Página 1747
REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 92
IX LEGISLATURA -1968 25 DE OUTUBRO
PARECER N.º 13/IX
Projecto de lei n.º 4/IX
Alteração do artigo 667.º do Código de Processo Penal
(«Reformatio in pejus»)
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103 º da Constituição Política, acerca do projecto de lei n º 4/IX, sobre a alteração do artigo 667 º do Código de Processo Penal, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecção de Justiça), à qual foram agregados os Dignos Procuradores Álvaro Rodrigues da Silva Tavares, António Júdice Bustorff Silva, Fernando Andrade Pires de Lima, Joaquim Trigo de Negreiros, Paulo Arsénio Viríssimo Cunha e Rafael da Silva Neves Duque, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
SUMÁRIO
I) Apreciação na generalidade
§ l º O problema em causa (n. º 1).
§ 2 º A reformatio in pejus no direito nacional (n.os 2 a 4).
§ 3 º A reformatio in pejus nalgumas legislações estrangeiras (n.os 5 a 7).
§ 4 º Justificação dogmática da proibição da reformatio in pejus.
1) Fundamentos de ordem jurídico-processual (n.os 8 a 10)
a) O princípio dispositivo,
b) O interesse em recorrer;
c) A equidade,
d) O «favor rei»;
e) A proibição como instrumento da regularidade do processo,
f) Ausência de fundamento jurídico;
g) Valor relativo dos fundamentos descritos
2) A reformatio in pejus e as formas políticas de Estado (n. º 11)
§ 5.º Posição a tomar perante o direito positivo português (n. º 12).
II) Exame na especialidade
§ l º Âmbito da proibição
1) Agravação em prejuízo do réu Pena principal (n.º 13);
2) Penas acessórias e efeitos dos penas (n.os 14 e 16),
3) Medidas de segurança (n.º 16);
4) Revisão de sentença (n. º 17),
5) Beneficiários da proibição (n. º 18).
§ 2 º Limitações à proibição
1) Diversa qualificação jurídica dos factos
a) Crime diverso (n. º 20) ,
b) Circunstâncias modificativas (n.º 21),
c) Atenuação extraordinária da pena (n.º 22)
2) Recurso do Ministério Público (n.os 24 a 81).
III) Conclusões -Contraprojecto da Câmara Corporativa (n.º 88)
Página 1748
1748 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 92
I
Apreciação na generalidade
§ 1.º O problema em cansa
1. O projecto de lei em apreciação, subscrito por três Srs Deputados+1, tem em vista introduzir no nosso direito processual criminal comum a proibição da reformatio in pejus2, isto é, a proibição de o tribunal superior, em recurso somente interposto polo réu, agravar a pena aplicada na sentença recorrida.
E em ordem a tal objectivo propõe-se no referido projecto uma alteração ao artigo 667.º do Código de Processo Penal3, concebida nos seguintes termos
Artigo único A disposição do artigo 667.º do Código de Processo Penal passa a ter a redacção seguinte:
Artigo 667.º Quando de uma sentença ou acórdão seja interposto recurso somente pela defesa ou pelo Ministério Público no exclusivo interesso da defesa, o tribunal não poderá modificar a decisão recorrida em prejuízo do arguido ou arguidos, quer aplicando pena mais grave, pela espécie ou pela medida, quer revogando o benefício da suspensão da execução da pena ou o da substituição de uma pena mais grave por outra menos grave.
§ único O disposto neste artigo não é aplicável.
1.º Quando o tribunal alterar o título da incriminação constante da decisão recorrida dentro dos limites estabelecidos nos artigos 447.º e 448.º,
2.º Quando, em recurso extraordinário de revisão, a decisão final revista tiver sido condenatória e a proferida no juízo de revisão também o deva ser, nos termos do artigo 691.º,
3.º Quando a acusação tenha interposto recurso subordinado.
Este articulado vem precedido de uma larga e proficiente justificação, a qual se não dispensa de apontar o exemplo que outras nações europeias nos oferecem nesta matéria - Alemanha, França e Itália. Tudo com o propósito de afastar da nossa legislação de processo penal o odioso instituto (sic) da reformatio in perus4
Ora é justamente sobre este problema, ou, mais justamente, sobre as duas faces deste problema - saber se se justifica ou não a proibição da reformatio e, no caso afirmativo, em que termos deverá moldar-se essa proibição - que vão incidir as atenções desta Câmara.
§ 2.º A "reioimatio in pejus" no direito nacional
2. Não parece deslocado aqui procurar indagar, ainda que muito superficialmente, qual a tradição legislativa nacional a respeito desta importante e delicada questão.
Trata-se, com efeito, de construir o direito, aliás num domínio que toca ou afecta interesses fundamentais da ordem jurídica, e, por isso, a tradição legislativa terá sempre uma palavra a dizer, em maior ou menor medida, pois ajuda à prévia "fixação do sentido dos fenómenos jurídicos, ou seja, a percepção da linha evolutiva dos princípios que dominam e dos sentimentos que inspiram a vida jurídica"5, indispensável a qualquer obra reformadora das leis.
3. Na vigência das Ordenações Filipinas de 1595 (livro III, título LXXII, e livro V, título CXXII), o recurso (apelação) era comum a ambas as partes, e as sentenças subiam oficiosamente, em regra, para confirmação superior, não estando limitado o âmbito de cognição do tribunal de recurso6
Pode dizer-se que o mesmo sucedia no regime da Novíssima Reforma Judiciária de 1841 (artigos 681.º. § II, 1186.º, 1187.º, § único, e 1197.º)7
Com a publicação do Código de Processo Penal de 1929. ainda em vigor, levantou-se em termos claros o problema da admissibilidade da reformatio in pejus.
A jurisprudência dividiu-se, sendo certo, porém, que a partir de 1937 os tribunais superiores se orientaram prevalentemente no sentido daquela admissibilidade.
O comentador Luís Osório, com a sua reconhecida autoridade, escreveu a este propósito.
Pretendem alguns deduzir destas limitações a proibição de em recurso se agravar a pena ao réu, quando ele for o único recorrente.
Este artigo (artigo 647.º, n.º 2, e § 3.º) tem somente por fim dizer quem pode recorrer, e não pôr limites ao tribunal superior. Se daqui se deduzisse uma proibição a favor do réu, também se devia deduzir com os mesmos fundamentos - n.º 2.º e § 4.º - uma limitação a favor da acusação. Em processo cível esta regra de legitimidade coincide com a permissão de agravar a situação do recorrente (Código de Processo Civil, artigo 987.º, § 3.º) Já era essa, e foi desde sempre, a nossa legislação e jurisprudência anteriores. Nos países onde a proibição é admitida é combatida por escritores como Mortara, Garofalo, Stoppato, etc.8
Esta orientação dominante a favor da reformatio veio a encontrar consagração no Assento do Supremo Tribunal.
_____________
1 Projecto de lei n.º 4/IX, de 5 de Março do ano em curso, da iniciativa dos Srs. Deputados Júlio Alberto da Costa Evangelista, Manuel Collares Pereira e Tito de Castelo Branco Arantes (in Actas da Câmara Corporativa, n.º 85, do 6 de Março de 1968).
2 A expressão parece derivar de um passo de Ulpiano (Digesto, 49, 1, 1)
Appellandi usus quam sit frequens, quamque necessarius, nemo est gui nesciat quippe quum iniquitatem judicantium, vel imperitiam recorrigat licet enim nonnunquam bene latas sententias in pejus reformet, negue enim utique melius pronuntiat qui novíssimas sententiam laturus est.
Parece, todavia, que a experiência jurídica romana não oferecia exemplos do proibição da reformatio nos moldes em que hoje entendemos este princípio.
3 A actual redacção deste artigo é a seguinte:
Quando um tribunal dê provimento ao recurso interposto de um despacho de pronúncia ou equivalente ou de uma sentença ou acórdão final, poderá alterar a incriminação, nos termos dos artigos 447.º o 448.º
4 O projecto admite, todavia, a reformatio, em certos casos e dentro de certos limites, consoante resulta do próprio articulado proposto, que se acabou de transcrever, aspecto que mais adiante e pormenorizadamente será analisado no exame do problema na especialidade.
5 Prof. F. A. Pires de Lima, "A reforma do direito privado português" (oração de sapiência), 1961, in Boletim ao Ministério da Justiça n.º 110.
6 Cf Pereira e Sousa, Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, §§ 277, 278, 279 e 286, o Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, VI, p. 315.
7 Cf Luís Osório, ob e loc cit , e voto de vencido do conselheiro Cruz Alvura no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 1950, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 19, p. 144.
8 Ob est, p. 315.
Página 1749
25 DE OUTUBRO DE 1968 1749
de Justiça, de 5 de Maio de 1950, que por modo definitivo acabou com a divergência jurisprudencial, firmando a regra de que sem recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena»9
E tem certamente interesse conhecer o pensamento do nosso mais alto Tribunal, que conduziu à fixação daquela doutrina, para o que seguidamente se transcreve a parte do assento onde se contém a respectiva fundamentação.
Nos termos dos artigos 53.º e 56 º, alínea b) n.º 1.º, do Estatuto Judiciário, e 36.º, n.º 1.º, e 37.º, n.º 1.º, do Código de Processo Penal, é da competência dos tribunais superiores conhecer, por meio de recurso, das decisões proferidas pelos tribunais que hierarquicamente lhes estão subordinados.
Nenhum preceito, porém, do Código de Processo Penal e legislação complementar refere expressamente qual deva ser a extensão da apreciação jurisdicional, pelo tribunal superior, da decisão recorrida. Por isso, essa extensão há-de determinar-se em função dos princípios gerais que dominam e orientam o processo penal.
O carácter público do direito que através do processo penal se realiza - o direito punitivo do Estado - impõe que os tribunais superiores possam aplicar livremente as sanções que julgarem adequadas, nos casos sujeitos a sua apreciação, pois só assim aquele direito do Estado alcançará plena realização.
Não obsta a este entendimento o n.º 2.º do § 3.º do artigo 647.º do Código de Processo Penal, visto esta disposição fixar regras de legitimidade para recorrer, e não um limite de âmbito de cognição, em recurso, das decisões judiciais a amplitude desta cognição referem-se os artigos 663.º, 665.º e 666.º do Código citado, nos quais não se encontra qualquer limite ao amplo poder dos tribunais de exercerem a sua acção por forma a que justiça se faça e a lei se cumpra.
E também o artigo 649.º daquele Código, embora mande processar e julgar os recursos penais como os agravos cíveis, nada preceitua sobre a extensão do objecto dos mesmos recursos. Aliás, estas limitações não se compreenderiam, desde que o § 2.º do artigo 447.º manda tomar sempre em consideração as agravantes da reincidência e da sucessão, ainda que não tenham sido alegadas.
De notar é também que a faculdade de os réus recorrentes limitarem o objecto dos recursos - uma das formas pelas quais viria a ficar praticamente limitado o poder de apreciação dos tribunais superiores - contraria, evidentemente, o fim que se pretende atingir através do processo penal, ou seja a aplicação da sanção justa ao que delinquiu.
Desta forma, na falta de preceito expresso nesse sentido, não pode aquela faculdade ser reconhecida em processo penal, sem embargo de ser admitida pelo Código de Processo Civil - artigo 685.º -, pois é manifesto que os preceitos deste Código, apesar de subsidiários em processo penal, só são aplicáveis a esta forma de processo na medida em que o seu uso não for de encontro a natureza dele, processo penal.
Salienta-se ainda que o princípio da unidade ou incindibilidade das decisões penais influencia diversas disposições do processo penal, designadamente o artigo 663.º, segundo o qual, sempre que haja diversos réus, os tribunais superiores devem conhecer da cousa em relação a todos, ainda mesmo que o recurso tenha sido interposto somente por algum deles, princípio que, enquanto favorece a tese da possibilidade de agravamento da pena ao réu - mesmo quando seja o único recorrente -, repele o da impossibilidade.
Na verdade, se nas condições referidas fosse vedado aos tribunais agravar a pena, estavam estes, praticamente, inibidos de apreciar a decisão recorrida, em toda a sua extensão - pois seria irrelevante toda a apreciação que não tivesse por fim confirmar-se ou atenuar-se a pena. Isto podia conduzir, atento o imperativo preceito do artigo 663.º, a este resultado absurdo os tribunais não podiam agravar a pena do réu recorrente, mas podiam agravar as dos réus não recorrentes.
Acentua-se, por fim, que a norma do artigo 667.º do Código de Processo Penal não é incompatível com a regra da ampla cognição dos tribunais superiores, visto tratar-se de norma, não relativa ao âmbito de cognição, mas permissiva da modificação pelos tribunais do objecto da acção penal. Aquela regra é a paralela dos artigos 447.º e 448.º do mesmo Código, referente aos tribunais de 1.ª instância, que, pelo facto da sua existência, não deixa de ter o poder de ampla cognição10
4. Por força do assento que se tem vindo a referir, a reformatio in pejus passou a ser admitida sem possibilidade de discrepância no direito processual criminal comum.
Contudo, no processo criminal militar, não atingido pela eficácia daquele assento, continuou de pé a proibição da reformatio, expressamente consagrada no artigo 532.º do Código de Justiça Militar, de 26 de Novembro de 1925.
Esta desconformidade com o processo comum veio a desaparecer, todavia, em 1965, com o Decreto-Lei n.º 46 206, de 27 de Fevereiro daquele ano, norteado pela ideia de reestruturar o direito criminal militar e o respectivo processo, por forma a actualizá-los em alguns pontos e a aproximá-los do regime geral.
Ficou então também expressamente admitida no foro militar a reformatio in pejus e, deste modo, em todo o processo criminal português.
Eis descrita, em traços muito ligeiros, a tendência da legislação nacional, manifestamente favorável à reformatio11
§ 3.º A «reformatio in pejus» nalgumas legislações estrangeiras
5. Também o recurso ao direito comparado é susceptível de fornecer indicações ou ensinamentos úteis, para que possamos orientar-nos na busca da melhor solução para o
____________
9 São os seguintes os nomes dos juízes conselheiros que subscreveram a decisão A. de Magalhães Barros (relator), Rocha Ferreira, Pedro de Albuquerque, Mário de Vasconcelos, Álvaro Ponces, Lencastre da Veiga, Jaime de Almeida Ribeiro, Bordalo e Sá, A. Bártolo, Campelo de Andrade, Raul Duque, A da Cruz Alvura, Roberto Martins, J. de Abreu Coutinho e Artur A. Ribeiro (os últimos quatro com voto de vencido).
10 In Boletim do Ministério da Justiça n.º 19, pp. 141-143
11 Se o Assento de 1950 revela o pensamento do Poder Judicial, a reforma operada recentemente no processo militar traduz igualmente uma certa posição do Poder Executivo, por sinal, aquele e esta coincidentes.
Página 1750
1750 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 92
problema posto no projecto de lei submetido à apreciação da Câmara.
Ha, pois, que reflectir um pouco sobre o que neste aspecto se passa nas legislações de alguns países, daqueles, como é óbvio, que mais afinidades têm com o nosso sistema ou que ocupam lugar de maior relevo no campo da ciência jurídica.
Não poderá asseverar-se, certamente, que o direito processual penal tenha uma vocação ecuménica, que aspire a reger segundo os mesmos princípios a justiça penal de todos os países. Há, sem dúvida, muitos aspectos ligados profundamente à índole cultural e sociológica própria de cada povo, que impedem identidade de soluções.
Importa, contudo, que cada país procure debruçar-se sobre as realidades alheias, já que há no céu e na terra muito mais coisas do que aquelas que cabem no seu pensamento e no seu direito.
Isto constituirá, decerto, lição de prudência e humildade em face de soluções diversas e servirá para melhor se compreender e aceitar o papel do direito comparado, no qual se pretende ver - na confrontação dos sistemas jurídicos nacionais, afinal simples aspecto de comparação da cultura dos diferentes povos - "o instrumento e o caminho da descoberta dos princípios do direito essenciais à realização dessa "comunidade de justiça" de que nos falava. Interna essenciais à construção da sociedade moderna numa base e com um sentido humanista.
E assim o direito comparado se elevaria à missão que outrora os homens da Renascença assinalaram ao direito romano, que foi atribuída ao direito natural pelos do século de Setecentos"12
6. Até ao início do segundo quartel deste século raros eram os países que na Europa - e decerto em todo o Mundo - tinham introduzido no seu direito o princípio da proibição da reformatio in pejus. Entre eles contavam-se apenas a França, a Alemanha, a Áustria e a Itália13.
a) A apelação de sentido único ou unilateral, na medida em que o tribunal superior pode melhorar, mas não agravar, a sorte do acusado, quando aquela tenha sido interposta somente por este, foi introduzida no processo penal francês pelo célebre avis do Conselho de Estado, de 12 de Novembro de 1806, órgão que detinha poderes de interpretação da lei. A consagração legislativa desta interdição da reformatio verificou-se apenas com o Code de Procedure Pénale, de 1959 (artigo 515)14.
b) Em Itália, desde o Códice di Procedura Penale, de 1865, passando pelo do 1913, até ao Código actual, de 1930, tem-se mantido a proibição da reformatio, em termos não uniformes, todavia.
Registou-se, porém, com o primeiro projecto do Código vigente, de 1927, uma forte reacção contra a proibição. Os magistrados acolheram com simpatia a nova orientação, que encontrou a maior oposição naqueles que viam assim desaparecer os poderes que poderiam levar a conferir-lhes os "epítetos de conservadores à outrance" e de "protectores dos delinquentes", os quais, dando prova de uma estranha concepção jurídica, admitem a existência de direitos adquiridos pelo delinquente por efeito da sua delinquência15.
No projecto definitivo prevaleceu, contudo, a orientação tradicional, pois que se reconheceu "ser de boa política legislativa ter em atenção, nos limites convenientes e respeitando as directivas gerais, as opiniões e os sentimentos radicados e difundidos no povo no momento histórico para o qual se deve providenciar, já que uma lei resulta tanto mais eficaz e encontra fiel aplicação quanto melhor se adapte à consciência colectiva. O legislador não deverá preocupar-se com realizar uma obra exclusiva e rigorosamente lógica e científica, mas deve prover para a vida prática, e por isso dar a devida consideração a todos os elementos idóneos, ainda que isso o impeça de aplicar os princípios teóricos em toda a sua plenitude"16.
Por estas razões, o Código de 1930 acolheu a proibição da reformatio, mas não em termos absolutos (como mais adiante se verá, a propósito do exame na especialidade), uma vez que não só o tribunal superior pode, dentro de certos limites, dar ao crime uma definição diversa, ainda que mais grave, mas a proibição cessa desde que o Ministério Público interponha recurso "incidental" (artigo 515, § 3.º)17.
c) Na Alemanha a reformatio in pejus foi instituída em 1935 pela reforma nacional-socialista do processo criminal.
Porém, em 1950, a lei de unificação (Vereinheitlichugsgesetz), que revogou aquela reforma, pôs novamente em vigor o regime da proibição da reformatio, cujos termos são essencialmente os seguintes.
Recurso de apelação
§ 381 St PO (1) A sentença não pode ser alterada, quanto ao tipo e gravidade da pena, em prejuízo do acusado, se a apelação for promovida apenas pelo acusado, pelo Ministério Público em seu benefício ou pelo seu representante legal.
(2) Este preceito não obsta à ordem de internamento num estabelecimento de tratamento médico
_________
12 Discurso proferido pelo Prof Ferrer Correia na sessão de abertura dos cursos da Faculdade Internacional para o Ensino do Direito. Comparado, em Coimbra, a 29 de Agosto de 1968 (Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLII, p. 401).
3 Aliás, o principio da proibição da refomatio, conquanto não possa saber-se a sua origem exacta, é de data relativamente recente. Segundo alguns, remonta ao século XVIII, baseando-se a doutrina da época na teoria dos direitos adquiridos com a pronúncia da primeira sentença o acusado adquire o direito a não ser sujeito a uma pena mais grave, para outros, a origem do princípio estaria no direito francês, através de uma decisão do Conselho do Estado de 1806.
O direito romano desconhecia tal principio, que tombém não é admitido no direito canónico (Cf Delitala, Il divieto della reformatio in pejus, p. 195 e seguintes).
14 Ainda que o referido avis, assim como o Código de Processo Penal, só vise expressamente a apelação, e não o recurso de cassação, o certo é que a jurisprudência, embora não unanimemente, aceita a extensão da interdição da reformatio a este recurso (Cf P Bouzat, Traité de Droit Penal et de Criminolo-gie, 1968, tomo II n.º 1481 e 1503)
15 Palavras do Guardaeigilli no relatório sobre o projecto, cit. por Mário Pisani, in Il divieto delia reformatio in pejus nel processo penale italiano, 1967, p. 6 e nota 8.
16 Cit. relatório (Lavori preparatori, vol X, 1930, pp. 73 e 74). Acrescenta-se ainda noutro passo.
Quanto ao efeito devolutivo da apelação, a absoluta abolição da proibição da reformatio in pejus tem suscitado não poucas recriminações, como acontece sempre que se toca em institutos tradicionais, relativamente aos quais o hábito substituiu a critica e criou a crença da sua intangibilidade. Mas não seriam certamente reclamações infundadas que poderiam remover-me da minha primeira ideia se, no reexame desta matéria, não tivesse encontrado válidos argumentos para me persuadir da oportunidade de introduzir qualquer temperamento ao princípio acolhido no projecto preliminar.
17 No processo criminal militar, contrariamente ao que sucede no processo comum, é admitida a reformatio in pejus (Código Penal Militar de 1941, antigo 339.º), com uma só reserva relativa à pena de morte.
Página 1751
25 DE OUTUBRO DE 1968 1751
ou de assistência, num instituto de desintoxicação de alcoólicos ou de recolhimento
Recurso de revista
§ 358 St PO (1).
(2) A sentença recorrida não pode ser alterada quanto ao tipo e gravidade da pena, em prejuízo do acusado, se a revista for promovida apenas pelo acusado, pelo Ministério Público em seu beneficio ou pelo seu representante legal. Este preceito não obsta a ordem de internamento num estabelecimento médico, etc.
Recurso de revisão
§ 373 St PO (1).
(2) A sentença anterior não pode ser alterada quanto ao tipo e gravidade da pena, em prejuízo do condenado, se apenas este, o Ministério Público em seu benefício ou o seu representante legal requereu a reabertura do processo
Quanto ao recurso de agravo, a doutrina divide-se, entendendo muitos que é de aplicar ainda a proibição da reformatio, com fundamento nos "princípios gerais dos recursoss (Beling).
d) Na Inglaterra a reformatio in pejus tem uma larga tradição
A sua proibição é de data muito recente, pois ocorreu pela primeira vez em 1964 (Criminal Appeal Act de 1964)
Hoje está estabelecida no Criminal Appeal Àct de 1966 e not being a sentece of greater severity"
e) Na Suíça não há uniformidade de regime quanto ao nosso problema
A reformatio está proibida em alguns cantões - Zurique, Berna, Claris, Vaiais -, mas é admitida noutros - Lucerna, Schwytz, Genebra e Vaud
f) Na Bélgica a jurisprudência estabeleceu também que, em recurso interposto sòmente pelo acusado, a situação deste não pode ser agravada pelo tribunal de recurso 18
g) Em Espanha a reformatio está proibida na Ley de Enjuiciamento Criminal (artigo 902.º).
h) Na Checoslováquia vigora um regime semelhante ao do direito italiano (artigo 296 da Lei de 19 de Dezembro de 1956) 19
i) No Brasil, o Código de Processo Penal de 1941 (artigo 617 º) determina também que não poderá ser agravada a pena quando sòmente o réu houver apelado da sentença
O mesmo se estabelece no artigo 752.º do anteprojecto do novo Código de Processo Penal (m Boletim do Ministério da Justiça n.º 187)
j) Finalmente, acrescente-se que na Rússia o novo Código de 1960 afasta a reformatio quando o recurso for interposto sòmente pelo acusado 20
Esta solução parece ter sido adoptada já dois anos antes (Princípios Básicos do Processo Criminal na Rússia Soviética e República da União, de 25 de Dezembro de 1958) 21.
Esta nova orientação do direito russo talvez se enquadre naquela evolução operada no período pós-estalimano no sentido de certa ocidentalização das instituições soviéticas, quer no campo do direito público, quer no campo do direito privado, de que fala Harold Berman (Justice in the U R S S ou, na versão italiana, La Giustizia nell U R. S S)22".
7. Do que fica exposto no número precedente pode concluir-se, por um lado, que a generalidade dos países que contam na Europa e no Mundo no plano da cultura jurídica adopta o princípio da proibição da reformatio in pejus, e, por outro lado, que tal orientação é em vários deles muito recente, situando-se aquém do termo da primeira metade do nosso século Por outro lado ainda, verifica-se que o princípio não é sempre absoluto, aceitando-se em algumas legislações certas limitações
§ 4.º Justificação dogmática da proibição da "reformatio in pejuz"
8. Supõe-se estar chegada a altura de procurar saber qual ou quais as razões que estão na base da proibição da reformatio in pejus
1) Fundamentos de ordem juridico-processual
9. Sérias divisões surgem na doutrina perante o problema da admissibilidade ou inadmissibilidade da reformatio in pejus
E entre os autores que condenam a reformatio - os quais avultam, sem dúvida, nos tempos modernos - também não existe unanimidade quanto à fundamentação da solução que preferem
a) Há quem procure explicar a proibição da reformatio com base no chamado principio dispositivo, directamente ligado ao podei de iniciativa das partes no processo, as quais fornecem e fixam ao tribunal o thema decidendum (ne cat judex ultra petita partium) Sendo só uma das partes a recorrer - o réu, no caso sub judice -, não se compreenderia que o tribuno! agravasse a pena imposta, julgando para além do pedido
Este modo de ver é, contudo, combatido por outros, que alegam não só que a regra ne est judex ultra petita não emerge de qualquer preceito do direito processual penal, como certo é também que a impugnação penal não envolve a formulação de pedido verdadeiro e próprio a que possa ser aplicada aquela regra Bem diferentemente, a medida da pena é questão que se situa dentro dos poderes discricionários do juiz, assim como as consequências do crime não são objecto do pedido 23
b) Outra razão apresentada para justificar a proibição da reformatio está ligada à idem de que para recorrer
18 Segundo nota fornecida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros o do Comércio Exterior
19 Ut Pisam, ob. cit, p 63, nota 46
20 Cf P Bouzat, ob cit, tomo II, p 1159, nota 6
21 Cf Law III Eastern Europe n.º 3 (1959), 143
22 Não se sabe como na prática funciona a proibição da reformatio, dada a possibilidade de ordens internas dirigidos no representante da acusação pública para recorrer sempre que o acusado recorra Com efeito, "o julgamento só pode ser anulado pela necessidade de aplicar uma norma respeitante a um crime mais grave ou pela brandura da punição nos casos em que o procurador ou o ofendido recorreu para esse efeito" (cit Princípios Básicos do Processo Criminal na Rússia Soviética e Repúblicas da União)
23 Cf Sabatim "Reformatio in pejus", in Novissimo Digesto Italiano, vol XIV, p 1122, Pisani, ob cit, p 45, e Lozzi, "Favor rei" e processo penal, 1965, p 98.
Página 1752
1752 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 02
é necessário ter interesse ("Pás d'intérêt, pas d'action") Portanto, o recurso só do acusado não poderia conduzir a resultados contrários ao seu interesse 24
Objecta-se, porém, que esta consideração não colhe inteiramente, já que na tutela penal não estão em causa interesses meramente privados, além de que o referido interesse opera para o efeito da admissibilidade do recurso, enquanto a proibição da reformatio opera em ordem a limitar a plena cognição do tribunal
Se a consideração fosse exacta, então quando o Ministério Público interpusesse recurso a favor do réu, na sua função objectiva de tutela legal, o tribunal poderia agravar a pena, pois o réu, não recorrendo, mostrara falta de interesse (Sabatim e Pisam)
c) Alguns autores ligam ainda a proibição da reformatio a razões de equidade "Quod favore () constitutum est, non poteat in eius () retorquere "
Quer dizer seria iníquo reformar a sentença em prejuízo do réu quando, sem o seu recurso, a decisão teria passado em julgado
Este argumento é, todavia, criticado por alguns, alegando que é estranho a considerações de pura dogmática, ao mesmo tempo que acentua um dado negativo - a impossibilidade de encontrar uma justificação coerente com o próprio sistema processual penal 25
d) Para certos autores, o que explica verdadeiramente a proibição da reformatio é justamente o favor rei, como princípio geral de direito (Sabatim e Lozzi)
Mas esta concepção é combatida por outros, os quais afirmam que o favor rei serve somente para explicar a origem do princípio da proibição, enquanto benefício concedido ao acusado, como contrapartida da precariedade da defesa no tribunal de primeira instância, dados os efeitos do processo inquisitório. Hoje, porém, com o afastamento deste tipo de processo, o favor rei ou favor libertatis tem uma importância secundária na compreensão do instituto
c) Que justifica então este?
Para Pisam a proibição da reformatio liga-se a uma profunda exigência de ordem sistemática, a uma determinada política processual - não no sentido de o processo servir uma certa política tout court, como a do reforço da autoridade central do Estado, ou para servir uma determinada ideologia do regime, mas no sentido de que representa um critério fundamental do ordenamento e da organização interna do processo
Tal política consiste em fomentar os recursos das sentenças da primeira instância, com vista ao seu reexame crítico e, através deste, ao melhor julgamento da causa E uma forma de encorajar os recursos será precisamente a de garantir o réu, embora dentro de certos limites, contra o risco de uma decisão do tribunal de recurso prejudicial ao interesse da sua liberdade - o risco de uma reformatio im pejus 25.
A proibição desta tenderia, pois, a realizar uma importante finalidade objectiva - a garantia da regularidade do processo em ordem à realização da justiça
Porém, nem mesmo esta concepção, a que não falta argúcia e certa base científica, escapa à crítica.
Objecta-se, com efeito, que ela, afinal, não resolve o problema, mas somente o ilude, oferecendo uma proposição apenas formalmente diversa da tese segundo a qual
24 Neste sentido, Vannini, Manuale di diritto processuale penale italiano, 1965, 242
25 Cf Pisam, ob cit, p 48
26 Ob cit, p 58. Neste sentido, também Belling (Deuteches Reichastrafprozessrecht, 840)
"o princípio de oportunidade ensina que o uso deste remédio jurídico seria grandemente paralisado se mediante o recurso interposto somente pelo condenado fosse permitido aumentar a pena, pois que o temor de uma pena mais grave induziria os condenados a não recorre" 27
Por outro lado, se se admite - como é admitido pelo direito italiano - um recurso "incidental" do Ministério Público, nos termos mais amplos, o réu fica desprovido de qualquer garantia contra o risco de agravamento da sua situação no juízo de recurso
f) A proibição da reformatio im pejus é, de outra parte, acèrrimamente atacada por alguns criminalistas
Delitala nega-lhe qualquer fundamento jurídico.
Alega-se - diz este autor - que a reformatio constitui uma intimidação em face da vontade de recorrer. Não é exacto Claro que com ela diminuiriam os recursos provavelmente, mas isso só constituiria um mal se dai resultasse necessariamente um prejuízo para a justiça, se a ameaça de possível agravamento da pena pudesse afastar o acusado de procurar a reforma de uma sentença, não conforme ao direito Todavia, o que se verifica obviamente é que a intimidação só atingirá verdadeiramente os recorrentes temerários De resto, perante a possibilidade de o Ministério Público recorrer sem que o acusado o saiba previamente, o argumento perde o seu valor
Ora a verdade é que a proibição da reformatio contrasta com a finalidade normal do processo a actuação da vontade da lei no caso concreto Ela, com efeito, altera o sistema das penas leva à consequência de se aplicar a um crime a pena cominada para um outro, que se puna um delito com a pena estabelecida para uma contravenção
A proibição é, afinal, apenas uma máxima de política criminal, uma espécie de favor libertatis, resultante de considerações humanitárias contra os sistemas judiciários do passado Mas não tem a seu favor um fundamento de ordem jurídica, nem um fundamento de oportunidade prática verdadeiramente decisivo
E acentua
A justiça penal deve tender unicamente à actuação da lei para a finalidade decisiva da defesa social, sem excessivos rigores, mas sem nociva indulgência 28.
g) Através da exposição sumária dos diversos fundamentos que têm sido invocados a favor da inadmissibilidade da reformatio im pejus e da indicação das críticas que mais frequentemente lhes têm sido dirigidas, pode concluir-se pelo valor relativo que apresentam aqueles e estas
Trata-se, com efeito, de um domínio delicado da justiça penal, em que a preferência por determinada posição ou por certo argumento nem sempre é isenta de elementos emocionais ou de pura ideologia, quando a verdade é que a solução deve ser procurada no terreno científico ou no campo de uma sã política legislativa nacional, tendo em atenção o equilíbrio de interesses que o processo criminal visa atingir
Já foi apontada a crítica ao princípio dispositivo, o qual, aliás, transportado na sua plenitude para o processo penal, levaria à equiparação deste ao processo civil, donde haveria que admitir que, se em recurso só interposto pelo réu não é possível agravar a pena, igualmente em recurso somente interposto pela acusação, pública ou particular, não seria possível diminuir a pena ou até absolver o réu, por maior que fosse o erro de julgamento cometido
27 Sabatim, loc cit , 1124.
28 Ob cit., p 218.
Página 1753
25 DE OUTUBRO DE 1968 1753
E esta consequência é certamente inadmissível. Mas é-o justamente porque, ao contrário do que sucede no processo civil, o que está directamente em causa no processo penal é o interesse público, o qual exige a exacta actuação do direito penal 29
E será naturalmente por esta razão essencial que o projecto de lei em apreciação admite a reformatio sempre que o tribunal superior entenda que o título de incriminação é diverso e mais grave
A natureza pública do interesse caracterizador do processo penal serve do mesmo modo para afectar o valor dos argumentos do interesse em recorrer e do apelo à equidade, referidos acima [alíneas b) e c)].
Quanto ao fundamento do favor rei ou favor libertatis, já vimos as críticas que se lhe fazem
A importância que por vezes se lhe atribui nem sempre corresponde às veidadeiras exigências do processo penal Não pode esquecer-se, na verdade, que a liberdade do réu não é o único interesse a ter em vista, porque a justiça penal não pode deixar de tutelar também eficazmente o interesse da vítima, por vezes tão valioso como a liberdade do criminoso ou mais valioso que ela (homicídio, violação, roubo, etc ), e o próprio interesse geral da defesa da sociedade ofendido ou posto em perigo pela actividade criminosa
Impõe-se evitar o amolecimento ou enfraquecimento de repressão penal, não transformando o direito penal numa lei esvaziada do sentido de justa retribuição, numa lei de protecção no deliquente, num "direito premial", na expressão de G Bettiol 30 31
A concepção de Pisani [alínea 2)] afigura-se ainda a mais ajustada, na medida em que relaciona a proibição da reformatio com a estrutura do recurso como meio de assegurar uma mais perfeita aplicação da lei Simplesmente, num momento posterior -o do julgamento pelo tribunal de recurso - nega-se a este a possibilidade de realizar a exacta aplicação do direito ante a barreira que se lhe levanta de agravar a situação do recorrente, quando essa agravação se imponha em face dos normativos legais
10. Não obstante a importância meramente relativa dos fundamentos aduzidos em favor da proibição da reformatio, eles constituem no seu conjunto algo de positivo que não pode desprezar-se na problemática que vem prendendo a nossa atenção
Convirá, no entanto, que demos mais um passo na indagação que vimos fazendo.
2) A "reformatio in pejus" e os formas políticas de Estado
11. A reformatio ou a sua proibição estarão necessariamente ligadas a certos tipos de Estado 9
29 Cf Prof Cavaleiro de Ferreira, Curso de Preceito Penal, I, pp 45 e 46
30 "Neste momento histórico -escreve o autor-, em que assistimos ao irromper de tendências de orientações, de legislações, que atacam os institutos tradicionais do direito penal, afigura-se-nos legítima uma pergunta, que até pode parecer paradoxal não estará, porventura, o direito penal a transformar-se num direito premial?
De fundamento e de razão do castigo retributivo, não estará o direito penal a passar para decididas posições, não só de prevenções pedagógico-profilácticas, mas até de prémio?" (in O Problema Penal, p 222, tradução de F de Miranda)
31 Não se pense que com isto se pretende defender um direito penal de terror, com base na ideia do uma defesa ou protecção social contra o crime, através do caminho utilitário da prevenção geral, ou pela via da prevenção especial, na concepção positivista (Cf o relatório do projecto da parte geral do Código Penal, 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia)
Pode dizer-se que o direito é, em larga medida, a expressão cristalizada da política Com efeito, não só todo o fermento da vida cultural de um povo e todos os seus valores predominantes, mas ainda todas as suas fundamentais concepções políticas se espelham no quadro do ordenamento jurídico, especialmente no quadro do direito penal.
O direito é, deste modo, o precipitado histórico de uma dada orientação política
Mas, se assim é quanto ao direito substantivo, não o é menos quanto ao direito adjectivo, ou processual
"Se o direito - como escreveu Radbruch - é a forma por excelência da vida social, o direito processual, sendo o mais formal de todos os seus ramos, é, por sua vez, como que a "forma dessa forma" a mais instável, a mais sensível, e assim como as extremidades dos mastros de um navio respondem com uma amplitude de oscilação máxima aos mínimos movimentos do seu corpo, do mesmo modo as mais pequenas transformações da vida social nas suas violentas oscilações, logo primeiramente se repercutem na estrutura e desenvolvimento do processo "
O processo seria, assim, depois deste interessante símile, uma espécie de sismògrafo ou aparelho de máxima precisão, capaz de registar a uma grande distância os mínimos movimentos e deslocações das camadas de terreno no subsolo da vida social 32
Pois, apesar desta relação estreita entre o direito processual e os fenómenos sociais e políticos, pode afirmar-se que a admissibilidade ou inadmissibilidade da reformatio in pejus não está necessariamente ligada à política, isto é, a um determinado tipo de Estado
Assim, Estados tradicionalmente havidos como "democráticos" só há poucos anos abandonaram o sistema da reformatio (Inglaterra, em 1964), ou ainda o conservam (certos cantões da Suíça), enquanto o Código de Processo Penal italiano, de 1930, nascido à sombra do regime fascista, manteve a proibição da reformatio, e na Rússia, onde também está afastada a concepção de "Estado de Direito", a partir de 1958 foi acolhida a proibição
A problemática da matéria em causa vem efectivamente de épocas em que as suas coordenadas eram alheias a pressupostos do ideologia política.
No entanto, se a questão em análise não está necessariamente ligada à política tout court, não se pode negar uma certa conexão com pressupostos de índole filosófica geral e de, concepção do mundo, designadamente de carácter humanitário
Mas parece que a reformatio não repugnaria - bem ao contrário-, pelo menos em certa medida, à feição autoritária do direito ou do Estado, que tem vindo a projectar-se na estrutura do processo a partir de determinada altura do século XX
Esclareça-se, porém, a fim de evitar possíveis equívocos, que este autoritarismo é coisa bem diferente do chamado totalitarismo
O autoritarismo não tem aqui o sentido vulgar desta palavra nos usos correntes da vida, significando excesso de autoridade, despotismo ou demasiada severidade no exercício de qualquer mando "É antes, como conceito, uma projecção do mesmo conceito de "social"
Em vez de se partir nela (concepção autoritária) da afirmação dogmática de quaisquer direitos originários naturais do indivíduo, como de um prius metafísico e abs-
32 Cf Prof Cabral de Moncada, "O processo perante a filosofia do direito", 1961, in Boletim da Faculdade de Direito (suplemento XV), vol I. pp 55-56
Página 1754
1754 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 92
tracto, para sobre esse prius se fundar depois, teorética e ideologicamente, o Estado como mero instrumento e meio de garantia e defesa de tais direitos (como na concepção individualista), parte-se da realidade social concreta de que aqueles direitos fazem já parte integrante, para se lhe acrescentarem ainda os direitos específicos desta, como aspecto igualmente ôntico da essência do homem, necessàriamente limitadores e até integradores dos primeiros O Estado é assim portador também de fins próprios, pelo menos no plano do vital, cujo reconhecimento corresponde ao "momento" autoridade em face do da liberdade, como de dois momentos dialécticos na génese e desenvolvimento de todo o existir humano, tanto conceitual e abstractamente como histórica e concretamente
E, voltando ao processo, quem encarna na relação processual esse primeiro "momento" é, sem dúvida, o juiz como representante jurisdicional do Estado
Donde a ampliação da actividade deste, o justo alargamento dos seus poderes e a sua indiscutível missão não de árbitro passivo, mas de órgão activo e integrador da ordem jurídica 33 "
§ 5.º Posição a, tomar perante o direito positivo português
12. É altura de, feito o balanço dos fundamentos acima expostos e das ideias desenvolvidas, tomar posição perante o problema da aceitação da reformatio in pejus ou da sua proibição nos quadros do direito positivo português
Viu-se que a tradição legislativa nacional favorece a tese da aceitação
Mas viu-se também, a luz da lição do direito comparado, que a tese da proibição predomina largamente nas legislações mais representativas, que os fundamentos invocados pela doutrina a favor desta tese tem algum valor, ainda que relativo, e que, no conjunto, representam uma voz significativa no diálogo universal do pensamento jurídico, que a concepção autoritária do Estado ou o carácter social da ordem jurídica, aceites para o caso português, não são inconciliáveis com uma proibição limitada da reformatio
Acresce que, colocado o problema no plano humanitário (a proibição terá resultado de uma reacção desse tipo), poucas legislações estarão tão à vontade como a nossa, que ao longo dos tempos tem dado claro exemplo de apreço pela liberdade e dignificação do homem
Com efeito, a lei portuguesa há um século aboliu definitivamente a pena de morte 34, não acolhe qualquer pena corporal, nem as penas de prisão perpétua e de trabalhos forçados, assegura aos cidadãos os "direitos, liberdades e garantias individuais", consignados em texto constitucional 35, condena a discriminação racial ou religiosa, pos-
33 Prof Cabral de Moncada, loc cit , p 80
A esta concepção autoritária do Estado corresponde uma concepção social da ordem jurídica e uma concepção totalista das relações entre o indivíduo e a sociedade
Esta concepção totalista significa que "o indivíduo não tem, rigorosamente, direitos contra o Estudo, nem este contra aquele, o indivíduo só tem interesses no Estado e o Estado só tem direitos ainda por causa do indivíduo"
Coisa muito diferente é o totalitarismo, conceito eminentemente político, para o qual a acção tutelar, directiva ou reformadora do Estado, intervém em toda a esfera da vida privada do indivíduo e dos grupos O totalitarismo é uma hipertrofia do política ou uma espécie de panpolitização da vida do indivíduo e do Estado (cf loc cit, p 82)
34 A pena de morte foi abolida para os crimes políticos pelo Acto Adicional de 1852 e para os crimes comuns pelo Decreto de l de Julho de 1867, abolição tornada extensiva ao ultramar pelo Decreto de 10 de Junho do 1870
35 O direito à vida e à integridade pessoal; não ser privado da liberdade pessoal nem preso sem culpa formada, salvo os casos
sui a providência do habeas corpus, privilégio de raros países na Europa, dispõe de um sistema prisional baseado nas mais modernas exigências da política criminal e penitenciária, dominado pela alta finalidade de readaptação social do delinquente, possui um direito tutelar de menores modelar, através de cujas normas perpassa um sopro de forte e são idealismo, sem o qual as leis desta nntureza são como corpos sem alma 36.
Se a tudo o que fica dito se acrescentar que o nosso processo penal é caracterizado pelo princípio acusatório, na medida em que a propulsão da acção penal pertence a órgão distinto do tubunal (Ministério Público) ou aos particulares ofendidos, ficar-se-á mais esclarecido sobre a posição a tomar perante o problema da reformatio em face do nosso ordenamento jurídico
E, tudo devidamente consideiado, parece de aceitar, como princípio, a proibição da reformatio in pejus, e, em tal sentido, esta Câmara dá ao projecto de lei em estudo a sua aprovação na generalidade
Saber quais devam ser os limites a esse princípio é problema que vai ser tratado na segunda parte deste parecer
II
Exame na especialidade
§ 1.º Âmbito da proibição
1) Agravação da pena em prejuízo do réu. Pena principal
13. A proibição da reformatio in pejus tem o sentido de não poder o tribunal superior (ad quem) modificar a pena imposta no tribunal recorrido (a quo) em prejuízo do réu previstos na lei, não ser sentenciado cnminalmente senão em virtude da lei que declare puníveis o acto ou a omissão, haver instrução contraditória. dando-se aos arguidos antes e depois da formação da culpa as necessárias garantias de defesa, não haver penas corporais perpetuas, nem a de morte, salvo, quanto a esta, o caso de beligerância com país estrangeiro, e para ser aplicada no teatro de guerra, não haver transmissão de qualquer pena da pessoa do delinquente, não haver prisão por falta de pagamento de custas ou selos, haver revisão das sentenças criminais, assegurando-se o direito de indemnização de perdas e danos Fazenda Nacional ao réu ou seus herdeiros mediante processo que a lei regulará (Constituição Política de 1938, artigo 8º)
E não pode sofrer dúvidas que a pena em causa é, antes de mais, a pena principal correspondente ao tipo de crime imputado ao recorrente
O projecto de lei em apreciação preocupou-se em precisar o alcance da proibição, enumerado taxativamente os casos que importam a modificação da decisão recorrida em prejuízo do arguido ou arguidos aplicação de pena mais grave, pela espécie ou pela medida, revogação do beneficio da suspensão da execução da pena ou o da substituição de uma pena por outra menos grave
E assim procedeu para evitar os inconvenientes de uma fórmula vaga 37 que deixasse dúvidas ao intérprete sobre o âmbito exacto da proibição, designadamente quanto às penas acessórias
Todavia, não parece necessária
36 No mesmo plano humanitário se inserem, fundamentalmente, as medidas de indulto e amnistia que, com relativa frequência, são tomadas, por vezes em larga amplitude, como sucedeu com a amnistia constante do Decreto-Lei n º 47 702, de 15 de Maio de 1967, que abrangeu todos os criminosos e todos os crimes, sem excepção
37 Como no Código de Processo Penal francês "La cour ne peut sur le seul appel du prevenu aggraver le sort de l'appéllant" (artigo 515º )
Página 1755
25 DE OUTUBRO DE 1968 1755
Os Códigos alemão e italiano não utilizam tal processo 38
E não parece necessário porque, dizendo-se que o tribunal superior não pode modificar a pena em prejuízo do réu, esta fórmula é suficientemente clara no sentido de abranger todos aqueles casos contidos na aludida enumeração
Com efeito, não pode razoavelmente duvidar-se de que viola a proibição, por prejudicar o réu, a decisão do tribunal superior que aplique uma pena mais grave pela espécie, segundo a escala legal (artigos 55.º, 56.º e 57.º do nosso Código Penal), ou pela medida, isto é, a mesma pena, mas com maior duração, se se tratar de pena detentiva ou em maior montante, se se tratar de pena pecuniária, como igualmente se não pode ter dúvidas de que a revogação da suspensão da execução da pena ou da substituição de uma pena por outra menos grave infringe manifestamente a proibição da reformatio
O argumento respeitante as penas acessórias não é decisivo, porque, se elas são necessárias ou obrigatórias, terão de ser aplicadas no tribunal superior quando omitidas na decisão recorrida, pela razão que abaixo e em lugar próprio será indicada [n º 14)].
E também não parece conveniente o recurso a referida enumeração, porque podem ficar de fora casos a que deva aplicar-se a proibição
Assim, se o réu recorre de uma sentença absolutória por insuficiência de prova, querendo demonstrar - e que o tribunal superior o declare - que os factos imputados não constituem qualquer infracção criminal (o, recorrente pode ter fundado interesse em tal declaração), igualmente o caso de o tribunal de recurso aplicar uma pena menos grave em espécie (prisão, em lugar de prisão maior, por exemplo), mas de maior duração (dois anos em lugar de um ano), e porventura outros que a riqueza da vida real se encarregue de patentear
O que se pretende com a proibição, pois, é que concretamente o réu não possa ver alterada a sanção penal em seu prejuízo, e este prejuízo concreto nem sempre é possível predeterminá-lo através de fórmulas genéricas 39
2) Penas acessórias e efeitos das penas
14. A proibição da reformatio abrange obviamente a pena principal Mas abrangerá igualmente as penas acessórias e os efeitos das penas?
O nosso Código Penal não tem uma classificação das penas em principais e acessórias, como tem, por exemplo, o Código Penal italiano (artigos 17.º e 19.º), conquanto pressuponha a distinção entre elas, até por forma
38 Segundo o Código Alemão, "a sentença não pode ser alterada quanto ao tipo e gravidade da pena, em prejuízo do acusado" (§ 331)
O Código Italiano diz que "o juiz não pode infringir uma pena mais grave, em espécie ou quantidade, nem revogar benefícios" (artigo 515 º, n º 3) A expressão "benefícios" (benefici) é interpretada no sentido de abranger todos as situações resultantes do poder descriminatório do tribunal, com objecto diverso da pena, e favoráveis no acusado, tais como suspensão condicional da pena, a não inclusão da condenação no certificado do registo criminal quando não requerido oficialmente, o perdão judicial, a amnistia, o indulto e a liberdade provisória (cf Sabatini. loc cit, 1126, n º 7, e Pisani, ob cit , pp 98 e seguintes).
39 O diploma de amnistia de 15 de Maio de 1967 (Decreto-Lei n º 47 702) exprimiu-se nos seguintes termos "Os benefícios previstos nos diversos números do artigo anterior não se cumulam, aplicando-se apenas aquele que concretamente mais favorecer o condenado" (artigo 8 º).
expressa (cf artigo 151 º) 40 De modo que as penas acessórias hão-de ser captadas, na parte especial do Código, em relação a cada crime, na descrição do respectivo tipo legal (cf. citado artigo 151 º e o artigo 175 º)
Segundo o projecto de lei, "ficam excluídas da proibição da reformatio in pejus as chamadas "penas acessórias" (cf o artigo 175º do Código Penal), que devem ser decretadas quando tenha lugar a condenação por certos crimes" "Se o tribunal de 1ª instância, ilegalmente, omitiu a aplicação dessas penas, entende-se que não se deve coarctar ao tribunal de recurso a possibilidade de impor o cumprimento da lei O sentido da proibição da reformatio in pejus não é permitir que se violem as regras sobre a medida legal da pena, mas sim garantir ao arguido recorrente que não será prejudicado pela diferença de critérios entre os vários tribunais quanto à concretização da medida judicial da pena"
Não parece, contudo, de aceitar o entendimento do projecto de lei contido na afirmação absoluta de que as penas acessórias não devam ser abrangidas pela proibição.
O projecto cita o exemplo de penas acessórias necessárias ou obrigatórias. Ora, quanto a estas, não há dúvida de que, se foram omitidas na sentença recorrida, o tribunal superior pode e deve aplicá-las, justamente porque foi violada, como se refere no projecto, a medida legal da pena Mas isto sucede exactamente com as penas principais
O problema que se põe, verdadeiramente, é quanto às penas acessórias temporárias [cf artigo 151 º, 1ª (multa), 2a (suspensão temporária dos direitos políticos), e artigo 450 º] e quanto às penas acessórias facultativas (cf artigos 388.º e 450 º) Ora, tanto umas como outras entram no poder de apreciação discricionária do julgador (quanto às primeiras, a sua graduação, quanto às segundas, a sua própria aplicação), e, por isso, não se vê por que razão não lhe devam ser aplicáveis as mesmas regras da proibição da reformatio que vigoram para as penas principais
A lei não deverá distinguir, nem o intérprete
De resto, como é próprio da acessoriedade, as penas acessórias devem seguir o regime das penas principais
15. Já coisa diversa sucede com os efeitos das penas ou efeitos da condenação penal, quer tenham ou não natureza penal (artigos 75 º, 76 º e seguintes do Código Penal)
Os efeitos penais consistem em penas que acrescem por força da lei às penas aplicadas na condenação judicial Não carecem, por isso,, de constar da sentença condenatória; seguem-na como seus efeitos, por determinação legal (artigo 83.º do Código Penal)
Diferentemente, as penas acessórias têm de constar da sentença condenatória e nunca podem ser aplicadas autonomamente 41
Dado o carácter dos efeitos penais, não faria sentido, na verdade, proibir o tribunal superior de referir tais efeitos na decisão do recurso
Quanto aos efeitos não penais (ver, por ex. , os n.ºs 2 º, 3 º e 4 º do artigo 75 º do Código Penal, e os artigos 2034 º
40 O projecto do novo Código Penal português adopta expressamente a referida classificação (artigos 47 º e 76 º) mantida na primeira revisão ministerial (artigos 48 º e 77 º)
41 Cf Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, II, pp 181-182.
À face do Código Penal italiano, as penas acessórias, contràriamente ao que sucede entre nós, "seguem-se de direito à condenação, como efeitos penais desta" (artigo 20 º)
No projecto do nosso Código Penal, as penas acessórias não são nunca de aplicação automática (artigo 76 º)
Página 1756
1756
ACTAS DA CAMARÁ CORPORATIVA N.º 92
e 2035 º, 2166 º e 2000 º do Código Civil) porque são consequência directa da condenação, e dada ainda a sua natureza não penal, não caem dentro da proibição da reformatio Entre eles assume especial relevo a obrigação de indemnizar o ofendido do dano causado (n.º 3 º do citado artigo), devendo o tribunal arbitrar uma quantia como reparação desse dano, ainda que lhe não tenha sido requerida (artigo 34 º do Código de Processo Penal).
Em ince do carácter oficioso da fixação da modernização, o tribunal superior poderá e de que era certamente levá-la a efeito quando omitida na decisão recorrida. Mas ]á não poderá agravar o quantitativo da indemnização em recurso interposto só pelo léu, e isto quer se atribua natureza penal, quer natureza civil, à obrigação de indemnizar
3) Medidas do segurança
16. O projecto de lei em apreciação decide-se pela exclusão das medidas de segurança do âmbito da proibição da iformatio in pejus, nestes termos
Também ficam excluídas do âmbito da proibição estabelecida no texto legal proposto quaisquer formas de reacção jurídico-criminal distintas das penas, nomeadamente as medidas de segurança Essa exclusão deve-se ao entendimento de que, quanto a essas formas de reacção jurídico-criminal - ou, pelo menos, quanto a algumas delas -, podem intervir factores distintos de todos os que analisámos, a desaconselhar a proibição da reformatio ,a pojus Pelo menos quanto às medidas de segurança com o fim predominante de cura não parece acertado proibir a reformatio e pejus Isso mesmo reconheceu o legislador alemão, que, estendendo a proibição às medidas de segurança, exclui do seu âmbito o internamento em estabelecimento para alienados ou para intoxicados
A solução adoptada, no sentido de admitir a reformatio in pejus quanto às medidas de segurança em geral, é também a acolhida em Itália, no entendimento da doutrina aí dominante
Na escolha dessa solução, no caso presente, intervieram as considerações de que não é tão premente proibir a reformatio in pojus quanto à aplicação de medidas de segurança como o é quanto à aplicação de penas e que, por outro lado, a proibição da reformatio in pejus quanto às medidas de segurança exigiria um estudo longo, que implicaria muito provavelmente uma grande demora em instituir o novo regime Mais curial parece que o legislador proíba agora a reformatio in pejus em matéria de aplicação de penas - onde tal proibição se impõe com clareza e urgência - e reserve para a reforma geral do processo penal português o estudo da questão quanto às medidas de segurança
A Câmara Corporativa nada tem a objectar a este entendimento, tanto mais que está em curso a reforma do direito criminal e o projecto do Código Penal segue um
41 A indemnização será arbitrada a favor de outras pessoas, ue não o ofendido, quando a lei lhes conceder a reparação civil
As pessoas a quem for devida a indemnização pode ao requerer, antes de proferida a sentença final em circunstância, que ela se liquide em execução de sentença (§ 8 º)
41 Sobre o alcance ou valor penal da reparação civil, ver Beleza dos Santos, Lições de Direito Criminal, 1946, pp 58-59
caminho diferente do direito vigente quanto à estrutura são das medidas de segurança
Afigura-se assim prudente aguardar que oportunamente a nova lei substantiva tome posição relativamente a esta matéria, a fim de que o legislador do processo possa então definir qual a melhor orientação a seguir
4) Revisão de sentença
17. O projecto de lei exclui ainda da proibição da reformatio a sentença proferida no juízo de revisão, a fim de não alterar o disposto no artigo 691 º do Código de Processo Penal, respeitando-se a fisionomia específica do recurso extraordinário de revisão
Parece de aceitar esta orientação, mas não se afigura necessário utilizar um parágrafo autónomo para a consagrar Com efeito, como a proibição da reformatio visa tão-sòmente o recurso ordinário, bastará adicionar este qualificativo à palavra «recurso» utilizada na redacção do artigo, paia afastar o recurso extraordinário de revisão.
5) Beneficiários da proibição
18. Como já se acentuou ao longo deste parecer, a proibição é unilateral, isto é, actua somente no sentado da defesa e em seu benefício
Nestes termos, beneficiário da proibição é indubitavelmente o réu recorrente (ou os réus recorrentes).
Se, porém, houver no processo co-réus não recorrentes, as suas actividades suo igualmente apreciadas pelo tribunal de recurso, se verificar conexão entre elas e aquelas outras imputadas ao co-réu recorrente, por força do disposto no artigo 663º do Código de Processo Penal, consoante jurisprudência corrente
Sendo assim, compreende-se que em casos destes a proibição se estenda a todos os réus - recorrentes e não recorrentes
E esta também a orientação do projecto de lei, mas entende-se que deve dizer-se claramente que os réus não recorrentes abrangidos são apenas aqueles cuja situação o tribunal tenha de apreciar
19. De harmonia com o que acaba de ser exposto em todo o parágrafo antecedente, a Câmara sugere que o corpo do artigo 667 º do Código de Processo Penal fique redigido do seguinte modo
Quando de uma sentença ou acórdão final seja interposto recurso ordinário somente pela réu, o tribunal superior não pode modificar a pena em prejuízo do recorrente ou dos co-réus cuja situação tenha de apreciar
20. º Diversa qualificação Jurídica dos factos
20. a) Depois de se ter precisado a extensão do âmbito da proibição da rcformatio in pejus, em ordem a saber quais as situações que abrange, a atenção desta Câmara vai recair agora sobre as limitações à proibição, procurando determinar os casos em que ela não opera
44 Quanto a outros réus que respondam no mesmo processo por infracções quo não estejam em conexão com as infracções cometidas pelo réu recorrente, o problema da proibição da reformatio não se põe, porque a decisão, nessa porte, transitou em julgado, estando assim fora do poder de cognição do tribunal
Página 1757
25 DE OUTUBRO DE 1968 1757
A primeira e importante limitação respeita ao poder concedido ao tribunal de recurso de qualificar diversamente o facto criminoso, ainda que mais gravemente, isto é, de subsumi-lo a um preceito que descreva um tipo de crime diferente, mesmo que mais grave. Trata-se, na terminologia usada pelo projecto de lei, do poder de "alterar o título da incriminação constante da decisão recorrida".
Este poder de convolação atribuído ao tribunal superior pelo direito vigente (artigo 667.º do Código de Processo Penal) está em correspondência com o poder de convolação que detém o tribunal de 1.ª instância, dentro dos limites assinalados nos artigos 447.º e 448.º do mesmo Código45 e 46
A justificar a limitação acabada de referir, diz-se no projecto de lei.
A possibilidade de o tribunal, mesmo em recurso só interposto pela defesa, alterar o título de incriminação e decretar a pena correspondente a nova infracção, ainda que seja mais grave do que a da decisão recorrida, é expressamente determinada pelo legislador italiano a e pacificamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência processual alemã. Essa possibilidade justifica-se inteiramente. Na, verdade, a proibição da reformatio in pejus não deve ir até
ao ponto de impedir que o tribunal superior corrija uma incriminação defeituosa efectuada na 1.ª instância. A proibição da reformatio in pejus só tem sentido enquanto garante ao arguido recorrente que o tribunal superior, dentro dos mesmos limites legais, não será mais severo do que foi o tribunal de 1.ª instância. É essa, aliás, a feição tradicional do instituto. Além de que, se a proibição fosse ao ponto de cercear os poderes de convolação do tribunal de recurso a que há pouco se aludiu, alterar-se-ia num aspecto importante a feição do sistema processual em vigor.
21. b) A proibição da reformatio não deve obstar, pois, a que o tribunal superior possa dar à infracção uma qualificação jurídica diversa e mais grave.
Ocorre, porém, perguntar poderá igualmente o mesmo tribunal qualificar diversamente as circunstâncias, quando elas sejam modificativas, isto é, quando conduzam á alteração da medida legal da pena correspondente a cada tipo de crime?48
Repare-se que é a própria lei que, para efeitos de convolação, manda atender às circunstâncias agravantes modificativas da reincidência e da sucessão de crimes, ainda que não alegadas, desde que resultem do registo criminal ou das declarações do réu (§ 2.º do artigo 447.º) E, assim, mal se compreenderia que o mesmo não sucedesse no tribunal superior, ainda que em recurso só interposto pelo réu.
Acentue-se, mais uma vez, dentro da orientação do projecto de lei, que "o sentido da proibição da reformatio in pejus não é permitir que se violem as regras sobre a medula legal da pena, mas sim garantir ao arguido recorrente que não será prejudicado pela diferença de critérios entre os vários tribunais quanto à concretização da medida judicial da pena".
Mas, só realmente é assim, então haverá que excluir da proibição todas as circunstâncias modificativas, ou seja, circunstâncias quo têm valor predeterminado na lei.
É o caso da reincidência e da sucessão de crimes, como já vimos, cuja agravação especial está prevista nos artigos 100.º e 101.º do Código Penal, respectivamente, é o caso também da habitualidade e tendência criminosa (artigo 93.º), e, segundo alguns, da acumulação de crimes (artigo 102.º).
_____________
45 Art 447.º O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos quo constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
§ 1.º A decisão a que se refere este artigo nunca pode condenar em pena superior á competência do respectivo tribunal.
§ 2.º As circunstâncias agravantes da reincidência e da sucessão de infracções que resultarem do registo criminal ou das declarações do réu serão sempre tomadas em consideração, ainda que não tenham sido alegadas. Se, por efeito delas, se dever aplicar uma pena que exceda a competência do tribunal, proceder-se-á nos termos do artigo 145.º
Art 448.º O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, com fundamento nos factos alegados pela defesa ou dos que resultem da discussão da causa, se, neste último caso, tiver por efeito diminuir a pena.
46 Esta faculdade de convolação aceita-se inteiramente "Na verdade, o tribunal não está, na sentença condenatória, adstrito à qualificação jurídica dos factos feita no despacho de pronúncia. O tribunal que julga incrimina os factos como entender. E a mesma independência existe quanto à qualificação jurídica das circunstâncias (Revista do Legislação e Jurisprudência} ano 68.º, p. 386). E compreende-se perfeitamente essa independência" "Quanto à qualificação jurídica, isto é, à aplicação e interpretação da lei, é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou.
Ela pode, evidentemente, ser alterada, sem que se prejudiquem os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas.
Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica cometido no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou.
A orientação do nosso Código de Processo Penal, sob este ponto de vista, é, por isso, a única defensável o a geralmente seguida. O recente Código de Processo Penal italiano (de 10 de Outubro do 1930) consagrou-a igualmente na primeira parte do seu artigo 477.º" (cit Revista, p. 337) (in Pareceres do Ministério Público, p. 275, do Dr. Manso Preto)
O que se não pode é imputar ao arguido, para lhe agravar a responsabilidade, factos que não constem da acusação e da pronúncia, os quais, assim, não pôde contestar, organizando devidamente a sua defesa.
CF ainda Prof Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pp. 140-148.
47 Certos autores italianos entendem que o tribunal superior, conquanto possa dar ao crime uma definição jurídica diversa, ainda que mais grave, não pode agravar a pena (cf Sabatini, loe cit , 1127, n.º 9, e Pisani, ob cit , pp. 122 e seguintes). No caso, porém, de a pena correspondente à nova definição exceder a competência do tribunal de 1.ª instância, anular-se-á o processo, a fim de que o Ministério Público promova o prosseguimento do mesmo no tribunal competente.
Entro nós, a consequência de, por efeito dos poderes de convolação, se atribuir ao crime uma qualificação mais grave, cuja pena exceda a competência do tribunal respectivo, é a incompetência (§§ 1.º o 2.º, in fine, do citado artigo 447.º), excepção que pode e deve ser conhecida oficiosamente (artigo 139.º).
Esta doutrina deve entender-se extensiva ao caso da convolação levada a efeito no tribunal do recurso.
48 Estas circunstâncias modificativas da pena podem, por sua vez, implicar uma diminuição ou elevação da moldura abstracta da pena e fala-se então, respectivamente, em circunstâncias modificativas "atenuantes ou que privilegiam" e circunstancias modificativas "agravantes ou qualificativas".
As circunstâncias modificativas da pena abstracta podem ainda ser comuns, isto é, verificarem-se relativamente a todo e qualquer crime, ou especiais, quer dizer, verificáveis relativamente a um grupo ou só a certos crimes (cf Prof Eduardo Correia, Apontamentos sobre as Penas e Sua Graduação no Direito Criminal Português, 1953-1954, p. 116, e Direito Criminal, II, pp. 141-142. e Prof Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, II, pp. 230 e seguintes).
Página 1758
1758 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 92
A par das circunstâncias modificativas agravantes comuns, há, como se sabe, na parte especial do Código Penal ou em leis extravagantes, várias circunstâncias modificativas agravantes especiais descritas a propósito de certos crimes49
Estas circunstâncias modificativas agravantes, na medida em que se projectam na medida legal da pena, devem ser excluídas da proibição da reformatio in pejus.
E, pela mesma razão, também interessam ao nosso caso e devem ter o mesmo tratamento as circunstâncias modificativas atenuantes50
Assim, o tribunal de recurso não só pode julgar existente uma agravante modificativa não considerada na decisão recorrida, como também julgar inexistente uma atenuante modificativa aceita naquela decisão.
22. c) Referência especial merece ser feita a atenuação extraordinária da pena, mencionada no artigo 94.º do Código Penal.
Também ela se projecta na medida legal da pena e, por isso, poderia pensar-se que estaria fora da proibição da reformatio.
A verdade, porém, é que ela se situa dentro da atenuação judicial51, e, deste modo, depende do poder discricionáuo do tubunal para atribuir especial valor às circunstâncias atenuantes (ou só a uma delas), quando diminuam por forma essencial o grau de ilicitude do facto ou de culpa do agente.
Entende-se, por isso, que os benefícios - e podem ser em grau muito elevado52 - que tenham sido concedidos ao réu mediante a atenuação extraordinária prevista no artigo 94.º não podem ser retirados pelo tribunal de recurso, sob pena de se frustrar em larga medida a finalidade da proibição da reformatio.
23. De acordo com o que acaba de ser exposto (n.ºs 21 e 22), a Câmara propõe que o § único e o seu n.º 1.º do articulado do projecto de lei sejam substituídos pela forma seguinte
§ 1.º A proibição constante deste artigo não tem aplicação
1.º Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos dos artigos 447.º e 448.º, quer a qualificação respeito à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena.
2) Recurso do Ministério Publico
24. Para que funcione a proibição é indispensável, como vimos, o recurso do réu. Este é, digamos, um pressuposto positivo.
Mas não basta. A proibição pressupõe ainda a inexistência de recurso do Ministério Público ou do assistente, quando o haja no processo - o que constitui um pressuposto ou requisito negativo.
O projecto de lei admite, paia afastar a proibição, um recurso subordinado da acusação (n.º 3 do § único) Não nos diz, porém, as razões de tal orientação. Mas não pode duvidar-se de que se inspirou no processo penal italiano, que consagra o recurso "incidental" do Ministério Público (artigo 515.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Isto mesmo resulta da fundamentação do projecto (parte final do n.º 7.º).
Ora, a razão por que em Itália se admite o recurso "incidental" do Ministério Público é a necessidade de pôr um travão aos recursos temerários do réu, os quais, sem ele, seriam favorecidos e estimulados pela circunstância de só poderem trazer vantagens e nenhuns riscos para o recorrente, com inconvenientes vários protelar a execução da sentença (meio dilatório), provocar inflações de processos nos tribunais, etc.53
25. Justificar-se-á este meio técnico do chamado "recurso subordinado" preferido pelo projecto de lei?
Crê-se que não. E por duas ordens de razões.
Por um lado, não se compreende bem a figura do recurso subordinado em processo penal.
Com efeito, tal espécie de recurso filia-se numa atitude subjectiva das partes, que é a de uma delas recorrer só porque a porte contrária interpôs recurso, pois que, no fundo, preferiria não recorrer, conformando-se, pura e simplesmente, com a decisão. A sua atitude é calculista e de resposta a um recurso (recurso principal), que não desejaria.
Ora esta posição não se harmoniza perfeitamente com a índole do processo penal, sobretudo quanto a actuação do Ministério Público, que deve ser sempre objectiva, ditada pela preocupação da exacta aplicação do direito, e não por razões de oportunidade.
O recurso subordinado parece ser, assim, próprio do processo civil, onde se debatem interesses de carácter meramente privado54
Há, todavia, uma outra razão que desaconselha a solução do recurso subordinado. É que, pelas considerações que a seguir vão ser feitas acerca da eficiência da actuação da magistratura do Ministério Público na 1.ª instância, as instancias superiores. Ver-se-iam na necessidade de determinar aos agentes do Ministério Público que interpusessem recurso subordinado, sempre que o réu recorresse, o que equivaleria pràticamente a destruir toda a proibição da reformatio. E assim se regressaria ao sis-
____________
49 A premeditação no crime de homicídio (artigo 351.º); o parentesco nos crimes sexuais (artigo 398.º); qualidade de pai ou mãe no parricídio (artigo 355.º), várias circunstâncias nos crimes do furto e roubo (furto qualificado, furto doméstico, roubo qualificado - artigos 425.º, 426.º, 427.º, 428.º, 435.º, etc ) , etc.
50 Entre elas encontram-se a menoridade (artigos 107.º e 108.º), a provocação (artigo 370.º), a revogação do mandato (§ único do artigo 20.º), devendo incluir-se também, segundo alguns autores, a tentativa e a frustração, a cumplicidade, a negligencia e a imputabilidade diminuída. Paralelamente ao que sucede com as agravantes modificativas, também existem vários atenuantes modificativas especiais.
51 Cf Prof. Cavaleiro de Ferreira, ob cit., p. 302
52 A atenuação extraordinária pode levar à aplicação da pena de 2 anos de prisão maior a quem cometer um crime a que corresponda, normalmente, prisão maior de 20 a 24 anos (n.º 1.º do artigo 94.º) ou à aplicação da pena de 1 dia de multa ao autor de um crime a que caiba, ordinariamente, pena de prisão maior até 8 anos (n.ºs 2.º e 4.º do artigo 94.º e Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Julho de 1957).
Só mediante a atenuação extraordinária é possível substituir a pena de prisão superior a seis meses pela pena de multa (n.º 4 do artigo 94.º e artigo 86.º).
Todos estes benefícios e outros resultantes da atenuação extraordinariamente no âmbito da proibição.
53 Cf Pisani, ob cit , pp. 180 e seguintes.
Há nas legislações dos vários países meios diversos de reagir contra estes recursos temerários. Segundo este autor, em França os recorrentes detidos ficam sujeitos, desde logo, ao regime carcerário dos condenados, e não ao regime mais brando dos acusados, na Inglaterra não há desconto obrigatório do período de detenção no cumprimento da pena, noutros países há lugar a condenação em sanção pecuniária no caso de inadmissibilidade ou rejeição do recurso.
54 A jurisprudência dos nossos tribunais superiores não é unânime quanto à admissibilidade do recurso subordinado em processo penal (cf Boletim do Ministério da Justiça n.º 75, p. 503, e Jurisprudência das Relações, ano X, p. 136, e ano XIII, p. 91).
Se no processo penal se enxertar um pedido cível (vide o artigo 67.º do Código da Estrada), então já se compreende a figura do recurso subordinado.
Página 1759
20 DE OUTUBRO DE 1968 1759
tema inconveniente que vigorou anteriormente ao assento de 1950, resultante de se considerar obrigatório o recurso do Ministério Público, a fim de evitar dúvidas sobre se os tribunais superiores podiam ou não agravar a pena, quando só o réu tivesse recorrido (oficio n.º 17 da Procuradoria-Geral da República, de 18 de Janeiro de 1987). E não se diga que tal determinação representaria uma fraude à lei, justamente porque as partes são livres de interpor ou não os recursos de acordo com os interesses que têm a defender, sobretudo quando tais interesses são de carácter geral, como é o caso daqueles cuja defesa incumbe ao Ministério Público.
26. Será então possível encontrar um substitutivo para o recurso subordinado, que evite os inconvenientes apontados - mas assegure por forma efectiva, em certos termos, a proibição da reformatio - e sirva ao mesmo tempo os propósitos que estão na base da ideia de tal recurso, tal como do recurso "incidental" do direito italiano?
A resposta a esta interrogação obriga a algumas considerações sobre a estrutura do Ministério Público no nosso país. Coisa que bem se compreende, dada a interdependência que se verifica com a organização judiciam e o processo, seja cível ou penal.
Em vários países a magistratura do Ministério Público constitui uma carreira paralela e autónoma, mas com carácter vitalício, em relação à magistratura judicial, dispondo os magistrados da primeira de regalias equivalentes às dos da Segunda. Aquela permanência na função possibilita uma eficiência capaz.
Entre nós, como se sabe, as coisas passam-se de modo diferente.
A magistratura do Ministério Público é também paralela e autónoma, face à judicatura, mas não é vitalícia.
Os licenciados em Direito ingressam nela após curto estágio e aprovação em concurso de habilitação para delegados do procurador da República, e nela permanecem entre seis a oito anos, em regra, depois do que são chamados obrigatoriamente aos concursos para juizes de direito. Aprovados nestes, ingressam na magistratura judicial. E é nesta que depois são recrutados os magistrados mais qualificados do Ministério Público, dos seus escalões superiores - ajudantes do procurador da República e ajudantes do procurador - geral da República.
A magistratura do Ministério Público é, assim, uma magistratura jovem, na sua quase totalidade, com todas as virtudes inerentes à juventude - idealismo mais espontâneo, mais vivo apego à acção, notável espirito de sacrifício, maior fé, porventura, no triunfo da verdade e da justiça. E são certamente estas qualidades, sobretudo, que têm possibilitado à magistratura do Ministério Público, que é essencialmente uma magistratura de acção, enfrentar as difíceis tarefas que lhe estão confiadas na luta contra o crime e na tutela de outros interesses públicos da maior relevância e melindre.
Mas é inegável que lhe falta, de um modo geral, na 1.º instância, justamente no escalão mais baixo e mais amplo, uma experiência e uma preparação profissional inteiramente satisfatórias55
Daí, sobretudo, que a lei admita uma série de intervenções dos magistrados dos escalões superiores - ajudantes e procuradores da República - relativamente à actuação dos delegados no sentido da sua orientação e de reparação de lapsos cometidos (ver artigos 225.º alíneas b) e e), 227.º, alíneas a), b), d) e c), do Estatuto Judiciário, artigos 23.º, 26.º, 27.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945, e artigo 20.º, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 35 042, de 20 de Outubro de 1945) já que, em rigor, a sociedade não pode estar segura da defesa dos seus interesses sem essa intervenção sistemática dos superiores hierárquicos.54
Ora são precisamente as considerações que acabam de ser feitas que sugerem e apoiam uma outra solução em substituição da do recurso subordinado.
Consistirá ela em conceder aos representantes do Ministério Público junto das Relações (procuradores da República) a possibilidade de integrarem a falta de recurso dos delegados seus subordinados nos processos que sobem a 2.ª instância por virtude de recurso interposto somente pelo réu.
Assim, se o procurador da República verifica, na altura do visto inicial e obrigatório do processo, que há razões para agravar a pena imposta na decisão recorrida, ele pronunciar-se-á expressamente nesse sentido, valendo tal atitude como recurso para o efeito de o tribunal superior poder operar eventual agravação.
E, a fim de assegurar o principio do contraditório, concedendo ao réu recorrente possibilidades de defesa, ser-lhe-á dada a faculdade de responder ao parecer do representante do Ministério Público.
Por esta forma, não só se consegue uma maior eficiência na actuação do Ministério Público e, através dela, uma melhor tutela do interesse público, como se liberta o réu e os tribunais superiores de sistemáticos recursos subordinados interpostos pelos delegados do procurador da República, quantas vezes infundados, com o inconveniente de cortarem cerce a proibição da reformatio.
Já quanto aos procuradores da República, que são magistrados experientes e qualificados a, e exerceram já a função de julgar (assim sucede, em regra) é de esperar que eles peçam a agravação da pena somente nos casos em que razoavelmente se justifique. E só quem desconhece a vida forense poderá duvidar de que assim acontecerá, como hoje já acontece. Não raro até, em lugar de pedirem a agravação da pena, pronunciam-se em sentido favorável ao réu. E essa é a sua verdadeira função, já que ao Estado não interessa menos a absolvição de um inocente do que a condenação dos culpados.
Naqueles casos em que o recurso sobe directamente da 1.ª instância ao Supremo Tribunal de Justiça sem passar
____________
55 Fazem excepção os ajudantes do procurador da República, os quais, todavia, só existem nas sedes dos círculos judiciais ou nas procuradorias da República.
À apontada falta de experiência e preparação profissional acresce, por vezes, uma espécie de temor reverencial em relação aos juízes junto doe quais servem - magistrados mais velhos, experientes e sabedores, cujas opiniões são escutadas com respeito e acatamento.
56 Sucede ainda que, desde alguns anos a esta parte, se vive uma crise na magistratura do Ministério Público, proveniente da redução do número de licenciados interessados em ingressar nela ou em nela permanecer e da saída temporária de magistrados para prestarem serviço militar na metrópole e no ultramar (estes, actualmente, em número de 29) Destes factores resulta haver, presentemente, 17 comarcas vagas e estarem providas 64 comarcas com delegados interinos, que são, na maior parte dos casos, simples licenciados sem qualquer experiência profissional.
E a crise a que nos referimos é certamente maior na magistratura ultramarina.
57 Em face da maior eficiência do Ministério Público na 2.ª instância, já é possível admitir a proibição da reformatio em termos amplos, no recurso para o Supremo. Quer dizer, se o representante do Ministério Público junto da Relação quiser afastar a proibição em recurso a interpor pelo réu para o Supremo, terá de recorrer directamente, não se permitindo que o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal - aliás, com a mesma categoria - possa reparar a omissão de recurso cometida por aquele magistrado.
Página 1760
1760 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 92
pela Relação - recurso per saltUm (recursos das decisões do Tribunal Colectivo dos Géneros Alimentícios - artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 27 485, de 15 de Janeiro de 1937 - e do Plenário dos Tribunais Criminais de Lisboa e Porto - artigo 41.º, n.º 1.º, do Estatuto Judiciário) competirá naturalmente ao representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça (secção criminal), que tem a mesma categoria do procurador da República, suprir a falta de recurso do agente do Ministério Público da 1.ª instância.
27. Poderá perguntar-se qual a consequência do parecer do representante do Ministério Público junto da Relação no sentido da agravação da pena sobre a eficácia da desistência do réu em relação ao seu recurso.
O projecto de lei admite, como vimos, a solução do recurso subordinado, mas, contraditoriamente com os princípios que disciplinam esta espécie de impugnação58, afirma que, "interposto recurso subordinado pela acusação, tudo se passa como se a mesma acusação tivesse recorrido da decisão antes da defesa" (o sublinhado é nosso).
Quer dizer o recurso subordinado actua como recurso principal ou independente, e, por isso, o tribunal superior conhecerá da causa, muito embora o réu queira desistir.
Repare-se que é esta também a orientação do direito italiano o recurso "incidental" do Ministério Público mantém eficácia, não obstante a renúncia posterior do réu ao seu próprio recurso (artigo 515, n.º 3, in fine, do Código de Processo Penal italiano) E foi nesta orientação que certamente se inspirou o projecto de lei.
Embora com alguma hesitação, crê-se que não afecta gravemente a segurança jurídica admitir a orientação contrária - inteira eficácia da desistência do réu do seu recurso, justamente como hoje sucede - e, desta forma, é possível oferecer uma solução mais liberal que a do direito italiano.
28. Como órgão de justiça em processo penal, o Ministério Público não é condicionado na sua actuação por considerações de utilidade ou de oportunidade, mas orientado pelo fim objectivo da realização do direito.
Por isso, compreende-se que a lei lhe dê a faculdade de recorrer de quaisquer decisões, ainda que o recurso seja interposto no exclusivo interesse da defesa (n.º 1.º do artigo 647.º do Código de Processo Penal).
Sendo assim, não pode deixai de se aceitar a proibição da reformatio in pejus sempre que o Ministério Público recorra por entender que a decisão é prejudicial ao réu, em casos, por conseguinte, em que entenda ter havido errada aplicação da lei, por forma a afectar a liberdade daquele, que também lhe cumpre defender.
29. No recurso interposto somente pelo réu para a Relação pode suceder que o representante do Ministério Público junto daquele tribunal se tenha conformado com a condenação imposta na 1.ª instância, não pedindo expressamente qualquer agravação.
Se assim proceder, parece que, dentro dos princípios informadores da proibição da reformatio, não poderá pedir, em recurso que interponha para o Supremo, uma
agravação que ultrapasse os termos daquela condenação, salvo evidentemente quando for caso de qualificação diversa dos factos, a que acima nos referimos.
Esta solução, que poderá deduzir-se dos princípios, parece merecer, contudo, expressa consagração legislativa, e, por isso, ela ficará a constar do § 3.º do articulado sugerido por esta Câmara59
30. No nosso processo penal, o ofendido e ainda outras pessoas especialmente referidas na lei (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945) podem constituir-se assistentes no processo. Nessa qualidade, dispõem de algumas faculdades, entre as quais a de interpor recurso, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito (n.º 3.º do § 2.º do citado artigo).
Nestes termos, se o assistente recorre, pedindo a agravação da pena, fica desde logo excluída a proibição da reformatio, como é óbvio. Mas Terá de interpor recurso principal, de harmonia com as considerações feitas acima (n.º 25).
Entende-se ainda que o regime proposto no número anterior (n.º 29) quanto ao recurso do Ministério Público para o Supremo deve aplicar-se igualmente, por idênticas razões, ao recurso a interpor pelo assistente para o mesmo Tribunal.
31. De acordo com o exposto nos números que antecedem (n.ºs 25 a 30), propõe-se a seguinte redacção para o articulado a que respeita.
§ 1.º
1.º
2.º Quando o representante do Ministério Público Junto da Relação, ou junto do Supremo Tribunal de Justiça nos casos em que o recurso sobe directamente da 1.ª instância a este tribunal, no visto inicial do processo, expressamente se pronunciar no sentido de que deve ser agravada a pena.
Neste caso, deve ser notificado o recorrente para responder, no prazo de oito dias.
§ 2.º O disposto neste artigo e no n.º 1a .º do parágrafo anterior aplica-se igualmente quando o Ministério Publico interponha recurso em beneficio exclusivo do réu.
§ 3.º Quando o representante do Ministério Publico junto da Relação ou o assistente se tenham conformado com a condenação imposta na 1.ª instância, não poderão pedir, em recurso que interponham para o Supremo Tribunal de Justiça, uma agravação que ultrapasse os termos daquela condenação, salvo quando for caso de qualificação diversa dos factos, consoante o disposto no n.º 1.º do § 1.º
32. Antes de concluir, convirá ainda aludir a um outro ponto.
Tanto pela redacção que agora se sugere para o artigo 667.º, como pela proposta no projecto de lei, fica eliminada a primeira parte dessa disposição, onde se diz. Quando um tribunal de provimento ao recurso interposto de um despacho de pronúncia ou equivalente poderá alterar a incriminação, nos termos dos artigos 447.º e 448.º
___________
58 O recurso subordinado tem a sua vitalidade e razão de ser necessariamente presa e condicionada à vitalidade do recurso principal, pelo que, se este naufragar, por qualquer razão (o recorrente desiste, por ex. ), caduca o recurso subordinado (cf Prof. A. Reis, Código de Processo Civil Anatado, V, p. 289)
59 O silencio da lei quanto a este ponto poderia conduzir a dúvidas, dados os termos amplos de permissão do recurso do Ministério Público em processo penal (cf o artigo 647.º, n.º 1 e § 2.º, do Código de Processo Penal)
Página 1761
25 DE OUTUBRO DE 1968 1761
Resultarão inconvenientes desta eliminação?
Esta Câmara crê que não, aderindo às considerações feitas a propósito pelo projecto de lei.
Com efeito, segundo neste se diz, «a nora redacção proposta para o artigo 667 º, embora não tenha por objecto os poderes de convolação do tribunal de recurso, mas sim a proibição da reformatio in pejus, deixa bem claro que aquele tribunal goza dos poderes atribuídos ao tribunal da l ª instância pelos artigos 447 º e 448 º do Código de Processo Penal». «No entanto, como o problema de permissão ou proibição da reformatio in pejus só se coloca a propósito da decisão final, poderia pensar-se que a nova redacção proposta para o artigo 667º vai afastar os poderes de convolação que a redacção actual atribui ao tribunal superior em recurso do despacho de pronúncia ou equivalente.
Este receio, porém, é infundado. Os poderes de convolação do tribunal superior, ao conhecer do recurso interposto do despacho de pronúncia, nunca podem ser menos latos do que aqueles que lhe cabem em recurso da decisão final. A doutrina e a jurisprudência não poderão duvidar seriamente de que o tribunal superior - num momento em que o despacho de pronúncia ainda não transitou em julgado - pode alterar a qualificação jurídica dos factos nos mesmos termos em que lhe é possível fazê-lo quando conheça do recurso da decisão final. O argumento da maioria de lazão impõe-se aqui com grande clareza ».
Também assim nos parece ser Somente aditaríamos o qualificativo final às palavras sentença ou acórdão referidos no artigo (aliás, como está na redacção actual) para vincar bem que a proibição da reformatio só tem lugar em relação à decisão que, conhecendo do fundo da causa, ponha termo ao processo.
E daqui resultará, até a contrario, que a convolação, mesmo conduzindo a uma reformatio, é consentida em relação ao despacho de pronúncia ou equivalente.
III
Conclusões
33. Em harmonia com as razões expostas, a Câmara Corporativa é de parecer que o articulado do projecto de lei seja substituído por outro assim concebido.
Artigo único. A disposição do artigo 667 º do Código do Processo Penal passa a ter a redacção seguinte:
Art 667 º Quando de uma sentença ou acórdão final seja interposto recurso ordinário somente pelo réu, o tribunal superior não pode modificar a pena em prejuízo do recorrente ou dos co-réus cuja situação tenha de apreciar,
§ l º A proibição constante deste artigo não tem aplicação.
1 º Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos dos artigos 447 º e 448 º, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena,
2 º Quando o representante do Ministério Público junto da Relação, ou junto do Supremo Tribunal de Justiça nos casos em que o recurso sobe directamente da 1.ª instância a este tribunal, no visto inicial do processo, expressamente se pronunciar no sentido de que deve ser agravada a pena
Neste caso, deve ser notificado o recorrente para responder, no prazo de oito dias.
§ 2 º O disposto neste artigo e no n. º l º do parágrafo anterior aplica-se igualmente quando o Ministério Público interponha recurso em benefício exclusivo do réu.
§ 3 º Quando o representante do Ministério Público junto da Relação ou o assistente se tenham conformado com a condenação imposta na l ª instância, não poderão pedir, em recurso que interponham para o Supremo Tribunal de Justiça, uma agravação que ultrapasse os termos daquela condenação, salvo quando for caso de qualificação diversa dos factos, consoante o disposto no n. º l do § l º.
Palácio de S Bento, 24 de Outubro de 1968:
José Augusto Vás Pinto.
Adelino da Palma Carlos.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
António Júdice Bustorff Silva.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Joaquim Trigo de Negreiros.
Paulo Arsénio Viríssimo Cunha.
José Alfredo Soares Manso Preto, relator
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA