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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 91
ANO DE 1947 26 DE FEVEREIRO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.° 91 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM DE FEVEREIRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira
SUMÁRIO:- O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 55 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado, com emendas, o Diário das Sessões n.° 88. Deu-se conta, do expediente.
O Sr. Presidente anunciou que estavam na Mesa os elementos requeridos a vários Ministérios pêlos Srs. Deputados Ernesto Subtil, Carlos Borges, Figueiroa Rego, Nunes Mexia e Mário Madeira e que os ditas elementos iam ser entregues àqueles Srs. Deputados, constando deste Diário, a pedido do Sr. Deputado Alçada Guimarães, os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia ao Sr. Deputado Figueiroa Rego, por se relacionarem com o problema das lãs, assunto que entrará brevemente em discussão.
O Sr. Presidente informou que estavam na Mesa, enviados pela, Presidência do Conselho, e para os fins do § 3.° do artigo 109.º da Constituição, os n.º 26, 27, 28, 29, 33, 39 e 42 do Diário do Governo, respectivamente de 1, 3, 4, 5, 10,17 e 22 do corrente, contendo os decretos-leis n.º 36:123, 36:124, 36:132, 36:134, 36:136, 36:142, 36:144, 36:145, 36:147, 36:148, 36:149, 36:155, 36:158, 36:161 e 36:162.
Os Srs. Deputados Proença Duarte e Carlos Borges trataram largamente dos desastres ocasionados pelas cheias dos nossos rios, especialmente das que se verificaram ultimamente na região do Ribatejo.
O Sr. Deputado Cancela de Abreu enviou para a Mesa um requerimento no sentido de que à proposta de lei sobre o imposto sucessório e o custo dos inventários orfanológicos seja reconhecida a urgência, tendo-se fixado o prazo de dez dias para a. Câmara Corporativa dar o seu parecer.
Os Srs. Deputados João do Amaral e Ribeiro Cazaes foram autorizados a depor em juízo como testemunhas.
Ordem do dia. - Terminou o debate acerca do decreto-lei de protecção ao cinema nacional, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Mendes Correia, Mário de Figueiredo e Botelho Munia, após o que o referido decreto-lei foi ratificado, com emendas, e transformado em proposta de lei, devendo por tal motivo baixar à Câmara Corporativa, que, a requerimento do Sr. Deputado Pinto Coelho e por votação da Câmara, deverá dar o seu parecer no prazo de dez dias.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 45 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 45 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Finto dos Beis Júnior.
Alexandre Alberto de Sonsa Pinto.
Alexandre Ferreira Finto Basto.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Proença Duarte.
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Diogo Pacheco de Amorim.
Enrico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Couceiro da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique Carlos Malta Galvão.
enrique Linhares de Limo.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Indalêncio Froilano de Melo.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves,
João de Espregueira da Bocha Páris.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquivei.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Nunes de Figueiredo.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Mendes de Matos.
Luís Pastor de Macedo.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Borges.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Spratley.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 74 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 55 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.° 88.
O Sr. Rocha Paris: - Sr. Presidente: pedi a palavra para fazer as seguintes rectificações ao Diário das Sessões n.° 88:
A p. 539, col. 2.ª, 1.49.ª onde se 16: «movimento», deverá ler-se: «movimentação do milho», e na mesma coluna, 1.50, onde se lê: «em que foi abundantíssima», deverá ler-se: cem que a colheita foi abundantíssima»;
A p. 540, col. 1.ª, 1.24.ª, acrescentar, em seguida ao ponto final, o seguinte período: «Melgaço: «Informo que a colheita do presente ano deve exceder o dobro da do ano anterior, deixando portanto assim de existir justificação para as restrições na venda do milho Presidente».
Na mesma página e coluna Is. 34.a, 42.a e 46.a, acrescentar, depois do ponto final, a palavra: «Presidente»; na mesma página, 1.34.ª, depois de feita a rectificação acima indicada, e em novo período, acrescentar: Ponte da Sarça: «Tenho a honra de informar que esta Câmara deu a sua completa concordância à exposição feita por V. Ex.ª no Parlamento acerca do restabelecimento do mercado livre do milho.
O ano agrícola foi, de facto, excepcional quanto à colheita de milho, de maneira que não há razão para a restrição daquele produto. Presidente».
O Sr. Presidente: - Se mais nenhum Sr. Deputado deseja fazer qualquer rectificação ao Diário das Sessões n.° 88, considero-o aprovado, com as rectificações apresentadas pelo Sr. Deputado Rocha Paris.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Do Grémio Nacional de Cinemas apoiando as considerações dos Srs. Deputados Mendes Correia, Querubim Guimarães, Pinto Coelho e Antunes Guimarães no debate sobre o decreto de protecção ao cinema nacional.
Idêntico telegrama do Grémio Nacional de Distribuidores de Filmes Cinematográficos.
Subscrito por Judite Santos, Ernesto Noronha, José Aquino, Arnaldo Correia e Jorge Calçado, na qualidade de sócios do Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório, pedindo a regularização dos ordenados dos componentes da sua classe.
Oficio
Do Grémio da Lavoura de Almada e Seixal em que, rectificando o seu anterior ofício, apoia a representação dos grémios da lavoura alentejanos, sobre o problema das lãs, e não da Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, como por lapso foi escrito naquele primeiro ofício.
Representação
Subscrita pela comissão geral dos trabalhadores das construções e reparações navais, em que, resumindo as exposições já feitas às empresas Companhia União Fabril (estaleiros navais) Sociedade Geral, H. Parry & Son, Companhia Colonial de Navegação, Companhia Nacional de Navegação e Sociedade Argibay, pedem:
1) Um aumento geral de salários correspondente ao índice do agravamento do custo de vida;
2) Que este aumento seja igual para todas as categorias e profissões;
3) O aumento das capitações e uma melhor distribuição dos géneros; a justa estabilização dos preços.
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos fornecidos pelo Ministério das Finanças a pedido dos Srs. Deputados Ernesto Subtil e Carlos Borges; pelo Ministério da Economia, pedidos pêlos Srs. Deputados Figueiroa Rego, Nunes Mexia e Mário Madeira; pelo Ministério do Interior, pedidos pelo Sr. Deputado Querubim Guimarães; e, pelo Ministério das Obras Públicas, pedidos pelo Sr. Deputado Bustorff da Silva, elementos
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estes que vão ser entregues aos Srs. Deputados requerentes.
O Sr. Alçada Guimarães: - Sr. Presidente: desejo pedir a V. Ex.ª para fazer publicar no Diário das Sessões os elementos fornecidos pelo Ministério da Economia ao Sr. Deputado Figueiroa Rego, visto que, relacionando-se esses elementos com a questão das lãs, que vai ser tratada nesta Assembleia, o seu conhecimento interessa a todos nós.
O Sr. Presidente: - Está deferido o requerimento de V. Ex.ª Comunico à Câmara que se encontram na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, e para fins do § 3.° do artigo 109.° da Constituição, os n.ºs 26, 27, 28, 29, 33, 39 e 42 do Diário do Governo, respectivamente de 1, 3, 4, 5, 10, 17 e 22 do mês corrente, contendo os decretos-leis n.ºs 36:123, 36:124,36:132, 36:134, 36:136, 36:142, 36:144, 36:145, 36:147, 36:148, 36:149, 36:155, 36:158, 36:161 e 36:162.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Proença Duarte.
O Sr. Proença Duarte: - Sr. Presidente: é do conhecimento desta Câmara e de todo o Pais a situação em que se encontra neste momento toda a província do Ribatejo, situação que resulta de uma cheia extraordinária que assola os campos, destrói as searas e põe em risco grave muitas das populações que vivem na margem do rio.
Na verdade, Sr. Presidente, a despeito do realismo com que a imprensa descreve os vários episódios a que tem dado lugar a cheia do Ribatejo, só quem vive ali e está em contacto permanente com os interesses das populações e com as suas angástias pode avaliar toda a grandeza da tragédia, que assim se pode chamar, que sofre e suporta a província do Ribatejo.
Represento aqui. com outros ilustres colegas, o distrito de Santarém, por certo um dos mais prejudicados.
O problema do Ribatejo, sob o ponto de vista das inundações que periodicamente o assolam, tem carácter não simplesmente local, mas bem pode dizer-se que é um problema de carácter nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A província do Ribatejo é uma das mais ricas do País, ousa dizer-se. Na verdade, uma das populações mais laboriosas e mais activas vive a cultivar a terra com um entranhado amor e muito carinho, mas de tempos a tempos sobrevêm estas catástrofes, que destroem toda a riqueza e põem em risco, como já disse, não só a vida das populações que vivem dos campos, trabalhando e cultivando a terra, mas dos próprios agregados populacionais.
Por este motivo, eu disse que o problema não tem um carácter local, mas um carácter nacional, visto que esta repetição periódica das cheias é a causa, é a ruína de muita riqueza. É a ruína da economia privada, é a ruína de um grande sector da economia nacional.
Parece-me, Sr. Presidente, pelo que tenho ouvido e pelo que tenho lido, que esto problema do Ribatejo nunca foi encarado com aquele interesse e com aquele cuidado que devia merecer.
Nunca foi vista a obra do conjunto que é necessário realizar, e por vezes, a despeito de todas as solicitações e de todos os rogos dos interessados, a verdade é que os serviços, ou por falta de verba ou por qualquer outra circunstância, permanecem olimpicamente indiferentes e impassíveis perante reclamações justas e sensatas, que são ditadas pela experiência de longos anos de gerações que sucessivamente vêm verificando e observando as ruínas provocadas pelas cheias e as causas dessas ruínas.
Há quem entenda que as grandes cheias são um facto inevitável e inelutável e que contra ele nada há opor, se bem que outros entendam que é ainda possível regularizar o curso do Tejo e a passagem das águas pelas diversas planícies ribatejanas, regularizando primeiramente os seus afluentes que das Beiras vêm e se precipitam em catadupas no rio Tejo.
Opinam estes que essa regularização pode ser feita através de represas nesses afluentes que retenham as águas na época das grandes chuvas, para depois as irem lançando sucessivamente, de modo a que não cansem prejuízos e, antes, delas resultem benefícios para a irrigação dos mesmos campos.
Felizmente, embora talvez encarado o caso sob outros aspectos de interesse nacional, que o Estado Novo vem realizando e vai realizar obras de grande vulto, que, quero crer, hão-de fazer-se repercurtir no curso das águas do Tejo.
Vai construir-se uma grande represa no rio Zêzere, que albergará milhões de metros cúbicos de água e impedirá que ela se lance impetuosamente no Tejo nas épocas das grandes chuvas. Construiu-se uma barragem em Idanha-a-Nova e estão-se construindo outras barragens, sendo possível que assim se regularize um pouco o caudal do Tejo.
Mas quero chamar sobretudo a atenção do Governo para as pequenas obras de defesa e enxugo da região ribatejana.
Essas obras evitam as pequenas cheias, as chamadas asielas, as cheias de primavera, que vêm precisamente num momento em que os danos por elas causados são irreparáveis.
Pode dizer-se abertamente que as cheias já causaram milhares de contos de prejuízos, inutilizaram por completo as sementeiras do trigo e de fava, bem como de outros géneros, que estão feitas já em milhares de hectares de terreno. Todas essas sementeiras ficaram inteiramente debaixo de água e todo esse trabalho foi perdido, essas sementes inutilizadas, e Deus sabe se haverá novas quantidades de trigo para fazer novas sementeiras de trigo, se o tempo permitir.
Todavia a verdade é que já antes das primeiras cheias as primeiras águas que caíram transbordaram por falta de reparação nos diques e nas «bocas» ou «rombos» feitos nas margens do Tejo.
Ainda no ano passado o Grémio da Lavoura do Ribatejo, acompanhado de alguns lavradores, apresentou aos serviços hidráulicos uma petição para que fossem reparados os rombos que vão do Almonda à Ponte das Pereiras e o que vai até à Quinta de El-Rei.
São pequenos rombos, que até pela verba ordinária dos serviços se podiam reparar, e, apesar disso, não foram reparados, como disse, o ano passado. Qualquer cheia do Almonda precipita-se sobre as terras e vai inundar centenas de hectares, e dos mais ricos da região, causando prejuízos, sendo, pois, de esperar que os serviços tivessem feito essa reparação.
Pois, Sr. Presidente, estas reclamações, feitas da parte de entidades autorizadas, não lograram ser satisfeitas o ano passado, e Deus sabe se serão feitas no ano decorrente, porquanto ainda há dias a imprensa publicou o plano de hidráulica para 1947 e não vejo que fosse especialmente destinada verba para a reparação dos rombos da foz do Almonda até à Quinta de El-Rei e desde a foz do Almonda até ao porto das Pereiras.
Chamo a atenção do Governo para este facto.
Existe publicado um notável relatório elaborado pelo Sr. engenheiro Noronha de Andrade, director que foi da Direcção Hidráulica do Tejo, onde se aponta tudo
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quanto viu e observou em relação às cheias, de 1935 e 1936, que assolaram o Ribatejo; esse relatório aponta as deficiências dos serviços e da legislação, que, sendo antiquada, necessita de reforma.
Aponta o mal e preconiza remédios. Imputa ele a razão de ser desses males de que sofre o Ribatejo em parte a faltas do Estado, porque o Estado não tem procedido à limpeza, mas à limpeza completa, perfeita e fiscalizada das correntes de água pública, como lhe compete. Dai deriva, Sr. Presidente, que as águas do Tejo e as marés obstruem constantemente a entrada das valas particulares nos rios. Diz o Sr. engenheiro Noronha de Andrade que a falta de escoamento provém das deficiências dos particulares; mas, Sr. Presidente, eu quero crer que o mal provém precisamente da falta de obras por parte dos serviços do Estado, porque se torna inútil e improfícuo proceder à limpeza das valas se se souber de antemão que os rios não serão limpos e as portas de água se não farão. Além disso a limpeza dessas valas importa em centenas e centenas de contos, despesa que não pode ser comportada pela propriedade privada.
Também o Sr. engenheiro Noronha de Andrade, numa passagem do seu relatório, diz «que o Ribatejo tem estado desde há muito abandonado, quer pêlos serviços do Estado, quer pêlos próprios particulares».
Sr. Presidente: quem vive no Ribatejo verifica, por vezes, que há uma certa desconexão dos diferentes serviços públicos.
Assim, por exemplo, na estrada que atravessa de Tordo Alto para Samora Correia há um troço de, aproximadamente, 500 metros que foi rebaixado cerca de l metro ou 1m,5.
Daí resulta que as águas do Sorraia e as do Tejo, por virtude do seu refluxo, ameaçam constantemente a Lezíria Grande.
Ora nessa Lezíria Grande, que tem alguns milhares de hectares afectos a cultura intensiva e onde há pastagens, encontram-se hoje cercados pela cheia alguns milhares de cabeças de gado, em risco iminente de morrerem afogados, precisamente porque esse troço de estrada, que deve ter cerca de 500 metros, foi rebaixado e submergido pela cheia, e era o único ponto de saída desse
Se essa água consegue arrombar, como se teme a cada momento, um pequeno dique que defende a Lezíria Grande, não será possível salvar esses milhares de cabeças de gado que ali se encontram, e de salvar mesmo a vida de centenas de pessoas que trabalham amanhando a Lezíria Grande e na guarda dos próprios gados.
Não se compreende como em obras desta natureza, de tal vulto e de tal importância, que põem em risco tantas vidas de seres humanos e de animais, essas obras sejam realizadas sem que haja um acordo entre a Direcção de Estradas, que construiu a que vai de Tordo Alto a Samora, e a Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos. Se tivesse havido esse entendimento e essa colaboração, esse troço de 500 metros de estrada não teria sido rebaixado a ponto de poder ser submergido pelas águas da cheia.
Não há dúvida nenhuma, Sr. Presidente, de que as entidades responsáveis só têm deslocado neste momento ao Ribatejo para verificar a imensidade da tragédia que ali se está desenrolando.
Mas quer-me parecer que a oportunidade para olhar pêlos interesses em perigo, verificar quais as obras necessárias e urgentes a fazer não ó esta. Não é no momento em que toda a vasta planície ribatejana está imersa que isso se deve fazer. È depois, quando as cheias tiverem passado, que os serviços devem ir verificar os danos causados, os prejuízos sofridos e ver então a maneira possível e lógica de resolver o problema da. província do
Ribatejo, uma das mais ricas e férteis e das que mais contribuem para o bem-estar e desenvolvimento da economia nacional.
Temos técnicos, estou certo disso, temos gente nova empenhada em servir o País fora das repartições e da burocracia.
Há exemplos que o Estado Novo podo apresentar do técnicos agrícolas, agrónomos, regentes agrícolas e engenheiros que, por intermédio da Junta de Colonização Interna e outros organismos, andam por montes e vales estudando afincadamente, com largo aproveitamento para o País.
Não é só a obra de multas aos particulares que interessa, mas sim a grande obra de enxugo da província do Ribatejo, e essa obra só aos técnicos cumpre fazer, com as verbas necessárias.
São obras reprodutivas para a economia privada e para a economia nacional, e daqui quero prestar a minha homenagem a todas essas populações do Ribatejo que, com risco da própria vida, de dia e de noite, incessantemente, sem descanso, jogando a vida a cada momento, trabalham para reparar os rombos que a água vai fazendo, como acontece na povoação do Valado, que está sujeita à contingência de não se poder defender se o dique rebentar, porque não haverá embarcações possíveis para salvar toda essa gente, e às populações da povoação de Reguengo e de Pombalinho, onde se observa essa tragédia de toda a população ter de reunir-se numa única casa colocada mais alto e ali passar dias e noitos angustiosos sem ter um palmo de terra a descoberto e sem possuir meios de dali sair se essa casa ruir.
Quero prestar homenagem a esses campinos, dedicados servidores dos seus amos, que jogam a vida para lhes defender os haveres, os gados e as próprias terras, assim como aos próprios amos e proprietários, que, misturados com eles, procuram por todos os meios ao seu alcance defender a sua terra, os seus haveres e a vida dos seus serviçais.
Estou certo de que o Governo do Estado Novo não deixará, neste assunto, como em tantos outros de interesse nacional, de olhar para ele com os mesmos olhos com que tem olhado e resolvido tantos outros problemas de igual vulto nacional.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Carlos Borges: - Sr. Presidente: logo que entrei nesta sala, manifestei a V. Ex.ª o propósito de ocupar-me da calamidade que assola não só os campos do Ribatejo, mas uma vasta área do nosso País, em virtude da chuva diluviana que tem caído sobre ela.
Mas, dada a circunstância de que o Sr. Deputado Proença Duarte é o presidente da Junta de Província do Ribatejo, e portanto, em virtude da sua situação oficial, melhor pode falar em nome desse organismo do que eu, entendi dever deixar-lhe a precedência, precedência que também lhe era devida pela autoridade e pêlos conhecimentos profundos que manifestou das necessidades e dos interesses da região que, de certo modo, está sujeita à sua inteligente e dedicada direcção.
Associo-me, Sr. Presidente, à brilhantíssima exposição que o meu ilustre colega e Deputado pelo distrito de Santarém acaba de fazer à Assembleia.
Entendo, como ele, que realmente a região ribatejana, os campos do Tejo, os campos do Sorraia e os campos do Almonda não têm merecido aquele cuidado, aquela atenção e aquela defesa de que carecem para que esta calamidade das cheias não continue a fazer estragos e a provocar ruínas, de molde a causar paralisações de trabalho, que representam para o rico a perda dos seus
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haveres e para o pobre a falta de recursos, a miséria e a fome.
E o problema, Sr. Presidente, não é puramente local, não é apenas o do Tejo, o do Almonda ou o do Sorraia. Os campos do Mondego enfermam do mesmo mal; desde Coimbra a Montemor sofrem o mesmo destino.
Ora, Sr. Presidente, há que defender a terra, que dá o pão para nos alimentarmos e dá trabalho aos pobres para poderem viver. É preciso uma orientação de conjunto, e o mal não se poderá remediar sem um plano cuidadosamente elaborado.
O problema das inundações dos nossos campos está no assoreamento, não só dos grandes rios, mas principalmente das pequenas correntes, e o País assiste quase todos os anos aos mesmos acontecimentos, pelo facto de se não adoptarem as medidas necessárias, de modo a evitar futuros prejuízos e a recuperar os terrenos já perdidos.
As encostas não estão devidamente tratadas, lavram-se sem nenhum cuidado, deixam-se sem os antigos revestimentos, deixam-se à ganância e à incúria dos proprietários, e à mais pequena queda de água nos terrenos altos nós assistimos à sua queda, que vai provocar esses assoreamentos, que se não podem evitar com simples obras de dragagem ou limpeza.
O problema tem dois aspectos: o local e o geral.
Antes de se estar a gastar rios de dinheiro na recuperação de pântanos, custosamente feita, com vantagens problemáticas, a valorizar terrenos baldios de muito difícil recuperação sob o aspecto económico, valia mais gastar dinheiro, o dinheiro do País, nos rios, a procurar realizar essa obra fundamental que é a defesa das pequenas correntes de água por meio da defesa das encostas, e isso parece que já foi tratado quando se discutiu nesta Assembleia a lei do fomento nacional, que é das coisas mais perfeitas que uma assembleia política tem tratado em qualquer país.
As obras de desassoreamento de rios e valas são muito graves; há que atender à reparação dos valados, motas e diques e para isso deverá existir a mais estreita colaboração entre os serviços da Junta Autónoma de Estradas e a Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos.
Há que estabelecer a sua concordância de forma a que as obras possam servir ao mesmo tempo as duas finalidades, para o trânsito e para a defesa dos campos contra a invasão das águas.
É preciso que não se faça uma obra em prejuízo da outra.
Há, Sr. Presidente, que atender realmente à limpeza das valas e dos rios, mas por forma a fazer-se, não esporadicamente, mas sistematicamente e segundo um plano devidamente estudado.
Também não está certo que a fiscalização seja apenas exercida no sentido de multar os proprietários por porem uma cegonha ou picanço para irrigação de pequenas glebas, pois só causa irritações, mormente quando o custo da licença ó superior à renda do terreno a irrigar.
Uma fiscalização assim, repito, não serve para nada.
Daqui, Sr. Presidente, eu peço ao Governo que se estude em conjunto o problema das nossas correntes de água e que se tenha em atenção que as lezírias ubérrimas do Tejo, do Sado e do Mondego carecem de ser inteiramente e eficazmente defendidas contra as cheias excessivas das águas das respectivas correntes.
Mas não se esqueça também o Governo dos pequenos proprietários à beira das pequenas ribeiras torrenciais, cujas terras ficam periodicamente cobertas de areia e calhaus, e só com muito sacrifício dos proprietários podem ser recuperadas e restituídas à sua utilização económica. Para isso é necessário que se faça um plano completo, que se execute por escalões, mas dê maneira que o trabalho realizado hoje não possa ser prejudicado amanhã, isto
é, de maneira a que a obra que se produzir não fique inutilizada para o futuro.
Este, Sr. Presidente, é o meu ponto de vista, para o qual chamo a atenção do Governo.
Além do aspecto puramente material, sob o ponto de vista da água e da terra, material sob o ponto de vista da riqueza, há ainda outro aspecto para o qual não posso deixar de pedir ao Governo a sua atenção. É o aspecto das populações rurais, que estão a braços com uma grande crise.
Peço ao Governo que, através dos organismos competentes e com os recursos de que dispõe, acuda à miséria de muitos lares, à vida de muitos trabalhadores que não podem ganhar com o esforço do seu trabalho, do trabalho dedicado, pertinaz, paciente e heróico de todos os dias e de toda a hora, lavrando a terra, arrancando dela o seu próprio alimento e o nosso.
Para esses lares infelizes é que eu peço ao Governo todo o auxílio e protecção que for possível dispensar.
Essa protecção e esse auxílio hão-de ser secundados pêlos patrões, pois nunca tive conhecimento de que por virtude de uma cheia ou de uma inundação em que os trabalhadores rurais ficassem sem trabalho os proprietários rurais não lhes acudissem dentro das suas possibilidades e não fossem o melhor auxiliar do Estado para minorar a triste situação dos seus servidores.
Isto é o que peço em primeiro lugar ao Governo, porque é realmente o mais urgente. Primeiro, dar de comer a quem tem fome e suavizar um pouco a miséria do momento; depois, os grandes trabalhos, os grandes planos e a realização das grandes concepções, que começaram há cerca de vinte anos neste País.
Tenho fé em que o plano para a defesa das regiões agora assoladas há-de fazer-se, há-do realizar-se com a mesma inteligência, o mesmo carinho, a mesma dedicação e competência com que se tem realizado tanta coisa que parece já esquecida na memória dos nossos contemporâneos, daqueles que estão usufruindo todos os seus benefícios.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: mando para a Mesa um requerimento, que peço a V. Ex.ª o favor de submeter à votação da Assembleia.
É o seguinte:
«A importantíssima proposta de lei enviada à Assembleia Nacional pelo Sr. Presidente do Conselho em 20 do mês corrente foi remetida à Câmara Corporativa, que, nos termos regimentais, tem o prazo de trinta dias para dar o seu parecer. Mas, como este prazo termina com o da prorrogação da actual sessão legislativa, não seria possível esta Assembleia ocupar-se da proposta antes de encerrar os seus trabalhos.
Destina-se ela, porém, a impedir que o peso duma tributação excessiva e os encargos dos inventários orfanológicos, caindo periodicamente sobre os pequenos patrimónios familiares, pudesse contribuir para a sua dissolução. E realiza este grande objectivo isentando do imposto sobre sucessões e doações as heranças a favor dos descendentes até ao valor de 100 contos por cada interessado, e facilita o seu pagamento, como isenta de custas nos inventários orfanológicos as quotas-partes do meeiro e dos descendentes que não excederem 25 contos, e dispensa de selos e reduz de 60 por cento no imposto de justiça as quotas superiores a 25 contos, mas não excedentes a 100 contos.
Notando-se que, presentemente, da isenção daquele imposto apenas beneficiam, pelo decreto n.° 34:542, as heranças de valor total até 500$ e da isenção de custas os inventários de heranças do valor total de 2.000$,
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conclui-se que a proposta do Governo vem largamente ao encontro das aspirações do Pais, traduzidas pela Assembleia Nacional no § 2.° do artigo 4.° da lei n.° 2:010 e também durante a discussão da lei de meios de 1947.
Trata-se por consequência de uma proposta de lei notável, com larga repercussão e que em muito vem contribuir para a defesa dos pequenos patrimónios e, portanto, da família e da sua unidade.
Este simples enunciado é suficiente para demonstrar o decidido empenho que a Assembleia Nacional deve ter em dar a sua colaboração a tão notável empreendimento, e ainda no actual período legislativo.
Nesta conformidade, e nos termos e para os efeitos do artigo 35.° do Regimento, tenho a honra de requerer que a Assembleia Nacional considere urgente a proposta de lei em referência».
O Sr. Presidente: - Na penúltima sessão da Assembleia comuniquei à Câmara que estava na Mesa uma proposta de lei, enviada pelo Sr. Presidente do Conselho, sobre o imposto sucessório e as custas nos inventários orfanológicos.
O Sr. Deputado Cancela de Abreu requer agora que a Assembleia reconheça a urgência dessa proposta de lei, para o efeito de ser marcado à Câmara Corporativa um prazo dentro do qual ela tenha de dar o seu parecer.
Vou submeter à aprovação da Assembleia a urgência pedida pelo Sr. Deputado Cancela de Abreu.
Consultada a Assembleia, foi votada a urgência.
O Sr. Presidente: - Resta fixar o prazo para a Câmara Corporativa dar o seu parecer; proponho que seja de dez dias.
Posto à votação o prazo proposto pelo Sr. Presidente, foi aprovado.
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa dois pedidos de autorização da Assembleia para os Srs. Deputados João do Amaral e Ribeiro Cazaes poderem depor como testemunhas.
Informo a Câmara de que estes dois Srs. Deputados comunicaram que não vêem inconveniente para a sua actividade parlamentar na autorização solicitada.
Consultada a Câmara, foram autorizados.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente:-Informo a Câmara de que estou na disposição de, se for necessário, prorrogar esta sessão até que se conclua a discussão do decreto-lei de protecção ao cinema nacional, pelo que peço aos Srs. Deputados a fineza de se não retirarem antes de se proceder à respectiva votação.
Tem a palavra o Sr. Deputado Mendes Correia.
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: pedi a V. Ex.ª o uso da faculdade que o Regimento atribui aos Deputados que quiserem tomar pela segunda vez a palavra numa discussão deste género: Se assim fiz foi simplesmente porque no decurso da discussão ouvi algumas considerações que de qualquer modo suscitam da minha parte apoio ou reparo, com interesse, a meu ver, no esclarecimento da matéria.
Quando no ano passado o ilustre Deputado Sr. Pinto Coelho trouxe a esta Assembleia a sugestão da revisão da lei do recenseamento eleitoral, sobretudo para a extensão do voto feminino, fui dos Deputados que aplaudiram essa sugestão. E fui mais longe, afirmando que seria do mais alto interesse político que fossem discutidos os outros diplomas promulgados no período eleitoral, legislação a que chamei peri-eleitoral. Este ano já tive a alegria de ver o ilustre Deputado Sr. Dr. Cancela de Abreu promover aqui com largueza um debate sobre um daqueles diplomas, o referente ao habeas corpus. Aqui se discutiram abertamente, livremente, perante a Nação, perante todos, assuntos que nós não desejávamos, de qualquer modo, ocultos, vedados à crítica de todos os portugueses.
Entendo, relativamente ao debate que neste momento se estabeleceu, prevalecer o mesmo critério do seu subido interesse político, pois o cinema é uma das forças maiores, mais consideráveis, que podem agitar e mobilizar os espíritos e as multidões.
Mas, Sr. Presidente, o tempo de que disponho é curto e eu vou por isso circunscrever as minhas considerações a alguns pontos concretos.
Disse o ilustre Deputado Sr. Dr. Manuel Múrias que se tinha posto em relevo sobretudo o aspecto económico num assunto que nós devíamos encarar principalmente sob os aspectos educativo, moral e espiritual. Estou completamente de acordo no que respeita à primazia destes aspectos da questão do cinema, mas não podemos alhear-nos do aspecto comercial e económico do assunto. O cinema mobiliza, como já aqui se disse, capitais amplíssimos e, ao mesmo tempo, ele interessa hoje, profissionalmente, a um grande número de indivíduos, a um grande número de famílias. Não podemos abster-nos de considerar este facto.
O mesmo ilustre Deputado disse, quanto à produção nacional de filmes, que estamos em face de uma indústria em pleno desenvolvimento. À parte o último ano, lamento não poder concordar com S. Ex.ª, porque num sistema de coordenadas a produção cinematográfica portuguesa quasi se pode, até agora, representar por uma recta horizontal...
O Sr. Manuel Múrias: - É de 1 para 5. De 1 em 1931 e de 5 em 1945. Será isto horizontal?!...
O Orador: - Será uma linha quebrada, mas sem tendência marcadamente ascendente. Trata-se de uma indústria que infelizmente é, em grande parte, dependente do estrangeiro; necessita, como aqui já foi dito, de filme virgem, que é importado do estrangeiro. São necessários ainda produtos químicos, também do estrangeiro, e até os próprios técnicos têm de ser também muitas vezes estrangeiros, o que aliás o próprio decreto reconhece e admite.
Mas que extraordinário progresso é esse, desta indústria, no nosso País, quando continuamos a possuir apenas um laboratório de filmes em Portugal?
Eu já fiz o devido elogio a esse laboratório, mas acho que, por si, ele constitui, naturalmente, ainda uma manifestação limitada de uma actividade industrial. E todos os que se deram ao incómodo de estudar os preços das produções cinematográficas do laboratório português reconheceram como eles são elevados. Impor-se-ia um tabelamento, para que o custo dos filmes em Portugal, dados os preços do laboratório, dados os preços dos materiais e dados ainda os desperdícios, hesitações e demoras de realização, não seja tamanho e se restrinja dentro de um bom princípio económico. Não é justo proteger afinal o que é demasiado caro, sem vantagens proporcionais.
O Sr. Dr. Pinheiro Torres aludiu à existência de filmes maus, e eu concordo com S. Ex.ª em que, infelizmente, há muitos filmes maus, estrangeiros e portugueses - porque os há também portugueses. Simplesmente, creio poder afirmar que, se há filmes que não deviam ser
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exibidos por adversos à moral, é porque a censura não cumpre devidamente as suas funções.
For outro lado, porquê é que o legislador, quando promulgou este decreto-lei, não criou a protecção apenas aos filmes portugueses de boa qualidade, e, pelo contrário, a estendeu, pelo que respeita ao contingente e exploração, a todos os filmes portugueses, sejam de boa ou de má qualidade?
O Sr. Prof. Pinto Coelho e o Sr. Dr. Querubim Guimarães fizeram uma análise do aspecto jurídico do decreto-lei. Devo dizer que, dada a minha qualidade de leigo nessa matéria, apenas timidamente reparei em que o decreto abria com a criação de uma taxa, quando de início devia ter outra amplitude, mas causou-me grande satisfação verificar que dois ilustres juristas membros desta Assembleia fizeram reparos mesmo a outros aspectos técnicos da contextura do diploma.
O Sr. Deputado Pinto Coelho chamou, por exemplo, a atenção para a redacção do artigo 22.°, relativamente à permanência dos filmes portugueses na tela, dizendo que, se não tivesse lido as exposições que foram feitas a esta Assembleia, ele, jurista, não compreenderia o que se pretendia dizer nesse artigo do decreto-lei.
Mas, Sr. Presidente, não quero alongar-me nestas considerações e desejo apenas frisar mais dois ou três pontos, para mim de capital importância neste debate.
Um deles é fornecido pêlos jornais desta manhã, que publicam o seguinte telegrama especial:
O Sindicato Nacional dos Espectáculos acaba de considerar de «interesse nacional» para Espanha o filme português Camões, produzido por António Lopes Ribeiro e dirigido por Leitão de Barros, com António Vilar no protagonista, o que lhe permite beneficiar de todas as vantagens que a lei de protecção ao cinema espanhol concede aos filmes produzidos em Espanha, sendo esta a primeira vez que neste país semelhante distinção é concedida a um filme estrangeiro.
Pois bem, digo eu agora: como está redigido o decreto-lei chamado de protecção ao cinema nacional impedir-se-ia a reciprocidade deste tratamento entre nós para um filme espanhol, para um filme estrangeiro que fosse do maior interesse nacional. O melhor filme desta ordem não poderia receber entre nós a protecção oficial, a qual, aliás, existiria para um mau filme português.
O Sr. Botelho Moniz: - Se o filme espanhol for dobrado em português pode ser importado em regime de reciprocidade.
Tal é o caso, por exemplo, do filme Inês de Castro.
O Orador: - Hás isso é só para importação desde que seja dobrado. Mas não haveria tratamento de protecção a um filme em língua estrangeira, por melhor que fosse, e por mais grato ao interesse português. Aliás, como V. Ex.ª sabe, a dobragem numa língua diversa da original não é considerada plausível no ponto de vista artístico.
O Sr. Manuel Múrias: - Nos termos do artigo 26.°, entende V. Ex.ª que o Governo Português não pode negociar com outro pais estrangeiro nas condições necessárias para que, num caso excepcional, o filme se possa considerar de interesse nacional?
Nesse artigo não caberá aquilo que V. Ex.ª estava a censurar como uma falta na lei?
O Orador: - Julgo que dentro da definição de filmes portugueses não cabem os filmes estrangeiros, e a protecção refere-se aos primeiros.
Em suma: creio que seria para desejar que a Assembleia não considerasse intangível esta lei. Seria para desejar que, sobre todos os pontos em que incidiram as nossas dúvidas ou objecções se fizesse um estudo cuidado por quem de direito - a Câmara Corporativa - , seguindo-se uma apreciação larga pela Assembleia Nacional.
Chamei especialmente a atenção de V. Ex.ªs para a parte do diploma que se refere ao regime de taxas. Entendi, entendo - e, até demonstração em contrário, continuarei a entender -, que esse regime não é favorável sequer ao cinema nacional, porque, tributando por igual os filmes estrangeiros de boa e má qualidade, dificultando, para a procura por parte dos exibidores portugueses, a existência de um suficiente stock de filmes nos distribuidores, que necessariamente limitarão a importação, poderá dar-se frequentemente a circunstância de os exibidores não receberem dos distribuidores os filmes que reclamam e terem de fechar as suas salas.
Ora não é reduzindo o número de salas que se aumenta o mercado para o próprio filme português. O diploma, deste modo, em vez de proteger a produção nacional, restringir-lhe-ia a indispensável colocação.
Outra emenda ou aditamento que eu proporia ao decreto é referente à criação do Conselho Nacional do Cinema, em que tenha, pelo menos, representação o Ministério da Educação Nacional. Esse Conselho assistiria ao Secretariado da Informação, embora a título consultivo, nas medidas relativas ao cinema português.
Entendo que uma emenda destas está dentro do espírito dos pedidos que aqui foram feitos. E não se diga que a ampliação e as modificações sugeridas são matéria regulamentar. Um regulamento não pode alterar a estrutura fundamental de uma lei e as emendas sugeridas colidem com essa estrutura.
A criação do Conselho e a modificação do regime de taxas num sentido de maior equidade não são disposições regulamentares, mas sim legislativas.
Sr. Presidente: penso, conforme aqui afirmou o Sr. Deputado Antunes Guimarães, que este diploma deveria ser enviado à Câmara Corporativa, a fim de ser devidamente estudado, e voltar aqui para ser discutido. É o processo legislativo integral.
O Sr. Dr. Antunes Guimarães sugeriu mesmo que houvesse urgência para a elaboração do parecer pela Câmara Corporativa. Não tenho dúvidas em apoiar essa sugestão.
Que motivo há para evitar a mais lata discussão, se todos estamos animados de boas intenções?
Enfim, Sr. Presidente, se este diploma subsistir na sua forma integral, ouso formular uma fácil profecia: é a de que, a breve trecho, se verificarão a razão, a verdade de afirmações que aqui foram feitas e a necessidade de se tomarem novas providências legislativas na matéria.
Formulo o voto de que, em vez de providências parcelares, fragmentárias, se encare o assunto com a maior amplitude, de modo a termos no mais curto prazo possível o texto legal que possa justamente chamar-se a carta do cinema português.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Sr. Presidente: se no decreto em debate se tratasse de atribuir competência ao Secretariado Nacional da Informação para superintender na vida dos espectáculos...
O Sr. Botelho Moniz: - ... e da rádio ...
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O Orador: - Só trato dos espectáculos.
... se, voltando ao pensamento que trazia, se tratasse neste decreto de integrar no referido Secretariado os serviços técnicos indispensáveis ao exercício daquela superintendência, eu não só votaria pela ratificação com emendas, mas, quando o decreto, depois do parecer da Câmara Corporativa, voltasse a esta Assembleia convertido em proposta de lei, votaria, salvo se a discussão ou o parecer me convencessem de que não devia de proceder assim, contra o decreto. Mas importa, por agora, referir as razões que a isso me determinaram.
Não é porém disso que neste decreto se trata. Do que se trata é de atribuir ao Secretariado da Informação uma nova competência que, se ele não tivesse já a competência que tem para superintender nos espectáculos e se não dispusesse também, como dispõe, dos serviços técnicos indispensáveis para tornar efectiva essa superintendência, não lhe devia ser atribuído a ele, mas a quem dispusesse daquela competência e deste serviço.
Portanto, o problema, nos termos em que o decreto o põe, aparece assim: atribui a uma determinada instituição, que dispõe já de uma certa competência e de um certo conjunto de serviços, uma outra competência que é inseparável da primeira e do conjunto de serviços.
E, porque assim é, tenho relativamente ao problema uma posição diferente da que teria se o não fosse. Quer dizer: tenho a posição de que o decreto em debate deve ser ratificado pura e simplesmente.
Faiou-se na necessidade de, ao lado do Secretariado Nacional da Informação, criar um Conselho, sem que eu chegasse verdadeiramente a aperceber-me se o Conselho a que aludo se desejava para administrar o Fundo que no decreto é criado, se se desejava para fixar a orientação política de acordo com a qual esse Fundo deveria ser administrado.
O Conselho a quo se alude é constituído por entidades de tal categoria que não interessa que ele exista só para desenvolver uma actividade puramente administrativa com base em orientação política ditada por outrem.
Nesta ordem de ideias, o Conselho só se compreenderia se realmente se constituísse com competência para determinar a orientação política que o órgão de administração havia de adoptar na distribuição do Fundo.
O Sr. Botelho Moniz:- V. Ex.ª dá-me licença?
Creio que está aberto já o precedente de todas as comissões reguladoras se fazerem assistir por delegados dos Ministérios nelas interessados e de delegados ou representantes, aliás nomeados pêlos Ministros, das entidades corporativas também nelas interessadas, o são essas comissões assim constituídas que em grande parte administram os fundos dessas comissões reguladoras.
Portanto, não me parece que para esse Fundo que se pretende criar a proposta aqui sugerida constituísse matéria nova.
O Orador: - Eu não digo que constitua matéria nova.
O Sr. Mendes Correia: - Devo dizer que não propunha o Conselho num sentido de administração, que deveria, de facto, pertencer ao Secretariado.
O Orador: - Eu estava encarando a questão nesse aspecto, quando fui interrompido.
Acaba então de esclarecer-se a questão neste sentido: que o Conselho, no pensamento da Assembleia, deveria ser o que determinaria a orientação política a adoptar na administração do Fundo.
Ora precisamente aquilo a que eu queria chegar era o seguinte: que o Secretariado Nacional da Informação depende da Presidência do Conselho. E se depende da Presidência do Conselho, a quem cabe determinar a orientação política a adoptar, de um modo geral, já temos quem desempenhe as funções do Conselho que se sugere, e que é precisamente a entidade de quem este devia recebê-las.
O Sr. Mendes Correia: - E então o conselho de imprensa junto do Secretariado? E a parte artística?
O Orador: - O conselho de imprensa funciona como conselho junto da Presidência do Conselho, segundo creio.
Quem define a orientação política, depois de ouvir o conselho, é o Presidente do Conselho.
O Sr. Mendes Correia: -Não se trata apenas de orientação política, mas de orientação moral, artística, etc., e não é a Presidência do Conselho que pode estar a examinar cada filme de per si.
O Orador: - O Conselho então funcionaria como um conselho consultivo da Presidência do Conselho.
O Sr. Botelho Moniz: -O Subsecretário de Estado das Corporações também depende da Presidência do Conselho, e dependentes do Subsecretário de Estado das Corporações estão inúmeros grémios, que lá têm os tais representantes das corporações.
O Orador:-Admitimos.
O que digo é que não está demonstrada a necessidade de tal Conselho para dar a orientação política a adoptar na administração de um Fundo, visto que o Secretariado depende da Presidência do Conselho, a quem cabe dá-la.
Posto isto, não quero, nem há necessidade, de apreciar toda a série de razões que aqui foram produzidas no sentido de que, em vez de se aceitar a ratificação pura e simples, seja votada a ratificação com emendas.
Considerarei apenas aquilo que me parece poder ter mais interesse.
Assumiu, a Presidência nesta altura da sessão o vice-presidente Sr. Sebastião Ramires.
O Orador:-E em primeiro lugar a relativa às taxas de licença.
Não se disse, creio eu - mas, se estou em erro, estou em boa posição para ser corrigido -, dentro da Assembleia, embora se tenha dito em representações feitas à Assembleia, que as taxas de licença fossem elevadas; o que se disse é que o mecanismo da sua aplicação podia conduzir a soluções injustas, tratando-se igualmente filmes que tinham evidentemente categorias diferentes.
É claro que eu devo reconhecer que esta consideração é impressiva. A consideração conduzia, portanto, à multiplicação das categorias de filmes. Em vez de termos cinco ou seis categorias, teríamos mais de cinco ou seis; as duas primeiras, sobretudo, seriam desdobradas em maior número de categorias.
É claro, confesso, que esta consideração é impressiva, pois salta logo aos olhos que filmes de fundo e de igual metragem podem ter categoria completamente diferente, de modo que pode parecer injusto arrumá-los apenas nas duas categorias apresentadas.
É curioso, no entanto, que apareçam duas categorias no decreto em debate e, se bem me recordo, não tenham aparecido mais categorias nas reclamações dos interessados. Apareceu um sistema diferente do que está contido no decreto em discussão, mas não apareceram mais categorias.
Porque?
Eu raciocino nesta base. Pretendeu-se com o decreto obter um certo rendimento. Ninguém dirá que o rendimento é excessivo para fomentar a produção nacional.
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Tranquilizem-se que ou não vou dizer que ninguém dirá que o rendimento é excessivo para as possibilidades das empresas; mas afirmo que ninguém aqui demonstrou que fosse excessivo, mesmo para as possibilidades das empresas. Eu não sei se é; também não vou demonstrar que não é. Eu não sei se é, mas há uma coisa que eu sei: é que ninguém demonstrou que se excedessem no que se pede as possibilidades das empresas.
O Sr. Querubim Guimarães: - V. Ex.ª dá-me licença? Afigura-se-me que são excessivas as taxas. No entanto, V. Ex.ª, não sabendo, como confessa, se o são ou não, e aprovando a ratificação pura e simples do decreto, implicitamente concorda em que elas estão bem.
O Orador: - O problema põe-se de outra maneira. Eu, que estou aqui a dizer que voto a ratificação pura e simples, não tenho que demonstrar por a mais b que não deve ser votada a ratificação pura e simples; quem tem de fazer isso é quem pretende a ratificação com emendas.
Ninguém aqui demonstrou que fosse excessivo para as possibilidades das empresas o que delas se exige; mas a quem compete essa demonstração é a quem veio pedir a ratificação com emendas.
O Sr. Querubim Guimarães: - Para nosso esclarecimento, acho que V. Ex.ª tem o dever moral de explicar que o que está no decreto está bem, visto que pretende a ratificação pura e simples.
O Orador: - Não tenho esse dever. Como não hesito diante das dificuldades, direi: eu posso votar como um acto de confiança, mas o que não faço e entendo não dever fazer é dizer que não sei, mas não tenho confiança. E é o que faz ou o que tem feito quem pede a ratificação com emendas. O tal dever moral não é, portanto, meu...
No elenco que elaborei das minhas considerações estava o tratar com mais serenidade e menos violência da questão que está precisamente a desenvolver-se neste momento, por me terem obrigado a antecipar-me.
Para que eu continue com mais serenidade e menos violência no elenco das minhas considerações, peço a V. Ex.ªs o favor de me deixar chegar onde pretendo.
O Sr. Mendes Correia: - Eu não declarei que as taxas oram excessivas, mas sim que elas eram mal distribuídas, o que é uma coisa diferente.
O Orador: - V. Ex.ª não está a seguir as minhas considerações. Comecei por isso mesmo.
Eu estava a fixar esta ideia: com o decreto pretendeu-se naturalmente obter um certo rendimento, para proteger a produção nacional, que se não mostrasse ridículo.
Se se faz uma multiplicação de categorias para realmente recorrer ao tal tipo de justiça ideal que se vê ser desejado por quem pretende essa multiplicidade de categorias, o que poderá suceder desde que se pretende obter um certo rendimento?
É que, como esse conjunto de categorias diferenciadas conduz a taxas sucessivamente menores, pode haver necessidade, para atingir o tal rendimento, de elevar a taxa da 1.ª categoria. E foi porventura por isto que não se saiu do regime de doas categorias, nas quais se incluíram todos os filmes de fundo, para evitar que a multiplicidade conduzisse a sacrificar os que ficavam na 1.ª e 2.ª categorias com o encargo mais pesado do que aquele que lhes é imputado.
O Sr. Pinto Coelho: - V. Ex.ª dá-me licença? Tenho a impressão de que essa ordem de considerações dá um certo conforto, porque me parece que pode ser considerada injusta a própria determinação da taxa previamente marcada para se atingir um determinado objectivo. Logo, a justiça que alguns desejam, e entre esses eu...
O Orador: - Mas então o problema é deslocado, porque se considera que a injustiça está no próprio quantitativo da taxa que se pede e não na diferente posição dos filmes em graus diferentes da sua hierarquia...
O Sr. Pinto Coelho: - Exactamente.
O Orador: - Mas não foi aqui demonstrado que as taxas fossem elevadas ou incomportáveis e precisamente quem pede a ratificação com emendas é que deve fazer essa demonstração, como, em geral, a de que há coisas no decreto inaceitáveis.
O Sr. Botelho Moniz: - Bastam as dúvidas.
O Orador: - Não bastam; e a demonstração não foi feita.
Alguns dos reparos feitos pelo Sr. Deputado Pinto Coelho já foram aqui esclarecidos; a muita consideração que devo a S. Ex.ª leva-me a esclarecer o que ainda o não foi.
É o reparo relativo ao conteúdo do artigo 22.°, que diz:
Leu.
É este artigo, diz o Sr. Deputado Pinto Coelho, de difícil entendimento.
Reconheço que quem não conhecer como as coisas na realidade se passam pode ter dificuldade em interpretar esta disposição; mas quem conhecer verificará que afinal não há dificuldade.
Há um limite máximo de rendimento, que é dado pela própria lotação da casa. Há agora sobre esta lotação, que será 100 por cento, várias percentagens: 80 por cento, 60 por cento, 40 por cento, etc.
O que se diz ali?
É que em regulamento se fixará a percentagem acima da qual o filme não pode ser retirado.
Quer dizer: considera-se, por exemplo, 40, 50 ou 60 por cento da lotação, e enquanto uma percentagem superior à expressa por estes números se verificar o filme não pode ser retirado.
Quem tiver tomado contacto com a vida dos teatros ou dos cinemas imediatamente alcança o conteúdo desta disposição. De resto, para se entender completamente o conteúdo da lei é muitas vezes necessário ir estudar o complexo de interesses que está atrás e que ela veio regular. Por isso se diz que o trabalho do jurista é o mais difícil, porque tem de ser ao mesmo tempo um cultor de todo o mecanismo dos interesses que a lei veio regular.
A disposição do artigo 22.° é, como acaba de ver-se, perfeitamente compreensível.
Não seguirei outras dúvidas que foram postas relativamente ao decreto proposto para ratificação. Desejava, no entanto, não deixar de chamar a atenção da Assembleia para o facto que vou apontar.
O decreto em debate foi excepcionalmente, para quem conhecer o costume, publicado nos jornais antes de ser publicado no Diário do Governo, e sobre o projecto se desencadeou aquela massa de criticas que certamente é do conhecimento de V. Ex.ªs
Ora bem! Sobre essa massa de criticas, que coincidem fundamentalmente com, as críticas aqui postas durante a discussão, trabalhou o Governo, dando satisfação a umas e entendendo que não devia dá-la a outras.
Isto visto, eu coloco-me neste plano: é o de que o Governo Português, quando decide em definitivo sobre um problema que foi submetido a um longo debate, de-
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cide com perfeito conhecimento dos elementos com base nos quais trabalhou de início e dos elementos que lhe foram fornecidos pelas críticas feitas ao projecto.
O Sr. Botelho Moniz: - O que não quer dizer que a Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional estejam de acordo com o Governo!
O Orador: - Mas quem diz o contrário?
O Sr. Mendes Correia: - A essa massa de críticas falta esta.
O Orador: - Eu já afirmei que não houve nenhumas considerações que substancialmente não tivessem sido já produzidas. Não quero dizer que cada uma das pessoas que as produziu as fosse copiar às que haviam sido feitas. Quero apenas dizer que os bons espíritos se encontram ...
Mas estou perfeitamente de acordo com o Sr. Deputado Botelho Moniz quando diz «Mas nós não somos obrigados a concordar com o Governo.»?
Evidentemente. Eu comecei no princípio das minhas considerações por afirmar que, se com o decreto se tivesse em vista atribuir ao Secretariado competência para superintender nos espectáculos, eu não só votaria a sua ratificação com emendas, mas votaria contra, se o respectivo parecer da Câmara Corporativa e a discussão nesta Assembleia me não levassem a mudar de orientação quando aqui voltasse para se decidirem as questões de fundo.
Portanto, estou perfeitamente de acordo com o Sr. Deputado Botelho Moniz. Simplesmente, o que digo é o seguinte: é que isso se faz não com fundamento em dúvidas que não resultam do diploma, mas de estudo insuficiente por parte de quem as tem, mas quando se demonstra que realmente no diploma há erros graves, há soluções inadmissíveis ou lacunas injustificáveis, e isso é que, afirmo, ainda aqui não foi demonstrado.
O Sr. Mendes Correia: - É uma opinião.
O Orador: - Eu peço desculpa a V. Ex.ª se não atribuo às suas afirmações o mesmo valor que V. Ex.ª mesmo lhes atribui. Mas não me importo se V. Ex.ª fizer o mesmo com relação às minhas.
E, para concluir, devo notar que na base deste decreto está uma massa de interesses particulares que se digladiam. Quem defende o seu interesse particular, mesmo que deseje colocar-se no terreno do interesse geral, corre o perigo de se convencer de que este coincide com aquele.
Nós temos o dever de considerar aqui os interesses particulares, porque a lei não ó, no fundo, senão um processo de resolver conflitos de interesses que podem ser particulares; simplesmente o seu objectivo deve ser resolvê-los em subordinação ao interesse geral e, portanto, no plano nacional.
É a nossa função aqui.
Não tenho dúvidas de que é orientados por este pensamento que todos, dentro desta Assembleia, vão exercer o direito de voto: o pensamento de que a decisão que tomam é em defesa do interesse nacional.
Sucede que os interesses particulares que estão atrás desse decreto nem sempre são interesses portugueses, e é contra isso que eu desejo precaver a Assembleia Nacional: que considere acuradamente se, ao pronunciar-se com o empenho de defender o interesse nacional, não estará a defender interesses internacionais.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Botelho Moniz: - Sr. Presidente: no debate relativo ao decreto-lei n.° 36:062 limitar-me-ei a algumas generalidades, a certos pormenores que não ouvi serem tratados pêlos parlamentares que me antecederam e a observações ligeiras sobre o que outros oradores afirmaram.
Há dias, a propósito de assuntos primaciais da nossa economia, um dos unais altos espíritos que ornam esta Assembleia dizia-me que é sempre fácil versar generalidades.
As doutrinas gerais aprendem-se na escola, acham-se nos compêndios, formam tratados sempre fáceis de consultar ou trasladar.
A dificuldade verdadeira encontra-se na passagem da generalidade para a especialidade, isto é, no estudo e nas soluções dos problemas concretos.
Para tais soluções concorrem factores numerosos. Adoptando expressão matemática, direi que na vida complicada de hoje já não existem equações a uma incógnita. Cada problema pressupõe um sistema de equações, e bem felizes andamos quando o número de incógnitas não excede o número de equações...
Significa isto que somos forçados, na maioria dos casos, a deixar as ideias simples aos bem-aventurados espíritos primários. Existe tal interdependência entre problemas e assuntos aparentemente isolados que o industrial, o comerciante, o homem de Estado, o economista e o legislador são surpreendidos, vezes inúmeras, por consequências ou reacções que não poderiam prever.
Na economia corporativa, que, segundo se deseja e em obediência à Constituição, há-de mais dia menos dia acabar por estabelecer-se em Portugal, este decreto-lei n.° 36:062, destinado a .proteger o cinema lusitano, pode considerar-se típico.
Usando agora a linguagem de médicos e cirurgiões, classificá-lo-ei de acaso interessante», digno de atenção dos estudiosos, sobre o qual devem debruçar-se os homens que anseiam aplicar o conhecimento das generalidades aos problemas especiais, ou, melhor dizendo, passar da teoria à prática.
Graças a Sidónio Pais e a Martinho Nobre de Melo, a Salazar e a Pedro Teotónio Pereira, um dos vários pilares do edifício político português é constituído pela «corporação». Permita-se-me aqui um parêntesis: digo um dos vários pilares, porque, apesar do artigo 5.° da Constituição, o nosso Estado Corporativo não se deixa dominar pelas corporações.
Além do corporativismo, há que considerar, precisamente porque não somos totalitários, muitos outros fundamentos, e mais importantes, da nossa doutrinação política.
Fechemos o parêntesis até oportunidade melhor para fazermos dele questão de fundo - ia quase a dizer, levado pelo assunto, filme de fundo - e continuemos nas generalidades, que, conforme V. Ex.ª, Sr. Presidente, vai verificar, não devem esquecer-se neste caso do cinema.
Apesar da constituição corporativa, alguns grémios menos simpáticos são considerados oficialmente como não existentes. Ë esse o caso patente do Grémio Nacional dos Cinemas e do Grémio Nacional dos Distribuidores de Filmes Cinematográficos, que, por não terem sido nem ouvidos nem atendidos pelo Secretariado Nacional da Informação, órgão do Executivo, foram forçados a colocar-se ao abrigo do n.° 18.° do artigo 8.° da Constituição Política e a representar perante a Assembleia Nacional.
Li atentamente as duas representações dos grémios citados, a representação de cinco firmas ou empresas produtoras de películas nacionais e o decreto-lei n.° 36:062. Até para completar a minha bibliografia,
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conservo do n.° 376, de 16 do corrente, do boletim Informações, do Secretariado Nacional da Informação, dois capítulos interessantíssimos: «Portugal visito de fora: O pluralismo político português» e o Dizem de Portugal».
Não me glorio de ciência própria: cito os meus autores.
Sr. Presidente: das generalidades e do pormenor, de tudo quanto ouvi e li, fiquei ciente de que o negregado Voltaire tinha razão às carradas ao dizer que o Mundo só subsiste através de contradições».
Analiso e critico o «caso interessante» do decreto-lei n.° 36:062 precisamente porque o encontro em contradição com o alto objectivo nacional que pretende visar: julgo que, criando o conflito entre produtores nacionais, comerciantes distribuidores e cinemas exibidores e estabelecendo condições ruinosas para estas duas últimas indústrias, mata a galinha dos ovos de ouro.
No que respeita ao Executivo, autor do decreto, e àquelas pessoas que, em colaboração com ele, o prepararam e propuseram à assinatura ministerial, começo por recordar que o diploma de 27 de Dezembro de 1946 não é da responsabilidade do Governo actual, onde existem homens que muito respeito e admiro, mas sim do Ministério anterior, em que, além dessas, se encontravam outras de que ninguém pode considerar-se adversário pessoal ou político.
Portanto - nada de interpretações erradas acerca da minha atitude ide hoje.
Por maior amizade que dedique aos signatários do decreto-lei, não posso deixar de declarar que, na aplicação da doutrina corporativa, se acham em contradição quer com ela quer com eles próprios.
Na verdade, em assunto de natureza técnica, complicado com divergência profunda de interesses, qual o caminho a seguir pelo legislador?
Julgo eu que seja ouvir os competentes e os interessados. Quando uns e outros constituem multidão, é precisamente o corporativismo que nos ensina a solucionar o problema de ouvir opiniões! Competência e interesse acham-se representados na corporação. A corporação deve ser ouvida, embora, como órgão consultivo que nesta matéria é, não tenha o direito de legislar ou despachar.
Nesta altura reassumiu a Presidência o Sr. Dr. Albino dos Reis.
O Orador: - Não deve possuir esse direito num Estado harmònicamente pluralista, que abomina o totalitarismo, seja ele do faseio, da cruz gamada, da foice e do martelo ou do pacífico socialismo.
Mas também não devemos permitir que a corporação seja substituída na função normal e útil que a Constituição lhe assegura.
Legiões de ignorantes primários lançam sobre os chamados organismos corporativos os anátemas do ódio e da incompreensão, porque em má hora alguns deles foram desviados da sua missão social. Por isso mesmo, é preciso acarinhar, defender e prestigiar todos aqueles que, em vez de enveredarem pelo erro, defendem, ao abrigo da Constituição e da justiça, direitos legítimos, digo mesmo direitos vitais, dos seus associados contra medidas bem intencionadas, mas infelizes, porque na prática irão traduzir-se em ruína para todos, inclusive para os próprios que se julgam protegidos por elas.
Por isso, e porque os representantes corporativos dos interesses elementares não foram ouvidos na preparação do decreto, nem escutados pelo Secretariado Nacional da Informação quando o conheceram pêlos jornais, há que reparar a falta técnica, e, com licença de Voltaire, eliminar a contradição doutrinária, enviando o
decreto-lei n.° 36:062 ao organismo que se encontra no escalão mais alto da nossa hierarquia económico-social: a Câmara Corporativa, símbolo, representação e defesa da harmonia entre os interesses elementares das classes. É preferível, julgo eu, mesmo para os partidários da ratificação pura e simples, deixar que o decreto vá à Câmara Corporativa, e então, depois de ela dar o seu parecer, resolva-se a questão.
O Sr. Soares da Fonseca: - Isso é um argumento que, como costuma dizer-se, prova demais; e, quando um prova demais, não prova nada. Pelo raciocínio de V. Ex.ª, todos os decretos tinham ratificação com emendas. Bastava que algum Sr. Deputado tivesse dúvidas.
O Orador: - Não basta um Deputado; são precisos cinco Deputados para usar desse direito.
O Sr. Soares da Fonseca: - Sejam cinco. A minha argumentação continua de pé.
O Orador: - Com cinco Deputados temos o direito de pedir a ratificação e a Assembleia decidirá se o decreto a merece ou não.
O Sr. Soares da Fonseca: - Mas o que não têm é o direito de a pedir sem argumentos, isto é, de não apresentar argumentos que provem a necessidade de tal ratificação com emendas.
O Orador: - Basta ter dúvidas e desejar que elas sejam esclarecidas pela Câmara Corporativa.
O Sr. Soares da Fonseca: - Parece-me que não bastam as dúvidas. É necessário que se mostre haver seriedade em tais dúvidas, quero dizer, convencer a Assembleia de que as dúvidas são fundadas.
O Orador: - A mim parece-me que bastam. Fui bem claro. Y. Ex.ª não me compreendeu e eu não compreendi V. Ex.ª Somos os dois igualmente inteligentes.
Risos.
Ainda a propósito deste caso corporativo, agora é que vai ser o bom e o bonito: vou referir-me ao que disse o próprio Secretariado Nacional da Informação. Refiro-me ao n.° 376 do boletim Informações, do mesmo Secretariado.
Diz o seguinte:
No artigo do Catholic World o jornalista norte-americano Eugene Bagger considera o pluralismo como manifestação efectiva das actividades político-sociais dentro do Estado. Ao estudar os fundamentos da teoria política portuguesa e ao analisar as suas realizações práticas, escreve: «A autonomia municipal, a liberdade de todos os trabalhadores se sindicarem em unions, a liberdade de educação, a liberdade académica e a liberdade de culto são tudo expressões parciais da concepção pluralistica do Estado.
Esse pluralismo existe em Portugal. Portanto, examinado segundo estas normas, o Estado Novo é intimamente aparentado com as democracias e está no polo oposto ao totalitarismo».
Com efeito, a Constituição portuguesa consagra a autonomia da família, dos organismos corporativos (repare-se bem, dos organismos corporativos!), das autarquias locais, da igreja, etc., e ao lado da personalidade individual afirma-se nesse texto, e em todo o sis-
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tema de legislação, a personalidade das entidades morais.
Declarar que o sistema corporativo de Salazar é a mesma coisa que o estado corporativo de Mussodini, porque ambos têm «corporações», é tão inteligente como dizer que a democracia americana é a mesma coisa que comunismo russo, porque ambos têm labor-unions.
O conceito corporativo de Salazar é católico, contrário ao estatismo e pluralístico.
As corporações de Salazar destinam-se a agir como órgãos fiscalizadores, órgãos de equilíbrio social que funcionam de ânodo análogo ao da separação de poderes numa democracia.
A fórmula do Estado - pelo menos a portuguesa - admite e consagra ainda, para além desse pluralismo, um fundamento espiritual e uma harmonia de poderes que traduz equilíbrio indispensável na hora presente.
E mais adiante, no capítulo «Dizem de Portugal», p. 8, o boletim Informações, do Secretariado Nacional a Informação, transcreve ainda Eugene Bagger:
Os críticos liberais de todo o Mundo têm alguma coisa a escrever sobre os defeitos da experiência do Estado Novo. Mas nada têm a dizer sobre a teoria do Estado Novo. Eles não a conhecem, porque a censura exercida pêlos preconceitos liberais tem mantido afastadas dos jornais das democracias todas as tentativas de fazer um resumo inteligente dos princípios sobre os quais o Ministro Salazar edificou o seu regime.
Aqueles críticos liberais não conhecem essa teoria. Provam-no sempre que se referem ao Governo de Salazar como fascista ou totalitário.
Eugene Bagger e o Catholic World têm razão, porque definiram perfeitamente o nosso regime.
O Secretariado Nacional da Informação é digno de louvor pela tradução e publicação daquelas explicações.
Mas, oh! manes de Voltaire, para, em matéria de contradições, não deixar mal o afamado filósofo, o Secretariado Nacional da Informação, num dos poucos diplomas legislativos que teve de preparar, desdenhou a aplicação corporativa dos princípios - e ouviu previamente apenas vozes particulares!
Se eu fosse o nosso ilustre colega ST. Francisco de Melo Machado remataria assim: «O Estado pessoa de bem - eis a definição de Salazar. O Estado Frei-Tomás - eis a actuação do Secretariado...».
Na verdade, encontramo-nos a diagnosticar um «caso interessante» que representa exemplo, entre muitos, do conflito permanente entre corporativismo verdadeiro e estatismo excessivo.
Pertenço à velha guarda corporativista exactamente porque considero a agremiação um dos meios de defesa das liberdades contra a tendência crescente de tirania burocrática.
E quando vejo dois pequenos grémios batalharem persistentemente pêlos direitos e interesses dos seus associados, verifico que nem tudo está perdido no maré magnum da adulação e do servilismo e desejo que esse «espírito combativo, bem orientado, tão necessário na hora que passa, não só mereça recompensa e louvor, mas sirva de exemplo a muitos outros que andam atacados de apagada e vil tristeza.
Saiamos agora, que já é tempo, do campo das generalidades para o da especialização.
Outros oradores quase esgotaram sãs críticas que deveriam fazer-se.
Entretanto, já que alguns estabeleceram comparação entre as duas mais recentes glórias da ciência e da arte, que, não falando na bomba atómica, são o cinema e o rádio, permiti que levante a voz em defesa da minha dama e proclame a supremacia das ondas hertzianas sobre as ondas luminosas de Hollywood ou da ex-Tobis Portuguesa.
Não há dúvida de que, conforme aqui foi alegado, rádio e cinema influem grandemente na educação e condução dos povos. Mas, sem ofensa à memória de Rodolfo Valentino, à veia artística de Greta Garbo ou ao garbo dos irmãos Marx, que, apesar do nome, desdenham a política anticaipitalista, nunca o cinema contribuiu tão decisivamente como a rádio para levar os povos a fazer ou desfazer tolices.
Duas guerras recentes e a propaganda radiofónica que prepara a futura mostram-nos à evidência a supremacia da rádio.
Infelizmente não a revelaram ainda ao Secretariado Nacional da Informação. Efectivamente nunca o Fundo de Desemprego néon os diplomas legislativos de protecção trabalharam com eficácia em favor da rádio portuguesa, oficial ou privada, embora estejam trabalhando activa e abundantemente em prol de certos produtores de filmes nacionais.
A radiodifusão oficial vive ao deus-dará, sem receitas bastantes para a sua missão diária e muito menos ainda para desenvolvimento do grandioso plano imperial que urge realizar.
A radiodifusão «particular, perseguida directa e sistematicamente pelo Estado durante longos anos, consegue vegetar, mal ou pior, mercê do esforço de certos «carolas» e mantém-se ainda hoje graças ao sacrifício dos beneméritos que para ela voluntariamente contribuem. Mas as taxas oficiais obrigatórias de radiodifusão, há tempos acrescidas, e as más circunstâncias económicas da classe média reduzem dia a dia as parcas receitas das associações radiofónicas exactamente quando todas as suas despesas, de energia, material, pessoal técnico e programas, vão aumentando assustadoramente, «devido à desvalorização da moeda.
Pois muito bem. Na escala das suas afeições, o Estado, o Governo ou o Secretariado Nacional da Informação colocaram em primeiro lugar o cinema, negócio de alguns, e abandonaram ao seu destino a radiodifusão, que não é negócio para qualquer das entidades emissoras. O cinema, que não desempenhou ainda na vida nacional papel decisivo, é preferido à rádio, que ontem e hoje constituiu e constitui uma das nossas melhores armas de defesa.
Pode argumentar-se, sob este aspecto, que o interesse geral primou sobre o interesse individual?
Não resisto a perguntar se, entre os produtores nacionais que receberam subsídios reembolsáveis, existe algum cujo filme no regime anterior ao decreto não tenha produzido rendimento bastante para pagar a dívida.
Todos nós sabemos que a melhor forma de uma industria nacional ser protegida é dever dinheiro a organismos oficiais e estes recearem pela cobrança...
Sr. Presidente: prevejo que, devido ao esforço dos cientistas e ao espírito progressivo dos emissores, em breve a radiodifusão assumirá o comando dos acontecimentos, e neste conflito entre produtores e exibidores de filmes, nesta luta entre corporação e estatismo, nesta injusta dissidência entre interesse geral e interesses privados, a radiodifusão surgirá como o tertius gaudet através do seu mais recente melhoramento: a televisão. Quando no caipítulo -generalidades deste meu discurso (que desejava curto e infelizmente para V. Ex.ªs vai longo) me referi às equações a várias incógnitas e aos homens que tudo resolvem movidos por ideias simples,
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sem conhecerem todos os aspectos dos problemas, pensava, entre várias coisas, nas consequências próximas da televisão. As casas de espectáculos não se constróem provisoriamente. Devem durar e manter-se dezenas de amos para que o capital seja remunerado e amortizado. Se essa amortização não puder realizar-se a curto prazo, o negócio virá provavelmente a ser ruinoso, porque em breve surgirá um concorrente de respeito, que fornecerá cinema ao domicílio, gratuitamente, ou, antes, sem mais gostos que os do custo e manutenção do aparelho receptor.
E ninguém pense que o condicionamento interno do filme de 16 milímetros fará os homens da rádio arrepiar caminho. Vão longínquos os tempos em que um condicionalismo excessivo quase deu razão aos proprietários e empregados das diligências contra os introdutores do caminho de ferro.
E, por mais obstáculos que lhes queiram levantar, os dirigentes da radiodifusão, dentro em muito pouco tempo, hão-de merecer o apoio da opinião popular para mais uma iniciativa norteada pelo verdadeiro patriotismo, que se firma no bem público, no desinteresse pessoal e no espírito de progresso.
Significa isto que não convém onerar-se a indústria de exibição cinematográfica com novos encargos, além dos muitos que graciosamente atiraram sobre ela, porque, na incerteza dos tempos correntes, os produtores nacionais de filmes acabarão por não ter onde exibi-los.
Repito: grande risco correrá quem construir ou melhorar cinemas se não puder remunerar e amortizar o seu capital a prazo curto.
Daqui se conclui logicamente que, em lugar de guerrear-se, produtores e exibidores portugueses devem procurar de acordo a solução protectora do cinema nacional por forma a não se dificultar a instalação ou melhoria de novos cinemas e a criar as condições de vida necessárias para que nas cidades mais importantes, ou pelo menos mas províncias, se desenvolva a exibição.
E digo «pelo menos nas províncias B porque, devido a falta de alcance, passarão ainda muitos anos antes que a televisão possa concorrer ali com a cinematografia.
Proteccionista convicto, discordo de todas as formas de protecção à indústria nacional que não distingam entre bom e mau, isto é, entre produção útil e parasitismo.
O decreto-lei n.° 36:062 constitui modelo de amplidão em matéria de protecção indiscriminada.
Atinge a raia inconcebível de ressuscitar películas velhas de cinco anos, que caíram miseravelmente perante a troça do público. Estabelece contingentes de exibição que agora são fixos e só amanhã serão variáveis, como se não devesse fazer precisamente o contrário, só tendendo para o contingente fixo quando as soluções se esclarecessem ou a produção nacional estivesse assegurada.
Baseia os contingentes em semanas de exibição, como se não fosse mais simples, para evitar confusões nos cinemas de província, multiplicar por sete o número de semanas, isto é, tomar o dia como unidade ou fixar indiscutíveis proporções aritméticas, sem qualquer designação derivada da lua ou das rotações da terra, como seria, por exemplo, esta coisa clara como água: uma exibição nacional para cinco, seis ou sete exibições estrangeiras...
No que toca a dobragens efectuadas em Portugal, o decreto-lei n.° 36:062 constitui outro exemplo concreto e malfadado de contradição entre intenções e prováveis resultados práticos.
Falo a este respeito, quer como industrial, habituado a fazer contas, à forma de conduzir despesas, quer como amador estudioso dos problemas acústicos.
A meu ver, em vez de proibir-se deveria promover-se, quanto possível por meios indirectos, a realização interna de dobragens em português.
Sob o ponto de vista industrial, os exibidores queixam-se, com justíssima razão e bom conhecimento de causa, que os trabalhos de estúdio e laboratório custam em Portugal três vezes mais que em Espanha. Este mal parasitário continuará enquanto estúdios e laboratórios não puderem atingir a produção plena ou, pelo menos, bom ritmo industrial. Logo que gastos gerais e outras despesas constantes se dividam por maior número d«i realizações, o custo por unidade reduzida baixará até que, se a administração em vez de parasitária for verdadeiramente industrial, se iguale ou aproxime do custo estrangeiro.
Sob o ponto de vista artístico ou pseudo-artístico, a dobragem em português, quando bem realizada, não prejudicará o êxito perante certo público. E se não tivesse êxito, melhor para os concorrentes nacionais.
Por outro lado, quantas películas estrangeiras veia já parcialmente dobradas da origem, quando os produtores põem uma bailarina a cantar ou um estrangeiro a falar americano?
Sob o ponto de vista linguístico, de pureza do idioma português, as dobragens não serão melhores nem piores que Pai Tirano ou Ladrão precisa-se...
Sabe toda a gente que na dobragem há a considerar, com o rigor possível, a duração da fala, os movimentos dos lábios, a expressão fisionómica, as mudanças de posição do artista, etc.
Para a tradução adequada da linguagem são primaciais os dois primeiros factores: tempo e movimento dos lábios. Os restantes funcionam como acessórios que podem graduar-se por meio da existência do dobrador e dos artifícios de sonorização. Portanto, o problema principal consiste em substituir a fala original por outra de duração idêntica, empregando palavras portuguesas que, ao serem pronunciadas, não discordem grandemente dos movimentos de lábios da imagem.
Com jeito, paciência e conhecimentos dos idiomas original e traduzido encontra-se solução quase perfeita das dificuldades. Para isso basta que os autores ou tradutores do diálogo não sejam alguns dos que figuram em certas películas nacionais e nas legendas das estrangeiras que diariamente nos servem. De resto, a dobragem de filmes falados em línguas de construção concisa talvez viesse ensinar os nossos dialogadoxes a evitar redundâncias.
Suponho que a defesa do património linguistico, citada na representação dos cinco produtores nacionais, constitui fantasia pura. Julgo eu que tal defesa se realiza melhor traduzindo bem que impondo falares estrangeiros. Basta recordar como certas locuções e termos de calão ingleses e americanos se introduziram nos maus hábitos portugueses, para «agradecer» ironicamente aos patrióticos produtores nacionais de filmes o ataque desinteressado que promovem contra as dobragens, que evitariam muitos males.
Admite-se sem restrições a importação de películas realizadas no Brasil, o que por todos os motivos tolero, compreendo e louvo.
Mas aqui os ilustres defensores do património linguístico, por que lhes interessa a reciprocidade, isto é, a exportação para o Brasil das suas produções, deixaram no tinteiro as diferenças de sentido de palavras, de construção de frase e de pronúncia entre o português do Brasil e o português de Portugal, que só oficialmente possuem ortografia comum.
Amo muito os nossos irmãos brasileiros. Perdoem-me que prefira a nossa maneira de falar a língua de Camões.
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Também quando se importem, em regime de reciprocidade, filmes estrangeiros dobrados em português no estrangeiro logo desaparece a fúria patriótica de defesa do património linguístico... Não seria preferível falar francamente?
Sou contrário às taxas de exibição, especialmente quando muito elevadas e sempre que se apliquem a filmes culturais e educativos estrangeiros.
Mas se se teimasse no critério, que suponho errado, de procurar proteger a produção nacional através de um regime de taxas, seria justo deixar à opção dos distribuidores, na ocasião do licenciamento, uma de duas modalidades:- a de taxa fixa, mais baixa que as do decreto, ou a de taxa proporcional ao número de exibições de estreia.
Eles escolheriam conforme as suas próprias previsões de êxito comercial.
Concordo em que o emprego do Fundo cinematográfico nacional, entregue à administração do Secretariado Nacional da Informação, deve encontrar-se patente, não só aos olhos das corporações interessadas nos vários ramos da indústria cinematográfica, mais também a representantes dos Ministérios da Educação Nacional, Interior, Guerra e Economia.
Escuso de justificar este desejo. Em política, o que parece é - disse Salazar. Infelizmente, muitas vezes, fazem-se acusações infundadas, porque parece mas não é.
A meu ver, as receitas do Fundo conseguidas através do licenciamento serão insuficientes para incremento merecido da produção nacional. Distribuí-las provocará descontentamento seguro.
Não deveria referir-me agora aos célebres artigos 21.º e 32.°, aqui tão atacados, porque outros oradores os criticaram, devidamente. Mas não resisto a dar o meu apoio a esses ilustres parlamentares e a verberar, mais uma vez, não só a redacção vaga daqueles artigos, mas também tomar-se como base para os cinemas da província a semana de exibição. Quanto à exigência fixa de 50 por cento das receitas aos pequenos cinemas da província, considero-a exorbitante.
Por último, o artigo 25.°: o Secretariado, para impor a qualquer cinema do País a exibição dos filmes que julgar conveniente divulgar, estabelecerá com o organismo corporativo competente as condições da sua exibição.
O Secretariado ignora a organização corporativa quando se trata de prestigiá-la praticamente. Continua a ignorá-la quando defendeu os interesses dos seus agremiados contra a ameaça, conhecida de antemão, de um diploma contraproducente.
Mas a mesmíssima organização corporativa surge logo na lembrança do funcionário do Estado quando se necessita dela como veículo de uma imposição desagradável.
De há amos a esta parte foi assim que se promoveu o coro de protestos de agremiados e não agremiados contra a incipiente organização corporativa.
Sobre ela atiram-se os papéis odiosos, desvirtuando-lhe o significado e provocando mal-estar geral.
Estou convicto de que todos estes aspectos gerais e especiais da questão não puderam ser apercebidos pêlos signatários do decreto-lei n.° 36:062, que têm muito em que pensar e confiaram nos seus colaboradores.
Já em discurso anterior declarei que altos funcionários, por excesso de intervencionismo, atraiçoam as doutrinas geradas em 28 de Maio e defendidas com o sangue de muitas centenas de lutadores sacrificados.
Que alguns burocratas o fazem propositadamente, por ódio político, ninguém o duvida.
Não é esse o caso presente, porque os homens dos vários departamentos do Secretariado Nacional da Informação possuem pergaminhos autênticos de velhos trabalhadores pela causa nacional e nacionalista. Isso encontra-se atestado na sua repugnância pelas listas do MUD...
Por isso mesmo não deveriam cair em mais esta contradição - a do artigo 25.°
Sempre esperei deles bons exemplos de aplicação da orgânica e da doutrina, elevando e prestigiando as instituições corporativas, em vez de somente se servirem delas para actos de imposição.
Houve em Portugal um grande homem que, habituado a dirigir e comandar tudo e todos, desejou aproximar-se da Casa dos 24, a célula mãe das corporações portuguesas.
Nesse tempo, mesmo perante um homem poderoso, os dirigentes das corporações não abdicavam dos seus foros, nem do respeito pela harmonia dos poderes.
E logo responderam:
- Senhor, olhai que esta casa é dos 24 e não dos 25!
TJm Ministro grande e forte, expressão viva do automatismo de boa têmpera que vemos ainda hoje a pôr ponto final à liberdade feita avenida, interveio na Casa dos 24. Talvez por isso, paradoxal mas simbolicamente, os seus admiradores democratas colocaram-lhe a pé o famoso leão rugidor da Metro, domesticado por mão férrea e dócil como cachorro.
Mas até o marquês de Pombal moderou as suas veleidades de intervencionismo excessivo porque ceada uai em sua casa pode tanto que mesmo depois de morto são precisos quatro homens para o tirar». Bons tempos, em que cada qual sabia ser dono da sua casa!
Por tudo isto penso conveniente que o decreto-lei n.° 36:062 seja submetido à Câmara Corporativa. Portanto, votarei a ratificação com emendas.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Não está mais ninguém inscrito sobre este debate. Considero, portanto, encerrada a discussão.
Interrompo a sessão por uns momentos.
Eram 18 horas e 30 minutos.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão. Eram 18 horas e 40 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à votação.
De harmonia com as disposições do Regimento, vou submeter em primeiro lugar à votação da Câmara a ratificação pura e simples do decreto-lei n.° 36:062.
Submetida à votação, foi rejeitada a ratificação pura e simples.
O Sr. Presidente: - Vou agora submeter à votação da Câmara a ratificação com emendas do referido decreto-lei.
Submetida à votação, foi aprovada a ratificação com emendas.
O Sr. Presidente: - O decreto-lei n.° 36:062, em virtude da votação que a Assembleia acaba de fazer, está transformado em proposta de lei, e, nestes termos, vai baixar à Câmara Corporativa, para depois, com o parecer desta, voltar à apreciação desta Câmara.
O Sr. Pinto Coelho: - Peço a palavra para um requerimento.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra para um requerimento o Sr. Deputado Pinto Coelho.
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O Sr. Pinto Coelho: - Dada a importância do assunto, roqueiro que seja marcado prazo de urgência à Câmara Corporativa para esta dar o seu parecer.
O Sr. Presidente: - Vou consultar a Câmara sobre a urgência requerida.
Consultada a Assembleia, foi aprovada a urgência.
O Sr. Presidente: - Proponho o prazo de dez dias para a Câmara Corporativa dar o seu parecer.
Submetida à votação, foi aprovada esta proposta.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
A ordem do dia da sessão de amanhã será a efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Bustorff da Silva, sobre o problema monetário português.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 45 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Álvaro Eugênio Neves da Fontoura.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Carlos de Azevedo Mendes.
João Ameal.
João Garcia Nunes Mexia.
Joaquim Mandes do Amaral.
Jorge Botelho Moniz.
José Luís da Silva Dias.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Manuel Franca Vigon.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique de Almeida.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Cerveira Pinto.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim Saldanha.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Rafael da Silva Neves Duque.
O REDACTOR - M. Ortigão Bwnay.
Elementos a que aludiu o Sr. Presidente na sessão de hoje, fornecidos pelo Ministério da Economia, a requerimento do Sr. Deputado Artur Augusto de Figueiroa Rego, e cuja publicação se faz a pedido do Sr. Deputado José Alçada Guimarães:
1.° Quantidades de lãs chegadas aos postos aduaneiros portugueses nos meses de Janeiro a Dezembro de 1946:
[Ver tabela na imagem]
Total referenciado à base de sujo ....... 14.056:530
Nota. - Estes números foram retirados dos manifestos de carga.
2.° Quantidades de lãs importadas que foram desalfandegadas nos meses de Janeiro a Dezembro de 1946:
[Ver tabela na imagem]
Total referenciado à base de sujo ......... 12.761:535
Nota. - Estes números foram retirados dos boletins de cobrança de taxas que se tem conhecimento terem sido liquidadas.
3.° Quantidades de lãs, por classes, para que foram passadas licenças prévias de importação desde 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 1946:
[Ver tabela na imagem]
Total referenciado à base de sujo ........... 16.516:971
Nota. - Estes números foram retirados das licenças prévias passadas durante o ano de 1946.
4.° Existência de lãs na posse dos industriais em 31 de Dezembro de 1946:
[Ver tabela na imagem]
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA