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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 90
ANO DE 1947 22 DE FEVEREIRO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.° 90 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 21 DE FEVEREIRO
Presidente: Ex.mo Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Ex.mos Srs. Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
O Sr. Deputado Froilano de Melo apontou a conveniência de introduzir no decreto n.° 34:562 modificações que o tornem exequível no Estado da índia.
O Sr. Presidente comunicou que recebera da Presidência do Conselho um desenvolvido relatório do Sr. Ministro das Finanças sobre a política monetária.
Ordem do dia. - Prosseguiu o debate sobre o decreto-lei que concede protecção, ao cinema nacional, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Marques Teixeira, Querubim Guimarães, Pinheiro Torres, Pinto Coelho e Antunes Guimarães.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 20 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Ferreira Finto Basto.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António de Almeida.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Henrique Linhares de Lima.
Indalêncio Froilano de Melo.
João Antunes Guimarães.
João Garcia Nunes Mexia.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
José Esquivei.
José Maria Braga da Cruz.
José Martins de Mira Galvão.
José Penalva Franco Frazão.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
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Mário Borges.
Mário de Figueiredo.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Querubim do Vale Guimarães.
Salvador Nunes Teixeira.
Teotónio Machado Pires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 40 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Representações
Da Sociedade Portuguesa de Naturalogia e revista Natura, em que pedem que aquela Sociedade seja autorizada a fazer livremente a propaganda dos seus princípios e a realizar tudo quanto esteja dentro dos fins para que foi criada.
Subscrita por António Costa Vilarinho, Mário da Cruz Mota, José Soares e Maria Justina de Magalhães, em que, na qualidade de sócios do Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório do Distrito de Lisboa, pedem a revisão dos ordenados mínimos fixados à sua classe, que estão, presentemente, abaixo do nível médio do custo da vida.
Oficio
Do Grémio da Lavoura de Aveiro e Ílhavo, em que, a propósito da intervenção do Sr. Deputado Rocha Paris, declara não considerar prejudicial o regresso ao mercado livre do milho, desde que venha a verificar-se a circunstância de chegarem ao País quantidades substanciais daquele cereal, e, em tal caso, manifesta ainda o Grémio o seu desejo de que seja garantido à lavoura um justo preço do milho.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Froilano de Melo.
O Sr. Froilano de Melo: - Sr. Presidente, Srs. dignos Deputados: a legislação que regulava o funcionamento das companhias de seguros na nossa índia era o diploma legislativo do governo local n.° 1:097, de 19 de0 Janeiro de 1941. À sombra desse diploma se fizeram milhares de transacções que dantes não eram sujeitas a nenhuma legislação especial.
Naquela nossa terra portuguesa não opera nenhuma companhia nacional em larga escala: apenas uns raros seguros contra incêndios de casas têm sido feitos numa companhia nacional, quando sobre essas casas se fizeram operações de crédito no Banco Nacional, Ultramarino.
Em contraposição trabalham na nossa índia cerca de vinte companhias anglo-indianas e trabalhavam dantes outras companhias estrangeiras, como a Sunlife e a Manufacturers Life, do Canadá, e uma ou outra companhia inglesa da Inglaterra, que resolveram não continuar as suas operações no Hindustão por causa da legislação extremamente apertada a que as obrigou o Governo da índia Inglesa.
Para fazerdes uma ideia da natureza e extensão dessas operações no nosso pequenino território - que, digamos desde já, representam uma parcela insignificante da sua actividade no Hindustão - e do que elas constituem como previdência para a economia dos
indo-portugueses, bastará apontar-vos alguns dados:
Os seguros são, na sua maioria, seguros de vida, seguros para a educação dos filhos e seguros para dotes de casamento às filhas. Já entraram nos hábitos do povo e as operações ânuas, em Goa, giram em volta das cifras seguintes: (3) de 2 laques de rupias para 10 companhias e 1 laque paradas restantes 10, temos por ano 30 laques de rupias ou seja 21:000.000$. O prémio que essas
companhias recebem por ano dos seus clientes goeses é de 1 1/2 laque de rupias, ou seja 1:050.000$. Como vos disse, a legislação que na índia Inglesa regula o funcionamento dessas companhias é das mais , apertadas e rigorosamente fiscalizada. Dos relatórios do Governo Inglês extractarei para aqui os dados que nos permitem entrever a solidez de algumas dessas companhias que operam no nosso território, uma das quais, a Indian Life Assurance, de Karachi, formada e gerida por patrícios nossos estabelecidos nessa florescente cidade indiana. Ei-las:
[Ver tabela na imagem]
N. B.- Para converter um escudos, multiplicar por 7.
Ora, em 1 de Novembro de 1945 foi mandado publicar em todo o ultramar português o decreto n.° 34:062, que regula a indústria de seguros no ultramar. Este decreto contém algumas disposições que são inexequíveis na India e é necessário adaptá-lo às peculiaridades locais, a fim de não provocar um descalabro económico dos mais desastrosos. Afigura-se-me que com umas pequenas modificações o poderemos fazer, e é o que na medida dos
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meus parcos conhecimentos neste campo de estudos mo cumpre levar ao conhecimento do Governo por intermédio da Assembleia Nacional.
Fixemos desde já um ponto fundamental: ninguém contesta que essa legislação seja das mais primorosas e de cautelosa garantia para o crédito indispensável para este género de empresas, nem que o Estado Português, no uso do seu pleno direito de soberania, legisle como lhe parecer mais adequado para a salvaguarda das economias dos seus cidadãos. Somente sucede que, como essa legislação ó perfeitamente igual à que vigora no território inglês, a sua execução integral na nossa índia, sem adaptações que encarem as realidades, representa uma duplicação escusada e - o que é mais - uma estagnação improdutiva dos capitais das companhias, que a exiguidade do montante das operações em Goa não permite sem graves prejuízos financeiros para essas companhias e consequentemente para os seus clientes.
Exemplifiquemos os pontos basilares que seria necessário reconsiderar:
a) O artigo 28.°., na condição 1.ª, manda que as sociedades estrangeiras façam um depósito de 500 contos ou quantia equivalente em moeda local (71:000 rupias) no banco emissor.
Ora, sendo de 1 1/2 por cento o máximo juro que o banco emissor ou a Caixa Económica Postal poderiam garantir a esse depósito, essa operação representa uma perda para as companhias, que garantem aos seus segurados um prémio de 3 1/2 a 4 por cento.
É preciso que se note que nos termos da Insurance Act de 1938 essas companhias são obrigadas a depositar na tesouraria do governo da índia 200:000 rupias (1:400.000$), bem como a empregar 55 por cento dos seus capitais em apólices do governo, que lhes rendem um juro mínimo de 3 por cento.
É à sombra dessas garantias que nos estados indianos, tão florescentes, de Misore e Barodá as companhias anglo-indianas estão isentas desses depósitos, aliás em vigor nesses estados.
As companhias que operam no nosso território, caso semelhante isenção lhes não possa ser concedida pelo Governo Português, pedem para esse depósito de 71:000 rupias ser feito, não em moeda, mas em apólices e papéis de crédito do Governo Inglês, a fim de lhes permitirem receber no fim do ano os seus juros a 3 por cento, por o juro do banco emissor lhes ser economicamente desvantajoso.
b) A condição 2.ª do artigo 28.° manda constituir e aplicar as reservas de seguros vencidos, as reservas de garantia e as reservas matemáticas para as pensões de acidentes de trabalho nos termos do artigo 11.° Ora a exiguidade das operações no nosso território não lhes permite arcar com as despesas das repartições de contabilidade que seria necessário criar no nosso País. As companhias, tendo as suas repartições montadas e fiscalizadas pelo governo da índia Inglesa, não têm no nosso território mais que simples agentes encarregados de recrutar segurados.
Mesmo quanto ao emprego dos seus capitais no nosso território, não teriam dúvida alguma para subscrever para qualquer empréstimo que em rupias fosse lançado pelo governo de Goa; não poderão porém contribuir para qualquer outro emprego de capital em outra moeda do Governo Português, pela simples razão porque o Keserve Bank não permite a exportação da rupia para fora da índia, senão sob condições muito restritas.
c) A cláusula 3.ª, que manda redigir as apólices em português, é impraticável, porque essas apólices saem das sedes estabelecidas na índia inglesa; mas não têm dúvida em juntar a cada apólice destinada ao nosso território unia tradução em português devidamente autenticada.
d) A condição 5.ª, que inunda apresentar ao governo de Goa, até seis meses depois de findo cada exercício, um documento, passado pelo organismo oficial competente do seu país, em que se declare ser boa a situação financeira e técnica da sociedade, é inexequível, pelo simples facto de na Indian Insurance Comp. Act de 1938 não haver disposição alguma autorizando o superintendente dos seguros ou qualquer outra entidade oficial a passar um documento neste sentido. Vista pois a impossibilidade de se obter tal declaração, o que as companhias poderia m fazer era enviar o relatório das suas contas anuais, após a aprovação oficial respectiva, ao Governo Português, traduzido na nossa língua, se necessário. Ficaria assim praticamente dispensável a organização do modelo n.° 2, que todavia poderia ser junto ao relatório como um apêndice contendo os dados relativos às operações efectuadas no nosso território.
Como vedes, com pequenas adaptações práticas e encarando as realidades, pôde pôr-se na nossa índia em execução o magnífico decreto sobre a indústria dos seguros.
Tenho pena que não possua conhecimentos mais extensos sobre esta matéria para prestar às entidades responsáveis mais amplas afirmações. Mas o que deixo dito é suficiente para que os técnicos revejam o assunto como for mais conveniente para a salvaguarda dos nossos interesses e para o prestígio da nossa soberania.
É absolutamente necessário modificar aquele decreto relativamente à nossa índia, porque corremos o risco de essas companhias não operarem mais no nosso território. A retirada dessas companhias seria um passo economicamente desvantajoso, porque actualmente cada, companhia paga ao governo de Goa, em cada ano:
Rupias
Por taxa de licença ................. 200-00-00
Por tabuleta ........................ 14-08-00
Imposto de defesa ................. 125-00-00
Correspondência postal (cerca de).... 350-00-00
Licença para os agentes, 6 rupias por agente e contando doze agentes por cada companhia. ......... 72-00-00
Taxas incidentais ................... 10-00-00
Um total de 771-08-00, o que dá para as vinte companhias a soma de 15:430-00-00, ou seja 108 contos ânuos.
Juntemos a esta receita nos nossos cofres as seguintes cifras:
1.° Cada companhia emprega, em média, vinte o cinco pessoas, que recebem uma comissão de 25 por cento sobre o prémio do primeiro ano e 2 1/2 por cento sobro novos seguros efectuados;
2.° Calculando em seiscentos o número dos indivíduos que fazem anualmente os seus seguros em Goa, temos seiscentos exames médicos, o que dá, (3) 8 rupias por cada exame, 4:800 rupias, ou seja 33.600/5 ânuos.
Não tendo nós nenhuma companhia nacional operando no nosso território, não permitindo a exiguidade das operações no nosso Pais o estabelecimento de uma companhia especial para este género de indústria, que de resto ninguém pode pensar em monopolizar, não representará a retirada dessas companhias um passo economicamente desvantajoso e politicamente infeliz?
E podemos nós garantir que esses agentes e subagentes que hoje labutam no nosso território e nos pagam as suas taxas e impostos se não fixarão em quaisquer pontos da fronteira para exercerem daí a sua actividade no nosso País?
Não devo esquecer o que ouvi em Damão: quando se planeou é traçado da Bombay-Baroda Railway, propôs a companhia que a linha passasse por Damão. Por umas
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questões de lana caprina e entrincheirados na nossa intransigência, não permitimos essa passagem, que se efectuou por um burgo humildo e cheio de choças a 7 quilómetros do Damão. Hoje aquele burgo, que se chama Vapi, é uma cidade florescente e Damão decai, reduzida a uma vida artificial, que o saudoso patriota António Francisco Moniz canta no seu Damão agonizante.
Expus o caso como o meu intelecto o apreendeu. Apelo para o espírito prático e senso patriótico do nosso companheiro de trabalhos nesta Gamara que empunha hoje o timão do Ministério das Colónias, o Sr. capitão Teófilo Duarte: ao Governo do Estado cumpre providenciar para o bem da Nação.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Dou conhecimento à Assembleia de que se encontra na Mesa, enviado pelo Sr. Presidente do Conselho, um desenvolvido relatório do Sr. Ministro das Finanças sobre a política monetária, que é objecto do aviso prévio do Sr. Deputado Bustorff da Silva, documento que vai ser publicado no Diário das Sessões.
Peço aos Srs. Deputados, a quem já mandei distribuir aquele relatório, toda a sua - atenção e estudo, pois a questão monetária será dada para ordem do dia da sessão da próxima terça-feira.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Nesta altura estão presentes os Srs. Deputados. Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão o decreto-lei que concedo protecção ao cinema nacional.
Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Teixeira.
O Sr. Marques Teixeira: - Sr. Presidente: ao subir a esta tribuna pela vez primeira, é-me sumamente grato renovar a V. Ex.ª a mais alta, a profunda e sincera homenagem de elevada admiração, distinto apreço e sentido respeito, na natural exteriorização dos francos sentimentos que são devidos a V. Ex.ª, figura eminente, por tantos títulos, da política, da magistratura e da sociedade portuguesa.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: serão breves e simples as considerações que bordarei a propósito do decreto-lei n.° 36:062. Sem pretensões, dispus-me a ocupar lugar nesta tribuna para com base em certos passos do diploma ora em discussão retomar o assunto que já foi também objecto de duas intervenções minhas, sempre modestas, nesta Assembleia, no período de antes da ordem do dia.
Por ser justo e para ser justo, principiarei por dirigir felicitações ao ilustre Deputado Prof. Dr. Mendes Correia por ter tomado a iniciativa, em conjunto com outros distintos Srs. Deputados, de solicitar de S. Ex.ª o Presidente desta Assembleia que o decreto-lei n.° 36:062 fosse submetido à crítica da Câmara.
Com efeito, Sr. Presidente, em matéria de cinematografia, como de resto respeitantemente a todos os processos que ajudam a formar as ideias e os sentimentos ou, pelo menos, lhes dão curso - tal como a imprensa, o teatro e a rádio -, convém e é útil que alinhem e se dêem as mãos todos os que, sobranceiros a interesses mesquinhos ou a vãs questiúnculas, apenas se deixam seduzir pelo amor à verdade, têm o culto da justiça, observam a austeridade dos princípios, prezam a integridade moral e, por isso, outras preocupações não têm senão servir com dedicação e firmemente a causa do bem comum.
Como todos V. Ex.ªs, estou aqui modestamente, apagadamente embora, nesta posição.
Em meu entender, Sr. Presidente, o diploma em causa tem um fundamento cheio do legitimidade e é de uma oportunidade flagrante.
Que é legitimo conclui-se, sem esforço, da sua leitura, a qual nos habilita a apreender as sérias razões que o determinaram; que ó oportuno todos o sentimos, verificado o estado actual da produção cinematográfica nacional e o porvir que a aguarda; melhor, as perspectivas do futuro que é nosso desejo condicionar-lhe.
Para suporte das reiteradas conclusões que hoje quero reforçar, permito-me, Sr. Presidente, fazer a leitura de alguns períodos do texto do diploma em apreciação.
Logo na abertura da sua parte preambular avisadamente se escreve: «Não carece de demonstração a importância do cinema na vida dos povos modernos, o seu, poder de insinuação nos espíritos, a sua influência como meio educativo (o sublinhado é meu), a sua força como instrumento de cultura popular. Tanto basta para que o Estado se não desinteresse do problema e lhe consagre a atenção que lhe é devida ...».
Depois, já no corpo do decreto, sob a rubrica «Da licença de exibição de filmes», no artigo 2.°, ao fazer-se a enumeração da espécie e categoria de filmes, fala-se, adentro dos denominados filmes de complemento, em «documentários, filmes culturais, educativos, desportivos, viagens, etc.».
Mais adiante, na alínea c) do artigo 10.°, ao considerarem-se os requisitos que devem caracterizar o filmo português, escreve-se também: «Serem representativos do espírito português, pelo seu tema, ambiente, linguagem e encenação, sem prejuízo dos grandes temas da cultura universal».
Sr. Presidente: ninguém, afoitamente, digo que ninguém, em sua consciência, pode regatear francos e entusiásticos louvores ao Governo de Salazar pelo fervor de carinho e fecundo sentido realizador com que se vem. consagrando à valorização da chamada «política do espírito».
Muito se tem feito, na verdade; e se, como é humano, nem tudo está feito, j d não é natural, como é evidente, que o que podia e devia estar feito ainda se não fizesse ...
E caio no mesmo ponto, Sr. Presidente; e solto o mesmo brado angustioso; e lanço o mesmo veemente apelo, apesar de tudo confiante: regulamente-se a lei n.° 1:974, relativa às condições de assistência dos menores aos espectáculos públicos, e não se retarde mais a sua execução!
Para que reeditar, como sustentáculo sólido desta petição, os argumentos, já do nosso conhecimento, brilhantemente produzidos nesta Câmara, noutras legislaturas e na decorrente, por parlamentares insignes, entre os quais destaco, sem desprimor para quem quer que seja, a figura distinta de mulher-senhora, da mais alta estirpe moral e mental, que é a Dr. D. Domitila de Carvalho e o Dr. José Cabral, ornamento ilustre desta Assembleia?
Mas já não desisto, Sr. Presidente, de dar largas desta tribuna ao desvanecimento que me toma e ao júbilo que me empolga como a resultante natural da confiança, cada vez mais arraigada, e da fé, cada vez mais viva, que no meu peito depositam as atitudes sadias de coragem moral, de desejo de saneamento, de ânsia de perfeição, de querer mais e, sobretudo, querer melhor, que enchem a vontade, fazem pulsar mais fortemente o coração e robustecem, mobilizam e dinamizam a inteligência de miúdos jovens da nossa terra.
Imbuídos da doutrina da Mocidade Portuguesa, em cuja escola admirável militam com ardor, preocupa-os, apenas, que se não tolde a pureza que sonharam para a Revolução Nacional, batalham pela defesa e manutenção
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dos grandes princípios, enleva-os o serviço do bem comam, vivem o amor da Pátria, e por esse acervo de nobres ideais se batem com extraordinária elegância moral e admirável e impressionante galhardia de espírito!
Por exemplo, Sr. Presidente, ao relancear .os olhos pelo magnifico suplemento «Juventude» do intemerato Diário da Manhã, é consolador registar como uma pléiade brilhante do moços encara a sério os altos problemas da comunidade nacional - os da hora crucial que passa e aqueloutros que hão-de ter projecção fatal e profunda, com o seu largo cortejo de consequências, no dia de amanhã.
Sr. Presidente: reza assim uma das conclusões aprovadas no vi conselho plenário da Liga Católica, na sua reunião de Dezembro próximo passado: «a defesa dos bons costumes impõe ao Estado a necessidade urgente de uma selecção cuidadosa e criteriosa dos livros, publicações e espectáculos» - e de espectáculos, friso agora com insistência.
Disseram os jornais do dia 7 do corrente mês, Sr. Presidente, que os estudantes da Califórnia levantaram um altivo e digno protesto contra a exibição de filmes indecorosos, deliberando não assistir, durante um mês, a nenhuma sessão cinematográfica, acrescentando ainda esperarem «que a essa campanha de moralidade viessem a aderir mais de 6 milhões de estudantes norte-americanos».
Não tenho conhecimento, Sr. Presidente, de que entre a massa estudantil da nossa terra se esboce idêntica atitude. Não tenho dela conhecimento, repito, mas faço-lhe a justiça de a julgar capaz para tanto.
Todavia, os rapazes da Mocidade Portuguesa, através do suplemento «Juventude» do distinto órgão da imprensa já referido e por meio de outras publicações, vêm clamando pelo pronto cumprimento da lei n.° 1:974, número a número, com uma persistência significativa, com uma coerência que os honra, sem desfalecimentos, com um notável pundunor, com a nítida consciência das razões ponderosas e inabaláveis que lhes assistem, com a clara vibração de um querer esclarecido que um compreensível sentimento de mágoa, apesar de tudo, não afrouxa.
Daqui, Sr. Presidente, os saúdo desvanecidamente, efusivamente, calorosamente, pelo seu impressionante e confortador testemunho de um tão apurado e actuante sentimento moral, e felicito-os e felicito-me a mim próprio no gozo da euforia de espírito que resulta de saber que não morrem nunca nem as ideias nem as causas que apaixonam a alma generosa e boa da mocidade.
E com alvoroço, Sr. Presidente, apelo agora para o eminente Prof. Dr. Pires de Lima, titular ilustre da pasta da Educação Nacional - que neste momento respeitosamente cumprimento como seu humilde e sincero admirador e na qualidade de discípulo obscuro que fui de S. Ex.ª -, rogando-lhe com empenho e confiadamente que, sem mais detenças, determine seja regulamentada a lei n.° 1:974, que a Câmara, este órgão da soberania, votou numa das suas sessões do mês de Janeiro de 1939, para que, com a presteza requerida e necessária, ela seja observada.
Se tal não se fizer, Sr. Presidente, continuará sendo letra morta, por modo deplorável, uma operante e meritória medida de verdadeira, de autêntica, e legítima defesa social.
Quanto a mim, na economia do decreto-lei n.° 36:062 não há virtualmente omissões que seja preciso integrar.
Através da leitura de alguns dos seus passos ressalta a ideia, carinhosa e devidamente perfilhada, de que na matéria vertente é ainda preciso incentivar o salvaguardar a genuinidade do carácter português - determinação o preceito que considero e aplaudo, tanto mais quanto é corto que nunca me esqueço da expressão consabida e
judiciosa de Gustavo le Bon: «a mais terrível catástrofe que pode atingir um povo é perder a sua alma nacional».
E Ramalho Ortigão, como V. Ex.ªs sabem, exprimindo-se embora diferentemente, todavia tocava o mesmo alvo ao afirmar que «à infecundação do indivíduo pelo espírito da raça corresponde o desfaleci mento do poder criativo, a inércia da inteligência, a esterilidade do estudo, a degeneração da fantasia, o abandalhamento do gosto, a atrofia do próprio carácter e, em último resultado cia decadência geral, a desnacionalização pelintra de todo um povo».
Sr. Presidente o Srs. Deputados: graças a Deus. mercê do espírito informador da Revolução Nacional, por força do génio de Salazar - «ao mesmo tempo grande ideólogo e grande mestre da acção» -, operou-se entre nós, senão uma ressurreição, pelo menos um surto de avigoramento da consciência selectiva da Nação, tornou-se mais robusto o sentimento da sua própria personalidade, defendendo-se e salvando-se com carinho tudo o que represente tradição notável do nosso espírito e da nossa cultura, enfim, encarando-se a história, no dizer de alguém, não como um simples e inexpressivo registo de factos, mas como contendo a lição profunda do sentido da vida do nosso povo.
Em resumo, Sr. Presidente, Portugal encontrava-se a si mesmo, segundo o claro depoimento do escritor Sr. Fidelino de Figueiredo, expresso em 1944.
Penso, por consequência, que tudo quanto se faça em qualquer sector da actividade humana para que a Nação não veja desvirtuada e jamais perca a sua obra é trabalho fecundo, meritório, altamente patriótico. Nesta conformidade e neste estado de espírito, Sr. Presidente, louvando sinceramente a ideia da promulgação do decreto-lei n.° 36:062, emito o meu voto no sentido de que seja ratificado pura e simplesmente.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Querubim Guimarães: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: antes que me esqueça, e para não estar sujeito a qualquer merecida sanção da parte dos bons o zelosos defensores do Regimento, isto sem ofensa ao Sr. Deputado Mário de Figueiredo, devo dizer a V. Ex.ªs que sou pela ratificação deste diploma, mas com emendas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E porque é que eu entendo que deve haver uma ratificação não pura e simples? Não é por menos consideração para com os autores do diploma.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª desculpa-me, mas eu não consegui perceber a que propósito veio a referência que V. Ex.ª fez há pouco ao Regimento.
O Orador: - Faço a referência ao Regimento para me acautelar e prevenir contra justas advertências, como as por V. Ex.ª proferidas duma outra vez, em idênticas circunstâncias.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Isso é então uma referência a uma história pregressa...
O Orador: - Nem mais.
Acho que nada se perde com a volta a esta Assembleia do diploma em discussão.
O assunto não pode circunscrever-se a um campo restrito. Ele é uma dedução lógica e real da necessidade pública, de uma intervenção do Estado a favor da produção cinematográfica genuinamente portuguesa.
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Mas porque não havemos nós do alargar a discussão até ao ponto de introduzir possivelmente no diploma outras disposições que melhor o esclareçam, melhor o informem, melhor o completem, no bom sentido de um maior aperfeiçoamento, sobretudo, não no sentido de um problema económico como aquele que aflige tantos dos que até nós vieram trazer as suas opiniões, mas sim na sua projecção social, educativa e moral. E eu lamento que esse ponto não tivesse sido tocado convenientemente por todos os que se entregam à exploração cinematográfica nas suas exposições. Este é que é o aspecto que deve estar acima de tudo no nosso espírito, olhando a conveniência de defender a nossa individualidade nacional, a nossa vida social, os nossos costumes e tradições em primeiro lugar.
Ora uma ratificação com emendas obriga a que o diploma tenha de voltar a esta Assembleia. Porque não havemos então de apresentar sugestões, alterações ou alvitres que o melhorem, se é possível, como creio? De resto há mesmo, na parte económica da questão, delicadeza. Nalgumas exposições que vieram até junto de nós há realmente ponderáveis informações. E necessário efectivamente rever, explicar, verificar, por exemplo, se as taxas indicadas no artigo 1.° do decreto são de aceitar ou não. Isto apesar de um escritor estrangeiro, creio que médico, ter dito que o cinema é hoje a obsessão permanente da juventude, e portanto o torna a maior atracção da época que se vive. Apesar disso, e apesar de se verem os cinemas cilícios de gente, devo dizer com toda a sinceridade que acho que esta taxa deve ser examinada com ponderação e prudência, no sentido de se ver se é ou não possível manter-se. Não se pode esquecer, por exemplo, que ao Estado rendeu a importação de filmes estrangeiros no ano findo 32:000 contos, seguindo uma exposição que aqui se recebeu.
E um problema que também devemos ter em atenção.
Nós temos de defender o nosso cinema e a nossa produção cinematográfica, aperfeiçoando sobretudo a sua técnica. É uma verdade incontestável. Isso é a parte fundamental da questão e só isso justifica a publicação do decreto.
A nossa técnica, por enquanto, é incompleta, imperfeita. Não podemos, desta maneira, ter o prurido de nos colocarmos numa situação capaz de se estabelecerem contratos com os produtores estrangeiros, de modo a haver um mútuo entendimento que nos permita permutar em condições.
O estrangeiro poderá porventura preocupar-se com a nossa produção tão escassa em quantidade e ainda tão imperfeita em qualidade?
O Sr. Mário de Figueiredo: - Mas pode preocupar-se com a dele e por isso mesmo que se preocupa com a dele é que, para a colocar aqui, pode ter de fazer sacrifícios quanto á nossa.
O Orador: - A situação de superioridade em que a produção estrangeira só encontra perante a nossa é tão evidente que não antevejo essa possibilidade.
Quando virá esse dia?
Que há necessidade de proteger e de dar desenvolvimento à nossa produção, e sobretudo à nossa técnica, nisso estamos todos de acordo, e o que o diploma diz a tal respeito e os fins que tem em vista não podem deixar de merecer a nossa inteira e absoluta aprovação.
Já não falo na má sistematização do decreto. Desculpem-me os ilustres autores deste diploma que lhes diga isto.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Isso de se folar dos ilustres autores do decreto, quando se trata de um decreto-lei publicado no Diário do Governo e que está assinado por todo o Governo, é uma coisa que mo parece, no seio desta Assembleia, inaceitável.
Como já disse, os autores do decreto são os Ministros, é o Governo. O responsável é, pois, o Governo, o é ao Governo que temos de nos referir para o criticar e apreciar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Os ilustres autores do diploma são o Governo? Está bem; o que eu não concordo ó com a sistematização do diploma.
O Sr. Mário de Figueiredo: - O que eu desejaria era ouvir uma razão séria capaz de conduzir a uma solução sobre o problema da ratificação pura e simples ou com emendas do decreto. E não creio que as do sistematização sejam dessas.
O Orador: - Sr. Presidente: eu estimo sempre imenso todas as interrupções, pois assim não caio na monotonia da minha dição. Até nisso as interrupções são apreciáveis e podem ser esclarecedoras.
Devo dizer que quando falo na má sistematização não considero esse aspecto como matéria do fundo na apreciação do diploma.
O diploma em discussão deveria começar por enunciar os fins a que ele visa.
Mas estão no meio.
Apoiados.
Em segundo lugar, deveria passar a dizer-se quais as receitas com que conta, e em terceiro lugar, então, indicar qual a entidade que deve ficar a administrar os fundos.
O Sr. Soares da Fonseca: - V. Ex.ª está a criticar o decreto sob o aspecto formal ou sobre a questão do fundo?!... O que interessa é o aspecto de fundo ...
O Sr. Mário de Figueiredo: - É pelo que lá falta e não pelo que lá está contido.
O Orador: - Eu peço a atenção de V. Ex.ª, Sr. Dr. Mário de Figueiredo. As suas interrupções sempre as aguardo numa expectativa ansiosa de aprender a discorrer melhor, mas o que é verdade é que nunca me propus encarar o diploma nesse aspecto. Comecei por dizer, ao contrário do que se está julgando, que já não falava numa melhor sistematização do diploma e foi a interrupção do Sr. Dr. Mário de Figueiredo que me obrigou a falar nela.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Eu só interrompi V. Ex.ª depois de ter posto o problema da sistematização.
O Orador: - O fundo da questão é que é o essencial. Mas vamos para diante, senão não saímos daqui.
Perguntava eu: as receitas com que conta o Fundo cinematográfico nacional serão aceitáveis? Poderão ir aos 10 contos as taxas da categoria A ou não deverão ir a mais dos 2 contos, como alvitram outros? Não poderá com uma exigência exagerada de imposto prejudicar-se o próprio fim que se pretende obter?
Outro ponto: o organismo a cargo de quem fica a administração do Fundo será realmente conveniente que seja o Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo ou não? É outro ponto delicado.
Não desagrada ao meu espírito nacionalista, mas o que é facto é que isso vai bulir com outros interesses que são legítimos e que, representando também uma fonte importante de receites para o Estado, deveriam talvez ser ouvidos na solução de assuntos que lhe dizem
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respeito. Será conveniente: Não será? É outro ponto digno de reflexão.
Além disto, é preciso considerar que a protecção ao cinema nacional não deve revestir-se do carácter de um monopólio, paru beneficiar uma produção em prejuízo de outra. Ambas têm a sua, posição, que ao Estado interessa manter, embora a do cinema -
nacional tenha o direito a especial atenção.
Depois fala-se no decreto na divulgação do cinema, nas possibilidades que o cinema tem de pagar altas percentagens nas receitas dos espectáculos.
Não sei se os números estão certos, porque não tive possibilidade de os controlar, mas se estão verifica-se que há cinemas que têm sentido, uma depressão enorme no que diz respeito às suas receitas. Diz-se numa dessas exposições, por exemplo, que o -
número de cinemas não tem aumentado, que este decreto deu já lugar a que fechasse uma firma distribuidora e que é alarmante a situação de alguns desses cinemas recentemente construídos, havendo-os que não chegam a render 2 por cento líquidos ao capital empregado. Será assim?
Outro ponto em que aqui se fala é na dobragem. Nada sei de dobragem, pois nada conheço da técnica cinematográfica, e pela frequência a espectáculos desses nada posso dizer também, porque frequento pouco os cinemas, visto que de ordinário saio de lá, com raras excepções, mais contrariado com o que vi e ouvi do que edificado, nada ou muito pouco trazendo para a vida em satisfação ou entretenimento do espírito que me seja útil ou agradável, como legítimo seria de esperar de uma arte soberba, magnífica quando divulga o que é belo e eleva e educa e distrai dignamente, mas perigosa quando serve para divulgar o que é nefasto.
Portanto, não sei bem como para a dobragem possa ter tão grande importância ser ou não ser em língua portuguesa.
Confesso que nos meios pouco cultos, como acontece em certos meios provincianos, o que vale ao espectador são as legendas ou a dobragem em português. Considera-se a dobragem em língua portuguesa o maior inimigo da produção nacional e que se impõe a defesa do património linguístico. Vozes, aliás não desinteressadas, é claro, citam-nos exemplos de fora em sentido contrário.
Nós encontramo-nos sob uma avalanche de filmes norte-americanos que invadem os nossos cinemas numa percentagem de 80 por cento e que são, na verdade, néon mais nem menos do que uma verdadeira desnacionalização para nós, porque são tanta vez a adulteração do nosso carácter, do nosso modo de sentir, da nossa própria dignidade, das nossas tradições familiares, das nossas tradições religiosas e sociais, e que representam uma porta aberta para perigos que atingem as crianças, os jovens e os próprios adultos, enfim, toda a gente que ali encontra elementos próprios para se perverter, com emoções graves para as crianças, como já foi constatado em inquéritos feitos, despertando precocemente nos sentidos tudo o que de perigoso eles contêm, em impressões que mão são fugazes, porque permanecem e estimulam doentias curiosidades como a daquela criança que se lastimava à mãe por ter chegado, tarde ao cinema e não ter visto uma parte do filme em que se 'fazia referência ao nascimento de um bebé. Então perguntava ela insistentemente à mãe como era isso, ao que a mãe nada podia responder. A criança, assim perturbada, tinha uns 12 anos, e era uma rapariga!
Todos sabemos que a criança é naturalmente curiosa e deseja ser informada de tudo o que a impressione, da tudo quanto vê.
Todavia, continua letra morta a lei, que aqui foi aprovada, de protecção aos menores, proibindo-lhes a assistência a espectáculos cinematográficos até uma certa idade.
Não se regulamentou ainda a lei, o que permite portanto que as crianças continuem a ir ao cinema.
O nosso ilustre colega Dr. Manuel Múrias disse-nos ontem ser coisa difícil evitar a ida das crianças ao cinema, por meio desse regulamento, por ser pouco prática a verificação da sua idade.
O Sr. Carlos Borges: - Já há alguns cinemas em Portugal onde as crianças não entram.
O Orador:- Talvez; mas o que verifico, sobretudo nos cinemas populares, é justamente o contrário.
Não me parece que seja de impossível prática tal regulamentação.
A própria juventude se (perverte de uma maneira extraordinária nesses espectáculos.
É um problema grave para o futuro da nossa gente.
Numa nota que aqui tenho a respeito de um inquérito feito aos filmes americanos, lêem-se os seguintes números: de 632 filmes que foram inspeccionados, 113 representavam atentados contra o pudor, 117 giravam à volta de adultérios, 38 faziam a apologia do divórcio, 172 eram bazares de modas indecentes e 192 respeitavam a flirts descarados e inconvenientes.
A conclusão deste inquérito é deveras significativa.
Isto para não falar de outros, como o de um professor de Praga a respeito dos filmes que percorreram a Europa em 1935.
E «notem V. Ex.ªs: não é um português, amante da sua tradição católica e religioso, que fala naquele inquérito. É um jornal americano, do próprio país que tanto tem enriquecido com a sua produção cinematográfica, o New World, que nos trouxe há tempos essa preciosa elucidação.
Isto é porventura cinema educativo?
Mas é claro que o prejuízo que isto representa para as crianças que vão ao cinema é enorme, para as crianças e para os adolescentes e jovens, e sobretudo para estes, pois nestas idades o perigo é maior, por poder traduzir-se na deformação do carácter. Eu bem sei que a culpa pertence em primeiro lugar aos pais. Já ontem se disse isso aqui, e realmente os pais deveriam ser os principais polícias para vigiar os filhos e impedi-los de se perverterem. Não se preocupam com isso, até os próprios, católicos, apesar das elucidações do secretariado de cinema e rádio da Acção Católica.
E sob o ponto de vista da saúde pública o problema também é de ponderar. Estão aqui presentes ilustres médicos que podem confirmá-lo; lembro-me neste momento de um médico italiano, o Dr. Fábio Peunachi, que afirma que a tuberculose tem no cinema vasto campo para proliferar.
O Sr. Carlos Borges: - Isso seria motivo para se restringir o cinema, e não para o valorizar e proteger, como V. Ex.ª pretende. Parece que V. Ex.ª está sendo contraditório.
O Orador: - Pelo contrário. O que é preciso é valorizá-lo num sentido - educativo. Mas há um outro aspecto que não se pode perder de vista, a respeito do esquecimento em que jaz a lei aqui votada - o da nossa soberania, que está em causa.
Depois de larga discussão, com tanta cópia de argumentos a seu favor, publicou-se, depois de aprovado pela Assembleia, uma diploma como esse, tão digno, tão notável e tão elevado nas suas bases e motivos que o inspiraram, e afinal é letra morta no País. Faço daqui, acompanhando o ilustre Deputado que me antecedeu, unia exortação ao ilustre e jovem Ministro da Educação
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Nacional, que saúdo sinceramente, pondo nessa saudação o meu Coração de amigo seu e amigo e condiscípulo de seu ilustre pai, no sentido de, «para bem da nossa educação social e cívica, pureza dos nossos costumes e prevenção contra danos físicos e morais para a juventude, conseguir pôr termo a tal situação, imprimindo uma acção forte e positiva, de modo a pôr-se em execução essa lei que saiu desta casa, que tem, pela Constituição, ainda o poder de legislar.
Há em Portugal a funcionar, embora particularmente, uma instituição com altos fins morais e patrióticos que tem prestado já relevantes serviços ao País. É o chamado secretariado de cinema e rádio.
Aí se indicam, numa relação divulgada, todos os filmes que podem ser vistos por crianças, jovens ou adultos e os condenáveis. Talvez pela sua acção se explique que os filmes têm melhorado um pouco, a exemplo do que aconteceu na América do Norte com a Liga de Defesa da Decência, em que se juntaram católicos e protestantes para evitar a exibição de filmes impróprios e imorais, bem como indicando os que como tais deviam considerar-se e aconselhando o público a não os ver.
A acção do secretariado de cinema e rádio é nesse mesmo sentido.
Pela lista de filmes respeitantes a 1946 quase pode dizer-se que durante esse ano se reduziu a metade o número de filmes que não eram próprios para serem vistos, considerados absolutamente condenáveis, isto em relação ao 11.° semestre de 1943, o que significa já alguma coisa em benefício do nosso património moral.
Mas não me alongarei neste ponto, o que seria interessante, visto não ser este o lugar próprio para fazer uma conferência sobre o assunto, e o que estou referindo são apenas alguns números que V. Ex.ªs todos conhecem, visto que o assunto foi aqui tratado com proficiência, quando da discussão do projecto de lei a que me tenho referido.
Mas, pergunto eu, voltando ao assunto em causa: não há realmente conveniência em discuti-lo largamente a propósito de emendas a introduzir no diploma, no caso de se não aprovar a ratificação pura e simples do decreto?
E evidente que se torna necessário acautelar interesses da nossa produção, mas sem ir prejudicar interesses legítimos da importação, quando se trata de filmes capazes, e aí é que está o problema principal: intervir de modo que nem todos os filmes possam ser importados, mas não deixar de permitir a importação dos aceitáveis de maneira a garantirem as receitas do Fundo de protecção ao nosso cinema e as que legitimamente devem ter as respectivas empresas.
Não quero alongar-me em mais considerações, apesar de o assunto bem o merecer. No entanto, direi que há outros pontos que bem poderiam ser tratados com certo desenvolvimento, como é, por exemplo, aquilo a que se chama o formato de 16 milímetros, que se considera necessário ser controlado pelo Estado, porque,
tratando-se de aparelhos de projecção muito portáteis, são de recear projecções imorais ou de propaganda subversiva.
Fez-me espécie a excepção e, na verdade, não achei desarrazoado o que a tal respeito se diz numa das exposições referidas, pois que a intervenção policial pode obstar à sua exibição. Não haverá meio de obstar a esses perigos sem ser pelo processo radical que o diploma em discussão preconiza, sabendo-se, de mais a mais, que parece ser esse o processo técnico agora mais aceite pêlos produtores?
Porque não controlar então a rádio e as emissões que vão por esse Mundo fora?
Não acho aceitável a razão que se apresenta.
Sr. Presidente: vou concluir, tanto mais que desejo que o debate se não prolongue.
Parece-me que as considerações que fiz levam a concluir que é muito melhor dar ao diploma uma discussão mais larga, uma maior atenção num novo exame a fazer-se-lhe, do que circunscrevermo-nos ao que está no decreto, tal como se acha redigido, ratificando-o pura e simplesmente.
Ë preferível melhorarmos este decreto? Suponho que sim, e quero dizer a V. Ex.ª, Sr. Presidente, que sinceramente creio prestar-se assim melhor serviço ao País do que votando a ratificação sem emendas.
O que é de desejar é que a Câmara Corporativa seja tão breve quanto possível na apreciação a fazer, de modo a poder voltar aqui o decreto e ser votado ainda, se a sessão legislativa for prorrogada, pois a demora na solução do assunto, que é de magna importância nacional, pode ser muito pie judicial.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Pinheiro Torres: - Sr. Presidente: o decreto-lei n.° 36:062, publicado pelo Governo, e que veio a esta Assembleia para ser ratificado, corresponde a um imperativo nacional.
Com efeito, há muito se fazia sentir a necessidade de proteger a nossa cinematografia.
O cinema, como a rádio, constituem os grandes veículos modernos de informação e cultura popular.
Por isso todos os países estão a torná-lo instrumento do seu próprio nacionalismo, na educação do povo e na defesa da personalidade.
Quanto mais os homens inventam meios fáceis e rápidos de aproximação entre eles, mais as nações se preocupam em estabelecer fronteiras ao que possa desnaturalizar o seu carácter.
É a legítima defesa contra a intromissão de estranhos no que possa acertar contra a personalidade da grei, que é, nu dizer de alguém, a sua alma, o seu génio, vividos nos múltiplos aspectos que a caracterizam e a impõem, única na variedade o sui jeneris no grupo.
A defesa da integridade moral de um povo é tão importante como a defesa da sua integridade física, puis relaxada aquela, esta nau se mantém.
Assim, todos os meios de educação, de cultura, de informação e de propaganda devem, antes de mais, servi-la e fortalecê-la.
Ora o cinema é o meio ideal de o conseguir, porque é a arma mais poderosa de penetração das massas que se conhece, pelo seu puder sugestivo e aliciante.
Sob este aspecto, a imprensa, o livro, a própria rádio, ficam a perder de vista.
É que o cinema, como se escreveu já, é uma «arte de características universais e totalitárias». Universais, porque vai a toda a parte, da cidade mais civilizada às aldeias mais sertanejas; totalitárias, porque fala ao homem todo de gostos e temperamentos mais diversos, de educação e inteligências mais diferentes.
Através dele, das suas imagens, tudo se consegue. As ideias, os sentimentos, as sensações, penetram em nós quase sem darmos por elas e até sem despendermos o menor esforço, nem aquele mínimo que se faz ao passar as páginas de um livro ou de um jornal...
Basta a presença dos olhos o dos ouvidos, mesmo com ausência de tudo mais, para que entre em nós e em nós fique a germinar tudo quanto o produtor quis.
O produtor do filme é o senhor mais absoluto do Mundo, que conta mais milhões de súbditos e cuja vontade e intenções impõe discricionária mente, lá do seu reino, que é em Hollywood.
Revoltamo-nos contra os internacionalismos políticos, opondo-lhes barreiras de toda a ordem, mas admitimos,
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passivamente, este internacionalismo da imagem, de muito piores efeitos!
É que dos primeiros, porque contendem directamente com a dignidade da Nação, repelimo-los por instinto nato do patriotismo; dos segundos, porque não nos apercebemos do mal, que aliás é aliciantemente apresentado, aceitamo-lo e adoptamo-lo.
O cinema americano domina assustadoramente, provocando um nivelamento e estandardização do pensar e agir, que há quem receie mais a americanização da Europa do que a sua bolchevização.
O problema põe-se especialmente para a mocidade, que quase vive pelo cinema, onde só encontra motivos de abastardamento do carácter nacional, pela perda da originalidade, do génio e das tradições próprias, que são as raízes da perpetuidade da Raça.
Se ao menos o que a grande nação norte-americana nos manda fosse de elevado sentimento, de alto valor educativo - do mal o menos!
Mas, ao contrário, em regra, o que para aí nos exportam é artisticamente inferior, e como concepção é baixo, muito próximo da barbárie, o que levou Duhamel a escrever nas Scènes de la Vie Future, livro sangrento e por vezes injusto para os yankee, que «um povo submetido durante meio século ao regime actual do cinema americano se encaminha forçosamente para a pior das
decadências ...».
Grande arma, o cinema, mas arma com dois gumes, que tanto pode servir o bem como o mal.
Em todos os países se encara o cinema como uma grande força que é necessário carrilar em benefício da nacionalidade, tirando o das influências estranhas.
«Todas as nações - disse Júlio Dantas no discurso que proferiu na sessão da Academia das Ciências de Lisboa a propósito do jubileu da descoberta prática do cinema -, mal acordadas ainda do pesadelo da guerra, procuram definir hoje, em sentido nacional, a sua política de cinema».
Em Portugal a nossa política do cinema foi definida pelo decreto-lei em discussão.
O problema tinha e tem também grande acuidade entre nós.
A percentagem dos filmes estrangeiros que passam nos nossos cinemas é de 98 por cento, dos quais 90 por cento são americanos.
Com a frequência ao cinema estrangeiro, vivendo ambientes que não são os nossos, ouvindo uma língua que não é a nossa, mostrando costumes que não são os nossos, expandindo ideias e sentimentos que não são os nossos, com a marcada tendência cosmopolita do nosso feitio, corremos igualmente grave risco de enfraquecer ou até perder a nossa individualidade.
Depois, o que este país nos exporta, com raras excepções magníficas, é o pior que lá se produz, no ponto de vista moral e social, com certeza, daqueles filmes que combate a Legion of Decency, liga organizada em Nova-Iorque para lhes pôr cobro, pêlos efeitos deploráveis que exercem no povo, principalmente na mocidade, levando-o até à prática de actos criminosos. E justo dizer-se que, mercê dessas campanhas, Hollywood está a arrepiar caminho e u apresentar cinema moral e educativo.
Só para amostra, e não porque queira nesta altura focar esse aspecto, tiro estes números de um jornal, referidos a 1943:
De Janeiro a Novembro desse ano o secretariado de cinema e rádio da Acção Católica Portuguesa censurou 271 películas, verificando que 88 por cento eram impróprias para crianças, 20 por cento condenáveis em absoluto o só 54 por cento próprias para adultos.
Os temas, os enredos, resume-os assim aquela notícia: apologia do adultério, do divórcio ou pondo a ridículo o casamento e a mulher honesta, 44 filmes; o suicídio como meio legítimo de pôr termo a situações difíceis, 8; demonstração pormenorizada de burlas, assaltos e roubos, 25; ausência de respeito pela vida humana, com práticas de assassinatos, raptos ou violências do toda a ordem, 96; cenas de autêntico amor livre ou desregramentos morais, 95.
Como se vê, as estatísticas são negras no que revelam, pessimistas no que afirmam.
E o mais grave é que os filmes piores são exibidos em cinemas de bairro ou populares.
As estatísticas indicam que são esses cinemas os que registam maior actividade, numa média de 726 espectáculos anuais, o que significa que quase diariamente há duas sessões.
Quer dizer: uma grande parte da população portuguesa, a mais influenciável, porque menos culta, assiste diariamente, durante três horas, a espectáculos da natureza que indiquei - imoral e estrangeiro -, recebendo a infiltração, a intoxicação deletéria, de tudo quanto nega-mos, de tudo quanto queremos ela se afaste!
O Sr. Querubim Guimarães: - V. Ex.ª já viu o relatório a que se referiu, mas respeitante ao ano de 1946? Verifica-se por ele que as fitas condenáveis por esse secretariado reduziram-se no ano de 1946 a nove, quando no 1.° semestre de 1943, a que V. Ex.ª se referiu, os filmes condenáveis em absoluto foram dezasseis. Quer dizer: os filmes são melhores.
O Orador: - Não se diga, Sr. Presidente, que é apenas um caso de censura. Não. O cinema tornou-se uma necessidade da nossa época, a quem já alguém chamou a idade do cinema.
Exercer a censura com consciência era proibir a maior parto dos filmes, o que determinava paralisar a exibição, por não haver Outros a dar-lhes em troca, o que não podia ser.
Além do que só resolveria - se pudesse ser eficaz - uma parte do problema da inconveniência dos filmes, pois deixava sem solução a outra parte - a inconveniência dos filmes estrangeiros.
O remédio estava, como está, em criar cinema português, em proteger a produção portuguesa que realize o nosso pensamento, exiba os nossos costumes, dê o nosso ambiente, mostre a nossa história, trate temas que são de todas as nações, porque pertencem ao património da Humanidade.
O remédio estava, como se faz no decreto em discussão, em definir também, como os outros países, no sentido nacional, a nossa política de cinema.
Consegue o seu objectivo o decreto-lei n.º 36:062? Creio firmemente que sim.
A publicação nos jornais deste diploma levantou larga discussão entre os interessados, produtores dum lado, distribuidores e exibidores do outro, de forma que se conhecem os argumentos pró e contra, por fornia a podermos fazer uma ideia, mais ou menos perfeita, do assunto.
A discussão tem de situar-se nos propósitos do decreto - defesa das indústrias de produção nacional, para podermos produzir filmes em qualidade e quantidade capazes de preencher grande parte dos programas dos cinemas do nosso País e dignos de serem exibidos no estrangeiro.
Antes, porém, de examinarmos as medidas de protecção, uma questão prévia se põe: haverá uma cinematografia portuguesa que valha a pena ser protegida, capaz de satisfazer o que se pretende, não só quanto ao nosso público, mas ainda quanto ao público estrangeiro?
A resposta é indiscutivelmente afirmativa.
As possibilidades dos produtores portugueses estão bem patentes nos filmes que têm levado a efeito, os
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quais, embora com defeitos, e alguns graves, revelam, 110 entanto, qualidades artísticas e técnicas de alto valor.
Quem faz o Camões, e porque não citar Inês de Castro, cuja cena da vingança basta para o impor; quem realiza o Amor de Perdição e Três dias sem. Deus, os documentários das Fainas do Douro, Ala Arriba, Homem do Ribatejo, Lar quês Infantis e o magnífico 28 de Maio, apesar das imperfeições, está apto a poder passar para a tola tudo o que de maravilhoso tem a nossa história, de belo tem a nossa terra, de universal têm os nossos ideais.
Camões teve um sucesso retumbante que ultrapassou as fronteiras.
Tão retumbante que a Rússia se opôs a que fosse premiado em Cannes, o que produziu protestos na imprensa de todo o Mundo.
Mas para nós foi o melhor elogio: só nos honram os votos da
Ásia ...
Tão retumbante que a censura brasileira o considerou filme educativo, bastando dizer, para mostrar a importância desta resolução, que o último a quem, foi concedida tal honra foi ao filme Vida de Luís Pasteur, do grande Paul Muni, como Camões é do grande António Vilar.
Podemos, pois, abertamente dizer que temos uma cinematografia nossa, levada a efeito - o que mais nos honra! - com esforços verdadeiramente heróicos, que ó digna de ser protegida e cujos destinos devem ser os mais auspiciosos.
O decreto em discussão chegou em boa hora.
Não há dúvida, também, de que protege, eficazmente, a produção nacional.
Em primeiro lugar, define-se no artigo 12.°, com precisão, contendo tudo o que é necessário para bem caracterizar, o que deve considerar-se filme nacional: ser falado em português, produzido em estúdios pertencentes a sociedades portuguesas e representativo do espírito português.
A crítica do Sr. Dr. Mendes Correia não tem fundamento, porquanto se consideram estúdios onde está a aparelhagem, que tanto pode ser no interior como no exterior. Se a filmagem for no alto-mar, segundo o exemplo que citou, aí está o estúdio, e em território português, porque certamente o barco é português...
O Sr. Mendes Correia: - V. Ex.ª dá-me licença? Estúdio lato senso, não num estrito sentido técnico.
O Orador: - Sim, no sentido usual da palavra.
Ressalvam-se, na parte final da alínea c), os grandes temas de cultura universal, que podem ser sempre tratados. Creio seria dispensável esta ressalva, que constitui redundância, pois o nosso espírito pressupõe o sentido da universalidade.
Mas, quod abundad...
As medidas adoptadas para essa protecção são as mais eficazes. O êxito das empresas depende, acima de tudo, das facilidades financeiras que obtenham. Por isso e para isso o decreto cria o Fundo cinematográfico nacional.
Por esse Fundo se facilitam capitais às empresas, pela concessão de subsídios, de caucionamento a empréstimos na Caixa Nacional de Crédito, pela criação de prémios atribuídos aos filmes, artistas e aos técnicos e pelo pagamento dos encargos relativos às licenças de exibição.
Isto é muito, mas não é tudo. Os financiamentos não bastam. É necessário acompanhá-los de medidas que onerem e dificultem a exibição do filme estrangeiro, exactamente como acontece com a importação do qualquer produto estrangeiro em concorrência com o nacional.
É claro que esta nova situação vou ferir interesses criados, dos exibidores e distribuidores, mas tinha de ser, uma vez que se pretende auxiliar o produtor nacional, o que só se consegue, em grande parte, à custa daqueles.
Mas o decreto fá-lo suavemente e num mínimo razoável, absolutamente suportável.
Principia esse diploma por tributar os filmes estrangeiros, por meio duma taxa de licença de exibição desses filmes nos nossos cinemas, que ó uma das receitas, a mais importante, do Fundo cinematográfico.
O Sr. Dr. Mendes Correia insurgiu-se contra o facto de o decreto principiar por fixar uma taxa. S. Ex.ª não reparou que o decreto tinha de principiar polo principio ... que ora a licença de exibição.
É uma questão de critério. O decreto tinha de principiar peio princípio e começar por aí.
O Sr. Mendes Correia: - Eu perfilho em absoluto as considerações feitas sobro a disposição geral do decreto peio Sr. Deputado Querubim Guimarães.
O Orador: - Fico ciente. A receita anual prevista deste Fundo, tendo em atenção a média dos programas, ó de 3:000 contos.
Se considerarmos que no nosso País o espectáculo cinematográfico rende anualmente 90:000 contos, cabendo 75:000 contos ao americano, aquela verba é insignificante ... digam os grémios respectivos o que quiserem na defesa dos interesses estrangeiros!
O Sr. Mendes Correia: - Eu acho que com o processo que ontem sugeri nas minhas palavras se poderia obter uma soma superior a 3:000 contos; simplesmente era mais equitativamente que ela seria obtida.
O Orador: - Na devida altura eu me referirei aos pontos que V. Ex.ª abordou.
Outra medida defensiva é a proibição da dobragem dos filmes do fundo estrangeiros.
De uma maneira geral, este sistema foi abandonado, persistindo quase exclusivamente em Espanha e Itália, mas mesmo nestes países com oposição dos cineastas.
A dobragem tem, como principal argumento de defesa, a acessibilidade do cinema.
Mas os que a atacam fazem-no porque a consideram antiartística e por contrariar o desenvolvimento da cinematografia nacional.
É antiartística porque a dobragem nunca consegue adaptar-se inteiramente às expressões, pela diferença de pronúncia das línguas e porque se perde o ambiente verdadeiro do filme, a genuidade da produção.
É contrária ao desenvolvimento do cinema nacional, sendo o seu maior inimigo, porque é sabido que a principal razão da preferência do público pela produção nacional está em o filme ser falado na própria língua.
Permitir a dobragem era, pois, dificultar o seu desenvolvimento.
Ainda a dobragem tem o grande inconveniente de permitir, com mais profundeza, a infiltração do que haja de condenável na produção estrangeira.
De resto, a dobragem é muito onerosa, não havendo quem a explore, até agora, em Portugal, pelo que não há interesses criados a proteger.
No entanto, ressalva-se a hipótese da reciprocidade. E como por outro lado se estabelece no artigo 26.° que o Governo celebrará acordos com outros países para o intercâmbio cinematográfico, é de esperar que venham a ser dobrados os grandes filmes mundiais de grande categoria, como deseja o Sr. Dr. Mendes Correia e todos nós.
Também se proíbe no decreto-lei a importação de filmes de fundo estrangeiros falados em português, à ex-
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cepção dos produzidos no Brasil ou em regime de reciprocidade.
Esta medida ó tomada para evitar as iniciativas som qualquer interesso comercial o artístico, como aconteceu com a Espanha.
O decreto torna obrigatória a locução em português dos filmes culturais o de actualidades, tendo havido quem reparasse que só abriu a excepção da dobragem para estes, mas explica-se, não só por não haver inconveniente na divulgação - antes, pelo contrário, por ser aconselhável -, como por tais filmes, pela sua natureza especial, não recearem concorrência.
Sr. Presidente: o diploma que se discute toma outras providências proteccionistas.
Assim, torna obrigatória a exibição em todos os cinemas dos filmes de fundo portugueses na proporção mínima de uma semana por cada cinco semanas de espectáculo cinematográfico estrangeiro.
Os Srs. Dr. Mendes Correia o Querubim Guimarães acham exagerada a proporção, dizendo que não temos actualmente produção que a permita.
Por isso mesmo ó que se estabeleceu no § 2.° do artigo 17.° que o contingente pode ser alterado conforme o desenvolvimento do cinema, isto é, para mais ou para menos. Mas é natural que a produção aumente de forma a atingir ou até ultrapassar aquele contingente. A lei não legisla só para o momento em que é publicada; tem de atender também ao futuro.
Outra medida que suscitou dúvidas é a do artigo 21.°, que dispõe que os contratos de exibição de filmes portugueses «deverão ser estabelecidos na base mínima de 50 por cento da receita bruta...».
Os Srs. Dr. Mendes Correia e Querubim Guimarães acham a percentagem exagerada.
Mas, ao contrário do que S. Ex.ªs pensam, esta percentagem é a que se adopta geralmente - quando não 55 e 60 por cento - para os filmes portugueses nos cinemas portugueses.
Como se vê, todas estas peias e as demais que do decreto constam e não tiveram contestação são feitas criteriosamente e com todo o cuidado, como tudo que sai da Presidência do Conselho, onde preside o estudo e o bom senso.
De resto, ninguém disse que o decreto não proteje a produção nacional. O que se disse é que a proteje demasiadamente. Isto não é defeito!
Sr. Presidente: resta-me aludir à última crítica do ilustre Deputado Dr. Mendes Correia.
Como nos disse S. Ex.ª, o decreto comete a administração do fundo ao Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, ficando com as demais atribuições constantes, especialmente as dos artigos 24.° e 25.°
Afirma o Dr. Mendes Correia que, tratando-se de cultura, deve entregar-se a direcção das diversas atribuições do decreto não somente ao Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, mas a um organismo de que façam parte também o Ministério da Educação Nacional, o Ministério da Economia, produtores, exibidores e distribuidores, a que se podia chamar Conselho Nacional de Cinema.
O Sr. Mendes Correia: - Lamento ter de dizer que o meu pensamento não é bem esse. O que eu penso é que o Secretariado da Informação administraria esse Fundo, mas que fosse assistido para a sua acção, relativamente ao cinema nacional, por um corpo consultivo, que seria o Conselho Nacional de Cinema, em que estariam representadas todas essas entidades. É um pouco diferente.
O Orador: - Salvo o devido respeito, não julgo que V. Ex.ª tenha razão.
O cinema é um meio importantíssimo de informação, de divulgação, e no aspecto educativo, um agente excelente de cultura média, a chamada «cultura popular». Mas não vai mais além quanto a educação. Não serve, no dizer dos melhores educadores, como instrumento do aprendizagem, de formação mental e de alta cultuni.
Philippe de Kothschild, um mestre em assuntos do cinema, afirma que a influência dele no campo cultural ó muito fraca.
O Dr. Benoit Levy, que ó actualmente director do cinema da
O. N. U., apesar de grande entusiasta da missão educativa do cinema, afirma no seu livro Lês Grandes Missions du Cinéma que os filmes educativos a oferecer à juventude «serão muito mais destinados a emocionar o espírito, a satisfazer o gosto, do que a ensinar princípios ou leis cientificas».
Assim, julgo que andou logicamente o legislador em cometer apenas ao Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo as atribuições reguladoras da matéria.
Com efeito, tendo por função esse organismo a informação e cultura popular, ele, e só ele, legalmente e tecnicamente,, é que tem competência para dirigir e orientar esse cinema.
O cinema didáctico, os filmes educativos, continuam a ser dirigidos e orientados pelo Ministério da Educação Nacional, nos termos dos decretos n.ºs 20:859 o 26:611.
Estes filmes, bem como os dos outros organismos oficiais, continuam a poder ser produzidos pêlos respectivos serviços cinematográficos, como dispõe o artigo 23.° do decreto-lei em discussão, que apenas os sujeita, o que ô natural, às suas disposições formais.
Assim, o decreto-lei de que se trata não criou nessa parte novidade; respeitou uma orientação há muito tomada.
Esta separação do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo dos outros organismos oficiais é lógica, porque não fazia sentido que o Ministério da Educação Nacional, pelo seu representante nesse corpo directivo proposto pelo Dr. Mendes Correia, reunisse, para decidir de um filme, por exemplo, no género dos desenhos animados ou do Tarzan na selva...
Pelo critério do ilustre Deputado todos os Ministérios deviam fazer parte desse organismo directivo, porque todos eles podem necessitar do auxílio do cinema para os seus objectivos, e não somente o Ministério da Educação Nacional e o da Economia.
O Ministério do Interior, na divulgação, por exemplo, dos meios de assistência; o da Justiça, para demonstração da eficácia do sistema prisional ou influência das penas; o da Guerra, para os estudos da balística; o das Finanças, para fazer a história da evolução da moeda ou das instituições bancárias, etc.
Na prática, pelo menos no nosso País, é sabido que os organismos com numeroso corpo directivo nada fazem. Para trabalhar não há nada como poucos ...
Este decreto-lei prevê, Sr. Presidente, como não podia deixar de ser, a sua regulamentação.
As deficiências dele são apenas de pormenor, que só demovem no respectivo regulamento.
Está no caso, por exemplo, o seguro dos filmes que serão obrigados a fazer os produtores a quem forem concedidos subsídios pelo Fundo cinematográfico. Não se diz qual a natureza do seguro nem as condições em que se deve fazer.
Mas no regulamento se estabelecerá só se vai para um seguro de caução ou se se deixa à Inspecção de Seguros o estudo do tipo a criar.
Nesta altura assume a Residência o Sr. Deputado Antunes Guimarães.
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O Orador: - Sr. Presidente: este diploma marca uma nova era na cinematografia portuguesa - pela orientação revolucionária que contém, rompendo com velhos preconceitos e estabelecendo medidas novas, de defesa e protecção do nosso espírito através da tela.
Tenhamos confiança nele. Aos céticos direi, apenas que tanta coisa nova. se fez em que não se acreditava e que no entanto está à vista!
Esta política de nacionalização do cinema visa os portugueses e os estrangeiros. Visa-nos a nós, porque passaremos a encontrar nos filmes o ambiente português; visa o estrangeiro, porque passaremos a poder levar lá fora o conhecimento do Pais, pela nossa paisagem, etnografia e história.
É um grande serviço que por ele vai ser prestado à Nação! É mais uma afirmação de nacionalismo que vamos levar lá fora e que ficará cá dentro a cimentar mais fortemente a unidade nacional, para que sejamos, no conceito de Salazar, «cem tudo nós, e não outros». Voto pela aprovação sem emendas do decreto-lei em discussão.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Luís Pinto Coelho:- Sr. Presidente: poço desculpa a V. Ex.ª de constituir, por minha parte, mais um episódio neste filme de episódios que se está aqui desenrolando. Mas, uma vez que o decreto-lei n.° 36:062 foi publicado para ser presente à Assembleia Nacional, e desde que a Assembleia Nacional, no exercício do sen direito, se pronuncia sobre ele, entendi do meu dever reproduzir aqui algumas observações que a leitura atenta do decreto produziu no meu espírito.
Volta a ocupar o seu lugar o Sr. Presidente da Assembleia.
O Orador: - Devo dizer, antes de mais, que alinho entre os muitos, porventura bojo constituindo a maioria, que consideram o cinema um problema fundamental no campo educativo. E com o meu vício de problemas educativos, debrucei-me também sobre este, embora não possa exibir nesta tribuna a erudição e preparação dos meus ilustres colegas que falaram antecedentemente.
Não apoiados.
Considero a protecção ao cinema nacional como uma das facetas fundamentais do problema e, portanto, não posso deixar de dar a minha franca e completa adesão à atitude do Governo, que resolveu, pode dizer-se finalmente, atacar o problema sob esse aspecto.
Não perco de vista em todas as minhas considerações, ainda que às vezes pareça o contrário, a faceta educativa.
Esse aspecto, para mini, ó predominante na actividade do cinema em geral e especialmente na protecção ao cinema português.
Mas, porque considero esse aspecto apenas uma particularidade do problema geral, não me alongo em considerações sobre as vantagens ou malefícios que pode ter o cinema, em liberdade ou condicionado, porque, em meu entender, não é problema que esteja em discussão.
Está em discussão, julgo, a oportunidade de conceder protecção ao cinema nacional, e devemos fazer a apreciação dos meios que o Governo se propõe utilizar e estão condensados no decreto-lei n.° 36:062.
Em minha opinião, a protecção ao cinema nacional é indispensável e, de uma forma geral, posso dizer que adiro às linhas fundamentais da acção que o Governo se propõe seguir com o decreto-lei n.° 36:002.
A meu ver, e procurando sintetizar em poucas palavras, essa protecção está em fomentar uma produção nacional
e ao mesmo tempo, porque isso é importantíssimo, assegurar-lhe, com a exibição, condições de êxito, porque, embora eu não seja largamente versado em questões de cinema, não me escapa que alguns filmes produzidos em Portugal, com capitais portugueses, com artistas e técnicos portugueses, têm encontrado sérias dificuldades na sua apresentação ao público porque o mercado se encontra, por assim dizer, tumefacto com a produção estrangeira.
O Sr. Mendes Correia: - Os filmes portugueses são os mais procurados de todos filmes, e isto porque a população os prefere. Portanto, não são excluídos.
O Orador: - V. Ex.ª sabe muito bem que toda a indústria de exibição vive em regime de contratos, que são por vezes apertados e tomam todas as datas. Por vezes os exibidores encontram-se, mau grado seu, em sérias dificuldades no que respeita à exibição dos filmes nacionais.
Era isto que eu pretendia dizer.
Cria-se pelo presente decreto um fundo nacional de cinema para auxiliar a produção e garantir-lhe, através de um mecanismo relativamente simples, a exibição ao público e, portanto, a exploração comercial do filme produzido.
Portanto, quanto às suas linhas gerais estou perfeitamente 'de acordo com o decreto. Simplesmente, não me parece que ele seja, em toda a sua extensão, isento de reparos, e são esses reparos que eu faço, não com a preocupação de influir seja em quem for, mas no exercício de um direito, e até, mais do que isso, no cumprimento de uma obrigação.
Entre os reparos a fazer alguns há que se podem dizer de importância mínima, quando comparados com a magnitude do problema e com os outros; mas nem por serem pequenos deixarei de os fazer.
Assim, referir-me-ei em primeiro lugar aos reparos de menor importância.
Diz-se no artigo 2.° que nenhum filme poderá ser exibido em Portugal sem que se pague uma taxa de licença de exibição, variável segundo a natureza do filme. Para esse efeito são os filmes agrupados em categorias, designadas por letras que vão desde A até F. Na categoria E estão incluídos documentários, filmes culturais, educativos, desportivos, de viagens, etc.
Quando no diploma (artigo 10.°) se define o filme português - e só o filme português pode ser auxiliado na sua produção pelo Fundo cinematográfico nacional -, considera-se que é condição indispensável que ele seja falado em português.
Ora, parece que sem dificuldade temos de admitir que os documentários, filmes culturais, desportivos e outros poderão não ser falados, sendo apenas musicados ou acompanhados de legendas. Resultará daí que não poderão ser auxiliados por aquele Fundo?
Dir-se-á que isto é uma pequena questão, mas é a questão que o jurista observa.
O Sr. Mário de Figueiredo: - A questão resolve-se assim: quando se impõe, para ser nacional, que a fita seja falada em. português, a disposição ó só para os filmes falados.
O Orador: - V. Ex.ª veio ao encontro da solução que eu daria, por ser a que me parece lógica; no entanto, parece-me que deveria ficar esclarecido que assim é, para que se fique tranquilo; de resto, o simples facto de V. Ex.ª dar ao preceito esse sentido já me tranquiliza em parte ...
Também no mesmo artigo, quando se exige como condição que o filme seja falado em português, emprega-se
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uma expressão que devo ter sido fruto de pouco cuidado na revisão, salvo o devido respeito. E também uma questão mínima, mus que convém esclarecer para evitar dificuldades futuras.
Segundo aquele artigo 10.°, alínea b), para que os filmes sejam portugueses é necessário que os filmes sejam produzidos em estúdios e laboratórios pertencentes a sociedades portuguesas; portanto, se os estúdios ou laboratórios forem propriedade individual de portugueses, já os filmes não são abrangidos pelo preceito.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Isso é uma impropriedade evidente da lei. Onde se diz sociedade queria dizer-se empresa.
O Orador: - É simples fazer uma pequena correcção; mas também essa precisa de ser feita para que de futuro não surjam dificuldades, agora perfeitamente evitáveis.
Há depois um preceito - o do artigo 22.° - a que eu consegui, ajudado por exposições enviadas a esta Assembleia Nacional, atribuir um sentido; mas não fui, por mim, capaz de lho descobrir tal como está redigido. Emprega-se nele uma terminologia decerto própria dos meios profissionais do cinema, mas, para quem não esteja nela enfronhado, o preceito parece incompreensível e muito necessitava de ser esclarecido. A quem for técnico em questões de cinema eu peço me explique a disposição que passo a ler:
Artigo 22.° Serão fixadas no regulamento deste decreto-lei, proporcionalmente ao rendimento dos cinemas, as porcentagens sobro a receita máxima acima das quais o exibidor não poderá retirar do programa um filme português.
O Sr. Querubim Guimarães: - É realmente complicado.
O Orador: - Julgo que para um leigo - e, por exemplo um juiz chamado a resolver um litígio podo ser leigo em matéria de cinema
- o preceito ó complicado.
O artigo 21.° é, neste aspecto de clareza, análogo ao que acabo de citar.
Senão, veja-se:
Artigo 21.° Os contratos de exibição de filmes portugueses deverão ser estabelecidos na base mínima de 50 por cento da receita bruta de bilheteira em todos os espectáculos durante a primeira semana de exibição, podendo essa percentagem para o produtor diminuir proporcionalmente às receitas realizadas nas semanas seguintes.
Poderá dizer-se que o preceito é claro? Em que consistirá a diminuição da percentagem proporcionalmente às receitas? Quem determina a forma ou escala de diminuição?
Note-se que neste artigo nem se fala em que o futuro regulamento estabelecerá as regras de aplicação, como se prevê para a matéria do artigo 22.° É uma dificuldade que ó preciso encarar e resolver.
Sr. Presidente: a propósito deste preceito do artigo 21.°, abordo uma questão que já ouvi aqui referir e para a qual se propõe já solução: é o problema do preço fixo de exibição. Entendo que essa forma devia ser permitida, não se indo forçosamente para a percentagem, porque pode suceder que a percentagem para o proprietário da casa de espectáculos não lhe dê o suficiente para custear os encargos necessários. Pelo menos à primeira vista, parece-me conveniente.
Já tenho ouvido dizer que a fórmula do artigo 21.° consente o sistema do preço fixo. Não vejo como, pois só fala de percentagens, e disso discordo.
Poderá acontecer que a possibilidade, sem limites, de estabelecimento de preço fixo constitua para o exibidor mais uma arma ou um meio de livrar-se da exibição do um filme que considere inconveniente, bastando para isso oferecer preços baixos; mas então adopte-se uma solução intermédia: adopte-se o sistema obrigatório das percentagens para os filmes enquanto novos e permita-se a exploração a preço fixo depois de um certo número de meses ou anos da estreia do filme, isto é, depois de estar comercialmente amortizado; com isso só terão a lucrar o exibidor, que terão meio de defesa, e o produtor ou distribuidor, que poderá ainda arrecadar uma receita, inviável porventura no sistema da percentagem, que afugenta o exibidor.
Estas são, como digo, - algumas das pequenas questões que podem suscitar-se em face deste diploma.
Mas há algumas outras questões que para mim têm maior importância, por já se poderem considerar do fundo.
A primeira ó a das taxas de exibição.
Tenho ouvido alguns Srs. Deputados que me antecederam referir esta taxa de licença, que ó necessário pagar, apenas aos filmes importados. Não é exacto, porque a lei não distingue. A lei diz que a exibição de qualquer filme depende da prévia passagem da respectiva licença e que esta dá lugar ao pagamento da taxa de licença. Portanto, também os filmes nacionais estão sujeitos a esse pagamento. E é já por essa generalidade de aplicação da taxa que levanto reparos a este preceito, pois se sujeita ao encargo a própria produção que só quer proteger.
Mas não é tudo; deve também olhar-se ao montante da mesma taxa. Não tenho, em rigor, elementos para poder afirmar que a taxa degressiva, estabelecida segundo os escalões do artigo 2.°, é exagerada ou, polo contrário, suportável. Há quem diga que é exagerada, há quem diga que ó suportável, há quem diga até que é inferior ao que devia ser. Sobre isso não me sei pronunciar. O que me choca é a possibilidade de injustiças na distribuição deste encargo, visto que há filmes melhores e filmes piores. Não me parece justo que todos os que são agrupados na mesma categoria, por exemplo, segundo o critério puramente formal da metragem, paguem a mesma taxa, quando é certo que podem, na sua exploração, ter resultados económicos muito diversos. Também neste asserto vejo que a disposição legal pode reflectir-se desfavoravelmente sobre o próprio cinema nacional, que se pretende proteger.
Ainda dentro das categorias deste artigo 2.° se estabelece uma taxa, essa relativamente pequena, para os documentários, filmes culturais, educativos, desportivos, etc.
Mas, por outro lado, no artigo 5.° diz-se que as disponibilidades do Fundo cinematográfico podem ser aplicadas :
A subsídios destinados a «intensificar a produção de filmes curtos, do carácter documental, artístico ou cultural.
Quer dizer: por um lado estabelece-se a taxa de licença e por outro admite-se que haja subsídios. Porque isso não deve ter para o volume das receitas do Fundo grande importância, dada a insignificância da taxa, eu preferia que se estabelecesse a possibilidade de os filmes da categoria E serem isentos da respectiva taxa.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Eu queria pôr V. Ex.ª dentro do plano que passo a expor.
Eu também acompanharia V. Ex.ª se, quanto a filmes educativos portugueses, se estabelecesse o princípio da isenção de taxa, como, ainda no prolongamento do pen-
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aumento do decreto, iria mais longe, até no ponto de não exigir o pagamento da licença para os filmes portugueses em geral.
Pode no entanto acontecer, e acontece, que haja acordos internacionais em consequência dos quais se torne impossível atribuir aos filmes nacionais tratamento mais favorável do que aos filmes estrangeiros, e daí essas disposições.
O Orador: - Com o esclarecimento de V. Ex.ª eu admito a correcção deste preceito. Só lastimo, então, que não se tenha previsto a possibilidade de, em princípio, os filmes culturais portugueses estarem isentos.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Era a mesma coisa, porque a solução representa ainda nesses o prolongamento do princípio contido nos acordos internacionais.
O Orador: - Mas nesse caso a excepção era a da tributação e o principio seria o da isenção.
Falemos agora do problema da dobragem, outro problema que já aqui foi ventilado. Acerca do problema da dobragem não tenho uma convicção formada. Não tenho, porém, dúvidas de que a dobragem em português tornava mais acessível os filmes à grande massa do público, que não compreende as línguas estrangeiras e, pobre dele, não consegue ler, sequer, as legendas. A dobragem pode facilitar o desenvolvimento da própria indústria e, portanto, poderia contribuir para o desenvolvimento em mais larga escala dos filmes nacionais por intermédio do Fundo cinematográfico nacional, que veria aumentadas as suas receitas.
Diz-se que é antiartística e perigosa para a produção nacional a dobragem, mas como a invasão dos filmes estrangeiros é enorme, com filmes falados, é claro, na sua língua de origem, e não se pode, de um dia para o outro, evitar essa invasão, talvez os inconvenientes não fossem, desde já, superiores às vantagens.
De resto, o próprio diploma consente a dobragem para os filmes produzidos em regime de reciprocidade. Mesmo que se invoque também o argumento da defesa da pureza da linguagem, a própria excepção admitida mostra que os valores em jogo não são do tal ordem que não admitam a existência de vantagens no seu sacrifício. Uma vez que se têm de admitir excepções, devem admitir-se todas aquelas que possam conduzir, embora indirectamente, ao desenvolvimento da cinematografia nacional.
O Sr. João do Amaral: - Onde a pureza da língua tem corrido graves riscos é precisamente no cinema nacional ...
O Orador: - Nesse particular também não me custa estar de acordo com V. Ex.ª ...
Vejamos agora o penúltimo ponto que eu quero focar: é o que diz respeito aos contingentes da produção nacional que há-de ser exibida nos cinemas por força do artigo 17.°
A meu ver, a protecção ao cinema nacional devia ter mais em vista fomentar a boa produção nacional futura do que proteger a produção já existente e que, infelizmente, é, em larga escala, de má qualidade.
Uma vez que se estabelece, como se estabelece, embora só em princípio, contingentes muito elevados para exibição de filmes nacionais, isto dá como resultado que se poderá impor às salas portuguesas a nova exibição do filmes portugueses de má qualidade, que só podem contribuir para o descrédito ou para o aumento do descrédito do cinema nacional.
Quer dizer: tem-se em vista, com o diploma em discussão, uma larga obra de vasta projecção; mas não é forçoso fazer tudo de repente.
Estas normas relativas aos contingentes só devem sor aplicadas com rigor para a produção nacional futura, que se espera seja melhor, e não, repito, para a já existente. Desta deverá só contar-se com a de melhor qualidade, determinada por criteriosa selecção. Acho francamente demasiado tomar em conta, sem distinção, toda a produção dos últimos cinco anos, como faz o artigo 27.°
Para não demorar mais este já longo debate, queria fazer uma ligeira referência ao problema do próprio Fundo cinematográfico nacional.
O Fundo é, diz o decreto, administrado pelo Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo.
Quanto à administração, não vejo inconveniente nenhum, pois quanto menos pessoas houver a administrar, maior rapidez, maior maleabilidade, haverá nessa administração.
Mas ligados a esse Fundo não há somente problemas de administração. Isso é mínimo. Os mais importantes são os do sentido que há-de tomar a produção nacional. Aí haveria vantagem em não deixar ao simples bom senso de quem estiver a dirigir os serviços do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo a escolha de orientação a tomar em problema de tão vasto alcance. Deveria dar-se, obrigatoriamente, voz activa, ou, pelo menos, consultiva, a outros sectores do Estado, nomeadamente do Ministério da Educação Nacional, porque eu não posso conceber, e assim volto ao ponto de partida, uma protecção ao cinema nacional sem que ela seja encarada sob o aspecto fundamental, que é o aspecto educativo.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Antunes Guimarães: - Sr. Presidente: faço parte dos cínico Deputados que, nos termos do § 3.° do artigo 109.° da Constituição Política da República Portuguesa, requereram que o decreto-lei n.° 36:062, de 27 de Dezembro último, sobre protecção ao cinema nacional, fosse submetido u apreciação da Assembleia Nacional.
Fi-lo por honroso convite do nosso ilustre colega Sr. Dr. Mendes Correia, que foi o primeiro signatário daquele requerimento, e de cujo discurso ontem aqui proferido sobre tão importante e interessante problema só conheço as notas publicadas pela imprensa, porque obrigações de natureza política não me deixaram comparecer à sessão respectiva.
Quando assinei o requerimento para que o referido decreto-lei fosse submetido à nossa apreciação tinha dele apenas mm vago conhecimento resultante da sua rápida leitura, e até não arredava a hipótese de que do estudo pormenorizado do seu texto viesse a resultar a convicção de se ajustar perfeitamente ao que em tão importante matéria conviria, de uma maneira geral, aos interesse(r) nacionais e, particularmente, aos diferentes sectores mais directamente afectados pelas suas disposições. Mas havia um Deputado que discordava da sua doutrina, sobre a qual havia reclamações.
A circunstância de a minha assinatura ter sido aposta no referido requerimento, - além dia precisa solidariedade de mais quatro Deputados para que o decreto-lei fosse apreciado, deve ser interpretada como obediência a um princípio que reconheço e respeito, qual é o de que, embora do texto primitivo da Constituição, que permitia ao Governo elaborar decretos4eifl, mas somente no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência ou de necessidade pública, tivessem sido eliminadas aquelas prudentes limitações, só excepcionalmente deveria recorrer-se à faculdade latíssima, agora
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concedida polo n.° 2.° do artigo 109.º da Constituição, que permite ao mesmo Governo, mas sem quaisquer restrições além das mencionadas no artigo 93.° da Constituição, fazer decretos-leis. E muito principalmente quando tal se verifica durante o funcionamento efectivo da Assembleia Nacional.
Sr. Presidente: na orgânica da nossa Constituição Política previu-se, e muito inteligentemente, o funcionamento da Câmara Corporativa, onde, além das autarquias locais, estão representados todos os interesses sociais de ordem administrativa, moral, cultural e económica, competindo-lhe dar parecer sobre todas as propostas ou projectos de lei que forem presentes à Assembleia Nacional para valioso esclarecimento desta Câmara Legislativa.
É certo que o § 3.° do artigo 109.° da Constituição, ao estabelecer que os deoretos4eis publicados pelo Governo, fora dos casos de autorização legislativa, durante o funcionamento efectivo da Assembleia Nacional sejam sujeitos à ratificação desta Câmara, não determina que sejam acompanhados de parecer da douta Câmara Corporativa.
Mas esta Assembleia é que, perante a complexidade do assunto e tendo em consideração os altos interesses da Nação e os direitos legítimos das actividades em jogo, pode usar da faculdade de, antes de votar a ratificação pura e simples de um decreto-lei, ouvir a esclarecida opinião da Câmara Corporativa, de cujo parecer não deixariam de constar as legítimas reclamações e os alvitres ditados por longa experiência de todos os interesses dignos de ser considerados.
Ora o decreto-lei que estamos a apreciar, ao tratar de um -problema fundamental que, presentemente, tal como a radiotelefonia e o desporto, atrai vivamente a atenção de toda a população portuguesa, sem exceptuar classes ou categorias, tanto a que habita nas cidades como a que labuta nos centros fabris ou nas zonas rurais, pela repercussão que pode vir a ter nesse absorvente factor de recreio que, simultaneamente, pode constituir escola de valiosos conhecimentos e fonte de divulgação da vida internacional, só por esta forma acessível à grande maioria, é também susceptível de afectar gravemente avultados interesses ligados à indústria e ao comércio da especialidade.
Sr. Presidente: chegaram até nós várias reclamações daqueles sectores, que já alguma luz projectaram sobre o complexo problema.
Contudo, eu desejaria que essas e outras considerações fossem joeiradas pela douta Câmara Corporativa.
Li que o ilustre Deputado Sr. Dr. Mendes Correia aludiu à vantagem da instituição, nesta matéria, de um conselho, em que entrassem também representantes dos Ministérios da Educação Nacional e da Economia.
Efectivamente, mal se compreenderia que num sector de tão grande alcance educativo e de tanto valor para a nossa propaganda económica não interviessem aqueles Ministérios.
Porque entendo que a intervenção da Câmara Corporativa em problema de tal importância, e transcendência concorrerá para nos esclarecer e, porventura, para melhorar a legislação dimanada do Governo, votarei a ratificação com emendas, transformando-se assim o referido decreto-lei em proposta de lei, sobre a qual terei então muita honra em usar da palavra para fazer as considerações que se me afiguram oportunas e justas.
E a ser, como espero, neste sentido a votação da Assembleia Nacional, entendo que devia ser reconhecida a urgência, por se tratar de um assunto que carece de ser resolvido quanto antes, a bem da Nação.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Interrompo a sessão por uns momentos.
Eram 18 horas e ê minutos.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão. Eram 18 horas e 10 minutos.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: mio obstante o esforço da Assembleia, ao terminarem os três meses do seu funcionamento ordinário, aguardam ainda discussão ou resolução importantes questões e problemas da vida nacional e diplomas e actos fundamentais da administração pública, como são, entre outros, a questão monetária, o problema das lãs, o dos lacticínios, os resultados do inquérito à organização corporativa, a proposta de lei em que se converteu o decreto-lei sobre o plantio de vinhas, as Contas Gerais do Estado relativas a 1945 e as da Junta do Crédito Público.
Esto simples enunciado dos assuntos dispensa o encarecimento da sua importância e justifica, mais do que a conveniência, a necessidade de prorrogar o período normal do funcionamento da Assembleia.
Devo declarar, quanto ao resultado do inquérito à organização corporativa, que a comissão para esse efeito escolhida pela Assembleia se teve de submeter a um trabalho árduo para apresentar o seu relatório dentro do período ordinário da actividade da Câmara. Mas a sequência de trabalhos já estabelecida tornava inoperante o anúncio desse relatório, o, por outro lado, a tenção que já formava, determinada pela necessidade de a Assembleia apreciar outros e importantes assuntos, de prorrogar a sessão, e a conveniência de dar ao debate sobre tal matéria toda a amplitude, levaram-me a reservá-lo para o período do prorrogamento.
Em face do exposto, nos termos do § único do artigo 94.° da Constituição Política da República Portuguesa, julgo conveniente a prorrogação do funcionamento efectivo da Assembleia Nacional por mais mu mês além do termo da sua duração prevista no corpo do mesmo artigo e para todos os efeitos a prorrogo pelo dito prazo de um mês.
Vou encerrar a sessão.
A próxima sessão será na terça-feira, à hora regimental, tendo por ordem do dia a continuação do debate sobro o decreto-lei referente à protecção ao cinema nacional.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 10 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
André Francisco Navarro.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Ameal.
João de Espregueira da Bocha Paris.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
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José Luís da Silva Dias.
José Maria de Sacadura Botte.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís Mendes de Matos.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel Colares Pereira.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Rui de Andrade.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique de Almeida.
Herculano Amorim Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nunes de Figueiredo.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Pastor de Macedo.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.
Sebastião Garcia Ramires.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes
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Relatório a que se referiu o Sr. Presidente no decorrer da sessão:
A moeda e a política monetária de 1939 a 1945
I
A evolução da situação monetária depois de 1939
1. São conhecidas as causas das perturbações de equilíbrio monetário depois da guerra.
Não foi o aumento de circulação verificado em tal período devido a expansão do crédito distribuído pelo instituto emissor a favor do Estado ou de entidades privadas. Aquele, mantendo sempre equilibrada a sua administração, viu aumentar o provimento da sua tesouraria por forma até então desconhecida e, longe de criar artificialmente poder de compra que pesasse sobre o mercado, actuou como factor da sua imobilização; estas, providas também de abundantes disponibilidades, diminuíram o recurso ao crédito, de que não careciam, e mantiveram, no conjunto, avultados fundos líquidos em depósito nos bancos ou investimentos importantes em títulos de crédito - nomeadamente em títulos da dívida pública.
Não houve, pois, em tal período, influência activa da distribuição do crédito sobre o poder de compra interno e sobre a circulação fiduciária.
No entanto, a partir de 1940 esta acusou um movimento de acentuada alta que fez desaparecer as costumadas oscilações estacionais resultantes do ciclo anual da produção e das trocas e, desproporcionada assim com os movimentos da economia interna e com o abastecimento restrito do mercado, pesou sobre os preços.
Foi, como já largamente se tem mostrado, a evolução do comércio externo e da balança de pagamentos que determinou estes movimentos.
O desenvolvimento e valorização anormais de certas exportações por virtude da situação criada em mercados directamente dominados pela situação de guerra e, também, o afluxo ao País de capitais estrangeiros determinaram a acumulação do poder de compra resultante da conversão em moeda nacional de moeda e valores de outros países.
Esse poder de compra expresso em moeda nacional constituiu-se, pois - já sob a forma de depósitos bancários, já sob a de notas emitidas pelo Banco de Portugal -, em representação de ouro ou moeda estrangeira em sua troca adquirida por este. Se os depósitos não pesaram directamente sobre a economia interna, a emissão de notas exprimiu, pelo contrário, em grande parte, aumento de rendimentos e de procura a manifestar-se num mercado cujo abastecimento se mostrava cada vez mais difícil, por virtude da diminuição de algumas importações fundamentais.
A par destas causas de acumulação de poder de compra líquido, outras terão ainda actuado em sua repercussão, devendo mencionar-se como mais importantes: a falta de reconstituição de stocks normais de mercadorias, a diminuição das renovações de material e utensilagem das indústrias, a baixa, quando não suspensão, do ritmo de novos investimentos industriais em que antes se traduzia- o desenvolvimento da capacidade de produção do País. A parte do produto social que anualmente era destinado àqueles fins
manteve-se em grande parte no estado líquido, por falta de possibilidade da sua natural aplicação.
O aumento do poder de - compra interno terá, assim, resultado de um movimento da produção e das trocas, em que não desempenhou papel activo.
A seguir se analisam com mais algum pormenor certos aspectos do fenómeno.
2. Foram profundas, como se- sabe, as alterações que a guerra trouxe ao nosso comércio externo e à balança de pagamentos.
Na importação, a - tonelagem baixa de uma média de 2:367 milhares de toneladas em 1935-1939 para a de 1:666 em 1940-1945, ao passo que os respectivos valores sobem de 2:210 para 3:140 milhares de contos. Ao mesmo tempo, na exportação a tonelagem média desce de 1:518 milhares de toneladas para 695, e o valor médio passa de 1:128 para 3:164 milhares de contos.
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Quer dizer: a tonelagem desce de 30 por cento na importação e quase de 55 na exportação, ao passo que os valores sobem, respectivamente, 65 e 177 por cento.
Pelo quadro n.° 1 vê-se que entre 1939 e 1945 a alta do custo unitário da tonelada importada é de 156 por cento e na exportada de 430 por cento. Nos anos de 1$41, 1942 e 1943 a valorização da exportação inverte o fecho tradicional da nossa balança comercial, que se traduz em fortes saldos positivos, e, embora em 1944 e 1945 o sinal do fecho se inverta, o déficit não atinge ainda o milhão de contos habitual antes da guerra.
Dois aspectos fundamentais apresenta o fenómeno. Por um lado, traduz diminuição e encarecimento de abastecimentos externos indispensáveis e que, para alguns produtos essenciais, como carvão, gasolina, ferro, sulfato de amónio, por exemplo, se traduz, em relação a 1939, em agravamentos de custo unitário que atingem em 1943, respectivamente, 252, 448, 162 e 221 por cento. For outro, revela o desenvolvimento e valorização de certas exportações que absorvem a queda verificada em outras de tradicional importância, levam o valor total da exportação aos números apontados e fomentam no País actividades que proporcionam lucros excepcionais. Segundo estimativa feita na Revista do Centro de Estudos Económicos, entre 1935-1939 e 1940-1944 a valorização da tonelagem exportada atinge para os produtos mineiros 1:187 pôr cento, para os de pesca 277 por cento, para os florestais 200 por cento e para outros produtos 622 por cento. Do desenvolvimento e aumento de lucros excepcionalmente verificados nas actividades ligadas a essas exportações, das dificuldades em outras encontradas, deriva não só aumento do rendimento nacional, como alterações na sua distribuição, aquele e estas também não indiferentes para o mercado interno.
Mas o que interessa neste momento, para a determinação das causas do aumento do potencial monetário, é o aumento dos saldos da balança de pagamentos que daí adveio e a que se juntaram outros factores que não são de desprezar.
Transferências de capitais para o País, despesas de refugiados e viajantes, fretes da marinha mercante, pagamentos de serviços vários contribuíram paira o forte excesso das entradas sobre saídas cambiais.
Foi a essas entradas cambiais que o Banco teve de corresponder pela sua conversão em moeda nacional - aumentando assim o potencial monetário do País.
Evidentemente, se aí está a causa, originária do fenómeno, isso não exclui que, ligada com ele, a própria alta de preços determinada pêlos maiores custos de importação e seus reflexos sobre a economia nacional, e ainda pelo aumento de rendimentos internos e seu peso sobre o mercado de bens de consumo, tenha também influído, e por forma sensível, no volume da parte do potencial monetário representada pela circulação fiduciária, tanto mais que uma parte desse potencial, destinada a financiar transacções com classes de população pouco afeitas ou mesmo não habituadas ao uso dos meios bancários de pagamento, ou representando rendimentos dessas classes, tendia a manter-se largo tempo sob a forma de notas de banco.
Cabe ao banco emissor assegurar, directamente ou através do sistema bancário de que é o centro, a realização dos pagamentos internacionais necessários ao comércio e às restantes relações económicas do nosso País com os outros, já fornecendo, contra moeda nacional, a moeda estrangeira necessária à liquidação dos débitos, já adquirindo por moeda do País a moeda alheia representativa do recebimento dos créditos.
O excesso de créditos sobre débitos internacionais produz, assim, um aumento de poder de compra interno cuja mais directa representação é constituída pelas notas que o Banco emite com contrapartida no ouro ou valores-ouro em que se traduzem, naquela hipótese, as liquidações que opera com os outros bancos centrais ou com organismos especiais que em certos países concentram as operações cambiais.
3. Se o aumento de certas exportações e a entrada de capitais produziram o desenvolvimento do poder de compra expresso em moeda nacional, nem todo este foi, como já se notou, elemento activo na economia interna.
Tê-lo-á sido na medida em que remunerou actividades nacionais votadas à produção ou ao comércio dos bens ou serviços exportados, ou serviu para pagamento das despesas no país dos seus titulares estrangeiros, mas deverá ter-se traduzido em depósitos na medida em que constituiu inicialmente reserva de capital líquido expresso em moeda portuguesa, ou capitalização directa ou indirecta de parte daqueles rendimentos destinada pêlos seus titulares a colocação reprodutiva.
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Não são, evidentemente, fixas as duas fracções esquematicamente definidas. A proporção em que o poder de compra expresso em moeda nacional se divido entre uma e outra depende, entre, outros factores, da menor ou maior propensão ao consumo por parte dos seus titulares, da maior ou menor possibilidade de realizar imediatamente os investimentos a que se destina a fracção de rendimento capitalizada, do grau de confiança, na moeda como instrumento de conservação do valor...
Aumentados os rendimentos por virtude do desenvolvimento e valorização de certas produções, e distribuídos esses maiores rendimentos em maior volume de' salários, mais altos preços ao produtor ou detentor inicial das mercadorias, maiores lucros dos intermediários que a trazem até à exportação, o poder de compra que financia estas operações é elemento activo da circulação monetária até ao momento em que, transformado em renda, lucro ou salário, o seu titular, em vez de o destinar ao consumo ou à aquisição imediata de bens produtivos, faz dele poupança líquida em moeda nacional.
Esta última fracção pode ainda tomar as formas de entesouramento da moeda pelo particular ou de depósito numa instituição de crédito. Sob qualquer delas constitui poder de compra inactivo, circulação em potência, até que o seu proprietário o emprega ou o sistema bancário o utiliza em operações de crédito a outros produtores, mas nem por isso deixa de figurar nas cifras da circulação monetária.
Só quando, depositado numa instituição de crédito, esta, por não poder ou não querer dar-lhe aplicação, nem querê-lo acumulado noa seus cofres, o transfere por sua vez para depósito em seu nome no instituto emissor, é que esse poder de compra líquido, fracção do que foi emitido para pagamento de bens ou serviços, deixa de ser elemento da circulação de notas.
4. Pelo movimento dos elementos que esquematicamente ficam descritos foi dominado o volume da circulação fiduciária portuguesa depois da guerra.
O banco emite, segundo o seu estatuto, notas em troca de ouro ou valores-ouro, ou em representação de operações de crédito a curto prazo. Recebe-as em troca de ouro ou moeda estrangeira necessários a pagamentos no exterior, em liquidação de créditos concedidos, ou em depósitos do Estado, de instituições de crédito ou de particulares. A diferença entre os valores destas duas categorias de operações corresponde, grosso modo, em cada período, o aumento ou diminuição da circulação fiduciária.
O que se verifica nestes elementos durante a guerra?
É boje impossível ao banco emissor emitir notas que não tenham contrapartida em ouro ou valores-ouro ou em créditos a curto prazo facilmente realizáveis. Quer dizer: a emissão de papel moeda sem cobertura ou com cobertura teórica em créditos a longo prazo sobre o Estado é uma impossibilidade legal que nunca, aliás, careceu de ser invocada, porque desde 192S que o Estado não utiliza o crédito no Banco nem sequer para as limitadas operações a curto prazo que no decurso da sua administração anual poderia legalmente fazer.
Por outro lado, as operações de crédito comercial - desconto e créditos em conta corrente - não contribuíram também para o aumento de emissão.
A carteira comercial e os empréstimos têm mesmo uma ligeira queda, o que, com o aumento de preços que entretanto se verificou, representa uma forte diminuição do seu valor real.
Pelo contrário, a rubrica de ouro e divisas aumenta constantemente por excesso das compras sobre as vendas, sendo durante tal período a causa fundamental do aumento de emissão. Verifica-se mesmo que, a não terem actuado fortemente alguns dos elementos de redução a que atrás se faz referência, o aumento de circulação monetária resultante da conversão de ouro e moeda estrangeira teria sido muito maior.
Esses elementos de redução foram os. depósitos quer do Estado, quer do sistema bancário, quer de particulares, que durante o período 1939-1945 aumentaram 10:086 milhares dê contos
(quadro n.° 3).
Assim o extraordinário desenvolvimento da circulação fiduciária durante o período de guerra foi devido não a qualquer expansão do crédito, mas à aquisição de reservas - ouro e divisas - resultantes da nossa balança de pagamentos. O sistema de crédito interno, quer público, quer particular, actuou durante este lapso de tempo como factor de redução e não como factor de aumento do poder de compra em circulação.
5. Como já foi dito, a emissão de notas tem como contrapartida, no activo do banco emissor, o aumento de reservas (ouro ou divisas-ouro) e as operações activas de crédito; a entrada de notas dá-se através da venda de ouro ou divisas, do reembolso dos créditos concedidos, ou da constituição de depósitos..
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Na emissão, a representativa do aumento de reservas tem contrapartida de valor expresso em ouro, e que deve normalmente ser imediatamente realizável; a representativa do crédito concedido ao mercado nacional tem como contrapartida as operações a que foi destinada (sempre operações a curto prazo) e reabsorve-se assim naturalmente pela liquidação destas. Daí, o ciclo da circulação representativa de reservas ser de duração indeterminada e mais ou menos lenta, conforme se desenvolvem as operações de comércio externo a que está ligada ou a compra e venda de ouro no mercado nacional, e o da derivada da concessão do crédito ser em geral mais rápido, pelo curto prazo da sua concessão, e directamente dependente dos movimentos da economia interna.
Nos movimentos que representam absorção de notas um há, porém, que tem valor diferente dos restantes, porque, ao contrário deles, não importa diminuição do passivo do banco, mas apenas transferência de rubrica - é o recebimento de depósitos à ordem. Na verdade, estes deixam subsistir íntegra a responsabilidade do instituto emissor para um reembolso que pode traduzir-se ou em ouro ou divisas, se são utilizados para pagamentos no exterior, ou em emissão de notas se for solicitado para utilização no mercado interno.
Por isso, na definição do regime de emissão e suas reservas, os depósitos são acrescidos às notas em circulação para se fixar a margem de reserva-ouro que o banco emissor deve manter a fim de limitar o volume do meio circulante interno, assegurar a sua convertibilidade em valores-ouro na medida em que o exija a economia nacional e manter por essa convertibilidade e esse proporcionamento o valor-ouro da circulação fiduciária.
A emissão em cada momento é, pois, função dás reservas-ouro possuídas pelo banco, do crédito por ele distribuído e dos depósitos por que é responsável, dando-se, pelo movimento dos dois primeiros elementos, o das responsabilidades à vista do banco que, abatidas do último, correspondem à emissão.
Teremos assim as seguintes expressões:
Ouro + crédito = responsabilidades à vista.
Emissão = responsabilidades à vista - depósitos.
Evidentemente, se os depósitos à ordem podem transformar-se de um momento para o outro em circulação ou em venda de ouro, não pesam directamente, enquanto se mantêm nas caixas do banco, no mercado interno porque representam poder de compra disponível: o seu movimento depende, já das necessidades de ouro ou moeda nacional, já também da psicologia do mercado interno, que leva os depositantes, em maior ou menor escala, a desejarem ter - independentemente das suas necessidades de pagamento - maior ou menor quantidade de moeda em seu poder.
6. A circulação efectiva do mercado nacional não é, porém, dada pelo puro volume da emissão. O sistema bancário, que se interpõe entre o instituto emissor e o público, deve corrigi-la e
completá-la para sua perfeita adaptação às necessidades da economia.
Recebe em depósito dinheiro para os seus titulares momentaneamente disponível e distribui-o em operações activas de crédito para financiamento de operações cie produção e comércio que dele careçam, mantendo em caixa uma importância condicionada por dois factores: a relação entre os depósitos feitos e o crédito solicitado, e o limite que à utilização daqueles é imposto para segurança do seu reembolso à vista.
A banca particular completa, assim, o sistema de circulação baseado no banco central, e as disponibilidades de caixa que mantém exprimem inactividade efectiva do poder de compra ou tensão no mercado monetário, conforme excedem ou não o limite de segurança atrás referido que, aliás, não é fixo, mas determinado, acima do mínimo legal, pêlos conceitos da banca acerca da estabilidade dos seus depósitos.
Mas, por virtude do desenvolvimento da sua técnica, os bancos comerciais acabam por desempenhar, além desta função de distribuição do meio circulante emitido pelo banco emissor, uma função própria de criação suplementar de instrumentos de pagamento na medida em que, concedendo créditos utilizáveis por cheques, conseguem, através da circulação destes, o completamento de um ciclo de trocas ao fim do qual créditos e responsabilidades se compensam. Nesse caso, o crédito concedido tem como contrapartida no activo do banco o depósito em que é expresso, a sua utilização é feita pelo cheque emitido pelo titular do crédito e o encerramento da operação realiza-se pelo recebimento de cheques que compensam o primeiro ou de notas que, no activo do banco, substituem o crédito inicialmente escriturado.
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Pelo que antecede, se vê que a emissão de notas pelo banco central, tal como a definimos, não corresponde exactamente à circulação efectiva num dado momento.
É que a emissão é absorvida em parte pelas disponibilidades que os bancos mantêm inactivas em caixa e em parte acrescida do crédito que distribuem através da circulação de cheques.
Como em geral a banca, sempre que as suas disponibilidades de caixa excedem largamente o limite de segurança, as deposita no banco central, e como este, na distribuição do crédito actua, sobretudo, através do redesconto feito aos bancos comerciais, acontece que pode considerar-se o sistema bancário constituído em dois graus: a banca comercial, que actua directamente junto do público, recebendo os seus depósitos e distribuindo por força deles e da circulação de cheques o crédito necessário à economia, e o banco central ou emissor, onde os bancos comerciais depositam os seus excessos de caixa e onde vão buscar, através do redesconto, os fundos suplementares de que carecem para aumentar ou manter a sua distribuição de crédito, ou reembolsar os seus depósitos nos períodos de tensão monetária.
A distribuição de créditos que actua em complemento da emissão não é, assim, ilimitada e tem, por isso mesmo, sobre os efeitos desta, acção compensadora. Pode aumentar, se o mercado o solicita, quando pelo aumento de depósitos se avolumam as disponibilidades de caixa dos bancos, mas diminui quando, pelo levantamento e utilização de depósitos, a proporção dos fundos líquidos tende a baixar.
Assim, a toda a utilização de depósitos dos - bancos no banco emissor corresponde, ou uma aquisição de reservas que diminui as responsabilidades deste sem aumentar a emissão, ou um levantamento de depósitos pelo público que, aumentando a emissão, é compensado pela restrição que se opera na circulação bancária. Na primeira hipótese, ao pagamento de ouro adquirido à banca corresponde ou uma diminuição das suas responsabilidades ou um aumento da sua caixa, ou a criação de um crédito, segundo o seu cliente lhe paga com fundos depositados, com notas, ou utiliza crédito que lhe foi concedido, mas este último é sempre limitado pela situação de caixa e tenderá, portanto, a restringir-se no conjunto, à medida que através da banca se transforma poder de compra interno em ouro ou moeda estrangeira.
Quer dizer que a aquisição de ouro ou moeda estrangeira se traduz sempre em restrição da circulação interna, assim como a conversão de moeda estrangeira em moeda nacional importa sempre aumento do potencial monetário interno.
As possibilidades do crédito - correctamente utilizado - na modificação destas tendências, são limitadas e não podem nunca invertê-las.
7. Do que antecede se deve concluir que, no seu normal e natural funcionamento, o sistema monetário interno e externo são interdependentes e que, salvo em regimes transitórios, só em excepcionais circunstâncias justificados a política monetária deve encará-los em conjunto.
De facto, numa situação de corrente comunicabilidade entre mercados, à alta de preços internos que a abundância de meios de pagamento possa determinar corresponde a tendência para o desenvolvimento das importações - quer de bens de consumo, quer de bens de produção - que reduz o meio circulante pela conversão de moeda nacional em moeda estrangeira ou determina alta do câmbio que restabelece a paridade dos poderes de compra interno e externo da moeda; a uma tensão monetária e baixa de preços no mercado nacional corresponderá uma tendência para o desenvolvimento das exportações e restrição de importações que desenvolverá o meio circulante interno ao mesmo tempo que assegurará a liquidação de débitos ao exterior ou a acumulação de reservas cambiais.
E o quadro clássico dos movimentos do ouro que não deixa de dar-se - embora com fenómenos de transição mais ou menos longos - na actual e bem mais complexa técnica monetária.
Não poderá assim separar-se valor interno e externo da moeda, a não ser mediante uma interrupção ou uma regulação monopolista do comércio externo que rompa a solidariedade entre os preços internos e os preços internacionais.
Interrompido o comércio mundial pela guerra, reduzido o comércio externo dos países a trocas directas e liquidações bilaterais, diminuída assim, ou, mesmo, temporariamente eliminada, a possibilidade de reacções compensadoras do aumento do poder de compra resultante do desenvolvimento de certas exportações e da entrada de capitais estranhos, o aumento de circulação terá pesado sobre os preços do mercado interno pela mesma forma que em certos países e dados momentos pesou a abundância de ouro, mas nem por isso a moeda deixou de manter as condições de conversão que asseguram, uma
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vez estabelecido o mercado mundial, a comunicabilidade da economia interna com ele e o restabelecimento da paridade de preços entre o interior e o exterior. A acumulação do poder de compra interno nos países que, não envolvidos no conflito, viam suceder-se os saldos positivos da sua balança de pagamentos, é um reflexo da situação comercial é económica, e não um fenómeno autónomo e comandável por pura política financeira. A moeda cabia servir a economia e à política financeira corrigir ou limitar os fenómenos de transição que, por via da anormal situação externa, tendiam a prolongar-se.
8. Esta explicação esquemática, certamente fastidiosa, julgou-se necessária, como elemento prévio da análise dos movimentos que, no período de guerra e por virtude das circunstâncias já expostas, sofreu o nosso mercado monetário, e se traduziram em movimentos das contas fundamentais do banco emissor.
Pelos quadros n.ºs 2 e 3 verifica-se que no período de 1939-1945 o acréscimo de responsabilidades do banco emissor representativo do aumento de ouro e divisas foi de, 16:298 milhares de contos, a que correspondeu, no entanto, um aumento de emissão de 5:615, porque, no mesmo período, a rubrica de depósitos - e particularmente de depósitos directos do Tesouro (compreendida a Junta do Crédito Público) e de bancos e banqueiros (constituídos, como vimos, pelos seus excessos de disponibilidades de caixa) - produziu, juntamente com outras rubricas menos importantes, uma absorção de 10:529 milhares de contos; ao mesmo tempo a distribuição do crédito baixou, traduzindo-se, através do movimento de empréstimos e reembolsos, na redução de 154 milhares de contos na circulação.
A subida de emissão de 2:500 para 8:100 milhares de contos foi, pois, devida exclusivamente ao aumento de reservas por aquisição de ouro e divisas provenientes dos movimentos da balança de pagamentos, e daqui resultou - uma vez que a circulação não aumentou por distribuição do crédito pelo banco emissor - o aumento da proporção das reservas, quer para as responsabilidades totais à vista, quer, sobretudo, para a circulação de notas.
Por seu lado, como actuou o sistema bancário?
Respondem à pergunta os quadros n.ºs 4 e 5, pelos quais se verifica que, no período considerado (1939 a 1945):
a) Os depósitos subiram de 5:100 para 19:400 milhares de contos;
b) A carteira comercial passou de 1:800 para 3:100 milhares de contos;
c) Os outros empréstimos subiram de 2:800 para 4:300 milhares de
contos.
Esta desproporção entre o aumento dos depósitos nos bancos e o crédito por eles distribuído revela que não desempenharam função específica de aumento de circulação, pois que, em tal caso, a curva das operações activas se equilibraria com a dos depósitos.
Desta situação resultou o aumento das disponibilidades de caixa, na sua maior parte transferida para depósitos no banco emissor, onde aumentaram, pela fornia já vista, a rubrica de depósitos de bancos e banqueiros.
9. Da descrição documentada do mecanismo por que se deu o aumento do meio circulante depois de 1939 conclui-se que, ao contrário do que ocorreu em 1914-1924, ele foi dominado pela economia externa, não havendo causa específica da economia interna a determiná-lo.
Na verdade, a inflação verificada depois da guerra de 1914-1918 é derivada de causas internas.
Em 1916-1924, o aumento de circulação segue o da dívida do Estado ao banco emissor, é feito para esse fim, não é acompanhado de aumento correspondente de reservas, não serve, por isso, antes domina, as condições da economia interna e externa do País. Determina por isso uma depreciação monetária que, a partir de dado momento, excede o próprio aumento da circulação, quer no aspecto do valor interno da moeda, quer no ao seu valor cambial.
Em 1939-1945, pelo contrário, o aumento do meio circulante é acompanhado de um aumento mais que proporcional das reservas-ouro da circulação; coincide com o das disponibilidades do Estado no banco emissor, com uma estabilidade cambial não assegurada por intervenções valorizadoras da nossa moeda; a alta de preços internos fica sempre muito aquém do aumento da circulação.
No entanto, nos dois períodos se verifica a interdependência da situação monetária interna e externa. Num caso - o de 1916-1924 - o valor interno do meio circulante é dominado pelo aumento de papel-moeda, que em certo momento afecta o seu valor subjectivo de troca, a ponto de o ritmo da desva-
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lorização exceder o da emissão, provocar situações de tensão monetária e afectar directamente o valor cambial. No outro caso - o de 1939-1945 - é a aquisição de ouro e divisas resultante do fecho da balança de pagamentos que provoca o aumento de poder de compra interno e, em menor escala, da circulação; e se o peso que esta exerce «obre os preços do mercado nacional não tem a
corrigi-lo o restabelecimento da paridade do poder de compra com outras moedas por uma inversão da balança comercial tem, no entanto, o correctivo do maior valor subjectivo da troca de moeda por virtude do valor-ouro que exprime e, portanto, da garantia de conservação de valores que confere.
Quer dizer: num caso, como no outro - embora em sentido inverso, determinado pela diametral oposição de origem dos dois fenómenos
-,valor interno e externo reagem um sobre o outro e mostram-se interdependentes.
Os valores interno e externo da moeda são, de facto, salvo nos movimentos de curta duração, inseparáveis. As disparidades que neles podem verificar-se são de pura conjuntura, quando não acidentais. Só isolando o País ou estabelecendo uma separação completa, por intervenção monopolista do Estado, entre economia interna e externa, se poderão tornar independentes.
Não sendo assim, a disparidade dos poderes de compra interno ë externo tenderá a restabelecer o equilíbrio, ou pela importação, no caso de Aquele ser inferior a este, ou pela exportação, no caso contrário.
Só quando o comércio internacional é interrompido a reacção pode deixar de dar-se, mas, independentemente de condições políticas especiais, tal interrupção não pode manter-se quando a disparidade se acentue e prolongue.
E essa situação excepcional que se verifica a partir de 1939.
Condições políticas especiais - a guerra mundial - determinaram movimentos da balança de pagamentos, que, tendo tido as naturais repercussões na economia interna, não tiveram, no entanto, pelo desaparecimento das condições normais do comércio mundial, a reacção natural, pelo que se chegou a uma situação em que os movimentos do valor interno e externo da moeda parecem divergentes, no entanto, o reatamento das relações económicas internacionais deverá restabelecer necessariamente a interrompida paridade dos poderes de compra pela valorização interna da moeda e o equilíbrio da circulação, já que, forte a situação cambial, a disparidade favorecerá importações com a consequente utilização de reservas-ouro acumuladas e, portanto, a reabsorção do poder de compra pela venda de ouro ou cambiais.
II
A política monetária depois de 1939
1. Exposto o desenvolvimento da situação monetária depois de 1939 e as suas causas determinantes, há que ver em que medida o Estado actuou sobre ela e quais os meios por que podia tê-la influenciado por forma diferente, em ordem a evitar a inflação do poder de compra.
Em primeiro lugar, há que recordar as condições gerais em que o fenómeno se desenvolveu e que devem ter-se como dados do problema.
País neutral, Portugal tinha de manter relações económicas com todos os países com quem o tráfego se mostrava possível, quer porque a manutenção do comércio era corolário da posição de neutralidade assumida, quer porque só através dela se poderiam, e não sem dificuldades, obter, embora em escala inferior às necessidades, abastecimentos essenciais:
No entanto, se na exportação algumas mercadorias sofriam paralisação, outras se viram objecto de intensa procura que determinou, não só intensificação da sua produção, como aumento extraordinário do seu valor pela própria concorrência estabelecida entre os beligerantes.
Sendo a causa primária do aumento do poder de compra interno a inversão de posições da balança comercial, e tendo o Estado, não só normalmente, mas pelo regime especial criado em vista das condições de guerra, a fiscalização intensa do comércio externo, a forma decisiva de evitar o aumento do poder de compra teria sido usar dos seus direitos de entidade reguladora de importações e exportações para limitar estas por forma a restabelecer o equilíbrio da balança comercial.
Tal política implicaria necessariamente as consequências seguintes:
1.° Limitar possibilidades de produção e realização de valores que de outro modo e em outra época não poderiam ser aproveitados;
2.° Impedir o emprego de mão-de-obra, substituindo ao pleno emprego que durante o período se verificou a existência de uma massa crescente de desocupados, pela paralisação de outras actividades de exportação, pela interrupção das correntes emigratórias e pelo desenvolvimento da população;
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3.° Renunciar à acumulação do ouro e valores-ouro de que a Nação hoje dispõe, sem possibilidade de obter compensação ou reservas para o restabelecimento do capital nacional desgastado durante a guerra por falta de renovações suficientes;
4.° Diminuir, dada a procura intensa das mercadorias em causa, a possibilidade de acordos que permitiram abastecimentos indispensáveis e que de outro modo não teria sido possível obter;
5.° Adoptar atitudes que não seriam porventura indiferentes sob o ponto de vista da política internacional.
2. A não se aceitar - e por isso se optou - o risco destas consequências, o problema teria ainda como solução o monopólio da exportação pelo Estado, que se asseguraria assim do lucro correspondente ao sobrepreço dos produtos exportados. Essa solução implicava por seu lado:
1.° Responsabilizar directamente o Estado pela distribuição e preço dos produtos;
2.° Impor-lhe em relação a alguns deles a organização de complexas redes comerciais;
3.° Impossibilidade ou, pelo menos, forte limitação da absorção de sobrepreços prevista, por virtude da dispersão com que a produção de certas mercadorias se dava e do regime especial em que tinham de ser obtidas;
4.° Adopção de uma atitude monopolista inteiramente contrária aos princípios jurídicos seguidos, e de produtividade certamente muito limitada.
Não tendo sido adoptada nenhuma das soluções atrás enunciadas, havia que encarar os meios de fixar quanto possível os rendimentos que, sem contrapartida em abastecimentos correspondentes por falta de aplicabilidade do ouro que os garantia, se formavam em paralelo com o desenvolvimento das actividades exportadoras.
Essa limitação poderia fazer-se por meios directos ou indirectos.
Entre os primeiros contam-se como principais:
a) O bloqueamento do poder de compra resultante daquelas operações;
b) O empréstimo forçado como meio de obter igual imobilização;
c) O chamado racionamento do poder de compra, limitando - sem referência a mercadorias - o montante dos dispêndios individuais.
Porém, esses meios também não foram julgados de adoptar pelas razões seguintes:
1.° O bloqueamento do poder de compra resultante das operações de comércio externo afectaria actividades por ele sustentadas - nomeadamente a produção mineira - e, destruindo a confiança na mobilidade de capitais depositados, anularia a nossa posição como local de concentração de capitais estranhos; teria, além disso, de fazer-se, sob pena de limitar actividades, em termos de timidez que, sem afastar os inconvenientes apontados, não permitiriam exceder nem porventura alcançar os resultados obtidos com os meios indirectos;
2.° O empréstimo forçado - mormente quando circunstâncias excepcionais de salvação nacional o não justificavam suficientemente perante o público - teria consequências desastrosas para o crédito do Estado, trar-lhe-ia encargos avultados e não permitiria proporcionar a imobilização feita à necessidade efectiva de disposição de fundos por parte dos seus possuidores;
3.° O racionamento do poder de compra, isto é, a limitação da despesa total permitida a cada indivíduo num dado período, não teria em conta a diversidade de condições individuais, além de que, embora teoricamente defendido, se mostrou em toda a parte de impossível execução. Teria todos os inconvenientes do bloqueamento e não recairia apenas sobre os titulares dos rendimentos excepcionais da exportação.
Por estas razões principais se não enveredou pêlos caminhos de restrição directa do poder de compra.
Julga-se que as medidas cerceadoras da liberdade económica devem constituir excepção limitada ao mínimo indispensável ao bem comum e que restrições no uso do meio circulante ou dos rendimentos individuais, genericamente estabelecidas, levariam ao máximo os inconvenientes de limitações económicas que encontram séria resistência no temperamento c maneira do ser do País.
Independentemente dessas considerações, presume-se que qualquer das soluções em referência levaria o País a alienar ou renunciar a uma boa parte do rendimento que a conjuntura lhe proporcionava e que, como ficou dito, lhe permitirá - uma vez finda a guerra - não só refazer utensilagem e stocks esgotados pela falta de renovação suficiente, como aumentar a sua capacidade de produção.
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Em suma, entre soluções esboçadas para economias em profunda tensão de guerra e soluções que limitassem ao mínimo indispensável os sistemas normais de comércio e circulação da riqueza, optou-se por estas últimas, por mais conformes com a nossa efectiva condição de país neutral e mais propícias - sabida como é a dificuldade de passagem do regime de intervenção do Estado para o da economia livre - ao pronto restabelecimento de condições normais logo que cessasse a guerra e se atenuassem as suas consequências.
Supõe-se assim, ainda, que se afastaram soluções que, além de inconvenientes à economia e à política da Nação, se apresentavam como francamente contrárias à índole e maneira de ser da nossa gente e perniciosas para a pronta recuperação que se deseja das condições próprias da economia de paz.
3. Optou-se, pois, pelos processos indirectos de correcção do excesso do poder de compra, lançando-se mão não apenas de um, mas de vários, que foram aplicados, em conjunto e concertadamente, com vista ao mesmo fim Dividir-se-ão em três categorias:
Política tributária;
Política de crédito público;
Política bancária.
Considerá-las-emos separadamente, visto que em cada categoria houve mais do que uma modalidade de acção, para depois vermos como formaram um conjunto.
A) Política tributária. - Em primeiro lugar, haverá que citar o aproveitamento das próprias operações de exportação de guerra como matéria colectável, e que, dados os preços atingidos, teve certamente a sua repercussão sobre o produtor - quer dizer, limitou a sua capacidade ou possibilidade de lucro por montante correspondente à tributação.
Fez-se o agravamento de numerosas taxas da pauta de exportação e estabeleceu-se, para as duas mercadorias de maior valorização e produtoras de maior aumento de rendimentos - o volfrâmio e o estanho - um sistema especial de fixação de direitos, que foi variando com a evolução das valorizações verificadas. Assim, e em relação ao volfrâmio, os direitos de exportação subiram de 1$06 (ouro) por tonelada em 1939 para 2.800$ (ouro) em 1941 e, para o estanho, de 1,5 por cento ad valorem em 1939 para 1.600$ (ouro) por tonelada em 1941.
Estas providências não tiveram apenas por efeito aumentar notavelmente as receitas dos direitos de exportação, que, tendo normalmente um modestíssimo lugar nos rendimentos do (Estado, atingiram durante a guerra os valores indicados no quadro n.° 7. Limitaram também a capacidade de lucro do exportador e, consequentemente, do produtor nacional, absorvendo uma parte do preço pago pelo comprador.
No entanto, a política tributária relacionada com a valorização de exportações não se limitou aos impostos indirectos sobre o comércio externo, vista a possibilidade de repercussão sobre o comprador e, portanto, a relativa incerteza sobre a incidência final do imposto. Adoptou-se por isso desde logo uma política de impostos directos, que se traduziu no agravamento de alguns impostos gerais e na criação de um imposto especial sobre os lucros de guerra.
A produtividade destas medidas e o poder de compra que permitiram absorver podem igualmente ver-se do quadro n.° 7.
Por ele se vê que, durante o período, se procurou fazer uma actualização conveniente da contribuição industrial, que subiu de mais de 70 por cento entre 1940 e 1945, e que o imposto de lucros de guerra cobrado entre 1942 e 1945 atingiu cerca de 900:000 contos, numa média anual de mais de 220:000.
Mais ainda que os impostos indirectos, não tiveram estas medidas - e sobretudo a cobrança do imposto de lucros de guerra - puro intento e efeito orçamental. Na verdade, além de proverem o Estado de receitas, contribuíram para a fixação de rendimentos que de outro modo teriam, a par das despesas públicas, pesado sobre o mercado.
B) Política de crédito público. - Falar-se-á, aqui, apenas na política de crédito público destinado à fixação de capitais do mercado, e não em operações de interesse predominante para a administração da dívida, como a conversão dos centenários e outras.
A partir de 1940 emitiram-se, na verdade, sem que as necessidades orçamentais ou do Tesouro o exigissem, alguns empréstimos consolidados e amortizáveis que produziram avultada fixação de capitais e limitaram a baixa
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da taxa de juro em que se traduzia, com tendência para unais rápida circulação monetária, a acumulação de poder de compra inactivo.
As emissões realizadas foram, desde 1941, as que constam do quadro n.° 8, mas, como o que interessa para apreciação do poder de compra retirado do mercado é apenas o movimento da dívida efectiva, isto é, dos títulos em circulação, que se obtêm abatendo às emissões os títulos na posse da Fazenda, são esses os que aqui se alinham.
Dívida efectiva
(Em milhares de contos)
1940 ................ 5:182,2
1941 ............... 5:412,6 + 230,4
1942 ............... 6:978,6 + 1:560
1943 ............... 7:556,2 + 583,6
1944 ............... 8:201,5 + 645,3
1945 ............... 8:675,5 + 474
________________
Aumento total entre 1940 e 1945 + 3:493,3
Quer dizer que o Estado absorveu pelo crédito público, entre 1940 a 1945, cerca de 3.500:000 contos, que lhe importaram pesados encargos de juros, apesar de, pelas conversões feitas em outros empréstimos ter conseguido atenuar esse peso.
Juros da dívida fundada abatidos os títulos na posse da Fazenda
1940 ...................... 211:182
1945 ...................... 259:538
________
Diferença para mais ...... 48:356
________
Do conjunto das medidas de ordem tributária e de crédito público que absorveram dinheiro do mercado, e da sua relação com as despesas que representam aumento da massa do poder de compra resulta, pelo excedente daquelas, a fixação efectivamente feita, expressa pelo aumento de disponibilidades da Tesouraria.
Como pode ver-se pelo quadro n.° 9, essas disponibilidades aumentaram desde 1939 cerca de 2.200:000 contos, que representam a fixação efectivamente feita através da administração financeira- do Estado e das suas poupanças.
Afinal veremos como «e conjuga esta política com a política de capital seguida no mercado bancário.
C) Política bancária. - Já foi feita a descrição esquemática de como funciona o sistema bancário no seu conjunto, no que toca a intervenção na utilização e velocidade da circulação do poder de compra interno.
Como se comportou esse sistema perante o fenómeno do aumento do poder de compra, atrás descrito, e em que medida a política do Estado pôde influir sobre ele?
O sistema bancário deve funcionar no mercado interno como elemento proporciona dor entre a existência e as necessidades de dinheiro, quer no que só refere à sua distribuição, quer, pelo desenvolvimento da circulação de crédito, no que se refere à massa total disponível.
Assim, como vimos, não só, através do sistema de depósitos e da distribuição do crédito, serve de intermediário entre os que têm poder de compra disponível e os que dele carecem para operações produtivas, como, pelo desenvolvimento do sistema de circulação de cheques, cria poder de compra que circula e se compensa ao final de um ciclo de trocas.
No período posterior a 1939, em que a tendência da economia nacional foi para uma concentração de poder de compra em excesso sobre as disponibilidades do mercado interno e externo em mercadorias, a função do sistema bancário deveria ser a de absorver esse poder de compra e mante-lo quanto possível imobilizado sob a forma de capitalização líquida.
Feios quadros n.ºs 4 e 5 se verifica que os depósitos bancários aumentaram entre (1939 e 1945 de 14:316 milhares de contos e a carteira comercial e empréstimos 2:730, o que dá um aumento líquido de 11:586 milhares de contos nos depósitos reais e denota a pequena expansão de crédito feita.
Em que medida foi este resultado influenciado pela política do Estado, em que medida e por que forma podia este tê-lo modificado?
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Em primeiro lugar, este resultado foi em si expressão das tendências do mercado devido ao aumento do poder de compra livre, cujas origens já se expuseram. Mas essa tendência natural podia ser modificada por limitação ou excitação através da política das taxas de juro. Assim, uma política de taxas de juro demasiadamente baixas reduziria no público o estímulo a depositar nos bancos o seu numerário disponível levando-o a guardá-lo ou dar-lhe aplicação, ainda que pouco produtiva, e aumentaria o de recorrer ao crédito para operações que criariam circulação secundária no mercado interno.
Ora a política de taxas seguida e a política de crédito adoptada pelo Estado, que dela faz parte, tenderam precisamente à acção limitativa, visto que o Estado influiu nela absorvendo capitais disponíveis e evitando, portanto, a queda brusca das taxas de juro e dando aos bancos possibilidades de colocação, de dinheiro que contribuíram para os colocar a coberto da necessidade de forçar a oferta de crédito.
Mas poderia essa política de taxas de juro ter actuado em sentido mais decisivo, se, per exemplo, em vez de se ter orientado no sentido de atenuar a sua tendência para a baixa, o banco central e o Estado tivessem actuado no sentido da sua elevação? Estariam reunida as condições técnicas necessárias ou correspondentes à política clássica da alta da taxa de juro como meio de influir na balança de pagamentos, restringir a circulação interna e provocar uma tendência para a baixa de preços?
A aplicação dessa política seria, em tal situação, inoperante e inconveniente, por várias razões, e, entre elas:
a) A origem do desequilíbrio da balança comercial estava nas condições excepcionais dos mercados externos e actuava no sentido oposto ao da hipótese determinante da política clássica da alta da taxa de juro, destinada a forçar exportações e restringir importações, por forma a assegurar a colocação de capitais no mercado, e a provocar o afluxo de capitais estranhos. Sob o ponto de vista do comércio externo, a alta da taxa de juro - a operar - actuaria, portanto, no sentido inverso ao desejado;
ò) Dada a natureza do aumento do poder de compra, não filiado em expansão de crédito, mas no puro aumento directo de rendimentos, a alta da taxa de juro não influiria na circulação nem sobre os preços, e era em si contrária à tendência natural da economia;
c) Pelo que antecede, uma política de alta da. taxa de juro, além de inoperante para o fim em vista, teria como consequência aumentar encargos ao Estado e da produção e pôr o preço do dinheiro num nível que afectaria a reconversão a realizar uma vez finda A guerra.
Mas há mais. A política da alta da taxa de juro mostrava-se também desnecessária, porque o sistema bancário, intermediário na fixação e colocação de capitais, mostrava tendências de prudência na manutenção das suas posições de caixa (dinheiro e depósitos em outros bancos), que não seriam reforçadas por aquela alta (quadro n.° 6).
Na verdade, a alta da taxa de juro nem os levaria a maiores colocações em títulos do Estado, já que tinham limitadas essas colocações pela necessidade de uma posição de caixa suficientemente forte, nem a fazer maiores depósitos na Caixa Geral e no Banco de Portugal. De facto, a proporção entre a caixa e os depósitos subia de 28,2 por cento em 1939 a 70,4 por cento em 1945.
Se a banca não actuou como elemento estimulante da circulação do poder de compra, mas como factor de retardamento, havia que manter condições propícias a essa acção, que evitar as reacções que a baixa da taxa de juro pudesse exercer em sentido contrário, mas não era necessário nem seria conveniente exercer desde logo o correctivo que noutro caso se tornaria imperioso.
6. Resta fazer a apreciação de conjunto da política seguida.
Em resumo, poderemos traçar o seguinte quadro:
Quanto ao banco emissor, não podia deixar de fazer a conversão de ouro ou moeda estrangeira em moeda, nacional, para assegurar as liquidações resultantes do comércio externo.
Em que termos o fez?
Nessa função, o condicionamento fundamental a observar pelo Banco era b da segurança das reservas adquiridas.
Terminada a guerra, verifica-se que o Banco, na função que em serviço da economia nacional lhe cabia, equilibrou - num mundo de mercados monetários fraccionados - as suas liquidações e dirigiu a sua política de reservas pôr forma que a situação destas se reduz a ouro-metal e moedas convertíveis em ouro ou com garantia de câmbio e pagamento em ouro, cobrindo a circulação e as responsabilidades à vista em proporção muito superior à legal.
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Quer dizer: verifica-se que as condições legais e estatutárias que devem presidir à emissão foram inteiramente respeitadas e que esta é, sob o ponto de vista técnico, impecável.
Vê-se mais que ao aumento de poder de compra resultante das condições da balança de pagamentos se opuseram, não 09 correctivos directos que teriam abalado a confiança no valor da nossa moeda e da nossa circulação, mas os correctivos indirectos que, através da política financeira do Estado - política tributária e de crédito público - e através da política bancária, produzissem maior retenção de potencial monetário sem quebra daquela confiança.
Crê-se, na verdade, que todos os sistemas directos se justificam apenas quando a sua acção se desenvolve em circunstâncias que denunciam já, ou mostram iminente, a perda de um dos mais altos atributos que deve revestir a moeda e o sistema de crédito paia bem desempenhar a sua função: a confiança do público. Só se justificam, portanto, quando a situação é tal que esta ou já se perdeu ou está a ponto de perder-se.
A normalidade do sistema deve assim manter-se através da plena confiança do público no valor da moeda e no. sistema bancário a cuja guarda entrega as suas disponibilidades, da inteira segurança na livre e inalterável utilização destas. O uso de medidas directas de restrição, destruindo essa confiança, atingiria o sistema nos seus próprios fundamentos, e o sistema é, uma vez destruído, de difícil e lenta reconstituição ...
Assim, enveredou-se pelo caminho dos correctivos indirectos, únicos que as condições da moeda portuguesa justificavam; outros produziriam certamente mal maior do que o que procurava
remediar-se.
As medidas tomadas representam um concertado conjunto. A política do Estado - acumulando capitais, em vez de despender os obtidos pelo crédito - das taxas de juro, atenuando a tendência natural do mercado para a baixa e aumentando assim o estímulo para retenção de capitais, facultando à banca títulos de condições adequadas à colocação das suas disponibilidades de caixa, considera-se que defendeu melhor o valor da nossa moeda do que uma política de limitações directas das disponibilidades, que trariam imediatamente a perda da confiança no sistema.
Verifica-se, pois:
Que o condicionamento do comércio externo, cujos movimentos foram determinantes do aumento do poder de compra, foi, se não o único possível, pelo menos, o melhor nas circunstâncias existentes;
Que os correctivos opostos ao aumento da circulação foram certamente os que mais se adequaram às circunstâncias e defenderam a confiança na moeda e no sistema bancário;
Que a evolução monetária foi consequência da evolução económica e se adaptou a ela, limitando, na medida do possível, os efeitos da transição que a evolução das condições mundiais tornava longa;
Que a política seguida permitiu a conservação de capitais importantes para a economia nacional;
Que, por via dela, ao fim da guerra a moeda portuguesa conserva garantias sólidas que permitem o estabelecimento de comunicações com o mercado mundial, sem qualquer limitação de ordem cambial ou monetária.
A política monetária desenvolvida terá, pois, desempenhado plenamente a sua função.
7. Não se terminará este capítulo sem fazer referência a duas críticas que, porventura, se formularão à política monetária; de 1939-1945. São elas o ter-se sido tímido, quer na política tributária, quer na política de crédito público, e o não se ter adoptado como processo de fixar poder de compra uma política larga de venda de ouro no mercado interno.
Quanto à maior ou menor intensidade da política de retenção indirecta, encara-se separadamente, ao responder-lhe, a política tributária e a política de crédito público.
Ë difícil a determinação exacta da capacidade tributária máxima e, mais ainda, da sua real distribuição, mormente num meio como o nosso, onde a fidelidade ao fisco é uma virtude não só rara como pouco apreciada e onde as medidas de intervenção e averiguação dos elementos denunciadores dessa capacidade são sempre objecto de uma reacção viva. Por isso mesmo, todo o sistema de tributação que procure basear-se na situação real do contribuinte, na sua efectiva capacidade de pagar imposto, revelada por um acto ou por um rendimento, é sempre difícil de estabelecer; são vivas as reacções dos interessados, forte o apoio que o espírito público lhes dá, escassos os meios da Administração para verificar e corrigir os elementos que para ela lhe são oferecidos...
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O contribuinte e o povo português preferem os impostos objectivamente determinados e concebem-nos como um preço que têm a pagar ao Estado e que deve ser, quanto possível, previamente conhecido e estabelecido com uniformidade. Assim se enveredou, com vantagem para os contribuintes e para o Estado, pelo caminho da tributação dos rendimentos normais determinados por antecipação...
Mas se este sistema em épocas normais tem vantagens, importa inconvenientes e dificuldades sérias nos períodos de variação violenta de conjuntura em que as situações individuais sofrem alterações súbitas e profundas.
Nessas ocasiões, só uma tributação fortemente subjectivada pode assegurar a correcção de rendimentos através do imposto, mas é de difícil realização quando a máquina tributária, as tradições do sistema e os hábitos do público estão em oposição a ela...
Por isso, as tributações extraordinárias têm sempre de fazer-se só até ao ponto em que a falta de elementos de determinação da matéria colectável real não venha a produzir injustiças de distribuição maiores do que as que querem evitar-se.
Mesmo assim, a tributação sobre lucros de guerra rendeu em cinco anos cerca de l milhão de contos, com média anual que excede a contribuição industrial antes dá guerra.
Quanto à política de crédito público, não se julga que pudesse reforçar-se senão através de uma alta da taxa de juro e alterando, com repercussões talvez perniciosas, as condições gerais do mercado.
Na verdade, não se tratando de empréstimos forçados e tendo-se proporcionado as colocações às solicitações e disponibilidades do mercado, a alta da taxa de juro como elemento de maior absorção de capitais, além de inoperante em outros aspectos, como já se mostrou, teria como consequência impedir as conversões que em vários empréstimos fie realizaram sem fazer maior retenção de fundos, já que os colocados através da banca eram, em si, limitados pela preocupação justa por parte desta em manter forte posição de liquidez, e que por parte do público não haveria, visto o afluxo de dinheiro, outra reacção que não fosse a subida de cotações acima do par, com reforço, portanto, das tendências especulativas do mercado.
A política seguida tinha de ser, desde que se tratasse de empréstimos voluntários, no sentido de proporcionar estes às condições do mercado onde era feita a colocação progressiva das emissões. Forçá-las, traria necessariamente a oneração do comércio e da indústria com taxas mais altas sem obter maior venda de títulos.
De outra modalidade de crédito público se não lançou mão, apesar do várias vezes terem sido feitas sugestões nesse sentido, atribuindo-se-lhe possibilidade de realizar maior absorção de fundos: os títulos de dívida pública a curto prazo ou bilhetes do Tesouro. Pelo curto e fixo prazo de reembolso, por não serem cotados - na Bolsa, pela menor taxa de juro relativa que podiam vencer, prestar-se-iam, na verdade, a uma fixação de capitais adequada às circunstâncias e que completaria a acção exercida através da emissão de títulos de dívida consolidada e amortizável.
Porém, como se explicou já em relatório oficial, é tal a tradição e significado dos bilhetes do Tesouro no nosso País, foi de tão grande alcance a sua eliminação na administração financeira portuguesa, que se julgou não dever renovar-se a sua utilização - embora em condições, com fundamentos e limitações inteiramente diferentes das antigas -, em obediência à política de reforço de confiança a que já atrás se fez referência.
Isso fie fez conscientemente e se considera ainda ter sido prudente, já que a confiança na administração financeira do Estado era elemento fundamental no estado geral do mercado financeiro.
Resta o que se refere à política de vendas de ouro. Acerca dela poderá dizer-se, como para a política de alta das taxas de juro, que faz parte dos meios clássicos de comandar o meio circulante e que, assim, o instituto emissor poderia e deveria tê-lo corrigido através de vendas de ouro no mercado interno.
Mas aqui, a mesma ausência das normais reacções do exterior, a mesma inversão delas que justificou o não ter-se adoptado uma política de alta da taxa de desconto, aconselhava a não enveredar pela venda livre de ouro no mercado interno.
Na verdade, a situação anormal no exterior, as necessidades de transferências de capitais, a ânsia, em muitos países, de moeda de valor estável e a existência de valorizações cambiais díspares em câmbio livre e em câmbio oficial levavam a cotações especulativas do ouro muito superiores àquelas por que era negociado - para as suas liquidações finais - entre os bancos emissores.
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A venda de ouro ao público tinha assim de fazer-se por uma ou por outra cotação. Se o banco emissor a fizesse pelas cotações especulativas a que acima se fez referência, isso equivaleria a forçar a nossa moeda a uma injustificável desvalorização em relação ao ouro e nada remediaria, porque, dada a intensa procura clandestina de ouro em certos mercados, a especulação tenderia a restabelecer a antiga margem de diferença com a cotação oficial, fie fizesse a venda pelo valor efectivo de transacção entre bancos emissores, isso redundaria, pela acção dos factores apontados, em perda de ouro pelo País e não só pelo banco, em compensação de aumento de posições cambiais de valor duvidoso e sem interesse.
De facto, uma vez que o banco abrisse a venda livra do ouro ao preço oficial, isso não representaria senão, reforçar a especulação, que, a preços muito superiores, faria sair o ouro do País com destino a mercados clandestinos do estrangeiro, recebendo a economia nacional, em troca, moedas ou divisas adquiridas, é certo, a preço vil, mas de valor nulo ou muito duvidoso.
Poderiam mesmo resultar da operação divisas negociáveis no Banco de Portugal, que viriam substituir assim as reservas de
ouro-metal, determinando aumento de emissão, que, com esta única e não desejável diferença, anularia a pretendida redução.
As condições do mercado internacional não permitiam assim uma política de venda de ouro no mercado interno como meio de - absorver meio circulante.
8. Do que antecede parece poder concluir-se:
1.° Que houve uma política monetária no período 1939-1945;
2.° Que tal política teve como directrizes fundamentais o manter a confiança na moeda e no sistema de crédito, reduzir o poder de compra actuante sobre o mercado, conservar o valor de capital que ele representava para a economia nacional, fazer actuar o sistema bancário como elemento retardador da velocidade da circulação;
3.° Que nessa política se mantiveram, como se julgava ser mister, os princípios fundamentais de liberdade, de pagamentos e liquidabilidade de garantias de meios fiduciários indispensáveis à manutenção do valor da moeda;
4.° Que, por via dela, finda a guerra, se conservaram íntegro o valor-ouro da moeda e. sólidas as garantias que o asseguram e, portanto, apto o País a restabelecer a paridade do podei de compra interno e externo da moeda pela rectificação dos preços internos, se estes se mostrarem superiores aos do mercado internacional.
Quais foram os resultados efectivos dessa política?
Que perspectivas nos oferece perante a reconversão económica mundial que a paz deve trazer?
III
A moeda, a política monetária e os preços -
O problema da inflação
1. Expuseram-se já as razoes por que se julga que o fenómeno inflatório de 1939-1945 não é comparável com o de 1914-1922: serem completamente diferentes as causas que os motivaram e as condições em que se desenvolveram.
Serão, porém, semelhantes nos seus efeitos por forma a poder dizer-se que é indiferente, sob o ponto de vista da economia nacional e do seu futuro, a causa que os motivou?
Que reacções provocaram no meio económico, a que se devem essas diferenças, que ilações nos permitem tirar as lições de 1914-1922 para a previsão da evolução futura da nossa moeda e para a política monetária a seguir?
2. Em primeiro lugar, na comparação entre a evolução monetária de 1914-1922 e a de 1939-1945 há a notar uma diferença de volume que não será indiferente sob o ponto de vista dos efeitos.
Em 1916-1922 a circulação tem uma subida de 529,6 por cento, ao passo que a de 1939-1945 é de 257 por cento.
Verifica-se da observação do gráfico III (a) que em 1914-1922, a partir de 1918, se dá a aceleração do aumento do numerário circulante e a sua ultra-
(a) Reproduzido de um estudo do Prof. Sr. Dr. Pacheco de Amorim no n.° 2 da Revista do Centro de Estudos Económicos.
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passagem pelo nível dos preços e, em 1920, pela alta do câmbio, por forma que desse momento em diante se verifica a tensão monetária resultante de ser a desvalorização, tanto interna como externa, mais rápida do que o volume da emissão que lhe deu causa. E a perda total da confiança na moeda e a acção psicológica do anúncio das emissões e do conhecimento das vicissitudes da administração financeira do Estado a comandar, por sua vez e a par destas, a circulação.
Pelo contrário, a observação do gráfico iv (a) mostra que em 1939-1945, com o aumento de circulação, se mantém uma completa estabilidade cambial e o índice dos preços fica, na sua alta, muito abaixo do da circulação total.
Que significará essa disparidade de condições e reacções? Poderá representar mero domínio sobre os preços e sobre o câmbio através da intervenção mais eficaz exercida durante o período 1939-1945, ou maior valor objectivo da moeda, que não foi afectada nas suas reservas e na essência do seu valor?
Note-se que não só a alta total das curvas dos preços e da circulação é inteiramente diferente, como é diferente também o seu desenvolvimento. Essas diferenças, confrontadas com a diferente origem dos fenómenos, exprimirão apenas maior eficácia da intervenção efectuada ou diversa natureza, em um e outro caso, e diferença, portanto, nos seus efeitos naturais?
Em 1914-1922 o fenómeno da inflação devido a expansão do crédito - nomeadamente a favor do Estado - determina, não apenas a pressão sobre o mercado interno e maior procura de bens do exterior, como, por fim, perda no valor efectivo de troca da moeda, reacção imediata do apreço do público sobre o aumento da emissão e - por virtude de tensa situação cambial - a impossibilidade de corrigir pelo abastecimento externo a alta interna de preços. O fenómeno inflatório domina inteiramente o problema e reage directamente sobre os preços e sobre o câmbio. O aumento de depósitos é expressão da desvalorização da moeda, e não de aumento de reais disponibilidades em poder de compra.
A situação pode resumir-se assim:
a) A balança comercial mantém-se deficitária;
6) Os capitais apresentam tendência para a fuga para o estrangeiro;
c) A tendência da taxa de juro é para a alta nítida;
d) A alta de câmbio acompanha a alta de preços, traduzindo uma desvalorização do valor relativo da moeda;
e) À alta dos preços e a dos câmbios reagem uma sobre a outra e excedem de certa altura em diante o próprio desenvolvimento da circulação;
f) A emissão é feita em contrapartida do crédito concedido, não tem reservas-ouro nem cambiais, constitui uma verdadeira emissão de papel-moeda, visto que as reservas diminuem em valor tanto relativo como absoluto pelo aumento de emissão fundado no crédito e pelo desequilíbrio da balança de pagamentos.
Em 1939-1945, pelo contrário:
a) O déficit da balança comercial diminui notavelmente e é mesmo substituído por avultados saldos em alguns anos;
b) A tendência é para a concentração e entrada de capitais no País, e não para a exportação deles;
c) A taxa de juro acusa uma baixa, que só a política financeira impede que seja mais violenta;
d) O câmbio mantém-se com inteira estabilidade, sendo as intervenções destinadas, não ao suporte do valor relativo da nossa moeda, antes, por vezes, à manutenção do de outras;
e) Além de o câmbio ser estável, a alta de preços mantém-se muito aquém do aumento do volume da circulação;
f) A emissão é feita não por expansão do crédito, mas por conversão) de ouro e moeda estrangeira, que aumenta as reservas e a sua proporção em relação às responsabilidade» do banco, longe de estas serem diminuídas pela emissão de papel representativo do crédito concedido ao Estado e pelo desequilíbrio da balança de pagamentos.
Estas diferenças na natureza do fenómeno e nos seus efeitos são, em vista das relações funcionais atrás expostas, suficientes para se afastar a hipótese de um paralelismo natural de efeitos, que apenas se não teria manifestado por virtude de maior eficácia da intervenção e fiscalização de preços no segundo período considerado. Se, de facto, pode ter-se como mais eficiente essa intervenção a verdade é que ela não poderia fazer face a uma desvalorização monetária, sendo seu objectivo e função, precisamente, evitar os desequilíbrios (relativos de preços e assegurar a mais justa distribuição das existências em mercadorias.
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(a) Reproduzido do citado estudo do Prof. Sr. Dr. Pacheco de Amorim no n.º 2 da Revista do Centro de Estudos Económicos.
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A diferença de comportamento dos preços, circulação e câmbio em 1939-1945, em relação ao período de 1916-1922, é reflexo necessário da natureza inteiramente diferente dos doía fenómenos, pelo que não será lícito tirar de uma simples análise quantitativa conclusões quanto às tendências deles resultantes e aos meios de que deve dispor-se para as corrigir.
3. Não parece, pois, que possa ter-se a alta de preços em 1939-1945 como efeito directo do aumento da circulação fiduciária, antes, até certo ponto, esta será também função daquela alta.
De facto, como já foi notado, os custos dos produtos importados - alguns constituindo matérias-primas e. elementos fundamentai» para a produção nacional - sobem fortemente e excedem mesmo a alta de preços internos.
A estatística do comércio externo mostra-nos que, ao passo que o índice de tonelagem tem a baixa violenta a que já se fez referência, o valor da tonelada importada sobe de 903$ em 1939 para 1.285$, 1.845$, 2.172$ e 2.3-16$, respectivamente em 1940, 1942, 1944 e 1945, apresentando assim, em relação àquele ano, agravamento de, respectivamente, 42 por cento, 104 por cento, 140 por cento e 156 por cento.
Sendo certo que nesta variação pode influir não só o custo dos produtos importados, mas também a composição da importação, citam-se apenas alguns índices de variação do custo das mercadorias importadas, que darão mais clara visão do problema.
No ferro, o índice do custo unitário passa de 151 em 1938 para 238, 468, 375, 379, respectivamente em 1940, 1942, 1944 e 1945; no carvão mineral, de 111/2 em 1938 passa-se para, respectivamente, 207, 320, 464 e 495; no sulfato de amónio, de 74,5 para 110, 188, 126 e 154; no trigo, de 83 para 87, 94, 153 e 167.
Em período de indiscutível estabilidade cambial, não poderá atribuir-se esta alta do custo, em moeda nacional, de mercadorias importadas à desvalorização ou inflação interna, antes aquele terá sido causa desta, pelo maior volume de crédito necessário para o financiamento das operações de importação e comércio daqueles bens; não poderão também desconhecer-se as repercussões directas e indirectas que esse agravamento do custo de importação teve no custo de produção e no mercado nacional.
Assim, a alta de preços na importação terá influído na alta de preços interna e, por via dela, na circulação, sendo a proporção do agravamento médio do custo de bens importados superior à dos preços internos.
Por outro lado, a restrição do abastecimento e o aumento de rendimentos desempenharam nessa alta, também, papel fundamental.
Apesar do esforço feito para suprir as deficiências da importação, a produção nacional mostrou-se incapaz de realizar inteiramente esse objectivo, mas foi através desse esforço, que importou necessariamente alta de custos, e da política comercial e de trocas seguida, que resultou o restrito abastecimento conseguido. Até meados de 1941, como pode ver-se pelo gráfico v (a), a curva dos preços por grosso domina a circulação e é só a partir desse ano - aquele em que se acentuam os saldos positivos da balança comercial - que a circulação ultrapassa a curva daqueles. Parece assim poderem distinguir-se, na comparação dos preços com a circulação, dois períodos - o inicial, em que a circulação é nitidamente comandada pêlos preços, e o posterior a 1941, em que o aumento da circulação é nitidamente comandado pelo aumento das reservas e pode, através do aumento de rendimentos, exercer uma acção própria sobre os preços por financiar uma procura de bens de consumo superior às disponibilidades do mercado.
Mas essa acção dá-se em condições inteiramente diferentes das de 1916-1922. Na verdade, ela exprime desequilíbrio no mercado, e mão desvalorização subjectiva da moeda que continua a manter-se, em grande parte, sob a fornia de depósitos, a acorrer à colocação em títulos nacionais de dívida pública e a revelar completa ausência de reacções directas da emissão sobre os preços.
Na verdade, o gráfico mostra como o ritmo dos preços é não só mais lento, como independente, nas suas variações, das oscilações mais marcadas da emissão.
4. Durante a guerra de 1939-1945 não existe um mercado internacional; criaram-se zonas fechadas de produção e consumo, para cujo isolamento das outras contribuíram não só as hostilidades militares entre os beligerantes, como as medidas de uma guerra económica que tornou cada vez mais difícil
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(a) Este gráfico está traçado em escala logarítmica.
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o comércio internacional dos países neutros. Estes vêem assim o seu abastecimento externo diminuído, as suas exportações por vezes dificultadas e não podem determinar-se, nem em uns nem nas outras, pelo princípio dos custos relativos. Não há, pois, mercado internacional, mas fontes diversas de abastecimento restrito, com que há que tratar bilateralmente e em condições por vexes díspares de uma para outra sem que deixe de ser geral o fenómeno diurna alta de .preços que em muitos países excede a verificada no nosso.
Mas se esta circunstância não permite determinar com a antiga segurança a evolução dos preços no mercado mundial, a estatística dá-nos - através da evolução dos custos médios de importação - a medida do encarecimento que, por via de vários factores, que não o câmbio, sofreram as mercadorias importadas.
Tomando os números índices, com base em 1939, do custo unitário da tonelada importada, dos preços e da circulação, poderemos fazer o seguinte quadro:
[Ver quadro na Imagem]
Vê-se nitidamente por este quadro que os índices de preços, tanto por grosso como de retalho, se aproximam mais dos do custo de importação por tonelada do que dos da circulação fiduciária.
Esta parece, até certa altura, dominada pelos preços por grosso e pelos de importação, mas torna-se depois independente deles. No entanto, não se pode afirmar que depois desse momento a circulação seja o elemento dominante dos preços, visto que, não havendo alterações cambiais, estes se mostram, na evolução posterior, mais ligados aos custos de importação do que à do próprio meio circulante.
Os dois fenómenos - circulação e preços - dissociam-se - um dominado pelos movimentos da balança de pagamentos e outro pelo movimento dos custos da importação e sua acção directa e indirecta sobre o custo dos produtos que acorrem ao mercado interno.
Não há em toda a evolução dos preços, desde 1939, vestígios sequer daquela acção directa, imediata e, por vezes, antecipada dos movimentos da circulação i»obre os preços em geral - tanto dos produtos nacionais como dos importados - que caracterizaram a inflação no período de 1916-1922.
Não se afirma, no entanto, que tenha havido completa independência entre o movimento da circulação e dos preços. Já foi dito como pelo aumento de rendimentos que o comércio externo proporcionou e da sua distribuição no mercado interno a circulação em que parte daqueles rendimentos se traduziu foi o veículo de uma procura intensa em face de um mercado de abastecimento restrito e provocou a alta.
No entanto, julga-se lícito concluir de tudo o que antecede que a circulação e os preços foram movidos por causas comuns, foram efeitos da alta de custos externos e do aumento de rendimentos. A moeda não actuou, pois, como causa na evolução dos preços posteriores a 1939, ao contrário do que ocorreu em 1916-1922, em que a emissão de papel-moeda agiu directamente sobre os preços e sobre o câmbio por uma imediata influência uma expressão nominal do valor das mercadorias e das outras moedas.
5. O aumento de circulação posterior a 1939, diferente do de 1916-1922 na sua origem, nas condições técnicas que o dominaram, na sua ligação com a economia nacional - agora pura expressão da situação económica, em 1916-1922 causa da evolução dos preços e do câmbio e das alterações de distribuição de rendimento que daí resultaram - teve também, como se mostrou, diferente acção sobre o valor da moeda e os preços internos.
Assim, não pode dizer-se que a diferença de comportamento destes constitua uma excepção à regra que o fenómeno de 1916-1922 exprime. Antes fica demonstrado que à diversa natureza e origem do fenómeno o às diferenças que daí resultam para as reservas monetárias c para o câmbio, correspondem as da acção sobre os preços internos - num caso, originária e directa, no outro, secundária e indirecta.
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Daí as diferenças da correlação circulação - preços que a estatística nos revela entre os dois períodos. Resta, porém, averiguar se delas resultam diferenças na forma de restabelecimento do equilíbrio e, ainda, se a actual situação, com as características apontadas, pode originar por si uma inflação pura do tipo da verificada em 1916-1922.
Quer dizer: resta apreciar se a situação monetária, a partir de 1945, confirma as apreciações feitas e quais as perspectivas que nos oferece na reconversão económica que se desenha.
IV
A situação monetária ao fim da guerra
1. A natureza e as causas do aumento do poder de compra interno posteriormente a 1939 fazem prever o restabelecimento do equilíbrio pela normalização das condições que o determinaram e, mesmo em alguns aspectos, pela inversão do sentido dos movimentos de algumas.
Verificado que o aumento de circulação não é um fenómeno originário na evolução da economia portuguesa depois de 1939, mas um fenómeno derivado, uma simples expressão da evolução da produção e do comércio nas anormais condições criadas pela guerra; demonstrado que a circulação em acréscimo à de 1939 representa apenas -no que excede a normal expansão do meio circulante em paralelo com o desenvolvimento da economia - uma parte do aumento do poder de compra nacional resultante de maiores rendimentos, cujo valor é garantido pelas reservas do instituto emissor; exposto, ainda, como, se uma parte desse aumento de poder de compra representa novos rendimentos e capitalizações, outra parte, difícil aliás de determinar, é a resultante de atrasos nas normais renovações e reconstituições de utensilagem e stocks que a guerra tornou impossíveis ou, pelo menos, diminuiu fortemente; visto ainda como, por virtude das circunstâncias apontadas, com a alta de preços internos coincidiu uma sólida estabilidade cambial - parece natural que da diminuição ou desaparecimento dos saldos da balança de pagamentos, da intensificação do comércio importador, da reconstituição dos stocks e aumento da utensilagem nacional deva resultar a tendência para a reabsorção do poder de compra líquido em excesso sobre as mercadorias disponíveis, o restabelecimento do equilíbrio de preços, a cessação da marcha ascensional da circulação fiduciária e mesmo o seu regresso a mais baixo nível.
São estes os movimentos naturais que a modificação de condições económicas deve produzir, sem embargo dos fenómenos intermediários e de transição que possam diminuir por momentos a sua nitidez.
2. Cessada a guerra, mantêm-se ainda dificuldades no comércio internacional, mas nota-se já alguma atenuação e mostra-se nítida a tendência para alteração de posições da balança de pagamentos.
Se já em 1945, como vimos, o déficit da balança comercial toma volume que o aproxima do de antes da guerra, em 1946 ele apresenta-se - segundo os dados já conhecidos- mais avultado ainda.
Comparando os números do comércio externo de Janeiro a Outubro nos últimos anos, poderemos ver a verdade do asserto:
[Ver Tabela na Imagem]
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[Ver Tabela na Imagem]
Em 1946 acentua-se, pois, a tendência que já em 1944 começou a manifestar-se para o regresso da balança comercial ao seu aspecto anterior à guerra.
O excesso do valor das importações sobre as exportações atinge, até Outubro, 1 :160 milhares de contos.
A tonelagem sobe, nas importações 44 por cento e na exportação 47 por cento, ao passo que os valores sobem, respectivamente, 52 por cento e 39 por cento. Quer dizer que na importação aumenta o valor por tonelada, ao passo que na exportação se verifica o contrário, sendo aproximadamente de 5 por cento a amplitude de um e outro movimento, mas ambos traduzem, não apenas alteração de custos, mas sobretudo alterações na composição do comércio.
Na importação, os maiores aumentos em relação a 1945 notam-se na classe li - matérias-primas -, com 51 por cento, e na classe IV - máquinas, aparelhos, etc.-, com +166 por cento, mas tanto em uma como em outra se nota baixa do valor unitário - 6 por cento nas matérias-primas e 49 por cento nas máquinas, etc. -, ao passo que se nota agravamento no custo das substâncias alimentícias e, sobretudo, das manufacturas diversas.
E certo que dentro de cada classe haverá também alterações de composição que podem, tanto como as de preços, explicar a variação do valor por tonelada, mas os números expostos são suficientes para verificar que o aumento do custo da tonelada importada se dá com um aumento de tonelagem e diminuição do valor médio, tanto das matérias-primas como das máquinas e veículos. Quer dizer, .às maiores, embora ainda insuficientes, possibilidades do mercado internacional, corresponde a intensa procura do País para aumento da sua actividade e capacidade de produção.
Os stocks e equipamentos tendem a reconstituir-se e o abastecimento em matérias-primas melhora, dominando o movimento da importação, visto que, com menor valor unitário, lhes cabem em conjunto 67 por cento do valor total, contra 60 por cento em 1945.
O natural reforço deste movimento deverá - através de movimentos intermediários e secundários, que não deixarão de analizar-se a seguir - fazer diminuir o poder de compra livre e o peso relativo do meio circulante.
Se no quadro n.° 3 verificarmos o movimento em 1946 das contas com influência na emissão, veremos que, ao passo que diminuiu sensivelmente o aumento da conta de ouro e disponibilidades em moeda estrangeira, a carteira comercial e empréstimos e os depósitos no banco emissor tomam de novo um lugar entre os elementos determinantes do aumento de circulação de notas.
Só as rubricas de «Diversos» e «Depósitos do Tesouros acusam excesso de entradas sobre saídas de notas e, portanto, são factores de diminuição da circulação.
Pode parecer que estes números revelam o início de um aumento da circulação devido a causas internas e que, pondo em acção poder de compra em potência, pesará sobre o mercado.
Trata-se, porém, apenas de um fenómeno de transição, em que já sã desenham, como vamos ver, os movimentos fundamentais para que tende.
3. Durante o ano de 1946 são os seguintes os movimentos, em milhares de contos, dos depósitos bancários (total, excluídos os depósitos de bancos o banqueiros no Banco de Portugal e Caixa Geral de Depósitos), carteira
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comercial e empréstimos (total), caixa (excluído o encaixe-ouro do Banco de Portugal) e circulação fiduciária:
[Ver Gráfico na Imagem]
Por este quadro se vê que, ao passo que a circulação aumentou entre Janeiro e Setembro 500 milhares de contos, ou 6,3 por cento, os depósitos subiram 1:140 ou 5,7 por cento, e a carteira comercial e empréstimos 1:471 ou 19,8 por cento.
Quer dizer: a circulação aumentou em valor e proporção muito menor do que o crédito distribuído e foram os depósitos que deram contrapartida a este. O aumento de circulação não excede proporcionalmente o seu movimento estacionai habitual antes da guerra. O gráfico VI mostra-nos, de facto, a evolução anual da circulação em alguns momentos típicos: um ano anterior à guerra (1936), o ano de 1939, como ano de transição, os anos de 1941, 1942 e 1943, como anos de pleno desenvolvimento da inflação, e os anos de 1945 e 1946. Nestes dois, mas sobretudo no último, é já evidente a semelhança com a curva de oscilação anual anterior à guerra, o que denota que a circulação deixa de obedecer a causas externas de aumento e reage já, como habitualmente, aos movimentos internos da economia.
Nos depósitos dá-se fenómeno semelhante (gráfico vil). Depois dos movimentos fortemente ascensionais de 1941-1942, a curva do seu aumento tende a atenuar-se em 1946, e, embora não apresente a baixa habitual do fim do ano, mostra a tendência para a estabilidade, sendo o aumento apenas devido a aumento de crédito pedido aos bancos.
A comparação das curvas mostra-nos assim a tendência para a estabilidade - cessação nítida dos fenómenos de inflação do poder de compra observados com o seu maior desenvolvimento nos anos de 1941 a 1943.
Ao mesmo tempo verifica-se na curva de preços do gráfico:
1.° A tendência nítida para a baixa dos preços por grosso;
2.° A menor alta dos preços de retalho.
Sabida como é, a precedência dos movimentos dos preços por grosso sobre os dos preços de retalho, fenómeno que neste mesmo período de 1939-1946 se verifica durante a fase inicial de alta, dificilmente poderá deixar de ter-se o facto como prenúncio de uma mudança de conjuntura.
4. Poderá, porém, esta situação, derivada da inversão de movimentos da economia, trazer como fenómeno secundário, que, afinal, se autonomiza, uma verdadeira inflação fiduciária do tipo 1916-1922?
Que significa e que consequências tem o aumento do crédito distribuído pela banca?
Poderá esta, ao aumentar a distribuição de crédito para financiar o comércio importador e ajudar o País a saldar os déficit da balança comercial e de pagamentos, fazer diminuir as reservas da circulação e responsabilidades u vista do banco emissor sem que estas se reduzam?
Como se relacionam entre si as diversas contas cujos movimentos foram notados, no momento de reconversão em que, parece, estamos a entrar francamente?
Dos números citados deduz-se que foi no crédito que em parte apreciável a economia interna encontrou os recursos necessários ao aumento do seu abastecimento em matérias-primas e equipamentos, já que os depósitos não diminuíram, antes aumentaram, porventura, em parte, com o produto desse mesmo credito. Foi assim ao redesconto e à sua posição de caixa que a bania foi buscar recursos para o aumento da distribuição de crédito, o que nas contas do banco emissor se traduz, como vimos, por uma diminuição da rubrica de depósitos e um aumento da carteira comercial.
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Por isso a posição de caixa baixou, 110 período considerado, mais de 500 milhares de contos, mantendo-se em todo o caso entre disponibilidades e depósitos - excluídos os do Estado no Banco de Portugal - uma proporção de 56,1 por cento contra a proporção mínima legal de 20 por cento. Quer dizer que a banca - folgada de caixa - faz ainda por força desta um aumento de crédito, mas não se atém - o aumento da carteira comercial do Banco de Portugal o mostra - à proporção legal, antes a deseja - conhecedora do movimento de reconversão e suas consequências - muito superior a ela.
É que na verdade a possibilidade de criação de crédito pela banca particular é limitada pelas suas disponibilidades de caixa e pela necessidade de manter nelas a margem de segurança suficiente. Esta está por isso praticamente sempre acima do mínimo legal de 20 por cento, atingido o qual não pode haver aumento de crédito sem aumento proporcional dos depósitos e toda a diminuição de depósitos impõe uma diminuição proporcional no crédito. Quer isto dizer que, atingido o limite de segurança - o legal ou o acima dela administrativamente estabelecido pêlos bancos-, cessa a possibilidade de criação suplementar de crédito por parte destes, visto que essa criação, na hipótese-limite, aumenta os depósitos em montante igual ao crédito, quando para que a proporção se mantivesse deviam aumentar em proporção superior.
Pela mesma razão, a diminuição de depósitos não importará restrição de crédito enquanto a caixa se mantiver acima do limite de segurança, mas como representa uma parte apenas dos depósitos, a diminuição destes acarreta sempre uma diminuição mais que porporcional na caixa e, portanto, uma limitação da capacidade de distribuição do crédito até ao momento em que, atingido o mínimo, obriga a uma restrição das operações activas.
Assim, 100 contos de depósitos distribuídos em partes iguais entre crédito e disponibilidades de caixa dão apenas, apesar de a caixa ser superior em 150 por cento ao mínimo legal de 20 por cento, para um aumento de 60 por cento na distribuição de crédito ou - em estabilidade deste - para 37,5 por cento de redução nos depósitos.
Por isso, uma vez que a caixa dos bancos não seja alimentada por novos depósitos, a expansão- do crédito como veículo de circulação tenderá a cessar, para dar o passo a uma restrição quando os depósitos diminuírem.
5. Como se reflectem estes movimentos e fenómenos na situação do instituto emissor?
Como vimos, a banca particular deposita directa ou indirectamente no banco emissor os seus excessos de fundos e a ele vai buscar - através do redesconto - o dinheiro suplementar de que carece para manter a sua posição de caixa.
Mas o banco emissor tem também limites à sua capacidade de distribuição de crédito, visto que tem de manter uma proporção entre a sua reserva-ouro e as responsabilidades totais.
Por isso mesmo toda a venda de ouro ou divisas para pagamentos no estrangeiro ou para fornecimento ao mercado interno restringe a sua capacidade de emissão, quer esta derive da concessão de crédito, quer do levantamento de depósitos.
Pelo que antecede, a venda de ouro ou divisas produz sempre, directa ou indirectamente, uma diminuição de circulação, porque
ou a venda é feita em contrapartida directa de notas que diminuem as responsabilidades do banco emissor; ou ó feita em contrapartida de depósitos que implica diminuição de
responsabilidades sem aumento da circulação;
e num ou noutro caso importa, pela redução das suas reservas, diminuição na capacidade livre de distribuição do crédito.
A interposição da banca particular na realização das operações também não pode inverter nem sequer neutralizar esses movimentos naturais, porque:
à utilização de depósitos pelo público para pagamento de ouro ou divisas estrangeiras corresponde, não um aumento de circulação, mas uma diminuição das disponibilidades da banca - dinheiro ou depósitos no banco emissor -, que, longe de pesar sobre o mercado interno como maior poder de procura, diminui a capacidade de concessão suplementar de crédito;
a concessão de créditos para a aquisição de ouro ou divisas é limitada ao excesso de disponibilidades de caixa e apenas temporariamente evita a diminuição de circulação ou depósitos que terá de dar-se quando se atinja o prazo de liquidação;
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e como no instituto emissor a diminuição de reservas implica uma diminuição da capacidade livre de distribuição de crédito, a banca vê também limitada a possibilidade de, pelo redesconto, poder expandir, em regime de procura intensa de ouro ou divisas estrangeiras, a sua criação de meio circulante.
Que a compra de ouro ou divisas se faça directamente por troca de notas em circulação, ou por utilização de depósitos ou, indirectamente, por utilização do crédito, ela implica sempre, portanto, uma restrição directa ou indirecta da circulação monetária interna.
Nos números que atrás se apontaram vê-se já com suficiente nitidez a transição da superabundância de poder de compra determinada pela venda de ouro ou divisas ao banco emissor para a sua restrição em virtude da inversão de tendências na balança de pagamentos.
6. Em que condições nos encontra, sob o ponto de vista monetário, esto, mudança de conjuntura?
Têm o banco emissor e a banca particular reservas suficientes para lhes fazer face?
Quanto ao banco emissor, sabe-se que as suas reservas legais não só estão inteiramente preenchidas por ouro e valores-ouro como as reservas reais excedem em muito o mínimo estatutário, cobrindo a maior parte da circulação e responsabilidades à vista.
Tem assim possibilidade de fazer face às necessidades em moeda estrangeira indispensável ao abastecimento, reconstituição de stocks e reutensilagem do País, sem perturbações de câmbios nem abalo para a sua estrutura.
Quanto à banca particular, tem disponibilidades de caixa que cobrem cerca de 50 por cento dos seus depósitos à ordem, ou 60 por cento se a estes deduzirmos os do Estado no Banco de Portugal e, além disso, carteiras por vezes avultadas em títulos do Estado, que facilmente pode liquidar, visto que este tem, por seu lado, disponibilidades de tesouraria que lhe permitiriam, se a situação do mercado o exigisse, fazer reduções substanciais da sua dívida.
Quer isto dizer que a estrutura monetária tem, quer no Estado, quer na organização bancária, reservas e elasticidade suficientes para fazer face aos fenómenos de transição que pudessem desenhar-se pela reconversão económica, seus naturais efeitos sobre a balança de pagamentos e sobre o mercado monetário.
Isso foi fruto de se ter observado uma política prudente, pela manutenção das regras técnicas que devem presidir à emissão, pela política de crédito seguida, quer pelo Estado, quer pela organização bancária, pela fixação do poder de compra realizada por meios indirectos mais do que por medidas directas de restrição, que, abalando a confiança do público, afectariam necessariamente o valor da moeda.
Esta mantém assim íntegro o seu valor em relação ao ouro e às outras moedas e está em condições de assegurar, sem perturbações cambiais, a comunicação do mercado interno com o mercado internacional.
7. Julga-se de facto impossível separar o problema dos valores interno o externo da moeda, a não ser em condições de isolamento da economia nacional, que nem são desejáveis - dependentes como somos do estrangeiro, quer para abastecimentos, quer para colocação de (mercadorias da produção nacional - nem serão possíveis em face de tendências que se desenham para a reconstituição do comércio internacional.
Sem prejuízo das limitações que imponham as necessidades fundamentais de cada país na defesa da sua capacidade de trabalho e das suas possibilidades naturais de produção, tende a restabelecer-se um mercado internacional e um regime multilateral de liquidações e pagamentos, através doa quais as diversas economias serão outra vez em grande medida solidárias.
A nossa moeda tem, por virtude da política adoptada, das suas garantias, da confiança geral que uma e outras lhe granjearam, todas as condições necessárias para servir a economia nacional nas novas condições que vierem a criar-se.
Outra teria sido a situação se, por virtude de restrições de ordem monetária ao comércio externo, de medidas drásticas que afectassem a confiança na moeda ou no sistema bancário, pela inobservância dos princípios de técnica monetária de tempos normais, se tivesse isolado a economia nacional, fazendo-a viver apenas sobre si mesma e assegurado assim uma circulação monetária autónoma que, vivendo equilibrada com uma limitada economia interna, não exprimiria no entanto possibilidades de restabelecimento e expansão das relações comerciais externas quando terminasse o conflito.
Outra teria sido ainda a situação se, por medidas monopolistas e intervenções excepcionais na actividade produtora e no comércio, o (Estado tivesse tomado sobre si, com o directo proveito do comércio externo, a responsabilidade exclusiva, não apenas da sua direcção, mas do seu exercício.
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Julga-se por isso que a política seguida, não com a preocupação única c erecção em regra das anormais condições de guerra, mas na convicção de um regresso a condições normais ou, pelo menos, do restabelecimento de condições compatíveis com o comércio internacional e a expansão da nossa produção e da nossa economia, foi a que mais convinha às necessidades da reconversão que já se avizinha e desenha.
VI
Conclusão A situação monetária e os preços - Perspectivas
1. Vimos não poder afirmar-se que a evolução dos preços tenha sido dominada exclusivamente pelo factor monetário, porque:
1.° A evolução da circulação foi dominada pela dos preços no princípio da guerra, e, depois, pela do comércio externo, não tendo, pois, actuado como factor primário da alta;
2.° A comparação das curvas da circulação e dos preços não mostra a existência de relações directas entre os dois fenómenos;
3.° Tendo-se mantido perfeita estabilidade cambial, a evolução dos preços internos mantém-se abaixo da alta dos preços de importação e é, em parte, reflexo dela;
4.° A acção da circulação sobre os preços ter-se-á assim dado como fenómeno secundário, por ser veículo de um aumento de rendimentos devido à alta dos da exportação e ao aumento de custo dos produtos;
5.° A circulação foi inteiramente coberta pelas reservas que asseguram o valor efectivo da nossa moeda como meio universal de pagamentos em relação fixa com o ouro.
Em suma: constata-se a existência de um desequilíbrio monetário, pelo excesso de poder de compra nacional resultante do aumento de rendimentos em ouro e moeda estrangeira convertidos pelo banco emissor em moeda nacional. Apesar da política bancária e da política financeira do Estado ter sido dirigida no sentido de fixar esse poder de compra, ele pesou sobre o mercado, porque, em face da restrição de abastecimentos fundamentais, contribuiu suplementarmente para a alta de preços que outros factores, como o encarecimento de produtos de importação e a alta de custo da produção nacional, inicialmente determinaram.
Não houve, assim, inflação de crédito, mas inflação da moeda-ouro, pelo que a acção sobre os preços foi a que resultou da maior procura e maior poder de compra, e não, como em 1916-1922, de uma diminuição do valor atribuído ao meio circulante - ao escudo. Daí a alta de preços se dar sem prejuízo de uma perfeita estabilidade cambial.
2. Quanto às perspectivas do valor da moeda e dos preços, verifica-se:
1.° A impossibilidade de uma inflação secundária que se autonomize e determine, a par do consumo das reservas monetárias do País em abastecimentos exteriores, um aumento de circulação efectiva capaz de pesar sobre os preços do mercado interno e anular o efeito daqueles abastecimentos;
2.° A correlação entre o poder de compra interno e a utilização de reservas para pagamentos no exterior, de onde resultará que esta utilização - diferida durante a guerra pelas dificuldades do comércio internacional - trará a absorção do poder de compra que o representa e sua substituição na economia do País por bens de consumo ou bens de capital;
3.° As reservas-ouro reunidas asseguram a possibilidade de largos pagamentos em ouro, sem prejuízo da estabilidade cambial, pelo que estamos aptos a ir buscar ao mercado internacional, à medida que se normalize e os seus preços desçam abaixo dos nossos, o suplemento de abastecimentos que nos falta e que não deixará de reagir sobre os preços internos;
4.° A estrutura monetária do País está, por seu lado, em condições de fazer face à conversão do capital líquido que se encontra actualmente sob a forma de depósitos e reservas em dinheiro ou títulos, em capital real - equipamentos para o aumento e melhoria da produção do País;
5.° Os preços serão assim dominados por dois factores - a evolução do mercado internacional e o volume e custo da produção do País, sendo do aumento desta e da diminuição do seu custo pela melhoria de técnica que depende a compatibilidade de novos níveis de preços com uma melhoria do nível geral de vida.
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3. As constatações que antecedem, e que se julgam fundamentadas, esclarecem finalmente as dúvidas levantadas quanto a oportunidade e necessidade de medidas monetárias especiais na actual conjuntura, como processo de se conseguir estabilidade de preços.
Nota-se, em primeiro lugar, que, sendo a alta de preços expressão da situação anómala do sector mercadorias e não traduzindo, por falta de uniformidade e directa correlação com a circulação, uma desvalorização monetária, a estabilização não pode alcançar-se por meios monetários, que necessariamente deixariam subsistir as disparidades existentes.
Basta lembrar que, nos produtos nacionais destinados à alimentação, as variações de índice de preços no produtor vão de um mínimo de 71 por cento a um máximo de 336 por cento.
Subsistindo as causas que determinaram a disparidade, não é por simples adequação do valor nominal da moeda a um nível dado que os desequilíbrios deixarão de dar-se.
Enquanto se mantiver o deficiente abastecimento, a falta de comunicação entre mercados, a impossibilidade de reacções livres da produção e do comércio, enquanto a lei de substituição não puder agir largamente - e isso será impossível enquanto se mantiver, como se manterá, embora em atenuação progressiva, a actual Limitação da oferta -, a simples mudança de expressão nominal da moeda não terá acção, nem no nível médio real dos preços nem nas disparidades entre eles existentes.
Por outro lado, e porque a estabilização legal não pode fazer-se sem uma revisão do valor-ouro da moeda, ela implicaria -a estabelecer-se como valor efectivo o que corresponder ao nível médio de preços actuais- uma diminuição desse valor-ouro, e perda, portanto, de parte dos capitais tidos em moeda, com um lucro de emissão que, não devendo caber ao instituto emissor, caberia ao Estado; representaria uma expropriação de parte dos capitais monetários do País que se não julga justificada.
Procurará explicar-se um pouco mais detidamente esta afirmação.
4. A estabilização supõe a definição de um novo e efectivo padrão monetário em substituição de outro apenas nominalmente mantido.
Essa definição de um novo padrão monetário tem de fazer-se já, como tem sido a prática, em função do ouro ou de uma moeda convertível em ouro, já, como se tem teoricamente admitido mas ainda se não conseguiu tornar efectivo, em função de um poder de compra interno estatisticamente determinado p m relação a certos grupos de mercadorias.
De uma maneira ou de outra, a estabilização não pode deixar de abranger - a não ser que, como vimos já, se conceba uma economia inteiramente fechada- tanto o valor interno como o externo da moeda, quer dizer, tanto os preços internos como o câmbio. Num caso - o da estabilização em relação ao ouro - pela projecção geral deste como padrão de valores e instrumento final de liquidação, no outro pelo jogo da paridade dos poderes de compra que, teoricamente, fixará o câmbio e o fará oscilar em função do poder de compra interno de cada uma, expresso em mercadorias idênticas ou de igual valor intrínseco.
Não é necessário tomar posição sobre a viabilidade prática de uma definição de padrão monetário em mercadorias, nem sobre os meios de conseguir a sua estabilidade, para se verificar que, mesmo nesse caso, uma estabilização local, puramente interna, da moeda implicava necessariamente a revisão do seu valor externo.
Hás, se a actual definição do padrão monetário é feita em ouro e há as reservas necessárias para o tornar efectivo, impossível seria resolver por via monetária os actuais desequilíbrios internos de preços, estabilizando-os no seu desconexo nível actual, sem fazer simultaneamente uma revisão do valor-ouro do escudo.
Definir um novo padrão monetário na base de uma desvalorização dada em relação aos preços internos do período anterior à guerra sem abranger o câmbio, equivaleria a fixar o próprio valor do ouro em relação às mercadorias, o que não está, evidentemente, na nossa mão.
A desvalorização em relação ao valor da moeda antes da guerra teria assim de fazer-se por modificação do padrão monetário, o que implicaria necessariamente um agravamento cambial e o correspondente encarecimento da importação, com as suas consequências no mercado interno; quer dizer, longe de estabilizar os preços actuais, provocaria imediatamente a sua proporcional elevação sem qualquer correcção das disparidades de preços existentes.
Apenas o Estado lucraria imediatamente, porque lhe caberia o excesso de valor das reservas resultante da operação à custa da desvalorização correspondente de todos os capitais líquidos nacionais e de todos os valores de capital expressos em moeda portuguesa.
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5. Não se conhece até agora estabilização monetária que não tenha sido precedida de estabilização de facto e equilíbrio real entre o valor interno e externo da moeda.
A estabilização é sempre a consagração legislativa de um equilíbrio de facto alcançado que se pretende consolidar.
A nossa situação monetária caracteriza-se por um excesso de poder de compra livre, em face, mesmo, do nível médio de preços actual, uma perfeita estabilidade cambial e disparidades internas de preços e rendimentos que resultam de factores puramente económicos, como a restrição da oferta, a alta de custos externos e o insuficiente abastecimento nacional, e de factores monetários destes derivados. Não se vê como o remédio da situação possa estar numa política monetária dirigida à estabilização interna com manutenção do valor-ouro da moeda, nem que possa ser aconselhável desligá-la do ouro ou desvalorizá-la em relação a este, fazendo-a assim perder o que tem sido esteio do seu valor e tem evitado a ligação directa dos preços com o volume da moeda em circulação.
Começou já o movimento de regresso no aumento da circulação e dos depósitos e pela utilização das reserva-ouro para abastecimento do País em bens de consumo e bens de capital. Será o momento em que a reconversão se desenha no sentido de restabelecer naturalmente o equilíbrio em toda a parte rompido pela guerra, o azado para fazer, sem as condições técnicas necessárias, uma estabilização legal?
Sem se afirmar -pois será impossível prevê-lo- que os preços devam regressar ao nível de antes da guerra, uma coisa se tem como certa: é interesse do País que o equilíbrio se restabeleça no mais baixo nível de preços possível, o que representará a defesa de capitais expressos em moeda e, em face da estabilidade cambial existente, a da nossa produção e exportação.
Nesse equilíbrio têm de entrar rendimentos, salários, preços e moeda, não por ajustamento desta às contingentes e díspares realidades actuais, mas pela sua natural adequação aos movimentos de mercadorias e capitais em que se traduzirá a reconversão.
Mas não serão apenas os factores internos que influirão nos preços. Eles dependerão também directamente dos preços internacionais traduzidos em ouro -seja qual for o mecanismo que se estabeleça para assegurar as liquidações entre países -, pois não será possível à nossa economia viver fechada à concorrência externa e alheia ao nível internacional de preços sem prejudicar as suas próprias possibilidades de produção e expansão.
Por isso o nível real dos preços é o que for dado pela evolução da economia geral, também não alheia - antes causa fundamental - das perturbações sofridas durante o período de guerra.
A política monetária seguida colocou-nos em condições de podermos não só comunicar livremente com todas as outras economias, como atenuar as oscilações do período de transição e nos ressarcirmos sem a perda de substância que seria exportar forçadamente para liquidar pagamentos no estrangeiro - dos atrasos sofridos pelo abastecimento e pela utensilagem nacional.
Estamos assim em condições de pôr os preços internos ao nível dos preços internacionais, e isso será suficiente para os fazer baixar quando estes se normalizem. E não há que defender o nível actual de preços contra uma justa baixa, forçando, em nome dos interessas da produção, uma estabilização que cristalize os seus custos actuais, porque eles traduzem as mais das vezes deficiências na organização, na técnica e na utensilagem que há que corrigir.
Para as medidas de defesa contra colapsos de transição, para a atenuação e regularização dos movimentos intermediários, há também possibilidades suficientes na capacidade de crédito do sistema bancário.
6. É, pois, fundamentalmente da utilização do capital líquido acumulado que depende em grande parte o futuro da economia nacional e o nível de vida geral do País.
Há que dar-lhe aplicação útil para o desenvolvimento e melhoria da sua produção, dependendo da baixa de custos que proporcionem, não só a baixa de preços e seu nivelamento com os preços internacionais, como a compatibilidade destes com melhorias de distribuição que não deixam de procurar-se, como ainda a manutenção de um comércio exportador que atenue o desgaste de capital líquido que a reutensilagem impõe e aumente, por isso, a capacidade de reequipamento do País.
Começada a obra de grande reutensilagem pelo plano de electrificação nacional, já em pleno curso de execução, e que resolverá um dos fundamentais problemas da Nação - o da energia -, pela renovação e aumento já iniciados da marinha mercante, estando para breve início a reorganização dos trans-
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portes internos, sem falar nos vastos planos em execução pelas obras públicas e destinados a melhorar a produção do País, cabe também à iniciativa privada - e nela se confia - mobilizar, na melhoria da sua capacidade e da sua técnica, os capitais de que a Nação dispõe.
Da sua boa ou má aplicação - em bens produtivos e úteis ou em gastos supérfluos - depende em grande parte o futuro dos preços e a resistência à concorrência internacional que se aproxima.
Sendo muito o que há ainda a fazer, o capital acumulado tem de poupar-se, e, por isso mesmo, não é da restrição, mas da expansão de exportações, que depende o valor efectivo das reservas de que dispomos para intensificar o apetrechamento e a reforma dos métodos de produção.
7. Será, pois, função da evolução geral o futuro dos nossos preços. Isso não quer disser que não tendam já a atenuar-se anomalias, nem que a política geral não deva dirigir-se para a procura de uma estabilidade de facto, equilibrada com o valor externo da moeda. Não se julga, porém, oportuno nem possível tentá-la, quanto ao valor interno, à custa do valor cambial.
Caminhar para o equilíbrio de salários, rendimentos e preços relativos de diversas mercadorias e serviços não será cristalizar a situação actual, mas acompanhar a evolução que se desenha por forma a que a normalização dos preços seja suportável para a produção e traga uma melhoria de distribuição geral do dividendo da Nação, afectada, por perturbações derivadas da guerra que política financeira e social atenuou, mas não conseguiu evitar completamente.
8. Em suma: a política monetária seguida foi a da possível fidelidade ao padrão-ouro, em que ainda se confia, e se, não vê sofrer mais que adaptações e reformas técnicas.
Não parece que suja agora - quando o seu funcionamento nos encaminha para o restabelecimento do interrompido equilíbrio - o momento de o abandonar.
JOÃO PINTO DA COSTA LEITE.
Ministro das Finanças
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QUADRO N.º 1
Importação, exportação e valor por tonelada
(Milhares de contos e de toneladas)
[Ver Quadro na Imagem]
QUADRO N.º 2
Banco de Portugal
Outras responsabilidades-escudos à vista
(Milhares de contos)
[Ver Quadro na Imagem]
Notas em circulação
(Milhares de contos)
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QUADRO N.º 3
Banco de Portugal
Movimento das contas que exprimem aumento ou diminuição de circulação
(Em milhares de contos)
[Ver Quadro na Imagem]
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22 DE FEVEREIRO DE 1947 625
QUADRO N.º 4
Bancos, casas bancárias e caixas económicas
Depósitos (excluídos os depósitos de bancos e banqueiros)
[Ver Quadro na Imagem]
QUADRO N.º 5
Bancos, casas bancárias e caixas económicas
Carteira comercial e empréstimos diversos
[Ver Quadro na Imagem]
QUADRO N.º 6
Bancos, casas bancárias e caixas económicas
Depósitos e caixa (a)
[Ver Quadro na Imagem]
(a) Extraído do relatório de contas públicas do 1945. Nos depósitos estão abatidos, além dos depósitos em outros bancos, os depósitos obrigatórios da Caixa Geral do Depósitos e os depósitos do Estado no Banco de Portugal.
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QUADRO N.º 7
Receitas do Estado
Contribuição industrial, imposto sobre lucros de guerra, direitos de Importação e exportação
(Milhares de contos)
[Ver Quadro na Imagem]
QUADRO N.º 8
Empréstimos emitidos desde 194O a 1945 (excluídos os destinados a conversão)
[Ver Quadro na Imagem]
QUADRO N.º 9
Situação do tesouro Público
(Em milhares de contos)
[Ver Quadro na Imagem]
(a) Conta corrente com a Caixa Gorai de Depósitos, Crédito e Previdência.
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GRÁFICO I
Comércio especial de 1900 a 1945
[Ver Quadro na Imagem]
GRÁFICO II
Comércio especial
[Ver Quadro na Imagem]
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GRÁFICO III
Números índices (médias trimestrais)
JULHO DE 1914-100
[Ver Quadro na Imagem]
GRÁFICO IV
Números índices (médias trimestrais)
[Ver Quadro na Imagem]
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GRÁFICO V
[Ver Quadro na Imagem]
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GRÁFICO VI
Oscilação anual da circulação fiduciária
[Ver Quadro na Imagem]
GRÁFICO VII
Oscilação anual dos depósitos bancários
[Ver Quadro na Imagem]