadãos estrangeiros que se encontrem em viagem de turismo no País por tempo não excedente a quinze dias, são dispensados da licença para uso de acendedores e isqueiros.
A disposição era limitadíssima.
Quanto às pessoas só beneficiava os estrangeiros, não por exemplo os nacionais domiciliados no estrangeiro,
Quanto às circunstâncias só se referia às viagens de turismo - estavam sujeitos a licença, por exemplo, os estrangeiros que viessem dois dias a Portugal em viagem de negócios,
Quanto ao tempo só se aplicava se a duração não excedesse quinze dias.
O Decreto n.º 37 807, de 6 de Maio de 1950, veio no seu artigo único alterar esta disposição, que passou a dizer:
São dispensados da licença para uso de acendedores e isqueiros os cidadãos não residentes no continente ou ilhas adjacentes em viagem de trânsito ou turismo, com demora não superior a 80 dias, contados da data da entrada no País.
Assim:
Quanto às pessoas fala-se em «cidadãos», sem mais, de que o correcto entendimento seria «cidadãos portugueses», parece preferível substituir pela palavra «pessoas».
Quanto às circunstâncias fala-se em «viagem de trânsito ou de turismo» - porque não a de negócios ou a de investigação? Parece que seja de omitir qualquer restrição neste ponto.
Quanto à duração, aumenta-se paia 80 dias.
Note-se que o Regulamento das Alfândegas, aprovado pelo Decreto n º 31 730, de 31 de Dezembro de 1941, dispõe que «os passageiros que se não destinem a permanecer no País e que tenham declarado trazer armas de fogo, acendedores automáticos ou isqueiros e bilhetes de lotarias estrangeiras e coloniais poderão depositar esses objectos na estância aduaneira, para lhes serem restituídos por ocasião da saída, desde que a sua demora não vá além de seis meses».
Parece assim que, para uma demora de 6 meses ou 180 dias, o Estado se desinteressa da licença, não havendo razão para manter a dualidade até 80 dias de permanência, pode ficar com o objecto, acima de 80 e abaixo de 180 não paga licença, mas deve deixar o objecto depositado.
E não trazendo a disposição directamente, mas só reflexa ou indirectamente «diminuição de receita do Estado criada por leis anteriores» parece não caber na alçada do artigo 97 º da Constituição Política.
E assim aprova a Câmara Corporativa a disposição da base IV, com leve diferença de redacção.
São dispensadas de licença para uso de acendedores e isqueiros as pessoas não residentes no continente e ilhas adjacentes que se encontrem nestes territórios com demora não suportar a 180 dias, contados da data da sua entrada.
Base V
23. - A inserção num diploma legal de uma disposição revogatória é dispensável. A da base V não está completa entre as disposições que o projecto altera figura justamente a do artigo 151 º do Regulamento da Inspecção de Finanças, com a redacção do Decreto n.º 37 807, de 6 de Maio de 1950, e, no entanto, nem por esta disposição não figurar entre as referidas na base V deixa de ficar alterada pela lei nova.
Propõe assim a Câmara Corporativa que;
Ou se mantenha só a enumeração dos artigos revogados - os artigos 2.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937,
Ou se acrescente às disposições alteradas a que ficou referida.
A Câmara prefere a primeira solução.
4. A revogação expressa do artigo 11 º do Decreto-Lei n º 28 219 - que estabelecia a conversão em prisão da multa por uso ilegal de acendedores ou isqueiros, em caso de recusa de pagamento - é também em rigor desnecessária, decorre da entrada em vigor, se aprovada, da base I do projecto.
Quanto ao artigo 2.º do mesmo decreto-lei já o caso é diferente.
Esta disposição contém duas partes:
a) Elevação da multa ao dobro «se o delinquente for funcionário do Estado, civil ou militar, ou dos corpos administrativos»,
b) Obrigatoriedade de o chefe da secção de finanças comunicar o delito fiscal à entidade que sobre o mesmo funcionário tiver «competência», «para lhe ser instaurado o competente processo».
25. a) A lei penal só considera circunstância agravante - e dos crimes (50)- a qualidade de funcionário público se ela foi causal em relação ao crime [artigo 34º, n º 24, do Código Penal (51)] ou se o agente tiver «a obrigação especial de o não cometer, de obstar a que seja cometido ou de concorrer para a sua punição» (artigo 34 º, n.º 25, do Código Penal).
Só parece realmente justo agravar a sanção prevista para o delito quanto àqueles funcionários que estejam em relação a ele numa conexão especial, do tipo da prevista no artigo 34 º, n º 29, do Código Penal. Ora, sendo esses passíveis de responsabilidade disciplinar, parece tal agravamento da sanção suficiente à Câmara Corporativa, pelo que aprova a revogação do proémio do artigo 2.º do Decreto-Lei n º 28 219.
A constitucionalidade deste preceito do projecto em face do artigo 97 º, parte final, da Constituição Política parece de novo (tal como quanto à base anterior) assegurada pela circunstância de não impor directamente, mas só eventual ou indirectamente uma «diminuição de receita do Estado criada por leis anteriores».
26. b) A comunicação obrigatória prevista na parte final do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 28 219 compreendia-se num regime em que a infracção fiscal era ex lege sempre, automaticamente, infracção disciplinar.
Não se verificando essa conexão, a referida disposição perde a sua razão de ser É inútil sobrecarregar as secções de finanças com a necessidade de comunicar um facto que pode, em circunstâncias excepcionais constituir infracção
(50) Quanto às contravenções, vigora o artigo 33.º do Código Penal «a responsabilidade criminal por contravenção não pode ser agravada nem atenuada, salvo o disposto no artigo 36.º» (reincidência).
(51) É circunstância agravante «ter sido cometido o crime prevalecendo-se o agente da sua qualidade de funcionário».
Página 514
514 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 55
disciplinar. Se algum caso porventura há em que a comunicação se justifique, tal particularidade pode ser regulada em decreto ou mesmo simples despacho ou ordem interna do Ministério das Finanças.
27. Poder-se-ia acrescentar um novo número a base V, concebido assim:
Em tudo o mais não previsto nesta, lei regularão as disposições aplicáveis do Código de Processo das Contribuições e Impostos, bem como do Decreto-Lei n.º
28 219, de 24 de Novembro de 1937, na parte não revogada.
Como, por outro lado, a disposição é desnecessária, a Câmara Corporativa não a faz objecto de uma proposta formal.
28. Aceita assim, pois, a Câmara Corporativa a base V do projecto, com a seguinte redacção:
São revogados os artigos 2.º e 11 " do Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937.
III
Conclusões
29. Assim, a Câmara Corporativa, aceitando na generalidade o projecto de lei n.º 21/VIII, propõe para as suas disposições a seguinte redacção;
BASE I
As multas devidas por infracção ao artigo l.º do Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937, não são convertíveis em prisão.
BASE II
l. O infractor ao disposto no artigo l º do Decreto-Lei n.º 28 219 encontrado em flagrante delito só poderá ser capturado pelo autuante se se recusar a pagar imediatamente a multa e a importância do imposto e além disso não provar a sua identidade e residência.
2. Capturado nos termos do número anterior, o infractor deverá ser conduzido pelo autuante a dependência policial ou posto da Guarda Nacional Republicana mais próximo, ou ao regedor da freguesia, para os efeitos da parte final do § único do artigo 250.º do Código de Processo Penal, não podendo a detenção durar mais de 48 horas.
3. O depósito da multa, atrás previsto, terá lugar também quando se tome conhecimento de que o infractor pretende mudar a sua residência para o estrangeiro ou província ultramarina.
BASE III
Se o transgressor for funcionário do Estado, civil ou militar, ou dos corpos administrativos, será passível da multa prevista no artigo l.º do Decreto-Lei n.º 28 219, incorrendo em responsabilidade disciplinar apenas no caso de a infracção, nos termos gerias de direito, constituir violação dos seus deveres funcionais.
BASE IV
São dispensadas de licença para uso de acendedores e isqueiros as pessoas não residentes no continente e ilhas adjacentes que se encontrem nestes territórios com demora não superior a 180 dias, contados da data da sua entrada.
BASE V
São revogados os artigos 2.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 28 219, de 24 de Novembro de 1937.
Palácio de S Bento, 5 de Março de 1964.
Adelino da Palma Carlos
José Alberto da Veiga Leite Pinto Coelho
José Augusto Vaz Pinto
José Damasceno de Campos
José Gabriel Pinto Coelho
Manuel Duarte Gomes da Silva
Manuel Jacinto Nunes
Pedro Mário Soares Martinez
João de Castro Mendes, relator.
Acórdão da Comissão de Verificação de Poderes
Acórdão n.º 15/VIII
Acordam os da Comissão de Verificação de Poderes da Câmara Corporativa, da VIII Legislatura.
Recebeu esta Câmara comunicação de que, em reunião da Assembleia Geral de 7 de Junho de 1963 do Sindicato Nacional dos Professores, foi eleita nova direcção, a qual, nos termos do artigo 33º, § 2º dos estatutos deste organismo, distribuiu os cargos sindicais, ficando preenchido o de presidente pelo Sr. Américo José Cardoso Fonseca.
Foram juntas cópias autênticas da acta da assembleia geral, da da posse dos corpos gerentes e distribuição dos cargos e do ofício da Direcção-Geral do Trabalho e Corporações que comunicou a homologação da eleição.
Ora, á de lei que a representação do Sindicato Nacional dos Professores compete ao presidente da direcção (Decreto-Lei n º 43 178, de 23 de Setembro de 1960, artigo l.º).
Pelo exposto julgam válidos os poderes do Sr. Américo José Cardoso Fonseca, que fica fazendo parte da secção II - Interesses de ordem cultural (2.ª subsecção - Ensino) e substitui o Dr Adriano Chuquere Gonçalves da Cunha.
Palácio de S Bento e Sala das Sessões da Comissão de Verificação de Poderes da Câmara Corporativa, em 6 de Março de 1964.
José Gabriel Pinto Coelho
Afonso do Mello Pinto Veloso
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares
António Burnay Morales de los Rios Leitão
Mário Pedro Gonçalves
José Augusto Vaz Pinto, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA