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214 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º62

Mas, quando se organizou, em 1888, o Código Comercial, o legislador entendeu que devia estabelecer uma excepção a esta regra.

Entendeu que as dívidas provenientes de actos de comércio do marido, ou, melhor dito, as dívidas comerciais do marido, pela sua natureza especial, pela celeridade das operações mercantis, pela sua projecção na economia privada e pública, deviam estar fora desta regra e deviam constituir uma excepção a ela.

E então determina-se no artigo 10.º que, se o pagamento das dívidas comerciais do marido tivesse de fazer-se pela sua meação nos bens comuns, o credor não era obrigado a esperar pela dissolução do casamento ou pela separação dos cônjuges; podia levar por diante a sua execução, fazendo citar a mulher do devedor para, querendo, requerer a separação judicial dos bens.

Mas voltemos aos preceitos do artigo 1114.º, $ 1.º, e artigo 115.º, n.º 1.º, do Código Civil.

No domínio de tal preceito era frequente assistir-se a êste espectáculo pouco edificante:

Os cônjuges, cobertos com a moratória forçada que a lei estabelecia, sabedores de que só pela dissolução do casal ou pela separação a dívida de um deles se tornava exigível, concertavam-se para ludibriar o credor e faziam desaparecer ou ocultavam os bens do casal, por forma tal, que, quando vinha a dar-se a dissolução do casamento ou a separação de bens, o credor tinha de resignar-se a nada receber, porque nada havia ou, se havia, estava pôsto a bom recato.

Por seu lado a execução do disposto no artigo 10.º do Código Comercial, pela incerteza do processo a seguir, era também fonte de demoras e chicanas, em prejuízo do credor. Por isso, quando em 1930 sobraçando a pasta da Justiça o ilustre Deputado Dr. Lopes da Fonseca se decretou a reforma de alguns artigos do Código Civil, uma das disposições alteradas em obediência às circunstâncias que enunciei foi exactamente o $ 1.º do artigo 1114.º do Código Civil, onde passou a determinar-se que o credor, em vez de aguardar, sem maior garantia, que o casamento se dissolvesse ou a separação se desse, podia haver o seu crédito por acção e execução contra o cônjuge devedor, podendo levar a execução até a penhora e aguardando depois os ulteriores acontecimentos.

Por esta Forma o legislador de 1930, continuando, em defesa da família, a não permitir que o credor levasse a sua acção além de certo limite, deu-lhe, por outro lado, uma garantia, qual foi a da penhora, que, tratando-se de bens imobiliários, é ónus real registável, e registado os acompanha nas suas transmissões.

O artigo 76.º do decreto n.º 12:353, que estabeleceu as primeiras formas do processo, e posteriormente o artigo 171.º do decreto n.º 21:287, que as completou ambos da autoria do ilustre Ministro da Justiça Dr. Manuel Rodrigues, estabeleceram e fixaram a forma do processo a seguir no caso do artigo 10.º do Código Comercial por forma a dar eficácia à acção dos credores nos casos previstos nessa disposição de lei.

Feitas estas considerações, é tempo de dizer que o projecto do meu ilustre colega o Sr. Deputado Saudade e Silva, como êle próprio aqui explicou e eu peço perdão de ter pormenorizado tanto o assunto, mas entendi que a Câmara alguma cousa podia aproveitar com esta explanação, tem por fim o seguinte: criar para os débitos por indemnizações pecuniárias, estabelecidas no artigo 34.º do Código do Processo Penal, que tenham de ser pagos, no todo ou em parte, pela meação de um dos cônjuges nos bens comuns do casal, o regime de excepção que o artigo 10.º do Código Comercial criou para as dívidas comerciais do marido.

Quere dizer: a dívida proveniente da indemnização de perdas e danos que o juiz, em obediência ao artigo 34.º do Código do Processo Penal, arbitra à vítima ou aos seus herdeiros, tenha de ser paga pela meação do marido ou da mulher porque qualquer dêles pode ser o autor do delito, pode ser executada pelo mesmo processo por que são executadas as dívidas comerciais do marido.

O credor, verificada a inexistência ou insuficiência de bens próprios, prossegue na execução sôbre os bens comuns do casal, fazendo citar o cônjuge do condenado para requerer a separação de bens, seguindo-se os termos do artigo 776.º do Código do Processo Civil, e faz-se a execução dos bens da meação do responsável até integral pagamento do seu débito.

Aqui têm V. Ex.ªs e mais uma vez me penitencio por ter pormenorizado tanto o assunto em que se resume e em que consiste o projecto do meu ilustre colega Sr. Dr. Saudade e Silva.

É bom? É mau? Merece a aprovação da Câmara? Deve, ao contrário, a Câmara rejeitá-lo? São V. Ex.ªs quem, em última análise, o há-de decidir.

Pela minha parte sinto deveras ter subido a esta tribuna para combater o projecto do meu ilustre colega. Ser-me-ia muito mais agradável, pelos laços de simpatia que me ligam a S. Exa., pela muita admiração que tenho pelo seu talento e pela sua operosa mocidade, subir os degraus desta tribuna para apoiar com toda a fôrça da minha convicção o seu projecto de lei.

Mas, porque só sei exteriorizar aquilo que sinto e penso, e porque julgo que assim sirvo, bem ou mal, digo à Câmara que não posso acompanhar o ilustre Deputado nas considerações que fez em justificação do seu projecto.

A Câmara Corporativa arguiu S. Ex.ª de não ter apresentado razões que justifiquem a alteração do regime jurídico a que até hoje tem estado sujeito o pagamento destas indemnizações.

A Câmara Corporativa podia ter ido mais longe, a meu ver.

Se o ilustre Deputado não era obrigado a declinar razões nas palavras que antecedem o seu projecto, a Câmara Corporativa é que bem podia, desde logo, ter enunciado os motivos que poderiam levar à sua rejeição, e, pela autoridade dos nomes que firmam o parecer, isso seria de valiosa orientação para esta Assemblea.

As razões aduzidas pelo Sr. Saudade e Silva em defesa do seu projecto parece-me que se podem resumir em duas.

Disse S. Ex.ª : combate-se esta maneira de resolver o assunto dizendo que é preciso defender a unidade familiar e que é preciso evitar causas de perturbação na família, poupando ao cônjuge inocente ou aos descendentes, também inocentes, os inconvenientes do mau acto do outro cônjuge.

Mas, se assim se procede quanto à família do ofensor, ; porque se não tem o mesmo respeito pela família do ofendido? Esta família também é digna de protecção, de maior protecção ainda, porque foi vítima de um delito que a sociedade se viu forçada a punir. E disse, por outro lado, S. Ex.ª que o precedente não era novo, porque até para as indemnizações resultantes de atropelamentos segundo o Código da Estrada em vigor se permite levar a acção dos credores, desde logo, até à execução dos bens do responsável no acervo comum do casal.

É esta a opinião do Sr. Deputado Dr. Saudade e Silva.

A mim parece-me que uma razão mais alta e mais decisiva, à luz da qual é necessário examinar êste assunto, obsta a que se aceitem aquelas razões.