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11 DE JANEIRO DE 1936 213

do dia. Êsse projecto, publicado no Diário das Sessões de 18 de Dezembro, contém duas bases que se resumem no seguinte: em estabelecer que o pagamento da reparação ou indemnização por perdas e danos, a que se refere o artigo 34.º do Código do Processo Penal, e que tenha de fazer-se pela meação nos bens comuns do casal, possa ser exigido antes da dissolução do casamento ou da separação dos bens entre os cônjuges, tal como preceitua o artigo 10.º do Código Comercial quanto às dívidas comerciais do marido.

Foi o projecto submetido à apreciação da Câmara Corporativa, que se pronunciou no sentido da rejeição dêle, dizendo simplesmente que o seu autor não justificava as razões do novo regime jurídico a que ficariam submetidas as dívidas de tal proveniência.

Julgo que há vantagem em fazer uma breve razão de ordem da matéria.

As minhas considerações não se dirigem, evidentemente, aos meus colegas no fôro, que representam quási 50 por cento desta Assemblea; menos ainda aos dois ilustres professores das Faculdades de Direito de Lisboa e Coimbra, Srs. Drs. Carneiro Pacheco e Mário de Figueiredo; e por nenhum modo, então, ao ilustre Presidente desta Assemblea, jurisperito distintíssimo, que já foi professor daqueles dois distintos professores e que ainda não há muito publicou, em matéria de dívidas de cônjuges, a excelente monografia jurídica que se intitula Execução por dívidas dos cônjuges.

Para S. Exas. mormente eu falo sub censura ...

O artigo 34.º do Código do Processo Penal diz:

«O juiz, em caso de condenação, arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação de perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida».

Êste preceito teve antecedentes no artigo 10.º do decreto de 18 de Outubro de 1910, em que se estabelecia que o juiz, no caso de condenação, e quando lhe fôsse requerido, tinha de fixar a importância da reparação à vítima do delito, e depois no artigo 2.º do decreto n.º 13:343, de 26 de Março de 1927, onde se preceituava que o juiz, na sentença final, fixaria, independentemente de requerimento dos lesados, a importância da indemnização que lhes competisse.

Portanto, nos termos do preceito que citei, o juiz, chamado a julgar um processo criminal, é obrigado, por lei, a arbitrar aos ofendidos uma quantia como reparação de perdas e danos. O artigo 127.º do Código Penal dispõe que a imputação e a graduação da responsabilidade civil conexa com factos criminosos são regidas pelo Código Civil, e êste, no artigo 2361.º, enuncia o princípio de que todo aquele que ofende os direitos de outrem se constitue na obrigação de indemnizar o lesado por todos os prejuízos que lhe causa, e, no artigo 2365.º, dispõe que a responsabilidade criminal é sempre acompanhada de responsabilidade civil. Por outro lado, prescreve ainda o artigo 2375.º do Código Civil que. os bens do delinquente respondem pelo cumprimento da obrigação de reparar o dano e o artigo 2376.º que, se o delinquente fôr casado, nenhuns bens do outro cônjuge, quer sejam ou não de meação, ficam obrigados à reparação proveniente do facto do cônjuge delinquente.

Em concordância com estes preceitos o artigo 1115.º do mesmo Código Civil e porque a responsabilidade das dívidas provenientes de crimes é tam pessoal como o facto de onde provêm declara no seu n.º 1.º que as dívidas provenientes de crimes ou de factos ilícitos praticados por qualquer dos cônjuges ficam sujeitas ao regime das dívidas contraídas pelo marido sem outorga da mulher.

Isto é, em última análise: por essas dívidas respondem, em primeiro lugar, os bens próprios do cônjuge infractor, e, na falta ou insuficiência de bens de tal centro patrimonial, a meação dêle nos bens comuns do casal.

Talvez um exemplo possa amenizar a aridez dêstes textos. Suponha-se que um homem casado pratica um crime de ofensas corporais voluntárias, quero dizer, suponha-se que um homem casado feriu ou matou alguma pessoa. É julgado e é condenado. O juiz, na sentença, além de lhe aplicar a pena que o Código Penal comina para o delito, é obrigado, em obediência, ao disposto no artigo 34.º do Código Penal português, a fixar à vítima ou aos seus herdeiros uma indemnização pecuniária, como reparação pelos prejuízos sofridos. Ficam, portanto, a vítima ou os seus herdeiros credores do autor do malefício pela quantia que o juiz na sentença arbitrou. Mas como recebem os credores a sua dívida?

Prima, facie - parece que o caso é simples e que se há-de passar por esta forma comezinha: como pelos preceitos dos artigos 1114.º, $ 1.º, e 1115.º, n.º 1.º, do Código Civil essas dívidas têm de ser pagas pelos bens próprios do marido ou, na falta ou insuficiência dêles, pela sua meação nos bens comuns, os credores não têm outra cousa a fazer senão dar à execução a sentença condenatória, penhorando e fazendo vender os bens dessa proveniência, e, feito isto, serão pagos. As cousas passam-se, na verdade, assim e sem reparo quando o autor do crime tiver bens próprios, mas já assim uno se passam quando êle não tiver bens próprios ou os não tiver em quantidade suficiente para o pagamento da indemnização fixada.

Em tal caso, respondem pela dívida os bens da menção do infractor; respondem, então, bens de outro centro patrimonial que não o dos bens próprios do marido.

Mas pelo preceito do artigo 1117.º do Código Civil o domínio e a posse dos bens comuns estão em ambos os cônjuges e subsistem emquanto subsistir o casamento.

A determinação das meações não pode fazer-se, portanto, emquanto se não avaliarem e partilharem os bens comuns.

Ora a partilha dos bens comuns só se faz, em regra, como consequência da dissolução do vínculo matrimonial, por morte ou por divórcio, ou em virtude de separação de bens. Segue-se que é preciso que se verifique qualquer dêstes factos para que o credor possa, actuar sôbre o seu devedor.

Esbocei o conflito, toquei, passe o lugar comum, o ponto nevrálgico da questão. De um lado a necessidade de dar satisfação ao credor, assegurando-lhe o pagamento da sua dívida; de outro lado a conveniência de evitar perturbações da unidade familiar com as consequências de uma separação de bens, reflectindo-se na diminuição dos rendimentos do casal, alterando o ritmo da economia doméstica, castigando, por assim dizer, o cônjuge inocente e os filhos comuns, produzindo consequências de largo alcance na estabilidade da instituição familiar. Perante êste conflito, o que resolveu o legislador do Código Civil? Resolveu optar por aquilo que julgou ser dos dois males o menor, resolveu que a execução por créditos desta proveniência ficasse aguardando a dissolução do matrimónio ou a separação de bens do casal.

Estabeleceu como que uma moratória forçada, em homenagem à defesa dos interêsses da família. Até que qualquer dos eventos, dissolução do vínculo ou interrupção da sociedade conjugal, se verificasse, o credor não podia levar por diante a sua acção.