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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 120

ANO DE 1948 8 DE JANEIRO

IV LEGISLATURA

SESSÃO N.º 120 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

Em 7 de JANEIRO

Presidente: Exmo. Sr. Paulo Cancela de Abreu

Secretários: Exmos. Srs. Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel Marques Teixeira

Nota.- Foram publicados três suplementos ao Diário das Sessões n.º 119, que inseriam: o 1.º e o 2.º os textos, aprovados pela Comissão de Legislação e Redacção, dos decretos da Assembleia Nacional sobre, respectivamente, autorização de receitas e despesas para o ano de 1948 e protecção ao cinema nacional e o 3.º o parecer n.º 23 da Câmara Corporativa, acerca do projecto de lei n.º 117 (alterações ao artigo 29.º do decreto-lei n.º 28:632 - julgamento de reclamações em matéria de hidráulica agrícola).
Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o Diário das Sessões n.º 119.
O Sr. Presidente comunicou que recebera da Câmara Corporativa o parecer respeitante ao projecto de lei de alterações ao decreto-lei n.º 28:65?.
Os Srs. Deputados Ricardo Durão e Botelho Moniz referiram-se à revolução de 3 de Dezembro de 1817 e ao Presidente Sidónio Pais.
O Sr. Deputado Linhares de Lima ocupou-se da situação do porto da Horta nos campos económico e militar.
O Sr. Deputado Melo Machado tratou da situação dos lavradores produtores de batata.
O Sr. Deputado Franco Frazão referiu-se ao problema da instrução primária.
Foi aprovado um voto de pesar pelo falecimento da esposa do Sr. Deputado Carlos Mendes.

Ordem do dia: - O Sr. Deputado Mendes de matos fez o seu aviso prévio acerca do exercício do comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas, ficando com a palavra reservada.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 45 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Albano da Câmara Pimentel Homem de Melo.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
Álvaro Eugénio Neves da Fontoura.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Proença Duarte.
Belchior Cardoso da Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Indalêncio Froilano de Melo.

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João Ameal.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da, Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquível.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Penalva Franco Frazão.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Mendes de Matos.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Borges.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Querubim do Vale Guimarães.
Ricardo Malhou Durão.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 62 Srs. Deputados.
Está abortada sessão.

Eram 16 horas.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o Diário das Sessões n.º 119.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Como nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra sobre o referido Diário, considero-o aprovado.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa o parecer da Câmara Corporativa sobre o projecto de lei relativo às alterações ao artigo 29.º do decreto-lei n.º 28:652 (julgamento de reclamações em matéria de hidráulica agrícola).
Convido o Sr. presidente da Comissão de Economia a convocar a mesma para a apreciação deste projecto.
Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Ricardo Durão.
Dada a natureza do assunto de que S. Ex.ª vai tratar, convido-o a ocupar a tribuna.

O Sr. Ricardo Durão: - Sr. Presidente: apesar de não ter havido sessão parlamentar no dia do aniversário da morte de Sidónio Pais, considero de toda a justiça prestar-lhe aqui as homenagens devidas, na primeira oportunidade, que hoje se verifica.
Senão, dir-se-ia que também nos esquecíamos dele.
É certo que as suas exéquias são cada vez menos frequentadas; a imprensa dedica à sua memória cada vez menos espaço; a bruma do esquecimento parece adensar-se à volta do seu nome. Não importa.
Para a História Sidónio não morreu ainda,, porque a glória pode merecer-se num dia, mas não se julga num século. Ela é como certos monumentos gigantes que a nossa vista não pode abarcar; é preciso vê-la de longe para lhe apreciar as dimensões.
Sr. Presidente: já vinte e nove anos passaram desde que tombou, varado a tiros de pistola, na estacão do Rossio, o mais generoso e o mais gentil dos nossos camaradas.
Quem o matou? Um energúmeno, um louco, um compelido? Não interessa. Se eu fosse advogado, oferecia-me para o defender, apontando à execração pública os verdadeiros responsáveis por esse crime abominável que cobriu de luto o coração de um povo. E a todas as luzes demonstraria, de dedução em dedução, a cumplicidade instigadora de certos doutrinadores esotéricos de seitas tenebrosas.
E se mais não digo é para não insultar os velhos; sobretudo para não ofender os mortos; apesar de que perante o tribunal da História são precisamente os mortos que podem ser julgados, porque é, sobretudo, além do túmulo que as virtudes avultam e as perversões aviltam.
Eu chego a ter compaixão desses dementados que constituem as levas do crime, as massas de choque.
Os verdadeiros criminosos não são eles: são aqueles teóricos matreiros que pontificam por trás de um livro ou de um jornal, esses filantropos que acusam a força pública de exorbitar contra mulheres e crianças que eles próprios atiram para a fornalha; são os cidadãos «incorruptos» que se escondem na sombra das alfurjas e só aparecem para usurpar, depois da vitória, o melhor quinhão do festim; são os falsos apóstolos que é preciso desalojar dos seus covis para os mostrar à luz do dia como exploradores da mentalidade troglodita e da fúria iconoclasta dos loucos e das turbas.
É certo que vivem sob a vigilância da polícia, mas fàcilmente se escapam pelas malhas da investigação criminal, porque são sempre as suas vítimas que os salvam e em seu lugar se sacrificam.
Alguns deles têm cursos superiores, são doutores formados em várias Faculdades, recebidos na melhor sociedade, e ostentam na lapela, distintivos de ordens veneráveis; outros são professores, escritores ou conferencistas que vão destilando o veneno, semeando a peçonha através de conceitos dissolventes de uma propaganda fácil; e, como o aprendiz de feiticeiro, nem sequer se apercebem das consequências inevitáveis da sua imprevidência de onde se prova que nem sempre são as pessoas mais estúpidas as que procedem mais estùpidamente.
Há, de fado, indivíduos mais perigosos do que os passadores de moeda falsa, que são os passadores de ideias falsas. Mas, reatando:
Foi, com efeito, o sectarismo demagógico dos apóstolos da trilogia liberal que armou ou, pulo menos, não quis desarmar o braço irresponsável do assassino de Sidónio Pais.
Eu disse trilogia liberal; seria mais próprio dizer libertária ou libertina, purgue liberal também Sidónio era. E, apesar do fino quilate da sua alma aristocrática, nunca a democracia em Portugal encontrou mais estreme defensor, o que mão impediu, todavia, que ele tivesse sucumbido precisamente às mãos do jacobinismo inveterado da sua geração, esse jacobinismo mórbido,

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epidémico, de que ele próprio não conseguiu depurar a sua alma ardente de paladino.
Alguém que veio depois de Sidónio, do mesmo cenáculo de Coimbra, logrou, no entanto, dar forma e expressão ao seu sonho de beleza, procurando despojá-lo das impurezas políticas da época. Esse homem, mais frio, mais objectivo e, sobretudo, refractário a influências passionais, concretizou, dez anos depois, nestas palavras proféticas, as primeiras linhas de um programa: «Há ideias de tal maneira gastas que já não é possível edificar sobre elas nada mais do sólido». Esta sentença ressoa como um dobre de finados, como o som cavo da tampa de um ataúde, que tomba para não mais se levantar.
A alguém, que foi amigo de Sidónio e era um alto espírito, ouvi dizer um dia que o sidonismo marcou simplesmente como um risco na água. É possível. Faltava-lhe porventura a sequência lógica de uma prévia intenção de comando; faltava-lhe a polarização da vontade nacional numa direcção firme e consciente; faltava-lhe, enfim, o que caracteriza esse estado eminentemente genético da vida dos povos, em que eles se organizam dentro de formas estáveis e partem confiados para o futuro, erguendo os seus destinos nas suas próprias mãos.
O sidonismo foi, no entanto, o portador abençoado de um pensamento de justiça imanente e de bondade aliciante, de uma ideia generosa e prematura, desfraldando ao vento inclemente do acaso a vela branca de uma ilusão fagueira, de proa feita ao país da quimera, perdido lá ao longe na névoa de um sonho.
Foi essa quimera dourada que o povo informou numa lenda de eterna fragrância, que cerca com um nimbo de poesia e saudade a última flor de cavalaria que surgiu na boa terra portuguesa.
Quando me lembro da figura gentil de Sidónio Pais vem-me sempre à memória aquela formosa boutade de Alfred de Vigny, que, em tradução libérrima, dá isto, pouco mais ou menos: «No dia em que de todo desaparecerem no Mundo a lealdade, a candura, a abnegação, a honra, a dignidade, o amor, tudo o que ainda resta de belo e de grande à luz do sol, nesse dia abra-se um furo até ao centro da Terra, encha-se bem de pólvora e largue-se-lhe o fogo, para que o nosso planeta estoire como uma bomba no meio do firmamento».
Como todos os poetas de eleição, Vigny foi profeta. Quanto à primeira parte da sua profecia, verifica-se, de facto, que a derrocada moral se aproxima num declive impressionante - e, o que é pior, sob o signo da hipocrisia -, ameaçando subverter, na voragem da tráficância e da mentira, todos os princípios basilares da ética. No que respeita à segunda parte, também já temos a receita para estoirar com tudo.
E, mesmo que o suicídio colectivo não se consumasse, a verdade é que, no meio deste desencadear de instintos, no meio desta exibição grotesca e macabra da prepotência e do orgulho humano, que só no fratricídio se comprazem, Deus, na iminência de se desacreditar, deve sentir porventura a necessidade suprema de provar aos homens que tem mais poder do que eles. Seria talvez a única forma de fazer renascer na Terra o temor de Deus.
E eu chego a crer que não vale a pena adiar o cataclismo, porque, se não fossem certas manifestações de espiritualidade e de beleza no género da epopeia de Sidónio Pais, se não fossem estes raios de intensa luz, cada vez menos frequentes, a rasgar de quando em quando a treva da existência, seria de facto insuportável a vida no planeta.
E é curioso; dir-se-ia que Alfred de Vigmy, ao enunciar aqueles atributos, humanos, indispensáveis para que o nosso mundo seja habitável - a lealdade, a candura, a abnegação, a honra, a dignidade, o amor -, entreviu nas brumas do porvir uma figura à imagem e semelhança de Sidónio Pais.
Senão, analisemos em detalhe:
A lealdade. - Foi esta, com efeito, a sua virtude essencial, aquela que inspirou todos, os actos da sua vida. Bem poderia Sidónio enfileirar, sem desdouro, nessa teoria gloriosa dos grandes cavaleiros medievais.
Entre os alcaides da l.ª dinastia alguns há que se parecem com ele. Martim de Freitas, por exemplo, ao defender a praça de Coimbra contra tudo e contra iodos, foi tão pertinaz na fidelidade ao seu rei como Sidónio na sua lealdade à República.
O próprio Gonçalo de Faria, ao cair traspassado pelas lanças castelhanas sobre o terrapleno de combate do seu castelo roqueiro, quando fez a última exortação a seu filho, não foi maior do que Sidónio ao murmurar no derradeiro alento: «Morro bem, salvem a Pátria!».
A candura. - Por mais paradoxal que pareça, não é fácil encontrar num homem uma alma cândida como a sua. Só comparável à do povo português, de cuja bondade imanente o herói nunca descreu.
Sidónio ignorava totalmente o grande mal do nosso tempo, o mal que invade toda a escala social, o mal que paralisa o pensamento contemporâneo: a cobardia moral.
Ele confiava cegamente na sua estrela e na gratidão do povo pelos seus altas desígnios.
Como Miguel de Unamuno, ele poderia dizer, com o mesmo sorriso desiludido e melancólico: «Eu pertenço ainda ao número dos incautos que se propõem salvar o género humano sem conhecer os homens».
A abnegação. - Na sua vida e aia sua morte, na sua actividade oficial como na sua actuação privada, ninguém mais abnegado do que Sidónio Pais.
Muitas vezes ao menor prenúncio- de alteração da ordem, enquanto a cidade dormia, Sidónio velava, percorrendo à noite as ruas de Lisboa, montado no seu cavalo branco, sem escolta e sem séquito.
Foi assim que ele tombou sobre o front da defesa social, na luta cruenta por um Portugal melhor.
A honra. - Sidónio só tinha uma palavra e nunca deixou de a cumprir. Quem o ouvisse prometer vê-lo-ia sempre realizar.
Nos tempos que correm, em que a firmeza às promessas contraídas não passa geralmente de um mito ou de uma blague, seria para desejar que o seu sistema desabroche e o seu exemplo frutifique.
Não se é honrado impunemente; a honra também paga os seus tributos.
A dignidade. - Sidónio Pais lançou em torno do seu busto airoso a banda das três ordens, que até então só os reis tinham usado. Mas Sidónio era um rei!
Poderiam acusá-lo de coquetterie. Não importa; a sua dignidade ingénita de cavaleiro fadado para altos destinos imunizava-o por completo do ridículo.
Sidónio Pais tinha sobretudo a dignidade da sua intrepidez. E aos bravos todo o orgulho é lícito; aos bravos de lei toda a coquetteria se releva e até por vezes nos enternece.
Isto, é claro, quando a bravura não se traduz numa falta de dignidade; porque há também qualquer coisa de bravo naquela audácia impudica como certas pessoas se apresentam na rua com um escarro na cara.
Finalmente, o amor. - Amar e ser amado era o supremo anseio da sua alma comunicativa, eternamente enamorada. E esse desejo ardente realizou-o Sidónio Pais como ninguém. Amou profundamente o seu povo o foi amado por ele com a mesma intensidade. E assim tinha de ser, porque a corrente de simpatia que se gera entre as multidões s o seu caudilho, a acção magnética

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que se estabelece entre o indutor e o induzido, como toda a espécie de amor na Terra, requer reciprocidade.
Para defender os direitos do seu povo, para outorgar justiça à sua gente, Sidónio Pais, como o pelicano simbólico, desentranhava-se em sacrifícios admiráveis.
Ao contrário do que muita gente diz, Sidónio nilo amava as mulheres; .pelo menos na acepção servil e subalternizante do termo.
Evidentemente que o seu espírito galhardo de sonhador impenitente, aliado à sua garbosa compleição varonil, denunciava nele um temperamento afectivo, exuberante.
Mas os seus amores eram outros:
Era o amor da Pátria, o amor da justiça, o amor do povo; era aquele amor inconsútil que o Príncipe Perfeito nutria «pola Lei e pola grei».
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Botelho Moniz: - Sr. Presidente: 5 de Dezembro de 1917 - 14 de Dezembro de 1918. Entre estas duas datas tão próximas passa, com rapidez de meteoro, o período culminante da vida, paixão o morte do Sidónio Pais.
Em 8 de Dezembro de 1917, após três dias de lutas porfiadas, que ilustraram combatentes de ambos os campos, as forças comandadas por Sidónio venceram a batalha.
Finalmente, depois de tantos anos do apagada o vil tristeza, uns centos de rapazes ardentes e patriotas, magnificamente acaudilhados por chefes exemplares, conseguiram ver realizado o milagre, imprevisto. E assim começou na nossa história., entre brados de entusiasmo e sorrisos de mulher, mais uma aventura maravilhosa.
Em 14 de Dezembro de 1918 o sonho pareceu desfeito pela morte do herói.
Os nossos olhos, talvez por cheios, do lágrimas, não conseguiram enxergar o futuro. A mocidade inexperiente rugia de dor e clamava vingança - mas perdeu o rumo.
Estalaram dissidências entre os homens mais velhos, surgiram ambições entre os grandes vultos, políticos de então, dividiram-se os espíritos anteriormente irmanados pelo fulgor de Sidónio, e bem depressa a desordem voltou, com seu cortejo de guerra civil, de sangue derramado em lutas fratricidas, de retaliações, injustas, de ódios e paixões a rosnarem sobre cadáveres e sobre presos, de garras de fera a despedaçarem uma pátria.
O sonho pareceu desfeito. O herói, que o povo aclamara em delírio, parecia- jazer inerte no seu túmulo dos Jerónimos. O caudilho, que galvanizara o exército, parecia haver terminado a sua carreira.
Mas, por graça de Deus, as almas são imortais. E, por dom ainda mais belo do Criador, as almas dos santos e dos heróis, logo que libertas do seu invólucro terreno, voam mais alto, dominam horizontes mais vastos e comandam com segurança maior: repetindo o milagre das conquistas do cristianismo, transformam em legião o que antes fora apenas centúria.
O espírito de Sidónio Pais, incarnado nos seus discípulos, nos seus amigos, nos seus cadetes - que somos todos nós -, voltou a travar batalha.
E ele que nos guia, com Raul Esteves, Filomeno da Câmara e Sinel de Cordes, na nova aventura de 18 de Abril de 1925. A derrota material retemperou os nossos corpos, fez-nos criar mais forças e logo em 21 de Julho do mesmo ano José Mendes Cabeçadas e meia dúzia do bravos voltam à liça, ainda desta vez sem resultado.
Não desanimámos, porque a causa que servíamos ora verdadeiramente nacional. Por fim, em 28 de Maio de 1926 o exército e a armada, conduzidos por Gomes da Costa, Mendes Cabeçadas, Oscar Carmona e uma verdadeira legião de cadetes de Sidónio, transformou o sonho em realidade magnífica.
Mas, como se o destino quisesse pôr à prova as nossas faculdades de resistência, a breve passo voltaram a transbordar as desinteligências, os ódios e as paixões.
Antes de atingirmos o equilíbrio estável de hoje, que longo e doloroso caminho houvemos que desbravar! O 3 do Fevereiro, no Porto, o 7 de Fevereiro, em Lisboa, o 20 de Julho, a revolta da Madeira, o 26 de Agosto s as repercussões da guerra de Espanha enlutaram e perturbaram a vida nacional - mas possuíram o condão de demonstrar que nada perdêramos do espírito de sacrifício e do valor combativo que Sidónio nos legara.
Com o sabor de experiência feito, com a lição dos dias angustiosos de Dezembro do 1918 e Janeiro de 1919 (manchados péla desunião dos companheiros do herói), em todas essas ocasiões soubemos, os que éramos situacionistas convictos, cerrar fileiras perante o perigo comum.
Por isso mesmo merecemos vencer.
Por isso mesmo também, ao terminar a última sessão legislativa, porque sentia quanto andavam turvados os ânimos, mesmo entre velhos companheiros, fiz um apelo sincero à unidade nacional e aos sacrifícios que ela exige.
Poderei ter desagradado a gregos o troianos, por não se encontrar suficientemente difundido no País o patriótico sentido de renúncia pessoal que está na base do Estado Novo.
«Mal com el-rei por amor dos homens, mal com os homens por amor de el-rei»! Que importa, se essa pode ser a posição mais honrosa para homens de carácter!
Por isso hei-de continuar afirmando que as oposições erram gravemente ao negarem, em bloco, a obra formidável que o Estado Novo, sob a égide de Carmona e Salazar, conseguiu realizar.
Hei-de continuar convencido do que nem o ódio a alguém, nem o despeito pessoal ou político, nem a ambição insatisfeita, nem a própria injustiça que nos haja ferido, constituem razão do rebeldia.
hei-de continuar pedindo que sacrifiquemos o acessório ao essencial, a parte ao todo, a paixão individual ao progresso da grei, as críticas acerbas à necessidade de paz interna, e as censuras de pormenor à grandeza incontestável da obra de progresso material e de paz espiritual que já se realizou.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Hei-de continuar afirmando que os erros e as violências de um lado não desculpam os erros e as violências do outro lado.
E não me cansarei de verberar aqueles que no combate usam armas indignas, afrontas odiosas ou processos desleais.
Especialmente para o lado do Governo hei-de continuar a dizer que é preciso sabor ouvir censuras, para conseguir realizar mais e melhor.
E, exactamente porque detém o Poder, e já demonstrou à evidência a sua força moral e material, deve saber atrair e, sempre que possível ou logo que possível, perdoar aos seus inimigos.
Hei-de continuar afirmando que trairíamos a Pátria se déssemos foros de cidade ao comunismo, quer franco, quer rotulado de «antifascismo» ou disfarçado sob a designação falsa e paradoxal do «democracia».
Mas também não me cansarei de repetir que, por minha parte, não vejo perigos, o só vantagens, na existência de uma oposição patriótica que, dentro das nor-

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mas previstas na Constituição Portuguesa e legislação complementar, formule livremente as suas críticas.
Não tenho do saber se Carmona ou Salazar, ou os demais situacionistas, discordam desta minha última opinião, aliás já expressa, na sessão legislativa anterior.
Sòmente sei que não devo melindrar-me se não estiverem de acordo comigo.
Sòmente sei que uma discordância parcial não podo desculpar um afastamento total, mormente porque ninguém impediu o exercício dos meus direitos ou me exigiu deveres incomportáveis.
Quando expus a Salazar o meu problema de consciência, esse homem, que os seus inimigos acusam de tirano, respondeu: «Só a Situação deve interessar àqueles que por ela se têm batido. Do Governo é lícito discordar-se. Critique-o quando o julgar necessário».
Tenho cometido muitos erros e ainda hei-de cometer mais alguns. Mas, nunca, praticarei a falta irremediável de me afastar da Situação ou de deixar de a defender no campo em que a defesa for necessária.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Poderei não ser compreendido, ver-me acusado de rebelde por uns ou por outros de acomodatício. Poderei sofrer ataques da extrema direita e da extrema esquerda ou até ficar completamente isolad por manifestar discordâncias.
Que importa isso se nada desejo para mim?
Sòmente peco a Deus que o espírito de Sidónio nos ilumine.
Durante trinta, anos consecutivos, sem um interregno e sem uma dúvida, sem hesitações nem desfalecimentos, os verdadeiros cadetes de Sidónio têm procurado ser dignos da herança que ele nos legou. Recusaram-se ontem e recusam-se hoje a renegar o mestre.
Porquê?
As almas dos santos e dos heróis, logo que libertas do seu invólucro terreno, comandam com segurança maior e dominam a mesquinhez dos homens.
Mu, que nunca me submeti incondicionalmente a nenhum vivo, obedeço com a fidelidade mais ardente à memória sagrada de Sidónio.
Ele não quer que os seus cadetes se dividam.
Ele não pode querer que o regime político actual, filho do seu espírito, planta da sua semente, fruto abençoado do seu martírio, se enfraqueça pela divisão dos homens.
O Estado Novo pode orgulhar-se de haver feito renascer um Portugal progressivo e forte. Quem realizou essa obra gigantesca e tem sabido aperfeiçoá-la e conservá-la em meio de um Mundo em ruínas merece que nos unamos em seu redor..

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Naquele dia 14 de Dezembro, em que Sidónio foi assassinado, ele disse-me que não devo pronunciar novas frases de ódio ou de vingança. Pelo contrário, ele, que tanto desejou a conciliação nacional, impõe-me, a mim, fervoroso combatente de todas, as horas, o primeiro passo no caminho da renúncia e da humildade.
Eis porque ao Chefe do Estado, ao Presidente do Conselho, ao Governo, à Assembleia Nacional, aos meus queridos companheiros de ontem e de hoje, aos camaradas de sempre e também a todos os nossos adversários políticos que souberam conservar-se patriotas, a todos os portugueses, enfim, dirijo estas palavras: nesta Europa, que foi devastada pela guerra entre povos e agora está ardendo nas chamas de inglórios ódios políticos, sejamos o exemplo e sejamos o guia da mais digna unidade nacional!
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito e cumprimentado.

O Sr. Linhares de Lima: - Tem V. Ex.ª notícia, Sr. Presidente, como os meus ilustres colegas, da desolada situação criada aos faialenses pelo forte temporal que assolou a cidade da Horta, inutilizando em parte considerável a sua doca, reduzindo impiedosamente o valor do seu porto de abrigo artificial e pondo os moradores da parte marginal em sério e perigoso risco de vida e de haveres, pois que também a muralha que a defendia, já bastante aluída, ficou na iminência de arrastar na derrocada a quase totalidade dos prédios que, fronteiros ao mar, apenas deste são separados por uma estreita via - a Rua do Mar -, que contorna aquela muralha.
Em toda a parte, em todas as terras, há sempre um monumento, uma igreja, um convento, uma obra de arte, que os bairristas tomam por padrão e símbolo do orgulho regional.
Para a população do distrito da Horta a sua doca e o seu porto de abrigo, que ufanamente consideram o melhor do arquipélago e um dos mais belos do Mundo, constituem o mais querido brasão de honra.
O porto de abrigo natural, esse oferecera-lho generosamente a Providência, traçando a larga e linda baía da Horta numa pronunciada e elegante curva reentrante, entre o promontório da Espalamaca e os montes Queimado e da Guia, tendo por fundo, a uma minguada légua de distância, a majestosa ilha do Pico, irmã gémea, solidária, com vida comum, que até neste caso quis comparticipar na valorização do panorama de conjunto e na guarda e defesa da Horta.
Pouco mais de um século passado sobre o povoamento da ilha, por 1567, tiveram início as obras da muralha de defesa da cidade.
Os vendavais e os ciclones, frequentes naquelas paragens, obrigaram, porém, a periódicas reparações, que começaram logo em 1604, cerca de quarenta anos depois de concluídos os trabalhos de construção. Em períodos progressivamente mais curtos novas arremetidas do mar o novas reparações. Estas, porém, cessaram e durante dezenas de anos seguidos a muralha foi completamente abandonada à acção do tempo.
À Direcção das Obras Públicas do distrito esteve mesmo mais de vinte anos sem um único engenheiro.
Nestas condições, o penúltimo grande temporal, em Outubro de 1946, fez estragos de tal ordem que deixaram a muralha na contingência de completa ruína.
Nesta altura o Ministério das Obras Públicas procurou intervir, pondo remédio à situação, mas infelizmente a impossibilidade criada pelas circunstâncias anormais resultantes da guerra obrigou a demoras, e em Dezembro último é a cidade novamente assolada por uma grande tempestade, que, destruindo novos troços da muralha e aluindo ainda mais os seus alicerces, nos colocou diante dum problema que exige solução rápida e urgente.
O porto artificial, também agora duramente atingido pela fúria do mar, constituiu durante quase três séculos uma instante aspiração dos faialenses.
A primeira ideia sobre a sua construção pretendia o aproveitamento da baía de Porto-Pim, e sobre o projecto informava o provedor da Real Fazenda nas ilhas dos Açores o Governo de Sua Majestade de que a obra podia ser realizada com pouco cabedal e aproveitando a boa vontade dos moradores da ilha.
Por 1750, uma memória de autor desconhecido, publicada no Arquivo dos Açores, referindo-se ao porto arti-

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ficial em Porto-Pim, enaltece a obra, afirmando que o local «o talhou a Natureza de forma que só basta defender-lho a boca para ficar seguro por todos os lados».
Parece que este projecto teve começo de execução, mas não se conhecem hoje os motivos por que não foram por diante os trabalhos encetados.
Depois de esta tentativa fracassada começou apensar-se na construção do porto artificial na baía da Horta.
Por 1798 um oficial da marinha de guerra inglesa apresenta o primeiro estudo nesse sentido; em 1839 vai à Horta um engenheiro encarregado pelo Governo de informar a pretensão dos faialenses; depois os Deputados pelo círculo reclamam em sucessivas legislaturas a solução do problema; até que finalmente em 1876 foram iniciados os trabalhos de construção da doca actual.
Para as despesas da obra foram criadas receitas próprias pela lei que em 1867 tinha autorizado o Governo a realizar o projecto aprovado.
Em grande parte essas receitas provinham de novos impostos a suportar pela população do distrito.
Assim mais se vincou o carinho e desvelo dos faialenses pela sua doca, obra da sua dedicação regionalista.
Sr. Presidente: não foi bem para fazer história que tive a honra de solicitar de V. Ex.ª o uso da palavra. É que o porto da Horta é a única porta aberta para o comércio do distrito, sobretudo o das ilhas do Faial e Pico, e é ainda só aquele que pode oferecer refúgio seguro às embarcações de pesca e de cabotagem daquelas ilhas, em casos de emergência.
É um órgão vital, que, uma vez atrofiado, atrofiará igualmente toda a economia do distrito, o seu já reduzido tráfego e possibilidades de desafogo.
As condições de vida económica do distrito são realmente já hoje tão precárias que a inutilização do seu porto constituiria uma verdadeira calamidade.
Mas este assunto merece mais largas considerações e terá portanto de ser tratado em outra oportunidade.
Entretanto há ainda que dizer que a esplêndida baía da Horta não tem só o valor do entreposto de toda a actividade do comércio com o exterior e interinsular, mas oferece também disposições de inestimável valor como base possível de operações militares.
Se nos surgir uma nova guerra mundial - o que não julgo improvável, porque, se confio na magnanimidade de Deus, não creio no merecimento dos homens -, todo o arquipélago dos Açores, e particularmente o porto da Horta, poderão prestar aos nossos eventuais aliados serviços inestimáveis.
As alturas que dominam por todos os lados a baía e a fronteira ilha do Pico, a pequena distância, quando convenientemente fortificadas, estabeleceriam um ponto de apoio inexpugnável no centro do Atlântico Norte.
A tese é bastante antiga; já em 1567 o Governo da Regência mandou proceder à construção de muralhas e fortificações para defesa da ilha. Em 1630 Filipe III ordenou novos trabalhos nesse sentido.
Mas esta necessidade é ainda reconhecida muito mais recentemente por diversos escritores militares, e entre eles pelo ilustre general e notável homem público conselheiro José Estêvão de Morais Sarmento, que com grande proficiência preconizava á fortificação da Horta como indispensável à defesa da nossa soberania.
Na Revista Militar de Maio de 1930 dizia-se:

A formidável posição estratégica e geográfica constituída pelo grande porto natural da Horta, com o artificial e a ilha do Pico a defendê-la por leste, e a ilha de S. Jorge, embora mais distante, obrigaria qualquer divisão naval que pretendesse atacar. forças de reabastecimento a dividir-se pelo menos em duas fracções.
Não obstante, vejam V. Ex.ªs: durante a guerra de 1914-1918 aquela formidável posição dispunha de quatro peças, com o alcance duma espingarda de infantaria!
Continuava porém o autor:

Note-se que o distrito da Horta recruta pessoal suficiente para poder mobilizar, no activo, três baterias de artilharia, um grupo de metralhadoras e duas companhias de atiradores, completas, e poderá mobilizar na reserva activa cerca de 2:800 homens.
Mas ao mínimo alarme ó necessário socorrê-lo com pessoal e material do continente, com grandes despesas, além dos riscos.

Ao Estado Novo têm merecido o mais decidido interesse os problemas militares. Depois da reorganização da marinha de guerra, levando-a do zero naval à situação condigna de hoje, o exército tem recebido também o material necessário para assegurar a sua eficiência, e sobretudo nos últimos anos foi dotado de maneira que, permitindo já uma perfeita instrução dos quadros, garante a confiança que o País tem na sua competência, valor profissional e patriotismo.
Para tão brilhante situação, desconhecida desde tempos esquecidos, contribuiu apaixonada e acertadamente o actual Ministro da Guerra, oficial distinto e professor ilustre do nosso estado maior.
Convencemo-nos de que o problema da defesa das ilhas atlânticas continuará nas suas preocupações e que logo que se lhe ofereça oportunidade não deixará de completar a sua inteligente acção governativa colocando a Horta, sob o ponto de vista militar, em condições de valorizar mais e melhor a política externa da Nação e os interesses da sua soberania.
Temos a convicção absoluta de que as circunstâncias de abandono em que os Açores se encontraram em 1914-1918 não mais se repetirão e que mesmo aquelas que em 1939-1944 nos ofereceram uma posição digna no último conflito armado serão ultrapassadas em nova emergência, pois que poderemos então, nós próprios, dispor de elementos ainda de maior eficácia e apreço.
Tenho ouvido dizer que às vantagens decisivas do porto militar da Horta se opõe a carência de meios de reabastecimento das duas ilhas vizinhas. Esquece-se que a ilha de S. Jorge, a curta distância da do Pico, é terra farta e de grande produtividade.
Voltemos, porém, ao caso de agora e que me determinou a usar da palavra.
É duma urgência premente acudir ao porto artificial da Horta e à muralha da cidade, prevenindo sobre os desastres de hoje uma possível catástrofe de amanhã.
Não pretendi, Sr. Presidente e meus senhores, ao tratar este assunto na Assembleia, chamar a atenção do Ministério das Obras Públicas para a situação, porque sei que tem sido acompanhada por aquele departamento governamental com o mais desvelado interesse.
Sei que S. Ex.ª o Ministro das Obras Públicas, que conhece pessoalmente o distrito da Horta, onde deixou profundas simpatias e grandes esperanças, se tem ocupado do acontecimento, e que mesmo logo a seguir ao ciclone de 1946 dera a sua aprovação a um plano de reconstruções que remediaria definitivamente a precária situação do porto artificial e da muralha de defesa da cidade da Horta, abrindo também uma boa avenida marginal.
Sei que só as condições criadas pela guerra dificultaram a execução daquele plano, tendo-se frustrado todas as diligências para aquisição do material pesado indispensável.
Sei que agora, logo que no Ministério houve conhecimento do desastre, se mandou seguir para o Faial por via aérea (Lajens) um engenheiro especializado, que ali está há alguns dias com ordem do estudar in loco as

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medidas de emergência necessárias, que serão executadas imediatamente.
E sei que em face do que se verificar será revisto o plano definitivo, para seguidamente ser levado à prática.
Sei ainda que, concluídas as obras definitivas, ficará o porto da Horta dotado com dois potentes guindastes e uma draga de grande rendimento, para que seja possível manter o porto e a muralha em bom estado de conservação e proceder ao desassoreamento periódico, como é indispensável.
O meu intento, pois, ao usar da palavra nesta Assembleia, limitava-se a dar conhecimento a V. Ex.ª, Sr. Presidente, e a V. Ex.ªs, Srs. Deputados, da magnitude do desastre que atingiu a cidade da Horta e a solicitar que me acompanhem ao testemunhar aos faialenses a nossa solidariedade com os sentimentos da mágoa que sofreram pela tormenta que os atingiu, colocando parte da população da Horta em grave risco de vida e haveres, e ao mesmo tempo afirmar-lhes a certeza de que o mal terá remédio pronto e imediato, podendo a população do Faial continuar a manter íntegra a confiança na acção sempre atenta e operante do Estado Novo.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Melo Machado: - Sr. Presidente: o meu querido amigo e muito distinto colega Dr. Bustorff da Silva no seu magnifico discurso aqui proferido no dia 15 de Dezembro último, quando da discussão da lei de meios, foi, digamos, um bocadinho injusto para com os lavradores que se dedicam à plantação de batatas, e são essas palavras de injustiça que eu pretendo levantar aqui para que se não diga que não houve na Assembleia Nacional quem defendesse a actuação da lavoura.
Disse S. Exa.: «E ao passo que reclamo para a lavoura que se manteve calmamente no trilho das suas actividades sãs, semeando o mais e o melhor possível, dentro das suas possibilidades climatéricas ou geográficas, não acho forma de descobrir fibra que se sensibilize perante o infortúnio dos que, na ambição de lucros desmedidos, romperam a semear batata em terrenos impróprios pela carestia de cultura e todas as demais circunstâncias já enunciadas e acabaram por perder dezenas ou centenas de milhares de escudos. Esses não agricultaram, especularam. Perderam? É a trista sina de quem joga».
A simpatia e amizade que temos por S. Exa., o brilho sempre encantador das suas palavras e da sua argumentação, não podem todavia convencer contra as necessidades e conveniência nacionais. A agricultura, farta de perder em tudo o que semeia, quando vislumbra em qualquer produto uma possibilidade de lucro, lança-se naturalmente a ela na ânsia de melhorar a sua precária situação. Parece uma reacção legítima, embora nem sempre inteligente. O nosso brilhante colega chama-lhe especulação, e se mesmo como tal quiserem considerá-la eu direi: abençoada especulação, que deu a este País uma abundância de batata como nunca teve, que chega perfeitamente para o abastecimento público sem quaisquer necessidades de importação, e dando lugar a uma melhoria de preços que não tem necessidade de ser coerciva porque resulta da própria abundância. Quando a lavoura especula os resultados são sempre favoráveis à comunidade e por isso a sua especulação é digna mais de agradecimento que de censura.
Onde actuam os verdadeiros especuladores? Ou no consumidor ou na produção. Tornada perigosa, pelas medidas do Sr. Ministro da Economia, a especulação junto do consumidor, essa especulação voltou-se contra a produção. Apesar de poder vender balatas a 2$ o quilograma, vende-as a l$60, e todavia o preço que oferece ao produtor é de $70 o quilograma.
A pessoa mais leiga nesta assunto compreende fàcilmente que este preço, quando o oficialmente aprovado para a batata de semente foi de cerca de 0$ o quilograma, o preço dos adubos era e ainda, é altíssimo, a mão-de-obra avidamente disputada por todo este abençoado frenesi de trabalho e de progresso que agita o País, a pagar-se como nunca se pagou, se traduz num preço de ruína confrangedor e sobre cujas gravíssimas consequências importa meditar.
A situação é particularmente angustiosa nas Beiras e em Trás-os-Montes e eu creio que ninguém virá dizer-me que se trata, de regiões onde a cultura da batata não é tradicional. A situação dos produtores dessa região é calamitosa; da sua produção, que este ano foi grande, ainda não conseguiram escoar anais que uma parte insignificante. O precioso tubérculo apodrece em grande quantidade e o preço alcançado para o pouco que se pôde vender inutiliza todo o esforço feito e deixará em precárias circunstâncias durante muito tempo a lavoura des regiões.
Interessa a alguém esta situação? Mesmo para os que possam ter o coração tão duro que vejam com indiferença a situação calamitosa destes lavradores que não cometeram outro crime senão o de produzir um produto tão necessário que na sua importação se gastaram nada menos de 6l:190 contos poderei ainda perguntar: interessa ao País esta situação? Estamos tão ricos que seja indiferente que uma das mais prestimosas classes possa, ser lançada na miséria, diminuindo as suas possibilidades de trabalho pela criação de uma situação financeira catastrófica? Não preocupa o problema do abastecimento por forma que seja indiferente que se percam por apodrecimento grandes quantidades desse produto cuja falta já tão vivamente sentimos? Será indiferente que a batata adquirida para semente a preços altos, visto que a sua venda se encontra autorizada, ao preço de 185$ cada saca de 50 quilogramas, tenha de ser vendida ao preço da do consumo por não haver quem a adquira para semear?
Será porventura de desejar que em virtude deste desastre económico não venha o, produzir-se no próximo ano batata que chegue para o consumo interno, quando se sabe que a sua aquisição no estrangeiro se vai tornando cada vez mais difícil, senão impossível? Não será necessário considerar os inconvenientes de ordem social resultantes tio aviltamento de preços da cultura basilar das citadas regiões?

O Sr. Querubim Guimarães: - V. Ex.ª dá-me licença ? ... Posso afirmar que na minha região muitos dos grandes produtores de batata resolveram este ano não a semear. O prejuízo que disso pode resultar é grande.

O Orador: - Agradeço o esclarecimento e devo dizer que não me esqueci da região de V. Ex.ª; simplesmente ela não está nas angustiosas circunstâncias em que se encontram as da Beira Alta e de Trás-os-Montes, porque teve ocasião de mandar este um para os grandes centros de Lisboa e Porto muito mais batata do que tinha mandado nos anos anteriores.
Sr. Presidente: afigura-se-me que a ninguém interessa o estado de coisas actual. Não é só condenável a especulação contra o consumidor. A especulação contra a produção é igualmente condenável, até porque ao cabo e ao fim acaba por atingir o consumidor. Entre os 2$ do tabelamento, ou mesmo os 1$60 de venda ao público neste momento, e o preço de $70 que se paga

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na produção há margem pura compensar melhor a produção.
Se a batata existente neste momento excede as necessidades do consumo, que se exporte a parle excedente, concorrendo-se assam para acudirmos às faltas alimentares de toda a ordem que existem na Europa. Se mio excede e apesar disso se podem manter na produção preços de especularão, que se exporte unia parte, contra recebimento de igual quantidade quando se preveja a sua necessidade, pois qualquer movimentação substancial do produto daria naturalmente uma firmeza razoável de preços.
Se no meio de uma Europa em fome não servem ou não podem, inexplicàvelmente, ser adoptadas estas soluções, tomem-se outras que os organismos competentes, auxiliados pelos interessados, possam concertar, mas faça-se alguma coisa para evitar o desastre de uma próxima colheita exígua, o que será duplamente inconveniente, pois tal desastre se reflectirá no consumidor e no produtor e, por via de ambos, na economia nacional.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Bustorff da Silva: - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Só poderei conceder a palavra a V. Ex.ª para explicações, visto que estão inscritos antes de V. Ex.ª outros Srs. Deputados.

O Sr. Bustorff da Silva: - Visto que o Regimento não me consente responder imediatamente ao Sr. Deputado Melo Machado, peço a V. Ex.ª que me inscreva para amanhã nó período de antes da ordem do dia.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Franco Frazão.

O Sr. Franco Frazão: - Sr. Presidente: a instrução primária é para a grande maioria da população a única possibilidade de acesso à cultura. Do grande exército de alunos que frequenta as escolas, com o seu efectivo de 600:000 almas, apenas um pequeno regimento, consegue progredir, sofrendo tremendas baixas, além dos primeiros objectivos, que são o ler, escrever e contar.
Não resta, portanto, dúvida de que a instrução primária devia estar no primeiro plano das preocupações de todos os portugueses.
A base sobre a qual se alicerça o nosso futuro é a boa preparação das novas gerações, continuadoras da obra que se vem realizando. É certo que nos últimos vinte anos a percentagem do analfabetismo decresceu 17 por cento e que muito já se conseguiu. Sobretudo, no aspecto material do problema, com a execução do Plano dos Centenários, afigura-se que se vai finalmente sair do ponto morto em que se colocara a instalação das escolas, que constituía uma das nossas mais aflitivas vergonhas nacionais. E não se culpe neste caso os Governos, que largamento legislaram e não puderam executar, mas sobretudo a opinião pública, que não manifestava por tais assuntos a mais ligeira parcela de interesse construtivo. Imposta a obrigatoriedade de ensino, tema de fácil sucesso para discursos, a poucos se revelava a gravidade dos aspectos sociais que tal doutrina implica. Para Portugal, País com feição agrária bem definida, mas muito variada, conforme as regiões, a escola no meio rural nem sempre foi elemento de progresso, formando uma juventude, ligada ao solo pelo amor da terra, mas aberta às novas técnicas de produção.
O valor da escola não se pode medir pelo número, mas sim pela eficiência das suas disciplinas. Nos seus quatro anos, creio que muito pretende ensinar, mas que muito pouco ainda consegue educar, embora as suas ambições pareçam, por vezes, ilimitadas. Sob o aspecto puramente material, muitas vezes as câmaras municipais não têm possibilidades de dotar as escolas com o material didáctico indispensável e até nem mesmo têm recursos para as reparações e conservação dos edifícios escolares. O livro único, apesar de todas, as suas incontestáveis vantagens, é relativamente caro. Os alunos fogem à frequência da escola. Mas, sobretudo, o recrutamento dos professores é deficiente. É uma profissão que exige imensa dedicação e que se assemelha, pelo menos no meio rural, a verdadeiro sacerdócio. E qual o objectivo que vêem diante de si após pràticamente nove anos de estudo - seis de liceu e três de Escola Normal - os candidatos a estes lugares? A possibilidade, se forem felizes e encontrarem alojamento, de ocupar um lugar numa escola da província, com o vencimento ilíquido de 650$, e, se tiverem a tenacidade de se conservarem trinta anos nesse lugar, de atingir um vencimento de 900$. Poderão ainda ter direito ao título de director de escola nos grandes centros e uma gratificação de 40$, sujeita a descontos. É, sem dúvida, pouco. Não admira, portanto, que o recrutamento seja difícil, que o professorado seja cada vez mais composto de elementos femininos, nem sempre aconselháveis para todas as circunstâncias do meio rural. Recorre-se a variadas soluções da emergência que não contribuem parti se seleccionarem valores, e regentes escolares mal preparados têm de preencher as faltas, que não se podem deixar de agravar: Acresce que em certas províncias, como a da Beira Baixa, em que já havia de longa data a vocação para o professorado, nada se fez para a estimular, ao menos pela criação de centros de formação.
É missão so Deputado ser exigente e pedir muito para alcançar alguma coisa. Eu desejaria que a escola preparasse homens e portugueses, conscientes das suas tradições, ligados à terra natal, capazes de aceitar e praticar os ensinamentos da técnica moderna, e não soletradores de periódicos e maus rabiscadores de cartas, ansiosos por abandonar o campo e vir tentai a fortuna na cidade. Para isso, Sr. Presidente, falta ao lado das facilidades materiais já existentes para a construção dos edifícios, contrapartida fundamental: o professor primário investido na dignidade que de justiça lhe pertence, suficientemente remunerado e amparado pelo carinho de todos nós.
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados devem saber pela imprensa que faleceu ontem a esposa do Sr. Deputado Carlos Mendes.
Estou certo de que está no espírito da Assembleia que no Diário das Sessões tique exarado um voto de pesar pelo falecimento daquela senhora.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mendes de Matos, para realizar o seu aviso prévio acerca do exercício, contrário ao estabelecido na lei, do comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas.

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O Sr. Mendes de Matos: - Quando apresentei à Assembleia o meu aviso prévio sobre o comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas e seus reflexos na vida nacional tive a impressão de que alguns dos Srs. Deputados que se dignaram honrar-me com a sua atenção se sentiram tocados de surpresa, porventura de dúvida, acerca da verdade dos fundamentos com que justifiquei a sua apresentação.
Confesso que me não surpreendeu essa surpresa. Eu mesmo a sentira antes, talvez mais viva e mais profunda ainda.
Desde a minha entrada nesta Assembleia que médicos, professores o párocos se me dirigiam, pedindo, com renovada instância, que chamasse a atenção do Governo para os estragos e ruínas que, em vastas zonas populacionais, a indisciplina com que se exerce o comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas estava amontoando com as mais graves e perturbadoras consequências.
Aquelas pessoas são, pelas funções que exercem e pela probidade moral de que se revestem, as mais qualificadas para observarem, compreenderem e exporem os factos constantes das informações que me enviavam.
Esses factos eram, porém, de uma natureza tão grave e de projecção tão nefasta que o meu espírito foi tentado a uma reserva na sua aceitação incondicional. Breve me foi dado reconhecer, por observação pessoal, que a realidade, dura e crua, excedia tudo quanto me havia sido comunicado.
Não eram apenas numerosas famílias que se desagregavam numa decomposição total, freguesias inteiras que resvalavam no abismo de fundas degradações; vastas zonas populacionais, das mais sadias e fortes do País, estavam perdendo muitos dos seus melhores valores e caindo em desoladora indisciplina de costumes, em pavorosa desordem social.
Estávamos, pois, em face de um problema nacional, que se me afigurou de extrema gravidade e que exigia solução rápida, antes que se perdessem muitos dos valores em perigo e mesmo muito do que a Revolução Nacional tem realizado à custa de grandes sacrifícios, a fim de se poder prosseguir na obra de recuperação histórica em que o Governo seriamente se empenhou.
Foi então que decidi, no cumprimento do dever de colaboração com os órgãos do Poder, trazer a esta Assembleia o aviso prévio sobre o comércio de vinhos o outras bebidas alcoólicas a retalho e seus reflexos na vida nacional, a fim de atalhar os males que está causando e corrigir as ruínas que já estão amontoadas.
Poderia fazê-lo num discurso mais ou menos estatístico, mais ou menos patético, que para tanto não faltava a matéria-prima. Prefiro, porém, seguir pari passu, o articulado com que fundamentei a sua apresentação.
Por esta maneira ganhará o assunto em clareza e verdade, que é e que sobretudo importa na oratória desta Assembleia.
O primeiro fundamento com que justifiquei o meu aviso prévio foi:
I.- O comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas a retalho; como está sendo exercido é contrário às leis vigentes, que são transgredidas sem fiscalização ou sanção.
Na verdade, assim é. O comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas a retalho como está sendo exercido caracteriza-se por três ilimitações: ilimitação no tempo, ilimitação nos meios e ilimitação no espaço.
Os estabelecimentos de venda de vinhos funcionam nos sete dias da semana, em numerosos casos com dezassete horas de trabalho diário, quase numa actividade contínua. Todos eles funcionam com uma nefasta indisciplina de negócios e de costumes dos frequentadores; multiplicam-se por toda a parte, numa proliferação a que obstáculo algum parece pôr limite.
Ora esta tríplice ilimitação é contrária às leis em vigor.
Comecemos pela ilimitação do tempo:
O Estatuto do Trabalho Nacional diz textualmente: «O trabalhador da agricultura, indústria e comércio tem direito a um dia de descanso por semana, que só excepcionalmente e por motivos fundamentados pode deixar de ser o domingo».
A letra é clara, categórica, insofismável: o dia de descanso semanal é, para as actividades produtivas, o domingo. Só excepcionalmente e por motivos fundamentados pode deixar de ser nesse dia.
Excepcionalmente entendem-se os casos esporádicos, isolados, que circunstâncias ocasionais criem ou imponham; por motivos fundamentados os casos de todas as actividades que por sua natureza ou por interesse comum não possam adiar-se ou antecipar-se e o interesse comum. Três reservas, pois, faz a lei: casos excepcionais, justificados em motivos fundamentados e de interesse comum.
Parece-me que a ilimitação do horário das casas de venda do vinho não pode incluir-se em nenhuma delas.
Não constitui uma excepção, porque se tornou um caso normal; não se baseia em motivos fundamentados, porque não constitui, por natureza, uma actividade contínua; não interessa ao bem comum, pois que, ao contrário, o bem comum exige o rigoroso cumprimento da lei, visto os altos valores nacionais que ela se destina a defender o assegurar.
Ora se assim é, eu pergunto, Sr. Presidente: porque é que se consente este horário de trabalho? Consente-se porque o decreto n.° 24:402, de 24 de Agosto de 1934, concede às tabernas esse privilégio. Quer dizer: por este decreto as tabernas podem, na verdade, funcionar ao domingo e funcionam. O que está em causa neste momento é o valor jurídico e o valor social dessa isenção. E eu digo que o valor jurídico e o valor desse privilégio não são subsistentes. Porquê? Por uma razão fundamental. Não quero demonstrar a esta Assembleia a exigência do descanso semanal, à face da moral e da higiene, porque é a própria lei que o afirma e creio que ninguém o contesta. O descanso semanal é na verdade uma exigência da pessoa humana, porque interessa à sua conservação e à sua própria dignidade. Há pois que respeitá-la em presença da letra da Constituição.
Mas que verificamos nós? Verificamos que na prática numerosas pessoas são impedidas do gozo desse descanso, como acontece a todos aqueles mercenários que trabalham nas tabernas.
Mas há mais ainda. Esta isenção concedida às tabernas contraria os propósitos e intenções do próprio legislador.
O próprio autor do referido decreto o afirma claramente no relatório que o precede: «nada justifica a sua inobservância, nem razões de ordem económica, nem razões de ordem social», condena o «triste espectáculo que continuamente se tem oferecido, sobretudo no âmbito das grandes cidades, deixando trabalhar ao domingo a construção civil e outros serviços de importância», e conclui que «o que é em todos os casos necessário é pôr termo aos abusos verificados no horário do trabalho».
O legislador quis assegurar a prevalência do social sobre o económico, tornar mais certo e eficiente o descanso semanal para todos os trabalhadores. Por isso afirma categoricamente:

Nada justifica a inobservância do descanso semanal, nem razões de ordem económica, nem motivos de ordem social.

Mas a única razão que se invoca a justificar a abertura das tabernas ao domingo é o interesse dos vinhateiros e dos taberneiros - razão que o autor da lei declara improcedente.

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Se o legislador condena o triste espectáculo - que é um escândalo aos olhos dos estrangeiros que nos visitam - do trabalho ao domingo na construção civil e até de operários do próprio Estado, pode permitir esse outro espectáculo do trabalho nas tabernas aos domingos, que é muito mais nefasto, tanto para a saúde daqueles que o exercem, como para a dos que as frequentam?

O Sr. França Vigon: - Apenas para um esclarecimento : na indústria o descanso é ao domingo - e para todo o País -, mesmo na indústria da construção civil.
Se V. Ex.ª encontrar alguém a trabalhar na construção civil ao domingo é porque se está transgredindo.
Quanto ao trabalho das estradas, que não é tècnicamente considerado construção civil, é um trabalho que não está ao abrigo das disposições do decreto n.° 24:402 e portanto o Instituto Nacional do Trabalho não pode exercer fiscalização no horário dos serviços do Estado, e o horário de trabalho depende aí dos serviços do Estado, excepto quando nos cadernos de encargos se inclua uma cláusula que torne esse trabalho dependente da fiscalização do Instituto.
Portanto, se V. Ex.ª encontrar trabalhando ao domingo homens ou mulheres nos trabalhos de estrada não pode remeter-se àquele decreto, mas se vir na construção civil alguém trabalhando ao domingo é porque se está transgredindo.
No comércio é diferente: o trabalho ao domingo depende de não ter sido determinado o descanso semanal nesse dia, o que depende das câmaras.

O Orador: - Agradeço o esclarecimento de V. Ex.ª, mas, sem quebra do respeito, declaro que ele não tem referência com o que estou dizendo. O que importa é verificar o facto; é às autoridades competentes que toca corrigi-lo.

O Sr. França Vigon: - É absolutamente verdade! V. Ex.ª vê trabalhar ao domingo na construção civil, mas em obras de estradas, onde o Instituto Nacional do Trabalho e Providência não tem de intervir.

O Orador: - Então pergunto: quem é o responsável no trabalho das estradas? Então o Governo, que legisla o descanso, semanal obrigatório ao domingo, consente que as suas leis sejam transgredidas nos seus próprios trabalhos?
A lei é taxativa nas excepções que estabelece; não cabe nelas esse trabalho ao domingo, nem o da construção civil, nem o de outros trabalhos importantes, como diz o relatório do decreto, querendo talvez referir-se ao trabalho das estradas.

O Sr. França Vigon: - Salvo erro, a disposição da lei diz «normalmente o descanso semanal é ao domingo».

O Orador: - A lei não fala em «normalmente». É categórica e clara, precisa, absoluta.
Eu digo a V. Ex.ª que esses trabalhos por esse País fora não são trabalhos excepcionais, nos termos que a lei prevê; e pergunto, pois, a V. Ex.ª se há para eles motivo fundamentado. Não há. Só tem uma explicação: o interesse ganancioso dos empreiteiros, que tantas vezes pagam os trabalhos com salários de escravos.
Quer V. Ex.ª ouvir? Aqui perto desta Casa, na Calçada da Estrela, estes dois olhos que a terra me há-de comer viram operários trabalhar durante domingos seguidos em remendos da calçada; durante a semana nunca se encontravam trabalhando.
O trabalho só se fazia ao domingo. É que não era urgente.
Com relação às estradas dá-se a mesma coisa.
Ora isto coloca mal o prestígio do Governo e afronta a consciência nacional.
Esta, Sr. Presidente, é que é a triste verdade.
Mas eu continuo.
Conclui o relatório do decreto em questão: «o que é necessário é pôr termo aos abusos nos horários de trabalho».
Como podia estar no ânimo do legislador ordenar o abuso que representa a abertura das tabernas ao domingo ?
Porque, se é um triste espectáculo o trabalho da construção civil, e um abuso, Sr. Presidente, acho ainda mais triste, muito mais triste, o espectáculo, o abuso de rapazes e até mulheres, não só servindo nas tabernas, mas entregues à prática de actos e exercendo funções que os nossos costumes condenam.
Isto é muito mais triste do que o outro espectáculo.

O Sr. França Vigon (interrompendo): - Ainda em transgressão!

O Orador: - Estamos de acordo.
Tomos uma legislação sadia, uma legislação magnífica, uma legislação eficiente, uma legislação construtiva, uma legislação que se considera capaz para assegurar a ordem e a tranquilidade do País; simplesmente, não se cumpre. É isto só o que estou a dizer à V. Ex.ª: que o comércio de vinhos e bebidas alcoólicas como está sendo exercido é contrário à lei.

O Sr. França Vigon: - V. Ex.ª dá-me licença?
Eu estou de acordo, mas quero dar a V. Ex.ª alguns elementos.
Se V. Ex.ª vê nas disposições legais que trabalhar fora das oito horas permitidas, ao domingo, alguém com o título de empregado ou empregada isso sucede em transgressão, eu asseguro a V. Ex.ª que para o evitar, já não digo na cidade, mas nas aldeias ou lugares escondidos da serra, é preciso um exército de fiscais do horário de trabalho.

O Orador: - Isso é outra coisa à parte.
Se eu disser a V. Ex.ª que houve interessados mercenários que me disseram: Sr. fulano: vai tratar na Assembleia Nacional do regime do comércio de vinhos o outras bebidas alcoólicas, pois não se esqueça de dizer: as firmas A, B e C obrigam o pessoal a trabalhar, começando por mim, que estou nessas condições, dezassete horas por dia. Defraudam a própria lei, pois não nos dão sequer o descanso a que temos direito, utilizam fórmulas falsas de turnos e empregados que não existem, obrigando-nos assim a trabalhar das 7 até à meia-noite.

O Sr. França Vigon: - Se V. Ex.ª consultar o registo do Instituto Nacional do Trabalho, pode ter a certeza absoluta de que encontrará os nomes desses estabelecimentos autuados dez vezes e mais.

O Orador: - Mas o que está em questão são os factos e nada mais; não falo agora sobre quem tem o encargo de os corrigir.

O Sr. França Vigon: - Mas será V. Ex.ª capaz de apresentar um sistema eficiente para resolver o problema da fiscalização do horário de trabalho de modo a evitar essas fraudes?

O Orador: - Não é isso o que está em causa; o que importa é corrigir aquele escândalo e estoutro do abuso da abertura ao domingo.

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Esta demora provocada pelos apartes de V. Ex.ª, que para mim aliás, e para a Câmara foram tão agradáveis, pela parte de V. Ex.ª, que não pela minha, obriga-me a encurtar as minhas considerações para não exceder a hora regimental.

as há pior: a excepção estabelecida a favor das tabernas não rouba o descanso só aos que as servem; rouba-o também a tantos que as frequentam.
A etiologia demonstrou há muito que a embriaguez causa ao organismo que a suporta maior perda de energias do que um dia normal de trabalho. Deve pois concluir-se que a embriaguez ao domingo representa a anulação do descanso e por isso de todos os benefícios que ele se destina a produzir.
E o número de ébrios que a abertura da taberna ao domingo ocasiona é também muito elevado, pois já Oliveira Martins, que conhecia o País, dizia que são todos os que vemos e mais metade dos que não vemos. E os que vemos por esse País fora são já muito numerosos, vergonhosamente numerosos.

O Sr. Homem de Melo: - Não concordo.

O Orador: - A concordância ou discordância de V. Ex.ª não pode ter referência para comigo. A opinião não é minha, é de Oliveira Martins.

O Sr. Homem de Melo: - Pois não concordo com Oliveira Martins.

O Orador: - É pena que ele não possa responder a V. Ex.ª ... Em qualquer caso, não me parece que a discordância de V. Ex.ª tire qualquer valor à minha argumentação.
Gostaria que V. Ex.ª me dissesse se julga reduzido o número de ébrios ao domingo.

O Sr. Homem de Melo: - O que estou convencido é de que nem todas as pessoas que nós vemos ao domingo estão ébrias!

O Orador: - Também eu; mas digo, como Oliveira Martins, que o não estão só aquelas que os nossos olhos vêem. Não todas as pessoas que vemos, mas todos os ébrios que vemos. Foi isto que Oliveira Martins disse e não o absurdo que V. Ex.ª, por defeito meu, por certo, parece ter compreendido.
Se V. Ex.ª não concorda, terei eu de salvar a honra de Oliveira Martins.

O Sr. Homem de Melo: - Para que cita V. Ex.ª isso?

O Orador: - Para demonstrar que de facto todas essas pessoas estão privadas do descanso semanal, e portanto que a abertura da taberna ao domingo é contrária à lei que o garante a todos os trabalhadores.
O vício da embriaguez está a alastrar no nosso País como uma chaga pavorosa, e ou nós pomos termo a esta calamidade ou deixamos naufragar muitos dos melhores valores das nossas aldeias.

O Sr. Homem de Melo: - No meu círculo, e para honra dos meus eleitores, isso não acontece.

O Orador: - Eu não preciso de falar nos meus eleitores porque todos sabem antecipadamente que estão longe destes comentários, porque os conheço e me conhecem muito bem. E isto sem propaganda eleitoral, que não é lugar para ela...
Pode pois concluir-se desse passo que aquela excepção do decreto n.° 24:402 é atentatória da lei fundamental do descanso e como tal tem de ser revogada. Mas o regime das tabernas não é só ilimitado no tempo; é também ilimitado nos meios, isto é, no seu funcionamento e no modo como é exercido o comércio dos vinhos.
No intuito de corrigir e pôr termo à indisciplina com que funcionavam as tabernas, foi publicada em 25 de Fevereiro de 1924 a lei n.° 1:547, que proibia a «entrada nas tabernas de menores de 15 anos»; o decreto n.° 12:708, de 22 de Fevereiro de 1928, dispõe no seu artigo 1.° que «é expressamente proibido, em qualquer hora e estabelecimento, seja de que natureza for, vender ou fornecer vinho ou bebidas alcoólicas a indivíduos em estado de embriaguez e bem assim a entrada e permanência desses indivíduos em qualquer casa de bebidas».
Pelo artigo 2.° é igualmente proibida a entrada na taberna a menores de 15 anos de ambos os sexos.
Pelo artigo 3.° o mesmo diploma ordena que «Aos estabelecimentos de venda de vinho e outras bebidas alcoólicas será retirada a licença e ordenado o encerramento pela autoridade competente quando se tornem focos de desordem e de perturbação do sossego da vizinhança ou ainda da moral e da decência públicas pela sua má freguesia».
A lei disciplina, pois, ao mesmo tempo a actividade dos vendedores e dos frequentadores: aos primeiros, tornando as tabernas casas de venda de vinho, e não fábricas de ébrios; aos segundos, obrigando-os a respeitar a ordem e a moralidade dentro desses estabelecimentos. De uma e outra disciplina torna responsável a lei os donos das tabernas e por isso lhes aplica a pena de encerramento quando essa disciplina se não observa. Ora, que vemos nós por esse país fora ? Vemos, ao domingo, as tabernas repletas de jovens e de ébrios, a quem é vendido vinho sem qualquer limitação; vemos as tabernas transformadas em oficinas de embriaguez e mudadas em escolas de imoralidade, centros activos da criminalidade. Em que medida? Citarei dois factos que conheço de perto. O Sr. governador civil da Guarda, para fazer cumprir estas disposições da lei, viu-se obrigado a fazer encerrar num só ano 800 tabernas. Segundo «estatísticas dos tribunais, a quase totalidade dos crimes neles julgados são cometidos ao domingo e nas tabernas. As tabernas ao domingo são pois focos de imoralidade, fábricas de ébrios, fonte caudalosa de criminalidade.
Enfim, a ilimitacão no espaço:
Que dispõe a este respeito a lei? Os decretos que acabo de citar proíbem «a instalação de novos estabelecimentos de venda de vinho ou quaisquer outras bebidas alcoólicas a copo num raio de 500 metros em Lisboa e de 200 metros em outras localidades em torno de edifícios públicos.
Aqui temos de considerar o local que ocupam o a distância a que se encontram as casas de venda de vinho a retalho. A ambas a lei faz referência e promulga disposições claras o precisas.
Quanto ao local: a referida lei n.° 1:547 proíbe «a instalação de novos estabelecimentos de venda de vinho e outras bebidas alcoólicas, a copo, num raio de 500 metros em Lisboa e de 200 metros nas outras localidades, em torno de edifícios públicos e em especial escolas»; o decreto n.° 15:602 alterou esta disposição e proibiu a instalação de novos estabelecimentos de venda de vinho num raio de 300 metros em Lisboa, de 200 metros nas demais capitais de distrito e de 100 nas outras localidades, em torno de edifícios onde estejam instalados escolas ou quartéis.
Como se cumprem estas disposições da lei?
Em 1934 a Liga de Profilaxia Social do Porto, perante o inêxito que cobriu as reclamações de um ilustre professor do Liceu Rodrigues de Freitas, promoveu um inquérito junto das Faculdades, liceus e escolas técnicas e de ensino primário «sobre as vizinhanças molestas que põem em risco a saúde e a moralidade dos alunos». E os resultados foram surpreendentes. Em

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volta de todas as escolas crescia e medrava uma floração daninha de estabelecimentos de venda de vinho e outras bebidas alcoólicas, com os mais sérios perigos para a mocidade que as frequentava. Só a Escola Faria Guimarães estava rodeada de vinte e quatro daqueles estabelecimentos, numa área compreendida entre 50 e 100 metros. Aquele número era apenas o índice do que se passa em todo o País, pois por toda a parte se vêem escolas e quartéis cercados por uma cintura de tabernas, numa ameaça de asfixia. Quanto a distância a que devem situar-se mùtuamente, também a lei é expressa.
Mas recordemos apenas o Código Administrativo, que proíbe a instalação de novas tabernas, e verificamos que também aqui a lei é transgredida, porque as tabernas se multiplicam sem limite e em tal ritmo que localidades há em que a sua multiplicação ameaça findar numa continuidade sem solução. Uma tal indisciplina não contraria só a letra da lei, anula e defrauda as determinações do Poder Executivo. Já em 1941 a delegação do Instituto Nacional do Trabalho no Porto, talvez alarmada com a desordem que tal regime estava semeando no País, depois de ouvidos os organismos corporativos com interesses afins no comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas, levou ao Sr. Subsecretário de Estado das Corporações uma larga exposição do assunto, pedindo as providências que o caso reclamava. S. Ex.ª o Sr. Dr. Trigo de Negreiros, que ao tempo ocupava aquele lugar, estudou o assunto e lavrou um despacho no qual ordenava a criação de «lugares de reunião e meios de diversão onde os trabalhadores gastem o tempo disponível por forma aprazível, mas sem prejuízo da sua saúde, devendo antes pelo contrário valorizar-se física, moral e intelectualmente», e «transformar o horário de trabalho das tabernas e casas de pasto, de maneira que, estando abertas só durante as horas de trabalho, desapareçam ou se transformem em modestos restaurantes de trabalhadores». Era a solução criteriosa, eficiente.
Mas também esta determinação do Executivo ficou letra morta.
De tudo o que acabo de expor se pode concluir que é preciso que o dia de descanso da taberna coincida com o dia de descanso do trabalho - aliás o trabalho da taberna inutiliza e arruina o descanso e a saúde dos trabalhadores.
Esta desordem jurídica, esta ostensiva e impune transgressão de leis que importam a defesa e dignidade da pessoa humana, não podia deixar de produzir igual desordem moral. E assim foi.
O comércio de vinhos e outras bebidas:
II. - «É o mais poderoso factor da degenerescência da Raça, pelas funestas consequências físicas, morais e intelectuais que a chaga do alcoolismo, que promove e alimenta, está causando».
Na verdade: antes da primeira grande guerra atribuía-se, na Alemanha, ao álcool 70 por cento dos crimes julgados nos tribunais. Na Inglaterra essa percentagem subia para 75 a 80 por cento. Na Argentina 50 por cento dos crimes eram praticados sob a influência da embriaguez.
Na América do Norte, segundo uma estatística de Everestt, «em oitenta anos o álcool produziu os seguintes malefícios: fez desembolsar directamente 300 milhões de dólares e indirectamente 600 milhões; matou 300 mil homens; mandou para os asilos 100 mil crianças e para as prisões 150 mil pessoas; causou 2 mil suicídios; produziu a perda de 100 milhões de dólares por incêndio e violências: causou 220 mil viúvas e l milhão de órfãos».
Nós não possuímos estatísticas que nos permitam aferir com exactidão o índice dos malefícios que o álcool causa à população nacional.
Possuímos, porém, números claros, expressos, exactos, que nos permitem concluir que o actual regime de comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas produz um índice de criminalidade bem mais alto do que o expresso pelos números que acabo de indicar.
Existo no Instituto Nacional de Estatística um grupo de gráficos referentes aos criminosos que, entre 1885 e 1915, passaram pela Penitenciária de Lisboa, que na maior parte daquele período era a única prisão celular do País.
Perdeu-se, infelizmente, o relatório que os explicava e fornecia esclarecimentos preciosos acerca das causas que influíram na prática dos grandes crimes cometidos em Portugal naquele agitado período da nossa história.
Mas as ligeiras anotações do autor do inquérito, de que resultou a confecção dos referidos gráficos, permitem concluir que dois terços desses crimes foram cometidos nos meios furais, no sábado à noite e domingo, por influência das tabernas.
E quanto aos demais crimes? Já há anos que um distinto magistrado, dos que com mais energia, tenacidade e inteligência têm combatido o flagelo do álcool, me dizia que na sua comarca a quase totalidade dos crimes julgados no respectivo tribunal tinham como grande culpado a abertura das tabernas ao domingo. O facto não era esporádico nem isolado. Já se disse na imprensa e se repetiu nesta Assembleia, com verdade, que noutras comarcas do País se verifica o mesmo fenómeno: mais de 98 por cento dos crimes julgados nos nossos tribunais são cometidos ao domingo, na taberna, em redor da taberna ou por influência directa ou indirecta da taberna.
Numa das comarcas do centro do País os respectivos magistrados levaram mais longe esse estudo e verificaram com espanto que a quase totalidade dos crimes julgados no respectivo tribunal eram cometidos no sábado à noite e no domingo depois das 15 horas, na taberna, em redor dela ou por influência dela.
É evidente que os tribunais não julgam todos os crimes de que a abertura da taberna ao domingo é ocasião e causa; muitos outros, porventura, os mais graves, os que mais profunda influência exercem na degenerescência da Raça, não vão à barra do pretório, escapam ao veredicto dos tribunais: ficam ocultos no seio das famílias, e exprimem-se pelos conflitos conjugais, pela indisciplina dos lares, pelas separações dos cônjuges e pela fuga dos filhos, que vão engrossar acrescente vaga dos inadaptados e dos viciosos.
Ao lado destes, outros, que a justiça pública desconhece também, crescem e proliferam em proporções espantosas no seio do regime que estou combatendo, e também das mais funestas e dissolventes consequências.
Em toda a parte vivem em horrível e sinistra camaradagem o álcool, o jogo e a prostituição. É uma triste e lúgubre constante da história, filha da própria natureza dos três vícios que os excitam, estimulam e alimentam mùtuamente.
Pois esse tríduo sinistro encontra-se hoje instalado em numerosas tabernas do País e ali exerce a sua perturbadora acção numa intensidade pavorosa e numa projecção de que as autoridades parecem não dar conta, mas nem por isso menos profunda e dissolvente.
Numerosas dessas casas de comércio de vinho são hoje antecâmara da tavolagem e vestíbulo da prostituição, oferecendo por vezes o espectáculo arrepiante e hediondo da promiscuidade e da camaradagem de pais e filhos na prática dos mesmos vícios. Não é fácil obter números que me permitam avaliar com inteira exactidão a grandeza no volume e na extensão desses flagelos. Uma indicação elucidativa permite, porém, afirmar que o mal lavra fundo e largo: um dos governadores civis do continente, pressentindo a grandeza do mal, procurou diligentemente atalhá-lo até onde lhe fosse possível. Para isso organizou um serviço especial de fiscalização a esses

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abusos das tabernas. Num só ano as multas cobradas por essa fiscalização nos termos da lei subiram a 160 contos.
O facto parece-me tão expressivo que dispensa comentários.
Tal estado de coisas não pode deixar de exercer influência profunda na descida dos costumes e na indisciplina social.
Um documento só, entre tantos que poderia trazer à tribuna e à Assembleia, se a própria natureza dos factos me não vedasse de o fazer: existe no Subsecretariado da Assistência Social um documento oficial pelo qual se mostra esta coisa alarmante, tragicamente alarmante: em curtos anos, a população juvenil dos dois sexos de um concelho muito populoso foi gafada daquele mal oculto, filho do vício hediondo de que S. Paulo queria se não pronunciasse sequer o nome. É certo que outros factores concorreram para este resultado aflitivo, mas as tabernas figuram nele como factor principal.
Factos de espantosa brutalidade mostram que a insensibilidade moral avança temerosamente por zonas populacionais onde a delicadeza de costumes e a elevação moral eram timbre e expressão da comum vida de relação social.
A estes malefícios podemos juntar outros de natureza política, também de graves consequências. E nos meios corrompidos, nos terrenos lodosos, que germinam as sementes da revolta e da desordem. Sabem-no os agentes das revoluções e da agitação. E procuram na taberna, ao domingo, semear os germes da revolta. Não faltam tabernas que funcionem ao domingo como pequenos clubes revolucionários.
Frequentadores ocasionais e desconhecidos passam o domingo na taberna distribuindo vinho e ataques a tudo quanto representa valor tradicional, em propaganda dissolvente contra os princípios e contra a actividade política e administrativa do Estado.
Fala-se muito no despovoamento dos campos o com razão, mas esquece-se este outro despovoamento de mais funestas consequências ainda e que é o abastardamento das qualidades cívicas e morais do nosso povo, a depressão causada nas suas másculas energias por esta obra satânica que o regime do comércio do vinho está causando.
E no entanto há pior do que isto; o actual regime do comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas não atinge apenas a Nação na degenerescência da Raça; ataca-a nas próprias fontes do seu abastecimento demográfico, da sua conservação e do seu desenvolvimento, porque:
III. - «É o mais nefasto desorganizador da vida da família, cuja coesão e estabilidade abala, viciando-a na sua estrutura e estabilidade».
Essa obra corrosiva da família realiza-a a taberna por duas formas diversas, mas convergentes no mesmo resultado final: indirecta e directamente, e por oposição aos remédios aplicados aos males que produz.
Indirectamente: é evidente que a estabilidade e coesão da família exigem que ela seja fisicamente robusta e moralmente sadia. Ora o regime em questão empobrece profundamente a vida física da família e corrompe-a atrozmente na sua vida moral.
Empobrece-lhe a vida física, por três razões fundamentais: a - facilita a embriaguez de muitos chefes de família e a embriaguez deprime as melhores energias físicas, queima as necessárias forças orgânicas, conduz às mais baixas misérias biológicas; b - o ébrio engendra normalmente uma prole raquítica e enfezada, desprovida das regulares condições de resistência, tornando-a, por isso, presa fácil e frequente das doenças consumptivas e infecciosas; c - a taberna absorve no sábado e domingo o salário de numerosos operários chefes de família, obrigando esta a um regime de subalimentação que mais
contribui para acentuar os resultados depauperastes das duas primeiras causas.
Corrompe a vida moral da família ainda por três outras razões: a embriaguez quebra todos os freios do autodomínio, despoja a alma dos mais nobres sentimentos, embrutece a inteligência embotando a compreensão dos valores morais; a embriaguez, na frase célebre de J. Keynaud, solta a besta; a miséria física a que frequentemente a taberna sujeita numerosas famílias é caminho seguro e quase infalível para a miséria moral, visto que só um mínimo de bem- estar material normalmente guarda a dignidade e o equilíbrio moral; o ébrio três vezes entre quatro é desordeiro, transforma o lar em arena agitada de conflitos e desordens que amiúde levam às mais baixas tragédias morais.
Mas o regime em questão atinge a família directamente, não introduzindo nela só perturbações nefastas o ruinosas, mas a própria destruição, a morte na ignomínia e na miséria. Com efeito :
A família é antes de tudo uma unidade espiritual, uma comunhão de almas em perpetuidade. Tudo quanto abale ou destrua essa unidade abala e destrói a família, que na estabilidade e na coesão tem a sua mesma essência.
Já vimos que a taberna destrói essa unidade; o ébrio, numa percentagem de 75 por cento, engendra uma geração portadora das mais graves taras físicas, morais e intelectuais, que se traduzem na desordem e na dissolução da família; a prole dos ébrios não vence nunca a quarta geração e termina frequentemente, quase sempre na terceira. Echeverria confirmou tudo isto numa estatística que vale a pena tornar conhecida. Segundo ela, entre 476 descendentes de 68 homens e de 47 mulheres alcoólicos, encontraram-se 23 nados-mortos, 107 mortos por convulsões infantis, 67 epilépticos, 16 histéricos e 41 idiotas ou alienados. Mostra-se assim que as grandes famílias, as famílias estáveis e coesas, que encadeiam os lares, vencem os anos e formam essas dinastias robustas de alma e corpo que, com as vitórias sobre o tempo, cantam o hino bendito da fecundidade, e são, no dizer de Lê Play, a força e a prosperidade das nações, não se dão no clima das tabernas e encontram na taberna ao domingo o seu pior e mais poderoso inimigo.
A confirmação destas conclusões encontramo-la nos arquivos dos dispensários, dos centros de assistência social, dos hospitais de psiquiatria, dos sanatórios, da polícia, dos tribunais e das tutorias da infância.
É sobretudo nos arquivos das tutorias da infância e da polícia que se encontram os mais lúgubres e horríveis documentos da obra corrosiva que nas famílias está exercendo o actual regime de venda de vinhos e outras bebidas alcoólicas.
E com ser tão dissolvente esta obra do regime de comércio de vinhos há ainda, porventura pior: a oposição, o malogro que defrauda todas as providências com que o Estado e a caridade particular se empenham na defesa, na conservação e no fortalecimento da família.
Colhemos a este respeito o depoimento de um distinto delegado de saúde, que no combate à taberna tem empenhado o seu melhor esforço. São desse ilustre clínico estas palavras: «Enquanto a taberna abrir ao domingo, a assistência à maternidade, à criança e à família em geral é estéril, porque a taberna mata os filhos, negando-lhes, pelo salário que absorve, a alimentação necessária, quando os não mata antes de nascerem, pois são frequentes os nascimentos prematuros de nados-mortos, consequência funesta das sevícias e dos desgostos que os ébrios praticam sobre as esposas, verdadeiros verdugos sem pudor e sem moral, falhos totalmente de sentimentos dignos e nobres.
Consequentemente, à face da higiene e da saúde públicas, dos direitos sagrados da família e da ordem social, a abertura da taberna ao domingo é um crime que as

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gerações futuras (as presentes já o estão fazendo) hão-de lançar sobre os que a permitem: é na verdade um atentado aberrante «nesta magnífica obra de Salazar».
Sublinhemos: a abertura da taberna ao domingo constitui um crime à face da higiene e da saúde públicas, dos direitos sagrados da família e da ordem social, os grandes, os fundamentais valores que determinam a instituição do Poder Público. O que quer dizer que a abertura da taberna ao domingo não é apenas um atentado aberrante «nesta magnífica obra de Salazar», mas um atentado aberrante da própria vida e finalidade do Estado.
E isto, este atentado aberrante, consente-se porquê? Porque, oiço dizer, é preciso defender a economia nacional.
Engano grave. Ilusão perigosa. Longe de representar uma defesa da economia, este regime contraria, desorganiza e perturba a própria economia industrial e agrícola do País.
A todos estes males pretende responder-se com uma razão, que praticamente se julga fundamental e é esta: temos muito vinho. E preciso vendê-lo. Para o vender é preciso taberna livre. Logo o interesse económico deve prevalecer sobro o social e moral.
O argumento não colherá, sendo verdadeiro; mas é falso.
A taberna livre não favorece o económico, não facilita a venda do vinho, ou, antes, a venda regulada seria mais vantajosa no assunto.
IV. - É perturbador de toda a, economia industrial e agrícola, pela redução que introduz na capacidade de produção, qualitativa e quantitativa, de numerosos trabalhadores.
Na verdade, o problema, económico exprime-se pela equação perfeita e estável entre a produção e o consumo. Quando os pratos dessa balança se desequilibram, por não importa, que motivo, surge a desordem, que se manifesta pelo desemprego, pela fome e pela miséria. Neste caso, o excesso de produção, como as deficiências do consumo, vêm ao longe a encontrar-se na eficiência dos mesmos resultados.
O interesse da economia reside, pois, em fazer subir e crescer no mesmo nível a produção e o consumo. Tudo o que perturbar essa ordem, o que enfraquecer a produção e diminuir o consumo deve ter-se como ruinoso para a economia.
Ora a abertura da taberna ao domingo reduz, ao mesmo tempo, a produção do numerosos operários e o consumo do numerosas famílias.
Reduz a capacidade de produção de trabalhadores numerosos no tempo e no espaço, quer dizer, no rendimento do trabalho e na longevidade do trabalhador.
No rendimento do trabalho: a perfeição humana repele com igual energia o condenação a ociosidade e o excesso de trabalho. Em matéria de trabalho o excesso está na continuidade. O trabalho é, em conceito geral, o exercício da actividade humana aplicada à criação de uma utilidade económica. A limitação do trabalho releva da limitação da própria pessoa humana, por um lado, e, por outro, pelos encargos de ordem superior que lhe são inerentes. O excesso do trabalho levaria à destruição da própria pessoa do trabalhador. Qual é
então o limite natural do trabalho? Depois de Claude Bernard, cujas investigações na matéria são clássicas e definitivas, ficou cientificamente demonstrado que o descanso quotidiano não basta para reparar as perdas e acalmar as excitações da carne e do sangue o da própria respiração provenientes do trabalho. O descanso semanal é para o próprio rendimento do trabalho tão necessário como o descanso diário.
O trabalho diminui na proporção da sua continuidade. Se, como já se demonstrou, a embriaguez gasta mais energias do que um dia do trabalho normal, a abertura da taberna ao domingo, fomentando largamente a embriaguez, impede aos que a sofrem o descanso semanal e constitui um poderoso factor de empobrecimento no rendimento do trabalho. O descanso dominical é, mesmo sob o aspecto meramente económico, tão fecundo como o próprio trabalho da semana, pois é ele que lhe dá fecundidade e rendimento.
Na longevidade do trabalhador: o ilustre Prof. Le Fòvre, glória da Universidade de Lovaina, depois de estudos exaustivos, mostrou que os trabalhadores que não observam regularmente o descanso semanal acusam aos 50 anos todas as decadências biológicas que os seus respeitadores sofrem apenas aos 60 e que os primeiros têm uma longevidade mais curta do que os segundos.
A abertura da taberna ao domingo deve, pois, ter-se como um poderoso factor de redução da produção.
Os factos confirmam solenemente estas conclusões. E sobejamente sabido que as grandes empresas agrícolas que começaram a exploração do fecundo solo americano nos Estados Unidos foram obrigadas, para poderem viver e prosperar, a substituir a massa de trabalhadores nelas empregados, porque a paixão etílica de que se tocavam aos domingos, dias de descanso, reduzia larga e crescentemente o rendimento do trabalho.
Daí vem o empenho quase sagrado, mesmo quando só procuram assegurar interesses económicos, com que as grandes potências, de poderosa envergadura económica e industrial, observam o descanso dominical, com tal rigor que mesmo sob o fogo das batalhas o não dispensaram. As nações nórdicas, de alto nível social, mantêm o mesmo empenho na guarda do descanso dominical e fazem encerrar todas as casas de venda de bebidas alcoólicas, certas de que assim defendem com maior facilidade e eficiência a ordem social e a ordem económica. É nas conclusões do Claude Bernard que deve encontrar-se a razão do estrondoso malogro das tentativas levadas a efeito na França revolucionária e na Rússia bolchevista no sentido de estabelecer uma semana de dez dias. A natureza, mais forte que os desvarios dos homens, terminou por fazer vingar a verdade e o direito, obrigando os seus transgressores a restabelecer a semana de sete dias.
Mas a abertura da taberna ao domingo reduz também o consumo. Porquê? É evidente que o consumo é em parte uma função dos réditos. Cada família consumirá portanto em proporção dos seus rendimentos. O económico não é a única base do social, nem mesmo do consumo. Entram neste factores morais de alta importância. Mas é certo que o económico contribui largamente para o nível de vida das famílias e nunca se poderá elevar o seu nível de vida se se não elevar o seu rendimento. Nesta certeza se funda e baseia toda a política dos salários. Mas a abertura da taberna ao domingo reduz, quase anula, os salários de numerosas famílias. Nessa medida reduz o consumo dos produtos fundamentais a vida, quer sejam de ordem industrial, quer de natureza agrícola.
Favorece ao menos o consumo de vinho e, por isso, a economia vitivinícola?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Mendes de Matos: V. Ex.ª ainda demora as suas considerações?

O Orador: - Desejo ocupar-me de outros aspectos do problema.

Sr. Presidente: - Nesse caso, e como a hora vai adiantada, será preferível que V. Ex.ª fique com a palavra reservada para amanhã.

O Orador: - Assim o prefiro.

O Sr. Presidente: - A próxima sessão é amanhã, dia 8, à hora regimental, com a mesma ordem do dia. Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 20 minutos.

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Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Artur Augusto Figueiroa Rego.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís Teotónio Pereira.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Carlos Borges.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Couceiro da Costa.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Herculano Amorim Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Luís da Silva Dias.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Nunes de Figueiredo.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Pastor de Macedo.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.

O REDACTOR; - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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