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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
SUPLEMENTO AO N.° 88
ANO DE 1947 13 DE FEVEREIRO
CÃMARA CORPORATIVA
IV LEGISLATURA
PARECER N.º 18
Projecto de lei n.° 91
Remição de censos, quinhões e direitos compáscuos
A Câmara Corporativa, consultada acerca do projecto de lei 11.° 91. sobre propriedades imperfeitas, emite, por intermédio da secção de Justiça, a que foram agregados os dignos Procuradores José Gabriel Pinto Coelho e Manuel Gomes da Silva, o seguinte parecer:
I
Objecto e divisão do parecer
1. O projecto de lei ora proposto à apreciação da Câmara Corporativa, da autoria da Comissão de Economia da Assembleia Nacional, visa a facilitar a constituição da propriedade perfeita, pela remição de censos, quinhões e direitos de compáscuo.
Não faz o projecto qualquer distinção referente à qualidade dos titulares de tais ónus; decerto, porém, apenas considera os casos de os direitos em questão pertencerem a pessoas privadas, porquanto a remição de censos e quinhões pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas está sujeita a copiosa legislação especial, que o projecto não revela a vontade de modificar.
Neste pressuposto o analisaremos, procurando determinar primeiro quais as inovações que se propõe introduzir no direito vigente e expondo em seguida o que sobre elas se oferece dizer à Câmara Corporativa.
II
Alcance do projecto de lei
2. Três são as matérias reguladas no projecto em exame:
a) O direito de remição de censos, quinhões e compáscuo, concedido aos censuários, posseiros e proprietários;
b) A indemnização devida aos respectivos credores;
c) O processo para judicialmente operar a remição daqueles ónus e da enfiteuse.
Consideremos separadamente cada um destes assuntos, a fim de fixar o alcance da reforma projectada.
A) Direito de remição (base I):
3. Na base I reconhece o projecto de lei aos censuários 1 no censo, assim consignativo como reservativo,
1 Na base I emprega o projecto o termo "censuísta" para designar o devedor do censo, pois diz que a remição se fará "...solvendo os censuistas aos credores...". Não é esta a terminologia usual: o devedor censítico denomina-se censitário; censuista é a pessoa, que recebe o censo (cf. artigos 1648.° e 1649.° do Código Civil: artigo 7.° do decreto n.° 1 de 10 de Janeiro de 1895: Código de Processo Civil, artigo 1030.°; Lobão, Tratado [...] dos censos, pp. 60 e seguintes; Coelho da Rocha, Instituições de Directo Civil, II, p. 458).
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aos posseiros, no quinhão, e aos proprietários de prédios onerados com o encargo de compáscuo o direito de remir esses ónus, qualquer que seja a duração destes, pagando aos respectivos titulares a indemnização estabelecida na base II.
Que modificações introduzirá este preceito no direito vigente se for consagrado em lei? É o que vamos determinar nos números seguintes.
4. Quanto ao censo cousignativo, distingue o Código Civil entre censos de pretérito e censos de futuro. Segundo o artigo 1651.°, os censos de pretérito são remíveis findo o prazo por que tiverem sido estipulados, se inferior a vinte anos, ou decorrido este lapso de tempo, quando perpétuos ou convencionados por tempo indeterminado ou superior a vinte anos. Pelo artigo 1648.°, os censos de futuro, perpétuos ou por mais de vinte anos, são distratáveis ao fim deste tempo, querendo o censuário; nada se estatui quanto aos censos convencionados por tempo inferior a vinte anos, mas, ou se entenda que eles terminam findo o prazo estipulado ou se defenda, antes, que decorrido esse lapso de tempo o censuário tem o direito de os remir, como se preceitua no artigo 1650.° do Código Civil para os censos de pretérito, o certo é que sempre o devedor censítico poderá, pelo menos, desonerar-ee do encargo no prazo do contrato.
Como se vê, o censo consignativo é remível, por vontade do censuário, findo o prazo por que houver sido estipulado, se inferior a vinte anos, ou, decorrido este lapso de tempo, quando o iprazo do contrato o excede ou é indeterminado ou o censo foi convencionado como perpétuo. O projecto de lei n.° 91 contém, por isso, a este respeito uma única inovação: permitir ao censuário remir o censo, qualquer que tenha sido a duração deste, o que representa a abolição do prazo do contrato ou da lei (vinte anos, neste caso) como limite de duração obrigatória do encargo.
No tocante ao censo reservativo, também a lei actual faculta a remição, porquanto o § 3.° do artigo 1654.º do Código Civil manda aplicar às pensões censíticas, sem distinguir entre as duas espécies de censos, os parágrafos antecedentes do mesmo artigo, nos quais se permite a remição de foros com mais de vinte anos, e o artigo 1030.° do Código de Processo Civil expressamente se refere à remição do censo reservativo, feita judicialmente por falta de acordo entre censuário e censuísta. E, como o censo reservativo foi proibido pelo Código Civil (artigo 1707.°). e apenas subsiste, portanto, quando estipulado antes deste diploma, o projecto nada inova neste ponto, pois todos os censos deste tipo que ainda existam já têm muito mais de vinte anos de duração.
Em resumo: no direito concedido aos censuários de remir o encargo censítico, o projecto só vai além do direito vigente enquanto permite a remição do censo consignativo com duração inferior ao prazo estipulado, ou a vinte anos se não se convencionou prazo ou se se assinou ao censo termo superior àquele lapso de tempo.
5. O quinhão, que o Código Civil define como o direito que qualquer pessoa tem d" receber a quota-parte da renda de um prédio indiviso, encabeçado em um dos comproprietários do mesmo prédio e por ele possuído, não é remível; só nas leis de desamortização respeitantes a pensões (enfitêuticas, censíticas, etc.) devidas ao Estado ou outras pessoas de direito público se impôs geralmente remição de quinhões; mas já dissemos que supomos estar fora do âmbito do projecto a matéria regulada em tais leis.
No que respeita ao quinhão, o projecto é, por conseguinte, inteiramente inovador.
6. O compáscuo, que, segundo o artigo 2262.° do Código Civil, consiste na comunhão de pastos de prédios pertencentes a diversos proprietários, é remível quando perpétuo (Código Civil, artigo 2266.°).
Não se estabelece no Código Civil qualquer restrição à faculdade de remir o compáscuo perpétuo, dt1 sorte que nem mesmo na parte em que permite a remição, qualquer que seja a duração daquele ónus, o projecto introduz alguma inovação no regime vigente.
Só se houver encargos temporários de pastagens é que o projecto tirará novidade, pois só o compáscuo perpétuo é remível segundo o Código Civil.
Podem, ainda, suscitar-se dúvidas sobre se o Código permite a remição do compáscuo propriamente dito, tal como o define o artigo 2262.°, pois o artigo 2266.°. que concede a faculdade de remir, fala em "propriedades oneradas com o encargo perpétuo de pastagem", parecendo referir-se apenas à servidão unilateral de pastagem, e não à comunhão de pastos ou servidão recíproca, contemplada no primeiro daqueles preceitos. Parece-nos que se trata somente de imprecisão de linguagem, e que os artigos citados abrangem todos os casos de encargos de pastagem, sejam unilaterais, sejam recíprocos. Contudo, se assim não for, também o projecto trará, de novo, a faculdade de remir a comunhão de pastos.
7. Em síntese, são as seguintes as inovações do projecto no tocante à faculdade de remição:
a) Conceder ao posseiro a faculdade de remir o quinhão que, pelo direito vigente, é irremível;
b) Conceder aos censuários e aos proprietários de prédios sujeitos a compáscuo a faculdade de remirem o censo ou o encargo de pastagem, seja qual for a duração respectiva. No direito actual só se permite a remição de censos findo o prazo por que foram estipulados ou decorridos vinte anos, no caso de haverem sido convencionados por tempo superior a este, por prazo indeterminado ou como perpétuos; o compáscuo só é remível quando perpétuo.
B) Preço da remição:
8. Sobre o preço da remição diz a base II do projecto" que ele será pago em dinheiro e, na falta de acordo, corresponderá:
a) Nos casos de censo e quinhão, a vinte vezes o censo ou quinhão;
b) No direito de compáscuo, a vinte vezes o valor médio atribuído à comunhão de pastos, determinado por avaliação.
Comparemos separadamente cada um destes princípios com o que se acha estabelecido na lei vigente paru os casos em que já se admite a remição por vontade do obrigado.
9. Na determinação do preço da remição do quinhão e dos censos segue o projecto o sistema adoptado na lei vigente para a remição de foros (Código Civil, § 1.º alínea a), do artigo 1654.°) e para a avaliação de prestações periódicas perpétuas ou devidas por vinte anos ou mais (Código de Processo Civil, artigo 607.°, n.º 3.°). É necessária, porém, dizer alguma coisa sobre-o censo consignativo, pois podem levantar-se dúvidas acerca da actual forma de calcular o preço da remição dele.
Preceitua o Código Civil que a remição do censo consignativo se faz "por meio da restituição da soma prestada" (artigo 1648.°), salvo tratando-se de censo de pretérito e ignorando-se qual o capital (recebido pelo censuário, caso em que a remição se fará cá razão de vinte por um (Código citado, artigo 1651.°). Como é sabido, diz-se censo consignativo o contrato pelo qual
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uma pessoa presta a outra certa soma ou capital, obrigando-se aquele que o recebe a pagar certo interesse anual, em géneros ou em dinheiro, consignando em alguns, certos e determinados imóveis a obrigações de satisfazer ao encargo (Código Civil, artigo 1644.°); ora é pela restituição dessa soma ou capital prestado pelo censuísta que, segundo o Código, se faz, em princípio, 4i remição do censo consignativo.
Estará ainda em vigor este regime?
Cremos que não.
Com efeito, o § 3.° do artigo 1654.° do Código Civil, introduzido pelo decreto n.° 19:126, manda aplicar às pensões censíticas (sem distinguir o censo consignativo do reservativo) os preceitos dos parágrafos antecedentes, aditados ao mesmo artigo pelo decreto citado, no primeiro dos quais se estabelece como preço da remição de foros o total de vinte prestações; parece, por isso, dever entender-se que o decreto n.° 19:126 revogou os artigos 164S.° e 1651.° do Código, na parte em que determinam o capita-1 por que pode remir-se o censo de que vimos tratando.
Esta conclusão é corroborada pelo artigo 607.°, n.° 3.°, do Código de Processo Civil, que considera o valor de qualquer prestação perpétua igual a vinte prestações anuais; certamente, se o legislador quisesse eximir o censo consignado desta regra, não deixaria de o fazer expressamente, em vez de se referir, genérica e categórica mente, a quaisquer prestações perpétuas ou pagáveis por vinte anos ou mais.
Aliás, é esta a solução mais justa, pois, enquanto as pensões censíticas foram actualizadas (Código Civil, artigo 1660.°, § 3.°), o capital é o que consta do contrato, pelo que seria hoje, na maioria, dos casos, extremamente diminuto e incapaz, portanto, de assegurar ao censuísta rendimento igual ao que ele aufere com a renda, frustrando-se assim por completo a intenção primitiva d os contraentes.
Conclui-se, portanto, que o preço da remição do censo consignativo já é hoje igual a vinte prestações e que o projecto não contém, por isso, neste particular, qualquer disposição nova.
10. O preço da remição do compáscuo é taxado pelo projecto em vinte vezes o valor médio atribuído à comunhão de pastos, determinado por avaliação.
No Código Civil a remição do encargo perpétuo de pastagens fazia-se mediante o pagamento do justo valor deste (artigo 2266.°); no Código de Processo Civil estabelece-se analogamente, mas em termos mais minuciosos, que os direitos de servidão e semelhantes (no número dos quais sem dúvida se conta o compáscuo) serão avaliados pela maior estimativa dos cómodos a que derem lugar e os encargos pelos prejuízos que determinarem (artigo 607.°. n.° 6.°).
Neste campo há, conseguintemente, diferença sensível entre o projecto e a legislação actual. Como, porém, no cálculo entra sempre a estimativa pessoal dos peritos, é possível que na prática, os dois sistemas conduzam a resultados idênticos.
C) Processo de remição
11. As bases III e IV do projecto estabelecem algumas regras de processo para a remição dos ónus referidos na base I 1 e ainda para a da enfiteuse.
De tais regras, a que nos parece fundamental é a da base IV, na qual se estatui que à remição prevista na base I se aplica o disposto no artigo 1030.° e parágrafos do Código de Processo Civil. Preceitua esse artigo que na remição do censo consignativo ou reservativo ou do foro, que, por falta de acordo dos interessados ou por outro motivo, se não puder fazer extrajudicialmente, se observará o processo cie consignação em depósito, regulado nos artigos 1023.° e seguintes do mesmo Código; o § 2.° do artigo 1030.° acrescenta que, não sendo impugnado o depósito do preço da remição, ou senda a impugnação improcedente, ou completando o requerente o depósito, se julgará extinto o ónus e se mandar cancelar o respectivo registo. O § 1.° do artigo 1030.º do Código de Processo Civil, também abrangido na disposição da base IV, não contém doutrina aplicável às remições de que trata o projecto, pelo que nos parece que só por lapso aquela base se refere ao artigo 1030.º e parágrafos, em vez de mencionar apenas o artigo 1030.º e § 2.º
O projecto introduz, porém, importante modificação no processo estabelecido pêlos artigos 1023.° e seguintes do Código de Processo Civil. Segundo o artigo 1024.°, efectuado o depósito, será citado o credor para o impugnar dentro do prazo de vinte dias; se o credor for incerto, citadas poa1 éditos quaisquer pessoas que s" julguem com direito à quantia depositada, será citado o Ministério Público para impugnar, no caso de ninguém comparecer no prazo de impugnação. O projecto manda citar apenas as pessoas que figurarem no registo das propriedades imperfeitas a que respeita a remição, nas moradas dele constantes, sem que obste à citação o falecimento dessas pessoas.
A alteração que se projecta introduzir no sistema adoptado pelo Código de Processo Civil para a remição de censos e foros é profunda. Ainda que o devedor da pensão ou o proprietário do prédio onerado pelo compáscuo saibam que os nomes ou moradas dos actuais titulares dos ónus em causa não constam do registo predial, ainda que saibam que neste se mencionam sòmente pessoas mortas ou que nenhum direito têm já ao preço da remição, e mesmo que conheçam perfeitamente a quem tal direito compete, sempre farão citar as pessoas que no registo figuram como interessadas; e como, na prática, o depositante só se dará ao trabalho de verificar quem, segundo o registo, tem direito ao preço da remição quando desconhecer a identidade dos interessados ou puser em dúvida os seus direitos (ou os quiser defraudar...), o regime de citação previsto no projecto levará, na generalidade dos casos, a fazer intervir no processo pessoas estranhas à remição, senão pessoas já. falecidas (!).
Como lógica consequência destes princípios, admite o projecto que os herdeiros dos citados se habilitem pendente ou findo o procedo, para intervir na acção eu receber o preço da remição.
Em resumo: o projecto generaliza a todos 03 casos de remição de propriedades imperfeitas o disposto no Código de Processo Civil para remição de foros e censos, introduzindo-lhe, porém, importante modificação: restringe a citação às pessoas que figurem no registo predial como titulares daqueles ónus, cabendo aos herdeiros dos citados o direito de se habilitarem para intervir no processo ou para receber o preço da remição.
III
Apreciação do projecto de lei
A) Apreciação na generalidade:
12. Conforme deixámos dito no começo deste parecer, propõe-se o projecto de lei facilitar a constituição
1 A base III fala da remição "no caso de enfiteuse e nos referidos no artigo 9.º", quando é certo que nenhum preceito há no projecto a que possa aplicar-se esta última referência. Trata-se evidentemente de lapso, talvez motivado por anterior redacção do projecto, diversa da actual. Por isso, partimos da ideia de que a base III tem em vista as hipóteses prevenidas na base I, tal como acontece com a base IV.
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da propriedade perfeita, não só alargando a faculdade de remição de ónus reais, mais também removendo obstáculos que na prática de algum ânodo a dificultam. Ao considerar, em geral, este objectivo, não pode a, Câmara Corporativa deixar de reconhecer que fortes razões apoiam, em grande parte, o intuito do projecto. Entende, porém, dever fazer-lhe alguns reparos de carácter genérico, pois, se aquele objectivo é, em princípio, louvável, só pode, no entanto, pôr-se em prática com muita prudência e espírito equitativo, a fim de evitar prejuízos injustos e de não causar a destruição de institutos que podem ainda ser muito úteis.
13. Como é sabido, embora de origem vária, as propriedades imperfeitas de que vimos tratando surgiram e desenvolveram-se em condições económicas muito diversas das actuais, e não é, por isso, de estranhar que a muitos respeitos constituam hoje encargos embaraçosos, ou antipáticos pelo menos, para os possuidores dos prédios onerados.
Na época presente, em que a liberdade de fruição da terra e dos seus produtos está fortemente limitada pelo Estado, em que a propriedade se encontra sujeita a pesados impostos, as propriedades imperfeitas que recaem nos prédios, limitando ainda mais os proventos dos que os fruem, são talvez mais onerosas do que no tempo em que "e constituíram, quando era maior a margem de utilização livre da terra deixada aos cultivadores.
A oneração dos prédios pêlos referidos direitos constitui também obstáculo às transacções da propriedade imóvel, hoje talvez mais frequentes do que outrora, e dificulta até, em alguns casos, as partilhas entre herdeiros, principalmente quando os encargos em questão são de montante elevado (como acontece com muitos direitos de quinhão).
Estes factos explicam em certa medida o chamado movimento de libertação da terra e a copiosa legislação que df. há um século a esta parte tem entre nós procurado favorecer a constituição da propriedade perfeita, e na qual procura integrar-se o projecto de lei n.° 91. Sem querer aprecia*1 a fundo essa corrente legislativa, a Câmara Corporativa tem, no entanto, de pôr em relevo alguns aspectos defeituosos e injustos que a caracterizam, com o fim de mostrar quanta prudência e senso de justiça deve orientar no futuro o legislador numa matéria em que até aqui quase têm imperado apenas preconceitos de inspiração liberal.
14. Eram numerosas e complexas as limitações da propriedade que ainda vigoravam nos princípios do século transacto, quando se deu o advento do liberalismo.
A multiplicidade e a consequente onerosidade dos encargos que, muitas vezes, recaíam sobre o mesmo prédio e os abusos realmente cometidos, em muitos casos, pêlos respectivos beneficiários, aliados à crise económica emergente das guerras civis, chamaram para tais formas de propriedade a atenção dos políticos do tempo, os quais, dominados pelo horror a tudo quanto recordasse o antigo regime e, em grande parte, inspirados por ideias já muito eivadas de socialismo e profundamente demagógicas, não procuraram estudar o assunto com imparcialidade e conhecimento perfeito dos factos, antes tomaram como ponto essencial da sua política a ideia feita da "libertação da terra".
A designação que a esta corrente se dá mostra bem quão unilateral era a orientação que a inspirava. Não era a propriedade privada no seu conjunto e em todas as suas modalidades o que os doutrinadores e os Governos queriam regularizar e favorecer; era a posse e fruição da terra, qualquer que fosse o título em que se estribasse, aquilo que se queria fortalecer e libertar de quaisquer peias, como se apenas a detenção material da terra constituísse verdadeiro direito e tudo o anais não passasse de espoliação dos fracos pelos fortes e opulentos.
Neste movimento havia muito também do desejo individualista de suprimir sistematicamente todos os poderes intermédios entre o indivíduo e o Estado (única realidade social colectiva reconhecida pelas ideias do tempo), a fim de que este pudesse exigir daquele todos os proventos necessários para sustentar os seus serviços, cada vez mais desenvolvidos e absorventes.
Assim se extinguiram todas as pensões e encargos estabelecidos nos forais (isto é, fundados em títulos genéricos); assim se tornou obrigatória a remição de foros, censos e quinhões pertencentes ao Estado e às corporações religiosas extintas (remição com a qual se pretendia, na realidade das coisas, angariar fundos para o Estado e evitar-lhe a perda daquelas pensões, que, pela complexidade das cobranças, podiam cair em esquecimento); e assim se foram dando vários golpes nas propriedades imperfeitas, existentes entre pessoas privadas, por título particular.
Dominado pelas ideias correntes, o Código Civil introduziu naquelas formas de propriedade alterações importantes, que em muitos casos lhes modificaram profundamente a fisionomia e lhes tiraram em parte o valor prático. Não foi, porém, o Código até ao ponto de permitir a remição obrigatória, aparte a do censo consignativo e do compáscuo. A forma simplista por que se encontram reguladas no Código algumas propriedades imperfeitas, que no antigo direito eram muito mais complexas - senão diferentes, até - do que as que vemos no Código, mostra, aliás, que este não se afastou da orientação que então dominava neste campo e não procurou conciliar com justiça e conhecimento da realidade os interesses em jogo.
Foi o decreto de 30 de Setembro de 1892, regulamentado pelo decreto de 14 de Dezembro do mesmo ano, que '.pela primeira vez admitiu a remição obrigatória de foros.
Do primeiro destes diplomas fez o visconde de Coruche severa crítica, da qual recortamos os seguintes passos, que - embora escritos com paixão - bem mostram quão melindroso e grave é o problema da remição das propriedades imperfeitas:
...o foro representa dois direitos distintos sobre a mesma propriedade única e indivisa pela natureza do contrato; estes dois direitos são o do senhorio e o do foreiro. Dar a ambos ou a qualquer dos dois o direito de desapossar um só deles contra vontade, para ficar o outro só em campo, equivale, quanto a mim, a substituir ditatorialmente o direito de propriedade e a boa fé dos contratos pelo direito de roubar.
...roubo é a acção do ladrão público que, com ousadia, violência e conhecimento do roubado toma o alheio contra vontade do seu dono; logo n remição obrigatória é coisa muito parecida com n lei do roubo, porque se faz violentamente contra vontade do dono ou dos donos da propriedade.
Por estas razões, considerava o mencionado autor a remição contrai ia à garantia constitucional da propriedade, e o decreto que à permitia "...uma arbitrariedade e uma violação das próprias leis constitucionais; é a anarquia, a desordem, a insubordinação e a subversão social estabelecida como princípio num decreto" (V. de Coruche, Propriedade, Enfiteuse e Agricultura, Lisboa, 1893, pp. 52 e 53).
Por estas e outras críticas, foi o citado decreto de 30 de Setembro de 1893 revogado pelo decreto n.° 11 de 10 de Janeiro de 1895. A remição obrigatória em favor do
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foreiro só veio a ser restabelecida pelo decreto de 23 de Maio de 1911, e desde então numerosos diplomas legais têm confirmado a faculdade de remir o foro atribuída ao enfiteuta, acabando o decreto n.° 19:126 por a incluir no Código Civil.
Quanto ao censo reservativo, por seu lado, só tardiamente foi consagrada nas nossas leis a faculdade de remição unilateral, em favor do censuário.
O hábito criado por esta legislação, cuja raiz doutrinária a pouco e pouco se foi tornando inconsciente, pode dar às severas acusações do visconde de Coruche ao decreto de 1892 a aparência de descabidas e disparatadas. Contudo, ainda que descontemos tudo quanto essas acusações contenham de exagerado, não poderemos deixar de reconhecer que é grave o problema que elas suscitam, pois, vistas as coisas desapaixonadamente, é indiscutível ser a remição forçada lesiva dos direitos individuais; com efeito, a remição não é, na realidade, mais do que uma expropriação por utilidade particular, destinada a defender o interesse daqueles que não possuiriam a terra se alguém, contando com garantias que o legislador arbitrariamente suprime, a não tivesse emprazado ou por outra forma concedido.
Demais, muitas das críticas que hoje se fazem às propriedades imperfeitas em causa assentam em factos que o próprio legislador criou, privando os respectivos titulares de direitos legitimamente adquiridos. É típico, a este respeito, o caso da enfiteuse.
Muitas vezes, com efeito, se argúi o senhorio directo de auferir um lucro para que em nada contribuiu, limitando-se a viver do trabalho alheio, e não raramente se sustenta ser a enfiteuse injustificada sobrevivência do passado, sem qualquer função útil no presente.
Quem assim pensa esquece que foi o legislador moderno que suprimiu antigos direitos do senhorio directo - como o de comisso, o de perceber o laudémio e outras pensões eventuais nos emprazamentos de futuro, o de recobrar o prédio no fim das vidas por que se convencionara a concessão, transformando toda a enfiteuse em (perpétua (se bem que neste caso se tivesse seguido praxes anteriores), o de autorizar a venda ou oneração do prazo - e que pela abolição desses direitos se quebrou a íntima ligação, outrora existente, entre o prédio e o senhorio, como que transformando este em mero titular de direitos sobre coisa alheia. Esquecem ainda os adversários da enfiteuse que foram aquelas inovações e a concessão da faculdade de remição unilateral que tiraram a este contrato o interesse que oferecia aos senhorios, tornando-o raro na prática. Não se repara, finalmente, que desses dois factos - a expansão dos direitos do foreiro à custa do senhorio e a raridade de novos emprazamentos que, pelo exemplo, dêem aos enfiteutas a consciência do título limitado dos seus direitos - resulta a, convicção de ser o senhorio directo simples beneficiário do trabalho alheio, e estar no detentor do domínio útil o único e verdadeiro proprietário do prédio. Numa palavra: se a enfiteuse é hoje incompreendida e desprezada é porque a política do Estado assim a tornou, e não porque, convenientemente regulamentada essa instituição, não possa desempenhar ainda função social útil.
Com as outras propriedades imperfeitas outro tanto aconteceu. Proibidas umas para o futuro no Código Civil, sujeitas outras a regras que lhes diminuem o interesse prático e as fazem raras, aparecem-nos como sobrevivências antipáticas do passado e simples encargo e embaraço para os proprietários presentes.
Tudo isto nos mostra quanta prudência é necessária ao inovar nesta matéria. Aliás, outra razão há ainda para confirmar este modo de ver: a falta de elementos seguros sobre a estrutura e importância actual das propriedades imperfeitas, de que estamos tratando, como vamos mostrar.
15. Demos já a entender, com efeito, que o Código Civil parece ter sido elaborado, no que respeita aos direitos em causa, com alguma precipitação e desconhecimento da realidade.
Nota-se isso na própria concepção que o legislador teve de alguns desses direitos.
Assim, define o Código o quinhão como "o direito que qualquer pessoa tem de receber uma quota-parte da renda de um prédio indiviso, encabeçado em um dos comproprietários do mesmo prédio e por ele possuído".
O Código considera, portanto, o quinhão uma forma de compropriedade. Nesta concepção se funda não só o regime a que o mesmo diploma sujeita aquele direito real, mas também o preceito do artigo 2196.°, que proíbe para o futuro a constituição de quinhões e manda regular a propriedade, a cuja fruição por qualquer modo for dada essa forma, pelas disposições referentes à propriedade comum.
Ora, segundo informa o Sr. Dr. Cunha Gonçalves, em numerosos casos de quinhão, cujos títulos- examinou, os quinhoeiros não têm direito a quotas da renda, mas a prestações fixas, e o quinhão não nasceu de um acordo entre vários comproprietários, um doa quais assumisse a administração do prédio, antes se constituiu ou pela cedência da propriedade a quem no prédio não tinha qualquer quota, reservando o cedente o direito de perceber certa prestação, ou pelo facto de o proprietário pleno onerar o prédio, concedendo a outrem o direito ao quinhão. Acontece até, por vezes, haver sobre os mesmos prédios vários quinhões, constituídos em épocas diferentes, o que pode inculcar não constituírem esses direitos reais uma forma de compropriedade.
Esta possível divergência entre a concepção legal de quinhão e a forma por que em muitos casos ele se apresenta na realidade coloca o legislador na necessidade de ser prudente nas reformas que nesta matéria quiser fazer, pois não estão devidamente identificadas e esclarecidas as realidades de facto a que tais reformas se hão-de aplicar. Aliás, é lícito perguntar-se se o conceito adoptado no Código é fruto de simples desconhecimento por parte da comissão revisora, que no mesmo Código incluiu a matéria de quinhão, ou se ele não corresponde antes a formas existentes de propriedade diversas dos quinhões referidos pelo Dr. Cunha Gonçalves; ambas as hipóteses são verosímeis e a dúvida é tanto mais de considerar quanto ao lado dos quinhões do Alentejo, geralmente de prestação certa, parece existirem em outras regiões quinhões que se adaptam à referida ideia de quota.
Do compáscuo, diz o artigo 2262.° do Código Civil que ele consiste na comunhão de pastos de prédios pertencentes a diversos proprietários. Que significa aqui "comunhão de pastos"? Será a comunhão de pastagens de vários prédios pertencentes a diversos- proprietários, estabelecida entre estes e a eles restrita, isto é, uma servidão recíproca de pastagem? Ou abrangerá os próprios casos em que sobre os prédios têm direito de pastagem indivíduos que não são proprietários de nenhum dos prédios onerados, como sustentam os Drs. Dias Ferreira (Código Civil Português Anotado, 2.ª edição, IV, p. 218) e Cunha Gonçalves (Tratado, XI, p. 564)? A primeira solução parece ser a consagrada no artigo 2262.°, mas a segunda parece estar reflectida no artigo 2266.º, no qual se fala simplesmente em prédios onerados com o encargo perpétuo de pastagem; tudo está em saber se a diferença entre estes dois preceitos é meramente literal, ou se eles têm âmbito diverso.
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Os nossos praxistas referem-se a duas figuras distintas: a servidão recíproca de pastagens e a servidão de (pastagem simples, que podia ainda ser pessoal ou real, conforme era estabelecida em favor de certa pessoa, sem restrição de prédio favorecido, ou em relação ao gado de certo prédio (vide, por exemplo, Borges Carneiro, Direito Civil, IV, pp. 83 e 85).
A interpretação dos preceitos citados que parece mais defensável é a que >dá à palavra "compáscuo" sentido amplo, em que se abranjam todos os encargos de pastagem, quer recíprocos, quer unilaterais; na verdade, o artigo 2266.° estaria desloca-lo se não tivesse âmbito igual ao do artigo 2262.° e se referisse, pelo contrário, só à servidão unilateral, pois em tal caso regularia matéria estranha ao capítulo em que se encontra e deveria, ter sido incluído, antes, no das servidões. No entanto, pelo exposto vê-se bem que também aqui o Código não evidencia com rigor a natureza do direito que regulamenta, o que. dificulta o juízo que se queira fazer sobre as vantagens ou desvantagens desse direito. Demais, é difícil saber-se ao certo quais as formas de encargo de pastagem que ainda subsistem e decidir qual a respectiva utilidade actual.
São, por conseguinte, mal conhecidas a natureza e importância das propriedades imperfeitas, e esse facto é outra razão para o legislador não tomar atitudes novas nesta matéria sem cuidadosa investigação sobre as condições reais em que aquelas propriedades ainda subsistem.
16. Com as observações feitas nos dois números anteriores não pretende a Câmara Corporativa diminuir o valor das razões que militem a favor da constituição da propriedade perfeita. Pretende apenas mostrar que o movimento da chamada "libertação da terra" não se funda inteiramente em motivos verdadeiros e equitativos, antes se apoia em grande parte em preconceitos doutrinários e tem sido causa de muitas injustiças.
Porque é assim e porque a própria matéria em jogo é mal conhecida., não parece prudente continuar-se, por sistema, a política de facilitar a, constituição da propriedade plena à custa dos direitos que a limitam. Só por inquérito rigoroso e cuidadosa ponderação de todos os interesses em causa parece possível encontrar-se solução que seja equitativa para os casos do passado e não inutilize para o futuro formas de propriedade que ainda possam desempenhar função vantajosa.
Está em curso a elaboração do novo Código Civil, no qual - ou, pelo menos, a propósito do qual - terá de tomar-se posição quanto às propriedades imperfeitas em todos os seus aspectos, quer no tocante às já constituídas, quer a respeito da forma que hão-de ter no direito futuro. Parece, por isso, ser mais conveniente relegar para os estudos respeitantes a esse novo Código as inovações profundas que em matéria de propriedade daquele tipo se queiram introduzir no direito vigente.
Sem embargo, não deixará esta Câmara de apreciar em especial as bases do projecto de lei n.° 91, para o caso de se entender que a reforma "planeada é oportuna.
B) Apreciação na especialidade:
1) Direito de remição (base I):
17. Como atrás se disse, o projecto concede ao posseiro, no quinhão, a faculdade de remir este encargo, irremível pelo direito vigente, e admite ainda a remição do censo consignativo e do compáscuo, qualquer que seja a duração deles, isto é, sem as restrições feitas na lei actual: ter decorrido o (prazo do contrato, ou pelo menos vinte anos. para o censo consignativo, e ter o ónus de compáscuo carácter perpétuo.
Examinemos separadamente ".s inovações do projecto quanto ao quinhão e quanto ao censo e compáscuo.
18. Será de aconselhar a remição de quinhões?
Perante o Código Civil a remição é absurda, porque o quinhão está regulamentado pomo forma de compropriedade, e a faculdade de remir redundaria, por isso, em permitir-se a um comproprietário apropriar-se das quotas dos outros, contra todos os princípios de direito.
É verdade que, se o quinhão é sempre, como sustenta o Sr. Dr. Cunha Gonçalves em relação aos casos por ele analisados, mero jus in re aliena, simples encargo lançado num prédio cuja propriedade se concedeu ao chamado posseiro, há em favor da concessão da faculdade de remir o facto de ela existir na enfiteuse e nos censos. Se é aquela, com efeito, a natureza do quinhão, o direito actual é de certo modo incongruente quanto faculta a remição de alguns ónus reais (sem excluir aqueles que ainda hoje são permitidos para o futuro) e recusa a de outro, exactamente um dos que a lei não permite constituir de novo.
Claro que essa remição teria todo o aspecto de injustiça que a remição envolve nos casos em que já é permitida, por constituir verdadeira lesão dos direitos individuais, como acima mostrámos. Ainda quando o preço pago pelo direito remido fosse justo (e veremos adiante que actualmente não o é), o titular desse direito recebe apenas uma quantia em dinheiro, que não pode colocar com as garantias que até aí tinha, e que se haviam estabelecido por acordo mútuo, do qual a remição é derrogação unilateral permitida por leis demagógicas.
Simplesmente, terá sempre o quinhão essa natureza? Não haverá casos em que ele seja simples propriedade comum, de natureza especial? E, mesmo nos casos em que isso não acontece, não terá o Código Civil, regulando o quinhão como forma de compropriedade, alterado os direitos dos quinhoeiras de maneira que hoje seja injusto substituí-los pela simples propriedade de ama quantia em dinheiro? Se os quinhoeiros são ou se tornaram compropriétários do prédio, a remição é inadmissível, pois eles são tão proprietários deste como o posseiro, que só tem a mais do que eles a posse e a administração do prédio (e esta, aliás, com limitações impostas por lei).
As dúvidas enunciadas são graves e não podem deixar de pesar no ânimo do legislador que queira abandonar a política unilateral de proteger os que detêm a terra, em detrimento de direitos alheios, tão respeitáveis como os deles.
No parecer desta Câmara, qualquer que seja a solução futura do problema, este tem de encarar-se hoje nestes termos: o quinhão tem para o direito actual á natureza de propriedade comum, e está por fazer um inquérito geral que permita, com segurança, alterar a concepção legal daquele instituto; e nem sequer se possuem elementos para saber se é possível destrinçar várias espécies de quinhão, umas que admitam a remição e outras cuja natureza a exclua. Por agora, portanto, a remição é inteiramente inaceitável.
19. A remição do censo consignativo, independentemente da duração respectiva, como o projecto propõe admitir, não parece aceitável.
Já foi importante restrição aos direitos estabelecidos nos respectivos contratos o dar-se aos censuários a faculdade de remir o encargo antes do tempo por que tenha sido convencionado. A verdade é, todavia, que, se esse princípio, consagrado no "Código Civil, veio diminuir as vantagens que aquele contrato poderia ainda oferecer, conservou-se, no entanto, em limites, razoáveis, pois só permite a remição de censos com vinte
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anos, pelo menos. O projecto pretende, pelo contrário, ir muito mais longe, e, se fosse convertido em lei, redundaria em destruir o censo consignativo, cuja constituição ainda hoje é e deve ser permitida.
Na verdade, o censo consiginativo implica, por natureza, a garantia dada ao censuísta de que o capital por ele cedido lhe assegura uma renda perpétua ou, pelo menos, por uni lapso de tempo mais ou menos extenso; quer dizer: dá-lhe, não apenas a garantia de rendimento seguro, mas também a de rendimento estável que lhe evite os incómodos e contingências de novas colocações de capital. Nisto reside a função específica desta modalidade de censo, que o distingue do contrato de usura, mesmo quando celebrado com garantia hipotecária
Ora essa função desapareceria por completo se se facultasse ao censuário a remição sem qualquer limite de tempo. Se, por inquérito rigoroso aos costumes e condições económicas do País, viesse a concluir-se que o censo consignativo não podia desempenhar função útil e se apresentava, antes, como prejudicial, poderia o legislador proibi-lo para o futuro. Mas conservá-lo na lei como contrato autónomo e destruí-lo indirectamente, pela possibilidade de o censuário a todo o tempo remir a renda, parece não ser nem lógico, nem conveniente.
Demais, parece, existir neste ponto algo de ilógico na base de que parte o projecto: ou o censo consignativo caiu em desuso e é hoje realidade anacrónica, e então os direitos desta, espécie ainda existentes devem datar de tempos remotos e ter, portanto, duração suficiente para serem remidos segundo o direito vigente; ou há censos recentes - com menos de vinte anos -, e isso demonstra que não desapareceu a função própria de tais direitos, o que torna injustificável qualquer providência que tenda a destruí-los.
A ampliação da faculdade de remir os censos, prevista no projecto, seria, portanto, mais um passo na corrente acima referida de inconsiderado combate às propriedades limitadas, destinado à a libertação da terra" em favor apenas dos que a fruem, os quais aliás muitas vezes não são os que nela trabalham, revelando-se tão absenteístas como os titulares das propriedades limitadas.
O mesmo deve afirmar-se quanto ao compáscuo temporário - se é que ele existe -, único em relação ao qual o projecto é inovador, como deixamos dito.
Se a lei o admite, não há razão para o tornar precário, permitindo ao proprietário do prédio onerado remi-lo a qualquer tempo - um dia depois da constituição desse direito, se tanto lhe aprouver. Quando muito, seria de aceitar permitir a remição de compáscuo ao fim de vinte anos de duração, à semelhança do que se faz no Código Civil em relação à enfiteuse e ao censo consignativo.
Quanto ao compáscuo, no entanto, o projecto pode ter o mérito de dissipar as dúvidas que se tenham acerca, da possibilidade de remir o encargo de pastagem, quando recíproco.
2) Preço da remição (base II):
20. Sobre o preço da remição, na falta de acordo dos interessados, adopta o projecto, quanto a censos e quinhão, o sistema vigente paira a enfiteuse e para os censos: a remição faz-se pagando ao credor da pensão censítica ou quinhão vinte vezes a prestação devida anualmente.
A este princípio um só reparo pode fazer-se, extensível aos preceitos semelhantes em vigor: aquele sistema de calcular o valor do direito a prestações periódicas, perpétuas ou por vinte anos ou mais, baseia-se na hipótese de capitalização a 5 por cento, taxa hoje superior à que pode conseguir-se na prática em boas condições de segurança, principalmente tratando-se de quantias pouco avultadas.
É, por isso, injusto, no momento presente, o preço por que se manda fazer a remição de foros e censos, e que o projecto quer estendeu à remição de quinhões. Esta questão já foi, aliás, suscitada pela 'Comissão de Economia da Assembleia Nacional no parecer relativo ao projecto de lei n.º 5, sobre foras em ouro.
Deve também notar-se que o sistema vigente peca ainda por outro lado: permite ao foreiro e ao censuário fazer, à custa do credor, uma colocação de capital a taxa superior à corrente, pois, desembolsando o preço da remição, consegue economizar anualmente uma quantia (o foro ou censo) equivalente a 5 por cento do mesmo preço.
Entende esta Câmara que, para evitar injustiças, deve o preço da remição ser elevado para trinta vezes a prestação anual, o que corresponderia à taxa de capitalização de 3.33 por cento, muito mais próxima da taxa corrente. Só assim se garantirá ao titular do direito remido a possibilidade de colocando o capital recebido como preço da remição, conseguir rendimento igual ao que auferia até então.
Para prevenir, porém, a hipótese de futura alta da taxa de juro (que aliás não traria qualquer prejuízo inevitável paru o foreiro ou censuário, que apenas teria de esperar por melhor ocasião para requerer a remição) pode dar-se ao Governo a faculdade de, por simples regulamento, restaurar o sistema actual, se tal alta se der. Objectar-se-á, talvez, que este sistema viria, dificultar a remição, tornando-a mais onerosa. Já pusemos em relevo, porém, não haver qualquer razão para se proteger os direitos dos fruidores da terra em detrimento de direitos alheios: concede-se-lhes, já, a faculdade de remir unilateralmente. que em regra não tinham pelos respectivos contratos; que, ao menos, a exerçam em termos de não prejudicar injustamente os titulares dois direitos remidos.
21. Quanto ao preço da remição do compáscuo, diz o projecto que, na falta de acordo, ele será igual a vinte vezes o valor médio atribuído à comunhão de pastos, determinado por avaliação.
Como acima se disse, no Código Civil a remição faz-se pelo pagamento do justo valor dele. Segundo o Código de Processo Civil, o valor dos direitos de servidão e semelhantes calcula-se pela. maior estimativa dos cómodos a que dão lugar, e os encargos pêlos prejuízos que determinam.
Qual destas fórmulas será a preferível?
"Justo valor", expressão usada no Código Civil, é modo de dizer muito vago e impreciso. O Código de Processo manda tomar para base do cálculo os benefícios e encargos, pelo que parece, neste ponto, mais preciso do que o projecto, que somente considera o "valor médio da comunhão de pastos". Por seu lado, o projecto fixa, a mais do que a lei processual, a relação entre o valor dos benefícios médios e o do próprio direito; este último será igual a vinte vezes o primeiro.
A combinação das duas últimas fórmulas, com pequenas alterações de redacção, dá-nos, segundo cremos, a chave do problema. O valor do compáscuo, deverá dizer-se, é igual a...vezes (o número de vezes que se adoptar para o cálculo do valor de outros ónus remíveis) o valor médio dos benefícios que o titular do direito remido auferia com a utilização dos pastos.
3) Processo de remição (bases III e IV):
22. Sobre os trâmites processuais da remição judicial estabelece o projecto, como se disse, que lhes é
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aplicável o preceito do artigo 1030.° e parágrafos (melhor se dirá § 2.°) do Código de Processo Civil. E este o preceito fundamental do projecto nesta matéria, posto que nele apareça em último lugar (base IV), pois tudo quanto se dispõe na base m é mero desvio de pormenor em relação ao referido processo.
Quanto a esta disposição (base IV), nada tem que observar a Câmara Corporativa. O artigo 1030.° e seu § 2.° já são aplicáveis aos censos e foros, e com vantagem se aplicarão também à remição do compáscuo e à do quinhão, se for autorizada.
Pelo contrário, as disposições da base III têm de ser analisadas mais demoradamente, porque, no parecer desta 'Câmara, de modo nenhum são de aceitar.
23. Estabelece a base III do projecto, tal como dissemos já, que a remição da enfiteuse e dos ónus referidos na base I será requerida contra os titulares do ónus a remir que figurarem no respectivo registo da conservatória do registo predial, sem que a isso obste o falecimento de qualquer dessas pessoas, devendo a citação fazer-se nas moradas constantes daquele registo. Os herdeiros dos citados poderão, quer na pendência do processo, quer depois de extinto o ónus, habilitar-se para, respectivamente, intervir na causa ou receber o preço depositado.
Consideremos, antes de mais, o primeiro princípio, aquele em que se fixam as pessoas contra as quais se deve intentar o processo, e que para ele devem ser citadas, e as moradas em que tal citação deve fazer-se.
Entende a Câmara Corporativa que tal princípio não se baseia em qualquer necessidade prática e é, sobretudo, absolutamente inaceitável.
Refere-se o preâmbulo do projecto ao facto de em numerosos casos ser difícil ou impossível a constituição de propriedade perfeita pela dificuldade ou impossibilidade de remir foros cujos senhorios directos não se acham devidamente habilitados.
Ora, não se vê que haja, a este respeito, qualquer impossibilidade ou dificuldade considerável. Se o requerente sabe quem é o credor, requer a citação dele (Código de Processo Civil, artigo 1024.°); se conhece o credor ou credores, mas o respectivo direito lhe parece duvidoso, fá-los citar para que tornem certo esse direito (Código cit., artigo 1029.°; cf. também artigo 760.° do Código Civil); se o credor é incerto, requer a citação de incertos interessados e do (Ministério Público (Código de Processo Civil, artigo 1024.°).
Claro que estas formas de citação podem complicar algo o processo ou torná-lo mais demorado. E isso, porém, o que acontece em relação a todos os processos, sem que haja qualquer razão para alterar esse regime ou para criar um especial para as remições. As formas de citação estabelecidas na lei constituem o mínimo possível de garantia para os direitos do citando, visto que se chega a permitir a citação na pessoa de vizinhos e até por editais (Código de Processo Civil, artigos 235.° e seguintes).
Aliás, a citação já tem no processo de consignação em depósito efeito cominatório mais intenso que no processo comum, pois, citado o credor - mesmo por editais, porque a lei não distingue -, a falta de impugnação ao depósito no prazo legal importa a extinção do ónus (Código de Processo Civil, artigos 1025.° e 1030.°, § 2.°). No processo ordinário a falta de contestação envolve confissão dos factos alegados pelo autor e no processo sumário e no sumaríssimo. confissão do pedido em ambos os casos, porém, esses efeitos só se dão quando o réu foi citado pessoalmente (Código de Processo Civil, artigos 488.°, 784.° e 798.°).
Mas, ainda que houvesse real necessidade de adoptar princípios diversos para a citação no processo de remição, nunca poderia recorrer-se ao sistema do projecto, porque ele constituiria grave e injusta derrogação aos princípios fundamentais do processo e do registo predial.
Com ele desapareceriam, na verdade, todas as cautelas estabelecidas na lei para, na medida do possível, levar a instauração do processo ao conhecimento das pessoas contra as quais ele se intenta, cautelas nas quais a lei não esquece, antes assegura, os interesses do autor. Ficaria frustrado por completo o princípio da contraditoriedade, básico no nosso sistema processual, tanto mais quanto, como já se pôs em evidência, o projecto só teria, neste ponto, relevância prática quando o credor não fosse conhecido ou se achasse em parte incerta, hipótese que só se dará precisamente no caso de as indicações do registo predial serem insuficientes. Assim se (permitiriam, não só grandes injustiças, mesmo sem o requerente ter a intenção de as causar, mas até fraudes, porquanto a ineficácia prática da citação podia ser conhecida do requerente e ele podia aproveitar-se desse facto para depositar quantia inferior à devida ou, por outra forma, prejudicar o credor.
Com o sistema em causa subverter-se-iam também os princípios legais em matéria de registo predial. Este tomaria um grau de força probatória, que em caso nenhum tem, e os efeitos dele seriam completamente modificados. Hoje, duas hipóteses se podem dar: ou o detentor do prédio onerado é terceiro em relação ao titular do ónus, e este não pode opor-lhe d seu direito, se o não registou; ou é parte no acto de constituição do ónus, ou herdeiro ou representante de parte nesse acto, e o direito que recai no prédio é-lhe oponível, independentemente de registo (Código Civil, artigo 951.°, e Código do Registo Predial, artigo 274.°). Por isso, no direito vigente, a determinação do titular do ónus nem sempre se faz pelo registo; com o projecto, pelo contrário, o registo passaria a constituir meio autêntico de revelar a identidade e até a morada do titular do ónus, do qual se podiam prevalecer as próprias partes e seus herdeiros e representantes.
Quanto ao princípio, estabelecido em segundo lugar na base III, de que os herdeiros do titular do ónus se poderão habilitar para intervir no processo ou para receber o preço da remição, nada cumpre dizer em especial, porque se encontra prejudicado pelas observações feitas ao primeiro princípio, de que é lógica consequência. Não deixará, porém, esta Câmara de chamar a atenção para uma injustiça a que ele daria lugar no que respeita a custas.
Como o requerente da remição teria o direito de fazer citar apenas as pessoas constantes do registo, e os herdeiros apenas tinham o poder legal de se habilitar, as custas do incidente de habilitação ficariam a cargo dos que o promovessem (Código de Processo Civil, artigo 458.°, n.° 1.°). Assim se viria a impor ao titular do ónus remido um encargo injustificado quando ele não tivesse dado causa ao processo de remição.
Por tudo o que fica dito é a Câmara Corporativa de parecer que não podem de modo nenhum aceitar-se os preceitos constantes da base III do projecto. Já acima se deixou bem vincada a necessidade de não prosseguir na política de facilitar a constituição da propriedade perfeita sem acautelar os legítimos interesses dos titulares de propriedades limitadas. Um dos pontos em que essa necessidade é muito sensível é este do preço de remição: visto que se concede, em detrimento dos direitos dos sujeitos de propriedades imperfeitas, a faculdade de remir estas, assegurem-se-lhes, quando menos, os meios processuais para exercerem efectivamente o direito à indemnização que a lei lhes atribui.
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IV
Conclusão
24. Em síntese, parece à Câmara Corporativa que, vista a necessidade de se observar a maior prudência e espírito de justiça na reforma do direito vigente sobre propriedades imperfeitas, é melhor reservar essa reforma, para momento em que ela possa fazer-se com elementos mais completos que os de que actualmente se dispõe acerca das referidas propriedades.
Para o caso, porém, de assim se não entender, sugere-se a substituição das bases do projecto pelas seguintes, nas quais se condensam os preceitos do projecto n.° 91, que, em princípio, poderiam ser aceites, introduzindo-se-lhes alguns aditamentos que se afiguram aconselháveis:
BASE I
É permitida a remição de foros, censos consignativos ou reservativos e compáscuo, nos termas desta lei e das disposições legais em vigor que este diploma não contrarie.
BASE II
A remição pode ter lugar, na falta de acordo dos interessados:
a) Na enfiteuse e subenfiteuse, a pedido do foreiro ou subenfiteuta, contanto que o emprazamento ou subemprazamento tenha vinte ou mais anos de duração;
b) No censo consignativo, a pedido do censuário e desde que o censo tenha sido estipulado por vinte anos ou mais, por tempo indeterminado ou como perpétuo, e hajam decorrido vinte anos sobre a constituição;
c) No compáscuo que dure há vinte anos ou anais, a requerimento do proprietário do prédio sujeito ao encargo de pastagem;
d) No censo reservativo, a pedido do censuário.
BASE III
1. O requerente da remição pagará ao titular do direito remido o preço que for estipulado por acordo ou, na falta deste:
a) Na enfiteuse e subenfiteuse, trinta vezes o foro, e um laudémio, se for devido;
b) No censo, consignativo ou reservativo, trinta vezes o censo;
c) No compáscuo, trinta vezes o valor médio dos benefícios líquidos auferidos pelo credor com a utilização dos pastos onerados.
2. Se o foro ou censo for, no todo ou em parte, em géneros, reduzir-se-á primeiro a dinheiro, segundo o preço médio dos últimos cinco anos, determinado pela tarifa camarária, se as partes a aceitarem.
3. Pode o Governo alterar, em regulamento, o coeficiente referido nas alíneas do n.° 1 desta base, se se derem variações na taxa de juro corrente que assim o justifiquem.
BASE IV
À remição referida nesta lei é aplicável o artigo 1030.° e seu § 2.° do Código de Processo Civil.
BASE V
O disposto na base III não se aplica às remições que se achem consumadas pelo efectivo recebimento do preço ou decretadas por sentença com trânsito em julgado.
Palácio de S. Bento, 14 de Fevereiro de 1947.
José Gabriel Pinto Coelho.
Paulo Arsénio Viríssimo Cunha.
Álvaro Machado Vilela.
Manuel Gomes da Silva, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA