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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA

N.° 70 X LEGISLATURA - 1971 28 DE ABRIL

PARECER N.° 25/X

Projecto de proposta de lei n.° 6/X

Liberdade religiosa

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 105.° da Constituição, acerca do projecto de proposta de lei n.° 6/X, elaborado pelo Governo sobre a liberdade religiosa, emite, pelas suas secções de Interesses de ordem espiritual e moral e de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e de Política e administração ultramarinas), às quais foi agregado o Digno Procurador Manual Duarte Gomes da Silva, sob a presidência d& S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

§ 1.º

Razões justificativas da proposta

1. Considerações feitas no preâmbulo do projecto. - No breve relatório do projecto que submeteu à apreciação da Câmara Corporativa, aponta o Governo as duas principais razões que justificam, em seu entender, a iniciativa de um novo diploma legislativo especialmente destinado a regular a liberdade religiosa em Portugal.
A primeira, consiste na conveniência de proceder a uma reelaboração sistemática das normais fundamentais aplicáveis à liberdade de crenças e de cultos, atenta a variedade dos diplomas que a disciplinam dentro da legislação vigente.
O princípio da liberdade religiosa foi fundamentalmente introduzido no País pela chamada "Lei da Separação" (Decreto de 20 de Abril de 1911), a qual estabeleceu, no entanto, uma série de medidas que afectaram "m larga medida a liberdade de acção da Igreja Católica, bem como das associações religiosas nela integradas.
Algumas das disposições mais gravosas dessa Lei vieram a ser abolidas ou modificadas por legislação posterior, mas só a Concordata assinada em 7 de Maio de 1940 entre a Santa Sé e o Governo Português teria dado satisfação às primeiras reclamações do episcopado e dos fiéis.
Entretanto, nem o Governo, nem a Assembleia voltaram a definir os princípios básicos da matéria, fosse para os expurgar das impurezas com que foram inicialmente concebidos, fosse para qs amoldar às naturais exigências de uma revisão actualizada do tema.
E haverá conveniência em fazê-lo.
A outra consideração invocada pelo Governo procede das notórias deficiências de que sofre o direito vigente, no que respeita à situação idas confissões religiosas não católicas e das associações a elas pertencentes.
Umas e outras têm vivido até hoje, segundo a afirmação do projecto, cm regime de pura situação de facto. E de uma tal circunstância só prejuízos terão advindo, quer para essas corporações confessionais, quer para o Estado.
Para alcançar o primeiro objectivo, o projecto de proposta de lei procura enunciar e regular metodicamente os vários aspectos em que se desdobra a liberdade religiosa das pessoas p das comunidades, introduzindo na sua disciplina jurídica

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os desvios às regras comuns, que considera mais consentâneos com a autonomia particular que importa reconhecer às organizações correspondentes às diferentes confissões.
A segunda falha seria suprida pelos termos genéricos em que a matéria virá a ser disciplinada pela futura lei e pela referência directa ao problema do reconhecimento das confissões não católicas, cuja resolução constituiria pressuposto indispensável ao regular funcionamento das normas administrativas aplicáveis às associações religiosas correspondentes.
Nenhum dos fins propostos atinge, segundo a intenção expressa no projecto, "as normais particulares que vigoram para a igreja católica".

2. Indagação prévia imposta pela apreciação, tanto da conveniência legislativa, como da oportunidade política do diploma. - A necessidade de a Câmara reflectir sobre a exposição introdutória, do projecto, para que possa pronunciar-se com suficiente conhecimento de causa acerca da conveniência legislativa e da oportunidade política das soluções formuladas, exige uma recapitulação muito atenta da evolução do princípio da liberdade de crenças e de cultos dentro da legislação nacional. Só a leitura desse capítulo da história das instituições jurídicas nacionais permitirá concretizar os ir convenientes que realmente podem advir da variedade dos diplomas em vigor sobre a matéria, precisar as dificiências do direito vigente no que toca às corporações religiosas não católicas e apurar os prejuízos que delas decorrem, seja para os particulares, seja para o Estado.
O balanço rigoroso do conjunto destes factores reveste importância fundamental para o confronto a que esta Câmara se não pode furtar com os inconvenientes que forçosamente acarreta a revisão pública de um tema tão espinhoso e delicado como sempre foi e continua a ser a questão religiosa. "De todas", como diria Hintze Ribeiro dirigindo-se ao rei D. Carlos, "a que mais afecta as consciências e exalta os espíritos."
"Lamentável questão esta", acrescenta o relatório do Decreto de 18 de Abril de 1901, "que, distendendo-se pelo Bafe, e entoando na vida íntima das famílias, leva a convicção à intransigência, o sentimento à paixão, a crença ao fanatismo, quando a tempo se não provê de remédio com sereno critério e ponderada razão. Lamentável questão, sobretudo no momento em que mais preciso se torna que todos, afastando dissidências que conduzem à inimizade e à desordem, ponham o melhor do seu trabalho e esforço em resolver outros problemas, que tanto interessam à economia da Nação."
"Matéria... extremamente delicada", escrever-se-ia meio século mais tarde no parecer da Câmara sobre as alterações propostas em 1951 à Constituição Política de 1933 1 "como tudo quanto vai tocar com sentimentos profundos e questões de fé."
O breve capítulo da história do direito português, que a indagação proposta visa ressuscitar, terá ainda o mérito de oferecer a perspectiva exacta do princípio da liberdade de crenças dentro da problemática geral da religião na vida, tanto dos indivíduos como da colectividade nacional. Não deixará de se extrair da natural articulação lógica das matérias discriminadas, bem como da instrutiva evolução que as ideias, os costumes e as leis sofreram ao longo do tempo, algumas conclusões seguras sobre o mais conveniente enquadramento jurídico do tema versado no projecto.

CAPITULO I

Evolução legislativa do princípio da liberdade religiosa

3. A época liberal. Primeiros sintomas da reacção dos tempos contra a intolerância religiosa do período anterior Constituição de 1822. - É no artigo 25.° da Constituição Política de 1822 que se encontra a primeira fresta aberta na muralha legislativa e costumeira que durante séculos tentara preservar, com o escudo da intolerância, a unidade religiosa, a pureza da fé, e, com elas, a unidade moral e política da Nação 2.
Depois de afirmar que "a religião da Nação Portuguesa é a católica apostólica romana" 3, essa disposição acrescentava, num segundo período, o seguinte:

Permite-se, contudo, aos estrangeiros o exercício particular de seus respectivos cultos.

O facto de a disposição se referir sòmente aos estrangeiros e de, mesmo quanto a estes, a liberdade concedida se restringir ao culto particular, privado ou doméstico deixa desde logo entrever qual fosse a situação de nacionais e estrangeiros no período anterior ao liberalismo e qual continuaria a ser, no plano legal, o regime mantido com relação aos cidadãos portugueses.
Sabe-se, com efeito, que a época anterior fora de franca negação da liberdade do pensamento, principalmente em matéria de religião, e, por conseguinte, de completa intolerância na prática dos cultos 4, a despeito do incêndio que as labaredas do protestantismo haviam ateado em vastas regiões da Europa, e cias fórmulas de compromisso (ou de tolerância) a que já nos fins do século XVI se chegara em algumas das nações mais dilaceradas pelas lutas da Reforma 5.
E são igualmente conhecidos os excessos de vária ordem a que recorreram, de acordo com o espírito e

1 Pareceres da Câmara Corporativa, V Legislatura, 1951, I, p. 149.
2 Durante muitos séculos a Razão de Estado imperou, de facto, como razão justificativa da pureza e unidade da fé e da consequente perseguição de todas as heresias, em obediência ao conhecido brocando legitimista de que num Estado deve haver sempre "um só rei, uma só lei e uma só fé". Esta aliança entre o Sacerdócio e o Império teve um dos seus momentos culminantes, de mais concreta e visível realização, na coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III, no ano 800. Vide Prof. Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, I, 1947, p. 71.
3 Embora nascida de uma revolução cujas origens são bastante conhecidas, a Constituição de 1822 tinha o seu articulado precedido dia invocação expressa da "Santíssima e Indivisível Trindade", e incluía no texto do artigo 19.°, à cabeça dos principais deveres do cidadão português, o de venerar a religião.
4 A doutrina da intolerância, no mundo cristão, remonta praticamente ao imperador Constantino, com a perseguição oficial dos que eram considerados hereges, e encontra a sua primeira consagração legislativa no Código Teodosiano (XVI, V). Note-se, no entanto, que na intolerância religiosa radicada nos tempos posteriores se distinguia muitas vezes entre os pagãos e hebreus, de um lado (para os quais havia certa tolerância), e, do outro, os apóstatas e os hereges, estes sujeitos ao odium theologicum das autoridades e dos crentes.
A primeira voz, isolada, a bradar pela tolerância terá sido a de Marsílio de Pádua. Sobre as linhas fundamentais do pensamento do antigo reitor da Universidade de Paris, veja-se Prof. Cabral de Moncada, ob. cit. e vol. cit., pp. 85 e segs.
5 Jemolo, Liberta dei culti, na Enciclopédia del Diritto, n.° 6.

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de instituições do tempo, expressivamente retratadas na legislação penal das Ordenações, tanto o poder civil como as autoridades eclesiásticas, em especial os tribunais de Santo Ofício, no combate ao judaísmo, na perseguição dos cristãos-novos, nos varejos às livrarias 6, nas devassas à vida particular das pessoas e ao foro íntimo das famílias nos processos de extorquir confissões nas inculpados e na repressão de todos os desvios aos dogmas da té ou às práticas de culto correspondentes à religião oficial do reino.
A carta que o Dr. Jorge Temudo escreve a D. João III, em Julho de 1524, a dar conta do resultado das averiguações secretas a que procedera, por incumbência do monarca, acerca do modo de viver dos cristãos-novos em geral, revela ao leitor (com todos os descontos que as circunstâncias impõem na sua leitura) os excessos a que descia a limitação da liberdade das pessoas nesses domínios, mesmo antes da instituição do Santo Ofício 7. "Resultava dessas informações", comenta Herculano no seu escrito bastante apaixonado sobre a Inquisição em Portugal 8, "que os cristãos-novos deixavam de assistir aos ofícios divinos nos domingos e dias festivos; que não se enterravam nas igrejas paroquiais, mas sim nos adros de alguns conventos ou nos claustros deles, em sepulturas profundas ou em terra virgem; que, moribundos, não tomavam nem pediam a extrema-unção; que, nos testamentos, não mandavam dizer missas por suas almas ou, se algumas se diziam, eram raramente, não ordenando nunca trintários, nem sufrágios ao oitavo dia do óbito, nem aniversários; que havia suspeitas de guardarem os sábados e páscoas antigas; que se confessavam durante a Quaresma, comungando na Quinta-Feira Santa ou em dia de Páscoa; que na doença se confessavam, e uns tomavam o viático e outros não, dizendo que não podiam, ou não o mandando buscar; que exerciam actos de caridade entre si, porém, não para com os cristãos-velhos; que ern tempos de peste enterravam cuidadosamente os mortos, sem distinção de raça; que se desposavam à porta da igreja e baptizavam seus filhos, guardando à risca todos os ritos e solenidades do estilo."
Mais tarde, pela bula de 23 de Maio de 1536, a função repressiva das heresias, tendo especialmente em vista os judeus e os infiéis, transitou do episcopado para os tribunais especiais do Santo Ofício 9. E todos sabem também corno era extenso o rol de culpas que cabiam na alçada inquisitorial cuja competência abrangia a investigação e a repressão de delitos de vária natureza, desde as práticas judaicas, luteranas ou maometanas, as feitiçarias e os sortilégios, até aos pecados da bigamia e da sodomia.
Se considerarmos o poder de que a instituição desfrutava e a acção repressiva que efectivamente parece ter exercido no País, não será difícil concluir que tão significativa, pelo menos (quanto ao espírito da nova época), como a concessão, em 1622, da liberdade particular de culto a favor dos súbditos de Estados estrangeiros, é a abolição dos tribunais do Santo Ofício, por decreto da Regência de 5 de Abril de 1821, na sequência da resolução tomada pelas Cortes Constituintes, em 31 de Março do mesmo ano 10.

4. Carta Constitucional de 1826 e o período subsequente. - A Carta Constitucional de 1826, que durante muitos anos, com vicissitudes de vária ordem, constituiu o estatuto fundamental da vida política do País 11, manteve o princípio doutrinário ida religião oficial do reino, que pràticamente se traduzia em múltiplas interferências, quer do Estado na organização religiosa dos fiéis, quer da Igreja Católica mo governo temporal dos cidadãos. Mas conservou também a ressalva inscrita na Constituição de 1822 em benefício dos estrangeiros, aos quais se continuava a permitir o culto doméstico ou particular de religiões diferentes da católica, em casas para isso destina-

6 É interessante registar que mesmo a Constituição de 1822, são obstante a expressiva proclamação da liberdade de pensamento contida no artigo 7.° ("A livre comunicação dos pensamento é um dos mais preciosos direitos do homem"), não deixava de manter no artigo imediato o poder de censura dos bispos em relação aos escritos sobre dogma e moral, devendo o Governo auxiliar as autoridades eclesiásticas na punição dos culpados.

Esta atitude foi determinada, sobretudo", na interpretação do Prof. Marcello Caetano (Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.ª ed., 1967. p. 380), "pela necessidade de conciliar as simpatias da Igreja que a origem maçónica dos chefes do vintismo tinha levado a uma posição de desconfiança, senão de hostilidade às novas ideias constitucionais."
Qualquer, porém, que tenha a razão determinante da sua inclusão no diploma constitucional, a medida não era senão, no essencial, a continuação da doutrina que D. Maria I repusera, por Lei de 17 de Dezembro de 1794 e alvará de 30 de Julho de 1795, na sequência das reclamações formuladas pela Santa Sé contra a avocação de poderes que a Coroa praticara no consulado de Pombal (Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, IV, parte III, 1922, p. 10).
7 Diga-se, no entanto, em abono da verdade, que igual regime de intolerância vigorava na generalidade dos outros países, sobretudo depois que o aparecimento de certas heresias (como as dos valdenses e albigenses) e a erupção do protestantismo na Europa (com o calvinismo, o luteralismo e o auglicanismo à cabeça) imprimiram grande acuidade à questão religiosa. As lutas religiosas entre católicos e protestantes, que atingiram nalguns desses Estados aspectos da maior violência, nunca se propagaram à Península.
Mas, por quase todo o lado, era o clima da intolerância que dominava o ambiente na fé. "Católicos, protestantes, muçulmanos", escreve o Dr. António Leite (A proposta de lei sobre a liberdade religiosa, separata da Brotéria, 1970. p. 6) ao retratar a mentalidade religiosa da época, "faziam todos o mesmo raciocínio: só a verdade tem direitos. Ora a religião católica (protestante , muçuçmana) é verdadeira. Logo só ela tem direitos, e, portanto, as demais religiões devem ser proibidas. Acrescia também a razão de Estado: importa sumamente a unidade, mesmo religiosa, da Nação; portanto, todos os seus membros devem professar a mesma fé. O soberano deve, pois, ter como suprema obrigação propagar ou ao menos defender a verdadeira fé"
Acrescente-se, par outro lado, que nem no Brasil nem nos territórios de África ou da Ásia integrados no ultramar português se registaram perseguições religiosas de perto eu de longe comparáveis às que ocorreram em algumas antigas possessões europeias.
8 A. Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 7.ª ed., I, p. 189.
9 Sobre a natureza régia do Santo Ofício e a competência do monarca para a nomeação dos inquisidores-gerais, veja-se a curiosa carta de D. José para o Cardeal da Cunha, com data de 15 de Novembro de 1771. O documento mostra claramente como Pombal (à semelhança de outros governantes da época) procurou, delirante algum tempo, converter os tribunais da Inquisição num instrumento da sua vigorosa política, regalista. Cf. António Barão. Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, III, 1938. p. 7; J. Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos-Novos Portugueses, 1921, pp. 346 e segs.
Tem ainda interesse, para o mesmo efeito, a leitura do ofício dirigido pelo Marquês, em 10 de Julho de 1755, ao ministro português em Roma: cf. Jordão de Freitas, 0 Marquês de Pombal e o Santo Ofício da Inquisição, Lisboa, 1916, pp. 14 e segs. A bibliografia mais importante sobre o tribunal eclesiástico instituído em Portugal no reinado de D. João III vem referida no preâmbulo da ob. cit. de J. Lúcio de Azevedo.
10 Carlos José de Meneses, A Inquisição em Portugal, 1892. II. pp. 294 e segs.; Fortunato de Almeida, ob. cit. e vol. cit. p. 18.
11 Sobre os três períodos de vigência da Carta, entre 1826 e 1910, veja-se Prof. Marcello Caetano, ob. cit., n.ºs 221 e 225.

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das, com a condirão de não revestirem forma alguma exterior de templo 12.
Ao lado da excepção aberta para os súbditos de outras nações, especialmente destinada por certo a garantir uma discreta liberdade de culto aos cidadãos ingleses que as invasões napoleónicas e as relações mercantis com o Reino Unido trouxeram até Portugal, a Carta consignava ainda um outro princípio muito importante, em matéria de religião, no titulo referente aos "direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses".
"Ninguém", diz o § 4.° do artigo 145.°, "pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública 13."
Esta abolição formal das perseguições religiosas representa uma alteração bastante significativa na situação jurídica anterior ao advento da revolução liberal, como abandono definitivo da ideia da adesão forçada a determinado credo, à qual durante muito tempo se deu como apoio a interrogação de Santo Agostinho: quac est enim peior mors animac quam libertas erroris? 14.
Não faltará, porventura, quem pense que a modificação operada é, em certo aspecto, mais aparente do que real, uma vez que persistia o devei de respeitar e religião do Estado e entre os crimes contra a religião do Reino, punidos na legislação penal vigente, figuravam, além de outros, os actos seguintes: a tentativa de propaganda de doutrinas contrárias aos dogmas católicos definidos pela Igreja (artigo 130.°, n.° 2.°, do Código Penal); a tentativa, realizada por qualquer meio, de fazer prosélitos ou conversões para religião diferente, ou seita reprovada pela Igreja (artigo 130.º, n.° 3.°), bem como a celebração de actos públicos de um culto que não seja o da mesma religião católica (artigo 130.°, n.°4.°).
À objecção poderia, no entanto, retorquir-se, com Fortunato de Almeida 15, que raríssimas vezes as sanções cominadas na lei foram realmente aplicadas pelos tribunais. "Geralmente", escreve o douto historiador, "nem os agentes do Ministério Público se julgavam obrigados a promover contra os delinquentes, nem havia quem compelisse ao cumprimento de tal dever."

O panorama geral que, em matéria de religião, a sociedade portuguesa oferecia a um observador atento, logo à entrada do segundo quartel do século transacto, poderia, com efeito, resumir-se nos seguintes traços fundamentais:
Por um lado, a liberdade de culto público só existia em relação à religião, católica. Cessaram, porém, as perseguições individuais por motivos religiosos, quer porque os textos legais consagrassem o princípio da liberdade de pensamento, quer porque à consciência moral dominante, num país onde os dissídios religiosos nunca atingiram a gravidade que revestiram noutras nações cristãs, repugnassem as devassas ao foro íntimo das pessoas e das famílias. E admitia-se a liberdade de culto particular, num primeiro rasgo do movo princípio da tolerância religiosa; que começava a despontar no firmamento jurídico das nações civilizadas, em benefício dos súbditos estrangeiros.
Por outro lado, sentia-se que o espírito da época muito diferente, de facto, em pontos que directa ou indirectamente buliam, com a matéria da fé e a posição da Igreja perante a sociedade civil, da mentalidade intransigente sob a tutela da qual haviam florescido as instituições do ancien régime 16.
O iluminismo setecentista, com a sua hipertrofia da razão, tivera já uma notória influência na política regalista concebida e executada com mão de ferro pelo Ministro de D. José 17, que a breve trecho, pela Lei de 25 de Maio de 1773, acabou com a discriminação entre cristãos-velhos e cristãos-novos, na ascensão a quaisquer postos e honras 18. O raciomalismo e o enciclopedismo começavam a penetrar nas escoteus, procurando demolir alguns dos dogmas ditada pela fé ou aceites pelas concepções metafísicas do Mundo E as sociedades secretas de feição anti-eclesiástica, favorecidas pelo ambiente especial que as invasões francesas e a presença dos militares ingleses criaram na capital do País, lograram arregimentar muitos dos melhores valores da classe burguesa 19. Esta principiava a ter consciência da sua força, foi-se assenhoreando pouco a pouco de algumas das alavancas do Poder e começou a minar os alicerces do edifício social sobre o qual assentava o regime da união entre o trono e a religião católica.

5. A legislação laicista do advento da República: a) O Decreto de 8 de Outubro de 1910. - O terceiro marco fundamental que assinala, na via prática da legislação estadual, a rota específica da questão religiosa, depois do rasgo inovador da Constituição de 1822 e da acção de consolidação da Carta Constitucional, é a famosa Lei da Separação - Lei de Separação da Igreja e do Estado. O nome por que ficou geralmente conhecido o Decreto de 20 de Abril de 1911, em larga medida inspirado na Lei de separação francesa, de 9 de Dezembro de 190o, resulta da separação que nele formalmente se estabeleceu entre o Estado e a Igreja Católica. "A partir da publicação do presente Decreto com força de lei", diz o artigo 2.º do diploma, "a religião católica apostólica romã a deixa de sor a religião do Estado."
A fórmula usada para estabelecer o regime de separação mostra desde logo que o legislador teve, antes de tudo, a intenção de proclamar o carácter não confessional do Estado.
Advirta-se, porém, que a Lei da Separação não foi o primeiro diploma sobre assuntos de religião promulgado pelo novo regime. Já antes dela, três dias apenas transcorridos sobre a proclamação da República, o Decreto de 8 de Outubro de 1910 definira, em tom bastante expressivo, o diapasão pelo qual iria afinar toda a legislação laicista da época.
Nele se reafirmava expressamente (artigos 1.° e 2.°) a plena vigência, quer das Leis Pombalinas de 3 de Setembro de 1759 e de 18 de Agosto de 1767, que expulsavam para sempre de todo o País e seus domínios, como desnaturalizados e proscritos, "os membros da Companhia de Jesus", quer do Decreto de 28 de Maio de 1834 (artigo 3.°), que extinguira "todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de

12 "A religião católica apostólica romana", diz o artigo 6.º da Carta, "continuará a ser a religião do reino. Todas as outras religiões serão permitidas aos estrangeiros com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem fornia alguma exterior de templo."
13 Doutrina que aparece repetida no artigo 11.° da Constituição de 1838.
14 Jemolo, est. cit., n.° 3.
15 Ob. cit. e vol. cit., p. 12.
16 Sobre a evolução da ideia da liberdade religiosa entre os grandes pensadores leigos, veja-se Jemolo, est. cit., n.° 8.
17 Prof. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 195.
18 J. Lúcio de Azevedo, ob. cit., p. 351. Pela mesma época concedia o imperador José II, da Áustria, uma das figuras mais salientes do chamado "despotismo esclarecido", a liberdade religiosa aos protestantes.
19 Sobre o ambiente geral da Europa no período subsequente à Revolução Francesa, veja-se, entre outros, M. Petroncelli, Manuale di Diritto ecclesiastico, p. 61, n.° 20.

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todas as ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, instituto ou regra" 20 e 21.
Na disposição imediata (artigo 4.°), declarava-se a nulidade (sic!) do Decreto de 18 de Abril de 1901, com o fundamento de que disfarçadamente viera autorizar a constituição de congregações religiosas no País, quando pretendessem dedicar-se exclusivamente à instrução ou beneficência, ou à propaganda da fé e civilização no ultramar.
Para quem quer que não acatasse os efeitos da extinção das congregações religiosas eram estabelecidas sanções penais, pesadas, que poderiam ir até a incriminação por constituição de associações ilícitas ou de associações de malfeitores (artigo 7.°).

6. b) A Lei da Separação. - Na mesma linha ideológica do diploma anterior, o Decreto de 20 de Abril de 1911, depois de afirmar categoricamente o carácter não confessional do Estado, proclamava logo na primeira das suas disposições a plena liberdade de consciência de todos os cidadãos, quer portugueses, quer estrangeiros (cf. artigo 1.° da lei francesa de 9 de Dezembro de 1905); reconhecia, mais adiante (artigo 7.°), a absoluta liberdade de culto particular ou doméstico de qualquer religião; e assegurava ainda, dentro de certos limites, a liberdade do próprio culto público, fosse de que religião fosse (artigo 8.º) 22.
Pela primeira vez, não só o Estado e a Igreja aparecem dissociados, na medida em que é eliminada a religião oficial do Estado, como a confissão católica surge em pé de igualdade com as demais confissões, seja no que toca ao culto particular, seja no que respeita ao próprio culto público, agora franqueados dentro de certos termos uniformes a nacionais e estrangeiros 23.
Quem se der, porém, ao cuidado de analisar atentamente as largas dezenas de disposições contidas no instrumento jurídico da separação (é precisamente de 196 o número dos seus artigos), a breve trecho concluirá que não foi a consagração da regra da liberdade religiosa o principal objectivo nele visado. Até porque aos católicos não falecia a liberdade de que necessitavam para praticar e difundir os princípios da moral cristã, e porque não havia, de facto, no País nenhum problema sério de carência de liberdade para as confissões não católicas.
A intenção que sobressai na generalidade das disposições contidas no decreto, de acordo, aliás, com o espírito laicista da época, é a de reduzir o poder da Igreja Católica, apagando, na medida do possível, a influência que o factor religioso até aí tivera na vida moral e social da comunidade.
Por um lado, privou-se a Igreja Católica, e bem assim as associações religiosas nela integradas, dos bens essenciais ao exercício do seu múnus, não só mediante o confisco dos imóveis e móveis que lhes pertenciam a, como através das sérias limitações impostas à liberdade de testar e de doar dos particulares 24.
As associações civis (as cultuais) a que era obrigatoriamente confiada a sustentação do culto tinham a sua capacidade de aquisição de imóveis limitada às aquisições a título oneroso estritamente indispensáveis ao cumprimento dos seus deveres (cf. artigo 6.°, n.° 3.°, da lei francesa de 1 de Julho de 1901); as aquisições a título de herança não podiam exceder, por força do disposto no § único do artigo 1781.° do Código Civil, o terço da terça do testador, devendo ainda ser obrigatoriamente aplicado um terço, pelo menos, de tudo quanto recebessem a fins culturais e 'actos de assistência e beneficência; os edifícios ou templos destinados a fins de culto não podiam ser alienados nem onerados sem permissão do Ministério da Justiça 26.
Despojadas a Igreja e as congregações religiosas dos bens indispensáveis à manutenção do clero, houve que prover ao sustento dos ministros do culto mediante um sistema de pensões vitalícias, que de algum modo convertia os padres em meros funcionários públicos 27, sujeitos à jurisdição disciplinar do Estado 28.

20 Embora nenhum diploma legislativo (posterior) tenha revogado as disposições cuja vigência era reafirmada pelo Decreto do 8 de Outubro de 1910, a realidade dos factos subjacentes à legislação explica facilmente o objectivo prático da medida tomada, com embargo das leis existentes", dizia, com efeito, o relatório do Decreto de 18 de Abril de 1901, "por todo o País, nas cidades mais populosas como nas vilas e aldeias, se foram introduzindo comunidades ou congregações religiosas, estabelecendo escolas, hospitais, lasilos, creches, instituições de toda a ordem, com aplicação ao ensino, à beneficência, a caridade, à propaganda da fé e da civilização no ultramar, dando educação a crianças, tratamento a doentes, albergues a velhos e inválidos, preparando missionários e levando por eles às colónias, ao mesmo tempo que a devoção e a fé, o amor pela Nação Portuguesa. Tudo isto, porém, eu em grande parte, fora das leis e da acção do Estado."
21 Já antes di célebre decreto de Joaquim António de Aguiar tinham sido publicadas várias medidas da mesma natureza. O Decreto de 17 de Maio de 1832, dia autoria de Mouzinho da Silveira, suprimira os conventos de religiosos e de religiosas nos Açores, considerando os seus bens como pertença da Fazenda; os Decretos de 30 de Abril e de 15 de Maio de 1833, apresentados por Silva Carvalho, suprimiriam os conventos abandonados; o Decreto de 3 de Agosto de 1833, preparado por Cândido Xavier, ordenou a supressão de todos os mosteiros ou conventos que acolhessem eclesiásticos que se houvessem insurgido contra o governo da rainha D. Maria II; o Decreto de 5 de Agosto de 1833 proibiu a admissão de noviciados monásticos "de qualquer instituto ou natureza que fossem"; finalmente, o Decreto de 9 de Agosto de 1833 sujeitou aos bispos das dioceses as comunidades de todos os conventos, mosteiros e casas religiosas.
Antes do período liberal, entendia-se que apenas estava sujeita a permissão régia a fundação de noves conventos. "É ponto incontroverso", dizia-se no relatório do mencionado Decreto de 18 de Abril de 1901 "que, ainda no regime absoluto, só com permissão régia se podia fundar ou levantar conventos novos, ou sequer mudar os existentes; disto são prova explícita es cartas régias de 22 de Setembro de 1610, 24 de Maio de 1622, 14 de Fevereiro e 2 de Outubro de 1630, 2 de Novembro de 1633, e 14 de Abril de 1657. Era uma prerrogativa da Coroa de que esta não podia abdicar. Como no sistema constitucional ê atribuição do poder legislativo."
22 Algumas destas manifestações jurídicas dia liberdade religiosa transitaram para o domínio dos direitos e garantias individuais, consagrados pela Constituição de 21 de Agosto de 1911 (artigo 3.°, n.ºs 4.° a 9.°, 13.° e 14.°), na qual se prescrevia ainda, não só o carácter neutral de todo o ensino ministrado em estabelecimentos públicos ou particulares fiscalizados pelo Estado (artigo 3.°, n.° 10.°), como também ia proibição da constituição de congregações religiosas e de ordens monásticas (artigo 3.°, n.° 12.°).
23 Em relação ao culto das confissões não católicas, desapareceu intencionalmente, quer da lei ordinária (artigo 8.° da Lei da Separação), quer do texto constitucional (artigo 3.°, n.° 8.°), a restrição da que ele não poderia ter lugar em casas com forma exterior de templos. As "casas para isso escolhidas ou destinadas pelos respectivos "rentes", diz o n.º 8.º do artigo 3.° da Constituição de 1911, "para toda e qualquer religião, poderão sempre tomar forma exterior de templo".
24 Artigo 62.°
25 Artigos 29.°, 32.° e 33.°
26 Dr. Barbosa de Melo, As pessoas colectivas eclesiásticas católicas e o artigo 161.º do Código Civil, 1970, pp. 9 e 10.
27 Artigo 113.° e seguintes (cf. artigo 11.° da Lei francesa de separação). Também o artigo 153.°, referindo-se "aos capelães e outros ministros da religião católica, que estavam adstritos a estabelecimentos ou serviços do Estado, tais como escolas, regimentos, hospitais, asilos e prisões", anunciava que se procuraria "dar destino a esses indivíduos, nos próprios estabelecimentos e serviços, como empregados de secretaria ou como professores devidamente fiscalizados".
28 Cf. os artigos 145.° e 146.°, que prevêem, ia perda ou a suspensão da pensão para os ministros da religião católica que contraviessem as disposições da Lei da Separação ou do Código do Registo Civil.

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Por outro lado, introduziram-se graves derrogações ao direito comum na regulamentação de alguns, dos aspectos fundamentais em que se desdobra o preceito da liberdade religiosa.
Além de se manter a interdição das ordens religiosas, quer para homens, quer para mulheres 29, mandava-se que as corporações encarregadas do culto (às quais seriam cedidos a título precário alguns dos bens confiscados à Igreja) fossem associações laicas ou civis de mera assistência e beneficência, ou nelas se convertessem 30, sujeitando-as a uma apertada tutela e fiscalização administrativa por parte do Estado 31 ao mesmo tempo que terminantemente se proibia que os ministros da religião desempenhassem nelas quaisquer funções dirigentes 32.
Limitava-se o horário dos actos de culto (artigo 43.°, in fine); admitia-se a fiscalização policial destes actos pelos agentes da autoridade (artigos 46.º e seguintes), proibiam-se certas manifestações exteriores de fé e de piedade (artigos 55.° e seguintes) e não se permitia o uso dos hábitos ou vestes talares fora dos templos e das cerimónias cultuais (artigo 176.°), sujeitando-se, assim, as práticas da religião a um regime ide policia semelhante ao aplicável a quaisquer outras manifestações da vida social.
Por último, a Lei da Separação multiplicava-se numa série de restrições à autonomia interna da Igreja Católica e das associações nela integradas, que iam desde a sujeição ao beneplácito do Estado de todas as determinações ou comunicações da Cúria Romana, dos prelados ou de outros dirigentes religiosos 33, até à selecção unilateral (em função da nacionalidade e da proveniência dos seus títulos) das pessoas que podiam participar nos actos do culto 34 e ao estabelecimento de um sistema de pensões que era, sob determinado aspecto, uma franca desautorização da lei do celibato 35, passando pela intromissão das entidades oficiais na organização do ensino nos seminários e nas catequeses 36 (com o objectivo de garantir a observância do preceito constitucional da neutralidade do ensino em matéria religiosa), pela regulamentação administrativa do toque dos sinos (artigo 59.º, cf. artigo 27.°, II, da Lei francesa de 1905) e pela própria organização da tabela máxima dos emolumento dos vários actos cultuais (artigo 36.°) 37.

7. c) A lei do divórcio e as leis da família. - Algumas das violações do princípio da liberdade religiosa, que foram sucintamente referidas, atingiam por forma explicita a Igreja Católica, os seus ministros ou as associações organizações ou institutos a ela pertencentes. Outras, conquanto formuladas em termos genéricos, era às mesmas entidades que quase exclusivamente afectavam na prática, visto ser muito reduzida, nesse tempo, a actividade associativa de confissões diferentes do catolicismo no território metropolitano.
Já antes, porém, destas medidas directamente relacionadas com a fé e a piedade dos crentes, haviam agravado os sentimentos da população católica algumas das profundas e significativas inovações que no ano anterior o Governo introduzira no capítulo das relações familiares.
O Decreto de 3 de Novembro de 1910 viera instituir entre nós o divórcio, permitindo a dissolução do casamento com grande cópia de fundamentos, sem distinguir na sua aplicação entre o casamento civil e o casamento religioso. No mês seguinte, a Lei n.° 1, de 25 de Dezembro, acabou com a dualidade do , casamento, reconhecendo apenas validade ao casamento civil, e o Código do Registo Civil de 1911 (artigo 312.°) estabeleceu a precedência obrigatória da celebração do casamento civil, quanto aos nubentes que pretendessem realizar também o casamento na Igreja.
Toda esta operosa actividade legislativa dos novos governantas reflecte fielmente o pensamento laicista da época, empenhado em combater alguns dos valores morais, sociais e religiosos que constituíam as bases tradicionais da comunidade nacional.
Contribuíram em larga medida para a criação deste ambiente entre as camadas dirigentes do País, quer a actividade subversiva de algumas associações secretas. quer a influência que algumas das modernas correntes filosóficas exerceram nas tendências realistas e agnósticas da literatura da época, quer a perniciosa intromissão de muitos membros do clero nas lutas (temporais) do liberalismo político, cujo rescaldo se prolongou pelo período posterior ao advento da República 38.

8. Primeiras reacções (moderadas) da legislação posterior contra os excessos da Lei da Separação. A revolução de 5 de Dezembro de 1917 e o Decreto n.º 3856. - Apesar de uma boa parte dos seus preceitos (em especial os que regulavam a constituição e funcionamento das associações cultuais) não .ter ido além dos textos legais em largas zonas do País, por nenhum eco encontrar nos sentimentos

29 Artigo 25.° A extinção das ordens religiosas começou por abranger apenas, como é sabido, os ordens masculinas (Decreto de 28 de Maio de 1834).
30 Artigos 17.°, 20.° e 169.° "Eram, pois, proibidas", comenta o Prof. Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 8.ª edição, I, n.° 169), "as associações exclusivamente religiosas, ficando privadas de personalidade jurídica as que à data existissem, e que seriam extintas caso até 31 de Dezembro de 1911 não se transformassem em corporações de assistência (artigos 27.° e 28.°).
A Igreja Católica não era reconhecida como pessoa colectiva.
Deste modo, as igrejas e suas associações não ficaram no regime do direito comum, mas sim em regime especial de desfavor."
O exercício do direito de reunião era então regulado pelo Decreto de 29 de Março de 1890 e pela Lei de 26 de Julho de 1893, e o exercício do direito de associação pela Lei de 14 de Fevereiro de 1907.
31 Artigo 23.°
32 "Os ministros de qualquer religião", dizia o artigo 26.°, "são absolutamente inelegíveis para membros ou vogais das juntas da paróquia e não podem fazer parte da direcção, administração ou gerência das corporações que forem encarregadas do exercício do culto."
33 Artigo 181.°
34 Artigos 94.°, 178.°, 179.° e 180.°
35 "Se a perda ou suspensão de funções eclesiásticas", dizia o artigo 150.°, "resultar do facto de o ministro da religião ter contraído ou contrair o seu casamento, a pensão não será por esse motivo negada, nem suspensa, reduzida ou extinta."
E não menos revelador do espírito que animava o diploma é o esquema sucessório das pensões fixadas pelo artigo 152.°, onde expressamente se reconhece direito a certa quota da pensão à viúva do .pensionista, bem como aos seus filhos menores, legítimos ou ilegítimos.
36 Artigos 10.°, 37.°, 53.º e 170.° Cf. o ofício-circular dirigido pelo Ministro da Justiça (António Macieira) aos governadores civis, em 2 de Janeiro de 1912, sobre a execução da Lei da Separação neste ponto do ensino.
37 O órgão principal de execução prática das prescrições contidas na Lei da Separação, especialmente incumbido de proceder ao arrolamento e inventariação dos bens confiscados pelo Estado, era a chamada "Comissão Central de Execução da Lei de Separação."
Foi na Portaria de 18 de Maio de 1911 que se nomearam os membros da Comissão, à qual se consideraram aplicáveis as disposições do Decreto de 31 de Dezembro de 1910.
38 Padre Miguel de Oliveira, História da Igreja, 1938, pp. 251 e segs.

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religiosos do comum da população, a Lei da Separação deu lugar a um vasto movimento de protesto de certos sectores de opinião e gerou sobretudo uma atmosfera de progressiva deterioração das relações entre as autoridades civis e a hierarquia eclesiástica.
Entre as reacções conhecidas dos prelados, salientarem-se a Pastoral Colectiva do Episcopado, de 24 de Dezembro de 1910, o protesto colectivo de 5 de Maio de 1911 contra a Lei da Separação 391 e um ofício do Episcopado Português ao Presidente da República, com data de 15 d, Março de 1913.
Como o Governo acusou o toque 40 e perseverou em executar as medidas decretadas 41, a aplicação prática da Lei da Separação deu origem a frequentes atritos, que mais toldaram ainda, pela qualidade das pessoas que as viações oficiais atingiram 42, o carregado ambiente social, político e religioso em que o País iria viver o resto do primeiro quartel do novo século.
A tensão existente entre a Igreja e o Estado (que culminara com a, publicação da encíclica Jandundum in Lusitânia, na qual Pio X condena vigorosamente o diploma da separação) só começa realmente a afrouxar quando, após o triunfo tia revolução de 5 de Dezembro de 1917, o Governo de Sidónio Pais, depois de ter procurado restabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé, procedeu a uma primeira e corajosa revisão da Lei da Separação 43. Pondo exactamente o dedo na parte mais ulcerada do organismo religioso, quer no que respeitara ao espírito da legislação em vigor, quer no que tocava ao foco principal de irritação das relações entre o clero e o poder civil, Moura Pinto (o Ministro da Justiça de então) não hesitou em denunciar no relatório do Decreto n.º 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, o carácter sectário da Lei da Separação, ao mesmo tempo que introduziu modificações substanciais no regime jurídico das comissões encarregadas do culto 44. Permitiu-se aos fiéis a constituição das corporações (religiosas) encarregadas da sustentação do culto público, atribuiu-se personalidade jurídica a estas associações, mediante uma fórmula muito abreviada de simples reconhecimento normativo 45, e aboliu-se a limitação legal que impedia os ministros da religião de fazerem parte dos respectivos organismos dirigentes (artigo 1.°).
Assim se libertaram as associações religiosas da tutela e inspecção da administração civil.

39 O tom polémico deste protesto deixa claramente transparecer a agitação que o diploma de 1911 desencadeou desde logo no País.
"Foi vibrado o golpe!", dizia-se na introdução do documento. "Realizou-se a previsão... Realizou-se? Não: foi excedida. O facto passou além da expectativa. A calamidade superou o receio. Receava-se a dureza, veio a atrocidade; receava-se a suspeição, veio a tirania; receava-se o cercear de garantias e direitos, veio a humilhação vilipendiosa; receava-se a grave e penosa redução dos necessários recursos materiais, veio a confiscação; receava-se enfim, a injustiça, veio com ela o sarcasmo."
40 No relatório da proposta que o Ministro da Justiça, António Macieira, apresentou ao Presidente da República (Manuel de Arriaga), para que fosse imposta a interdição de residência ao patriarca de Lisboa, ao arcebispo-bispo da Guarda e ao governador do bispado do Porto, lê-se esta elucidativa passagem: "... o procedimento dos prelados contra o Decreto com força de lei de 20 de Abril de 1911, que a Constituição expressamente reconheceu, assume um carácter de acintosa e perversa má vontade, simplesmente e propositadamente perturbadora da ordem pública, cujos processos não tardam a tocar as raias dos delitos contra as instituições".
41 Três anos volvidos sobre a data da publicação da lei, tendo à vista sobretudo as insuperáveis dificuldades que em muitos casos suscitara a criação das chamadas comissões cultuais, ainda Afonso Costa, o principal impulsionador da renovação legislativa levada a cabo nos anos de 1910 e 1911, escrevia no prefácio à edição Ia Lei da Separação, anotada por Carlos de Oliveira (Porto, 1914), o seguinte comentário: "A Lei da Separação consagra e defende eficazmente, contra todas as tentativa da reacção, actuais ou futuras, semelhantes às já adoptadas no passado ou novamente ensaiadas, este superior património dos povos verdadeiramente progressivos - a liberdade de consciência com a correspondente liberdade de cultos".
Não são necessárias, porém, grandes cogitações sobre o articulado da lei, através das várias soluções que foi possível respigar do seu texto, para dar a ideia da distância apreciável que neste caso medeia entre as palavras do autor e a realidade da obra por ele levada a cabo. Concebida sob a invocação apaixonada da liberdade de consciência, a lei negava aos católicos uma série de liberdades fundamentais, desde a faculdade de testar e de doar como melhor lhes aprouvesse até a possibilidade de se associarem na realização das finalidades superiores da sua crença. Ciosa da autoridade do Estado, ela desrespeitava em larga medida a autoridade da Igreja e das associações religiosas em pontos de disciplina livremente aceites pelos particulares.
42 Basta recordar que foram proibidos de residir durante dois anos nos respectivos distritos, por aplicação das sanções previstas nos artigos 146.° e 147.°, os seguintes titulares da hierarquia eclesiástica: o arcebispo-bispo da Guarda (Decreto de 24 de Novembro de 1911); o patriarca de Lisboa, o governador do bispado do Porto, e o arcebispo-bispo da Guarda, quanto ao distrito de Castelo Branco (Decreto de 28 de Outubro de 1911) ; o bispo do Algarve (Decreto de 6 de Janeiro de 1912); o bispo de Viseu e o governador do bispado de Coimbra (Decreto de 14 de Janeiro de 1912); o bispo de Lamego e os arcebispos de Braga e Portalegre (Decretos de 12 de Fevereiro de 1912): o arcebispo de Évora (Decreto de 30 de Março de 1912); o bispo de Bragança, não só no seu distrito, como no de Coimbra (Decreto de 16 de Fevereiro de 1912); o vigário capitular do bispado de Angra do Heroísmo (Decreto de 24 de Agosto de 1912).
Antes da Lei da Separação, haviam sido já destituídos das suas funções os bispos do Porto e de Beja (Decretos de 7 de Março e de 18 de Abril de 1911). Cf. Carlos de Oliveira, ob. cit. p. 121.
43 As medidas de aministia concedidas através da Lei n.° 114, de 22 de Fevereiro de 1914, aos autores de delitos ou transgressões da Lei da Separação não trouxeram consigo nenhuma contribuição séria para o apaziguamento dos espíritos, visto terem persistido as causas anteriores de perturbação.
44 Vale a pena transcrever a seguinte passagem do preâmbulo do diploma: "Mas, se é certo que as leis de ordem geral devem reflectir, na mais larga medida, as aspirações do país a que se destinam, nem sempre os legisladores conseguem furtar-se ao império dos seus sentimentos e das suas paixões, de modo a manterem-se serenos e lúcidos intérpretes da vontade da Nação. Assim aconteceu com a Lei da Separação. Contendo princípios universalmente aceites, como garantia do pensamento e da consciência, medidas indispensáveis à segurança da ordem e dos interesses do Estado, ela viu em demasia o Estado em função de ordem e de interesses, e, impropriamente, misturou o regime em contendas de crença, como se a República em 5 de Outubro fundasse uma religião que tivesse um credo hostil a qualquer outra já existente.
E se a intolerância política ou religiosa por parte dos cidadãos constitui o mais deplorável espectáculo que pode oferecer um país livre e moderno, a intolerância do Estado nem sequer se compreende, degradando a sua alta missão de equilíbrio e imparcialidade."
45 Não poderiam ser mais expressivos os termos em que no preâmbulo do decreto se condena a acção das corporações cultuais: "... os organismos conhecidos por 'cultuais' faliram deploràvelmente, formando-se apenas por artifício algumas dezenas deles, focos de perturbação e corpos estranhos dentro do agregado católico, compostos na sua maioria de pessoas indiferentes, se não hostis, à crença que se propunham manter e assegurar.
Esta aberração, por igual odiosa à sinceridade dos crentes e à liberdade do pensamento inteligente e honesto, não impediu que a actividade religiosa tivesse na maior parte das paróquias as suas regulares e usuais manifestações, ficando pois a haver no País uma lei com preceitos mortos que um partido político, por capricho, teimava em não remover para o seu fúnebre destino, afirmando aos sectaristas simples que vivem da ilusão das palavras que tais preceitos viviam, se executavam e eram basilares."
46 "Foi o Decreto n.° 3586, de 22 de Fevereiro de 1918", anota o Prof. Marcello Caetano (Manual, 8.ª ed., I p. 373), "que permitiu novamente a constituição de associações de fiéis de qualquer confissão religiosa com o fim principal da sustentação do culto público, as quais adquiriam personalidade jurídica pela mera participação dos seus estatutos e dos seus componentes à autoridade administrativa. Assim se subtraíram as associações religiosas ao âmbito da Administração."

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Acabou-se com a censura prévia dos escritos da Igreja, eliminando o beneplácito do Estado (artigo 12.°); suprimiram-se algumas outras limitações à liberdade religiosa (horário dos actos de culto: artigo 2.°; organização do ensino religioso: artigo 6.°; uso de hábitos talares: artigo 14.°) - tudo mo intuito expressamente declarado de introduzir na lei as urgentes modificações que, "representando... uma legítima, aspiração da consciência) católica, oprimida, são, ao mesmo tempo, uma exigência de um justo e bem equilibrado espírito liberal".

9. A revolução de 28 de Maio de 1926, o Decreto n.° 11 887 e a Constituição Política de 1933. - A questão religiosa foi um dos múltiplos factores que contribuíram para a eclosão do movimento militar de 28 de Maio de 1926. As instituições políticas haviam criado no espírito da população a ideia generalizada de não corresponderem às necessidades colectivas da época; e nesse sentido concorreu, de algum modo, o divórcio que os governantes estabeleceram, entre a legislação relativa à família e às instituições religiosas, de um lado, e as anreigadas tradições de uma comunidade nacional que nascera, se expandira e continuava a viver à sombra tutelar dos princípios da doutrina e da moral cristã, do outro.
Não surpreende, por isso, que a reacção cambra a legislação anti-religiosa de 1910 tenha prosseguido no período subsequente à revolução de Maio e haja encontrado um ambiente de franca receptividade entre os dirigentes do novo regime.
Sabe-se, todavia, que a situação política, nascida em 1926, apoiada pelas várias correntes difusas de pensamento que se associariam na luta contra o regime parlamentar, não tinha na sua base ura programa de ideias e de acção prática completamente estruturado, a que os governantes pudessem dar fácil execução, com relativa brevidade.
Assim se explica que, embora tenha principiado muito cedo o seu processo de revisão da questão religiosa, o novo regime só bastante mais tarde tenha logrado alcançar o instrumento jurídico que regularizou plenamente as relações entre Portugal e a Santa Sé 47. Com efeito, logo em 6 de Julho de 1926, o Decreto n.° 11 887, da autoria de Manuel Rodrigues, retoma o fio da questão, equiparando a capacidade patrimonial das associações religiosas encarregadas do culto à das outras associações perpétuas, estruturando o processo de aquisição da sua personalidade jurídica 48 em termos que asseguravam o pleno respeito pela disciplina interna da Igreja 49, regularizando a situação de alguns dos bens de que a Igreja fora espoliada e permitindo o ensino religioso nas escolas particulares.
Em contrapartida, no estatuto político que em 11 de Abril de 1933 50 põe termo ao regime da ditadura militar e assenta em bases jurídicas os postulados fundamentais da nova situação, não se encontra ainda nenhum sinal expressivo, nem da importância fundamental que os princípios do cristianismo exerceram e continuam a revestir na formação dos Portugueses, nem do relevo especial que por circunstâncias de vária ordem, assume a religiosa católica no contexto das relações do Estado com as diversas confissões religiosas.
No título (IX) que tratava "da educação, ensino e cultura nacional", continuava a afirmar-se o carácter neutral do ensino oficial em matéria religiosa, apenas havendo a registar, de novo, o facto de se impor aos ensinantes que não hostilizassem a religião 51.
No título (X) que, por seu turno, se ocupava "das relações do Estado com a Igreja Católica e demais cultos", também a posição desta, descontada a ressalva das cancordatas relativas à esfera do Padroado, bem corno a alusão expressa às "relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal, com recíproca representação", era definida conjuntamente, sem nenhum tratamento especial, cem a das demais confissões religiosas.
"É livre - dizia o texto primitivo do artigo 45.° - o culto público ou particular de todas as religiões, podendo as mesmas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua hierarquia e disciplina, constituindo por essa forma associações ou organizações a que o Estado reconhece existência civil e personalidade jurídica."
E acrescentava, na sua versão inicial, o artigo 46.°:

Sem prejuízo do preceituado pelas concordatas na esfera do Padroado, o Estado imantem o regime da separação em relação à Igreja Católica e a qualquer outra religião ou culto praticados dentro do território português, e as relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal, com recíproca representação.

Antes de qualquer das disposições transcritas, no artigo que enumera os direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses (artigo 8.°), inclui a Constituição, no n.° 3.°, "a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas, não podendo ninguém por causa delas ser perseguido, privado de um direito, ou isento de qualquer obrigação ou dever cívico", e ninguém sendo, além disso, "obrigado a responder acerca da religião que professa, a não ser em inquérito estatístico ordenado por lei".

10. A Concordata e o Acordo Missionário de 7 de Maio de 1940. - Mais, porém, do que no texto das leis, o novo regime político foi inscrevendo paulatinamente na consciência da Nação as premissas indispensáveis a uma profunda revisão da pendência entre o Estado Português e a Igreja Católica.

47 A razão apontada no texto há-de, no entanto, acrescentar-se, para maior rigor do diagnóstico, o facto de o ambiente religioso da época (com boa parte do próprio clero contaminado, em algumas regiões do pais, pela lassidão da disciplina que se instalou em muitos sectores da vida nacional) se não encontrar ainda suficientemente amadurecido para grandes reformas nas relações entre o Estado e a Igreja, bem como a circunstância de pesarem ainda bastante na memória das pessoas os inconvenientes que revelara o regime da religião oficial do Reino.
48 Veja-se, sobre a evolução da legislação no que toca ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões e associações religiosas, o estudo do Dr. Oliveira Lírio, "As Igrejas e o Estado", na Revista de Direito Administrativo, VIII, pp. 221 e segs.
49 "O regime criado pelo Decreto n.° 3856", escreve o Prof. Marcello Caetano (Manual, ed. cit. e vol. cit., p. 373), "foi consagrado e ampliado pelo posterior Decreto-Lei n.° 11 887, de 6 de Julho de 1926, que permitiu às associações religiosas adquirir e administrar bens para fins cultuais e dispor deles, nos mesmos termos que as associações perpétuas, e condicionou a constituição da que se destinassem a sustentar o culto católico à participação feita pelo bispo da respectiva diocese, obrigando deste modo os fundadores a respeitar a disciplina interna da Igreja."
50 Antes da Constituição de 1933, e ao lado do diploma de Manuel Rodrigues, é justo mencionar o Decreto n.° 12 485, de 13 de Outubro de 1926, da iniciativa de João Belo, que aprova o "Estatuto orgânico das missões católicas portuguesas da África e Timor". Faz-se no relatório deste decreto um relato, muito objectivo e excelentemente documentado, das consequências da Lei da Separação e de outras medidas legislativas afins sobre as actividades missionárias no ultramar.
51 "O ensino ministrado pelo Estado", dizia a versão primitiva do § 3.° do artigo 43.°, "é independente de qualquer culto religioso, não o devendo porém hostilizar, e visa, além do revigoramento físico e do aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, à formação do carácter, do valor profissional e de todas as virtudes cívica" e morais."

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Foi esse o objectivo da Concordata e do Acordo Missionário que a Santa Sé e o Governo Português assinaram, em 7 de Maio de 1940, na Cidade do Vaticano, dentro do sistema de acordos bilaterais que melhor se adapta aos regimes em que a separação jurídica não impede a minha colaboração dos dois poderes - espiritual e temporal - na defesa e prossecução dos valores comuns ou independentes.
Entre as disposições mais importantes destes dois instrumentos jurídicos (algumas delas simples reprodução de soluções anteriores, com uma ou outra nota de adaptação), podem salientar-se as seguintes:
a) A restituição dos bens confiscados à Igreja, excepção feita àqueles que estivessem aplicados a serviços públicos ou classificados como monumentos nacionais ou como imóveis de interesse público (artigo VI) - providência que nem sempre terá sido possível executar ao pé da letra;
b) O reconhecimento expresso da personalidade jurídica da Igreja Católica (antigo I), bem como o reconhecimento normativo 52 da personalidade das associações, corporações ou institutos religiosos 53, canònicamente erectos, mediante simples participação do bispo ou seu representante à autoridade civil competente (artigo III);
c) A orientação do ensino, nas escolas públicas, de acordo com os princípios da, doutrina e moral cristãs, "tradicionais do País", passando a leccionar-se a disciplina da Religião e Moral católicas nas escolas elementares, complementares e médias aos alunos cujos pais ou representantes não façam pedido de isenção (artigo XXI);
d) A atribuição de efeitos civis aos casamentos católicos, a consagração da sua indissolubilidade pelo divórcio (artigos XXII a XXIV) e o respeito da jurisdição dos tribunais eclesiásticos nas questões da validade do matrimónio (artigo XXV);
e) A abolição do beneplácito do Estado, com o reconhecimento do poder de ordem e jurisdição da Igreja Católica 54, na esfera da sua competência (artigo II);
f) A regularização da actividade missionária no ultramar português (artigos XXVI e segs.) 55.
Analisando friamente as disposições mais significativas, tanto da Concordata como do Acordo Missionário, mas em especial da primeira 56, é possível verificar que houve, por um lado, o visível propósito de não regressar ao sistema da religião oficial do Estado, mas não se hesitou, por outro, em reconhecer e garantir a posição especial que para a religião católica advém (sobretudo em matéria de casamento e no capítulo da educação) da importância capital que os princípios da doutrina e moral cristãs tiveram, desde os alvares da nacionalidade, na formação do carácter dos Portugueses, nos quadros da sua vida familiar e social, bem como na expansão territorial da comunidade nacional.
Estavam ainda bem frescos na memória de todos os ponderosos inconvenientes do sistema da chamada união moral entre os dois poderes, que a Carta Constitucional de 1826 mantivera durante muitos anos no País. Sabia-se que o sistema podia facilmente degenerar no regalismo ou no clericalismo, e qualquer destas tendências seria capaz de acarretar graves prejuízos, tanto para a pureza da missão sobrenatural a cargo da Igreja, como para a plena dedicação do poder civil ao governo temporal da comunidade.
Por isso, a Concordata de 1940 é, como autorizadamente se lhe chamou 57, uma Concordata de separação.
Em lugar, porém, da separação hostil que fora instituída em 1911, sob a influência das concepções políticas reinantes na época, a Concordata de 1940 estabeleceu uma separação que não excluía a compreensão, e, em alguns pontos, a "cooperação activa no respeito mútuo da esfera de competência específica de cada parte", entre os dois poderes. Mantendo e salvaguardando a independência recíproca do Estado e da Igreja no exercício das suas específicas atribuições 58, o Governo Português e a Santa Sé não deixaram de reconhecer a existência de matérias de interesse comum (no ensino, na organização e defesa da família, na acção civilizadora, a exercer junto das populações do ultramar), que procuraram regular por acordo, de modo a prevenir conflitos entre autoridades civis e eclesiásticas e em termos de tornar tão fecunda quanto possível a colaboração amigável entre elas.
A fé cristã e o culto da Pátria, como grandezas tradicionalmente unidas nos grandes momentos da história da comunidade portuguesa, de algum, modo se reencontraram nos diplomas firmados no ano centenário da restauração da independência e da fundação da nacionalidade.

11. Alterações constitucionais de 1951. Proposta de revisão de 1970. - O novo clima gerado em torno da questão religiosa pelos instrumentos diplomáticos de 1940, que logo foram integrados na legislação interna portuguesa, veio a reflectir-se mais adiante nas significativas alterações que a revisão constitucional de 1951 introduziu no

52 Ao reconhecimento normativo, que funciona em termos gorais e abstractos, contrapõe a doutrina, como todos sabem, o reconhecimento por concessão, assente sobro um acto individual e discricionário da autoridade competente: Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, I. 1960, p. 104.
53 A propósito da distinção entre as categorias de pessoas jurídicas eclesiásticas mencionadas nos artigos III e IV da Concordata, cf., além de Manuel de Andrade (ob. cit. e vol. cit., p. 89), Prof. Sebastião Cruz, Associações Religiosas, extracto do Dicionário jurídico da Administração pública, especialmente o n.° 3 (onde se aludo à distinção entre as três espécies de associações religiosas católicas: ordens terceiras seculares, pias uniões e irmandades ou confrarias); e o Regulamento Geral das Associações dos Fiéis, de 23 de Maio de 1937, elaborado pelo Episcopado (Lumen, 1937, p. 597).
54 Sobre o sentido exacto do poder de ordem e jurisdição, a que o artigo n da Concordata se refere, veja-se o parecer do Prof. Guilherme Braga da Cruz, inserto no opúsculo do Dr. A. Carlos Lima, Aspectos da Liberdade Religiosa (caso do bispo da Beira), 1970, especialmente pp. 47 e segs.
55 Além das salientadas no texto, outras disposições de menor relevo podem ser ainda mencionadas: a exigência da cidadania portuguesa para os carges de autoridade eclesiástica, tanto na metrópole como no ultramar (artigo IX; cf. ainda o artigo 9.° do Estatuto Missionário); a audiência prévia do Governo na nomeação dos prelados, tendo em vista possíveis objecções de carácter político geral (artigo X); a garantia de assistência religiosa às forças armadas, mediante organização especial de um serviço de capelania militar (artigo XVIII).
56 As soluções passadas cm revista vieram, sem dúvida, dar satisfarão às legítimas aspirações da tal consciência católica oprimida a que o Decreto n.° 3856 se referia, mas certo é também que fias constituem, em alguns aspectos, fórmulas de verdadeiro compromisso, assentes sobre recíprocas concessões em pontes não considerados essenciais pelos signatários. Trata-se de um documento, diz a Lumen (ano IV, p. 821) em relação à Concordata, "que, não tendo dado a solução ideal à questão religiosa, há tanto tempo em aberto entre nós, deu-lhe no entanto a melhor que o condicionalismo português comportava, abrindo uma nova idade na história da Igreja em Portugal".
57 Cf. Cardeal Cerejeira, na entrevista ao jornal Novidades, de 21 de Janeiro de 1971; O. Salazar, Discursos, III, p. 239.
58 Comentando a celebração do instrumento diplomático que assinala uma nova era nas relações entre o Estado e a Igreja, afirmou o Cardeal Cerejeira (Lumen, IV, p. 323): "O Estado reconhece-a (referia-se à Igreja), garante-lhe o livre exercício da sua vida e missão - mas não se intromete na sua vida interna, nem como protector, nem como inimigo."

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título X, consagrado às relações do Estado com a Igreja Católica e ao regime dos cultos.
Já antes, aliás, da assinatura da Concordata, a Lei n.° 1910, de 23 de Maio de 1935, modificara a redacção do § 3.° do artigo 43.° da Constituição, abolindo a declaração de neutralidade religiosa do ensino ministrado pelo Estado e substituindo-a pela afirmação expressa de que entre os fins essenciais visados pelo ensino oficial se conta a formação "de todas as virtudes morais e cívicas" e de que estas virtudes morais devera, ser "orientadas" pelos "princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País".
Também no Código Administrativo de 1940 se inseriu um título especialmente consagrado às "associações religiosas e sua actividade beneficente ou de assistência" que reflecte e completa em vários pontos (sobretudo com os aditamentos e modificações do Decreto-Lei n.° 31 386, de 14 de Julho de 1941) as disposições do texto concordatário.
Em 1951, com a entrada em vigor da Lei n.° 2048, de 11 do mês de Junho, a Constituição passa a reproduzir alguns dos preceitos mais importantes da Concordata 59, quando traça as linhas mestras do regime jurídico a que fica sujeita a Igreja Católica, ao mesmo tempo que expressamente considera o Catolicismo como a religião da Nação Portuguesa.
Além disso, no manifesto intuito de realçar a posição da religião católica em face das demais confissões religiosas, inverte-se a ordem dos preceitos contidos na antiga versão dos artigos 45.° e 46.° e substitui-se o sistema do reconhecimento normativo da personalidade jurídica pelo reconhecimento por concessão, quanto às associações constituídas no seio destas outras confissões.
Outra fora, diga-se de passagem, a orientação alvitrada no parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de revisão constitucional elaborada pelo Governo 60.
Sem contestar a posição especial a que tem direito a Igreja Católica, mas partindo da ideia de que "a liberdade de cultos deve ser igual para todos" e receando que a afirmação da existência de uma religião da Nação pudesse ser tida como uma porta aberta para o regresso ao sistema da religião oficial, com o cortejo de todos os seus inconvenientes práticos, a Câmara sugeriu nessa altura se mantivesse a ordem dos preceitos então vigentes, principiando pela proclamação da liberdade de cultos em termos que aproveitassem, igualmente a todas as religiões e dando ao artigo imediato a seguinte redacção:

O Estado reconhece a posição especial da Igreja Católica, em que professa a maioria dos portugueses. É garantido à Igreja o livre exercício da sua autoridade, com a faculdade de, na esfera da sua competência, exercer os actos do seu poder de ordem e jurisdição sem qualquer impedimento. 0 Estado mantém em relação à Igreja Católica o regime de separação, sem prejuízo das relações diplomáticas entoe a Santa Se e Portugal, com recíproca representação, e das concordatas e acordos aplicáveis na esfera do Padroado ou de outros em que sejam ou venham ser reguladas matérias de interesse comum.

A sugestão da Câmara não vingou na Assembleia, tendo esta perfilhado os textos propostos pela Comissão de Legislação e Redacção 61, bastante mais próximos da orientação do Governo 62. Mas é a antiga doutrina da Câmara que, em boa parte, renasce agora na proposta de lei n.° 14/X, contendo as alterações sugeridas pelo Governo para a próxima revisão constitucional.
Aí se regressa, de facto, à ordem primitiva dos textos 63. Primeiro, a proclamação da liberdade de culto e de organização das confissões religiosas, em termos que aproveitam igualmente a todos os credos (artigo 45.°), nada se dizendo, porém, sobre o reconhecimento da personalidade jurídica das associações religiosas. Só depois se define, em termos bastante mais concisos do que anteriormente 64, a posição especial da religião católica através do recurso a duas notas fundamentais: uma, expressa no reconhecimento do catolicismo como religião tradicional 65 da Nação Portuguesa; outra, traduzida no reconhecimento constitucional da personalidade jurídica da Igreja Católica.

59 São eles, concretamente, o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica (artigo I da Concordata), a liberdade de organização das pessoas colectivas eclesiásticas e o reconhecimento normativo da personalidade jurídica destas (artigo III), a manutenção das relações amigáveis sob a forma de recíproca representação diplomática (artigo I, segundo período) e o respeito dos acordos bilaterais em que sejam ou venham a ser regulados assuntos compreendidos na esfera do Padroado do Oriente ou matérias de interesse comum (doutrina que não se encontra expressamente formulada no texto da Concordata, embora caiba, sem dúvida, no seu espírito).
60 Pareceres da Câmara Corporativa, V Legislatura, 1951, I, especialmente pp. 147 a segs.
61 Diário das Sessões, 1950-1951, pp. 842 e 878.
62 Anote-se, porém, que chegou ainda a ser apresentada na Assembleia uma proposta do Deputado Mendes do Amaral, no sentido de ser mantida a redacção anterior dos artigos 45.° e 46.º da Constituição (Diário das Sessões, 1950-1951, p. 733).
No pólo oposto desta, registe-se a apresentação da proposta (subscrita pelos Deputados Carlos Moreira, Ribeiro Casais, Sousa Campos, Elísio Pimenta, Vaz Monteiro e Nunes Teixeira) que visava a restauração do princípio de união moral e de independência económica e administrativa entre a Igreja e o Estado.
63 A razão invocada no breve preâmbulo da proposta para justificar, tanto a alteração feita na epígrafe do título X, como a inversão estabelecida na ordem dos preceitos, é a de a matéria não poder deixar de ser encarada sob a perspectiva da liberdade religiosa, "de acordo com os princípios constitucionais e em conformidade com a doutrina dimanada do último concílio da Igreja Católica".
64 A maior concisão do texto proposto resulta de se ter eliminado a referência à manutenção das relações diplomáticas com a Santa Sé e de se ter relegado para o domínio da legislação ordinária a questão da aquisição da personalidade jurídica por parte das associações ou organizações erectas de harmonia com o direito canónico.
65 A fórmula religião tradicional constitui, em certo sentido, um plus cm face da afirmação, de raiz puramente estatística, sugerida pela Câmara em 23 de Fevereiro de 1951 ("Igreja... em que professa a maioria dos portugueses). Mas é, no mesmo plano conceituai, um minus perante a tese categórica do texto vigente.
Esta envolve uma proposição doutrinária, de sentido transcendente, inspirada nos permanentes destinos do ser moral que é a comunidade nacional, enquanto a primeira fórmula exprime um puro juízo histórico, de carácter mais positivo que programático.
"A Nação Portuguesa constitui hoje", diz-se no relatório da proposta de alteração constitucional, "a unidade de muitas culturas e vai-se constituindo todos os dias através do livre encontro das diversas raças e formas de viver que existem no seu seio."
Na declaração do Episcopado, de 13 de Novembro de 1970, sobre a liberdade religiosa, sustenta-se, pelo contrário, que a presença da Igreja tanto na metrópole como no ultramar, "não se deve medir em termos puramente estatísticos ou de simples representatividade numérica, isto é, só porque são maioria os católicos entre nós. Há-de medir-se em termos de civilização e de história, prolongada por mais de oito séculos de vida nacional. Nem todos os portugueses aceitam explicitamente a fé cristã. Mas todos aceitamos uma certa concepção de vida residualmente cristã, que nos define como povo".
A Câmara Corporativa teve há pouco ensejo de se pronunciar sobre este ponto, preferindo por maioria a seguinte fórmula intermédia: "E reconhecida a posição especial da religião católica entre as várias crenças professadas pelos portugueses."

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12. Declaração Conciliar sobre a liberdade religiosa. - Após a assinatura da Concordata e do Acordo Missionário de 1940 e das alterações da Constituição Política introduzidas pela revisão de 1951, o acontecimento de maior relevo que pode interessar à apreciação em curso é a Declaração Conciliar sobre a liberdade religiosa 66 (Declaração de 7 de Dezembro de 1965).
Depois de reafirmar a tese de que a Igreja Católica e Apostólica é a única. Igreja de Cristo e de que a verdadeira religião se encontra no caminho que "o próprio Deus manifestou ao género humano", o Concílio proclama na Dignitatis Humanac o direito inviolável da pessoa humana à liberdade religiosa 67. Esse direito consiste, essencialmente, em os homens estarem impunes de coacção em matéria de religião, de tal modo que "ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de actuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado a outros, dentro dos devidos limites".
Não faltam por esse mundo fora os regimes políticos em que, a despeito do reconhecimento formal da liberdade de crenças e de culto, as autoridades públicas se esforçam por afastar os cidadãos das práticas religiosas e por tornar extremamente difícil e perigosa a vida das comunidades confessionais. Por isso, o Concílio "exorta os católicos e pede a todos os homens que considerem com a maior atenção quão necessária é a liberdade religiosa, sobretudo nas presentes condições da família humana".
Reveste ainda muito interesse para a apreciação de alguns aspectos do projecto a forma como a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo (Gaudium et Spes) define as posições relativas da sociedade civil e da comunidade eclesial 68.
O acento tónico das relações entre uma c outra é aí posto sobre a reciproca independência e a sã colaboração. "No terreno que lhes é próprio, diz-se no n.º 76 da Constituição, a comunidade política e a Igreja são independentes e autónomas. Mas ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Exercerão tanto mais eficazmente este serviço para bem de todos, quanto amais cultivarem entre si um" sã- cooperação, tendo em conta as circunstâncias de lugar e de tempo."

13. Síntese da evolução legislativa do principio da liberdade religiosa. - Alcançado o termo da morosa evolução dos factos narrados ao longo dos números precedentes, não se torna difícil concentrar em poucas palavras o duplo itinerário que a ideia da liberdade religiosa percorreu através das vias da legislação nacional 69: relativamente à religião católica, por um lado; quanto às demais confissões, por outro.
O catolicismo teve todas as prerrogativas (e todos os inconvenientes!) de religião oficial do reino até 1910, sendo esse o estatuto que a própria Carta Constitucional de 1826 lhe conferiu durante muitos anos, mas sendo igualmente certo que as primeiras limitações à liberdade religiosa dos católicos; procedem já da revolução liberal. Proclamada unilateralmente em 1910 a separação da Igreja e do Estado, os católicos, apesar de constituírem a esmagadora maioria da população no território metropolitano, viram a sua liberdade de acção profundamente coarctada em múltiplos aspectos, ao mesmo tempo que foram interditas as ordens e praticamente extintas todas as associações religiosas.
Datam de 1917 e de 1926 as primeiras reacções, muito moderadas, contra as restrições impostas pela Lei da Separação. Mas só em 1940 a Igreja Católica readquire, na ordem nacional, a sua personalidade jurídica e recupera a sua autonomia interna, vindo a religião católica a ser reconhecida mais tarde como religião da Nação Portuguesa, com base na formação cristã da generalidade dos portugueses da metrópole e na vocação missionária da comunidade nacional em terras do ultramar.
A prática de credos diferentes do catolicismo começou por sei- rigorosamente perseguida durante o período de intolerância religiosa, que precedeu o liberalismo.
A revolução liberal pôs cobro às perseguições por motivos de religião, inaugurando assim entre nós o período da tolerância, religiosa; mas as leis do tempo só aos súbditos estrangeiros permitiram o culto de confissões diferentes da católica - e apenas o culto particular ou do-

66 Vaticano II, Documentos Conciliares, 2.ª ed., 1967, pp. 501 e segs. Sobre a laboriosa preparação e elaboração do documento, v. J. Quelhas Bigote, "A Declaração sobre a Liberdade Religiosa", in Lumen, n.° 32, pp. 290 e segs.; sobre as quatro razões (razões de verdade, de defesa, de convivência pacífica e ecuménica) que foram invocadas no concílio para que fosse proclamado o direito do homem à liberdade religiosa, cf. ainda Annalli della Facoltà di Giurisprudenza di Genova, 1965, p. 517. Para quem pretenda conhecer o diálogo entre muros que suscitou a discussão da matéria e a preparação do texto da declaração entre os padres conciliares, tem interesse a leitura da Crónica del Concilio - El debate sobre la libertad religiosa, escrita por Jorge Blajot na Razon y Fe, 1965, pp. 333 e segs.
67 Vejam-se as sugestivas considerações de A. Fuenmayor (La libertad religiosa y el bien comun temporal, sep. do Ius Canonicum, X, 1970, p. 281) sobre a forma como no proémio da Declaração Conciliar se coadunam, harmoniosamente a continuidade com o progresso essenciais ao magistério eclesiástico. "Uma advertência ou uma admoestação", escreve o autor, "para acalmar o ânimo dos extremistas, que confundem a tradição com o imobilismo ou identificam o progresso com a destruição (hacer tabla rasa) da doutrina já definida."
Pietro d'Avack ("In libertad religiosa en el magistério actual de la Iglesia Católica", no Jus Canonicum, 1965, n.ºs 3 e segs.) alude às razões que levaram a Igreja a condenar durante bastante tempo a ideia da liberdade religiosa (tal como o pensamento liberal e agnóstico do século XIX a reivindicava), afirmando que "a liberdade civil dos cultos levava à mais fácil corrupção dos sentimentos e da vida dos pontos e à propaganda da peste do indiferentismo" (haja em vista a conhecida Syllabus errorum). Segundo as concepções do autor, se o magistério pontifício do século XIX fundou a sua doutrina rigorosa, no principio teológico "extra Ecclesiam nulla salus", como reacção contra o liberalismo agnóstico da época, a doutrina mais recente da Santa Sé apoia a nova doutrina da tolerância, e liberdade religiosa num outro princípio teológico ("ad amplexandam fidem catholicam nemo invilus cogatur"), como reacção contra as tendências totalitárias dos regimes que, em larga medida, sacrificaram a dignidade da pessoa humana, nas aras de uma estatolatria desapiedadamente materialista.
68 Cf., especialmente, os n.ºs 73 e segs. dessa Constituição Pastoral.
69 No plano geral idas nações civilizadas distingue Fedele (La libertà religiosa, 1963, p. 44) quatro fases sucessivas na lenta gestação da ideia da liberdade religiosa: a das pazes entre as religiões em luta, a dos edictos de tolerância e de liberdade religiosa, a das declarações de direitos do homem e a das constituições. Esta sistematização dá apenas uma linha geral aproximada, não inteiramente rigorosa, das últimas fases da transformação operada em vários países.
Note-se que, segundo Jemolo ("Liberta dei culti", na Enciclopédia dei diritto, n.º 2), o problema da liberdade religiosa, tal como hoje o concebem os autores, não é um problema de todos os tempos.
Não o conheceram nem os Gregos, nem os Romanos.
Mas já o Egipto teria conhecido oposição de cultos: o hebraísmo veria na heterodoxia dos Samaritanos uma espécie de heresia, enquanto o islamismo teria adoptado já uma posição de intolerância em face dos pagãos e de mera tolerância perante os Cristãos e os Hebreus.
Na sua moderna configuração, a questão teria nascido apenas com, o confronto entre o cristianismo e o paganismo (ob. cit., n.° 3).

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méstico. A Lei da Separação acabou com semelhante limitação, admitindo a liberdade de culto, quer particular, quer público, com as mesmas restrições, tanto para católicos como para os crentes de outras confissões.
Este tratamento igualitário foi ainda mantido na primitiva versão dos artigos 45.° e 46.° da Constituição Política de 1933. A reforma constitucional de 1951 é que conferiu já, na sequência dos princípios aceites pela Concordata de 1940, uma posição especial à Igreja Católica e às associações religiosas a ela pertencentes. Mas não deixou de proclamar a liberdade) de culto e de organização quanto às outras confissões religiosas, cujos cultos são praticados dentro do território português, embora, na nova redacção do artigo 46.° se sujeite à regulamentação da lei as suas manifestações exteriores e se não reconheça de jure a personalidade jurídica das associações nelas integradas.
O princípio da liberdade religiosa pode assim considerar-se, pela segurança com que se radicou na legislação portuguesa a partir do primeiro quartel do século, como uma aquisição definitiva do património jurídico nacional. E é, sem dúvida, uma das grandes conquistas da civilização e da cultura dos povos, sobretudo atentando na estreita correlação existente entoe a suma dignidade da pessoa humana e a livre indagação dos caminhos transcendentes que conduzem o homem aos mistérios da vida e ao plano supremo do Universo.

14. Exame da primeira razão justificativa do projecto de proposta. - Não é, por conseguinte, a necessidade de implantar o princípio da liberdade religiosa no terreno do direito português constituído que explica a publicação de um diploma especial sobre a matéria.
Tão-pouco servirá de justificação para o efeito o apelo que a Declaração Conciliar de 7 de Dezembro de 1965 lançou aos governantes do mundo inteiro, visto não colher quanto às autoridades portuguesas, nem a queixa de negação formal do princípio, nem sequer a censura pelas graves dificuldades criadas à vida das comunidades religiosas, uma vez que desde há bastantes anos se instalaram na "metrópole algumas confissões protestantes, a comunidade judaica aqui tem praticado livremente a sua religião, enquanto no ultramar vivem também desde há séculos, com respeito do Estado pelas suas crenças e ritos religiosos, diversas comunidades não católicas, entre as quais se salienta a população muçulmana, quer da Guiné, quer de Moçambique. A explicação apresentada, sob este primeiro aspecto, no preâmbulo do projecto do Governo, não assenta na necessidade prática de formular o princípio da liberdade de cultos ou de garantir a sua efectiva realização, mas na conveniência de proceder a uma reelaboração, devidamente ordenada e sistematizada, dos múltiplos corolários em que esse princípio se desdobra, atenta a variedade dos diplomas aplicáveis à matéria.
A disciplina jurídica da actividade religiosa encontra-se, na verdade, repartida por diversos lugares do sistema, entre os quais se salientam os seguintes: Constituição Política (artigo 8.°, n.° 3.°, § 3.° do artigo 43.° e artigos 45.° a 48.°, 139.° e 140.°); Concordata e Acordo Missionário, de 7 de Maio de 1940, a que o artigo 61.° do Decreto-Lei n.° 30 615 atribuiu força de direito interno; o Código Administrativo (artigos 449.° e seguintes); o Decreto de 20 de Abril de 1931 (Lei da Separação); o Decreto-Lei m.° 22 468, de 11 de Abril de 1933 (que trata do direito de reunião) e o Decreto-Lei n.° 39 660, de 20 de Maio de 1954, relativo ao direito de associação em geral.
A nova lei que venha a ser publicada sobre o tema não pode ter a pretensão de se substituir a todos os preceitos que hoje em dia se encontram dispersos por estas várias fontes.
Efectivamente, entre o conjunto de regras aplicáveis à liberdade individual ou comunitária de culto e às relações do Estado com as confissões religiosas haverá sem necessidade de seleccionar aquelas que, pela sua natureza intrínseca, devam ser transplantadas para o plano superior do estatuto político do País.
Sabe-se, por outro lado, que a Concordata e o Acordo Missionário constituem instrumentos jurídicos de carácter bilateral, de nenhum modo se justificando que o ser corpo orgânico de soluções seja unilateralmente expurgado de algumas delas.
A lei administrativa constitui, por sua vez, o lugar próprio para a regulamentação do processo indispensável ao registo ou ao reconhecimento das associações religiosas; e nela encontrará ainda assento adequado a definição do regime jurídico das corporações ou institutos que, ao lado de fins religiosos, prossigam fins de assistência, benemerência ou educação.
A regulamentação especial do direito de associação parece igualmente essencial, na medida em que a sua disciplina excede por vários lados o fenómeno associativo confinado a fins religiosos.
Há-de, porém, reconhecer-se que o facto de sei- praticamente impossível concentrar toda a disciplina da actividade religiosa num único diploma não obsta a que a revisão actual do princípio da liberdade religiosa assuma incontestável utilidade.
O princípio começou por ser formulado logo na Lei da Separação, mas a sua regulamentação, mercê do condicionalismo muito especial que rodeou a preparação do articulado, foi feita em termos muito deficientes e em larga medida ultrapassados pela legislação actual.
A Concordada retomou mais tarde o fio da questão, em condições ideológicas de maior tranquilidade nos espíritos, mas curou somente das relações do Estado com a Igreja Católica.
A Constituição, pelo contrário, estende já os seus comandos, tanto à Igreja Católica como às demais confissões religiosas, mas não pode, pela própria posição hierárquica das suas normas, descer aos planos inferiores em que alguns aspectos do regime jurídico em causa se situam.
Haverá, por consequência, toda a vantagem em proceder a uma revisão completa ida matéria, fora do ambiente revolucionário em que a liberdade de culto foi pela primeira vez proclamada entre nós, e com a amplitude necessária para incluir no reexame do tema os múltiplos problemas que mão cabem, nem aio âmbito da Concordata, por dizerem respeito a confissões religiosas diferentes da católica, nem no esquema legal da Constituição, por se situarem no plano hierarquicamente inferior da legislação ordinária.

CAPITULO II

Situação actual das confissões religiosas não católicas

15. Pretensões concretas reveladoras da insuficiência da legislação vigente. - À consideração teórica assente na conveniência da reelaboração sistemática do princípio da liberdade religiosa adita o preâmbulo do projecto de proposta, governamental uma razão de ordem prática imediata, fundada na situação de carência em que presentemente se encontrariam, perante a legislação em vigor, as confissões religiosas não católicas. E nesse fundamento insistiu o Sr. Presidente do Conselho de Ministros ao apontar, em recente declaração pública, a necessidade evidente de regulamentar a liberdade de culto e de associação

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religiosa para as confissões não católicas como a causa imediata da iniciativa do Governo 70.
Em que consistem as dificuldades justificativas da necessidade de regulamentação realçada pelo Governo?
Entre os casos genèricamente referidos na comunicação do Sr. Presidente do Conselho há pelo menos um, que é do domínio público, por ter sido objecto de apreciação dos e ninais, e se mostra capaz de facultar alguns esclarecimentos sobre a matéria.
Trata-se do caso versado no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26 de Outubro de 1962.
Um particular, intitulando-se bispo da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica, interpôs recurso contencioso contra a sentença da Auditoria Administrativa do porto 71, que confirmara a decisão do governador civil do distrito, indeferindo o pedido de registo dos estatutos de certa associação.
A associação que o requerente pretendia registar era, precisamente, a "Igreja Lusitana Católica Apostólica evangélica" e o governador civil desatendera a pretensão, por entender que "a associação em causa não revestia as características legais das associações religiosas".

16. O reconhecimento da personalidade jurídica das associações religiosas não católicas. - A disposição legal invocada pelo peticionário para obter o registo da associação era o artigo 450.° do Código Administrativo, cujo texto diz o seguinte:

As associações religiosas adquirem personalidade jurídica pelo acto de registo da participação escrita da sua constituição, apresentada na secretaria do governo civil do respectivo distrito.

Resta saber, porém, que entende a lei administrativa per associações religiosas para o efeito deste processo abreviado 72 de aquisição da personalidade jurídica.
Dizem-se associações religiosas, nos termos do artigo 449.° do mesmo Código, aquelas "que se constituírem com o fim principal da sustentação do culto, de harmonia com as normas da hierarquia e disciplina da religião a que pertencerem".
A definição está formulada, como justamente se observa no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, em termos que pressupõem uma distinção básica entre as associações religiosas, de um lado, e a religião 73 (ou a confissão religiosa) a que elas pertencem e a cujas normas a sua constituição se deve subordinar, do outro. E só às primeiras, aliás justificadamente", como se verá mais adiante, aproveita o processo abreviado de reconhecimento da personalidade jurídica, que a lei administrativa consagra.
Ora, no caso concreto que o Supremo Tribunal Administrativo foi chamado a decidir, era uma verdadeira confissão religiosa que o interessado pretendia registar, sendo os estatutos por ele apresentados que consignavam as normas da hierarquia e da disciplina por que a religião se haveria de reger.

17. O reconhecimento das próprias confissões religiosas. - Mas, perguntar-se-á, como se processa então o reconhecimento da personalidade jurídica das próprias confissões religiosas?
O problema não se levanta em relação à Igreja Católica, cuja personalidade jurídica se encontra directamente reconhecida, quer na Concordata, quer na Constituição Política. Mas tem já pleno cabimento quanto às outras religiões ou confissões, uma vez que elas nem sequer se encontram abrangidas na remissão genérica que o § único do artigo 449.° do Código Administrativo faz para o direito comum.
E a dificuldade não pode ser solucionada com a facilidade que poderia depreender-se dos termos da decisão do Supremo Tribunal Administrativo.
Diz, em resumo, o acórdão de 26 de Outubro de 1962 que a noção restrita de associação religiosa nada tem que ver com o princípio constitucional da liberdade de cultos e de religião, "pois o facto de certa associação ser, ou não, considerada religiosa de forma alguma vai afectar a liberdade da práticas religiosas que aquele princípio postula"; além disso, "tal princípio não implica o reconhecimento da personalidade jurídica às próprias igrejas, como resulta, aliás, da parte final do artigo 46.° da Constituição Política, e se afirmava já claramente no relatório do Decreto n.° 11 887, de 6 de Julho de 1926, ao escrever-se:

[...] não é, pois, às igrejas como tais que o Governo concede personalidade, mas às corporações e institutos encarregados de promover o culto".

Pode, é certo, sustentar-se que o princípio da liberdade de crenças e práticas religiosas, que o n.° 3.° do artigo 8.° da Constituição inclui entre os direitos invioláveis dos cidadãos portugueses, não conduz forçosamente a ideia da autonomização jurídica dos grupos de pessoas com a mesma crença ou com princípios afins em matéria

70 O trecho a que o texto se refere, extraído da comunicação feita ao País do dia 16 de Novembro de 1970, é o seguinte: "Com relativa frequência nos últimos tempos têm sido apresentados ao Governo requerimentos para a constituição de associações religiosas não católicas ou a abertura de templos de confissões diferentes.
Embora a Constituição assegure a liberdade de culto e de associação religiosa, tal matéria não está devidamente regulamentada para as confissões não católicas: e no estado actual da questão as autoridades ignoram mesmo quais sejam as confissões que exercem a sua actividade em Portugal, que princípios professam, quem as representa.
Foi, pois, a partir de casos concretos e de necessidades evidentes da administração pública que se impôs a necessidade de regulamentação, indo ao encontro, aliás, de princípios formulados na última assembleia conciliar da Igreja Católica."
71 Diário do Governo (apêndice n.° 173), de 10 de Julho de 1963.
72 Não tão abreviado, em todo o caso, como o consagrado no § único do mesmo artigo 450.° para as associações religiosas dia Igreja Católica: o reconhecimento da personalidade jurídica destas prescinde do acto de registo, bastando a participação feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou pelo seu legítimo representante, ao governador civil.
Ficam, no entanto, fora da letra do § único do (artigo 450.° do Código Administrativo, quer as associações religiosas católicas, cujo fim principal não seja ia sustentação do culto (como sucede com as pias uniões e ias ordens terceiras seculares), quer as associações ou fundações cuja instituição não pertença ao bispo da diocese, mas a outra autoridade (cf. Prof. Sebastião Cruz, est. cit.).
73 Diz-se intencionalmente religião ou confissão religiosa, e não igreja, porque nem todas as confissões adoptam a forma ou a designação de igreja (Prof. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8.ª ed., I, p. 374). A distinção entre a confissão religiosa e as associações nela integradas ou a ela pertencentes é corrente na doutrina e na jurisprudência italiana: cf. Foro Ital., 1958, I, col. 1778.

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de religião 74. Como certo é ainda que a parte final do artigo 46.° da Constituição não afirma o reconhecimento normativo da personalidade jurídica das associações não católicas: apenas consigna a possibilidade desse reconhecimento, dentro, por conseguinte, do regime próprio do reconhecimento por concessão.
Há, porém, duas considerações de peso que não podem deixar de ser tomadas em linha de conta no balanço que incumbe à Câmara levar a cabo.
A primeira é que a Constituição se não limita a garantir, ao lado da liberdade de crenças e de práticas religiosas (artigo 8.°, n.° 3.°), a liberdade de culto das confissões religiosas não católicas que actuam em território português; ela assegura também, no artigo 46.°, a liberdade de organização destas confissões.
Esta liberdade de organização abrangerá certamente, não apenas os núcleos de pessoas ou as massas de bens. que estruturam a própria religião ou confissão (constituídos pelos ministros, sacerdotes ou membros da organização confessional e pelos bens afectos ao culto), mas também as associações ou institutos que nesta se integram, embora estranhos à sue estrutura interna. E constituiria grave incoerência legislativa a solução de a estas últimas associações poder ser reconhecida personalidade jurídica, nos termos da parte final do artigo 46.° da Constituição, " igual possibilidade ser sistematicamente recusada quanto às primeiras, embora de maneira indirecta.
Em segundo lugar, desde que o reconhecimento da personalidade das associações religiosas não católicas está em última instância dependente do facto de a sua constituição se ter processado "de harmonia com as normas de hierarquia e disciplina da religião a que pertencerem", constituiria verdadeiro farisaismo jurídico 75 a atitude de recusar por sistema esse reconhecimento, com o fundamento de que as autoridades civis ignoram as normas de hierarquia e disciplina da respectiva religião, por não ser ao Estadão que compete reconhecer a personalidade jurídica destas religiões ou confissões religiosas.

18. O recurso às normas reguladoras do direito da associação. - E como sair então do círculo vicioso em que parece debater-se, no plano do direito constituído, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações religiosas não católicas? Como se há-de harmonizar a liberdade de organização assegurada pelo artigo 40.° da Constituição vigente com a ilação que a Auditoria Administrativa do Porto e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo fundadamente extraíram do disposto nos artigos 449.° e 450.° do Código Administrativo?
Uma vez assente que a Constituição, segundo a melhor interpretação do artigo 46.°, garante a possibilidade do reconhecimento da personalidade jurídica às confissões religiosas não católicas, o processo aplicável a esse reconhecimento, na falta de disposições especiais que o regulem, não pode deixar de ser o fixado no direito comum a propósito da liberdade de associação 76.
Ora, o regime jurídico da liberdade de associação, solenemente garantida no n.° 14.° do artigo 8.° da Constituição, está hoje definido no Decreto-Lei n.° 39 660, de 20 de Maio de 1954 e nos artigos 157.° e seguintes do Código Civil.
Dos preceitos do diploma de 1954 salienta-se aquele (artigo 2.°) que sujeita ao sistema do reconhecimento especifico, ou por concessão, a constituição e a existência jurídica das associações não subordinadas a lei ou regime especial.
Quanto a estas associações sujeitas ao direito comum, a sua constituição e a sua existência jurídica dependem da aprovação dos respectivos estatutos pelo governo civil do distrito da respectiva sede, ou pelo Ministro do Interior, quando o âmbito da actividade da associação exceda a área de um distrito.
Será este, por conseguinte, enquanto não houver legislação especial adequada, o regime aplicável ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões religiosas não católicas.
Há, todavia, no processo do reconhecimento deste tipo muito especial de associações ou corporações, um ponto importantíssimo a considerar, que exige mais demorada reflexão.
Sempre que se trata de formar uma sociedade comercial, ou mesmo de constituir uma pessoa colectiva de qualquer dos tipos previstos na lei civil, bastará, em princípio, para dar corpo ao novo ente jurídico, a declaração de vontade emitida pelos particulares no acto de constituição da sociedade ou da associação, ou no acto de instituição da fundação, e nos respectivos estatutos. Com análoga simplicidade se poderá processar, nesse aspecto, a criação de qualquer associação religiosa, integrada na Igreja Católica ou em qualquer outra confissão.
Quando, porém, o que está em causa, perante a autoridade civil, é o reconhecimento de uma confissão religiosa,

74 Contra o argumento referido no texto não faltará, por certo, quem obtempere que a liberdade de crenças e de práticas religiosas se não esgota naturalmente em simples atitudes do foro interno, nem sequer em puros actos externes de carácter individual.
Toda a confissão religiosa assenta sobre determinada concepção do Mundo e se projecta nas relações de cada indivíduo com o seu semelhante, nenhuma delas deixando de inscrever nos seus actos de culto as manifestações colectivas de adoração da divindade criadora. Este cunho acentuadamente comunitário da crença em Deus postula o reconhecimento da liberdade de associação, como um dos corolários mais importantes da liberdade religiosa.
Dir-se-á, em contrário, que os núcleos de pessoas irmanadas na mesma fé podem perfeitamente funcionar, no terreno especifico do direito, como meras associações (lícitas) de facto, com um regime jurídico semelhante ao das associações não reconhecidas ou das comissões especiais previstas e reguladas nos artigos 195.° e seguintes do Código Civil, não sendo forçoso que a lei lhes reconheça personalidade jurídica autónoma, distinta da que compete a cada um dos seus membros.
São, porém, sobejamente conhecidas as vantagens de vária ordem que a instituição das pessoas colectivas, pela duração da sua existência e pela natureza dos seus meios de acção, desfruta sobre a existência precária, dispersa e isolada das pessoas singulares, na prossecução permanente de interesses de carácter colectivo. Cf., além da obra clássica de Ferrara (Le persone giuridiche, incluída no Trattato de Vassali), Manuel de Andrade Teoria geral da relação jurídica, I, 1960, n.° 11.
75 De pecado análogo disseram alguns padres conciliares ser acusada a hierarquia católica, quando apelava para a liberdade religiosa nos países em que o catolicismo está em minoria, ao mesmo tempo que silenciava ou tentava iludir o mesmo princípio nos Estados de acentuada maioria católica.
76 Nesse sentido, o Prof. Marcello Caetano, ob. e vol. cite. p. 374, e Dr. Oliveira Lírio, est cit., p. 224.
Haverá possivelmente quem entenda que a aplicação das regras do direito comum ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões não católicas resulta da aplicação directa do texto do § único, que o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 31 386, de 14 de Julho de 1941, aditou ao artigo 449.° do Código Administrativo. Diz-se aí que as associações e organizações das igrejas não consideradas associações religiosas ficam sujeitas ao direito comum, quando pertençam a confissões diferentes da católica.
É, porém, muito duvidosa a validade deste entendimento.
As organizações das igrejas não são h mesma coisa que as próprias igrejas.
Depois, o confronto com a redacção dos artigos III e IV da Concordata sugere fortemente a ideia de que o Decreto-Lei n.° 31 386 usou o termo organizações, não na acepção de confissões religiosas, mas no sentido de associações, provavelmente de associações que não tenham como fim principal a sustentação do culto.

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mas basta, evidentemente, que dois ou mais particulares pretendam criar uma religião. Torna-se, pelo contrário, indispensável que a autoridade mande averiguar se existe, de facto, uma assembleia suficientemente numerosa de fiéis, devidamente organizada em torno de uma doutrina religiosa.
Para que se crie uma religião, e ela possa ser reconhecida como tal pelo Estado, é preciso que haja fiéis, que exista um corpo de doutrina em matéria confessional e que os crentes pratiquem os correspondentes actos de culto 77. Só a reunião destes três elementos, durante um período suficientemente longo (é Mortati quem afirma que a confissão religiosa necessita de ter atrás de si uma tradição), permitirá afirmar, com inteira propriedade, a existência de uma confissão religiosa.
Conceber as coisas em termos diferentes, como se para instituir uma religião bastasse redigir o articulado de uns estatutos e requerer a sua aprovação u autoridade civil competente, à semelhança de quem funda um clube desportivo na terra ou institui uma agremiação recreativa no bairro, equivale a cometer um erro crasso de qualificação das realidades.
Desvirtuar-se-ia o sentido real das palavras, diminuir-se-ia a dignidade do fenómeno religioso e correr-se-ia ainda o risco sério de deixar passar, embuçados sob a capa mística da inviolabilidade das crenças religiosas, os desígnios mais perigosos para a paz e tranquilidade públicas.

19. Apreciação da segunda razão justificativa do projecto. - Ora, a dificuldade que acaba de ser salientada quanto ao reconhecimento da personalidade jurídica das confissões não católicas necessita de ser especialmente ponderada na regulamentação da matéria, visto ela não encontrar a mais ligeira ressonância nos preceitos que definem, em tese geral, o regime jurídico do direito de associação.
E essa é, de facto, mais uma razão abonatória da iniciativa do Governo.
Dir-se-ia, porventura, que da situação de incerteza para as confissões não católicas, a que o projecto se refere, nenhuns prejuízos sérios advieram para o País, e que estes poderão, pelo contrário, levantar-se debaixo dos pés da Administração, minando a coesão social e a unidade moral da Nação, se o Governo facilitar a infiltração de factores capazes de perturbarem a paz religiosa de um povo que, até hoje, jamais conheceu dificuldades sérias nesse domínio.
Mas a essa reflexão de cunho acentuadamente pragmático não será difícil contrapor a afirmação de que o Estado só lucra em ser coerente consigo próprio, tanto na afirmação dos seus princípios, como na defesa efectiva dos valores que lhe incumbe acautelar.
Se a Constituição garante a liberdade de organização das confissões não católicas, importa assegurar a possibilidade de reconhecimento da sua personalidade jurídica, sem prejuízo dos princípios em que assenta a ordem moral, política e social do Estado. Se a lei administrativa (artigo 450.°) consagra a tese do reconhecimento das associações religiosas não católicas, mas subordina a aquisição da sua personalidade jurídica a observância das normas de hierarquia e disciplina da respectiva religião, há que proporcionar às autoridades o conhecimento oficial destas normas, sem que para tal se abdique do respeito devido à verdade das instituições.
Qualquer dos objectivos enunciados reclama neste momento a intervenção do legislador, dadas as dúvidas a que o direito vigente tem dado lugar e atentas as incertezas que, por certo, continuaria a levantar de futuro.
Assim se explica que, apesar de reconhecer a delicadeza da matéria e não ignorar os ponderosos inconvenientes de qualquer revisão legislativa nesta zona nevrálgica da consciência nacional, a Câmara reconheça a validade das razões invocadas pelo Governo para neste momento a levar a bom termo.

20. Sequência. - Falta saber, todavia, se o tema da questão religiosa deve ser revisto sob a simples perspectiva do princípio da inviolabilidade das crenças e da liberdade individual ide cultos, como aparentemente faz o projecto de proposta governamental, ou se o reexame do legislador ganharia em ser intencionalmente projectado sobre o quadro mais amplo da expressão do pensamento em matéria de religião, abrangendo ainda, em toda a plenitude, o vasto capítulo das relações do Estado com as diferentes confissões religiosas.
Três razões principais - duas, de carácter doutrinário; outra, de cunho acentuadamente prático - levam a Câmara a optar pelo segundo termo da alternativa.
Trata-se, em primeiro lugar, da orientação que melhor se coaduna com a dimensão natural do tema, quando observado através do prisma específico do Estado.
À tese da liberdade religiosa, quer dos indivíduos, quer das comunidades, pouco mais corresponde que uma atitude negativa do Estado, traduzida fundamentalmente na remoção de todos os obstáculos que possam impedir o livre exercício dos cultos. Examinada sob esse prisma a questão religiosa pouco mais seria do que uma pura faceta da liberdade do pensamento.
Assim se explica, além do mais, que o projecto tenha omitido a possibilidade de conflito entre a liberdade religiosa dos indivíduos e a autonomia interna das confissões ou associações religiosas, haja definido certos corolários da liberdade religiosa em termos que não se adaptam convenientemente ao seu real conteúdo e tenha encontrado, mesmo para a proclamação do regime de separação, fórmulas que não serão porventura as mais convenientes e adequadas.
Se o Estado quiser debruçar-se sobre a questão religiosa no intuito de proceder a uma reelaboração sistemática da matéria, encarando todos os aspectos que nela interessam às autoridades chis, não pode o legislador limitar-se à simples postura negativa do respeito pela liberdade de culto, que é um apenas entre os múltiplos

77 Em sentido paralelo, afirma Jemolo (Premesse..., p. 177) que, sem uma estrutura, um rudimento de organização, ter-se-á uma opinião, uma escola, uma tendência, não uma confissão religiosa.
Torna-se, por vezes, bastante difícil qualificar determinados movimentos, mormente aqueles que nos últimos tempos proliferaram no continente africano, pela mistura que neles se opera de aspirações de carácter político ou sócio-económico com elementos de natureza religiosa, sem ser possível determinar em alguns casos quais deles preponderam no espírito da organização. Cf. a desenvolvida e interessante notícia que destes movimentos nos dá o Prof. Silva Cunha, nos Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra, I, 1958, pp. 15 e segs.
Sobre os requisitos de uma verdadeira doutrina religiosa, veja-se ainda, em face das dúvidas que a questão tem suscitado na jurisprudência americana, Joseph Dodge, The free exercise of religions: a sociological approach, na Michigan Law Revieu. 67, pp. 691, 712 e segs.
"As confissões", escreve Gismondi (L'autonomia delle confessioni accatoliche, no Foro Ital., 1962, IV, cols. 100-101; cf., em sentido paralelo, Jemolo, Alcune considerazioni..., Diritto Ecclesiastico, 1931, pp. 73-81), "apresentam um carácter institucional, pela existência de uma comunidade permanente ligada pelo vínculo da fé comum e, além de uma organização, por um verdadeiro corpo de normas privativo (una vera e própria normazione).

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reflexos do fenómeno religioso na ordem social e moral dá colectividade 78.
Querendo realmente examinar a questão em todos os seus aspectos, a fim de traçar o novo regime jurídico que se propõe definir sobre um quadro sociológico autêntico da comunidade portuguesa, a nova lei não pode deixar de considerar, no esquema lógico da sua concepção, as relações do Estado com as diversas confissões religiosas, nem de consignar os deveres que tem paia com elas, no plano institucional em que tais deveres têm de ser inscritos 79. De contrário, limitando-se a enunciar o princípio da liberdade religiosa e a extrair dela bodos os corolários que a ideia comporta, numa atitude filosófico-jurídica de puro laicismo negativo 80, escapar-se-lhe-á inevitavelmente das mãos um elemento fundamental no regime jurídico da matéria, que é a posição especial da religião católica (mais do que da respectiva Igreja) dentro da comunidade portuguesa, com todo o rosário de consequências que ela arrasta consigo. Em lugar ide constituir um simples apêndice, presto o corpo da lei por uma ressalva inexpressiva das especialidades concernentes à Igreja, como sucede na economia do projecto em exame, a posição da religião católica deve ser considerada parte integrante do seu articulado, membro vital do novo corpo de doutrina legislativa, porque é, uma visão autêntica da comunidade, peca fundamental de todo o sistema.
E assim se chega à segunda razão que pesa no juízo da Câmara.
Estando o princípio da liberdade de cultos ha muito tempo radicado, embora com visíveis imperfeições 81, no solo das leis pátrias, e tendo a Igreja Católica recuperado através da Concordata a liberdade de movimentos e os meios de acção indispensáveis ao exercício do seu pesado múnus espiritual em face da comunidade portuguesa, não faltaria quem observasse que o efeito prático mais saliente da publicação do novo diploma legislativo sobre a liberdade religiosa, à escala dimensionai em que o projecto da proposta foi concebido, era afinal o da eliminação dos obstáculos que a administração tem levantado ao reconhecimento das confissões não católicas e à expansão das associações nelas integradas, a despeito da roupagem mais ampla com que a ideia aparece vestida no seu articulado legal.
Essa insinuação, além de diminuir em certo sentido a iniciativa do Governo, poderia ferir legítimas susceptibilidades em sectores respeitáveis de opinião e criar certas reservas em muitos espíritos, gerando em torno do diploma um ambiente que não é o mais propício às rectas intenções que determinaram a sua concepção.
A orientação proposta parece ser, por fim, a que melhor se coaduna com o espírito da Constituição vigente, em cujo texto se encontram exarados os princípios básico de ordem jurídica estabelecida.
Todos sabem que a realidade fundamental sobre a ou assenta toda a construção político-jurídica do diploma constitucional em vigor é a Nação - a Nação portuguesa como realidade sociológica e entidade moral distinta de indivíduos que em cada momento histórico a compõem 82.
Ora, a ideia de definir todo o regime jurídico da religião à luz apenas de um princípio que. respeita fundamentalmente aos indivíduos, deixando bastante na sombra ¦> comunidade nacional, com os sulcos profundos que n pensamento religioso rasga nas várias regiões do organismo social, não se julga ser a que melhor corresponde ao espírito do diploma básico do Estado.
É, por consequência, no amplo contexto das relações do Estado com a religião que o tema da liberdade de cultos vai ser apreciado na generalidade, antes de se passar ao exame na especialidade Idos vários preceitos que integram o projecto.

§ 2.°

Enquadramento sistemático do princípio da liberdade religiosa no contexto das relações do Estado com as diversas confissões.

21. A inserção lógica do princípio da liberdade religiosa na ordem jurídica civil. - Assente que o regime jurídico do fenómeno religioso deve abarcar todas as relações do Estado com as diversas confissões no plano da comunidade nacional, em lugar de se limitar à simples prospecção da liberdade religiosa no subsolo dos direitos, liberdades ou garantias individuais, resta saber por onde principiar, que aspectos cumpre distinguir no amplo contexto daquelas relações e como articular entre si estes diferentes aspectos da matéria.
Ora, todas as razões lógicas e axiológicas pertinentes ao tema ordenam que a fixação do regime jurídico em causa parta efectivamente do princípio da liberdade religiosa 83.
E esse, de acordo com o ensinamento da própria doutrina católica, o valor fundamental que à legislação civil incumbe respeitar. E sobre a liberdade individual que assenta a integração das pessoas nas diversas confissões existentes, e é sobre a mesma grandeza que se estrutura a constituição e o funcionamento de algumas delas.
A exortação fundamental que o Concílio Vaticano II dirige aos governantes do mundo inteiro, na Declaração Dignitatis Huvianee, visa exactamente a obter que os homens sejam imunes de toda a coacção (quer da parte das pessoas particulares, quer de grupos sociais ou de qualquer poder humano) - nemo impediatur, nemo cogatur -, para que possam, de um modo adequado a sua natureza, cumprir a obrigação moral de procurarem a verdade, de aderirem à verdade encontrada e de ordenarem toda a sua vida de acordo com as exigências dessa verdade, descoberta ou revelada.

78 Em sentido paralelo escreve Bertola (apud Catalano, Il diritto di liberta religiosa, 1957, nota 200): "Les règles relatives aux rapports entre l'Etat et les institutions religieuses et celles qui concernent la garantie de la liberte religieuse et les droits liés à celle-ci ne doivent pas être considérées séparément, mais envisagées comme se liant et se conditionnant réciproquement."
79 A lei espanhola sobre a liberdade religiosa (lei de 28 de Junho de 1967), embora se destine especialmente a regular a constituição e funcionamento das confissões e associações religiosas não católicas, não deixa de proclamar, logo no seu capítulo introdutório, ao lado do direito à liberdade religiosa, concebido segundo a doutrina católica, o princípio da confessionalidade do Estado, consagrado nas suas leis fundamentais.
80 Ou, como diria Orio Giacchi (Lo Stato e la liberta religiosa, nos Études d'histoire du droit canonique, I, 1965, p. 565), de liberalismo separatista ou de agnosticismo do Estado - tudo expressões em larga medida sinónimas, destinadas a traduzir o mesmo pensamento.
81 Susceptíveis de correcção, mediante simples regulamentação da lei administrativa.
82 Cf. o relatório que precedeu a publicação do projecto da Constituição de 1933, inserto nos jornais de 28 de Maio de 1932; Oliveira Salazar. Discursos, I, p. 77; Prof. Marcelo Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.ª ed. n.° 257.
83 Assim fez a própria lei espanhola de 28 de Junho de 1967, a despeito do relevo que nela se pretendeu conceder à afirmação da confessionalidade do Estado. "Em primeiro lugar", observa a propósito Corral Salvador ("El ordenamento jurídico español de libertad religiosa", na Revista de estúdios políticos, n.° 158, p. 88), "proclama-se com toda a nitidez o direito civil à liberdade religiosa, que se reconhece na esfera tanto individual como comunitária, em público e em particular, no plano centrípeto e no centrífugo."

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CAPITULO I

A liberdade religiosa

22. Sentido e alcance do princípio para a Igreja Católico. - A este valor básico da liberdade das consciências, numa visão axiológica do fenómeno religioso, se ajusta tanto o facto de a Constituição proclamar a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas (artigo 8.°, n.° 3), antes de tratai das relações do Estado com as diferentes confissões religiosas (artigos 45.° a 48.°) como a própria circunstância de, na sua proposta de alteração da lei constitucional, o Governo alterar a ordem das matérias versadas nos artigos 45.° e 46.°, antepondo à definição da posição especial da religião católica apostólica romana a tese da liberdade de culto e de organização das diferentes confissões religiosas.
Note-se, porém, que a coincidência dos pontos de vista do Estado e da Igreja sobre a posição sistemática do princípio da liberdade religiosa não significa que esta liberdade tenha o mesmo sentido e alcance para ambas as instituições.
A Igreja Católica, sem abdicar da sua doutrina quanto à verdadeira religião e a única Igreja de Cristo 84, associa ao direito (civil) à liberdade religiosa o imperativo ético de cada um procurar a verdade e de por ela pautar a sua vida, na profunda convicção de que essa livre indagação conduza o homem ao verdadeiro caminho da sua salvação 85.
Pelo nexo teleológico que une as duas realidades em presença, dir-se-á que a liberdade civil individual, em lugar de constituir um fim autónomo ou um fim em si mesma, não passa de um simples meio ou instrumento, conquanto meio inderrogável, para o exacto cumprimento do dever moral transcendente que recai sobre todos os seres racionais 86.
"A liberdade religiosa é, no dizer do arcebispo Botero Salazar (Rev. e loc. cits.), o direito da pessoa humana ao livre exercício da religião, em conformidade com as exigências da consciência."
São muitos, porém, os homens que em todo o percurso da sua existência não chegam a procurar as verdades capazes de servirem de autêntico fundamento à vida humana. Uns limitam-se a receber passivamente a herança das práticas do culto, que os seus maiores lhes legaram; outros refugiam-se habitualmente numa atitude de cómodo indiferentismo, resistindo à tentação de se debruçarem sobre problemas que a razão formula a cada passo, mas de cujo exame pressentem que algumas inibições menos agradáveis lhes poderiam advir; enquanto a maior parte só cogita vagamente em tais questões, muito de longe em longe, nos grandes momentos que assaltam a consciência individual, por mais alheia que ela seja às reflexões sobre o sentido da existência e as relações do ser humano com o Universo.
Como quer que seja, a Igreja Católica entende que a concessão da liberdade religiosa não pode, de modo nenhum, constituir privilégio de quem mostre querer efectivamente usá-la para alcançar o fim a que ela se encontra funcionalmente adstrita. Há que manter permanentemente abertas, até ao último sopro de cada vida, as portas através das quais os indivíduos podem alcançar a suprema bem-aventurança. A liberdade individual ó, nesse aspecto, inerente à própria natureza do homem. Não se trata de uma concessão da lei, proveniente do arranjo social dos cidadãos, mas de uma propriedade do espírito humano, fundada no destino transcendente das criaturas.
Não se pode, aliás, descurar a contribuição que o princípio da liberdade religiosa ó capaz de assegurar ao aperfeiçoamento da doutrina e da moral cristã, sobretudo numa época em que, como diz um autorizado pensador, os leigos deixaram de ser meros "objectos num sanatório clerical para a cura das almas" e são chamados pela hierarquia a uma colaboração cada vez mais activa e responsável.

23. Sentido e alcance do principio para o Estado. São diferentes as coordenadas espirituais que definem a posição da matéria na carta jurídica do Estado. Ao poder temporal ó de algum modo estranho o dever moral da procura da verdade com que a Igreja sublima o ideal político da liberdade religiosa, bem como o dever de conformação da vida de cada um com os ditames da verdade a que o seu espírito tenha aderido, para além do chamado mínimo ético exigido pela própria ordem jurídica. Às autoridades civis já não incumbe apontar o verdadeiro caminho que conduz a Deus, nem afirmar qual seja a autêntica igreja de Cristo.
A liberdade que as pessoas e as confissões religiosas exigem da sociedade civil traduz-se na imunidade de toda a coacção em matéria de religião, para que os homens sejam, inclusivamente, livres de seguir ou não seguir os preceitos que lhes dita a própria consciência 87; e essa exigência interessa ao Estado sob um duplo aspecto: como colorário relevante da liberdade das pessoas e das corporações e como meio importante de contribuir para o bem-estar e felicidade temporal dos indivíduos.
No primeiro aspecto, incumbe ao Estado assegurar a liberdade de crenças e de práticas religiosas, bem como a liberdade de organização das várias confissões, dentro dos limites impostos pelos valores (individuais ou sociais) que ao direito cumpre acautelar. No segundo aspecto, haverá mesmo que facilitar, na medida do possível, o cumprimento dos deveres impostos aos indivíduos pela sua religião.
Esta será a atitude de espírito própria do Estado que, sem fazer profissão de fé, não ignora nem subestima

84 "A defesa da liberdade religiosa", diz a Dignitatis Humanae, "deixa Integra a doutrina tradicional católica sobre o dever moral dos homens e das sociedades para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo
85 Tanto esta convicção, como a tese fundamental sobre a validade eterna da missão confiada aos apóstolos, afastam da recente doutrina conciliar relativa aos irmãos separados toda e qualquer mancha de relativismo moral, de indiferentismo confessional ou de pessimismo diletante. Cf., a propósito, a Instrución pastoral sobre la libertad religiosa, do ascebispo T. Botero Salazar, na Universidad Pontifícia Bolivariana, 1965, p. 173. O que há, porventura, de novo e original nessa doutrina é a acentuação dos elementos de verdade e de santificação que podem encontrar-se disseminados pelas demais confissões e que sempre tornam incomparavelmente mais valiosa a sincera adesão a elas do que o materialismo ateu. Cf. Constituição Dogmática sobre a Igreja (in Vaticano II, Documentos conciliares, 2.ª ed.), n.ºs 15 e 16; Dr. Quelhas Bigote, est. cit., pp. 295 e segs.
86 "Ante a vocação cristã, devidamente entendida", escreve o Dr. Quelhas Bigote (est cit., p. 297) em termos bastante sugestivos, "não há opção moral livre, embora exista física e sociológica. Deus faz-nos livres não para que façamos o que nos dê na gana, mas para cumprir livremente o nosso dever."
87 Quer isto dizer que a liberdade religiosa é, para o Estado, um conceito essencialmente jurídico, de cunho aoentuadamente prático, e não um conceito filosófico, como o livre pensamento, ou um conceito teológico, como a liberdade eclesiástica: Ruffini, La liberta religiosa, I, 1901, p. 5. A diferente posição da Igreja e da sociedade civil em face da criatura humana e da sua liberdade em matéria de religião está descrita com bastante nitidez na declaração do cardeal Journet sobre o tema da liberdade religiosa, por ocasião do debate conciliar (Razon y Fe, 172, pp. 341-342).

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a importância do factor religioso na vida das pessoas, das instituições e da colectividade em geral.
Muito distanciado deste se situou o pensamento com que o Estado concebeu e arquitectou, em 1911, todo o articulado da Lei da Separação.
Não foi, como se viu, a ideia de assegurar o livre exercício do culto ou a livre organização das confissões que determinou a proclamação da liberdade religiosa nesse diploma. O pensamento sobre o qual parece assentar, no fundo, quase todo o dispositivo da lei é o de que a religião constituía uma forma de opressão do povo, não passando a Igreja Católica de uma força reaccionária que à Revolução cumpria combater, para facilitar o progresso do País 88.
A esta concepção positivista, presa aos ideais burgueses da Revolução, repugnava naturalmente que fossem imobilizados pelas congregações religiosas muitos braços de homens e mulheres, que poderiam ter ocupação mais produtiva para a colectividade, ou que estivessem afectados à sustentação do culto valiosos bens susceptíveis de uma aplicação muito mais consentânea com as necessidades económicas do País.
Assim se explica que a lei se mostrasse realmente bastante mais interessada em despojar a Igreja dos seu bens, em impedir a criação dias ordens ou associações religiosas, e até em dificultar a propagação da fé, do que empenhada em assegurar & liberdade religiosa num território como o da metrópole, onde, constituindo os fiéis da Igreja de Roma mais de 90 por cento da população, não faltava à religião católica, sem embargo dos abusos cometidos por um ou outro membro do clero, a liberdade essencial à difusão e aperfeiçoamento dos seus princípios 89.

24. Objecto da liberdade religiosa. - Outro foi já o sentido com que a Constituição de 1933 proclamou, e manteve após a celebração da Concordata de 1940, a liberdade de crenças e práticas religiosas (artigo 8.°, n.° 3.°). Pretendeu-se que as pessoas estivessem realmente imunes de qualquer coacção na procura das suas relações com a divindade, por se conhecer o valor fundamental que a liberdade de consciência assume para as crenças religiosas.
O Estado deixou de hostilizar a Igreja Católica e passou a reconhecer o valor singular que a religião tem na vida dos indivíduos e da própria colectividade.
Não quer isto dizer, porém, que o Estado tenha caído no polo oposto ao do laicismo, a ponto de se poder afirmar, com Origone 90, que o direito de liberdade religiosa tenha por objecto o bem jurídico da fé.
A questão do objecto da liberdade religiosa (não confundir com o seu conteúdo) tem sido discutida, com algum interesse prático, principalmente a propósito do ateiem activo 91.
O ateísmo activo, como o próprio nome indica, consiste na propaganda da ideia de que Deus mão existe e do que são, consequentemente, falsas todas as doutrinas que partem da crença oposta.
Abrangerá a liberdade religiosa, que as leis constitucionais e ordinárias garantem aos cidadãos, o próprio ateísmo activo?
Para quem entenda que a liberdade religiosa tem por fim a protecção da fé dos indivíduos, o ateísmo activo parece ser uma atitude ilícita, na medida em que constitui um atentado à (religiosidade dos crentes e a todos os valores em que ela se consubstancia 92 e 93.
Para quem, pelo contrário, considere a liberdade religiosa como a faculdade de as pessoas, sem coacções nem pressões de qualquer natureza, embora dentro dos limites impostos por lei, afirmarem a sua personalidade em matéria de religião 94, o ateísmo constitui uma das formas possíveis de 'expressão do pensamento, e a difusão da ideia (inclusivamente na educação ministrada aos filhos) 95 um corolário lógico da liberdade que a lei concede aos indivíduos.

25. A liberdade religiosa e a simples tolerância relativa a algumas confissões. - O princípio da liberdade religiosa, nos termos abertos em que o recomenda a Declaração Conciliar de 7 de Dezembro de 1965, distingue-se do regime da simples tolerância, em que passaram a viver algumas confissões após o adoento do liberalismo, sobretudo nos Estados de tipo confessional.
Era de simples tolerância o regime em que viveram entre nós no território metropolitano, durante o período que medeia entre a revolução liberal e a entrada em vigor da Lei da Separação, as confissões não católicas 96.

88 E bastante representativo da mentalidade da época o livro de Eurico de Seabra, A Igreja, as Congregações e a República, 1914: cf., especialmente, o capítulo X "O ensino da Igreja", que constitui, da primeira à última página, um libelo cerrado contra a Igreja Católica e a influência deletéria que ela exercia no País.
89 A liberdade religiosa significava, no fundo, para as concepções políticas vigentes na época, a emancipação do espírito humano em face de todos os preconceitos dogmáticos de carácter confessional. Os heréticos, os cismáticos, os apóstatas, os cépticos, os livres-pensadores, os espríts forts eram, como justamente observa Ruffini (La liberta religiosa, I, Storia del Videa, 1901, p. 1), os campeões e os mártires da liberdade religiosa, tomada nesse sentido amplo e ao mesmo tempo unilateral, sendo seus equivalentes, em certa medida, o iluminismo, o deísmo, o racionalismo, o voltaireanismo, o naturalismo e o materialismo.
A liberdade religosa é, para esta noção de cariz positivista, não um fim (o de garantir uma igualdade de direitos entre crentes e não crentes), mas apenas o meio de conseguir a eliminação das bases em que assentavam as crenças religiosas.
90 Apud. G. Catalano, Il diritto di liberta religiosa, 1957, pp. 4 e segs.
91 Há em Itália, onde as questões do objecto e do conteúdo do direito da liberdade religiosa têm sido largamente debatidas entre os autores, uma vasta e rica bibliografia sobre o nosso tema. Boa parte dessa literatura encontra-se citada nas monografias de Fedele, Ruffini, Jemolo e Catalano, fontes a que este parecer recorre a cada passo. Em Espanha, a questão do objecto da liberdade religiosa foi também posta frontalmente, com toda a acuidade, por Joaquim Lopez de Prado, "Derecho humano y cristiano a la libertad religiosa", na Rev. esp. der. can., 21, especialmente pp. 248 e segs.
92 Atentado particularmente grave, acrescentam alguns autores, quando a propaganda do ateísmo se exerce junto das pessoas jovens. Há, como se sabe, inúmeros casos de conversão: pessoas declaradamente incrédulas que são iluminadas pela fé a partir de certo momento da sua vida. Essas conversões raras vezes, porém, se dão nas pessoas cuja fé foi logo destruída na sua infância.
93 Dir-se-á ser esta, aparentemente, a orientação consagrada pela Constituição dos Estados Unidos, ao definir o direito de liberdade religiosa como "o direito de cada um adorar a Deus segundo as indicações da própria consciência".
94 Para estes autores, as normas relativas à liberdade religiosa visam tutelar, não o bem jurídico da religião, mas uma das possíveis manifestações da liberdade humana: G. Catalano, ob. cit., p. 5.
Nesse sentido, W. Bigiavi ("Ateísmo", no Novíssimo Digesto Italiano), que refuta a tese de Origone no próprio plano do direito italiano constituído, citando, na mesma linha de orientação, entre outros, Balladore-Pallieri, professor da Universidade Católica de Milão.
95 O problema tem sido bastante discutido na jurisprudência italiana, a propósito da questão de saber a quem deve o tribunal preferir, na entrega dos filhos menores, quando um dos pais desavindos é crente e o outro ateu. Vide infra, n.° 30 e ainda W. Bigiavi, est. cit., n.° 1.
96 De simples tolerância era também o regime aplicável às confissões não católicas em Itália até à entrada em vigor da Constituição de 1947, sobretudo por força da legislação publicada em 1929 e 1930.
Cf., a propósito, Sinopoli, "La legge sui culti ammeasi in rapporto alla costituzione e alla legge di pubblica sicurezza", na Riv. trim. dir. pubblico, 1952, pp. 344 e segs.

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Não se admitia, quanto a elas, a liberdade de culto público; e o próprio culto particular ou doméstico apenas era reservado aos cidadãos estrangeiros.
Em situação análoga viveram essas confissões em Espanha, até a entrada em vigor da recente lei sobre a liberdade religiosa (Lei de 28 de Junho de 1967). No relatório europeu vigorava o artigo 6.° do Foro dos Espanhóis, segundo o qual "ninguém será perseguido por motivo das suas crenças religiosas no exercício particular do culto. Não serão permitidas outras cerimónias externas que não sejam, as da religião católica". Nos territórios de oportuna espanhola em África havia uma situação de facto, que era de tolerância, mesmo quanto ao culto exterino, das confissões não católicas. Embora não houvesse nenhum preceito de carácter constitucional sobre a matéria, não deixou de fazer-se alusão a essa situação no texto da Concordata de 27 de Agosto de 1953, celebrada entre a Santa Sé e o Governo Espanhol. "No que se refere à tolerância dos cultos não católicos, nos territórios de soberania espanhola em África", dizia o Protocolo ao artigo 1.°, "continuará em vigor o statu quo observado até agora."
A liberdade religiosa distingue-se do regime da mera tolerância, pelo menos em dois aspectos fundamentais 97: por um lado, garante-se com ela a liberdade de culto, tanto particular como público, a todas as confissões religiosas reconhecidas e não apenas a uma delas; por outro, admite-se a liberdade de organização das diferentes comissões, embora possa variar o processo de reconhecimento da personalidade jurídica das associações nelas integrados.

26. A liberdade religiosa e a igualdade de regime jurídico aplicável às diferentes confissões. - Não pode, com. efeito, considerar-se essencial ao princípio da liberdade religiosa, sobretudo na perspectiva histórica da sua evolução, a igualdade de regime aplicável às diferentes confissões.
Trata-se de conceitos absolutamente distintos. Uma coisa é a liberdade religiosa e a igualdade dos cidadãos perante a lei, seja qual for o seu credo, que se referem a eliminação de toda a coacção em matéria de religião e constituem o mínimo igualmente exigível do Estado por todas as confissões reconhecidas. Outra coisa é o conjunto de providências que, excedendo o mínimo de tutela exigível por todas em obediência ao princípio da imunidade da coacção, se consideram aplicáveis apenas a algumas delas 98.
Assim se compreendo que a Alemanha Ocidental, por exemplo, onde a influência do catolicismo e do luteranismo não encontra termo de comparação junto das outras confissões, considere a Igreja Católica e a Igreja Evangélica como corporações de direito público, enquanto as outras, de muito menor projecção na vida social germânica, têm o estatuto de simples associações de carácter privado.
No que toca à religião caítólica apostólica romana, o tratamento especial de que ela goza em alguns estados europeus e sul-americanos (cf., no que respeita à Argentina, a nota informativa dada por J. Alberto Soggin, La liberta di culto nella Repubblica Argentina negli ultimi anni, in Il dir. ecclesiastico, 1963, pp. 49 e segs.) justifica-se por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, a Igreja Católica assenta sobre uma organização jurídica que conta muitos séculos de existência 99. Os camonistas, a quem se deve em muitos pontos uma contribuição notável para o aperfeiçoamento do próprio direito civil, souberam condensar e sistematizar, primeiro em compilações de textos, depois em codificações de preceitos (normativos, os princípios fundamentais aplicáveis às matérias em que a Igreja se arroga, jurisdição. Todo o movimento associativo do catolicismo, aperfeiçoado ao longo dos séculos pelo saber e a experiência dos pontífices e doutores da Igreja, encontra no Codex Júris Cantinici (tal como anteriormente no Corpus Júris Ganonici) a sua completa e minuciosa regulamentação.
Esta lenta e conhecida sedimentação de princípios com uma notória vocação (ecuménica fornece naturalmente aos diferentes Estados uma base jurídica mais sólida de apoio do que a facultada pelas outras confissões religiosas, algumas das quais se insurgem mesmo, como é sabido, contra o assento jurídico da organização eclesial romana. Assim se compreende que o reconhecimento da personalidade jurídica das associações católicas possa ser mais facilitado do que o das associações integradas em confissões diferentes: que, no primeiro caso, possa, nomeadamente, vigorar o sistema do reconhecimento normativo, e, no segundo, o regime do reconhecimento por concessão.
E, mais ainda do que isso: a existência de um ordenamento jurídico canónico, dotado de autonomia, permite regular as relações entre o Estado e a Igreja Católica por via de pactos, convenções ou concordatas, como os celebrados entre Estados (G. Olivero, Sui contatti fra i Protocolli lateranensi e la Costituzione, no Foro ital., 1962, IV, col. 75), enquanto as relações com os cultos não católicos têm de ser disciplinadas por acto de autoridade estadual, no plano da legislação interna.
Em segundo lugar, não só as raízes cristãs da comunidade nacional, como a formação católica da quase totalidade da população de alguns dos estados europeus 100 e sul-americanos, criam em vários sectores da vida social um condicionalismo especial que ao Estado de nenhum modo é lícito ignorar.
É elucidativo o exemplo da instrução pública.

97 Em regra, o regime de tolerância caracteriza-se ainda pelo caracter confessional do Estado que o consagra. Há uma religião oficial (religião do Estado, religião dominante), mas o Estado admite (tolera), em termos mais ou menos apertados, o culto de outras confissões.
98 Vale a pena transcrever as passagens incisivas do trecho de Ruffini (apud Pio Fedele, La liberta religiosa, 1963, p. 76), que, não obstante a reconhecida autoridade do escritor, deu lugar a uma acesa polémica com Scaduto: "Falar, porém, de igualdade, ou mesmo de equivalência, é simplesmente ridículo em relação àqueles países do continente europeu - a Itália, por exemplo - em que as várias confissões não católicas não chegam a recrutar senão uns escassos milhares de adeptos, desagregados e disperses, em face dos compactos milhões de fiéis da igreja católica. Em tais circunstâncias, a ideia de pôr em prática uma perfeita paridade ou igualdade de tratamento jurídico significaria necessariamente que o Estado devia, em homenagem a puras abstracções ou teorias, ignorar a realidade concreta dos factos." E mais adiante: "Há uma paridade em sentido falso, que é a da igualdade absoluta, abstracta, matemática, e uma paridade no sentido justo, que é a da igualdade relativa, concreta, jurídica: pois, como justamente escreve Kahl, o verdadeiro princípio da paridade não é a cada um o mesmo, mas a cada um o que lhe pertence." Sobre o valor dos argumentos invocados pelos dois autores, cf. a explanação do próprio Pio Fedele, ob. cit., pp. 78 e segs.
99 J. Maldonado, Curso de derecho canónico para juristas civiles, 1967, pp. 27 e segs.; António Garcia y Garcia, História dei derecho canónico, 1, 1967, pp. 11 e segs.; D. Teodoro A. Marcos, Instituciones de derecho canónico, I, 1940, pp. 35 e segs.; P. Ferreres, Instituciones canónicas, 5.ª ed., I, 1934, pp. 20 e segs.; Sinopoli, est. cit., n.° 9.
100 Informa Corral Salvador ("El ordenamiento...", na Rev. de Est. Políticos, 158, p. 88) que foi apenas de 35 000 o número de espanhóis que declararam pertencer a confissões religiosas diferentes da católica.
Na Itália, calculava-se em 1955 que andaria à volta de 190 000 o número de não católicos, distribuídos por quarenta e oito confissões religiosas (cf. Pio Fedele, ob. cit., p. 59, nota 25).

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Se o Estado, no intuito de encontrar o denominador comum aos filhos de famílias com diferente formação, que podem frequentar os seus estabelecimentos escolares, imprimisse ao ensino oficial uma feição neutral em matéria de religião, como fazia, aliás, a nossa Constituição de 1933 na primitiva versão do § 3.° do artigo 43.°, não faltaria apenas a um imperativo da consciência nacional, como violaria um estrito dever de justiça.
Para completar a educação dos filhos, a grande maioria dos pais ver-se-ia forçada a integrar o ensino oficial com o recurso ao ensino particular, ou a substituir, pura e simplesmente, um pelo outro, somando no passivo do orçamento familiar à contribuição imposta para sustento do primeiro os pesados encargos do segundo. Como a maior parte deles estaria materialmente impossibilitada de o fazer, os filhos acabariam por receber, contra a vontade dos pais, uma educação diferente da que estes, principais contribuintes do fisco, quereriam que lhes fosse ministrada.
Na qualidade de principal responsável pela medida, o Estado não só sacrificaria a vontade da esmagadora maioria das famílias, como se demitiria de um dos seus mais altos deveres em face dos supremos interesses da Nação.
E o raciocínio desenvolvido a propósito do ensino colhe de algum modo, feitas as necessárias adaptações, em relação a tudo quanto respeita à constituição e defesa da família, à fixação dos dias feriados, ao estabelecimento do descanso semanal, à fiscalização dos espectáculos, à repressão da literatura licenciosa, à formação da opinião pública, especialmente através da rádio e da televisão oficiais, e a tantos outros aspectos da intervenção do Estado na vida dos particulares 101.
Não faltará quem alegue, no que respeita ainda ao caso particular, mas especialmente significativo, do ensino oficial, que é perfeitamente dispensável a referência confessional aos princípios da doutrina e moral cristãs, uma vez que esses princípios, no que têm de essenciais à formação moral dos jovens, são comuns ao cristianismo e a outras tábuas de valores, de carácter não confessional 102.
Mas não parece difícil refutar a objecção.
Começa por mão haver perfeita identidade entre os princípios da doutrina e moral cristãs, pelos quais a nossa Constituição manda pautar as virtudes morais dos jovens educandos, (c) os ditames da 'moral positiva aceites por outros sistemas.
Depois, também há boa diferença emocional entre os valores morais enraizados no húmus vivificante da fé cristã e as proposições éticas de igual expressão verbal, frouxamente ancoradas no porto inseguro da razão humana. E a distinção não pode ser indiferente às entidades responsáveis pela formação moral das novas gerações.
As considerações precedentes resumem-se na afirmação de que os vários cultos praticados em cada Estado podem ter, e assumem, de facto, na generalidade dos casos, uma repercussão muito diferente, como valores sociais, como ideias-força efectivas, na vida da respectiva comunidade populacional.
Trata-se de uma realidade sociológica incontestável, com reflexos de vária ordem no ordenamento jurídico colectivo que o Estado (mesmo não confessional) não deve nem pode ignorar no exercício das suas atribuições.
Essencial, segundo as concepções dos novos tempos, é que o Estado, ao atender a esse condicionalismo especial não negue aos particulares nem às confissões minoritárias' dentro dos limites gerais impostos pela ordem pública, a liberdade religiosa de que necessitam nem a igualdade dos cidadãos perante a lei, tal como o princípio deve ser entendido 103. "Quando o Estado, escreve Buffini, tiver garantido a todas as confissões a plena liberdade de culto, terá dado tudo quanto dele se pode exigir em matéria de liberdade religiosa."

27. Conteúdo da liberdade religiosa: A) Considerações de ordem geral. - Mas qual ó o conteúdo preciso da liberdade religiosa?
Não se torna fácil responder à pergunta formulada.
São muitos os corolários que os autores extraem do princípio da liberdade em matéria de religião e variadas as faculdades que as leis dos diferentes países, à sombra dela, outorgam concretamente às pessoas.
E, apesar disso, há sempre aspectos que escapam, tanto ao exame da doutrina como à previsão do legislador. Não falta, aliás, quem entenda (na sequência de uma concepção muito divulgada entre os constitucionalistas acerca da génese e conceito das liberdades fundamentais dos indivíduos) que o direito da liberdade religiosa tem por conteúdo, não as diversas faculdades em que a doutrina positivamente o desdobra, mas a omissão, por parte das autoridades, de todas as acções que possam contrariar o exercício da livre actuação das pessoas.
Contra essa concepção, porém, o menos que pode dizer-se é que ela enferma de um vício semelhante àquele de que padece, no campo do direito civil, a teoria obrigacionista ou personalista dos direitos reais.
Tal como esta, toda debruçada sobre o lado externo das relações reais, se não dá conta dos poderes fundamentais que caracterizam cada direito tipificado, através da ligação do titular com a res, também da concepção negativa dos direitos de liberdade, aplicada ao nosso tema, se pode

101 Assim se compreende ainda, atento o valor social muito particular que a religião católica constitui no seio da comunidade, que as associações católicas gozem de determinados benefícios fiscais não concedidos a outras confissões, que os ministros do culto católico prestem o serviço militar em condições especiais (cf. artigo XIV da Concordata), que o Estado nomeie ou contrate sacerdotes desse culto para a prestação de assistência religiosa às forças armadas ou em estabelecimentos hospitalares, penitenciários ou de reeducação, etc.
102 Cf., a propósito, a caracterização que A. Cario Jemolo (Premesse ai rapporti tra chiesa e stato, 1965, p. 13) faz do contraste entre a posição do Estado e da Igreja nos tempos modernos: "E este o contraste: entre 103 Em sentido diferente do exposto no texto, Jemolo (est. cit., n.° 7), por entender que, na prática, a ideia do tratamento especial de qualquer confissão acaba por afectar o princípio da liberdade religiosa. "Sempre que há uma religião com posição dominante em face das outras, e a consciência pública entende que ela deve ter um tratamento de que as outras não devem gozar - concessão de autonomia, falta de fiscalização estadual, prerrogativas concedidas aos seus ministros, subsídios por parte do Estado - são possíveis retornos ofensivos, senão contra a liberdade religiosa das minorias, pelo monos contra a igualdade política concedida aos seus membros."
No mesmo sentido, porém, da doutrina do texto, o seguinte trecho da Declaração Conciliar: "Se, atendendo a circunstâncias peculiares dos povos, uma comunidade religiosa for especialmente reconhecida na ordenação jurídica da sociedade, é, ao mesmo tempo, necessário que se reconheça a todos os cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa e que tal direito seja respeitado."

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dizer com Cicala 104, que ela tem o grave defeito de olhar Apenas a sombra e não captar a luz que dá vida ao fenómeno jurídico da liberdade religiosa.
Isso não significa, porém, que não seja de facto muito difícil, se não praticamente impossível, proceder a uma "numeração exaustiva de todas as faculdades compreendidas no âmbito da liberdade religiosa. E nem sequer se considera empresa fácil a tarefa de sistematizá-las, pois estão longe de ser isentas de reparo as classificações geralmente usadas nos compêndios doutrinários.
O direito civil à liberdade religiosa, diz, por exemplo, Corral Salvador 105, é reconhecido, tanto na esfera individual como comunitária, tanto em público como em particular, quer no plano centrípeto, quer no plano centrífugo.
Mas nada custa verificar que logo a distinção capital entre as faculdades reconhecidas no plano individual e as outorgadas no plano social está longe de estabelecer uma divisória rígida entre os vários poderes contidos no direito da liberdade religiosa.
A liberdade de culto, por exemplo, tanto se aplica às pessoas singulares como às confissões. A liberdade de propaganda ou de difusão das ideias religiosas tanto aproveita aos indivíduos como às associações em que eles se integram, o mesmo se podendo dizer da liberdade de expressão e de tantas outras faculdades análogas 106.
E não surpreende, aliás, que assim seja.
A religião é um fenómeno a um tempo individual e social. Quem julga possuir a verdade, desejará naturalmente comunicá-la aos outros. Quem presta culto à divindade, esforçar-se-á por que outros o façam juntamente com ele. As confissões religiosas impõem, no geral, deveres de solidariedade entre os homens como condição essencial para a salvação de cada um deles.
Daí que, contra a ideia de que a religião ó um fenómeno de natureza íntima e espiritual, parte integrante do momento individual da vida humana, Catalano 107 tenha replicado certeiramente que "toda a religião se traduz numa deontologia humana e tem sempre importantes repercussões na vida social".
Nestas condições, o exame do conteúdo da liberdade religiosa, em lugar de ter o objectivo ambicioso de esgotar todas as faculdades nela compreendidas (num número indeterminado de faculdades diz Catalano 108 que consiste o seu exercício) e de ser levado a cabo com a preocupação doutrinária de ordenar estas faculdades segundo critérios de boa lógica formal, haverá de contentar-se com a finalidade mais modesta de salientar, sem pruridos de sistematização científica, os aspectos mais importantes do direito que interessa disciplinar.

28. B) Liberdade de crenças. - Ora, entre as manifestações da liberdade religiosa expressamente contempladas nos sistemas jurídicos modernos, salientam-se a liberdade de crenças 109 (liberdade de consciência, de fé ou de confissão lhe chama Rufini 110), a liberdade de reunião e a liberdade de associação 111.
A liberdade de crenças consiste, fundamentalmente, na liberdade de pensamento em matéria, de religião, embora no seu regime se salientem muitas vezes certas notas negativas que mão afloram na disciplina da expressão do pensam emito em geral.
Concretamente, esta liberdade traduz-se, além do mais, na faculdade de a pessoa, sem incorrer em qualquer sanção civil, ter ou não ter uma religião; aderir a uma confissão existente ou possuir convicções puramente pessoais; deixar de ter religião (tornando-se ateu) ou mudar de confissão religiosa (faculdade expressamente mencionada no artigo 18.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948); praticar ou abster-se de praticar os actos recomendados por qualquer confissão ou realizar actos condenados pela religião que professa.
Já se viu, a propósito da articulação do ateísmo com a ideia da liberdade religiosa, que esta não consiste apenas na faculdade de aderir a qualquer confissão existente ou de criar uma religião própria, pois compreende também, como afirma Catalano 112, a possibilidade de mão ter nenhuma regra religiosa, de tê-la e não a observar, de mudar de regra ou perdê-la. "A liberdade religiosa", acrescenta Pio Fedele 113, "não toma partido nem pela fé nem pela descrença, nem pela ortodoxia, nem pela heterodoxia 114."
No pólo oposto ao dos poderes em que se consubstancia a liberdade de crenças de cada indivíduo situa-se o dever genérico do Estado e das outras pessoas de, além do mais, não criarem obstáculos ao livre exercício dela e de não forçarem a conduta de quem quer que seja.

104 Corso di diritto costituzionale. Le pubbliche libertà nel diritto costituzionale moderno, 1933, p. 125 (apud G. Catalano, ob. cit., p. 40). Encontra-se, aliás, bastante acentuada, nos autores que mais atentamente se têm debruçado sobre o tema, a nota de que a liberdade religiosa não envolve um simples dever de prestação negativa para o principal sujeito passivo da relação, que é o Estado. "O Estado não cumpre, diz por exemplo Corral Salvador {Rev. esp. der. can., 1967, p. 641), pelo simples facto de garantir negativamente a liberdade; é indispensável possibilitá-la, como frequentes vezes o afirmou o Conselho de Estado de uma nação em regime de separação, e até laica, a França. Tais situações apresentam-se no serviço militar, nos hospitais e nas prisões." Em sentido análogo, S. Berlingó, L'indisponibilità del diritto di liberta religiosa, in II Dir. eccles., 1966, p. 6. Exemplo bastante expressivo deste dever activo de colaboração do Estado oferece-o a Alemanha, não só permitindo às confissões religiosas o lançamento de um imposto sobre os fiéis para sustentação do culto (Kirchensteuer), mas fazendo ainda a sua liquidação e cobrança por intermédio dos serviços oficiais.
105 Est. cit., na Rev. est. pol., n.° 158, p. 88.
106 Haja em vista o que se escreve na própria Declaração Conciliar (n.° 4): "A liberdade ou imunidade de coacção em matéria religiosa, que compete a cada pessoa individualmente, também lhe deve ser reconhecida, quando actua em comum, pois as comunidades religiosas são exigidas pela natureza social, tanto do homem como da religião."
107 Ob. cit., p. 20.
108 Ob. cit., p. 60.
109 É o nome técnico (liberdade... de crenças e práticas religiosas) que lhe dá a Constituição.
110 Ob. cit., p. 12. Varia bastante de constituição para constituição o nome dado ao direito de liberdade religiosa, na faceta que o texto salienta. As designações que predominam são as de liberdade de consciência e liberdade de cultos (Cf. Pio Fedele, ob. cit., p. 85).
111 É a liberdade de reunião e associação que alude o n.° 14.° do artigo 8.° da Constituição. Fá-lo, porém, em termos amplos, enquanto o projecto de proposta governamental se refere ao direito de reunião e ao direito de constituição de associações [alíneas i) e j) da base II], no domínio restrito da actividade religiosa.
112 Ob. cit., pp. 8 e 9. Aceitando embora o pensamento kantiano de que no domínio ético a liberdade não consiste numa arbitrária deambulação da vontade pelo campo indeterminado do possível, porque a vontade só é livre quando sujeita à lei moral, Catalano repele essa ideia quanto à noção jurídica de liberdade, por entender que esta (liberdade jurídica) só existe quando, precisamente, se garanta o arbitrário deambular (il vagare arbitrário) da vontade no campo do jùridicamente possível.
113 La liberta religiosa, 1963, p. 1.
114 Não se confunda, no entanto, esta atitude da lei com o laicismo, o agnosticismo ou o indiferentismo do Estado.
Por um lado, o garantia legal da liberdade religiosa exprime o reconhecimento positivo do valor da liberdade de consciência na realização dos fins próprios da religião.
Por outro lado, a consagração da liberdade religiosa, em termos que aproveitam igualmente a todas as confissões, não obsta, como se viu, a que o Estado possa conceder um tratamento especial a qualquer delas, em atenção à posição particular que esta ocupe no âmbito da comunidade nacional.

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Este dever jurídico contraposto à liberdade de crenças pode revestir vários aspectos, que no geral se deixam reconduzir à ideia de que ninguém deve ser coagido ou submetido a pressões ilícitas em 'matéria de opções religiosas.
No próprio texto da Constituição se enumeram três categorias de abstenções ou omissões exigíveis do Estado, em obediência à liberdade de crenças:

a) A impossibilidade de alguém ser perseguido por causa das suas crenças - disposição que, historicamente, se explica como termo do período de intolerância religiosa, que entre mós vigorou até à época do liberalismo;
b) O dever de não se privar, quem quer que seja, de um direito, por causa das suas convicções religiosas 115;
c) A impossibilidade de se ser isento de qualquer obrigação ou dever cívico, com base nas mesmas convicções - preceito que tem real interesse prático quanto ao cumprimento dos deveres militares, pagamento ide impostos, prestação de juramento, -etc., a que algumas confissões pretendem subtrair os seus membros.

A propósito da liberdade de crenças já se tem afirmado que, não interessando ao direito senão os factos externos da vida dos indivíduos, ela se traduziria, afinal, sobre o plano jurídico, numa liberdade de expressão do pensamento. Proclamar numa lei a liberdade natural da consciência (olhando apenas ao lado interno do fenómeno) seria, por isso mesmo, no dizer de um autor, tão ridículo como proclamar a liberdade de circulação do sangue dentro do organismo humano 115.
Apesar de sugestiva, a observação não é inteiramente exacta.
Por um lado, quando a lei garante (cf. o artigo 8.°, n.° 3.°, da nossa Constituição) a inviolabilidade das crenças religiosas, pretende-se tutelar o pensamento das pessoas em matéria de religião, antes mesmo de "Ias haverem manifestado exteriormente as suas convicções.
Sabe-se como nos períodos de perseguição e de intolerância, religiosa as pessoas eram coagidas a declarar as suas convicções e com que facilidade as autoridades procediam a inquirições ou devassas nesse sentido. A inviolabilidade dias crenças, que algumas legislações proclamam em termos explícitos, visa exactamente a defesa das pessoas contra a extorsão de declarações ou confissões em matéria de religião ou contra quaisquer devassas da autoridade pública no mesmo domínio.
A Declaração Conciliar (n.° 3) começa precisamente por salientar o aspecto inicial da liberdade de crenças quando afirma que "o exercício da religião, por sua própria índole, consiste, primeiro que tudo, em actos internos voluntários e livres, pelos quais o homem se directamente para Deus; e actos deste género não podem ser impostos nem impedidos por um poder meramente humano".
Por outro lado, não se ignora que a integração das pessoas em certa confissão religiosa, um pouco à semelhança do que sucede com a nacionalidade ou a pertinência a determinada raça, se pode fazer muitas vezes independência de qualquer manifestação da sua vontade e até dos pais nesse sentido. O simples nascimento pode marcar a incorporação da pessoa em certa confissão 117 e a protecção da Uberdade religiosa há-de naturalmente estender-se às pessoas nessas condições.
Por último, não deixa de ter algum fundamento a observação feita por Dicey, quando afirma que a supressão ou a limitação da liberdade de expressão acaba por atingir a própria liberdade de pensamento.
Por todas estas (razões nos parece preferível não confinar explicitamente a liberdade de crenças à livre manifestação do pensamento iam matéria de (religião, embora se saiba que é este, realmente, o núcleo fundamental do seu conteúdo.

29. I) A liberdade de crenças, a autonomia e o magistério das confissões religiosas. - Como ajustar a liberdade de consciência, nos termos amplos em que as legislações modernas e a Igreja Católica hoje a concebem, cem a autoridade, o magistério e o poder disciplinar que se arrogam as diversas confissões, segundo o princípio da liberdade da sua organização 118?
Como conciliar, por exemplo, a faculdade que a lei civil reconheça aos nubentes de optarem livremente pela celebração do pensamento civil ou do casamento religioso com a possibilidade de a Igreja impor sanções aos fiéis que se decidam pela primeira alternativa, sabendo-se de antemão que a cominação destas penas espirituais é capaz de exercer uma influência ponderosa na decisão dos crente??
Ou como solucionar o conflito latente entre a legislação civil, que pretenda garantir a plena liberdade dos eleitores na realização de certa votação, e as instruções dadas pelos dirigentes de qualquer confissão religiosa, para que os fiéis não votem em certos candidatos hostis a essa confissão?
Poderá o Estado proteger os crentes contra os abusos dos ministros do culto ou contra as sanções da hierarquia respectiva?
A questão tom sido muito debatida na Itália, a propósito das normas legais incriminadoras dos ministros do culto que, no exercício das suas atribuições, forcem os eleitores a apresentar certas listas de candidaturas, a votar ou deixar de votar em determinadas listas ou candidaturas, ou a abster-se de votar.
Apesar da existência destes normais e de ser notória em algumas eleições dos últimos anos, a intervenção do oleiro no sentido de os fiéis não votarem em determinadas

115 Neste preceito se pode inserir a questão, já largamente ventilada em Itália, de saber como deve ser feita a regulação do poder paternal, no caso de não haver acordo entre os pais e de um deles ser crente e o outro não.
O artigo 94.° da nossa Organização Tutelar de Menores manda resolver o dissídio de harmonia com os interesses do menor. A luz deste critério, o facto de um dos cônjuges ser crente e o outro ateu não constituirá, por si só, motivo de preferência na entrega do filho. Já assim não será, se o pai crente tiver melhor formação moral e der melhores garantias quanto à educação do filho, ou se for de presumir, pela formação religiosa do próprio filho, que este teria um grande choque e sofreria seriamente com a entrega ao pai descrente.
Há ma lei civil portuguesa uma outra disposição que, de algum modo, se relaciona com o pensamento expresso na lei constitucional, embora o transcenda. Trata-se na norma (artigo 2232.° do Código Civil) que considera contrárias à lei - e, como tais, não escritas (artigo 2230.°, n.° 2) - as condições restritivas da liberdade (nomeadamente da liberdade religiosa) apostas a disposições testamentórias; cf., quanto às doações, o disposto no artigo 967.°
116 Cf. Pio Fédele, ob. cit., p. 15.
117 Haja em vista o princípio cuius regio eius religio propugnado pelos protestantes nos domínios do império germânico do período das lutas religiosas (Dr. António Leite, A Proposta de Lei sobre a Liberdade Religiosa, 1970, p. 6).
118 Quanto à forma de conciliar o magistério da Igreja Católica com a liberdade religiosa, à luz do texto da própria Dignitatu Humanae, veja-se o interessante artigo de Tomás Barberena sobre "Magistério eclesiástico y libertad religiosa", na Rev. esp. dercan., 1967, pp. 533 e segs.

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lista - as do partido comunista ou de partidos com este coligados -, a verdade é que a justiça italiana tem arquivado as denúncias dessa intervenção, com o aplauso, diz Jemolo (Premesse..., p. 188), não só dos católicos, mas também dos anticlericais, sinceramente amanti di libertà.
Abstraindo dos aspectos particulares do direito constituído italiano e das vicissitudes internas da sua aplicação prática, duas conclusões fundamentais importa extrair da simples leitura dos factos.
Em primeiro lugar, há que contar, na apreciação e julgamento das relações entre os fiéis e a respectiva organização, não apenas com a liberdade religiosa individual, mas também com a autonomia e a disciplina interior da confissão.
Desde que o Estado garante, como lhe cumpre, a liberdade de organização das várias confissões, há que rebitar o poder disciplinar e a estrutura hierárquica, inerentes a essa organização, assim se explicando, aliás, a reacção de algumas confissões religiosas contra a intromissão do próprio Estado nas nomeações para cargos na hierarquia daquelas.
O Estado violaria tal liberdade de organização, comprometendo a autonomia, interna da confissão, se viesse a intrometer-se na questão de saber quando é que legitimamente podem ser recusados os sacramentos, retiradas as ordens ou dispensados os votos, denegado o funeral religioso, aplicada a pena de excomunhão, etc.
Em segundo lugar, assim como a jurisdição disciplinar das confissões só compreende, em princípio 119, sanções de carácter espiritual, também o seu podar de magistério se estende apenas às matarias de opção religiosa.
A dificuldade maior provém, neste ponto, de a mesma opção poder ser considerada matéria de religião (interessando a salvação espiritual dos crentes) pela Igreja Católica ou por outras confissões, e tema de predominante interesse temporal pela sociedade civil.
Assim tem acontecido em Itália, como vimos, com a intervenção dos cidadãos em certos actos eleitorais: enquanto o Estado vê no indivíduo o eleitor, cuja liberdade de determinação importa garantir no interesse geral da colectividade, a Igreja contempla os fiéis, cuja actuação espiritual lhe incumbe esclarecer e orientar, em ordem à salvação da sua alma.
Tratando-se de dois ordenamentos jurídicos primários, autónomos e independentes entre si, como no caso do Estado e da Igreja Católica, nenhum, deles terá de se subordinar ao outro 120, sendo os acordos bilaterais o meio naturalmente indicado, em princípio, para a criteriosa resolução de problemas dessa índole.

30. II) A liberdade de crenças e a autoridade familiar (poder paternal ou tutela.). - Outro factor cuja conciliação com a liberdade individual de crenças e práticas religiosas importa examinar ó a autoridade familiar.
São o poder paternal e, subsidiariamente, a tutela que suprem a incapacidade fundada na menoridade.
Mais, porém, do que uma autêntica incapacidade (que atinja especialmente a aptidão natural de determinadas pessoas), a menoridade assume a configuração de um estádio preparatório da capacidade plena, que todos os indivíduos percorrem a caminho da maioridade.
Por isso mesmo, no poder paternal, tal como na tutela relativa aos menores, avulta mais o dever de educar os filhos ou os pupilos do que a função de suprimento da sua falta de aptidão.

Os pais - diz-se na Declaração Conciliar sobre a educação cristã -, pelo facto de terem dado a vida aos filhos, assumem a gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, devem ser considerados como os primeiros e principais educadores deles.

Esta tarefa de preparação para a vida cessa juridicamente, segundo a doutrina comum das legislações, no preciso momento em que o menor é emancipado ou alcança a maioridade.
Na prática, porém, o acesso dos menores à plena regência da sua pessoa e dos seus bens não se realiza bruscamente, em determinado momento da sua evolução física e intelectual; opera-se graduamente, à medida que a sua capacidade natural se vai afirmando e os pais a vão reconhecendo.
Foi esta, precisamente, a orientação maleável ou flexível, adaptável às circunstâncias de cada caso, a que o novo Código Civil pretendeu dar expressão jurídica adequada em vários aspectos do regime jurídico da menoridade: a) no domínio da capacidade (negociai, ao afirmar, no artigo 127.°, que são excepcionalmente válidos, além de outros previstos na lei, os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor que, estando ao alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas, ou disposições de bens, de pequena importância; b) ao reconhecer a validade de certos actos de administração ou de disposição de bens, praticados pelo menor que viva sobre si com permissão dos pais ou realizados nas demais condições previstas nas alíneas a) e c) do n.° 1 do mesmo artigo; c) ao admitir, além da emancipação plena, a chamada emancipação restrita (artigo 136.° do Código Civil); etc.
Ora, o fenómeno que os autores descrevem em relação à capacidade jurídica do menor verifica-se igualmente, com maior intensidade talvez, na evolução geralmente operada com a sua educação religiosa. Logo que atingem a fase plena da adolescência, são muitos os menores que iludem as diligências dos pais nesse capítulo, quando não capricham em se afastar delas ostensivamente. Admitir a lei que os menores adquiram plena capacidade neste domínio antes de alcançarem a maioridade seria uma solução, não só de acerto muito discutível, mas perfeitamente inútil 121, porquanto as dificuldades suscitadas pelo conflito com os progenitores se resolvem, na generalidade dos casos, sem necessidade da intervenção do Estado.
Mas só fechando também os olhos à realidade, e desprezando por completo a lição que, por analogia, se colhe da directriz traçada no artigo 127.° do Código Civil,

119 Nada impedirá, de facto, que, além das sanções comuns Ocultadas pela legislação civil (rescisão de contrato com os porteiros, empregados, sacristães, etc., que, por virtude da perda da fé, de mudança de crença ou do seu fraco comportamento religioso, se mostre inconveniente para a confissão manter no princípio do cargo), a organização aplique aos fiéis ou aos próprios ministros do culto infractores sanções de carácter temporal, dentro dos seus meios legítimos de actuação (v. g., perda de direito a benefícios concedidos por caixas privativas de aposentação).
120 Nada impede, por isso, que o Estado puna criminalmente, por exemplo, certos actos ou omissões recomendados pela confissão religiosa a que o responsável pertence: pais que deixam morrer o filho sem lhe prestarem assistência médica, porque a doutrina das "Testemunhas de Cristo" proíbe aos seus adeptos que prestem aos doentes qualquer espécie de cura humana; mancebos que fogem à prestação do serviço militar, porque a confissão obstinada das "Testemunhas de Jeová" condena toda a forma de violência; pais que não autorizam a transfusão de sangue a Paz de salvar a vida do filho, porque a sua confissão religiosa a tal se opõe; etc.
121 Também neste ponto se poderá dizer, com Jemolo (Premesse..., p. 195), que "qui puré ci sono limiti che indica il buon senso prima ancora del diritto".

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se poderia admitir que a rebeldia do adolescente à educação religiosa que o pai pretende ministrar-lhe pudesse servir, por si só, de fundamento legal à decretação de qualquer das medidas previstas nos artigos 17.° e 18.° da Organização Tutelar de Menores 122.

Um outro problema pode suscitar ainda a educação religiosa dos filhos, nas suas atinências funcionais com o poder paternal: o do possível dissídio entre pai e mãe, quanto à orientação a dar a essa educação 123.
Entre nós, no plano estritamente jurídico, nenhuma razão válida subsiste para não aplicarmos a esta matéria todos os princípios que integram o regime do poder paternal.
"Compete a ambos os pais", diz o n.° 1 do artigo 1879.º do Código Civil, "a guarda e regência dos filhos menores não emancipados com o fim de os defender, educar e alimentar."
Nas disposições subsequentes, além de se atribuir expressamente ao pai a chefia da família, definem-se os poderes especiais de cada um dos progenitores, dizendo-se concretamente, no que toca à mãe, que lhe compete ser ouvida e participar em tudo o que diga respeito aos interesses do filho € velar pela sua integridade física e moral.
Da leitura destes preceitos conclui-se que a educação dos filhos (sem exceptuar a sua formação religiosa, que é peça fundamental do sistema) cabe conjuntamente a ambos os pais. Se, não obstante a colaboração que a lei reclama de ambos, houver uma divergência irredutível entre eles neste domínio, prevalecerá a orientação do pai (quer ele seja crente, quer não seja), como chefe da família. A ele competirá assim, em última instância, decidir se o filho há-de ou não ser educado religiosamente e escolher a religião em que ele deva ser educado.
Sabe-se qual foi o objectivo que preponderou no espírito da lei civil ao consagrar semelhante opção.
Perante o dilema de respeitar o princípio formal da igualdade dos cônjuges, sacrificando em larga medida a paz da família ao mais ligeiro dissídio entre os pais, ou defender a intimidade e a paz do núcleo familiar, com prejuízo daquele princípio, preferiu-se decididamente a segunda alternativa. E as razões que justificam a solução no tocante à defesa e alimentação do menor colhem, com igual força, relativamente à sua educação.

31. III) A liberdade de crenças, a liberdade de culto e a liberdade de propaganda. - Os autores e as legislações distinguem muitas vezes entre a liberdade de crenças ou de consciência e a liberdade de culto.
A primeira consistiria na possibilidade de as pessoas professarem quaisquer ideias em matéria de religião, sem nenhumas limitações ou restrições por parte da autoridade civil. A segunda traduzir-se-ia, por seu turno, na possibilidade de adorar a Deus ou prestar veneração à divindade, em termos paralelos.
Já no Edicto de Milão de 313 se teria distinguido, quanto aos cristãos, entre a faculdade sequendi religionem quani quisque vult e a faculdade colendi religionem suam.
Para quem acompanhar o penoso e acidentado percurso da ideia da liberdade religiosa nos vários países do Ocidente, a distinção entre a Uberdade de consciência e a liberdade de culto terá incontestável justificação histórica, na medida em que algumas vicissitudes especiais desse processo (nomeadamente a destrinça entre o culto privado e o culto público, na época em que as novas ideias começam a despontar sobre a cerrada intolerância do período anterior) interessam particularmente a esta última.
Hoje, porém, que as leis dos vários Estados consagram abertamente, em termos amplos, o direito da liberdade religiosa, a liberdade de culto não passa, conceitualmente, de uma simples faceta da Uberdade de crenças ou de consciência.
A distinção entre uma e outra não constitui senão um resíduo histórico de certa evolução, que temos de considerar ultrapassado em face da real dimensão dos preceitos da legislação vigente.
Pela mesma razão se pode considerar històricamente explicável, mas logicamente desnecessária perante a nova substância que os conceitos adquiriram na doutrina moderna, a distinção verbal que a Constituição Portuguesa faz entre a liberdade de crenças e a Uberdade de práticas religiosas, sabido que nestas práticas religiosas se incluem, principalmente, os actos de culto.
A liberdade de crenças, ou a liberdade de consciência, como várias constituições estrangeiras lhe chamam, compreende, naturalmente, a liberdade de culto, por ser a adoração colectiva da divindade uma das formas - quiçá a forma por excelência - de as pessoas manifestarem, por actos e por palavras, os seus sentimentos religiosos.

Considerações até certo ponto análogas aproveitam à chamada liberdade de propagandam, visto a difusão das convicções em matéria de religião representar um complemento natural da sua força emocional ao serviço dos sentimentos de solidariedade humana e constituir, por vezes, um imperativo da própria confissão religiosa.
Sabe-se, porém, como tem sido especialmente moroso o polimento legislativo desta faceta do princípio da liberdade religiosa e lenta a evolução da liberdade de propaganda das confissões não católicas nos países de mais forte tradição católica, (tal como tem sido gravemente coarctada a pregação do cristianismo nos Estados de ideologia marxista.
Decerto pelos aspectos particularmente delicados que esta liberdade envolve, a generalidade das constituições modernas não faz menção expressa dela.
Exceptuam-se a Constituição Grega de 1928 [que, não obstante proclamar a liberdade de consciência e a Uberdade de cultos, proíbe o proselitismo (artigo 1.°)], a Constituição Russa de 1936 [que expressamente consigna, ao lado da liberdade de exercitar o culto religioso, a liberdade de propaganda anti-religiosa (artigo 124.°)] e a Constituição Italiana de 1947 [onde se afirma apertis ver-

122 Cf., em sentido paralelo ao desenvolvido no texto, as judiciosas considerações de Jemolo, ob. cit., p. 194.
123 Quanto aos critérios a observar ma regulação (judicial) do poder paternal (no que nomeadamente se refere a entrega do menor), quando um dos país seja crente e o outro não, v. supra, p. 41, e ainda Jemolo, ob. cit., pp. 198 e 199; Bigiavi, "Ateísmo e affidamento delia prole", na Riv. trim. dir. proc. civ., 1950, pp. 534 e segs. Cf. L. Spinelli, "Educazione religiosa della prole e contrasto tra genitori", no Archivo giuridico, 1964, p. 46; Allorio, "Ateísmo ed educazione dei figli", na Giurisp. Ital., 1949, parte I, secção II, cols. 11 e segs., e "L'ateo educatore", na mesma revista, IV, cols. 83 e segs.
124 A expressão "liberdade de propaganda", usada por muitos autores, pode considerar-se um pouco agressiva para a sensibilidade dos crentes, dado o sentido um tanto pejorativo que a difusão desregrada das convicções políticas emprestou ao termo "propaganda".
Outros prefeririam, por isso mesmo, chamar-lhe liberdade de doutrinação, de predicação ou pregação.

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bis que todos têm direito de fazer propaganda da própria fé religiosa (artigo 19.°)]. Na Itália, onde a questão foi debatida antes da entrada em vigor desta Constituição, houve quem sustentasse que, a despeito de ser plenamente livre, em face da lei vigente, a discussão em matéria religiosa, o não era a liberdade de propaganda.
O pensamento que estava na base desta diversidade de regime era, fundamentalmente, o de que a discussão das ideias assenta no exame racional dos argumentos que as apoiam, enquanto a propaganda não desdenha mobilizar todo o arsenal de artifícios com que a astúcia do homem é capaz de explorar os instintos primários do seu semelhante.
Mas também não faltou quem visse nesta argumentação, menos a preocupação isenta de defender a dignidade do pensamento confessional (nomeadamente da doutrina católica), do que a intenção profana de acautelar as instituições então vigentes em Itália - o fascismo - ou a unidade política da nação, perante as manobras contra elas desencadeadas a coberto da liberdade religiosa 125.
Pode, na verdade, aceitar-se que alguma diferença substancial exista entre a discussão e a propaganda das ideias. Simplesmente, desde que a religião, como todos os sistemas ideológicos, apela a cada momento, não só para a razão, mas, sobretudo, para a intuição e a fé das pessoas, essenciais à aceitação dos seus dogmas, não é possível, sem manifesta violação do princípio da liberdade religiosa, tomado nos termos amplos em que o reconhecem as legislações modernas, amputar a predicação em tais domínios de todos os elementos que falam mais aos sentimentos do que ao raciocínio dos homens.
Há, todavia, limites a esta actividade, limites impostos pela moral pública, pelos bons costumes, e até pelo respeito devido às convicções religiosas alheias, que não podem ser excedidos sem se cair no domínio da ilicitude.
É a legislação de cada Estado que compete definir concretamente esses limites.
No mesmo sentido se exprime afinal a Declaração Conciliar, quando afirma textualmente (n.º 4) que "as comunidades religiosas têm ainda o direito de não serem impedidas de ensinar ou de professar publicamente a sua fé, por palavra e por escrito. Mas na divulgação da fé e na introdução de costumes há que abster-se sempre de todo o género de actos que possam saber a coacção ou a persuasão desonesta ou menos recta, principalmente quando se trata de pessoas rudes ou necessitadas.
Tal modo de agir deve considerar-se como um abuso do direito próprio e uma lesão do direito alheio".

32. C) Liberdade de reunião. - Outra das manifestações essenciais da liberdade religiosa é a liberdade de reunião, ou seja, a facilidade de as pessoas se juntarem no mesmo local, quer para a celebração colectiva de actos de culto, quer para a realização comunitária de outros fins próprios das confissões religiosas.
Trata-se de uma exigência natural do espírito humano, fundada no carácter eminentemente social da religião: no legítimo desejo da adoração da divindade pelo maior número, na necessidade de comunicação dos tesouros da fé e das conquistas da inteligência no caminho da verdade, e ainda na realização dos valores especificamente incorporados em cada confissão.
As dificuldades especiais que ao Estado pode criar a liberdade de reunião neste domínio provêm de duas ordens de razões: primeiro, da possibilidade de, a coberto dos fins religiosos, as pessoas se reunirem para a prossecução de outras finalidades, eventualmente reprimidas por lei 126; depois, dos excessos a que pode conduzir o fanatismo dos crentes, excessos que naturalmente se agravam com a exacerbação de paixões a que são mais atreitas as multidões do que os indivíduos isolados.
O primeiro risco pode naturalmente ser eliminado ou atenuado pela índole dos actos que congregam as pessoas ou pela natureza do local onde se reúnem.
Tratando-se de actos de culto, por exemplo, celebrados nos templos, ou de ritos fúnebres praticados nos cemitérios, não se justificarão, em princípio, nenhumas medidas especiais de prevenção quanto à sua realização.
Tratando-se, porém, de outras espécies de actos que os interessados pretendam realizar em locais diferentes dos assinalados, já se compreende que as autoridades civis possam adoptar providências especiais de carácter preventivo.
As duas providências recomendadas pela experiência aos Estados que, reconhecendo a liberdade de reunião, não abdicam das funções preventivas que lhes cabem na defesa dos interesses da comunidade, são a autorização ou a mera participação (ou pré-aviso). No primeiro caso, a reunião fica dependente do consentimento manifestado pela entidade oficial incumbida de julgar da sua conveniência ou de apreciar a sua oportunidade; no segundo, a legalidade da reunião contenta-se com a comunicação da sua realização, para que as autoridades possam, se for caso disso, averiguar da sua conveniência ou tomar as medidas de polícia adequadas.
Quanto aos riscos dos excessos provenientes do fanatismo religioso, nada justifica, em princípio, que por causa dele se adoptem diligências preventivas que excedam as medidas de polícia normalmente usadas para defesa da ordem e segurança públicas.

33. D) Liberdade de associação. - Muito diferente da simples reunião é a liberdade de associação, que constitui outro dos corolários típicos da liberdade religiosa.
A reunião é a mera junção de pessoas, que pode bem ter carácter puramente acidental e destinar-se à satisfação de meros interesses individuais.
Quem se reúne para ouvir uma lição, para presenciar um espectáculo ou mesmo para participar numa cerimónia litúrgica não se associa propriamente com os outros ouvintes, espectadores ou participantes no acto.
A associação envolve a ideia de que as pessoas põem alguma coisa (os seus bens ou a sua actividade) em comum, com carácter permanente, para prossecução de um fim colectivo.
A faculdade de associação constitui um instrumento fundamental da liberdade religiosa, considerando que esta tem por objecto a utilidade que para cada indivíduo reveste a afirmação da sua personalidade no campo da religião 127.
E que todas as confissões religiosas exigem dos crentes a realização de tarefas que, por excederem em vários aspectos os estreitos Limites da capacidade individual, só

125 Pio Pedele, ob. cit., pp. 38 e segs. A defesa da fé católica seria usada, segundo este autor, mais como instrumentum regni do que como escudo da fé dos crentes. Cf., em sentido análogo, G. Olivero, Sui contatti fra i Protocolli lateranensi e la Costituzione, no Foro Ital., 1962, IV, p. 74.
126 O artigo 17.° da Constituição Italiana garante a liberdade de reunião em locais particulares ou abertos ao público, mas não em lugares públicos.
127 Catalano, ob. cit, n. 13.

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podem ser levadas a cabo mediante a congregação duradoura deles ao serviço de objectivos comuns 128.
E reveste mesmo uma importância fundamental para a maior segurança de muitos dos fins específicos da religião a atribuição de personalidade jurídica às associações dos fiéis, independentemente da personalidade dos indivíduos que em cada momento as compõem. Apoiada na capacidade pessoal dos seus membros dispersos, a actuação das associações estaria sempre limitada pela duração efémera da vida humana e sujeita aos riscos da dedicação pessoal e da situação patrimonial dos "eus sequazes. Dotada de personalidade própria, liberta dos elementos precários da personalidade singular dos seus membros, a associação pode evitar aquelas contingências, assegurando à sua actuação a estabilidade jurídica, a força patrimonial e a duração temporal mais consentâneas com os fins específicos da actividade religiosa.
Este reconhecimento da personalidade jurídica pode ser directo ou indirecto: no primeiro caso, a lei confere imediatamente a determinada associação ou instituto a possibilidade de ser titular autónomo de direitos e obrigações; no segundo caso, a lei limita-se a fixar, em termos genéricos, os pressupostos de que depende a aquisição da personalidade.
Dentro do sistema comum do reconhecimento indirecto há, porém, que distinguir, como os tratadistas ensinam, duas modalidades diferentes: o reconhecimento normativo e o reconhecimento por concessão. Num caso, o reconhecimento dá-se logo que a associação ou fundação preenche os requisitos abstractamente fixados na lei; no outro, o reconhecimento depende da aprovação ou aquiescência da entidade oficial competente, depois da apreciação das circunstâncias concretas de cada caso.
O regime da liberdade de associação, por se tratar do sector da liberdade religiosa onde se põe com maior acuidade a questão dos seus limites, varia bastante de Estado para Estado.
A Constituição Portuguesa começa por incluir a liberdade de reunião e de associação entre as liberdades fundamentais garantidas aos cidadãos portugueses, em termos que aproveitam, como ó evidente, à prossecução de fins religiosos.
O único problema sério que pode suscitar-se, neste primeiro contacto com a matéria, consiste em saber se a liberdade de reunião e, principalmente, a de associação abrangem, entre os seus fins possíveis, o ateísmo activo.
Será lícita, pondo a questão com toda a crueza, a constituição de associações que tenham por fim a propaganda anti-religiosa?
Dir-se-á que a própria Declaração Conciliar, reivindicando para o homem o poder de agir em matéria religiosa, segundo a sua própria consciência, só ou associado, pretende envolver com o manto da licitude as associa. ções votadas à propaganda anti-religiosa. E que, sendo assim, a ideia de restringir o âmbito da liberdade religiosa no campo da legislação civil equivale em certo sentido, como se costuma dizer, a ser o intérprete desta legislação mais papista do que o próprio Papal
A verdade, porém, ó que semelhante conclusão, nem cabe no espírito da Declaração Conciliar, toda apostada em combater as forças capazes de destruir o fermento da religião na alma humana, nem pode afirmar-se que esteja contida na suia letra. E que, ao reivindicar o poder de cada um proceder em matéria religiosa segundo a sua própria consciência, a Declaração tem o cuidado de acrescentar prudentemente "dentro dos devidos limites". E tudo nos induz seriamente a crer que dentro desses limites não cabem as associações destinadas à propaganda anti-religiosa.
Poderá, no entanto, acrescentar-se que a dúvida não deve ser encarada sob o mesmo ângulo, quando observada pelos canonistas ou quando examinada por um Estado não confessional, como é o Estado Português.
Não confundamos, porém, o Estado não confessional, que não adopta como religião oficial nenhuma das confissões praticadas no seu território, com o Estado agnóstico ou mesmo neutral, que deliberadamente ignora ou subestima o valor (ético e social) da religião na vida da comunidade.
Compreende-se e aceita-se, sem grande dificuldade de adesão, que o Estado, ao proclamar o princípio da liberdade religiosa, garanta a faculdade de as pessoas não terem nenhuma religião, de o declararem ou não, como melhor lhes aprouver, e vá mesmo ao ponto de admitir a propaganda individual dessa posição ideológica.
O que já custará mais a entender é que este interesse individual da expansão do próprio pensamento se possa converter num interesse social (cf., a propósito, o artigo 157.° do Código Civil) capaz de justificar que o Estado estimule ou favoreça a sua realização, outorgando personalidade jurídica às associações adstritas a semelhante finalidade. E as dúvidas mais se acentuarão no espírito daqueles que, desapaixonadamente, meditarem nos prejuízos, muitas vezes irreparáveis, que psicólogos e sociólogos atribuem à eliminação da fé na idade infantil ou na pré-adolescência.

34. O reconhecimento da personalidade jurídica das confissões e associações religiosas. - Além da consagração, em termos genéricos, da liberdade de reunião e de associação (a primeira, regulamentada pelo Decreto-Lei n.° 22 468, de 11 de Abril de 1933; a segunda, pelo Decreto-Lei n.° 39 660, de 20 de Maio de 1954), a legislação portuguesa vigente contém muitas disposições dispersas aplicáveis ao reconhecimento das associações religiosas, lato sensu.
Por um lado, tanto a Constituição (artigo 45.°) como a Concordata de 1940 (art. I) reconhecem directamente a personalidade da Igreja Católica 129.

128 Assim se explica que a Dignitatis Humanac, ao definir a liberdade religiosa, tenha feito menção expressa da faculdade de associação entoe as pessoas:

Esta liberdade (refere-se à liberdade religiosa) consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou de qualquer autoridade humana, de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja foiçado a agir contra a própria consciência, nem impedido, dentro dos devidos limites, de proceder, segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros.

Também a Constituição Italiana, ao definir no artigo 19.° o âmbito da liberdade religiosa, faz expressa menção da faculdade de associação conferida aos cientes:
Todos têm o direito de professar livremente a saia fé religiosa sob qualquer forma, individual ou associada...
129 A ordem das matérias versadas nos artigos 45.° e 46.° da Constituição virá provavelmente a ser alterada do acordo com a proposta governamental de revisão do testo constitucional.
O reconhecimento directo da personalidade da Igreja parece que não só aproveita a toda a agremiação dos católicos (desde o Santo Padre aos fiéis, passando pelos bispos e outras autoridades eclesiásticas), hierarquicamente organizada e tendo a sua sede na cidade do Vaticano, como se aplica a todas as associações eclesiásticas que integram, a sua estrutura.
Ficariam assim de fora apenas as associações religiosas, ou sejam, aquelas em que os leigos, nelas participantes, não deixam por esse facto, de continuar a ser leigos (Prof. Sebastião Cruz, est. cit., p. 6).

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Por outro lado, prevê-se expressamente na Constituição, ]i3 Concordata e no Código Administrativo (arts. 449.° e seguintes) o sistema do reconhecimento indirecto para as associações religiosas: reconhecimento normativo para a generalidade das associações católicas 130, reconhecimento por concessão (art. 450.° do Código Administrativo) para as associações não católicas.
Esta diversidade de regime, conforme as associações sejam ou não católicas, não exprime nenhum tratamento de privilégio para as primeiras.
Assenta, como se viu, na profunda diferença existente entre a estrutura jurídica da Igreja Católica e a organização das demais confissões praticadas no território nacional, 131 e bem assim no reconhecimento recíproco, manado desde há séculos, com breves interrupções apenas entre as duas hierarquias, a da Igreja Católica e a do Estado.
As deficiências de que sofre a legislação vigente, neste capítulo do reconhecimento da personalidade jurídica das associações religiosas em geral, que principiam logo com a noção demasiado restrita dada pelo artigo 449.° do Código Administrativo, bem como as alterações capazes de as suprirem, serão analisadas mais adiante, na altura em que se proceder ao exame na especialidade do projecto de proposta governamental.

35. Limites da liberdade religiosa. - A liberdade religiosa está naturalmente sujeita, nas suas várias manifestações, à observância de certos limites.
Dizem os moralistas, com razão, que liberdade não é sinónimo de licença, ou, em termos mais expressivos, que a liberdade se não pode confundir com a libertinagem.
O homem só é, de facto, verdadeiramente livre, na mais nobre acepção do termo, quando, emancipado da escravidão dos instintos e superior a todos os respeitos humanos, conseguir identificar a sua vontade com os puros ditames da lei moral.
Porém, no domínio terreno e social do direito, o que conta para o legislador é a necessidade de conciliar o exercício da liberdade de cada indivíduo com o respeito devido aos direitos de terceiro e com a salvaguarda dos valores fundamentais da sociedade em que todos se integram. Necessidade particularmente ponderosa no que toca ao sector ideológico da religião, pelos excessos a que pode conduzir, tanto o fanatismo dos crentes como o sectarismo dos ateus.
Daí que a própria Declaração Conciliar, depois de filiar a liberdade religiosa na dignidade humana, aluda por mais de uma vez aos limites a que ela tem de subordinar-se 132.
Também a maior parte das constituições modernas, ao traçarem as linhas gerais do respectivo regime jurídico, aludem expressamente a esses limites.
Os limites geralmente referidos, quer na doutrina, quer nas legislações, são os ditados pela ordem pública, pelos bons costumes e, em um ou outro caso, pela moral 133.
A salvaguarda dos bons costumes reporta-se, em princípio, aos ritos religiosos ou às práticas do culto 134, ao passo que a ordem pública visa, de preferência, os princípios incorporados na doutrina ou moral da confissão 135.
A fixação destas restrições, principalmente pelo que concerne à ordem pública, tem-se prestado, porém, a muitas dúvidas entre os autores e tem oferecido o flanco a algumas críticas na doutrina.
A respeito dos bons costumes, permitirá apenas, no entender de muitos autores, condenar os ritos religiosos ou as práticas de culto que violem o sentimento de pudor das pessoas ou os valores que a lei penal tutela com a punição dos crimes sexuais.
Seria o caso dos ritos que envolvessem promiscuidade ou perversão sexual ou que consagrassem práticas nudistas, ou o caso da confissão religiosa que reconhecesse a licitude do incesto.
Dar à expressão "bons costumes" um sentido mais amplo, de modo a incluir nela, por exemplo, a condenação de todas as práticas nocivas à saúde ou repugnantes à sensibilidade comum (caso dos gestos, gritos e atitudes descompostas com que os pontecostais propiciariam a descida do Espírito Santo sobre os fiéis), tem os seus perigos de abuso, dizem alguns comentadores, bastando recordar para o efeito as críticas com que o pensamento positivista do século XIX se insurgiu contra certas práticas do catolicismo (as penitências excessivas, o uso de cilícios, a clausura de algumas ordens, a castidade dos seminaristas, ministros de culto e religiosos, etc.), considerando-as um atentado contra o são desenvolvimento físico e psíquico do organismo humano.
Seja, no entanto, qual for o sentido exacto desta limitação 136, tem-se por incontestável que ela não basta para

130 Para a generalidade e não para a totalidade das associações católicas. O reconhecimento da personalidade jurídica, por parte do Estado, pressupõe que a associação ou instituto tenha adquirido previamente a personalidade jurídica canónica, ficando assim excluídas as associações que apenas são aprovadas ou recomendadas. Entre as associações ou institutos canonicamente erectos não haverá que distinguir entre os que são constituídos pelo ordinário da diocese e os que sâo criados, mediante privilégio apostólico, por outra autoridade, contanto que, nos termos do texto concordatário, a participação escrita seja feita pelo bispo da diocese respectiva ou pelo seu legítimo representante.
131 "Entre mós", escreve o Prof. Sebastião Cruz (est. cit., separata, p. 6), "as associações religiosas não católicas constituem uma percentagem mínima (talvez cerca de 0,2 por cento), e, em virtude de a sua organização jurídica, ser, religiosamente, bastante rudimentar e muito variável, não merecem uma análise especial."
É sublinhada a parte do trecho que se pretende salientar.
132 Estes limites provêm, quer do facto de o homem, como ser eminentemente social, viver forçosamente em sociedade, quer da circunstância de estar permanentemente exposto, pela sua natureza, ao erro e ao pecado: Piola, nos Annali della Facoltà di Giurisp. di Genova, 1965, ip. 519.
133 Refere-se concretamente à moral cristã o artigo 40.° da Constituição da Colômbia.
134 Assim, de modo explícito, o artigo 19.° da Constituição Italiana de 1947, quando, depois de proclamar a liberdade de culto, quer particular, quer público, e de omitir, parece que intencionalmente, a limitação fundada na ordem pública, acrescenta a seguinte ressalva: "contanto que não se trate de ritos contrários aos bons costumes".
135 Neste sentido se acha redigido o § único do artigo 46.° da Constituição Portuguesa: "Exceptuam-se os actos de culto incompatíveis com a vida e integridade física da pessoa humana e com 08 bons costumes, assim como a difusão de doutrinas contrárias à ordem social estabelecida."
Algo diferente é a redacção proposta pela Câmara, no parecer sobre a revisão constitucional, para o artigo 45.°: "O Estado assegura a liberdade do culto de Deus, bem como a de organização das confissões religiosas cujas doutrinas não contrariem os princípios fundamentais da ordem constitucional, nem atentem contra a ordem social e os bons costumes e desde que o culto praticado respeite a vida, a integridade física e a dignidade das pessoas." V. Actas da Câmara Corporativa, n.° 67, de 16 de Março de 1971.
136 Na doutrina civilistica, bem como na própria legislação, está muito divulgada, a propósito do negócio jurídico, uma
concepção mais ampla que a referida no texto. Contrário aos bons costumes (gegen die guten Siten, como dizem os autores alemães) tem aí o sentido de imoralidade. O acto e é contrário aos bons costumes quando ofende as regras morais aceites pela consciência social dominante (cf. M. Andrade, Teoria geral da relação jurídica, II, 1960, n.ºs 169 e segs.; Trabucchi, "Buon costume, na Enciclopedia del diritto, n.° 7; Santoro-Passarelli, Teoria Geral do Direito Civil, tradução portuguesa do Dr. Manuel de Alarcão, 1967, pp. 163 e segs.; Protetti, Buon costume no Novíssimo Digesto Ital., n.° 3.

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acautelar capazmente todos os legítimos interesses da sociedade e de terceiros contra os excessos e abusos da liberdade religiosa.
Há, com efeito, vários grupos confessionais aos quais é imputada a defesa de princípios ou a imposição de normas de conduta, que, estando em aberto conflito com regras fundamentais, quer do direito público, quer do direito privado, de muitos dos Estados modernos, excedem indubitavelmente o âmbito restrito da tutela dos bons costumes.
Os Filhos Eleitos de Kempten, acreditando na proximidade do fim do mundo, recusar-se-iam a pagar impostos ao Estado; as Testemunhas de Jeová, a pretexto de lhes repugnar todas as formas de violência contra o seu semelhante, exprimiriam a sua objecção de consciência, se não contra toda a prestação de serviço nas forças armadas, pelo menos contra o cumprimento de certos deveres militares; as Testemunhas de Cristo entenderiam que, no caso de doença de algum dos seus membros, se deveria recorrer à oração, apelando para a intervenção sobrenatural, e não aceitar os cuidados profanos da medicina 137.
É precisamente a intenção de afirmar a supremacia das normas violadas com estas directivas de ordem prática, ou com afirmações de princípios de natureza semelhante, que explica o facto de muitas constituições fixarem como limite geral da liberdade religiosa a ordem pública.
A ordem pública é constituída pela súmula dos preceitos fundamentais que integram, quer no direito público, quer no direito privado, a organização política e social da colectividade.
Trata-se, como ó bem de ver, de um conceito muito vago e bastante impreciso, por nem sempre ser fácil distinguir, com a necessária segurança, dentro da legislação de cada Estado, entre as regras que são fundamentais no contexto da ordem jurídica e aquelas que o não são (normas técnicas, normas de interesse e ordem particular, etc.).
Talvez por isso, e também pelos abusos que as autoridades policiais cometeram à sombra, da invocação da ordem pública, com vista a impedirem os mais variados actos dos grupos confessionais não católicos 138, é que a Constituição Italiana omitiu a referência à ordem pública, ao definir a liberdade dos cidadãos em matéria de religião (cf., porém, o artigo 8.°).
É, no entanto, para reprimir abusos do género dos praticados pelas autoridades policiais em Itália que existem tribunais nos vários Estados, e é para que as autoridades se coíbam da sua prática que há fiscalização contenciosa dos actos da administração.
De todo o modo, duas ideias importa reter por enquanto: por um lado, o limite imposto pelos bons costumes è necessário, mas manifestamente insuficiente 139; por outro lado, o limite baseado na ordem pública è de tal modo vago e impreciso que pode dar lugar a muitas dúvidas na sua aplicação prática.

CAPITULO II

A Nação Portuguesa e a Igreja Católica

36. O princípio da liberdade religiosa e a posição especial do catolicismo em Portugal. - O princípio da liberdade religiosa, nos termos abertos com que é aceite pela consciência social do mundo contemporâneo e foi sancionado pela doutrina conciliar, não pode, como é evidente, destruir os laços especiais que ligam algumas religiões a determinados povos.
Trata-se, nos numerosos Estados em que assim sucede, de um elemento que vem justapor-se, no que a ideia tem realmente de novo, ao regime jurídico até agora vigente, mas que não deve revogá-lo, nem precisa de o fazer.
Há apenas uma porta cuja abertura- se amplia, sem para tal haver necessidade de demolir o vasto edifício em que ela se integra.
Todos conhecem, na verdade, a influência profunda que os princípios morais do cristianismo, sublimando a larga contribuição proveniente da filosofia grega e da civilização romana, tiveram na formação da cultura europeia, (c), através da expansão do antigo continente, na modelação das sociedades norte e sul-americanas. Esse fermento espiritual cristão entranhou-se na alma dos povos e consolidou-se, com o andar dos séculos, na generalidade das nações integradas no mundo ocidental.
No caso particular de Portugal, sabe-se que o Condado Portucalense ampliou gradualmente o seu território e que o novo reino construiu a sua independência, sob o signo da reconquista cristã. Quando, três séculos volvidos, no dealbar da Idade Moderna, o País se lançou apaixonadamente na empresa das conquistas e descobertas, foi poderosa, sob vários aspectos, a contribuição da Fé e da Igreja para o êxito do empreendimento.
A fixação dos Portugueses nas costas de África, no Brasil, nas terras do Indico e nos confins do Oriente processou-se sempre, com todas as fraquezas dos homens e por entre os costumes dos tempos, em termos de por todos ou quase todos ser considerada uma luz do Ocidente e, mais concretamente, uma presença cristã. Deve-se aos missionários católicos, que durante séculos têm levado a doutrina dos Evangelhos às mais remotas e inóspitas paragens do ultramar, não só uma contribuição notável para a obra de promoção moral e social das populações autóctones, mas também uma ajuda preciosa para a formação da consciência nacional.
Outras comunidades religiosas existem, é certo, dentro das províncias ultramarinas e na própria metrópole, fazendo parte integrante da Nação Portuguesa, como as comunidades muçulmanas há séculos instaladas na Guiné e em Moçambique, por exemplo, e a comunidade judaica, que vive no Portugal Metropolitano. Mas sobre as missões católicas continuará certamente a recair, durante muito tempo, o peso maior da responsabilidade de levar os autênticos benefícios da civilização até àqueles milhões de autóctones dispersos pelo interior, cujo espírito se não abriu ainda aos problemas transcendentes da vida e do universo, que são objecto da religião.
Tal como no ultramar, também na metrópole ó intensa a repercussão do catolicismo, quer na vida individual, quer na acção colectiva dos Portugueses.
O catolicismo foi durante largos séculos, até à Lei da Separação de 1911, a religião oficial do País, a ponto de o poder temporal ido Estado se estender a largas zonas

137 Pio Fedele, ob. cit., pp. 54 e seguintes. A propósito da prestação do serviço militar, cf. a sentença do Tribunal Militar Territorial de Turim, comentada por Capograssi, "Obbedienza e coscienza", no Foro Ital., 1950, II, cols. 47 e segs.
138 A fórmula do artigo 1.° da Lei de 24 de Junho de 1929 (sobre os cultos não católicos) serviu, no entender de vários autores, para impedir a liberdade de culto de algumas confissões protestantes.
139 Ver as considerações do próprio Jemolo ("In tema di libertà", no Archivio giuridico, 140, 1954, pp. 3 e segs.), um dos grandes campeões da ideia da liberdade religiosa em Itália, e de Catalano, ob. cit., pp. 71 e segs.
140 Veja-se, a propósito, Corral Salvador, Valor comparado de la legislación española de libertou religiosa, na Rev. esp. der, can., 1968, pp. 829 e segs.

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de jurisdição espiritual próprias da hierarquia eclesiástica. Sem embargo do regime da separação, que a Concordata de 1940 manteve entre a Santa Sé e o Estado Português, o censo populacional de 1960 continuou a acusar uma percentagem esmagadora de católicos entre os residentes no continente e nas ilhas (97,8 por cento) 141.
A concorrência íntima das qualidades de crente (católico) e de cidadão na personalidade da generalidade dos Portugueses reflecte-se praticamente em todos os sectores da vida nacional, mas sente-se, de modo especial, em dois domínios bastante vastos da nossa actividade social: na educação e na assistência.
Os pais que pensam sèriamente na instrução dos filhos, mesmo quando perderam a fé, nunca a tiveram ou não são praticantes, desejam no geral que estes sejam educados nos princípios da doutrina e moral cristã. Nem de outro modo se explica o visível empolamento do ensino particular a cargo das ordens religiosas ou do clero secular, depois que a Concordata assegurou à Igreja Católica a liberdade de acção de que ela carecia.
Por outro lado, foi por iniciativa ou com a preciosa colaboração das organizações católicas que durante séculos se processou quase todo o movimento da assistência no País. E ainda hoje, apesar da progressiva intervenção do Estado nesse domínio e da contínua deslocação de antigas tarefas da assistência caritativa para o sector da previdência oficial ou contratual, boa parte daquele movimento se opera por intermédio das associações religiosas. É nas instituições de assistência e de caridade que encontram o seu campo ideal de acção muitas pessoas ferverosamente crentes, ansiosas de pôr em prática os seus princípios morais e religiosos de amor pelo próximo e de salvação da sua alma. É para as corporações ou institutos religiosos que mais confiadamente se volvam os sentimentos de piedade de muitos dos que em vida amealharam alguns bens, cuja aplicação útil pretendem garantir para além da sua morte.
Cometeria o Estado um erro grave se, para dar guarida na legislação vigente aos novos aspectos da. liberdade religiosa, se dispusesse desnecessariamente a abrir mão deste conjunto de factores que tanto pesam na vida colectiva dos Portugueses. Para ser uma imagem autêntica da realidade, a ordem jurídica necessita de garantir uma .expressão adequada a todos estes valores morais, religiosos e sociológicos de que está fortemente impregnada a vida da comunidade nacional, sem prejuízo de se manter aberta a todas as conquistas reais do progresso moral dos povos.

37. Perfeita harmonia entre a liberdade religiosa e o tratamento jurídico devido à religião católica e suas organizações. - Que os dois objectivos referidos no final do número precedente são fáceis de congraçar entre si, pode confirmá-lo o articulado da Lei Espanhola de 28 de Junho de 1967.
No próprio diploma sobre a liberdade religiosa, precisamente no mesmo artigo em que faz rodar os gonzos das suas venerandas instituições para receber esse princípio verdadeiramente revolucionário em face da legislação precedente, o Estado Espanhol, coerente com o pensamento clássico da sua confessionalidade (sucessivamente afirmado no Foro dos Espanhóis, na lei da Sucessão na chefia do Estado, e na Concordata de 1953), continua a proclamar a religião católica como religião oficial do país.
Este exemplo de fidelidade às raízes profundas da cultura espanhola mostra, de facto, que é perfeitamente possível reconhecer e garantir a liberdade de consciência e de culto, a que todos os indivíduos têm direito, com o respeito pelos deveres a. que o Estado se encontra adstrito perante a Nação, como entidade moral e histórica distinta dos cidadãos que em cada momento a compõem, e bem assim dos governantes que a dirigem.
Também na Constituição Italiana, ao lado do princípio da liberdade religiosa, proclamado nos artigos 3.°, 19.° e 20.°, se afirma no artigo 7.° que as relações entre o Estado e a Igreja Católica (independenites e soberanos na sua esfera de acção) são reguladas pelos pactos de Latirão, que consagrara a religião católica como a religião oficial de Itália.
Não surpreende, assim, que sejam múltiplos os aspectos em que, na legislação portuguesa vigente, a despeito do carácter não confessional do Estado, se revela o tratamento jurídico especial devido a religião católica.
Logo no texto constitucional 142 se salientam as seguintes prescrições:

a) A afirmação da religião católica como religião da Nação Portuguesa;
b) A atribuição directa de personalidade jurídica à Igreja Católica;
c) O reconhecimento normativo da personalidade jurídica das associações ou organizações constituídas de harmonia com o direito canónico;
d) O princípio da regulamentação, por acordo, das matérias de interesse comum à Santa Sé e a Portugal;
e) O dever de o ensino oficial se orientar, quanto à formação das virtudes morais dos jovens, pelos princípios da doutrina e da moral cristãs, tradicionais do País;
f) A garantia de protecção e auxílio do Estado às missões católicas portuguesas do ultramar e aos estabelecimentos de formação do pessoal para o serviço delas, como instituições de ensino e assistência e instrumentos de civilização.

Da Concordata de 7 de Maio de 1940, convertida em direito interno português pelo artigo 61.° do Decreto-Lei n.° 30 615, de 25 de Julho do mesmo ano, abstraindo das normas correspondentes aos preceitos constitucionais que acabam de ser transcritos e de outras disposições de carácter transitório, ó possível respigar mais os seguintes pontos:

a) O reconhecimento do poder de ordem e jurisdição da Igreja Católica na esfera da sua competência, sem sujeição ao beneplácito do Estado (artigo II);

141 Numa população total (continente e ilhas) de 8 889 392 habitantes, é de 8 701 898 o número de católicos, de 38 005 o de cristãos não católicos, de 1742 e de não cristãos e de 147 747 e de pessoas sem religião.
142 Esse texto está sujeito, como se sabe, a próxima revisão da Assembleia Nacional. Manteve-se, porém, no articulado sugerido pela Câmara sobre a proposta de revisão constitucional, a doutrina que a seguir se refere no texto [alíneas b) e seguintes], com ligeiras alterações de redacção. A afirmação da religião católica como religião dia Nação Portuguesa é que foi substituída pelo reconhecimento da posição especial dia religião católica entre as várias crenças professadas pelos Portugueses.

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b) A equiparação das associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente erectos, em matéria de capacidade patrimonial, às demais pessoas morais perpétuas, com garantia da sua livre administração, sob a fiscalização das autoridades eclesiásticas (artigo IV; cf. artigos 452.° e seguintes do código Administrativo; base V, n.° 3, da Lei n.° 1998, de 15 de Maio de 1944, e base XXIV, n.° 2, da Lei n.° 2120, de 19 de Julho de 1963);
c) A necessidade do consentimento da autoridade eclesiástica para a demolição ou desafectação dos templos, edifícios, dependências ou objectos do culto católico (artigo VII);
d) As isenções fiscais concedidas, tanto em relação a determinados bens (nomeadamente aos estabelecimentos destinados à formação do clero) como a favor dos eclesiásticos, pelo exercício do seu múnus espiritual (artigo VIII);
e) A equiparação dos eclesiásticos, no exercício do seu ministério, às autoridades públicas, para o efeito da protecção do Estado (artigo XI);
f) A audiência de preceito do Governo Português, antes da nomeação dos arcebispos, bispos residenciais ou coadjutores, cum iure successionis (artigo X);
g) A exigência da nacionalidade portuguesa para a investidura em certos cargos de autoridade eclesiástica (artigo IX);
h) A garantia de assistência religiosa às forças armadas em campanha, através de uma organização adequada de capelania militar (artigo XVIII);
i) A atribuição de efeitos civis aos casamentos católicos e o reconhecimento da jurisdição eclesiástica quanto ao reconhecimento da validade deles (artigo XXV).

Estas disposições, entre outras, revelam que o Estado não só garantiu à Igreja Católica, através do instrumento diplomático firmado no Vaticano, a liberdade religiosa de que fora privada com a Lei da Separação, como tomou positivamente em linha de conta a importância excepcional que o catolicismo assumiu, desde a formação da nacionalidade, na vida da comunidade portuguesa, atribuindo às pessoas, às coisas e às instituições adstritas ao culto o tratamento correspondente a esse facto.
A Santa Sé reconheceu a atitude do Estado, abdicando por seu turno de algumas das prerrogativas que caberiam na esfera normal da sua competência.
Toda esta matéria constitui parte integrante do regime jurídico dos assuntos religiosos, e nenhuma (razão inculca que ela deva ser omitida ou não deva ocupar o lugar de relevo que logicamente lhe compete dentro do diploma em que o Estado se propõe rever a peça básica de todo o sistema, embora para tal não haja necessidade de repetir materialmente as dezenas de preceitos que, na legislação em vigor, interessam à Igreja, às associações ou aos institutos católicos.

CAPÍTULO III

A separação entre as confissões religiosas e o Estado ou o carácter não confessional do Estado

38. A separação e o regime instituído pela Concordata. - São perfeitamente conciliáveis entre si, quer em teoria, quer na prática, a liberdade religiosa, na ampla e moderna acepção do conceito, e o carácter confessional do Estado 143.
Mais fácil de harmonizar será ainda, na política legislativa do Estado, a concepção liberal dos novos tempos com o regime de separação entre o poder civil e as igrejas.
Sendo este o regime vigente, o Estado não faz sua nenhuma religião ou confissão religiosa. A religião não ó um serviço público, que ao Estado incumba manter ou para cujo governo disponha de Ministério e repartições apropriadas. Os sacerdotes ou ministros do culto não são funcionários públicos enumerados pelo Estado. Não é o erário público que custeia a construção dos templos ou a aquisição dos objectos destinados ao culto. Não é ao Governo que compete nomear ou destituir os prelados. Nem é a Igreja que confere o poder às autoridades civis, incumbidas do governo temporal, ou que nelas o delega como depositária directa- de toda a soberania entre os homens.
Igreja e Estado constituem duas ordens jurídicas distintas e perfeitas. Dois poderes diferentes e autónomos - o espiritual e o temporal; Deus e César.
Quando, em Maio de 1940, se divulgou a notícia da celebração da Concordata entre a Santa Sé e o Governo Português, é curioso observar que, nas breves considerações tecidas à volta do acontecimento, as entidades responsáveis tiveram o cuidado de acentuar expressamente que esse instrumento diplomático não prejudicava o regime da separação existente entre os seus signatários.
E compreende-se, à luz da história mais recente dos factos, que o hajam feito.
Havia uma diferença tão pronunciada entre o regime fixado pela nova Concordata e o conjunto de soluções mais destacadas da Lei da Separação, que parecia realmente oportuna uma palavra de esclarecimento sobre o real significado do novo arranjo concertado entre a Santa Sé e o Governo Português.
Como se explicará, de facto, que, não obstante a notória diferença de espírito existente entre os dois diplomas, ambos integrem o mesmo tipo de solução, pelo menos formalmente (o regime de separação), nas relações entre a Igreja e o Estado?

39. O sistema da religião oficial do Estado. - O estudo histórico das acidentadas relações entre a Igreja e o Estado levaria demasiado longe, e nem todos os seus capítulos interessam à apreciação crítica do projecto governamental.
Para se compreender a estrutura e o sentido da separação instituída em 1911, basta remontar à época anterior, de consagração da religião oficial do Estado.

143 O Prof. Marcello Caetano (Manual, 8.ª ed., I, p. 370) reduz a três os tipos fundamentais de relações que podem existir entre o Estado e as igrejas: união, separação e proibição.
A união pode assentar na dependência do Estado em relação à Igreja e às autoridades eclesiásticas ou realizar-se em sentido contrário.
No primeiro caso, a união pode revestir a forma de teocracia ou a modalidade mais atenuada de clericalismo (mera situação privilegiada do clero); no segundo, as formas historicamente conhecidas são as do cesarismo e do regalismo (com o monarca a controlar, sob o titulo de protector, padroeiro ou outro semelhante, a actividade da Igreja).
A separação é fruto do liberalismo, tal como a proibição o é do ateísmo.
Mantêm ainda hoje o princípio da confessionalidade, entre outros: quanto ao islamismo, a Arábia, a República Árabe Unida, o Sudão, a Argélia, Marrocos e a Tunísia; quanto ao budismo, a Birmânia, o Camboja e o Laos; quanto ao protestantismo, a Dinamarca, a Islândia, a Noruega, a Suécia e a Inglaterra; quanto à religião ortodoxa, a Grécia; quanto ao catolicismo, a Colômbia, a Espanha, a Itália e o Paraguai.

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Sabe-se como as lutas e as desordens provocadas em vários Estados da Europa pelo movimento religioso e político da Reforma, conjugadas com o carácter absolutista das monarquias de então, criaram no século XVII e começos do século XVIII um ambiente particularmente propício à fermentação do espírito das igrejas nacionais e à deslocação de boa parte dos direitos do papado para a esfera dos poderes políticos do soberano.
Irromperam assim, no seio das próprias nações católicas, várias correntes de pensamento (como o galicanismo 144, o josefismo e o febronianismo), igualmente apostadas em alargar o âmbito da autoridade temporal do monarca.
Dessas correntes salientou-se, pela sua duração e influência prática, o chamado jurisdicionalismo 145, em cujas premissas se fundaram, entre outros, os seguintes direitos majestáticos: o jus rejormandi, o jus protectionis, o jus supremae inspectionis, o jus cavendi, e o jus appelationis como faculdade de recorrer para os tribunais seculares contra os abusos do poder eclesiástico 146.
Toda essa tendência regalista (assim se chamou entre nós ao movimento político e cultural a que na França se deu, de preferência, o nome de galicanismo) se reflecte, como ó sabido, na vigorosa administração pombalina 147. E dela se encontram ainda nítidos vestígios, não só na Constituição de 1822, de efémera vigência no conturbado advento do liberalismo, mas ainda na Carta Constitucional de 1826, que vigorou como estatuto político do País praticamente (com breves períodos de interregno) até 1910.
Logo no artigo 6.° deste último diploma se afirma que p religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Reino. No artigo 72.° reconhece-se o carácter sagrado da pessoa do rei, e entre os poderes expressamente conferidos ao monarca figuram o de nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos (artigo 75.°, § 2.°) e o de conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios, letras apostólicas e outras constituições eclesiásticas (§ 14.°). A responsabilidade do soberano pelos assuntos da fé reflecte-se ainda na própria fórmula do juramento exigido tanto do rei como do herdeiro presuntivo do trono, a qual principia exactamente pela promessa de manter a religião católica apostólica romana (artigos 76.° e 79.°).
O artigo 4.° do Decreto de 30 de Julho de 1832 chamou ao Governo a faculdade de apresentar os párocos para as igrejas, e os eclesiásticos para os vários benefícios, vindo o Decreto de 2 de Janeiro de 1862 a prescrever que o provimento destes cargos fosse feito por concurso aberto pelo competente Ministério. "Era, pois, comenta o Professor Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., I, n.° 169), a redução da Igreja Católica a um serviço público do Estado, a que não faltava o tratamento dos seus ministros como se fossem funcionários."

40. A separação assente sobre o poder subalterno da Igreja (laicismo). - A concepção da religião oficial do Estado, com todo o relevo nela atribuído ao factor religioso na vida da comunidade nacional, não resistiu ao embate demolidor do enciclopedismo. Uma a uma, a revolução de 89 destruiu as peças fundamentais sobre as quais assentava o antigo sistema. Mesmo quando o ímpeto revolucionário do liberalismo afrouxou de intensidade, não renasceu o prestígio da religião. Pelo contrário, tudo se conjugava no espírito da época para minimizar o papel da fé e das congregações confessionais na vida social dos povos. A religião passou a ser declaramente considerada como matéria do foro íntimo de cada cidadão, a que o Estado liberal era em princípio indiferente.
A doutrina da separação surgiu assim naturalmente, comenta Petroncelli 148, não para reafirmar, como sucede na doutrina católica da coordenação dos poderes, a existência de duas sociedades com distinta competência sobre os mesmos indivíduos, gozando as respectivas autoridades de plena independência na esfera da sua jurisdição, mas antes para significar que o Estado se desinteressa do credo religioso dos seus súbditos, como matéria do foro estritamente particular de cada um, e que a sua intervenção na matéria visa apenas a prevenir e a reprimir os abusos da Igreja, confinando a acção desta aos limites preestabelecidos pelas autoridades civis.
O aspecto mais curioso de toda esta evolução está, porém, como nota o mesmo autor, no facto paradoxal de, não obstante o espírito liberal com que é perspectivada a actividade dos cidadãos individualmente considerados, o Estado não abrir mão dos instrumentos com que pretendia continuar a controlar e fiscalizar todas as manifestações organizadas da vida religiosa.
E esta observação crítica assenta como uma luva sobre os amplos poderes de intervenção que a Lei de 20 de Abril de 1911 colocou nas mãos do Estado.
Recorde-se que, ao caracterizar doutrinàriamente o jurísdicionalismo, Marnoco e Sousa 149 escreve, em certa altura, o seguinte:

O Estado vai ainda mais longe, e, quando o interesse social o exige, suprime as pessoas jurídicas eclesiásticas, converte os seus bens noutra forma de riqueza ou substitui-lhes uma renda que inscreve nos seus orçamentos. Escolhe entre as corporações monásticas as que considera úteis à sociedade e suprime as outras, apresenta ao pontífice os indivíduos que julga dignos de serem elevados aos supremos cargos da Igreja, fiscaliza a educação do clero, mediante a inspecção dos seminários, provê directamente ao ensino da teologia, mantendo nas Universidades a faculdade respectiva.
Finalmente, constitui-se juiz dos actos das autoridades eclesiásticas, permitindo às partes lesadas ou ao Ministério Público recorrer para os tribunais seculares dos abusos do poder espiritual, não somente nas relações civis das decisões eclesiásticas, como quando se trata da posse de um benefício, mas também quanto aos actos puramente espirituais, como a administração dos sacramentos.

Ora, cotejando este quadro sintético do sistema jurisdicionalista, magistralmente traçado por Marnoco, com os passos mais significativos da lei portuguesa da separação, quanto à sorte dos bens da Igreja, a inter-

144 Designado nascida da. conhecida Declaratio cleri gallicani, de 1682, na qual os bispos franceses defendem os direitos do monarca contra os poderes da Santa Sé: M. Petroncelli, ob. cit., n.º 17.
145 "O jurisdicionalismo, escreve Marnoco e Sousa (Direito Eclesiástico Português, 1910, n.° 144), não admite a subordinação absoluta da Igreja ao Estado, como pretende a autocracia, mas a subordinação necessária para a fiscalização da actividade daquela instituição."
O autor concretiza, a seguir, os principais aspectos desta ideia.
146 Sobre o conteúdo de cada uma destas prerrogativas veja-se Petroncelli, ob. cit., n.° 18.
147 Cf., a propósito, Luís Gonzaga de Azevedo, "O regalismo e a sua evolução em Portugal até ao tempo do Padre Francisco Suarezs, na Brotéría, XXXIV, pp. 292 e 481, e Fortunato de Almeida, ob. cit. e vol. cit., pp. 18 e segs.
148 Ob. cit., n.º 20.
149 Ob. cit., p. 456.

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dição das congregações religiosas, a fiscalização do ensino nos seminários e nas catequeses, as numerosas violações da autonomia interna das organizações católicas, fácil será concluir que entre um e outro não há distância sensível.
Com uma diferença importante: enquanto o sistema jurisdicionalista defendi" as prerrogativas da Coroa em face dos poderes da Cúria Romana 150, a legislação de 1911 combatia a influência espiritual da religião em obediência as concepções positivistas dominantes na época.

41. A separação assente na distinção entre a sociedade civil e a sociedade religiosa, como expressão da plena autonomia das respectivas autoridades. - Outro muito diferente, tanto do sistema jurisdicionalista como da mentalidade laica dos princípios do século, foi o espírito que presidiu em 1940 à revisão das relações entre a Igreja e o Estado.
Manteve-se o sistema da separação, não chamando à esfera de competência das autoridades civis matérias da jurisdição especial da hierarquia eclesiástica. Mas tomou-se ao mesmo tempo em linha de conta a importantíssima repercussão do factor religioso, não só na vida privada como na existência social da colectividade, reconheceu-se a natureza de ordem jurídica primária a que tem jus o direito canónico na esfera da sua competência e respeitou-se a independência recíproca dos poderes da Igreja e do Estado.
As soluções consagradas em matéria de propriedade de bens, de livre organização das congregações, de administração do seu património, de liberdade de culto e de ensino, de poderes de ordem e jurisdição, de apreciação jurisdicional da validade do casamento católico, da indissolubilidade deste, para aludir somente aos pontos mais importantes do instrumento concordatário, ilustram de forma inequívoca o pensamento que serviu de base ao novo estatuto jurídico concertado entre a Santa Sé e o Governo Português.
É, sem dúvida nenhuma, um regime completamente distinto do fixado em 1911, mas a que cabe, com muito maior propriedade do que a este, em aspectos não despiciendos, o nome de separatista. Na separação fortalecida entre as duas sociedades radica precisamente o princípio básico da colaboração (mediante concordatas ou acordos) entre as respectivas autoridades, consagrado no artigo 45.° da Constituição para a regulamentação das matérias de interesse comum.

42. Conclusão. Em face das longas considerações que acabam de ser expostas, a Câmara não tem nenhuma dúvida em dar a sua aprovação na generalidade ao projecto de proposta de lei sobre a liberdade religiosa.

II

Exame na especialidade

43. Sequência. Amplitude do diploma e sua disposição introdutória. - Apreciadas as razões justificativas da publicação do diploma projectado e compilado o material informativo que se considera indispensável para atribuir e regime jurídico da liberdade e da actividade religiosa dimensão lógica adequada, é chegada a altura própria de. se principiar o exame na especialidade do articulado que o Governo elaborou.
O projecto rompe com a proclamação solene da liberdade religiosa.
Trata-se, como é sabido, da pedra angular de iodo o sistema; mas é uma peça apenas que, isoladamente trabalhada, não preenche todos os alicerces do edifício que o projecto de proposta de lei pretende construir. Sendo a Nação, e não o indivíduo, o elemento fundamental de toda a construção ideológica do texto constitucional haverá toda a conveniência em incluir, na regulamentação da matéria religiosa, no lugar e com o relevo que lhe compete, o aspecto fundamental das relações do Estado com as confissões religiosas.
Desta sorte entende a Câmara que a lei deveria começar, em princípio, com o enunciado sintético das ideias-força nas quais se deve inspirar a disciplina jurídica da actividade religiosa.
De acordo com a indagação levada a cabo nos números precedentes, podem reduzir-se a ires as ideias fundamentais do novo sistema.
A primeira é a da liberdade religiosa, verdadeiro caput et fundamentam da matéria, no plano da afirmação da personalidade individual e da superior dignidade da pessoa humana.
A segunda é o reconhecimento da posição especial que, por direito próprio, compete à religião católica, entre as crenças professadas pelos Portugueses. A afirmação constitui um traço fundamental da fisionomia histórica do ser moral que é a comunidade nacional. Longe de constituir uma proposição de carácter puramente doutrinário ou de mero sentido programático, a tese proclamada em 1951 traduz-se numa série de corolários de ordem prática, sobretudo em matéria de ensino e de acção missionária no ultramar, que não podem deixar de ser assinalados no roteiro do novo diploma.
A terceira é a consagração do regime da separação nas relações entre o Estado e as igrejas.
Foi esse o sistema que a Concordata manteve em relação à Santa Sé, e nenhuma razão existe, no pensamento da maioria da Câmara, para que igual solução não haja de vigorar relativamente às outras confissões religiosas.
Quanto à forma técnica de articular logicamente os três princípios expostos, admite a Câmara, porém, que o processo mais aconselhável será o de assentar formalmente o novo regime da actividade religiosa sobre o princípio básico da liberdade de cultos e o valor positivo das confissões religiosas no seio da comunidade, traduzindo-se este último na protecção jurídica devida às organizações confessionais.
A posição de relevo que compete, por direito próprio, a religião católica aparecerá retratada, no articulado sugerido pela Câmara, dentro da disciplina das confissões religiosas, como elemento fundamental da reelaboração sistemática que o Governo se propõe levar a cabo.
O princípio da separação terá também o seu lugar adequado na definição da disciplina das relações do Estado com as diversas confissões.

Base I

44. Proclamação formal do princípio da liberdade religiosa. - O princípio da liberdade religiosa está já formulado na Constituição (antigo 8.°, n.° 3.°), mas sob uma desig-

150 "É até para notar", observa Marnoco e Sousa (ob. cit. e loc. cit.) a este propósito, "que os soberanos mais fervorosos e mais dispostos a derramar largamente o sangue dos heréticos foram os que mais se salientaram na defesa e aplicação do sistema jurisdicionalista. Haja vista a Filipe II, de Espanha, que resistiu às pretensões do papado até ao ponto de arrostar com. os raiou espirituais da Santa Sé."

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nação diferente: a liberdade e a inviolabilidade de crenças e práticas religiosas 151.
Não parece, no entanto, que seja necessário nem cabido proceder a este desdobramento do conceito genérico da liberdade religiosa nas disposições introdutórias da matéria. A liberdade de crenças ou de consciência e a liberdade de práticas religiosas são como que duas zonas diferentes, nos pertencentes ao domínio da mesma ideia fundamental. A inviolabilidade de umas e outras refere-se, por seu turno, a um aspecto especial do seu regime, que não deixa de caber ainda no conceito amplo da liberdade religiosa.
Mais delicada é a questão de saber se a liberdade religiosa deve ficar consignada na lei como uma liberdade, tout court, no sentido específico que a expressão parece revestir dentro da trilogia conceituai (direitos, liberdades e garantias individuais) usada no artigo 8.° da Constituição 153, ou há-de, pelo contrário, ser expressamente incluída na categoria dos direitos subjectivos, como sugere a Declaração Conciliar.
Falando apenas em liberdade (religiosa) na base I, e dando em seguida o nome de direito, na base II, a várias das faculdades em que essa liberdade se desdobra, o projecto parece inclinar-se para a primeira orientação 153.
Todavia, é, pelo menos, duvidoso que seja essa a soluto tecnicamente mais recomendável.
Os civilistas dão em regra o nome de direito subjectivo ao poder fundamental, ou ao conjunto de poderes, de que goza o titular de um interesse juridicamente protegido, quando a tutela legal ó posta à sua disposição; e chamam faculdades às várias manifestações ou exteriorizações em que esse poder ou complexo de poderes, analiticamente examinado, se desdobra 154.
Fala-se, assim, no direito de propriedade, ao lado das faculdades de usar, fruir, dispor ou alienar, que cabem ao proprietário. O credor é titular de um direito de crédito, nessa qualidade lhe competindo as faculdades de interpelar o devedor, de ceder o crédito, de remitir a dívida, de conceder moratória ao obrigado, etc. Dir-se-á, na mesma linha de conceitos, que as pessoas têm direito ao nome, à imagem, à intimidade da sua vida privada, mas não se dirá, tecnicamente, que há um direito subjectivo de fumar, de beber, de comer, de passear na via pública, de vestir como melhor aprouver a cada um, etc.
De acordo com o mesmo critério, poder-se-ia chamar direito ao conjunto de poderes que exprimem a afirmação da personalidade individual em matéria de religião e considerar como meras faculdades as múltiplas facetas em que é possível desdobrá-lo.
Para fugir, no entanto, a todas as dificuldades de uma terminologia ainda bastante fluida e imprecisa, a Câmara sugere uma redacção das bases subsequentes (bases n e seguintes) que, tocando o aspecto essencial dos poderes reconhecidos aos indivíduos ou às confissões ou associações religiosas, evita intencionalmente qualquer qualificação doutrinária mais contestável.

À semelhança da redacção adoptada no artigo 137.° da Constituição (cuja eliminação consta da proposta de revisão constitucional), o projecto faz questão, no texto da base I, de reconhecer e garantir expressamente a liberdade religiosa tanto a nacionais como a estrangeiros.
Todavia, não parece que haja qualquer justificação para consignar na matéria versada uma espécie de estatuto real ou local, que em todos os seus aspectos se sobreponha às soluções decorrentes dos princípios do direito internacional privado.
Se alguns aspectos há, no vasto capítulo da liberdade religiosa, em que a aplicação da lei material portuguesa se impõe, sem discriminação entre nacionais e estrangeiros 155 (cf. art. 7.°, § único, da Constituição Política e artigo 14.° do Código Civil), outros haverá, como os da educação religiosa dos filhos [cf. alínea g) da base n do projecto governamental] e da não obrigatoriedade de resposta às perguntas formuladas acerca das convicções religiosas de cada um, por exemplo, em relação aos quais se não vislumbra nenhuma razão suficientemente forte para afastar o estatuto da lei pessoal (cf. artigo 27.º do Código Civil).
Por outro lado, a fórmula "liberdade religiosa de nacionais e estrangeiros" pode dar a falsa impressão de que a liberdade, em matéria de religião, aproveita apenas aos indivíduos isoladamente considerados, às pessoas físicas, quando a verdade é que o princípio vigora igualmente, em muitos dos seus aspectos (culto público, propaganda, formação de ministros de culto, comunicação de ordens ou directrizes da autoridade eclesiástica, etc.), para as pessoas colectivas religiosas.

Também não parece que tenha real cabimento a parte final do texto proposto: "em todo o território português".
Para que possa vir a vigorar nas províncias ultramarinas, o diploma não necessita de semelhante fórmula.

151 O mesmo princípio aparece inscrito no artigo 18.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 10 de Dezembro de 1948. Sobre as declarações de princípios, com carácter programático ou ideológico, muito em voga na época cio liberalismo e nos períodos de paz subsequentes às duas conflagrações mundiais, veja-se Dr. Oliveira Pilho, Revista Forense, 156, p. 53.
152 Dentro da trilogia constitucional, as liberdades consistiriam, segundo 'a concepção do Prof. Marcello Caetano (Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.ª ed., n.° 259), nos direitos não políticos (ou direitos públicos apenas), em que nos indivíduos corresponde o poder de exigirem do Estado uma abstenção ou omissão. O mesmo autor logo reconhece, porém, que a enumeração do artigo 8.° se não ajusta a esta noção nem aos conceitos correlativos de direitos e garantias.
Embora a terminologia dos autores não prime, Beste domínio, por uma grande precisão e acuse, pelo contrário, uma notória flutuação (haja em vista o que sucede com o chamado direito ao trabalho), há, de facto, uma vincada tendência da doutrina para, atribuindo as liberdades constitucionais uma origem pré-estatal, ligada ao indivíduo e não ao cidadão, lhes reconhecerem uma extensão potencialmente ilimitada e considerarem excepcional toda a limitação ao seu exercício (cf. Carl Schmitt, Verfassungslehre, trad. esp., México, 1966, p. 195). Já o mesmo não sucederá com os direitos (v. g., o direito à educação) que, tendo como sujeitos os cidadãos e não os indivíduos, são em princípio limitados ou condicionados, impõem deveres de acção (e não uma simples abstenção) ao Estado, podendo mesmo traduzir-se em encargos para o ente público (art. 7.°, § único, da Constituição).
153 A reserva com que a afirmação é feita no texto provém da estranheza que pode justificadamente causar o desdobramento, feito na proposta, da liberdade (religiosa) em dez direitos e uma garantia (?), sendo certo de todo o modo que liberdades e direitos surgem como figuras distintas e opostas dentro da terminologia constitucional.
154 Cf., por todos, Messineo, Manuale di diritto civile e commerciale, I, 1957, p. 136.
155 Há mesmo um dos aspectos da liberdade religiosa - o da liberdade de cultos - relativamente ao qual se compreenderia perfeitamente, em face da evolução histórica do seu regime, a afirmação expressa de que ela vigora, quer a favor de nacionais, quer em relação a estrangeiros.

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Além de ser desnecessária, a expressão pode causar ainda certa estranheza, depois de o Governo afirmar, na parte final do preâmbulo do projecto, que "submete à apreciação da Assembleia apenas a disciplina do exercício da liberdade religiosa na metrópole".

O artigo 1.º da Lei Espanhola de 28 de Junho de 1967 adita ao reconhecimento solene do direito à liberdade religiosa a nota de que esta se funda na dignidade da pessoa humana.
Trata-se, como é sabido, de mera reprodução do ensinamento expresso na Declaração Conciliar sobre a matéria.
É, porém, uma afirmação de carácter doutrinário, manifestamente deslocada na disciplina jurídica do tema, visto o seu sentido transcendente exceder o plano normativo em que, ao regular a matéria, se situa a legislação civil.
Pelas razões expostas, o texto que a Câmara sugere para a redacção da base é o seguinte:

BASE I

O Estado reconhece e garante a liberdade religiosa das pessoas, singulares ou colectivas, e assegura às confissões religiosas a protecção jurídica adequada ao interesse moral e social da sua actividade.

BASE II

45. Conteúdo da liberdade religiosa. - A base II do projecto define o conteúdo da liberdade religiosa.
A primeira observação a registar é que, de acordo com as considerações anteriormente expostas, a enumeração de faculdades a que a lei proceda neste ponto nunca deve assumir natureza taxativa.
Por maior que seja o cuidado do legislador, há sempre aspectos que escapam à previsão da lei. E nenhum interesse decisivo é possível invocar no sentido de excluir da protecção legal todos os aspectos omissos.
Logo em relação ao primeiro ponto versado na base em exame, ocorre naturalmente perguntar o seguinte: tendo a pessoa o direito de professar ou não uma religião, ser-lhe-á lícito abandonar pura e simplesmente a que professou, mudar de religião, escusar-se à prática dos actos prescritos pela religião 157 que professa ou pratica os actos que ela condena 158?
Relativamente ao direito de divulgação, a que se refere a alínea d), por exemplo, quererá o texto proposto significar que só é lícita a divulgação das doutrinas de confissões religiosas existentes e já não a difusão das convicções pessoais de que trata a alínea precedente?
A segunda nota a consignar é que na delimitação aparentemente exaustiva do conteúdo da liberdade religiosa se agrupam, sem necessidade, sob o mesmo rótulo genérico dos direitos subjectivos, figuras jurídicas muito distintas.
Seja qual for o critério preferido para a distinção entre liberdades e direitos, não se descortina facilmente como será possível chamar direito subjectivo à faculdade, que a lei reconhece às pessoas, de não responderem a perguntas sobre as suas convicções religiosas.
Se as pessoas não pudessem ser interrogadas por terceiros ou pelas entidades públicas acerca dessa matéria, e os interrogantes praticassem, por conseguinte, um verdadeiro acto ilícito, sempre que fosse violada a proibição legal, ainda com alguma propriedade se poderia falar de um direito dos indivíduos a não serem interrogados em matéria de religião.
Mas tão longe, avisadamente, não quis ir o projecto.
A sua real intenção é a de consagrar um puro agere licere, para significar, por outras palavras, que não pratica nenhum acto ilícito a pessoa que se recuse a responder a perguntas acerca da religião que professa ou sobre se professa alguma.
Do direito discriminado na alínea e), o menos que pode dizer-se, por sua vez, é que se trata de uma faculdade definida em termos bastante equívocos. Dir-se-ia, em face da forma como o preceito se encontra redigido, que o Estado se propõe garantir a assistência religiosa aos fiéis a quem os ministros do culto se recusem a prestá-la. O católico teria direito a receber os sacramentos, ainda que o respectivo pároco, por exemplo, entendesse que os não devia ministrar.
E não é essa, positivamente, a intenção do projecto.
O que neste se pretende consagrar, pela certa, é a ideia de que se deve facultar às pessoas a possibilidade de receberem a assistência religiosa pelos ministros da sua crença - quando estes, é evidente, se disponham a prestá-la.
Supõe a Câmara, no entanto, que a ideia pode ser levada mais longe, em obediência ao tal valor social positivo da religião, afirmando-se, quanto aos principais destinatários da norma (o Estado e as empresas), que não só lhes

156 A dignidade da pessoa humana a que a declaração conciliar se reporta é a que tem as suas raízes na própria Revelação Divina (cf. n.º 9 da Dignitatis Humanae).
157 A questão tem não só interesse teórico, mas também alguma importância prática. Pode, com efeito, a lei facultar a livre opção das pessoas em matéria de religião, mas entender ao mesmo tempo que, uma vez efectuada essa opção (directamente ou por intermédio da autoridade familiar competente, v. g., mediante o baptismo), a pessoa não goza da liberdade de praticar certos actos condenados pela religião em que professa, enquanto dela não abjurar.
É este, aliás, o regime em certos aspectos vigente no país vizinho, onde os católicos (baptizados não podem celebrar casamento civil sem previamente terem abjurado da sua fé (cf. artigo 42. ° do Código Civil Espanhol) e onde ainda agora a Lei de 28 de Junho de 1967 sobre a liberdade religiosa só permite que não assistam aos actos de culto celebrados nas forças armadas aqueles que, ao ingressar nelas, façam constar a sua acatolicidad (artigo 5. °, n.º 2).
Quanto ao simples abandono da confissão religiosa, também o n.º 3 do artigo 32. ° da mesma lei exige para ele a prova do ter sido comunicado ao ministro competente da religião abandonada.
158 Cf. S. Berlingò, est. cit., pp. 6 e segs. O autor aborda neste estudo as dificuldades mais sérias que pode levantar a faculdade do abandono da confissão religiosa, quando usada já não pelos simples leigos, mas pelos ministros do culto católico (padres apóstatas, por exemplo), em face da Concordata da Santa Sé com a Itália (artigo 5.°, III).
Advirta-se também que o facto de a lei admitir a livre mudança de credo religioso não arrasta como consequência necessária o dever consentir-se na dissolubilidade do vínculo contraído por aqueles que casaram católicamente. Além de outras razões, cumpre notar que no primeiro caso estão em jogo puros interesses individuais, enquanto no segundo estão em causa, não só o interesse de ambos os cônjuges e dos filhos, mas a estabilidade e a dignidade de todas as outras uniões sacramentais, que a admissibilidade do divórcio imediatamente atingiria.
Os argumentos que, quer lá fora, quer entre nós, têm sido extraídos do princípio da liberdade religiosa, ou da doutrina conciliar em geral, contra a regra da indissolubilidade do casamento católico, que o Santo Padre repetidas vezes tem defendido com bastante veemência, são minuciosamente analisados e refutados pelo Dr. António Leite no estudo sobre "Liberdade religiosa e divórcio", publicado na Brotéria, 86, pp. 749 e segs.

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incumbe permitir, como devem, na medida do possível, facilitar o espontâneo cumprimento dos deveres religiosos das indivíduos, nomeadamente o respeito pelos domingos f dias santos de guarda, a observância do dia de descanso semanal, etc.
O direito a receber sepultura de harmonia com os ritos da religião professada também necessita de ser entendido era termos hábeis.
Não se trata de um direito da pessoa em face da confissão a que pertença. Pode o interessado dispor que o seu Mineral seja católico; se a Igreja (entender que o não deve efectuar, não são as autoridades civis que gozam da competência bastante para derrogar a decisão das autoridades eclesiásticas.
Da mesma sorte, se a antiga religiosa quiser ser inumada no cemitério privativo da ordem a que pertenceu [cf. artigo 257.°, 2. °, alínea b), do Código do Registo Civil], mas quem superintende na congregação entender que a sua vontade não merece ser acatada, não compete à autoridade civil revogar tal decisão, para se dar cumprimento às disposições da interessada.
Há, no entanto, toda a conveniência em acentuar que a fixação dos termos do funeral, bem como a determinação dos sufrágios, constituem matérias que cabem no âmbito da liberdade religiosa, competindo, assim, a cada pessoa dispor acerca delas domo melhor lhe aprouver. O disposto na alínea, a) do artigo 2326.° do Código Civil bastará para afastar, só por si, a tese, aceite por alguns autores italianos (cf. Jemolo, ob. cit., n.º 39), segundo a qual são os parentes, e não o decide, quem decide quanto à sepultura e funerais deste. Mas nada se perde em trazer explicitamente a solução dessas questões para a sua sede adequada 159.
A ordem dos factores atendíveis ma realização dos funerais, segundo o texto sugerido pela Câmara (base V), tem como escopo dominante aproximar-se quanto possível da vontade real ou presuntiva do finado. Se houve unanimidade da Câmara quanto à finalidade da disposição, já a não houve, porém, quanto à forma.
A faculdade de decidir sobre a educação religiosa dos filhos ainda constitui, sem dúvida, uma faceta, aliás muito importante, da liberdade religiosa dos pais. A Igreja repetidas vezes tem insistido no carácter prioritário do direito e do dever da família em matéria de educação religiosa dos filhos 160. Mas, analisando a situação apenas sob o prisma da vontade paterna, o jurista não capta todos os aspectos que nela interessam ao direito, e nem sequer toca no lado fundamental da questão. Mais que um direito de opção dos pais (o direito de educação e de ensino, como lhe chama a base III do projecto), a educação (religiosa ou não) dos filhos é fonte de deveres para os seus progenitores; mais do que o mero exercício de uma liberdade individual do pai ou da mãe, a educação religiosa dos menores constitui, dentro da jurisdição familiar, peça integrante do poder paternal ou tutelar.
Defini-la apenas à luz dos direitos subjectivos dos pais equivale a deixar na zona de penumbra o interesse capital dos menores, subjacente à instrução e educação da prole.
A fórmula sugerida pela Câmara (base VIII) procura retratar os dois aspectos (direito e dever) do poder que nesta matéria de primordial importância na vida social compete aos pais. A simples remissão para o regime do poder paternal ou da tutela pode dar a aparência de um excessivo rigor legalista numa zona onde será sempre pouca toda a flexibilidade da lei e toda a maleabilidade das suas normas. Trata-se, porém, de mera aparência, dada a notória flexibilidade que, como vimos, caracteriza o novo regime jurídico da menoridade fixado pelo Código Civil.
A Câmara hesitou, na redacção do preceito, entre os vocábulos decidir (sobre a educação dos filhos) e orientar, preferindo o primeiro, entre outras razões, por ele se ajustar melhor à faculdade que compete ao pai, no caso de conflito insanável com a mãe, sobre o sentido da educação do filho.
Quanto ao direito de reunião salientado na alínea i), nenhuma dúvida se levantará sobre a necessidade do seu tratamento especial em matéria de liberdade religiosa.
Tratando-se de qualquer sociedade, comercial ou civil, ou de qualquer pessoa colectiva, o direito de reunião conferido aos seus membros está naturalmente reservado apenas aos sócios da colectividade e há-de subordinar-se às regras próprias de funcionamento das assembleias gerais.
Quando, porém, se trate de reuniões para a prática comunitária do culto, dentro dos templos ou nos lugares para tal destinados, o regime jurídico aplicável terá de ser diferente: nem a reunião, pela natureza pública dos lugares, está reservada aos fiéis da confissão, nem a sua realização, pela índole especial dos actos, se encontra sujeita às medidas normais de polícia.
A solução que pareceu preferível à Câmara, de acordo, aliás, com a doutrina do projecto, foi a de declarar lícitas as reuniões para a prática do culto nos lugares especialmente destinados a esse fim, sem dependência de autorização oficial ou de participação às autoridades.
Em todos os outros casos vigorarão os princípios comuns aplicáveis à Liberdade de reunião.
O direito de associação, referido na alínea j) da mesma base do projecto, também reveste, nesta matéria, aspectos muito particulares, que justificam a especialidade do seu regime. Julga-se, porém, que esse direito deve, pelas consequências lógicas do seu exercício, constituir objecto da disposição legal que serve de introdução à disciplina jurídica das confissões e associações religiosas.
Resumindo as considerações precedentes, dir-se-á que parece de toda a conveniência dar um outro arranjo ao articulado que está concentrado na base n do projecto, aproveitando a oportunidade para retocar ao mesmo tempo alguns dos seus preceitos.
Neste novo arranjo, a Câmara evita deliberadamente a tentação de definir (em termos exaustivos) o conteúdo da liberdade religiosa ou de classificar doutrinàriamente as faculdades ou poderes em que o respectivo direito se divide, agrupa as soluções de acordo com a sua real afinidade lógica ou teleológica e procura melhorar a redacção de algumas das proposições formuladas.

46. A liberdade religiosa e o poder paternal. - Na articulação jurídica da liberdade religiosa com o poder paternal ou tutelar não basta considerar a liberdade religiosa dos pais para procurar a classificação exacta dos poderes que emanam da autoridade paterna. Há tam-

159 O artigo 260.° do Código do Registo Civil fixa os termos em que pode ser feita a incineração do cadáver, a qual só é legalmente permitida quando haja declaração escrita deixada pelo falecido, na qual manifeste expressamente a vontade de vir a ser incinerado.
A Igreja Católica considerou sempre com as maiores reservas, como é sabido, a prática da cremação: Dr. Quelhas Bigote, "Evolução histórico-jurídica da sepultura", na Lumen, XXX, 1966, pp. 274 e segs.
160 Cf., entre outras passagens de textos pontifícios sobre a matéria, n.º 6 da Declaração Gravissimum Educationis.

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bém que considerar a liberdade religiosa dos filhos, para se saber como há-de ela ser conjugada com a organização hierárquica da instituição natural que é a família.
Ora, há precisamente neste ponto nevrálgico da matéria duas novidades no projecto governamental, que necessitam de um pouco de reflexão.
Por um lado, limita-se expressamente aos menores de 16 anos o poder de os pais decidirem sobre a sua educação religiosa [base II, alínea g)], completando-se a nova restrição com a expressa atribuição aos maiores de 16 anos do direito de escolherem a sua religião e de livremente se inscreverem, nos cursos de religião e moral (base V).
Por outro lado, acrescenta-se, que o ensino da religião e moral nas escolas públicas só será ministrado aos menores de 16 anos, quando os pais, ou quem suas vezes fizer, expressamente o desejarem.
Relativamente à primeira questão, julga a Câmara oportuno lembrar que a generalidade das legislações não fixa nenhum limite de idade para a aquisição antecipada da maioridade em matéria de educação (religiosa ou não religiosa) 161. Ao mesmo tempo, os autores não deixam de reconhecer que, ma prática, o poder de os pais intervirem coercivamente na vida religiosa dos filhos menores é, a partir de muito tenra idade, bastante mais teórica do que real 162. À medida que vão adquirindo personalidade ou se vão deixando arrastar pela força das próprias inclinações ou pela imitação do exemplo alheio, os menores vão espontaneamente "praticando ou deixando de praticar em matéria de religião. Dificilmente o pai conseguirá que o filho adolescente frequente a igreja ou receba os sacramentos, quando ele o não queira fazer, como dificilmente o impedirá de praticar esses actos, quando seja essa a vontade do menor. É possível que na motivação do filho influa muitas vezes o temor reverencial perante os familiares ou a afirmação da rebeldia própria da adolescência. Mas motivações igualmente impuras e de vária ordem interferem continuamente na vida religiosa dos adultos, e nem por isso deixa de admitir-se a sua liberdade na matéria.
Apesar de tudo isto, entende a generalidade dos autores que nenhuma necessidade existe de estabelecer um limite especial de idade 163 para a aquisição da maioridade religiosa e que não há vantagem nenhuma em o fazer.
Se os deveres dos pais compreendidos no poder paternal só findam com a maioridade dos filhos, começa por não haver grande coerência no estabelecimento legal de um limite (rígido) diferente para a cessação dos poderes paternos em matéria de educação 164.
Além disso, o simples bom senso dos pais, as reacções naturais dos filhos e a própria doutrina das confissões religiosas (apelando para a vontade das crianças e condenando a coacção dos familiares) se encarregam de dar ao exercício do poder paternal, nesta matéria entre todas delicada, a flexibilidade que melhor se adapta às circunstâncias de cada caso e à capacidade real de cada menor.
A maior intromissão da lei, com soluções do tipo exarado no projecto, seria bastante mais nociva do que proveitosa 165.
Por último, há-de reconhecer-se que a tentação criada pela faculdade que o n.º 1 da base V conferiria apertis verbis ao maior de 16 anos encontra os seus destinatários numa fase de formação moral e crescimento fisiológico, que não será a mais propícia para opções dessa natureza em assuntos de tamanho melindre, e poderia agravar os conflitos inevitáveis entre pais e filhos no período difícil da adolescência destes.
Note-se, com efeito, que o direito de livre escolha da religião por parte dos maiores de 16 anos, enfàticamente proclamado no n.° 1 da base V do projecto e completado pela sua livre inscrição nos cursos de Religião e Moral, pouca ou nenhuma importância prática reveste para os rapazes ou raparigas que já frequentem cursos superiores (onde não há cursos de Religião e Moral) ou que já tenham abandonado os estudos. Ele interessará apenas, na realidade, aos alunos dos cursos secundários que, normalmente, frequentarão os seus dois últimos anos ou àqueles que, em regra pelo seu mau aproveitamento escolar, permaneçam no liceu para além dos 17 anos.
Ora, não se descortina nenhuma razão para abrir um regime excepcional com vista a estes núcleos de alunos. Talvez até se possa dizer que essa é, pela idade dos jovens ou pelo seu deficiente aproveitamento, a camada escolar onde a concessão da lei se tornaria mais perigosa, atendendo aos efeitos irremediáveis que a falta de educação religiosa e moral, na altura própria em que deve ser ministrada, arrasta muitas vezes consigo.

47. Quanto à segunda questão, houve quem desde logo observasse que a solução adoptada no projecto se não harmonizava com a doutrina assente sobre a matéria na Concordata.

161 Que na Câmara se saiba (cf. Corral Salvador, na Revista espanhola de derecho canónico, 1967, p. 649), só na Alemanha se adopta uma solução semelhante à do projecto português, embora o limite aí fixado (cf. Lei Fundamental, artigo 7.º, n.ºs 2 e 3; Constituição da Baviera, artigo 137.°, n.° 2; da Benânia-Palatinado, artigo 35, § 2; do Sarre, artigo 29, § 2) seja de 18, e não de 16 anos; além disso são obrigados os alunos que não queiram assistir às aulas de Religião a, frequentar uma cadeira de instrução sobre os princípios universalmente reconhecidos pela lei moral natural.
162 Jemolo, Premesse..., p. 194.
163 0 Código Civil procurou, no domínio da capacidade negociai e (noutros aspectos relevantes do regime da menoridade, dar expressão jurídica adequada ao fenómeno da aquisição gradual da maturidade intelectual e moral por parte dos jovens. Fê-lo, porém, através de um critério inteiramente diferente do utilizado, em matéria de liberdade religiosa, pelo projecto em exame.
Apelou, não para um limite rígido especialmente aplicável a certas categorias de actos, mas para a capacidade natural do menor e a importância económica dos actos praticados. "São excepcionalmente válidos", diz nesse sentido o artigo 127.° do Código, "além de outros previstos na lei:
1. ......... a)
b)Os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor, que, estando ao alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas ou disposições de bens de pequena importância.
c) ......... "
164 Não se diga que num caso análogo ao versado no projecto - ou seja, quanto à opção entre o casamento católico e o casamento civil - a lei [artigo 1601. °, alínea a), do Código Civil] não hesitou em fixar um limite especial de capacidade (16 e 14 anos, consoante se trate de rapazes ou raparigas).
Não há, com efeito, analogia entre as duas situações.
No caso do casamento do menor, são, em princípio, ouvidos os pais e, se estes deduzirem oposição justificada à sua celebração, o matrimónio não será celebrado (artigo 1612.°, n.° 2, do Código Civil).
Além disso, a capacidade matrimonial concedida aos menores de 21 anos e maiores de 16 ou 14 anos só aproveita ao número relativamente pequeno daqueles (sobretudo de rapazes) que, em concreto, se julgam em condições de assumir as responsabilidades pesadas da sociedade conjugal.
A capacidade prevista no projecto aproveitaria, em termos gerais, a todos aqueles que, pura e simplesmente, se quisessem libertar do fardo incómodo de ter mais uma disciplina no liceu ou de assistir às aulas de um professor de que não se gosta, ou que se deixassem determinar por motivos de igual frivolidade.
165 "Impor limites, mais ou menos arbitrários, à acção dos pais, neste campo delicadíssimo das suas relações com os filhos, que só na intimidade doméstica se podem equacionar convenientemente", escrevem os bispos na declaração de 13 de Novembro de 1970, "é, mesmo com a melhor das intenções, provocar danos muitas vezes irreparáveis."

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O projecto consigna a tese de que o ensino da Religião e Moral nas escolas públicas só seja ministrado aos menores de 16 anos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, expressamente o desejarem.
O artigo XXI da Concordata afirma, por seu turno, que será ministrado o ensino da Religião e Moral Católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias "os alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem feito pedido de isenção 166.
A desarmonia existente entre os dois textos (apesar de limbos eles terem de comum o carácter facultativo da frequência da disciplina) parece incontestável, sobretudo para quem tiver presente que as escolas públicas elementares, complementares ou médias são, de facto, as escolas públicas em cujo programa se inserem aulas de Religião e Moral.
Para que o menor de 16 anos tenha de frequentar (ou possa mesmo frequentar?) aulas desta disciplina, o projecto exige declaração expressa dos pais nesse sentido. Pelo texto da Concordata, só estarão isentos da disciplina, seja qual for a sua idade, os alunos cujos pais tenham feito pedido expresso de isenção.
O Governo invoca, em abono da nova doutrina, duas razões que merecem ser ponderadas.
Há professores de Religião e Moral que, no seu ensino, e afastam ostensivamente se não da pureza da fé ou da autenticidade da doutrina cristã, pelo menos dos termos em que a maior parte dos pais católicos sentem, interpretam e aplicam as suas convicções religiosas.
"Quando em 1940 foi assinada a Concordata - explicou o Sr. Presidente do Conselho, na comunicação de 16 de Novembro de 1970 -, o artigo 21.° estabeleceu que o ensino nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs tradicionais do País. Nenhuma dúvida havia quanto à matéria dessa doutrina, nem quanto aos preceitos dessa moral.
Acontece, porém, que nos últimos anos chegaram com frequência ao Governo reclamações quanto ao modo como, sobretudo em certas dioceses, é orientado o ensino da Religião e da Moral por professores designados pelas autoridades eclesiásticas."
Como não quer arvorar-se em zelador da pureza da fé e dos costumes, quanto ao ensino entregue à Igreja, e deseja compreensivelmente evitar quaisquer atritos na matéria com as autoridades eclesiásticas, o Governo apelou neste ponto para as famílias, por fundadamente as considerar como os juízes naturais da educação cristã dos filhos.
Que a alegação do Governo corresponde a uma realidade, ninguém o poderá duvidar. A Igreja atravessa no presente momento um período de profunda revisão interna, que não pode deixar de se reflectir, com alguns inconvenientes para os jovens, no ensino de uma disciplina como a Religião e a Moral.
Visto serem as famílias quem mais directamente sofre na sua carne os efeitos da instabilidade criada por semelhante conjuntura no espírito dos jovens, compreende-se que elas reajam contra a acção perniciosa de alguns educadores, e só será de louvar tudo quanto o Estado legitimamente possa fazer no sentido de facilitar a salutar reacção dos interessados 167.
Resta saber, porém, se neste caso concreto o faria nos melhores termos.
A Câmara supõe que não.
Limitando o ensino da Religião e Moral nas escolas públicas aos menores de 16 anos cujos pais façam declaração expressa nesse sentido, a nova lei começaria por contrariar, como se viu, a doutrina estabelecida na Concordata.
Além disso, teria ainda o defeito ponderoso de fazer recair sobre a educação dos filhos os efeitos do desleixo, da negligência, da ausência, da ignorância ou de outras causas análogas da falta de declaração dos pais ou encarregados de educação (Dr. António Leite, ob. cit., p. 17), criando na formação daqueles uma lacuna muitas vezes insuprível.
Em relação à necessidade de pedido expresso de isenção, objecta o Governo, porém, com os melindres que pode revestir um requerimento especial nesse sentido, por entender que merece ser respeitada semelhante inibição. Para tal se facultaria os pais o pedido de isenção no próprio acto de inscrição dos alunos.
Há aqui, no entanto, dois aspectos da questão que não podem nem devem ser confundidos.
Uma coisa é saber se, para frequentar as aulas de Religião e Moral, o aluno necessita de declaração expressa dos pais; outra coisa, muito diferente, é saber se, não sendo essencial a declaração positiva dos pais, mas sendo, sem dúvida, facultativo o ensino ida disciplina, o pedido de isenção dela pode ser formulado no acto de inscrição dos alunos.
A Câmara Corporativa, que não hesita em responder negativamente à primeira questão, pelas razões acima expostas, nenhum reparo sério tem, a opor quanto à segunda, que julga não brigar com a solução geral fixada no primeiro parágrafo do artigo XXI da Concordata.

Em face das considerações precedentes, as várias bases destinadas a substituir o texto da base n do projecto poderiam ter a seguinte redacção:

BASE II

É lícito às pessoas, em matéria de crenças e de culto religioso:

a) Ter ou não ter religião, mudar de confissão ou abandonar a que se tinha, agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que se pertença;
b) Exprimir livremente as suas convicções pessoais;
c) Difundir pela palavra, por escrito ou outros meios de comunicação a doutrina da religião que se professa;
d) Praticar os actos de culto, particular ou público, próprios dos fiéis de qualquer confissão religiosa.

166 Regime semelhante estabeleceu em Espanha o artigo 7. °, n.º 3, da Lei de 28 de Junho de 1967. e, em Itália, o artigo 6.º da Lei de 24 de Junho de 1929, e igual faculdade é reconhecida ainda aos pais, relativamente ao ensino da Religião ministrado aos filhos, nas escolas públicas tanto da Alemanha como da Áustria.
167 A circunstância de ordem geral apontada no texto acresce o facto especial, reconhecido expressamente pelas autoridades eclesiásticas, de que o ensino da Religião e Moral careceu sempre de uma orientação básica que, assegurando a sua eficiência, fosse capaz de evitar os abusos e desvios que, na prática, se têm registado, embora não faltem, razões que até certo ponto podem explicar algumas das deficiências até agora registadas na orientação da disciplina.

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BASE III

1. Ninguém será obrigado a declarar se tem ou não religião, nem qual a religião que professa, a não ser, com carácter confidencial, em inquérito estatístico ordenado por lei.
2. Ninguém pode ser perseguido, nem privado de um direito ou isento de um dever, por causa das suas convicções religiosas; e nenhuma discriminação se fará, por motivo delas, no acesso aos cargos públicos ou na atribuição de quaisquer honras ou dignidades oficiais.

BASE IV

O Estado e as empresas devem, na medida do possível, facilitar o cumprimento dos deveres religiosos por parte dos funcionários e trabalhadores, nomeadamente no que se refere à prestação de assistência religiosa pelos ministros do culto que eles professam.

BASE V

Cumprir-se-ão; na realização dos funerais, as disposições tomadas pelo finado; na falta delas, observar-se-ão, segundo a ordem por que vão indicados, os ritos da religião por ele professada, os usos da terra ou as determinações dos seus familiares.

BASE VI

1. É lícita a reunião das pessoas para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos das confissões religiosas.
2. O culto público das confissões religiosas reconhecidas, que tenha lugar dentro dos templos ou lugares a ele especialmente destinados, bem como a celebração dos ritos próprios dos actos fúnebres dentro dos cemitérios, não dependem de autorização oficial nem de participação às autoridades civis.

BASE VII

1. É livre a assistência a actos de culto religioso, ainda que celebrados em unidades militares ou em estabelecimentos públicos.
2. Podem, todavia, os actos de culto religioso ser prescritos em estabelecimentos educativos ou de formação, ou em instituições penitenciárias ou de reeducação, com carácter obrigatório para os menores cujos pais ou tutores não hajam pedido isenção.

BASE VIII

Incumbe aos pais, ou a quem suas vezes fizer, nos termos prescritos para o exercício do poder paternal ou da tutela, decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores.

BASE IX

A liberdade individual em matéria de religião não prejudica a autonomia nem a disciplina interna das confissões religiosas.

BASE III

48. Limites da liberdade religiosa. - Na base III do projecto consideram-se como limites da liberdade religiosa (rectius: de alguns dos direitos nela compreendidos) a vida e a integridade da pessoa humana, os bons costumes os direitos e interesses da soberania portuguesa e os princípios fundamentais da ordem constitucional.
Pela forma, porém, como o texto da base se encontra redigido, a limitação seria dada, não através da incompatibilidade do exercício da liberdade religiosa, (ou de certos direitos nela compreendidos) com os valores salientados pelo legislador, mas do conflito entre estes e a doutrina ou os actos de culto da confissão religiosa.
A primeira ordem de limitações procede do § único do artigo 46.° da Constituição (na sua actual redacção), que apenas refere, no entanto, os actos de culto incompatíveis com a vida e integridade física da pessoa humana e com os bons costumes, bem como ,a difusão de doutrinas contrárias à ordem social estabelecida.
A restrição fundada nos direitos e interesses da soberania de Portugal baseia-se, por seu turno, ma redacção do artigo 139.° do mesmo diploma (cuja eliminação esta proposta na revisão constitucional em curso), estando esta disposição integrada no título VII, que trata do ultramar português 168.
A ideia de que a liberdade religiosa, à semelhança do que sucede com as outras liberdades individuais, não pode exceder certos limites impostos peia necessidade de defender os direitos de terceiros ou de acautelar determinados valores da colectividade é aceite, praticamente, por todas as legislações., não deixando a Declaração Conciliar de lhe fazer frequentes acenos de adesão.
Varia bastante, contudo, a forma como estes limites são definidos nas leis 169.
A Dignitatis Humanac aponta expressamente para a ordem pública (n.° 2, in fine, e n.° 7), nela incluindo as normas exigidas pela tutela e harmonia dos direitos de todos os cidadãos, pela honesta paz pública e pela moralidade pública.
Em contrapartida, a Constituição Italiana de 1947 aboliu intencionalmente a referência à ordem pública, por virtude dos abusos a que a invocação desse limite se teria prestado durante o período anterior, na mão das autoridades policiais 170.
O artigo 8.° do texto constitucional alude antes ao ordenamento jurídico italiano, para consagrar o principio de que todas as confissões religiosas diversas da católica têm o direito de se organizar segundo os seus próprios estatutos, contanto que não contendam com (no difieran con) o ordenamento jurídico italiano.
A Lei Espanhola de 28 de Junho de 1967 refere, por seu turno, as limitações provenientes do acatamento das leis, do respeito devido à religião católica, "que é a da nação espanhola", e às outras confissões religiosas; e ainda à moral, à paz e à conveniência públicas e aos legítimos

168 Diz esse texto o seguinte: "O Estado assegura nos seus territórios ultramarinos a liberdade de consciência e o livre exercício dos diversos cultos, com as restrições exigidas pelos direitos e interesses da soberania de Portugal, bem como pela manutenção da ordem pública, e de harmonia com os tratados e convenções internacionais."
Entre os tratados e convenções internacionais celebrados sobre a matéria, figuram a 1.ª Convenção de Saint-Germain-en-Lay, assinada em 10 de Setembro de 1919.
169 A maior parte das legislações apela, no entanto, para a ordem pública (public policy, nos sistemas anglo-saxónicos; interesse do Estado, na U. R. S. S.): Corral Salvador, na Bev. esp. de der. can., 1968, p. 329.
170 Era a Lei de 24 de Junho de 1929, que subordinava a admissibilidade de cultos diferentes da religião católica à prévia averiguação de que neles se não professavam princípios nem se praticavam ritos contrários à ordem pública e aos bons costumes.

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direitos alheios, como exigências da ordem pública (artigo 2.º)171
Ora, que dizer da fórmula de limitação contida na base III do projecto em exame?
Dois aspectos cumpre distinguir na apreciação imposta pelo preceito.
Um refere-se à identificação dos valores que servem de limites ao gozo e exercício da liberdade religiosa. Outro é o da forma indirecta como o projecto concebe o funcionamento do sistema: consideram-se interditos uns tantos direitos àquelas confissões cuja doutrina ou actos de culto sejam incompatíveis com os valores que ao Estado cumpre salvaguardar.
Começando pelo ponto que se afigura mais fácil de criticar, a Câmara julga não ser inteiramente feliz o critério proposto.
A confissão religiosa cuja doutrina ofenda qualquer dos valores fundamentais que a lei pretende acautelar não deve ser apenas limitada quanto aos direitos discriminados no texto da base. Por que razão lhe deveria ser facultada a instalação de templos, por exemplo, visto ser esse um dos direitos que a base III omite? Se os fiéis de qualquer confissão sacrificassem a vida de certa pessoa, por que não haveriam de ser perseguidos criminalmente, sendo certo que também a garantia consignada na alínea l) da base II é das que não figuram na lista dos direitos sacrificáveis, constante do n.° 1 da base III?
Além disso, a circunstância de certa confissão admitir a prática de um acto de culto, que seja, por exemplo, contrário aos bons costumes exigirá forçosamente que ela seja desde logo privada do exercício de todos os direitos mencionados na base III, mesmo que as autoridades competentes entendam que não é caso de mandar cessar compulsivamente as actividades da confissão?
Por último, a forma como o texto está redigido pode dar ao intérprete a, impressão de que só as confissões (e não as pessoas ou as associações nelas integradas) estão impedidas de praticar os actos que a lei pretende evitar. E não é essa, manifestamente, a orientação mais defensável.
Nestas circunstâncias, o critério que se julga preferível, ao fixar os limites da liberdade religiosa, é o de lazer incidir estes directamente sobre os actos (materiais, intelectuais, jurídicos, etc.) praticados, quer pelos indivíduos isolados, quer pelas pessoas reunidas, seja pelas confissões religiosas, seja pelas pessoas colectivas nelas integradas.
No que toca aos limites concretamente seleccionados, a Câmara nenhuma reserva tem a formular quanto àqueles que o projecto transplanta do § único do artigo 46.° da Constituição (correspondente ao artigo 45.° da proposta, de revisão constitucional). A circunstância de decorrerem no âmbito da actividade, religiosa de modo nenhum legitima a prática de actos que sejam incompatíveis com a vida e integridade da pessoa humana ou se mostrem ofensivos dos bons costumes (cf. supra, n.° 35).
Mais difícil é emitir um juízo seguro acerca dos dois limites restantes.
Dir-se-á, todavia, que o referido em último lugar - baseado nos princípios fundamentais da ordem constitucional -, além de ter uma apreciável vantagem, pela sua maior precisão, sobre o critério clássico da ordem pública, parece susceptível de cobrir, por si só, todos os valores essenciais da comunidade que ao Estado incumbe acautelar nesta matéria 172, além dos que tocam aos bons costumes, à vida e integridade das pessoas. Os próprios direitos da soberania portuguesa, que a base III refere discriminadamente, se podem julgar compreendidos entre os princípios fundamentais da ordem constitucional (cf. artigos 1.° e 2.° da Constituição).
Ressalva-se apenas, por uma questão de precaução, a limitação baseada nos interesses da soberania portuguesa.
Pode, realmente, suceder que determinada reunião de sequazes de certa religião não constitua, em si mesma considerada, uma violação dos direitos da soberania portuguesa (e não seja, por conseguinte, uma infracção dos princípios fundamentais da ordem constitucional), mas ponha em perigo os interesses da soberania portuguesa.
A hipótese dificilmente se verificará, na prática, quanto à metrópole, mas pode com mais facilidade ocorrer no ultramar 173 , por de antemão se saber como as reuniões de carácter (real ou aparentemente) religioso constituem um veículo particularmente cómodo e expedito para a circulação de todas as ideias subversivas.
Na redacção do preceito sugerido pela Câmara houve ainda a preocupação de o ajustar ao texto proposto para o artigo 45.° da Constituição no parecer sobre a revisão constitucional.

49. O metapsiquismo. - Um outro limite imposto à liberdade de pensamento em matéria da religião é o que resulta indirectamente da circunstância de o projecto não considerar religiosas as actividades ligadas aos fenómenos metapsiquicos ou parapsíquicos.
Com o termo genérico metapsiquismo (ou parapsiquismo) designam os autores o conjunto de teorias assentes sobre a existência de uma força psíquica que os crentes julgam capaz de actuar a distância, sobre os vários seres que povoam o Universo. Nele cabem o espiritismo (fundamentalmente caracterizado pela comunicação, provocada, com es espíritos do além), a telepatia, a clarividência, a magia, o magnetismo individual, etc.
A atitude de espírito do projecto em relação a estes fenómenos, metapsiquicos ou parapsíquicos parece ser a mais prudente.
Em lugar de proferir sobre eles um anátema da ordem geral, desprezando o interesse que podem ter os estudos sobre a matéria, o projecto limita-se a afirmar que não são consideradas religiosas as actividades ligadas a esses fenómenos.
Do ponto de vista prático, a disposição legal significa que, não sendo embora interditas em absoluto tais actividades, elas não gozam do tratamento especial que a lei concede às actividades religiosas.
Os vários sectores ou departamentos do metapsiquismo estão de tal modo tipificados na prática que não vale

171 Veja-se, sobre estas várias limitações, o desenvolvido comentário do P.° Joaquim López de Prado, intitulado "Recepción de la libertad religiosa en el ordenamento jurídico español, na Rev. esp. de der. can., 1967, pp. 592 e segs.
172 É fácil verificar como estão em manifesta colisão com os princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa algumas das ideias aceites pelos adeptos da Watch Tower (mais vulgarmente designados por Testemunhas de Jeová). 0 Prof. Silva Cunha fornece, no estudo cheio de interesse sobre os Aspectos dos Movimentos Associativos na África Negra, i, pp. 61 e segs., uma descrição muito minuciosa, quer das origens deste movimento, fundado em 1872, por C. Taze Russel, na Pensilvânia, quer das linhas gerais da sua doutrina.
173 O limite fundado nos interesses da soberania nacional pode revestir, de facto, grande interesse em relação às províncias ultramarinas. Alguns dos movimentos confessionais registados, quer em Cabo Verde (núcleo dos "rebelados"), quer em Angola (Testemunhas de Jeová; kitawala; kimbanguismo; lassismo; tocoismo; Fé de Santo Estêvão; Santos e Santas; seita "Simão Tasi"; Mambanda), não parece que sejam de carácter estritamente religioso.

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a pena perder tempo, quer a caracterizar cada um deles, quer a fixar a linha divisória entre a Religião, de um lado, e o metapsiquismo em geral, do outro.

Na sequência das considerações expostas, a Câmara sugere, quanto às matérias reguladas na base III do projecto, a seguinte disposição:

BASE X

1. A ninguém será lícito invocar o direito à liberdade religiosa para a prática de actos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física ou a dignidade das pessoas, os bons costumes, os princípios fundamentais da ordem constitucional ou os interesses da soberania portuguesa.
2. Não são consideradas religiosas as actividades relacionadas com os fenómenos melapsíquicos ou parapsiquicos.

BASE IV

50. Regime de separação. - Depois das largas considerações já tecidas em torno da questão da separação, bastará uma breve reflexão sobre os dois preceitos contidos na base IV do projecto, que a Câmara sugere sejam deslocados para a parte final dia disciplina das organizações religiosas em geral, de acordo com o programa sistemático a que obedece o novo articulado proposto.
A afirmação dogmática de que as relações do Estado com as organizações correspondentes às diversas confissões religiosas assentam no regime de separação está certa, não levanta dúvidas neste momento em qualquer dos seus aspectos e tem perfeito cabimento do diploma.
O apêndice introdutório dessa tese, traduzido na proclamação nua e crua de que o Estado não tem religião própria, é que já se afigura desnecessário, uma vez assente que as relações do Estado com as várias confissões religiosas, sem exceptuar a católica, se regem pelo princípio da separação.
Além de supérflua, a disposição pode considerar-se mesmo inconveniente, quer pelo seu pronunciado sabor laicista, que traz imediatamente ao espírito, por natural associação de ideias, embora guardadas as devidas distâncias, a forma um tanto agressiva como o artigo 4.° da Lei da Separação afirmava, que "a República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum"174, quer pela manifesta desarmonia existente entre a afirmação descarnada da arreligiosidade do Estado, por um lado, e o seu compromisso doutrinário em matéria de educação, a proclamação da religião católica como religião da Nação Portuguesa ou o reconhecimento da sua posição especial no seio da comunidade nacional, do outro.
É caso de voltar a insistir ma observação de que a liberdade religiosa não tem um puro sentido negativo, expresso na eliminação de qualquer coacção sobre o pensamento ou a acção dos homens em matéria de religião. Ela reveste ainda um sentido marcadamente positivo, inspirado no valor social do fenómeno religioso, que obriga o Estado, embora de modo indirecto, a criar condições propícias ao seu livre exercício 175.
Também a Câmara pensa que não deve manter-se no diploma o princípio da igualdade de tratamento jurídico das diferentes confissões.
Trata-se de um princípio que não é necessário à regra fundamental da liberdade religiosa.
O que a ideia salutar da liberdade religiosa reclama do Estado é que a todos os indivíduos e confissões seja assegurada, dentro dos limites objectivos (razoáveis, a livre expressão do pensamento, bem como o livre exercício da sua actividade em matéria de religião, e que nenhuma discriminação se faça, contrária à regra da igualdade dos cidadãos perante a lei, com fundamento no seu credo religioso.
O facto de, uma vez assegurado esse desiderato, o Estado dar expressão jurídica real à diversíssima repercussão que as várias religiões tenham na vida moral e social da comunidade, em nada colide já com a ideia da liberdade religiosa.
A fórmula para este efeito adoptada mo n.° 2 da base IV do projecto, apelando para "as diferenças impostas pela sua diversa representatividade", não se afigura à Câmara inteiramente satisfatória.
Se pretende abranger a religião católica, haveremos de convir em que é demasiado inexpressiva esta diversa representatividade com que o projecto pretende retratar a sua influência secular na história da Nação, na missão superior da comunidade, na formação moral do povo português.
Se deixa de fora a religião católica, dificilmente se vislumbra o fundamento prático da afirmação.
De qualquer dos modos, trata-se de proposição que, no entender da maioria da Câmara, deve ser eliminada, podendo a base relativa à matéria versada limitar-se a dizer o seguinte:

BASE XXX

As relações do Estado com as organizações correspondentes às diversas confissões religiosas assentam no regime de separação.

Base V

51. O disposto na base V do projecto está prejudicado pela redacção da base que a Câmara sugere para regular a articulação do poder paternal com a educação religiosa dos filhos (cf. base VIII do texto proposto).

Base VI

52. Assistência a actos de culto religioso. - Na base VI declara-se facultativa a assistência a actos de culto religioso, sem excepção dos celebrados em unidades militares ou em estabelecimentos públicos 176.
Princípio correspondente, mas ainda assim bastante diferente em vários aspectos, consagra a lei espanhola de 1967, quando no artigo 5.°, n.° 2, se declara que "nas forças armadas não se imporá a assistência aos actos de culto, salvo nos actos de serviço, aos que fizerem saber a sua qualidade de não católicos ao ingressar naquelas" e que "regime análogo será observado nos estabelecimentos penitenciários".
Conclui-se deste preceito que a assistência aos actos de culto é obrigatória para os católicos, quer nas cerimónias de preceito das forças armadas, quer nas de estabelecimentos penitenciários.

174 Tradução literal, aliás, do artigo 2.° da lei francesa de separação, de 11 de Dezembro de 1905: "La République ne reconnait, ne salarie ni ne subventionne aucun culte..."
175 No mesmo sentido o n.° 3 da Declaração do episcopado da metrópole sobre o problema da liberdade religiosa, datada da 13 de Novembro de 1970.
176 Ver, porém, o disposto no artigo XXI, II, da Concordata.

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Quanto às pessoas não católicas, já não vigora o mesmo princípio da obrigatoriedade; mas, para tal, torna-se indispensável a declaração prévia, feita pelos interessados, já que não professam a religião católica.
No texto, do projecto em exame, o carácter facultativo à assistência aos actos de culto vale tanto para civis, no para militares, e em caso algum pressupõe a declaração prévia sobre a confissão que se professa.
A solução merece a concordância da Câmara.
A forma como está consagrada é que necessita de uma ligeira modificação, para ficar correctamente integrada no esquema do projecto.
O carácter facultativo da assistência aos actos de culto, resulta já do disposto na base II. Nada custa, no entanto, reconhecer a vantagem de repetir o princípio relativamente aos actos celebrados cm unidades militares (embora se saiba que essa é a prática estabelecida desde que foi criado o Vicariado Castrense) ou em estabelecimentos públicos, pelas dúvidas que legitimamente poderiam suscitar-se, quer por virtude da disciplina específica das forcas armadas, quer em face dos regulamentos especiais de determinados estabelecimentos civis. Mas só quanto a estes dois núcleos especiais de situações a reafirmação do princípio se justifica. Relativamente aos demais, legem habemus!
O preceito formulado no n.° 2 da base VI necessita apenas de duas ligeiras alterações: uma, destinada a harmonizar a doutrina do preceito com a solução proposta para os maiores de 16 anos, mas menores de 21, em matéria de opção religiosa; outra, com o objectivo de incluir explicitamente na previsão do artigo os estabelecimentos penitenciários ou de reeducação a cargo do Ministério da Justiça, nos quais plenamente se justifica a aplicação do regime geral previsto para os estabelecimentos educativos ou de formação, visto ser essa a doutrina exigida pelo 2.° parágrafo do artigo XXI da Concordata, ao falar expressamente nos institutos de correcção ou reforma dependentes do Estado.
Todas estas modificações estão feitas no texto da base VII sugerida pela Câmara a propósito da base do projecto em que se define a liberdade religiosa.

Base VII

53. De harmonia com o plano de distribuição das matérias em que assenta o articulado sugerido pela Câmara, os dois números incluídos na base VII do projecto são separados e seguem rumos diferentes.
O primeiro é avocado pelo preceito em que se trata do vulgarmente chamado direito de reunião (Cf. o texto da base VI proposto ao Governo pela Câmara). O outro é deslocado para a secção que trata das confissões religiosas (base XIX do articulado sugerido pela Câmara).
Num e noutro caso se respeita a substância das soluções alvitradas pelo Governo, com ligeiras alterações de redacção.
O regime fixado para a faculdade de reunião coincide, no essencial, com a regulamentação estabelecida na legislação vigente.
A matéria está hoje regulada no Decreto-Lei n.° 22 468, de 11 de Abril de 1933, depois de ter sido sucessivamente disciplinada no artigo 2.° do Decreto n.° 3856, de 22 de Fevereiro de 1918 (que permitia os actos de culto público de qualquer religião, nos lugares adequados e a qualquer hora, sem necessidade de autorização policial), e no artigo 18.° do Decreto n.° 11 887, de 6 de Julho de 1926 (que autorizava o culto público, mesmo fora dos lugares a isso habitualmente destinados, nos termos em que era lícito exercer o direito de reunião).
O diploma de 1933 prescinde também da autorização oficial para o exercício do direito de reunião em geral (salvo tratando-se de reuniões com fins de propaganda política ou social), mas exige a participação prévia, por escrito, com antecedência de 48 horas, do dia, hora, local e fins da reunião (artigo 2. °).
Há, porém, reuniões a que não é aplicável esta formalidade da participação prévia, entre elas figurando (§ 2.° do artigo 2.°) "as que se realizem para fins do culto público de qualquer religião". Mas já a proibição da realização nas praças e vias públicas, estabelecida no artigo 3.°, é aplicável a todo o género de reuniões, sem prejuízo do que posteriormente se dispôs no artigo XVI da Concordata, quanto aos actos de culto da Igreja Católica.
É este o regime que, nas suas Unhas gerais, apareceu consagrado no projecto do Governo e que merece a aprovação da Câmara.
No n.° 2 da base VII apenas se propõe ligeira, modificação na redacção:

BASE XIX

A construção ou instalação de templos ou lugares destinados à prática do culto só é permitida às confissões religiosas reconhecidas, mas não depende de autorização especial, estando apenas sujeita às disposições administrativas de carácter geral.

Bases VIII e XI

54. Direito de associação. Reconhecimento das confissões religiosas e das associações que nelas se integram. - O projecto trata em seguida das formas em que pode concretizar-se, no domínio da Religião, o direito de associação.
Há, neste campo, que distinguir entre a Igreja Católica e as confissões não católicas, por um lado; e entre as confissões e as associações religiosas que nelas se integram, por outro.
Quanto à Igreja Católica, nenhuma dificuldade especial se levanta. A Concordata e a Constituição reconhecem expressamente a sua personalidade jurídica, não havendo necessidade de repetir esse reconhecimento no presente diploma.
Quanto às confissões não católicas, verifica-se que a base VIII procurou justificadamente rodear das necessárias cautelas o processo do seu reconhecimento (sem prejuízo das ideias gerais definidas nos artigos 1.° e 2.° do Decreto-Lei n.° 39 960, de 20 de Maio de 1954), exigindo um corpo bastante significativo de fiéis (500 requerentes, pelo menos, devem firmar o pedido de reconhecimento) 177 e uma descrição bastante precisa da doutrina, dos actos de culto e da organização hierárquica próprios da confissão.
A verdade, porém, é que todo o pensamento estruturado no n.° 2 da base, para o efeito da obtenção do reconhecimento, parece imbuído da ideia menos rigorosa de que a confissão religiosa brota ou pode nascer da declaração de vontade contida no papel selado em que o requerimento é formulado. É ali, no requerimento, que há-de mencionar-se

177 Muito menos exigente é, neste aspecto, a lei francesa de separação (artigo 19.°), embora a disposição se refira apenas às associações destinadas a sustentar o culto: cf. Corral Salvador. "Valor comparado de la legislación española de libertad religiosa", na Rev. esp. de der. can., 1968, p. 324.
As precauções tomadas no projecto português (base VIII, n.ºs 3 e 4) quanto às confissões relacionadas com país estrangeiro têm perfeita justificação e integram-se, de resto, na linha de orientação definida pelo artigo 25.° do Decreto-Lei n.° 37 447, de 13 de Junho de 1949.

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o nome da confissão, em termos de ele não dever confundir-se com os de outras confissões já existentes, à semelhança de quanto o direito mercantil exige para a firma ou denominação das sociedades comerciais que de novo se pretenda constituir, ou para as marcas dos produtos que vão ser lançados no mercado, e que também não devem prestar-se a confusões com outras sociedades ou produtos já existentes.
E no mesmo requerimento que há-de proceder-se à descrição geral dos actos de culto do novo credo, e assim por diante.
Ora, é de toda a conveniência dar aos preceitos da lei uma redacção que afaste por completo essa ideia, falsa e perigosa, de que para criar ou fundar uma religião bastarão umas dúzias de artigos gramaticalmente alinhavados sobre urnas tantas folhas de papel selado 178.
Não deixa, porém, de reconhecer-se como pode ser descabida a exigência da prova dos requisitos essenciais à existência de uma confissão religiosa, quando aplicada a comunidades como a judaica ou a muçulmana, há muito instaladas em território nacional. Deve o Governo, em tais casos, poder prescindir dessa prova. Quanto às confissões que tenham elementos de conexão com o estrangeiro, reconheceu-se a necessidade de acautelar, mediante indagação adequada, certas dificuldades especiais que elas podem suscitar, mas não se julgou conveniente fixar desde já ria lei um figurino muito rígido, pelo risco de ele nem a todas se adaptar.
Quanto à distinção entre as confissões religiosas e as associações que nelas se integram, parece ser este, realmente, o momento oportuno de proceder a uma revisão da noção legal de associações religiosas, visto não serem isentas de dúvidas as disposições do Código Administrativo reguladoras da matéria.
A noção dada nesse sentido na base XI do projecto parece sofrer de um duplo defeito.
Por um lado, aludindo apenas às associações, deixam-se fora do conceito legal as fundações religiosas 179, como sejam as massas de bens (e já não os núcleos ou agrupamentos de pessoas, os entes colegiais ou universitates personarum) afectadas unitàriamente à realização de certo fim (religioso) e às quais a lei atribui personalidade jurídica.
Estas pessoas morais não colegiais existem, com grande variedade, no domínio da organização católica. Basta lembrar as dioceses, as mitras, os seminários, as antigas colegiadas 180, as fábricas das igrejas paroquiais, os benefícios paroquiais, etc. 181.
Ora, nenhuma razão existe para que tais pessoas morais eclesiásticas não continuem, como pessoas colectivas religiosas, a gozar da protecção que a Concordata lhes quis conceder quando, no artigo m, ao assegurar o reconhecimento normativo da sua personalidade, se referiu intencional e discriminadamente às associações, corporações institutos religiosos canonicamente erectos 182.
E, se assim sucede quanto aos institutos religiosos católicos 183, nenhuma razão se descortina também para denegar o reconhecimento (embora em termos diferentes do prescritos na Concordata) de personalidade jurídica aos institutos religiosos não católicos.
Por ombro lado, em obediência ao critério restritivo fixado na lei administrativa (artigo 449.°), o projecto continua a limitar o conceito das associações religiosas às pessoas morais que têm por fim principal a sustentação do culto.
Essa limitação não se coaduna de modo nenhum, quanto às pessoas colectivas católicas, com o espírito e a letra do instrumento concordatário 184. Ao falar amplamente nas associações, corporações ou institutos religiosos canonicamente erectos, a Concordata não quis com certeza deixar fora do campo de aplicação dos artigos III e IV aquelas corporações ou institutos, como as pias uniões (destinadas à prática de actos de piedade e de caridade) ou as ordens terceiras seculares (apostadas em promover a perfeição cristã dos seus membros), tradicionalmente admitidos no seio da igreja católica (cf. Cânone 685 do C. D. C.), mas afectados a outros fins religiosos, que não a mera sustentação do culto 185.
Entre os tipos de associações eclesiásticas genericamente discriminadas nesse preceito do Código de Direito Canónico, incluem-se as destinadas a promover uma vida cristã mais perfeita (cân. 702 e segs.) ou a realizar obras de piedade ou de caridade. E entre as primeiras parece caberem perfeitamente organismos de carácter cultural (e por que não recreativos?). Alias, na própria Declaração Conciliar sobre a liberdade religiosa se diz (n.° 4, in fine) textualmente o seguinte: "Na natureza social do homem e na própria índole da religião se funda o direito pelo qual os homens, levados pelo sentimento religioso, podem livremente reunir-se ou formar associações educativas, culturais, caritativas e sociais."
E também não parece muito razoável nem equitativa a ideia de limitar a restrição às pessoas colectivas não católicas. Uma vez que as respectivas confissões sejam legalmente reconhecidas, não existirá fundamento sério para impedir que o âmbito das, corporações ou institutos reli-

178 Sobre as dificuldades que na jurisprudência norte-americana pode suscitai a caracterização de uma verdadeira religião ou confissão religiosa em face de uma pura seita ou heresia, v. Dodge, est. cit., pp. 688 e segs.
179 Note-se, porém, que na base XIV do projecto se faz já expressa referência às associações e fundações de fins religiosos, para dizer que elas se administram livremente, dentro dos limites da lei.
180 Cf. Amaro de Schenkl, Instituições de Direito Eclesiástico, trad. de Chaves e Castro sobre a 11.ª ed., §§ 249 e 255.
181 Cf., sobre a natureza e os fins das fábricas das igrejas paroquiais e dos benefícios paroquiais (que sucederam, às antigas comissões fabriqueiras), o respectivo Regulamento Geral, aprovado por decreto de 17 de Janeiro de 1962 do Episcopado Português.
182 Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, X, p. 88, nota 1, pp. 106 e segs.; Prof. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8.ª ed., I, p. 375, nota 2; Dr. Barbosa de Melo, As Pessoas Colectivas Eclesiásticas e Católicas e o Artigo 161.º do Código Civil, 1970, pp. 5 e segs.
183 Parece que deve preferir-se neste domínio a terminologia mais usual do direito canónico (institutos: cf. Prof. Sebastião Cruz, est. cit., p. 8) à da lei civil (fundações), não só por se tratar de pessoas colectivas religiosas a que o Código Civil, em princípio, se não aplica, roas porque o termo "fundação" olha especialmente ao carácter liberal do acto que serve de origem à pessoa colectiva, enquanto o vocábulo "instituto" retrata directamente o fenómeno da autonomização jurídica de certa massa de bens; e é este o aspecto que especialmente interessa nas relações das pessoas colectivas religiosas não colegiais com o Estado.
184 Tomada rigorosamente ao pé da letra, a noção que o projecto importou do Código Administrativo (artigo 449.°) apenas cobriria as confrarias e as fábricas das igrejas, no que toca às pessoas morais católicas.
Advirta-se, aliás, que o § único aditado ao artigo 449.° do Código Administrativo pelo Decreto-Lei n.° 31 386, de 14 de Julho de 1941, admite claramente a existência de associações ou organizações dias igrejas (incluindo ia Igreja Católica), que exorbitem do conceito legal restrito de associações religiosas.
185 Do próprio texto do artigo IV (2.ª parte) da Concordata se depreende que as pessoas colectivas eclesiásticas católicas que, além de fins religiosos, prossigam a realização de fins de assistência ou beneficência, podem adquirir personalidade jurídica nos termos expeditos assegurados pela disposição anterior. Nesse sentido, Dr. Barbosa de Melo, est. cit., p. 5.

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giosos se estenda, com respeito das normas legais aplicáveis, a finalidades como, v. g., o aperfeiçoamento moral, o recreio ou a cultura dos fiéis ou ministros da confissão, a prática da pidedade religiosa, etc. 186 A ideia de, mais que secularizar ou publicizar, ir até ao ponto de burocratizar, além do estritamente indispensável, todo o movimento da beneficência e da assistência, divorciando-o por completo do ambiente de piedade e de caridade cristãs em que durante séculos floresceram os mais elevados sentimentos de solidariedade humana, não é positivamente, a que melhor se presta a canalizar para o vasto reservatório do bem comum todas as energias morais aproveitáveis na complexa rede do agregado social.
Pode, é certo, argumentar-se contra a excessiva proliferação das pessoas colectivas ou o seu empolamento patrimonial com os reconhecidos inconvenientes de retenção nas suas mãos de uma parcela importante da riqueza nacional. Mas os perigos da mão morta combatem-se por outros meios, que não a limitação artificial da área de ocupação reservada a determinada categoria de pessoas morais.
As duas ordens precedentes de considerações explicam as principais alterações propostas pela Câmara à redacção da base XI do projecto.
Amplia-se a noção de associações religiosas, incluindo nelas as associações ou institutos com outros fins religiosos, que não a sustentação do culto. Mas não se prescinde de que tenha carácter especificamente religioso o seu fim predominante 188.
Este requisito pouca importância prática terá quanto às associações ou institutos católicos, canonicamente erectos, cuja constituição tenha sido participada à autoridade civil competente nos termos do artigo m da Concordata. Mas reveste um interesse decisivo, quer quanto às pessoas colectivas religiosas não católicas, quer em relação às pessoas colectivas católicas cuja constituição não tenha sido participada nos termos concordatários.
Quanto às associações ou institutos, católicos ou não católicos, que, além dos fins religiosos, se proponham também fins de assistência ou beneficência, em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações por eles aceites, a sua actividade de assistência ou beneficência está sujeita a fiscalização oficial, nos termos do artigo IV da Concordata e do artigo 453.° do Código Administrativo.
Quanto aos institutos de assistência ou beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por organizações religiosas, haverá que distinguir.
Tratando-se de institutos que, pela área a que se destina a sua actividade, possam ser considerados como pessoas colectivas de utilidade pública (local) administrativa, ser-lhes-á aplicável o disposto no artigo 454.° do Código Administrativo 189.
Se a sua actividade não aproveitar especialmente aos habitantes de determinada circunscrição (hospital destinado apenas aos fiéis de certa confissão religiosa, casa de repouso para padres doentes ou idosos, etc.), e essa actividade predominante for considerada especificamente religiosa, o instituto será ainda uma organização religiosa, mas já não estará sujeito ao regime próprio dos institutos de utilidade local.

O projecto fixa no Ministério do Interior a competência do Governo para intervir na matéria das fundações e associações religiosas. A Câmara hesitou, porém, entre atribuir essa competência ao Ministério do Interior, como vem no projecto, ou ao Ministério da Justiça, como faz a lei espanhola e seria mais conforme à solução com mais tradições entre nós.
À cautela, o texto sugerido pela Câmara remete em termos genéricos para o Governo, na ideia de se lixar mais adiante, em regulamento adequado, o Ministério competente.
De harmonia com as considerações expostas, as bases VIII e XI do projecto deveriam ser substituídas por disposições com a seguinte redacção:

BASE XII

1. As confissões religiosas podem obter, mediante reconhecimento, a atribuição de personalidade jurídica à organização correspondente ao conjunto dos respectivos fiéis.
2. O reconhecimento será pedido ao Governo, em requerimento subscrito por um número não inferior a 500 fiéis, maiores e domiciliados em território português.
3. Do requerimento devem constar os elementos necessários à prova da existência da confissão em território nacional, incluindo os princípios essenciais da sua doutrina, o nome da confissão, a descrição geral dos actos de culto, as regras da disciplina e hierarquia

186 Verifica-se, no entanto, pela simples leitaria das disposições que no Código Administrativo regulam as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, bem como as associações religiosas (artigos 416.° e segs. e 449.° e segs.), que o Estado pretende mio só inspeccionar e fiscalizar, mas coordenar também a acção dos organismos que, no plano da administração local, se consagram a actividades beneficentes ou de assistência. Cf., quanto ao ultramar, o disposto no antigo 561.° da Reforma Administrativa Ultramarina. É este legítimo chamamento da coordenação da beneficência e da assistência local ao plano superior idos fins do Estado não pode, realmente, ser descurado pelo legislador numa apreciação global da matéria.
187 Muitos das finalidades referidas podem ser, e são de facto muitas vezes, prosseguidas por meio de realizações concretas das associações religiosas, realizações que não chegam, todavia, a ser autonomizadas.
E elucidativo, nesse aspecto, o que se prescreve nos n.ºs 2.º e 3.° do artigo 38.° do Regulamento Geral da Fábrica da Igreja e do Benefício Paroquial:

2.º Porque o pároco deve ter o maior cuidado com a formação religiosa dos fiéis, a fim de que nada aprendam contra a fé e os costumes, a fábrica da igreja pode fundar infantários, asilos, patronatos, lares, escolas, oratórios, construir salões paroquiais, casas de recreio, cinemas, etc. (cf. Cânones 467, § 1.°, e 469);
3.° Porque o pároco deve abraçar, na sua caridade fraternal, os pobres e os indigentes e ajudar, com toda a solicitude, os doentes, principalmente os moribundos, a fábrica pode fundar obras de previdência, hospitais, casas de repouso, etc. (Cf. Cânones 467 e 468.)

Algumas destas iniciativas poderão dar lugar à formação dos institutos (de assistência ou beneficência) a que se refere o artigo 454.° do Código Administrativo; porém, a maior parte delas funcionará, sem autonomia, sob a directa gestão da associação religiosa (lato sensu), que é a fábrica da igreja. Neste caso, a obrigação de prestação de contas às entidades civis oficiais só existirá quando a actividade de assistência ou beneficência se executor "m cumprimento de deveres estatutários ou de encargos impostos em liberalidades.
188 Cf., a propósito, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo sobre o recurso interposto pela Venerável Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade (Colecção de Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, XVII, 1951, p. 551).
189 Os traços comuns ao regime jurídico das pessoas colectivas de utilidade administrativa local estão sinteticamente descritos no Manual de Direito Administrativo (do Prof. Marcello Caetano), 8.ª ed., I, p. 867.

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da organização, a identidade dos dirigentes e a duração da sua prática no País; na falta de indicações suficientes, a entidade competente fixará o prazo dentro do qual o requerimento haja de ser completado.
4. Se a organização tiver estatuto estrangeiro ou depender de outra com estatuto estrangeiro, poderá o Governo exigir não só os meios de prova necessários ao pleno conhecimento do regime a que ela fica sujeita, como a subscrição do requerimento por parte das entidades responsáveis.
5. O Governo pode ordenar os inquéritos que julgue indispensáveis à prova, tanto da existência da confissão, como da prática efectiva do seu culto em território nacional, e pode dispensar a prova de qualquer destes requisitos quanto às confissões há mais tempo radicadas em território português.

BASE XIV

São consideradas associações religiosas todas as corporações ou institutos que tenham como fim principal o sustentação do culto de uma confissão religiosa já reconhecida, ou qualquer outra actividade especificamente religiosa, contanto que num ou noutro caso se constituam de harmonia com as normas e disciplina da respectiva confissão.

Antes, porém, da primeira destas duas bases, conviria incluir, como disposição introdutória de toda a secção consagrada às confissões, associações e institutos religiosos, um preceito do seguinte teor:

BASE XI

Podem as várias religiões ou confissões religiosas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua disciplina e hierarquia e com observância das prescrições legais, sendo permitido constituir, dentro de cada uma delas, associações ou institutos destinados a assegurar o exercício do culto ou a prossecução de outros fins religiosos.

Bases IX e X

55. Nenhuma objecção, de carácter substancial, há que formular em relação ao disposto nas bases IX e X do projecto. Apenas se sugere a reunião das duas disposições numa única base, atenta a afinidade dos preceitos nelas contidos, e uma ou outra alteração de pormenor, que não afecta a essência da disciplina proposta.
Quanto à actuação da organização por meios ilícitos, entendeu-se que a disposição deve ser aproximada do disposto no artigo 182.°, n.° 2, alínea c), do Código Civil, que não se satisfaz, para a extinção das associações em geral, com a prática de actos ilícitos ou imorais isolados, exigindo para o efeito um recurso sistemático a actos dessa natureza.
Quanto à prática de actividades estranhas aos fins próprios das confissões, aceitou-se que não bastará a actuação de alguns membros da organização para que esta incorra na sanção cominada; o desvio há-de ser imputável à própria organização, devendo ter-se presente o considerável alargamento de que beneficia, no articulado sugerido pela Câmara, o círculo dos fins próprios das confissões religiosas. Além disso, haverá que distinguir sempre entre a prática do culto e as actividades da organização, pois são estas, e não aquela, as atingidas pelas sanções previstas na base.
Assim, em lugar das bases IX e X do projecto, a Câmara sugere o seguinte texto para uma só base:

BASE XIII

1. O reconhecimento pode ser revogado, quando se mostre que a organização é responsável pela violação do disposto na base X, actua sistemàticamente por meios ilícitos ou imorais ou se dedica a actividades estranhas aos fins próprios das confissões religiosas.
2. Notificada a revogação do reconhecimento, cessarão imediatamente as actividades da organização incorrendo em crime de desobediência todos os que nelas prosseguirem.

Bases XII e XIII

56. São também de mero pormenor as alterações de redacção propostas pela Câmara em relação às bases XII e XIII do projecto.
Houve acima de tudo a preocupação de harmonizar o texto destas disposições com o rigor da terminologia adoptada no capítulo das organizações religiosas.
A forma sugerida é a seguinte:

BASE XV

1. As associações ou institutos religiosos adquirem personalidade jurídica mediante o acto de registo da participação escrita da sua constituição pelo órgão competente da confissão religiosa reconhecida; a participação será apresentada e o registo efectuado nos termos que em regulamento forem fixados.
2. Em caso de modificação ou extinção da associação ou instituto, far-se-á participação e registo nos termos estabelecidos para a sua constituição.

BASE XVI

A revogação do reconhecimento de uma confissão religiosa determina a extinção das respectivas associações ou institutos religiosos, e bem assim das outras pessoas colectivas que dela dependam.

Bases XIV e XV

57. Capacidade patrimonial das confissões, associações ou institutos religiosos católicos. Actos de aquisição e disposição de imóveis. - Para se apreciar com real conhecimento de causa as soluções adoptadas no projecto, em matéria de capacidade patrimonial das confissões, associações ou institutos religiosos (bases XIV e XV), e medir o alcance das limitações impostas aos seus poderes de administração, torna-se indispensável recapitular, ainda que em termos bastante sucintos, os pontos fundamentais da legislação vigente.
Comecemos pelas associações ou institutos religiosos católicos.
Se visam, apenas a prossecução de fins religiosos, o artigo IV da Concordata (convertido em direito interno, como é sabido, pelo artigo 61.° do Decreto-Lei n.° 30 615) consagra o princípio da sua livre administração, sob a vigilância e fiscalização da autoridade eclesiástica competente, e remete, quanto á capacidade de aquisição e disposição de bens, para a legislação aplicável ("legislação vigente", diz o texto concordatário) às outras pessoas morais perpétuas.
Se, além de fins religiosos, as associações ou institutos católicos se propuserem também fins de assistência ou de beneficiência, em cumprimento de deveres estatutá-

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rios ou de encargos inerentes a liberalidades que lhes, tenham sido feitas, ficarão sujeitos, mas apenas nessa parte, às disposições do direito interno, válidas para as pessoas colectivas votadas a fins de assistência ou de beneficência 190.
Aos institutos de assistência ou beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por associações religiosas (neste caso, tanto católicas como não católicas) será aplicável, por seu turno, nos termos anteriormente expostos, o regime legal dos institutos de utilidade local de fins análogos, "sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos que os informam".
O regime jurídico aplicável à capacidade de aquisição e disposição de bens das pessoas morais perpétuas, à data em que a Concordata foi subscrita (para o qual remete o artigo IV deste diploma), estava contido, quanto ao essencial, nos artigos 34.° e 35.° do Código Civil de 1867.
Da leitura conjugada destes dois preceitos resultava que as associações ou institutos católicos tinham capacidade para adquirir a título oneroso os imóveis indispensáveis ao desempenho dos seus deveres e podiam adquirir esses imóveis a título gratuito, sem pagamento de qualquer imposto periódico.
Quaisquer outros imobiliários que fossem adquiridos a título gratuito ficavam sujeitos ao pagamento do imposto periódico (por cada período de trinta anos).
Quanto aos actos restantes de aquisição, alienação ou oneração, vigorava o princípio da especialidade, fixado ao artigo 34.º
Publicado o Código Civil de 1966, a breve trecho se levantou, porém, a questão de saber, não obstante o disposto no artigo 6.° da respectiva lei preambular, se são ou não aplicáveis às associações e institutos católicos as novas regras definidoras da capacidade patrimonial das pessoas colectivas, que sujeitam a autorização do Governo todas as aquisições de imóveis a título oneroso, bem como a alienação ou oneração deles a qualquer título (artigo 161.°, n.° 2).
Várias razões podem ser invocadas no sentido da inaplicabilidade da nova lei civil 191, sendo a principal delas extraída logo da ratio legis do artigo 161.º do novo Código.
Facultando às pessoas colectivas a livre aquisição de imóveis a título gratuito (depois de se haver atenuado a excessiva rigidez do princípio da especialidade no artigo 160.°) e sujeitando ao regime da autorização governamental todas as alienações ou onerações de imóveis, o artigo 161.º afasta-se manifestamente da linha das providências legislativas que procuram evitar o aumento dos bens de mão morta, para acautelar interesses gerais da economia do País. O seu objectivo é visivelmente outro: trata-se de defender as próprias pessoas colectivas, pela natureza dos interesses que elas são chamadas a gerir, contra os perigos de uma administração ruinosa por parte dos seus dirigentes 192.
Ora, se nenhuma dúvida pode legitimamente levantar-se acerca do seu cabimento quanto às pessoas colectivas integradas na órbita dos fins do Estado, esse objectivo seria de todo em todo deslocado, da parte do Governo, em relação às pessoas colectivas eclesiásticas, atento o regime de separação existente entre a Igreja e o Estado.
Como a dúvida, porém, se levantou e tem dado lugar a pontos de vista desencontrados no seio da Administração Central, considera-se oportuna a resolução explícita da questão, no breve capítulo consagrado ao regime da religião católica e das associações ou institutos nela enquadrados.
Daí, e de outras dúvidas análogas que possam levantar-se, o interesse especial da base XXIV, incluída no novo articulado sugerido pela Câmara.

58. Capacidade patrimonial das confissões e associações não católicas. - Importa analisar agora o problema em relação às associações religiosas não católicas.
A capacidade patrimonial destas, bem como os poderes de administração dos seus órgãos, estão definidos pelo artigo 452.° do Código Administrativo (segundo a redacção dada pelo artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 31 386, de 14 de Julho de 1941), nos seguintes termos:

As associações religiosas administram-se livremente e podem adquirir bens e dispor deles nos termos por que o podem fazer, segundo a lei civil, as pessoas morais perpétuas.

A remissão feita para a lei civil tinha como resultado prático, até à entrada em vigor do novo Código, que às associações e institutos não católicos eram aplicáveis às mesmas disposições (artigos 34.° e 35.°) do Código de 1867, cujo sentido foi já analisado no número precedente.
Com a publicação da nova lei civil o conteúdo da devolução feita pelo Código Administrativo alterou-se. Os termos genéricos em que ó feita a remissão do artigo 452.' apontam imediatamente para a aplicabilidade do novo regime. O fundamento do artigo 161.° do novo Código, conjugado com o princípio da separação, levam, no entanto, a considerar como deslocada a intervenção tutelar do Governo na aquisição onerosa, bem como na alienação ou oneração, a qualquer título, dos imóveis de pessoas colectivas religiosas.
Por essa razão, a Câmara aprova a ideia de se fixar um regime especial, aplicável ao comum das organizações religiosas.
Nenhuma razão justifica, entretanto, que a lei aplique à capacidade de aquisição das pessoas colectivas religiosas toda a rigidez do princípio da especialidade, quando outra foi, como é sabido, a solução adoptada pelo novo Código Civil (artigo 160.°, n.° 1) relativamente às pessoas colectivas em geral.
Além disso, afigura-se à Câmara que nenhum inconveniente grave advirá do facto de se tornar extensiva à alienação ou oneração de bens imóveis a mesma solução que no projecto se estabelece para a hipótese da aquisição.
As duas bases reguladoras dos poderes de administração e da capacidade patrimonial das ~ organizações religiosas deveriam ter assim, por força das razões expostas, a seguinte redacção:

BASE XVII

1. As organizações correspondentes às confissões religiosas, bem como as associações ou institutos religiosos, administram-se livremente, sem prejuízo do regime vigente para as pessoas colectivas religiosas que também se proponham fins de assistência ou de beneficência e para os institutos de assistência ou beneficência a que se refere o artigo 454.º do Código Administrativo.

190 O artigo 453.° do Código Administrativo, concretizando e generalizando em certo aspecto a ideia proveniente da Concordata, manda que as associações religiosas, em geral, nas condições referidas no texto, prestem contas da sua actividade beneficente ou de assistência nos termos prescritos para as associações de beneficência, acrescentando no § 2.° que as contas serão prestadas através do ordinário competente, quando se trate de associações religiosas da igreja católica.
191 Cf., nesse sentido, a argumentação do Dr. A. Barbosa de Melo, est. cit.
192 Nesse sentido, Dr. Barbosa de Melo, est. cit., pp. 17 e segs.

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2. Não estão, porém, obrigatoriamente sujeitos a prestação de contas às autoridades civis os institutos de assistência ou beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por pessoas colectivas religiosas que não constituam institutos de utilidade local.
3. As organizações correspondentes às confissões religiosas e as associações ou institutos religiosos não podem ser submetidos ao regime de tutela.

BASE XVIII

As pessoas colectivas religiosas não necessitam de autorização para a aquisição dos bens necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, mesmo que se trate de bens imóveis e a aquisição se faça a título oneroso, nem para a alienação ou oneração dos bens imóveis a qualquer título.

Base XVI

59. Nada há que opor à faculdade, que se pretende estender a todas as confissões religiosas, de promoverem a formação dos ministros do respectivo culto.
Embora nem todas as religiões vejam a selecção das vocações conducentes no ministério sagrado sob o prisma carismático próprio do catolicismo, a todas elas se deve, em princípio, reconhecer a possibilidade de assegurarem a formação religiosa, intelectual e moral dos seus ministros.
São, por conseguinte, de pura forma as modificações sugeridas pela Câmara ao texto da base XVI do projecto.

BASE XX

1. As confissões religiosas reconhecidas podem promover a formação dos ministros do respectivo culto, criando e gerindo os estabelecimentos adequados.
2. Os estabelecimentos a que se refere o número anterior estão sujeitos à fiscalização do Estado, mas apenas para garantir a observância do disposto no n.° 1 da base X.
3. Os estabelecimentos que não se limitem a assegurar a formação dos ministros do culto ficam sujeitos, nessa medida, ao regime aplicável aos estabelecimentos de ensino particular.

Base XVII

60. Dever de sigilo dos ministros do culto. - Das múltiplas infracções criminais que podem ser cometidas no âmbito da actividade religiosa, o projecto preocupou-se apenas com uma delas, por entender que a revisão das disposições vigentes nesse capítulo deve integrar-se na reforma geral do direito penal, há anos iniciada no Ministério da Justiça.
O Código Penal vigente consagra, como é sabido, o primeiro título da sua parte especial (artigos 130.° e segs.) aos crimes contra a religião ou cometidos por abuso das funções religiosas. E é precisamente a um destes últimos crimes - previsto no § 1.° do artigo 136.°- que o projecto se refere.
A excepção aberta para o crime de violação do sigilo por parte dos ministros do culto pode justificar-se, não só pelo carácter muito especial da infracção 193, como pelas dúvidas suscitadas na doutrina acerca da vigência da disposição legal que especialmente se lhe refere 194.
As duas notas principais que, nas soluções adoptadas pelo projecto (base XVII), podem suscitar algumas dúvidas no espírito da Câmara são a fixação da pena correspondente à infracção e a forma da incriminação, ao prescindir do fim com que a violação do sigilo é praticada.
O § 1.º do artigo 136.° do Código Penal manda aplicai ao crime de abuso de funções religiosas, que consiste na revelação do sigilo sacramental, a pena de prisão maior de oito a doze anos.
Em contrapartida, considera-se aplicável a pena de prisão até seis anos e multa à violação de segredo profissional por parte do funcionário público (artigo 290.°), com igual pena de prisão punindo o artigo 7.° do Decreto n.° 32 171, de 29 de Julho de 1942, a violação do segredo profissional dos médicos.
No projecto da parte especial do Código Penal, da autoria do Prof. Eduardo Correia, pune-se (artigo 463.°, n.° 1) a violação do segredo cometida por funcionário público com a pena de prisão até dois anos ou com multa de trinta a noventa dias. Admite-se, (porém, que a prisão se eleve até quatro anos, com um mínimo de três meses, quando o prevaricador seja funcionário dos C. T. T. ou de telecomunicações, e a violação consista na revelação do conteúdo de comunicação telefónica ou o agente proceda com a intenção de conseguir, para si ou para terceiro, um benefício material, ou com a intenção de causar prejuízo a outrem (artigo 464.°, n.° 2).
Em face das punições apontadas, tendo sobretudo em linha de conta as sanções estabelecidas no Código Penal em vigor, não repugna grandemente aceitar a pena cominada no projecto, visto não ser possível abstrair da especialíssima intensidade que reveste, por múltiplas razões, a obrigação de segredo imposta a quem tem cura de almas ou direcção da consciência alheia.
A sanção haverá, todavia, que ser enquadrada no sistema da futura legislação penal, e revista à luz do seu espírito, quando se proceder à reforma genérica do direito vigente.
A outra questão, que consiste "m saber se na incriminação deve ou não prescindir-se da intenção com que a revelação dos factos foi feita, reveste alguma delicadeza.
O artigo 136.° do Código Penal começa por se referir em termos genéticos ao ministro eclesiástico que se servir de suas funções religiosas "para algum fim temporal, reprovado peias leis do Reino". Por seu turno, o artigo 463.° do projecto do Prof. Eduardo Correia refere-se também, expressamente, à intenção do funcionário de obter um benefício ilegítimo ou causar um prejuízo do interesse público ou de terceiros.
Nada repugna, todavia, aceitar que, em relação ao dever de sigilo religioso (maxime quanto aos factos confidenciados segundo as práticas da confissão religiosa), cuja observância deve ser rodeada das maiores cautelas, se abstraia do fim do agente na incriminação da violação, confiando tão-sòmente do requisito geral da culpa a eliminação dos casos em que a conduta do agente violador do segredo não tenha carácter reprovável, pelas circunstâncias especiais em que se tenha processado.
Aceitando, assim, a substância da disciplina fixada na base XVII do projecto, a Câmara sugere a sua distri-

193 A semelhança do que se faz no projecto, também o artigo XVIII da Concordata entre a Santa Sé e a Áustria, bem como o § 11 da Protestantengesetz (de 6 de Julho de 1961), dispensam os ministros do culto de deparem sobre matérias de que tiveram conhecimento no confessionário ou por segredo de ofício espiritual. No mesmo sentido prescreve o artigo 144.°, n.° 3, da Constituição dia Baviera que os tribunais não poderão exigir dos membros do clero que deponham sobre factos que lhes tenham sido referidos na sua qualidade de directores de consciência.
194 Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, "no 50.°, p. 37; Dr. Mourisca, Código Penal Anotado, n, p. 272; Dr. Pinheiro Farinha, Código Penal Português, 2.a ed., anotação ao artigo 136.°; Dr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 1968, nota 2 ao artigo 136.°

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buição por duas bases distintas (uma, consagrando o dever de sigilo, cuja violação pode dar origem a sanções de vária ordem, incluindo a responsabilidade civil; outra, estabelecendo as sanções penais correspondentes à sua infracção).

BASE XXV

1. Os ministros de qualquer religião ou confissão religiosa devem guardar segredo sobre todos os factos que lhes tenham sido confiados ou de que tenham tomado conhecimento em razão e no exercício das suas funções, não podendo ser inquiridos sobre eles por nenhuma autoridade.
2. A obrigação do sigilo persiste, mesmo quando o ministro tenha deixado de exercer o seu múnus.
3. Consideram-se ministros da religião ou da confissão religiosa aqueles que, de harmonia com a organização dela, exerçam sobre os fiéis qualquer espécie de jurisdição ou cura de almas.

BASE XXVI

A violação do sigilo religioso é punida com a pena de prisão maior de dois a oito anos, quando consista na revelação de factos confidenciados segundo as práticas da religião ou confissão religiosa, e com a pena de prisão até seis meses, nos outros casos.

Base XVIII

61. As extensas considerações oportunamente desenvolvidas sobre o valor do catolicismo em geral e a posição da Igreja Católica em especial, sobretudo a propósito do exame do projecto na generalidade, bastam para mostrar o desacerto da localização sistemática da base XVIII dentro da economia geral do projecto e para revelar a insuficiência da mera ressalva contida no seu texto.
Para suprir esses inconvenientes, a Câmara sugere não só a adopção de fórmulas de sentido mais positivo sobre a matéria, mas sobretudo a inserção das normas propostas em lugar sistemàticamente mais conforme com a posição da Igreja Católica no esquema do pensamento confessional e da actividade religiosa em Portugal.
É esse o sentido genérico da subsecção expressamente consagrada às pessoas colectivas católicas em especial, bem como do texto das bases XVII, XXIII e XXIV sugeridas pela Câmara.
A fórmula usada no n.° 1 da base xxn, de acordo com a legislação constitucional ainda em vigor (artigo 45.° da Constituição), terá naturalmente de ser adaptada àquela que vier a vingar na revisão constitucional, que precederá a discussão e votação da lei sobre a liberdade religiosa.

BASE XXII

1. Ficam salvaguardadas todas as disposições da legislação vigente, nomeadamente as contidas na Concordata de 7 de Maio de 1940, que respeitam à religião católica como religião da Nação Portuguesa.
2. O ensino da religião e moral nas escolas públicas será ministrado, precedendo consulta aos pais dos alunos ou quem suas vezes fizer, a todos aqueles para quem não seja pedida isenção.

BASE XXIII

É mantida em vigor a legislação aplicável à Igreja Católica, bem como às associações, corporações ou institutos religiosos católicos.

BASE XXIV

São aplicáveis às pessoas colectivas católicas as disposições da subsecção anterior que não contrariem os preceitos para elas concordatàriamente estabelecidos.

III

Conclusões

62. Em face das considerações antecedentes, a Câmara Corporativa, depois de dar a sua aprovação na generalidade ao texto do projecto da proposta governamental, entende dever sugerir, em substituição do que lhe foi dado examinar, o seguinte, articulado:

Lei sobre a liberdade religiosa

BASE I

O Estado reconhece e garante a liberdade religiosa das pessoas, singulares ou colectivas, e assegura às confissões religiosas a protecção jurídica adequada ao interesse moral e social da sua actividade.

SECÇÃO I

Da liberdade religiosa

BASE II

É lícito às pessoas, em matéria de crenças e de culto religioso:

a) Ter ou não ter religião, mudar de confissão ou abandonar a que se tinha, aguou nâo em conformidade com as prescrições da confissão a que se pertença;
b) Exprimir livremente as suas convicções pessoais;
c) Difundir pela palavra, por escrito ou outros meios de comunicação a doutrina da religião que se professa;
d) Praticar os actos de culto, particular ou público, próprios dos fiéis de qualquer confissão religiosa.

BASE III

1. Ninguém será obrigado a declarar se tem ou não religião, nem qual a religião que professa, a não ser, com carácter confidencial, em inquérito estatístico ordenado por lei.
2. Ninguém pode ser perseguido, nem privado de um direito ou isento de um dever, por causa das suas convicções religiosas; e nenhuma discriminação se fará, por motivo delas, no acesso aos cargos públicos ou na atribuição de quaisquer honras ou dignidades oficiais.

BASE IV

O Estado e as empresas devem, na medida do possível, facilitar o cumprimento dos deveres religiosos por parte dos funcionários e trabalhadores, nomeadamente no que se refere à prestação de assistência religiosa pelos ministros do culto que eles professam.

BASE V

Cumprir-se-ão, na realização dos funerais, as disposições tomadas pelo finado; na falta delas, observar-se-ão, segundo a ardem por que vão indicados,

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740 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

os ritos da religião por ele professada, os usos da terra ou as determinações dos seus familiares.

BASE VI

1. É licita a reunião das pessoas para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos das confissões religiosas.
2. O culto público das confissões religiosas reconhecidas, que tenha lugar dentro dos templos ou lugares a ele especialmente destinados, bem como a celebração dos ritos próprios dos actos fúnebres dentro dos cemitérios, não dependem de autorização oficial nem de participação às autoridades civis.

BASE VII

1. É livre a assistência a actos de culto religioso, ainda que celebrados em unidades militares ou em estabelecimentos públicos.
2. Podem, todavia, os actos de culto religioso ser prescritos em estabelecimentos educativos ou de formação, ou em instituições penitenciárias ou de reeducação, com carácter obrigatório pana os menores cujos pais ou tutores não hajam pedido isenção.

BASE VIII

Incumbe aos pais, ou a quem suas vezes fizer, nos termos prescritos para o exercício do poder paternal ou da tutela, decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores.

BASE IX

A liberdade individual em matéria de religião não prejudica a autonomia nem a disciplina interna das confissões religiosas.

BASE X

1. A ninguém será lícito invocar o direito á liberdade religiosa para a prática de actos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física ou a dignidade das pessoas, os bons costumes, os princípios fundamentais da ordem constitucional ou os interesses da soberania portuguesa.
2. Não são consideradas religiosas as actividades relacionadas com os fenómenos metapsíquicos ou parapsíquicos.

SECÇÃO II

Das confissões, associações e institutos religiosos

SUBSECÇÃO I

Das pessoas colectivas religiosas em geral

BASE XI

Podem as várias religiões ou confissões religiosas organizar-se livremente, de harmonia com as normas da sua disciplina e hierarquia e com observância das prescrições legais, sendo permitido constituir, dentro de cada uma delas, associações ou institutos destinados a assegurar o exercício do culto ou a prossecução de outros fins religiosos.

BASE XII

1. As confissões religiosas podem obter, mediante reconhecimento, a atribuição de personalidade jurídica à organização correspondente ao conjunto dos respectivos fiéis.
2. O reconhecimento será pedido ao Governo em requerimento subscrito por um número não inferior a 500 fiéis, maiores e domiciliados em território português.
3. Do requerimento devem constar os elementos necessários à prova da existência da confissão em território nacional, incluindo os princípios essenciais da sua doutrina, o nome da confissão, a descrição geral dos actos de culto, as regras da disciplina e hierarquia da organização, a identidade dos dirigentes e a duração da sua prática no País; na falta de indicações sufi. Cientes, a entidade competente fixará o prazo dentro do qual o requerimento haja de ser completado.
4. Se a organização tiver estatuto estrangeiro ou depender de outra com estatuto estrangeiro, poderá o Governo exigir não só os meios de prova necessários ao pleno conhecimento do regime a que ela fica sujeita, como a subscrição do requerimento por parte das entidades responsáveis.
5. O Governo pode ordenar os inquéritos que julgue indispensáveis à prova, tanto da existência da confissão, como da prática efectiva do seu culto em território nacional, e pode dispensar a prova de qualquer destes requisitos quanto às confissões há mais tempo radicadas em território português.

BASE XIII

1. O reconhecimento pode ser revogado, quando se mostre que a organização é responsável pela violação do disposto na base X, actua sistematicamente por meios ilícitos ou imorais ou se dedica a actividades estranhas aos fins próprios das confissões religiosas.
2. Notificada a revogação do reconhecimento, cessarão imediatamente as actividades da organização, incorrendo em crime de desobediência todos os que nelas prosseguirem.

BASE XIV

São consideradas associações religiosas todas as corporações ou institutos que tenham como fim principal a sustentação do culto de uma confissão religiosa já reconhecida, ou qualquer outra actividade especificamente religiosa, contanto que num ou noutro caso se constituam de harmonia com as normas e disciplina da respectiva confissão.

BASE XV

1. As associações ou institutos religiosos adquirem personalidade jurídica mediante o acto de registo da participação escrita da sua constituição pelo órgão competente da confissão religiosa reconhecida; a participação será apresentada e o registo efectuado nos termos que em regulamento forem fixados.
2. Em caso de modificação ou extinção da associação ou instituto, far-se-á participação e registo nos termos estabelecidos para a sua constituição.

BASE XVI

A revogação do reconhecimento de uma confissão religiosa determina a extinção das respectivas associações ou institutos religiosos, e bem assim das outras pessoas colectivas que dela dependam.

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BASE XVII

1. As organizações correspondentes às confissões religiosas, bem como as associações ou institutos religiosos, administram-se livremente, sem prejuízo do regime vigente para as pessoas colectivas religiosas que também se proponham fins de assistência ou de beneficência e para os institutos de assistência ou beneficência a que se refere o artigo 454.° do Código Administrativo.
2. Não estão, porém, obrigatoriamente sujeitos à prestação de contas às autoridades civis os institutos de assistência ou beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por pessoas colectivas religiosas que não constituam institutos de utilidade local.
3. As organizações correspondentes às confissões religiosas e as associações ou institutos religiosos não podem ser submetidos ao regime de tutela.

BASE XVIII

As pessoas colectivas religiosas não necessitam de autorização para a aquisição dos bens necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, mesmo que se trate de bens imóveis e a aquisição se faça a título oneroso, nem para a alienação ou oneração dos bens imóveis a qualquer título.

BASE XIX

A construção ou instalação de templos ou lugares destinados à prática do culto só é permitida às confissões religiosas reconhecidas, mas não depende de autorização especial, estando apenas sujeita às disposições administrativas de carácter geral.

BASE XX

1. As confissões religiosas reconhecidas podem promover a formação dos ministros do respectivo culto, criando e gerindo os estabelecimentos adequados.
2. Os estabelecimentos a que se refere o número anterior estão sujeitos à fiscalização do Estado, mas apenas para garantir a observância do disposto no n.° 1 da base X.
3. Os estabelecimentos que não se limitem a assegurar a formação dos ministros do culto ficam sujeitos, nessa medida, ao regime aplicável aos estabelecimentos de ensino particular.

BASE XXI

As relações do Estado com as organizações correspondentes às diversas confissões religiosas assentam no regime de separação.

SUBSECÇÃO II

Das pessoas colectivas católicas em especial

BASE XXII

1. Ficam salvaguardadas todas as disposições da legislação vigente, nomeadamente as contidas na Concordata de 7 de Maio de 1940, que respeitam à religião católica como religião da Nação Portuguesa 195.
2. O ensino da religião e moral nas escolas públicas será ministrado, precedendo consulta aos pais dos alunos ou quem suas vezes fizer, a todos aqueles para quem não seja pedida isenção.

BASE XXIII

É mantida em vigor a legislação aplicável à Igreja Católica, bem como às associações, corporações ou institutos religiosos católicos.

BASE XXIV

São aplicáveis às pessoas colectivas católicas as disposições da subsecção anterior que não contrariem os preceitos para elas concordatàriamente estabelecidos.

SECÇÃO III

Do sigilo religioso

BASE XXV

1. Os ministros de qualquer religião ou confissão religiosa devem guardar segredo sobre todos os factos que lhes tenham sido confiados ou de que tenham tomado conhecimento em razão e no exercício das suas funções, não podendo ser inquiridos sobre eles por nenhuma autoridade.
2. A obrigação do sigilo persiste, mesmo quando o ministro tenha deixado de exercer o seu múnus.
3. Consideram-se ministros da religião ou da co v fissão religiosa aqueles que, de harmonia com a organização dela, exerçam sobre os fiéis qualquer espécie de jurisdição ou cura de almas.

BASE XXVI

A violação do sigilo religioso é punida com a pena de prisão maior de dois a oito anos, quando consista na revelação de factos confidenciados segundo as práticas da religião ou confissão religiosa, e com a pena de prisão até seis meses, nos outros casos.

Palácio de São Bento, em 27 de Abril de 1971.

José Filipe Mendeiros.
António da Silva Rego.
António Maria de Mendonça hino Netto.
Francisco Xavier Cabral Lobo de Vasconcelos.
Lúcio Craveiro da Silva.
António Rogério Luiz Gonzaga.
Carlos Augusto Corrêa Paes d'Assumpção.
Afonso Rodrigues Queiró.
Fernando Cid de Oliveira Proença.
Henrique Martins de Carvalho.
João Manoel Nogueira Jordão Cortez Pinto.
Joaquim Trigo de Negreiros.
José Hermano Saraiva.
Maria de Lourdes Pintasilgo.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
André Delaunay Gonçalves Pereira.
Carlos Krus Abecasis.
Fernando de Castro Fontes.
Francisco José Vieira Machado.
Manuel Pimentel Pereira dos Santos.
Vasco Lopes Alves.
Manuel Duarte Gomes da Silva.
João de Matos Antunes Varela, relator.

195 Fórmula que terá de ser adaptada à que vier a ser aprovada na revisão do texto do artigo 45.° da Constituição Política vigente.

IMPRENSA NACIONAL

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