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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 114
IX LEGISLATURA - 1968 17 DE DEZEMBRO
PARECER N.º 15/IX
Proposta de lei n.º 3/IX
Alteração à lei eleitoral
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da proposta de lei n.º 3/IX, elaborada pelo Governo sobre a alteração à lei eleitoral, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e de Política e administração ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António Manuel Pinto Barbosa, Artur Patrocínio, João Henrique Dias e José Gabriel Pinto Coelho, sob a presidência do Digno Procurador 1.º Vice-Presidente da Câmara, o seguinte parecer.
I
Apreciação na generalidade
1. As nossas leis constitucionais e ordinárias reguladoras do direito de sufrágio político (1) mantiveram-se estritamente fiéis, ao longo de toda a história do governo representativo em Portugal, até 1931, a um critério em cujos termos, a mulher não gozava desse direito. O nosso país limitou-se a seguir, mais ou menos de perto, neste capítulo, a orientação dominante, nesse período de pouco mais de um século, nas legislações estrangeiras. Considerando fidedignas as informações de Duguit, incluídas na conferência proferida, em 17 de Abril do 1910, na Universidade de Coimbra, sobre O Sufrágio das Mulheres (Coimbra, F França Amado, Editor, 1910), por essa altura, fora da Europa, só em quatro estados dos Estados Unidos da América, em alguns da Austrália e na Nova Zelândia se reconhecia o direito de voto político às mulheres, enquanto na Europa só lhes era atribuído na Finlândia e na Noruega (2).
Em 1933, porém, notava J Leclercq («Leçons de Droit Naturel», III, La Famille, p 890), só a França, a Suíça e as repúblicas sul-americanas se tinham recusado até esse momento a admiti-lo (3). A França, por seu turno, só em 1944, após a Libertação, concedeu o direito de voto político às mulheres (4) (5). A República Helvética, entretanto, mantém-se como um dos últimos bastiões do voto exclusivo dos homens, havendo o referendo legislativo nesta matéria dado até hoje em geral sempre resultados negativos (6)(7).
2. Quando, em 1931, no nosso país, pelo diploma a que no preâmbulo da proposta de lei em análise (Decreto
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com força de lei n º 19 694, de 5 de Maio) se faz referência, se atribuiu às mulheres - mas restritamente às diplomadas com curso superior ou secundário- o direito de sufrágio político, ficou definitivamente superada a generalidade dos fundamentos em que as teses anti-sufragistas se apoiaram e que haviam certamente, em maior ou menor grau, justificado até essa altura a posição antifeminista dos nossos sucessivos legisladores era matéria eleitoral, durante o século XIX e o primeiro quartel do século XX. Não irá esta Câmara fazer uma exposição desses fundamentos, até porque já teve ocasião de os enunciar no seu parecer n.º 9/IV, relativo à proposta de lei ,n.º 40, em que se transformar o Decreto-Lei n º 35 426, de 31 de Dezembro de 1945 (in Diário das Sessões de 11 de Março de 1946, suplemento ao n.º 42), de que for relator o Digno Procurador, então Presidente desta Câmara, Prof. Doutor Domingos Fezas Vital.
O legislador de 1931 perfilhou, embota muito lunitadamente, a tese da igualdade política do homem e da mulher, tese que dois anos depois viria a receber reafirmação em termos amplos e reais expressivos na Constituição Política, aprovada pelo plebiscito, .nacional de 19 de Março de 1933, cujo artigo 5ª, efectivamente, consagrou de forma explícita a «igualdade dos cidadãos perante a lei» e, nesta oídem de ideias, «a interferência de todos os elementos estruturais da Nação (entre os quais justamente se contam, antes de mais, os cidadãos em geral) na feitura das leis», negando designadamente qualquer privilégio de sexo (8).
Afastou-se, portanto, entre nós, considerada a opção constitucional sobre os direitos políticos da mulher, qualquer possibilidade de lhe negar esses direitos, e muito particularmente o direito de sufrágio político, com base nas teses segundo as quais há uma radical e irremovível inferioridade de faculdades do sexo feminino em relação ao sexo masculino, miei unidade que explicaria e justificaria uma disparidade de tratamento no plano jurídico geral e em particular no plano dos direito políticos Nesta oídem. de ideias, a Constituição apenas admitiu, no à único do referido artigo 5.º, quanto h mulher, desvios ao princípio da igualdade perante a lei (incluindo certamente a matéria relativa a tais direitos) que possam justificai-se pela natureza da mulher ou pelo bem da família (9).
3. A verdade, porém, é que o nosso legislador eleitoral, em sucessivos diplomas posteriores à entrada em vigor da Constituição (Decreto-Lei n.º 23 406, de 27 de Dezembro de 1933, Decreto-Lei n.º 24 897, de 10 de Janeiro de 1935, Decreto-Lei n.º 34 938, de 22 de Setembro de 1945, Decreto-Lei n.º 35 426, de 31 de Dezembro de 1945, Lei n.º 2015, de 28 de Maio de 1946), toma uma posição na matéria que dificilmente pode considerai-se coerente e inteiramente conforme com os referidos textos constitucionais. Realmente, se, como vinham, por último, sustentando os partidários de antifeminismo em matéria de direitos políticos, a intervenção directa da mulher casada na vida política deve considerai-se contrária ao bem da família, à paz familiar, por gerar a possibilidade de graves dissenções dentro dela, como explicar que todas as mulheres solteiras, divorciadas, judicialmente separadas e viúvas não tivessem direitos eleitorais, ou não os tivessem em termos absolutamente equivalentes aos que definem a capacidade eleitoral activa dos cidadãos portugueses do sexo masculino? A não se explicar, como se cia que não pode de facto explicar-se, pelas exigências do bem comum da família, esta discriminação, para se considerar constitucionalmente legítima, só poderia fundar-se na diferente natureza da mulher. Mas a doutrina social da Igreja, que inspirou, como dissemos, os preceitos constitucionais pertinentes, de modo nenhum, já nessa altura, concebia como justificáveis pela diferente natureza da mulher quaisquer diferenças em matéria do direitos políticos Segundo tais ensinamentos, a mulher é certamente igual ao homem, sendo, tal como este, uma pessoa. A igualdade entre homem e mulher é, porém, uma «igualdade na diferença», o que justifica celtas diversidades de estatuto entre estes dois seres (Cf J Leclercq, ob e vol cita , pp 341 e seg ). Simplesmente, não há razão para que o direito positivo consagre qualquer diferença em matéria de estatuto político entre os dois sexos na base das diferenças de natureza da mulher. A mulher tem direitos políticos idênticos aos do homem (Cf autor, ob e vol. cits , p 409).
4. Seja como for, o Decreto-Lei n.º 35 426 veio a representar um alargamento da participação da mulher no corpo eleitoral, em relação à que era prevista pelo Decreto com força da lei n.º 19 694 e pelos Decretos-Leis n.ºs 23 406 e 34 938, aproximando-se mais da doutrina constitucional do que aqueles três diplomas que primeiro consagraram entre nós o direito de sufrágio político das mulheres, sem embargo de ter suprimido praticamente este direito em relação às mulheres casadas, reconhecendo-o em princípio só as mulheres solteiras que possuíssem determinados cursos e às mulheres viúvas, divorciadas, separadas de pessoas e bens e solteiras chefes de família, nas condições fixadas para os cidadãos do sexo masculino.
O Decreto-Lei n.º 35 426 não foi pura e simplesmente ratificado pela Assembleia Nacional, antes o foi com emendas, transformando-se, portanto, em proposta de lei. Esta veio a converter-se na Lei n.º 2015, já citada, que consagrou uma importante inovação em matéria de direito de sufrágio político feminino, na medida em que reconheceu. A mulher casada esse direito, sensivelmente em termos idênticos aos que valem para o homem, bastando-lhe saber ler e escrevei e pagar um mínimo de contribuição predial - aproximando-nos mais, assim, do pensamento constitucional Enquanto o Decreto-Lei n.º 35 426 perfilhava uma posição nitidamente oposta & mulher casada, no que respeita aos seus direitos políticos, a Lei n.º 2015 coloca-a numa posição francamente mais favorável que à mulher solteira. A esta (se não for chefe de família) mantém-lhe o estatuto político anterior, com requisitos de capacidade eleitoral relativamente exigentes, que só excepcionalmente lhe franqueiam as assembleias eleitorais, àquela, que só em casos excepcionalíssimos detinha pela legislação anterior o direito de voto político, o dito diploma legal veio reconhecei-lhe esse direito com base em requisitos ou condições relativamente pouco exigentes, que, praticamente, abrangem a generalidade das mulheres casadas, mesmo que não tivessem esse direito em solteiras.
Deixou, assim, de entendei-se que o reconhecimento do direito de sufrágio político à mulher casada determina geralmente de per si a desunião da família, pela diversidade de opiniões políticas que pode desencadear entre os cônjuges. O Sr Deputado Pinto Coelho, relatando a Assembleia Nacional o ponto de vista das Comissões que estudaram a proposta de lei em que o Decreto-Lei n.º 35 426 se transformou, chamou aí a atenção para que sou a mulher em cada caso é realmente capaz de exercer a função de guarda da paz familiar, e então essa capacidade provavelmente não lhe desaparece com a atribuição do direito de voto, ou ela não é capaz de exercer tal função, e então de nada serve feri-la com a incapacidade de voto [ ] Mesmo nos casos - de supor relativamente raios - em que haja diversidade de opiniões, tem de
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pensar-se que não é a atribuição do direito de voto que dá opinião à mulher. A mulher pode ter opiniões mesmo sem o direito de roto, e se essas opiniões são tão profundamente diversas das do marido que podem levar à desavença, naturalmente esta pode surgir mesmo que a mulher não tenha direito de voto. Por último, se se admitir em alguns casos que as desinteligências políticas podem levar à desunião do lar, tem de admitir-se também, na maioria dos casos, que a própria unidade da família era já muito instável e que mesmo sem divergências políticas, os cônjuges estavam à beira de divergências totais e definitivas» (Cf Diário das Sessões, cit , p 987).
5. Vistas ns coisas à luz da Constituição e da doutrina social da Igreja, na sua explicitação mais recente, como poderão julgar-se as posições da lei eleitoral actual em matéria de direitos eleitorais da mulher e que deve sugerir-se neste domínio?
A Câmara Corporativa, no seu já mencionado parecer n º 9/1V, teve ocasião de pôr em dúvida a constitucionalidade da norma do Decreto-Lei n º 35 426, que em princípio só reconhecera o direito de voto político às mulheres solteiras que possuíssem um mínimo relativamente elevado de habilitações literárias (salva a hipótese de serem chefes de família, isto é, de viverem inteiramente sobre si). Tal norma revestia um carácter nitidamente capacitário que se não justifica nem pela natureza da mulher, nem pelo bem da família, e constituía uma desigualdade de estatuto político da mulher em relação no do homem que não se vê como se apoie na Constituição, que consagra o princípio da igualdade perante a lei, no seu referido artigo 5.º.
Não obstante este reparo, tal norma não veio a ser eliminada e, como se disse, subsistiu na Lei n.º 2015. Mas não há dúvida de que perfeitamente se justifica a supressão desta limitação da capacidade da mulher solteira.
A mulher viúva, divorciada ou judicialmente separada de pessoas e bens, deve, por seu turno, ter também um estatuto político idêntico no do homem Nenhuma consideração decorrente da natureza da mulher ou do bem da família poderia fundamentar aqui qualquer vislumbre de discriminação. A legislação actual, aliás, já a não consagra.
Do mesmo modo, não se consideram hoje pertinentes as razões que um dia serviram para negar à mulher casada (salva a hipótese de se encontrar judicialmente separada ou de o marido não possuir capacidade eleitoral) o direito de sufrágio político. Além das considerações que, em sentido contrário a essas razões, se produziram na Assembleia Nacional e a que a trás se aludiu, outras poderiam alinhai-se no mesmo sentido (10), que igualmente concorrem para a justificação do reconhecimento do direito de voto político à mulher casada. O que pode dizei-se, além do que já sinteticamente se expôs, é que uma intervenção directa das mulheres na condução dos negócios públicos terá como resultado chamar a atenção dos governantes para aspectos da vida social a que os homens dão talvez menos importância (condição da mulher e da criança, educação, moralidade, saúde pública, habitação, trabalho, salários, etc. ). Sobretudo, considerada a questão no mais exigente plano teórico, julga-se de acentuar que o homem casado não deve ter, na vida política, a representação de todos os interesses da família, alguns destes são mais naturalmente sentidos pele mulher - e deve ser ela a representá-los e a defendê-los na comunidade política, sob pena de eles não serem devidamente tutelados.
6. Em suma, de um modo geral é de concluir, em relação à mulher, qualquer que seja o seu status civil, que a capacidade eleitoral política activa deve ser-lhe reconhecida em termos idênticos àqueles que valem para definir essa capacidade em relação no homem, uma vez que ela tem interesses sociais distintos dos dele. Tal é, aliás, a doutrina social da Igreja. Já o era, segundo se conclui de uma exposição tão autorizada como a de Jacques Eeclercq, nas suas Leçons de Droit Naturel, vol. III, 1938, pp. 409 o segs, na altura em que a nossa Constituição foi plebiscitada « dans la mesure où la femme a des intérêts sociaux distincts de ceux de l'homme, il est juste qu'elle dispose d'un moyen de faire valoir ses revendications. Et comme, dans notre société actuelle, ce moyen d'action est essentiellement represente par le suffrage, rien n'est plus normal que de le conférer aux femmes». E é esta também, a doutrina actual da Igreja, na fase pós-conciliar. Precisamente na constituição pastoral sobre «A Igreja no mundo moderno», lê-se que deve superar-se e eliminar-se como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social e cultural de discriminação quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por motivo do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião (n.º 29). Noutro passo do mesmo documento (n.º 52) e na mesma ordem de ideias, diz-se, por outro lado, que é legítima a promoção social da mulher. Neste contexto, não pode haver dúvidas de que, quando na Pacem in Terris (n.º 73) se fala em direito dos cidadãos a tomar parte activa da vida pública, inerente u sua dignidade de pessoas (ainda que as modalidades desta participação estejam subordinadas no grau de maturidade atingido pela comunidade política do que são membros e em que actuam), se tem em vista tanto os homens como as mulheres (11).
Que a intervenção da mulher nas eleições políticas possa fundamentalmente considerar-se sem interesse político relevante, em consequência de o seu voto tender a ser o voto do mando ou, de qualquer modo, o voto do chefe da família, é desmentido pelas experiências que se diz terem sido feitas em diversos países com um sistema de duas umas, uma paia os homens, outra para as mulheres. Tem-se verificado, desse modo que as mulheres são mais conservadoras que os homens e que temem, muito mais que estes, a aventura e a mudança. E, segundo parece, em toda a parte, tanto nos países desenvolvidos como nos países subdesenvolvidos, o voto das mulheres tende a acentuar a «personalização do poder». Assim, em França, por exemplo, numerosas sondagens terão mostrado que no eleitorado do actual Presidente da República Francesa, as mulheres têm um largo primado (Cf André Hauriou, ob cit , p 251 ). É, porém, evidente que nas eleições parlamentares esta consequência (que segundo uns constituirá, e segundo outras não, um inconveniente) não se verificará, ou pelo menos não se verificará directamente.
7. Até agora a lei atribui aos cidadãos do sexo masculino analfabetos e às mulheres chefes de família nas mesmas condições o direito de voto nas eleições paia a Assembleia Nacional, desde que paguem no Estado e corpos administrativos quantia não inferior a 100$, por algum ou alguns dos seguintes impostos contribuição industrial, imposto profissional e imposto sobre a aplicação de capitais (Lei n.º 2015, artigo 1.º, n.ºs 2.º e 4.º).
Dado que o direito de sufrágio político não é reconhecido a todos os cidadãos com capacidade (civil) de exercício, antes, em princípio, apenas nos cidadãos que saibam ler e escrever português, não pode deixar de entender-se que é de sentido liberal a directriz que foi perfilhada de novo entre nós no Decreto com força de lei n.º 19 694, de 5 de Maio de 1981, já citado, de atribuir capacidade eleitoral aos analfabetos, embora em certas condições mínimas de ordem censitária. Ampliou-se deste modo o corpo
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eleitoral, considerado demasiado restrito se constituído apenas por cidadãos letrados, como se dispusera (para os cidadãos do sexo masculino) na Lei n.º 3, de 3 de Julho de 1913. No fundo, regressou-se à orientação fixada na Lei de 8 de Maio de 1878, com a diferença, apenas, de que, nesta lei, o critério base era o critério censitário e o capacitarão a excepção, ao passo que em 1931 este último critério é que passou n ser o critério de princípio, intervindo aquele apenas como critério de atenuação ou correcção (12).
A proposta de lei sob parecer vem agora regressar à orientação da Lei n.º 3, com a simples, mas fundamental, diferença de que nesta o direito de voto político estava expressamente reservado aos homens não teria capacidade eleitoral activa nem a mulher nem o homem analfabeto. Tratava-se de verdadeiros cives sine suffragio.
A converter-se em lei a presente proposta, nem o homem nem a mulher analfabetos terão capacidade eleitoral A execução das normas sobre o ensino primário obrigatório dos indivíduos em idade escolar terá, no pensamento do Governo, começado ou estará em vias de começar a tornar dispensável a subsistência na legislação eleitoral portuguesa daquela orientação censitária em relação às camadas mais jovens do corpo eleitoral For outro lado, a prossecução de uma política activa em matéria de alfabetização dos adultos iletrados terá reduzido em medida relativamente apreciável o número dos cidadãos de idade mais avançada que passarão a não estar nas condições agora exigidas para lhes ser reconhecido o direito de voto político
A alteração em causa teria, naturalmente, incidências mais amplas em algumas províncias ultramarinas em que o critério censitário em vigor, correctivo do capacitário, confere direito de voto político a um número proporcionalmente maior de iletrados Alas se o sufrágio é rigorosamente suma função de governo", e não um direito natural (devendo ser, embora, tão amplo quanto possível), parece que é oportuno terminar com um sistema que permitiria a quem por ventura não faz ideia do alcance do seu voto intervir no exercício de uma função que não compreende e que não desempenha seriamente A cthical theory, segundo a qual o sufrágio é um meio importante e, mais do que isso, essencial do desenvolvimento do carácter individual, uma condição necessária para a realização do valor da personalidade humana, (13), tem o seu quê de irrealista e de utópico Portugal ficaria, aliás, longe de se encontrar isolado, pois não faltam legislações, onde problemas de analfabetismo idênticos aos do nosso país se põem, que exigem dos eleitores um certo grau de instrução Assim, por exemplo, é preciso saber ler e escrever no Chile e nas Filipinas, enquanto nos Estados Unidos é preciso ser-se capaz de provar um mínimo de conhecimento da língua, lendo uma passagem da Constituição, apresentando um certificado de estudos primários, ou procedendo pela forma exigida pela legislação eleitoral de cada estudo (14) (16)
Seria, porém, chocante legislar em termos de retirar de um golpe o direito de sufrágio aos que, ante a legislação em vigor, dele têm beneficiado, não obstante não possuírem os requisitos capacitários que ora se pretende estabelecei Aliás, a solução contrária redundaria, mesmo na metrópole, num privilégio para o eleitorado dos meios urbanos, onde a alfabetização tem, certamente, uma taxa mais elevada do que na província Crê-se, assim, que ó equitativo respeitai, a título transitório, o direito de sufrágio que, a cidadãos iletrados., ]á uma vez foi reconhecido pelo legislador - um direito que, sem rigor, é certo, pode ser considerado como "adquirido".
8. No que respeita às mulheres casadas, a Lei n º 2015, numa orientação de índole nitidamente discriminatória, preceitua que não basta, para lhes ser reconhecido direito de voto político, que saibam lei e escrever português (como sucede com os cidadãos do sexo masculino) E, ainda, necessário que paguem de contribuição predial, por bens próprios ou comuns, quantia não inferior a 200$ Quer dizer, acumulam-se aqui dois requisitos limitativos da sua capacidade política um de natureza capacitaria e outro de natureza censitária, tendo o último requisito por função restringir ainda mais a capacidade já de si limitada pelo primeiro Daqui resulta que o critério censitário não tem neste caso a função ampliadora do sufrágio que possui no que diz respeito aos homens em geral e as mulheres que sejam chefes de família
O requisito censitário foi defendido na Assembleia Nacional em termos que parecem inapropriados, uma vez que se partiu aí da ideia de que a emenda que veio a converter-se no preceito da Lei n º 2015, que reconheceu o direito de voto político à mulher, incluía esse requisito como destinado a dispensar o requisito capacitário (saber ler e escrever português) "Só em casos excepcionais - disse-se, nesta lógica, na Assembleia Nacional - se deve dispensar aquele requisito (o requisito de saber ler e escrever) Mas, então, há-de haver outros requisitos cuja verificação leve ao mesmo resultado. O requisito que as Comissões (de Legislação e redacção e de Política e administração geral e local) propõem, de que a mulher pague contribuição predial, por si ou pelo casal, superior a uma determinada quantia, também se justifica com facilidade. Em primeiro lugar, pela mesma intenção de defesa da família, é a defesa desses milhares de pequenas unidades familiares, assentes numa base patrimonial, criada tantas vezes pelo longo trabalho de gerações, sempre continuadas o mantidas pelo espírito na unidade familiar Em segundo lugar, porque nos elementos dessas famílias se encontrará, ligado à estabilidade da teu a e da casa, aquele índice do solidez, de noção das realidades, de bom senso, que geram a consciência dos interesses colectivos (Diário das Sessões, loc cit ) Ora, ao contrario do que se depreende deste texto, na emenda de que resultou a concessão do direito de voto a mulher casada, os dois requisitos devem associar-se para que esta tenha tal direito A mulher casada só pode votar nas eleições políticas se, além de saber ler e escrever, for proprietária de bens imóveis de certo valor No fundo, portanto, e pelo que a mulher casada diz respeito, a Lei nº 2015 perfilhou (combinando-o, embora, com o critério capacitário das habilitações literárias) a modalidade censitária do sufrágio restrito, que no século passado (entre nós, antes de 1878) (16) foi corrente e que, em síntese, se justificou então com o fundamento de que só os indivíduo:" que possuíssem uma certa fortuna, e designadamente os proprietários fundiários, são verdadeiramente interessados na vida da Nação, de que só eles no fundo suportam o peso das decisões do Poder, só eles sustentam o Estado e só eles são independentes.
Impõe-se, realmente, acabar de vez com este vestígio de uma concepção retrógada do sufrágio restrito e dar mais um passo em frente na orientação de "democratizar" o voto político. Não seremos, porventura, os últimos a fazê-lo (17) e, de toda a maneira, não tomaremos esta medida escandalosamente tarde. Basta, lembrar que os Estados Unidos da América só em 1964, pela vigésima quarta alteração ti Constituição, aboliram as poll-taxes, que se traduziam num autêntico "censo eleitoral", em determinados estados da federação norte-americana.
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9. Do texto da proposta de lei resulta, por último, que as mulheres solteiras que não sejam chefes de família e as mulheres casadas sem direito de voto político pelo critério censitário atrás enunciado passarão a dispor do direito de sufrágio nas eleições políticas, independentemente das exigentes condições capacitárias que a Lei n º 2015 estabelece para lho reconhecer.
Em obediência ao princípio da igualdade política dos dois sexos, todas as mulheres, independentemente do seu estado civil, serão eleitoras, contanto que nelas concorram os requisitos de capacidade eleitoral activa que ora se exigem para os cidadãos do sexo masculino, não carecendo de especiais habilitações literárias para serem equiparadas ao homem neste domínio.
10. Insere-se a medida legislativa de que o Governo tomou agora a iniciativa, no que toca ao estatuto político da mulher portuguesa, numa política de equiparação dos sexos, no que respeita à sua capacidade jurídica geral, que tenha como limites autênticos, e não simplesmente fictícios ou imaginários, as exigências da natureza da mulher e do bem da família - política que encontrou expressiva tradução, ùltimamente, na altura da codificação do nosso direito civil, em especial quanto à mulher casada (12). Assim, como se sabe, esta passou explícita e inequivocamente a poder exercer quaisquer profissões liberais ou funções públicas, mesmo fora do local de residência do marido, são hoje minto mais numerosos os casos em que a mulher não é obrigada a adoptar a residência deste, sendo em especial de notar que a mulher tem o direito de adoptar residência própria quando razões ponderosas assim o imponham, o mando deixou de poder exigir a entrega judicial da mulher, como podia, ante a legislação anterior, no âmbito do dever de assistência, deu-se à mulher o direito de exigir que lhe seja directamente entregue a parte dos rendimentos ou proventos do marido que o tribunal fixar, os bens cuja administração o novo Código Civil confia à mulher passaram a ser muito mais numerosos, podendo designadamente administrar os seus bens próprios ou dotais, os bens comuns por ela levados para o casal ou adquiridos a título gratuito depois do casamento e os sub-rogados em lugar deles, quando tenha reservado esse direito na convenção antenupcial, todo o seu património, se tiver sido estipulado o regime de separação, os bens móveis, próprios de qualquer dos cônjuges ou comuns por ela exclusivamente utilizados como instrumentos de trabalho, os seus direitos de autor e os proventos que receba por seu trabalho ou indústria, pode também tomar providências respeitantes aos bens de que não tem a administração, verificado certo condicionalismo legalmente estabelecido, passaram a ser mais extensos os seus poderes de disposição sobre móveis, podendo livremente dispor dos móveis do casal, próprios ou comuns, de que tenha a administração, pode contrair obrigações e, portanto, adquirir bens, o que em princípio lhe não era permitido pela legislação anterior, nos termos do novo regime de separação instituído pelo novo Código - regime convencional ou, em certos casos, regime legal imperativo -, a situação da mulher foi plenamente equiparada à do marido em todos os seus aspectos, finalmente, qualquer que sem o regime de bens, é-lhe permitido movimentar livremente em seu nome exclusivo depósitos bancários. Tudo isto, sem embargo de o mando ser considerado como «chefe da família» e de, portanto, se não ter ido ao ponto de, enfaticamente, se proclamar o princípio da «igualdade dos cônjuges»
Impõe-se estudar a possibilidade de serem eliminados, do âmbito do nosso direito público, certas expressões de ideias perimidas que fazem ainda recair sobre a mulher, incapacidades de gozo de certos direitos públicos. Se não couber eliminá-las, poderão certamente reduzir-se a um mínimo insignificante, imposto pelas concepções constitucionais (a natureza da mulher e bens da família), as traduções da clássica imbecillitas sexus
II
Exame na especialidade
Base única
11. A base única, em que a proposta de lei sob parecer se enuncia traduz-se, afinal de contas, numa alteração do artigo 1.º da Lei n.º 2015, de 28 de Maio de 1946, que regula hoje a capacidade eleitoral-política dos cidadãos.
Afigura-se a esta Câmara que a matéria da proposta poderia ser regulada sob a forma de uma nova redacção dada a esse artigo 1.º, pois, na verdade, é disso que se trata.
Por outro lado, não se está propriamente perante uma «base», pois o preceito proposto não é um princípio de legislação, a enunciação mais ou menos imprecisa, mais ou menos «geral» (para empregar a inapropriada terminologia do artigo 92 º da Constituição) de um regime jurídico, a completar sucessivamente por normas regulamentares de execução. Não se está, em suma, perante a minuta de uma espécie de sucinta loi-cadre, a editar pela Assembleia Nacional, carecida de desenvolvimentos ulteriores sob a forma de um regulamento ordinário, da competência do Governo. A norma proposta é, de per si e sem qualquer complemento, desde logo susceptível de execução.
Assim, a Câmara pi opõe que a «base» se transforme em artigo, sem que nisso, aliás, ponha qualquer empenho, pois não ignora que, em mais de uma ocasião, a Assembleia Nacional tem utilizado a expressão «base» para designar preceitos não carecidos de regulamentação subsequente ou complementar.
A seguir-se o ponto de vista da Câmara, o artigo em causa, que seria o primeiro, seria assim concebido,
ARTIGO 1.º
O artigo 1.º da Lei n.º 2015, do 88 do Maio de 1946, passa a ter a seguinte redacção,
Artigo 1.º São eleitores da Assembleia Nacional todos os cidadãos portugueses, maiores ou emancipados, que saibam ler e escrever português.
§ único: A prova de saber ler e escrever faz-se,
a) Pela exibição do diploma de exame público, feita perante a comissão a que se refere o artigo 4.º,
b) Por requerimento escrito e assinado pelo próprio, com reconhecimento notarial da letra o assinatura,
c) Por requerimento escrito, lido e assinado pelo próprio perante a comissão referida no artigo 4.º, desde que no mesmo requerimento assim seja atestado, com autenticação por meio de selo branco ou a tinta de óleo da junta do freguesia,
d) Pela respectiva declaração nos mapas enviados pelas repartições ou serviços a a que só refere o artigo 13.º
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Não se torna necessário, a admitir-se como boa esta solução de técnica legislativa, mencionar que não serão eleitores os cidadãos portugueses abrangidos por qualquer das incapacidades especialmente previstas na lei essas incapacidades encontram-se enunciadas no artigo 2.º da Lei n.º 2015, que se manterá em vigor.
12. Em razão do exposto na generalidade, no diploma em elaboração figuraria um segundo artigo assim redigido,
ARTIGO 2.º
Serão, ainda, eleitores da Assembleia Nacional ou cidadãos portugueses que, não possuindo as condições exigidas no corpo do artigo anterior, já tenham alguma vez sido recenseados.
13. Como em dois outros artigos da Lei n.º 2015 se repercute o disposto no seu artigo 1.º em matéria de requisitos de ordem censitária, torna-se conveniente agora alterá-los num terceiro artigo da lei em preparação, que diria o seguinte
ARTIGO 8.º
São suprimidas, no artigo 13.º da Lei n.º 2015, a referência aos chefes das secções do finanças e, no artigo 14.º, a alínea 2)
14. Nos termos do artigo 9.º da Lei n.º 2015, as operações de recenseamento dos eleitores da Assembleia Nacional terão início em 2 de Janeiro próximo e, até cinco dias antes desse início, publicar-se-ão, nos termos do artigo 10.º, editais em que, além do mais, se anunciarão as condições de que depende a inscrição nos cadernos eleitorais. Torna-se, assim, evidente a necessidade de se prescrever, na nova lei, em artigo separado (como é costume), que ela entre em vigor imediatamente após a publicação.
15. Se, como tem sido prática, não obstante a letra das regras relativas à distribuição da competência legislativa entre os órgãos metropolitanos consignadas no artigo 150.º da Constituição, a Assembleia Nacional se considerar competente para legislar para todo o território nacional ou sobre matérias de interesse comum da metrópole e das províncias ultramarinas, em concorrência com o Governo, e houver a intenção de dar à lei em preparação um âmbito nacional de eficácia, ter-se-ia de tomar precauções para que ela se aplique, como parece requerer-se, imediatamente no ultramar, cumprindo-se com o disposto na base LXXXIV, II, da Lei Orgânica do Ultramar Português. Deverá esclarecer-se, no artigo 3.º, cuja inserção se sugere, que a lei, não só entra imediatamente em vigor, como se aplica imediatamente nas províncias ultramarinas. A não se proceder assim, terá de se seguir o processo da extensão da nova lei ao ultramar por meio de portaria, com ou sem alterações, nos termos da base LXXXMI (como sucedeu com a Lei n.º 2015 Cf a Portaria n.º 11 379, de 11 de Junho de 1946). Mas não parece que, dado o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 2015, a que atrás se alude, este processo possa ser utilizado. Assim, o novo preceito teria a seguinte redacção
ARTIGO 4.º
Esta lei entra imediatamente em vigor em todo o território nacional
Conclusões
16. A Câmara Corporativa dá a sua concordância na generalidade à proposta de lei e sugere, na especialidade, que, em vez de uma única base, o diploma em preparação contenha quatro artigos, assim concebidos
ARTIGO 1.º
O artigo 1.º da Lei n.º 2015, de 28 de Maio de 1946, passa a ter a seguinte redacção,
Artigo 1.º: São eleitores da Assembleia Nacional todos os cidadãos portugueses, maiores ou emancipados, que saibam ler e escrever português
§ único: A prova de saber ler e escrever faz-se
a) Pela exibição do diploma de exame público, feita perante a comissão a que se refere ao artigo 4.º,
b) Por requerimento escrito e assinado pelo próprio, com reconhecimento notarial da letra e assinatura,
c) Por requerimento escuto, lido e assinado pelo próprio perante a comissão referida no artigo 4.º, desde que no mesmo requerimento assim seja atestado, com autenticação por meio de selo branco ou a tinta de óleo da junta de freguesia,
d) Pela respectiva declaração dos mapas enviados pelas repartições ou serviços a que se refere o artigo 13.º
ARTIGO 2.º
Serão, ainda, eleitores da Assembleia Nacional os cidadãos portugueses que, não possuindo as condições exigidas no corpo do artigo anterior, já tenham alguma vez sido recenseados.
ARTIGO 3.º
São suprimidas, no artigo 13.º da Lei n.º 2015, a referência aos chefes das secções de finanças e, no artigo 14.º, a alínea 2)
ARTIGO 4.º
Esta lei entra imediatamente em vigor em todo o território nacional.
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(1) Ou, mais rigorosamente, a interpretação e aplicação que delas se fez, pois antes da Lei n.º 3, de 3 de Julho de 1918, nunca foram explícitas em negar esse direito às mulheres, falando ora em cidadãos ora em indivíduos, termos que, tomados à letra, comportariam um entendimento extensivo às mulheres. Simplesmente, quadro das ideias inspiradoras de tais leis, bem como o contexto dos preceitos em matéria do recenseamento eleitoral, não deixavam nenhuma dúvida sobre o cabimento de uma interpretação restritiva. Como «questão elegante» qualificou Marnoco e Sousa a que em 1911 ou 1912 se discutiu nos tribunais sobre o direito do sufrágio político feminino, de lege lata Cf Constituição Política Portuguesa, Comentário, 1913, pp 279 e segs.
(2) Pode, entretanto, verificar-se a exactidão destas informações consultando a obra contemporânea de A Zimmern, Le Suffrage des Femmes dans tous les Pays, Paris, 1911.
(3) A ser exacta a informação que se colhe, por exemplo, em C Mortati, Instituzioni di Diritto Pubblico, 5.ª edição, Padova, 1962, p. 357, afinal de contas a Itália só estendeu o voto político às mulheres em 1446. Pelo que respeita a América do Sul, recordaremos que do Brasil se lhes concedeu o sufrágio político em 1934 Cf Machado Paupério, Teoria geral do Estado, Rio, 1967, p 240.
(4) Cf André Hauriou, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, Paris, 1961, p 248.
(5) Por curiosidade, assinala-se que, na Inglaterra, o sufrágio político foi concedido às mulheres em 1918 (com a restrição de que a sua maioridade, para o efeito, só se atingiria aos 30
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anos - desigualdade que foi eliminada em 1928). Na Alemanha, o monopólio masculino em matéria de voto político terminou em 1920 e nos Estados Unidos neste mesmo ano generalizou-se a todos os estados o princípio de igualdade dos sexos Cf. André Hauriou, ob cit., pp 250 e segs. , M. Duverger, Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, 9.ª edição, Paris, 1960, p 90.
(6) Cf. André Hauriou, ob e loc cits Se o direito federal continua a não reconhecer o sufrágio político feminino, a verdade é que ele foi introduzido em certas legislações cantonais Cf Union Interparlementaire, Parlements, 2.ª edição, revista e actualizada, Paris, 1966, p 16. Além da Suíça, esta obra menciona a região do Norte da Nigéria como não tendo ainda sufrágio feminino Cf loc cit Em Machado Paupério, ob cit, p 240 e segs. , colhe-se a informação de que, em 1967, em oito estudos americanos não havia direito de voto político para a mulher. Bolívia, Haiti, México, Peru, Colômbia, Honduras, Nicarágua e Paraguai. Além dos Estados Unidos e do Brasil, nessa altura concediam-lhe esse direito a Argentina, o Chile, a Costa Rica, Cuba, o Equador, a Guatemala, o Panamá, a República Dominicana, Salvador, o Uruguai e a Venezuela. Verifica-se, pois, que ainda não teve completa execução a Convenção Inter-Americana sobre Concessão do Direitos Políticos à Mulher, assinada em 1948, na qual se acordou em que o direito de voto (e o direito de ser eleito) não só deverá negar à mulher.
(7) Pelo que respeita ao direito de sufrágio administrativo, designadamente ao direito de participação nos eleições municipais, a evolução favorável à mulher iniciou-se muito cedo, no século XIX, com certa generalização. Assim, por exemplo, na Inglaterra as mulheres foram chamadas a participar em tais eleições, pela primeira vez, pelo Act. de 1869 sobre as municipalidades, na Suécia, desde 1862; na Suíça, desde 1865, na Prússia, desde 1856, na Áustria, desde 1849 Cf E. Villey, Legislation Électorale Comparées des Principaux Pays d'Europe, Paris, 1900, pp 83 e segs. Não assim entre nós. As nossas codificações do direito da administração local comum no século XIX consagraram ao homem o monopólio do sufrágio.
(8) As nossas constituições anteriores não haviam consagrado o princípio da interferência dos cidadãos em geral «na feitura das leis», na medida em que não acentuavam a exclusão dos privilégios de sexo Cf Marnoco e Sousa, Comentário cit, pp 50 e segs.
(9) Nem se diga que a «natureza da mulher», a que nesse parágrafo se alude como ponto do apoio constitucional paia excepcionais diferenças desfavoráveis a mulher, consagradas na legislação ordinária, continuaria a justificar a constitucionalidade de normas de uma legislação eleitoral quo eventualmente se encaminhasse no sentido de retirar inteiramente o direito de sufrágio político à mulher, fazendo regressar as coisas, neste domínio, ao satus quo ante. É que a orientação constitucional em matéria de posição jurídica dos dois sexos perante a lei era explicito ensinamento da doutrina social católica (cf J. Leclercq, ob e vol, cita , pp 340 e segs.), a qual, como é bem sabido, inspirou o nosso legislador constituinte Cf Teixeira Ribeiro. «Princípio e Fins do Sistema Corporativo Português», in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XVI, Coimbra, 1940, pp 5 e segs.
(10) Deve confessar-se que não foram invocadas só as considerações a que já se fez referência. Sublinhou-se, designadamente ainda, que «não parece que seja mais indicado para elevar e dignificar a mulher casada o feri-la de uma incapacidade», sendo o voto fundamentalmente secreto, «nada obriga o marido a saber em quem a mulher quer votar e a mulher a saber em quem o marido quer votar», «sendo a mulher casada precioso elemento da paz familiar, nenhum meio lhe poderá ser mais útil para defender a família do que o direito de voto, permitindo-lhe defende-la de todas as doutrinas ou sistemas que visam atacá-la nos seus fundamentos ou nos seus direitos», «sendo A família a célula-base da organização jurídica, social e política nacional, a família teria, pelo reconhecimento do direito do voto a mulher, uma espécie de voto de qualidade cada vez que houvesse (e seria essa a maioria dos casos) perfeita comunhão e unidade de vistas entre os cônjuges enquanto o solteiro disporá de um voto, a família disporá de dois votos - o do marido e o da mulher». Há em tal defesa do direito de voto da mulher casada ressonâncias da argumentação de Stuart Mill na sua Sujeição das Mulheres em favor da igualdade política dos sexos.
(11) A igualdade dos dois sexos em matéria de voto político encontra-se também, hoje em dia, consagrada na Declaração Universal de Direitos Humanos, votada por unanimidade (com oito abstenções do bloco soviético, da Arábia Saudita e da União Sul-Africana) em 10 de Dezembro de 1948 pela Assembleia Geral do Organização dos Nações Unidas, quer no seu preâmbulo, quer no seu articulado (artigo 21.º). Como se sabe, a Declaração é apenas um conjunto de recomendações, mas algumas dos suas normas são ou eram já direito internacional consuetudinário. Não estão neste caso as normas sobre a igualdade de direitos políticos entre os dois sexos. É, entretanto, de recordar que, em 16 de Dezembro de 1966, foi adoptada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas uma convenção sobre os direitos civis e políticos dos dois sexos - mas essa convenção ainda não foi assinado. Mais recentemente, em 7 de Novembro de 1967 o dito órgão principal da Organização das Nações Unidas adoptou uma específica Declaração sobre a eliminação da discriminação em relação às mulheres, também com o alcance de mera recomendação Cf o texto da Declaração Universal, p e em Marcelo Caetano, Cursos de Ciência Política, e Direito Constitucional, 3.ª edição, 1959, vol I, pp 334 e segs. Sobre tal documento e os demais aludidos, V Revue de la, Comission Internationale de Juristes, 1967, tomo VIII, n.ºs 1 e 2, e 1968, tomo IX, n.º 1, Le Monde, Selection Hebdomadaire, de 5 a 11 de Dezembro de 1968, artigo sobre «Les Droits de l'Homme et la Practique».
(12) A Constituição de 1822 reconheceu temporariamente o direito de voto aos próprios analfabetos, pois estabeleceu que se exceptuariam os cidadãos que para o futuro, em chegando à idade de 25 anos completos, não soubessem ler e escrever, se tivessem menos de 17 quando se publicasse a Constituição.
(13) Shepard, «Suffrage», in Encyclopedia of the Social Sciences, vol. XIII, pp 447 e segs.
(14) Cf Union Interparlementaire, Parlements, cit, p 18. Também no Brasil, e crê-se que em vários outros países americanos, os analfabetos não têm direito de sufrágio político.
(15) Sobre o voto dos analfabetos e sobre o sufrágio capacitário em geral, cf Paulapoulos, Le vote des illetrés, Aix, 1928.
(16) Exceptuado o regime da Constituição de 1822 e o passageiro sistema do Decreto de 8 de Outubro de 1836, que não exigia rendimento algum nem para os eleitores nem para os elegíveis.
(17) Na citada obra Parlements, da Union Interparlementaire, que é de 1966, alude-se, com efeito, a que é quase total a supressão do sufrágio censitário.
(18) Quanto à mulher solteira, já quase todas as limitações à sua capacidade tinham sido abolidas pelo Decreto n.º 5647, de 10 de Maio de 1919, e, posteriormente, pela reforma do Código Civil de 1867 (Decreto com força de lei n.º 19 126, de 16 de Dezembro de 1930)
Palácio de S. Bento, 16 de Dezembro de 1968.
Armando Manuel do Almeida Marques Guedes.
João Manuel Nogueira Jordão Cortez Pinto.
Joaquim Trigo do Negreiros.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
Manuel Pimentel Pereira dos Santos.
Vasco Lopes Alves.
Artur Patrocínio.
João Henrique Dias.
José Gabriel Pinto Coelho.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA