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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 122
ANO DE 1948 10 DE JANEIRO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.º 122 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 9 DE JANEIRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.
Manuel José Ribeiro Ferreira
Ernesto Amaro Lopes Subtil
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
O Sr. Deputado Melo Machado ocupou-se da questão da lavoura no que respeita a produção da batata.
O Sr. Deputado Camarate de Campos reclamou a assistência na doença dos funcionários públicos e suas famílias.
O Sr. Deputado Carvalho Viegas tratou da situação dos naturais de outras colónias que são funcionários na Guiné e em Cabo Verde.
O Sr. Deputado Bustorff da Silva pediu providências contra a crise em que se debatem os viticultores.
O Sr. Presidente informou que já tinha em seu poder o parecer da Comissão de Legislação e Redacção sôbre a situação parlamentar do Sr. Deputado Duarte Silva.
A Assembleia votou, em seguida, a perda de mandato do Sr. Deputado Luís Pastor de Macedo.
Foi concedida a autorização ao Govêrno para a cedência de terrenos, em Lourenço Marques, para a construção da residência do cônsul britânico, mediante a aprovação de uma proposta apresentada e justificada pelo Sr. Deputado Alberto de Araújo.
Ordem do dia. - Prosseguiu o debate sôbre o exercício do comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas, tendo usado da palavra o Sr. Deputado Albano de Melo.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 18 horas e 40 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Enrico Ribeiro Cazaes.
Albano da Câmara Pimentel Homem de Melo.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
André Francisco Navarro.
António de Almeida. António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria Pinheiro Torres.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Indalêncio Froilano de Melo.
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Esquível.
José Maria Braga da Cruz.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
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José Nosolini Finto Osório da Silva Leão.
José Nunes de Figueiredo.
José Penalva Franco Frazão.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís da Câmara Pinto Coelho.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Mendes de Matos.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Mário Borges.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Querubim do Vale Guimarães.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Teotónio Machado Pires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 60 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegrama
Subscrito pelos professores da escola primária n.º 56, de Lisboa, apoiando e agradecendo as considerações do Sr. Deputado Franco Frazão na sessão de 7 de Janeiro.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Melo Machado.
O Sr. Melo Machado: - Sr. Presidente: o meu querido e ilustre colega Sr. Dr. Bustorff da Silva deu-nos ontem aqui um curiosíssimo exemplo de deformação profissional. S. Exa., com o seu generoso coração de advogado, quis encontrar um acusado, para o defender, e por isso andou a esgrimir com os moinhos, porque, na verdade, Sr. Presidente, eu não disse uma palavra só a respeito da política e da acção do Sr. Ministro da Economia. Nem uma única referência fiz a êsse respeito. Disse simplesmente que a especulação, afugentada do lado do consumidor pelas enérgicas medidas do Sr. Ministro da Economia, se tinha voltado contra a produção. Foi a única referência que fiz. Portanto, tudo o que S. Ex.ª disse em defesa do Sr. Ministro da Eeonomia não tinha nenhuma razão de ser. Que me desculpe S. Exa., mas esta é a expressão da verdade.
Não quis S. Ex.ª reconhecer que tinha sido injusto para com os lavradores acusando-os de terem feito especulação.
Eu respondi afirmando que nenhuma especulação foi feita pelos lavradores.
Que sabem os lavradores de Trás-os-Montes, das Beiras ou de Aveiro, do oeste ou da Moita do que fazem os seus pares da quantidade de batata que podem ou não semear?
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Perante uma falta absoluta e evidente do produto, que tinha atingido preços excepcionais, uma falta tão grande que se consubstancia neste número de importação - sessenta e tantos mil contos - como haviam êsses lavradores de graduar a sua sementeira? Impossível, evidentemente.
E V. Ex.ª, Sr. Dr. Bustorff da Silva, deve lembrar-se de que os lavradores também são consumidores e que, para fugir à falta de um produto e ao seu excessivo preço, a maioria deles semeia em maior número e quantidade, para ter a certeza de poder ser auto-abastecidos.
E são êsses muito poucos que fazem as grandes quantidades e que, por vezes, quase produzem essa perturbação de que estamos sofrendo nêste momento.
S. Exa. disse ainda que os lavradores se tinham lançado em aventurosa plantação.
Mas o que é a vida do lavrador mais do que uma aventura pegada?
Que sabe o lavrador, quando semeia, o que vem a colher e que resultados vem tirar do seu trabalho?
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- A agricultura, meus senhores, é um verdadeiro jogo de batota. Os antigos pintavam o lavrador cego, e cego êle hoje continua.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Não é, porque trabalha. O jogador de batota não trabalha. Só perde.
O Orador:- Mas é um risco quase tão grande como o da batota.
Finalmente, meus senhores, eu dou-me por muito satisfeito de ter visto S. Ex.ª concordar comigo em que os lavradores e semeadores de batata das regiões de Trás-os-Montes e Beiras estão numa situação angustiosa e folgo que S. Ex.ª tenha concordado comigo em que é indispensável acudir a essa gente, que trabalhou honrada, honesta e violentamente para colher um produto que é a base da vida nessas regiões e sem cuja colocação essas regiões vêm a sofrer consequência desastrosas.
S. Exa. concordou ainda comigo em que o remédio seria exportar, de maneira que desta discussão e da intervenção de S. Ex.ª nela me restam pelo menos estas duas consoladoras e conclusões.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Camarate Srs. Deputados: Sr. presidente e Srs. deputados: só duas palavras.
Vou tratar do facto de o funcionalismo público, os modestos funcionários, de parcos vencimentos, não ter assegurada a assistência clínica nas suas doenças, nas doenças dos seus familiares, naqueles que estão dependentes da sua economia.
Com efeito, a lei n.º 1:884 reconhece como instituição de previdência a Caixa Nacional da previdência, mas a verdade é esta: os funcionários não têm assegurada a assistência clínica.
O modesto funcionalismo - e é por esse que eu trato aqui do assunto - não tem garantia a assistência clínica,
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quer para si quer para os seus. Com excepção, Sr. Presidente, de alguns serviços autónomos, em que os servidores têm essa garantia, o certo é que quase todo o funcionalismo a não tem.
A grande massa de trabalhadores, quer os trabalhadores no comércio, quer os trabalhadores na indústria, quer os trabalhadores na agricultura, tem assegurada essa garantia através das caixas de previdência e das Casas do Povo.
Sendo assim, não se explica nem se compreende que o funcionalismo não tenha também essa garantia assegurada.
A doença em casa desses funcionários é logo a fome.
Parece-me, Sr. Presidente, que o assunto não é de difícil solução. Num entendimento entre a Caixa Nacional de Previdência e a Federação das Caixas de Previdência, parece-me ser fácil conseguir assistência aos funcionários modestos; para tanto bastaria um pequeno sacrifício do Estado e do próprio funcionário, através duma quota mínima, visto que este não pode pagar quase nada.
Apoiados.
Entendo, Sr. Presidente, ser isto do maior interesse. E, como assim é, pus o problema e lembro a maneira de o resolver. O resto não é comigo.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Carvalho Viegas: - Sr. Presidente: foi com imenso júbilo que ontem, tive o prazer de ouvir o ilustre Deputado e eminente professor da Esfola Superior Colonial, Dr. António de Almeida, comunicar a VV. Ex.ªs as impressões colhidas na sua recente ida à Guiné. E também estou certo de que a selecta e distinta elite social e intelectual que compõe esta Assembleia terá conhecido com grande satisfação - demais a mais por uma categorizada testemunha, absolutamente idónea, que pôde não só bem ver e consequentemente observar, como também sentir o latejar das actividades dos portugueses naquela colónia - que a Guiné constitui um padrão de impressivo nacionalismo, afinado do direito de Portugal à plena soberania e posse do seu império colonial.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Referiu-se o ilustre Deputado ao carinhoso acolhimento com que foram recebidos os congressistas à II Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, realçando a muito portuguesa hospitalidade da sua população. Nem outra cousa seria de esperar da sua elegância moral, a que já fiz menção nesta Casa, tanto mais que bem sabia que a representação de Portugal estava confiada a portugueses da metrópole e do ultramar, que ao serviço do engrandecimento do Império têm dado todo o seu entusiasmo, a sua inteligência, a sua fé de portugueses de lei.
Com alegria, ainda, ouvi as justas palavras em referência ao esforçado trabalho de todos os portugueses que ali carreiam uma vida de trabalho sob a acção de um duro clima depauperante de energias, de todos eles, sejam funcionários, colonos ou indígenas, e também ao carácter e inteligência do seu governador, que é o melhor defensor e a mais segura garantia da prosperidade da colónia, continuando assim a honrosa tradição vincada ali por brilhantes oficiais da nossa briosa marinha de guerra, realidades que mencionou, satisfazendo, com plenitude de justiça, a minha alma de português.
Afirmou ainda que uma obra magnífica se vem realizando de há tempos para cá, constituindo um autêntico triunfo para Portugal.
Essa terra hoje tão socialmente ordeira e disciplinada na consciência do grande dever nacional, que tem aceitado sem murmúrios todos os sacrifícios que se lhe tem imposto, sacrifícios que se têm transformado em visíveis realizações de fomento, mercê da vontade que segue inquebrantàvelmente a directriz imperativa do Estado Novo; a Guiné, onde um brado só basta para reunir em torno da bandeira sacrossanta de Portugal muitos milhares de indígenas, conscientes, pelo sentir, da humanidade que encerram os nossos métodos e princípios de colonização civilizadora; essa terra é ainda um testemunho seguro de quanto podem o amor pátrio e a fé, é toda ela uma página de ouro da nossa acção colonizadora, como é hoje uma prova absoluta do nosso ressurgimento.
Foram portugueses e são portugueses os que constituem as classes de funcionários, missionários e colonos, aqueles que têm sabido vincular desde a primeira hora a integração espiritual de Portugal inteiro, dos portugueses de boa vontade e sã consciência, nos altos princípios da bela formação espiritual da Nação Portuguesa.
Essa febricitante actividade actual em prol das possibilidades e factores do progresso da Guiné, a que se referiu o ilustre Deputado, deve-se, sem a menor dúvida, em grande parte aos seus funcionários. Muitos deles são nascidos noutras colónias, e todos, sem distinção, se têm mostrado bons e leais portugueses.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- À parte a grande massa das populações nativas, que, juridicamente, se conserva no regime social do indigenato, e a qual intuitivamente não sabe compreender ainda a subtileza dos princípios que formam a, consciência da cidadania; à parte essa formidável máquina de trabalho humano, que aumenta em alguns milhões de almas o índice populacional da Nação, o português filho das colónias, que social e juridicamente está integrado na qualidade de civilizado, é, de facto, português como aqueles que melhor o sabem ser; e, na grande maioria dos casos, possui ascendência lìdimamente portuguesa, que, por vezes, vem das primeiras gerações lusíadas que povoaram e colonizaram o nosso domínio ultramarino.
Deste facto - rigorosamente verdadeiro - resulta a existência de muitos milhares de naturais das colónias cuja cor branca e perfeitos caracteres étnicos, peculiares à raça branca, causam a admiração de certa gente que supõe ainda que em África só podem nascer pretos!
E mesmo quando, porventura, tenha havido cruzamentos - que lei alguma proibiu ou condenou - com elementos chamados «de raças nativas», pode produzir-se uma diferença na coloração dos pigmento, mas as almas, por uma educação moldada nos mais elevados princípios da moral e do patriotismo, ficaram inabalàvelmente no culto do mais puro nacionalismo. Exemplos probantes desta afirmação há-os, incontáveis ...
E óbvio admitir que esses portugueses naturais das bolónias - parte deles educada na metrópole, cujos hábitos de civilização adquiriu -, aos quais a sorte ou o merecimento próprio consentiram a conservação ou a melhoria da situação social dos seus maiores, possuem os mesmos hábitos soerias, as mesmas necessidades de vida que o europeu, e por vezes maiores ainda, quando alcançaram uma posição social que os obriga a não causarem, por um viver impróprio, o desprestígio da posição enquistada.
Ocorrem estas considerações em face da disposição legal que se encontra nos orçamentos das colónias da Guiné e de Cabo Verde - as únicas em que tal facto
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está estatuído e a excepção é sempre afrontosa - de os funcionários naturais dessas colónias que não sejam descendentes de europeus perderem o abono da subvenção colonial quando servindo na outra de que não são naturais.
Admitindo como justo o princípio de que a subvenção colonial abonada ao europeu é uma compensação pela mudança de condições de habitat, não se compreende que ao natural de uma colónia que vai servir na Guiné não se reconheça que houve, também, para ele, uma mudança de habitat, já dificultado só pelo facto de ter abandonado a sua terra, a sua família e outras condições de vida que poderiam constituir para ele um auxílio.
É mantido o equilíbrio orçamental, que, de alguns anos a esta parte, vem demonstrando o sadio estado financeiro do nosso Império Colonial e que afastou o perigo da insolvência que há cerca de duas décadas atrás o trouxe num completo desnorteamento de iodos os sectores de valorização; feita assim a prova mais concludente do forte querer dos Govêrnos do Estado Novo em fazer o seguro saneamento das finanças nacionais, porque não dedicar a melhor atenção a problemas sociais - de cuja boa solução depende, de facto, a verdadeira e indestrutível unificação do Império -, enveredando, francamente e sem preconceitos que inferiorizam o espírito, pelo humano e muito português princípio de igualdade perante as leis que fixam obrigações, mas que também atribuem os mesmos direitos a todos os portugueses cuja socialização uma mesma Constituição rege?
No estado de superavits financeiros em que se encontram presentemente as colónias já não é racional atribuir a disposição orçamental a que me refiro a uma necessidade de comprimir despesas. E, se assim fosse, uma simples análise ao orçamento da Guiné evidenciaria de maneira decisiva que a indispensabilidade de compressão de despesas - se existisse - bem poderia encontrar compensações em outras origens que não nos proventos do seu funcionalismo, já remunerado com provada parcimónia.
E, ainda mais: a razão colheria se, antes de uma necessidade puramente material - e, neste caso, e todos devendo alcançar -, não estivesse o grande interesse nacional da unificação sincera dos espíritos em torno do ideal da Pátria comum!
Não quero cansar a atenção da Assembleia com o meu fastidioso dizer, entrando em pormenores. Mas não devo deixar de mencionar que o chefe da Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, que é intendente de distrito, licenciado em Direito, porque é natural de Cabo Verde, percebe menores vencimentos que um administrador de 1.ª classe descendente de europeus; um administrador de 1.ª classe vencerá menos do que um de 2.º considerado europeu, e assim sucessivamente, embora possam ser todos da mesma cor, todos da mesma educação e todos de tipo ... ariano!
Se estas situações não fossem já injustas à face do desempenho de funções de responsabilidades proporcionais, ilegais por contrariarem disposições de lei e contrárias ao princípio da hierarquia, seriam também desprestigiantes para o indivíduo que, enquadrado no mesmo grupo de categorias, é diferenciado pela ... qualidade.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Um país como Portugal, cujos princípios de colonização se têm orientado pela excelência da doutrina cristã e pelo sentimento de humanidade, só assim sendo possível apontar orgulhosamente o nacionalismo das suas populações coloniais, não obstante a pequenez da sua população metropolitana, insuficiente para, de outra forma, levar a cabo uma beneficiosa política de assimilação; um país como Portugal, de escassos recursos materiais para tão extenso território a valorizar, social e econòmicamente, não deve, assim suponho, estabelecer princípios de excepção, que podem, naturalmente, conduzir a desintegração social, pelo choque espiritual que tais princípios fatalmente têm de causar em seres conscientes.
Existem espalhadas pela enorme vastidão do nosso Império Colonial centenas de famílias que têm a sua origem em cruzamento de europeus com elementos nativos, já numa fase de evolução social que as iguala espiritualmente ao europeu, porque a colonização civilizadora dos portugueses as elevou ao nível moral do ser psicológico bem formado. Atingi-las com leis de excepção é negar a perfeição da própria obra ...
Possuem essas famílias, hoje em dia, um tipo rácico, bem definido, do português, cujos hábitos de civilização, aperfeiçoados ainda pela educação intelectual, adquiriram. Aprenderam a amar a Pátria comum, pelas virtudes dos seus maiores, exactamente como aqueles que abriram os olhos ao sol acariciador de Portugal!
Porque considerá-las, pois, só por convencionalismo que nada justifica e repugna aos princípios cristãos, inferiorizadas às suas irmãs da metrópole? Porque colocá-las em regime de excepção, que fere profundamente o sentimento, quando se tem a consciência plena de uma igualdade psicológica, produzindo estados de alma que, evidentemente, não podem concorrer para o robustecimento de uma só fé patriótica em toda a grei portuguesa?
Não têm aquelas famílias: o mesmo sentir gerado por uma mesma civilização? Não concorrem, como todos os valores sociais do País, para a grandeza da nacionalidade? E não é através delas que também se opera a magnífica obra de colonização de que Portugal se orgulha e o ilustre Deputado Dr. António de Almeida se fez eco nesta Assembleia?
O nosso espírito patriótico, ao bradar a necessidade da unidade do Império, quer também atingir a unidade espiritual, a única que resiste à acção devastadora das doutrinas desagregadoras das sociedades.
Portugal não se confina à estreita faixa do Ocidente europeu, e por isso o espírito do seu elevado nacionalismo nobre, generoso e cristão deve cobrir, com asa imensa e protectora, igualmente todos, mas todos os seus filhos, seja qual for a sua étnica. E o próprio Chefe do Estado quem, numa revelação clara do seu alto espírito justo, bondoso e patriótico, numa visão arguta do futuro, o significa nas suas palavras a propósito da sua visita às colónias:
Tenciono realizar essa viagem para que o mundo ultramarino sinta que o seu chefe - chefe de todo o Império - deseja levar-lhes a certeza do seu interesse, do seu amor, sem distinção de cores ou de raças, pois que todos são portugueses, e vivem sob a mesma gloriosa bandeira das quinas.
E nesta Assembleia, no ano findo, se ouviu a afirmação justa e patriótica do brilhante Deputado Dr. Bustorff da Silva de que «tornar Portugal e as colónias como um só bloco espiritual seria, sem dúvida, uma das mais exultantes manifestações da sua vida». E estou certo, - pelo que vi, que todos nós comungamos nesse sentir.
Reconhecida a obra formidável que se tem realizado na Guiné, honrando a nossa acção colonizadora, é dever de justiça e de gratidão que seja reparada a situação dos funcionários da Guiné, pois são os que auferem menores
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vencimentos em todo o Império, executando Cabo Verde, apesar de trabalharem na colónia de pior clima, e se acabe com a afrontosa situação em que alguns estão em comparação com outros servindo noutras colónias em igualdade do circunstâncias.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Bustorff da Silva: - Sr. Presidente: uso da palavra para solicitar a atenção do Govêrno no sentido de fazer abortar a tempo uma nova especulação que anda no ar, caminhando assim no mesmo trilho que desde sempre venho seguindo, ou seja o de atacar todas as especulações, venham de onde vierem.
Desta feita é a especulação que se prepara quanto à situação, que começa a tornar-se difícil, dos produtores de vinho com relação à última colheita obtida.
O vinho, que na colheita anterior chegou a atingir, no produtor, o preço do 3$ ou 3$50, e até, nalgumas regiões, 4$, não encontra hoje comprador, mesmo quando os lavradores o oferecem a 1$50 e a menos de 1$50.
Isto pretende-se explicar pela circunstância de a última colheita ter sido uma colheita excepcionalmente boa.
Mas não é verdade. A lavoura está manifestamente equivocada quando procura aferir do valor da última colheita estabelecendo confronto com os resultados da precedente, porque a colheita precedente foi anormalmente baixa, e, portanto, qualquer diferença saliente que se verifique é apenas dum valor de aparência que está longe de corresponder à realidade. Os cálculos dos melhores técnicos, as previsões dos espíritos mais doutamente orientados falham em absoluto nesta tese. É de todos os dias a verificação de que num país - ao que ouvi - onde não se especula a prática dos factos demonstra que as previsões dos espíritos melhor preparados caem muitas vezes pela base. O que está sucedendo com relação ao azeite da última colheita é uma demonstração patente da verdade que acabo de afirmar.
As pessoas experimentadas no assunto calculavam essa produção em qualquer coisa como X; este X aparece agora excedido em cerca de 50 por cento. E, porque ninguém especula, apura-se que no azeite da última colheita, manifestado como tal, começam a encontrar-se enormíssimas partidas que provêm de colheitas anteriores... Porquê? A explicação salta-me aos lábios, mas não quero, por agora, entrar em detalhes. Seja, porém, como for, é indispensável acudir a uma situação que é gravíssima.
A Junta Nacional do Vinho já pela sua parte trouxe uma contribuição que é valiosa, mas insuficiente: facilitou o crédito aos lavradores, permitindo-lhes levantarem dinheiro sobre as suas colheitas, na base, salvo erro, de $80 por cada litro de vinho. Assim conseguiu, até certo ponto, que eles desanuviassem o ambiente de preocupação e de carência económica em que se estavam debatendo.
Mas isto não chega porque o recurso ao empréstimo acaba sempre por agravar o preço de produção do produto.
Temos de ir mais longe.
A solução imediata parece que consistiria em promover desde já uma rápida e intensa exportação. Mas a situação dos mercados internacionais demonstra que esta solução é, senão impossível, pelo menos quase que impraticável. A Inglaterra fechou-nos praticamente as barreiras; da América não chegam informações aliciadoras; o Brasil põe dificuldades enormes no que respeita à exportação dos cambiais necessários para promover o pagamento do produto que pretendemos exportar; na Bélgica a concorrência entro os exportadores está aviltando o preço do produto, e na Suíça os exportadores pretenderam um prémio de $30 por litro, mas enquanto o assunto se discutia o mercado foi abastecido por outros países produtores, pelo que não é fácil ali colocar novas e grandes partidas de vinho.
Suponho, portanto, que a solução se deve encaminhar abertamente, por intermédio da Junta Nacional do Vinho, para a queima de uma quantidade substancial dos vinhos da última colheita, na sua grande maioria vinhos maus, de forma a que a mesma Junta possa reforçar o seu stock de aguardentes, que, segundo me informam, está bastante diminuído...
O Sr. Franco Frazão: - São 17:000 pipas de aguardente que estão em stock.
O Orador: - O que é impossível é cruzar os braços perante a posição em que se encontra a lavoura produtora de vinho na última colheita e deixar que esses vinhos, que são vinhos inferiores, se danifiquem e inutilizem. Portanto, é preferível aumentar, ainda além das necessidades, esse stock de aguardente do que facilitar ou provocar que aqueles que nos abastecem de um dos produtos essenciais da nossa economia sofram novos prejuízos incomportáveis.
Uso, por conseguinte, da palavra, neste momento, apenas com o intuito de solicitar a atenção do Govêrno para o facto, na certeza, mas na mais absoluta, sincera e convicta certeza, de que o Sr. Ministro da Economia, com a sua acuidade de espírito, com a sua oportunidade de intervenção e com o seu dinamismo de sempre, dura a esta crise o remédio que se impõe.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Encontra-se na Mesa o parecer da Comissão de Legislação e Redacção acerca de dúvidas apresentadas pelo Sr. Deputado Duarte Silva a respeito da sua situação parlamentar.
A carta de S. Ex.ª e o parecer vão ser publicados no Diário das Sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Vai ser submetido à apreciação da Assembleia o parecer da Comissão de Legislação e Redacção acerca da situação do Sr. Deputado Pastor de Macedo. Esse parecer já foi publicado no Diário das Sessões n.º 118. Contudo, vai de novo ler-se.
Foi lido.
O Sr. Presidente:- Está em discussão.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Visto que ninguém deseja usar da palavra, vai passar-se à votação em escrutínio secreto.
A Assembleia conhece a hipótese sobre a qual vai pronunciar-se.
O Sr. Deputado Pastor de Macedo foi nomeado presidente substituto da Câmara Municipal de Lisboa e, por virtude de um decreto recente citado no parecer que acaba de ser lido, pode acumular com o presidente no exercício das suas funções.
Foi, pois, nomeado pelo Govêrno, exerceu efectivamente as funções para que foi nomeado por despacho, mas funções que são remuneradas pelo cofre do Município e que cessarão em Abril do ano corrente. Esta é a situação que VV. Ex.ªs vão julgar e sobre a qual a Comissão de Legislação e Redacção emitiu o parecer de que ela conduzia à perda de mandato, salientando, to-
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davia, que a Câmara tem já precedentes em sentido contrário.
VV. Ex.ªs já conhecem a forma de manifestar a sua vontade por meio de esferas brancas e de esferas pretas. A primeira uma destina-se a recolher a esfera que exprime o voto; a esfera branca significa voto pela não perda de mandato, a esfera preta exprime a perda do mandato. A segunda uma recolherá as esferas sobrantes.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à votação.
Pausa.
Procedeu-se à chamada e à votação.
O Sr. Presidente: - Está concluída a votação. Convido para escrutinadores os Srs. Deputados Pinheiro Torres e Soares da Fonseca.
Procedeu-se ao escrutínio.
O Sr. Presidente:- Entraram na primeira uma 33 esferas pretas e 28 esferas brancas.
Portanto, está votada a perda de mandato do Sr. Deputado Pastor de Macedo.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - A ordem do dia é em primeiro lugar constituída pela apreciação do pedido de autorização do Govêrno para a cedência de terrenos em Lourenço Marques, a fim de neles se construir a residência do cônsul britânico.
Está na Mesa o parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, que vai ser lido à Assembleia.
Foi lido. É o seguinte:
«A Comissão Permanente dos Negócios Estrangeiros apreciou o pedido do Govêrno de Sua Majestade Britânica para adquirir em Lourenço Marques terrenos destinados à residência do cônsul geral naquela cidade, e, verificando que se deu cumprimento ao disposto no artigo 8.º do Acto Colonial e que não há ofensa dos direitos de soberania, é de parecer de que a Assembleia Nacional conceda a autorização solicitada, dentro dos princípios fixados no § único do artigo 221.º da Carta Orgânica do Império, já que a reciprocidade é respeitada em relação aos territórios em que o Govêrno solicitante a pode prestar.
Lisboa, 8 de Janeiro de 1948. - Pela Comissão: João Mendes da Costa Amaral - José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão».
O Sr. Presidente: - Está em discussão.
O Sr. Alberto de Araújo: - Sr. Presidente: tenho a honra de mandar para a Mesa uma proposta concebida nestes termos:
«Nos termos do artigo 8.º do Acto Colonial e de acordo com o parecer da Comissão Permanente dos Negócios Estrangeiros desta Assembleia, proponho que seja concedida a autorização solicitada pelo Govêrno Inglês para adquirir na cidade de Lourenço Marques os terrenos necessários para a construção dum edifício destinado à residência do cônsul de Sua Majestade Britânica naquela cidade».
Não precisa quase de justificação a proposta que acabo de apresentar. Se é compreensível que as solicitações desta natureza não sejam deferidas sem autorização prévia da Assembleia Nacional, menos certo não é também que o Estado Português não pode, em regra, deixar de as atender, dado que necessita, por vezes, de fazer pedidos idênticos aos Estados estrangeiros.
As normas que orientam o deferimento ou indeferimento destas pretensões assentam na existência do princípio da reciprocidade entre o Estado que pede e o Estado que deve conceder a autorização solicitada.
Ora, se não é possível estabelecer regras de reciprocidade entre o nosso País e todas as colónias, protectorados e domínios que fazem parte da comunidade das nações britânicas, pode-se todavia assegurar que nada impede a efectivação dessas regras nos territórios britânicos vizinhos de Moçambique.
E nos seculares e tradicionais laços de amizade que unem as nações interessadas no perfeito entendimento dos seus govêrnos, nas boas relações de vizinhança que assinalam a colaboração dos dois impérios na colonização africana, pode ainda esta Assembleia encontrar razões complementares para conceder, gostosamente, a autorização pedida.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Continua em discussão.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como a Assembleia acaba de tomar conhecimento, tanto o parecer da Comissão Permanente dos Negócios Estrangeiros como a proposta do Sr. Deputado Alberto de Araújo são no sentido de que a Câmara conceda a autorização que é solicitada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Vai ser posta à votação a proposta do Sr. Deputado Alberto de Araújo.
Submetida à votação, foi aprovada.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à segunda parte da ordem do dia.
Continua em discussão o aviso prévio do Sr. Deputado Mendes de Matos.
Tem a palavra o Sr. Deputado Albano de Melo.
O Sr. Albano de Melo:- Sr. Presidente: são para V. Ex.ª as minhas primeiras palavras.
Tenho a honra e o vivo prazer de apresentar a V. Ex.ª as minhas respeitosas homenagens, testemunhando-lhe neste momento toda a admiração e reconhecimento que lhe são devidos por quem de há muito se habituou a receber do amigo provas de generosidade e do homem público exemplos de altos serviços prestados à Causa Nacional.
Sr. Presidente: ao subir pela primeira vez a esta. tribuna sinto que paira sobre mim a sombra doa meus avós, que há meio século neste lugar lutaram por amor à Pátria, ao Povo e ao Ideal que trago de herança ao sangue e ao qual tenho procurado ser fiel, embora através de uma concepção política que possa servir os imperativos económicos e sociais do nosso tempo.
Desejo e quero evocar desde já o nome de Salazar para afirmar que este humilde servidor que vos fala procurará não cometer o vil pecado de ingratidão ou deslealdade para esse grande português, que a golpes de génio e coragem moral está cinzelando a História.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
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O Orador: - O meu pensamento não pode nesta hora esquecer-se de quantos foram a minha torturante preocupação durante estes últimos três anos, e que lá andam, por esse País fora, debruçados sobre a terra pátria, nela investindo fazenda, suor e esperanças, para que não falte à grei alimento português, para que não sequem as fontes donde brotam as melhores virtudes da raça.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E, já que achei não dever escusar-me a que se apresentasse nas últimas eleições o meu modesto nome como candidato a Deputado, dirijo daqui aos meus eleitores a expressão do meu afecto e o testemunho do meu reconhecimento pela forma como me distinguiram com a sua confiança. E se todos os concelhos do meu círculo me merecem igual atenção, seja-me, no entanto, permitido, evocar a terra onde cresci e onde repousam os meus mortos: refiro-me a Águeda «a terra mais bonita do País», como um dia foi proclamado nesta Casa.
Srs. Deputados: antes de entrar no assunto que me trouxe a esta tribuna desejava apresentar as minhas saudações a VV. Ex.ªs e aproveitar a ocasião para agradecer-lhes, profundamente renomeado, a atitude com que um dia aqui me honraram, não me esquecendo - tenho-as para sempre guardadas no coração - das generosas palavras proferidas pelo ilustre Deputado Dr. Paulo Cancela de Abreu, a quem me ligam, laços de amizade, respeito e admiração pela sua grande alma, brilhante inteligência e admirável carácter.
Sr. Presidente: de tal forma se tem procurado diminuir no espírito público a missão dos estabelecimentos onde se vende vinho a retalho, que perguntei a mim mesmo se deveria ou não aproveitar tal assunto para, pela primeira vez, abusar da paciência de VV. Ex.ªs
Não apoiados.
Mas julguei ser meu dever para com o povo português não me calar, pois, em minha consciência, para além dos possíveis ridículos da questão em debate existe um mundo de interesses económicos, sociais, morais e de saúde pública que não podem ser esquecidos. Entre o ridículo e o interesse da grei procurei não ter a cobardia de, com receio daquele, deixar comprometer este.
Eis a razão por que aqui estou.
Desde os mais remotos tempos o vinho desempenha um papel importante na vida do Mundo. Pode mesmo dizer-se que a história do vinho se confunde com a história da Humanidade, de tal forma encontramos as suas pegadas na Religião, na economia, nas ciências, nas artes, através do rolar dos séculos.
Aqui, no solar lusitano, oito séculos de história, que são todo o nosso orgulho, são oito séculos de uma cultura que teve a mais decisiva influência no viver do nosso povo.
Não vou rebordar a VV. Ex.ªs os trilhos percorridos pela cultura da vinha através das épocas da nacionalidade, mas julgo que a ela não será indiferente -pelo que tem de apaixonante e pelo extraordinário volume de capitais e de trabalho que ela investe - a virtude desta raça universalista, que deu novos mundos ao Mundo, de não perder - pelo amor, pela saudade, pelo «estilo» de vida - a pureza da seiva que lhe vinha das raízes rurais lusitanas.
Mas vejamos o panorama actual.
Desde o Minho ao Algarve nós topamos neste país vinhateiro a cultura da vinha fazendo parte da vida da nossa agricultura, constituindo mesmo em muitas zonas um imprescindível travejamento da sua estrutura económica.
Pensemos na região dos vinhos verdes, onde a vinha bordeja os campos nas suas características latadas ou naqueles estranhos enforcados, onde ela vai dar os seus preciosos frutos lá no alto, lá em cima, talvez para estar mais perto do céu.
Meditemos neste esplendoroso Douro, glória de Portugal e do Mundo, resultado do esforço heróico de uma cadeia de gerações que tiveram a coragem e o sonho de transformar o xisto em terra eleita, arrumada aios socalcos, socalcos dispostos em calvário, certamente como símbolo dos transcendentes sacrifícios que custou esse maravilhoso empreendimento agrário.
E a região dos vinhos virgens e semelhantes protegendo nas altas terras de Trás-os-Montes ou da Beira a genuinidade do Douro?
Temos o Dão, onde entre as terras pobres de granito as vinhas são amorosamente plantadas na nobre valorização das encostas da Beira.
Depois a Bairrada, onde o barro bravio é revolto à custa de penoso esforço dos homens para nos oferecer os seus característicos vinhedos.
E a região de Coimbra, Leiria, Alcobaça e as Caldas da Rainha, diferenciadas, com seu cunho próprio, contas do rosário que liga pelo litoral o norte vinhateiro à grande região vinícola do oeste, que se desdobra em contínuas encostas cobertas da generosa cepa.
E esse Ribatejo vinícola, sempre tão discutido, onde a vinha é conhecida desde a fundação do reino e que constitui uma das manchas eleitas na vinicultura mundial, porque alia, o que é raro, altas produções com altas graduações.
Colares, Setúbal, Bucelas, Carcavelos são pontos luminosos no xadrez da vinicultura portuguesa.
E vêm certas posições do Alentejo até chegarmos ao Algarve, onde a vinha tem as suas belas tradições.
Vejam, meus senhores, que a cultura da vinha está tão afeita ao nosso solo que até em pleno Atlântico a Providência quis que ficasse vincada esta característica do nosso viver, oferecendo-nos generosamente a maravilhosa Madeira, onde os produtos da cepa são um dos seus mais nobres, brasões.
E é assim por quase todo este Portugal em fora.
São 345:000 hectares de vinha, cuja produção em 1945 pode computar-se em mais de 2.000:000 de pipas, como valor aproximado de 2.500:000 contos, importância não atingida por qualquer outra produção agrícola do País.
Calcula-se que na campanha de 1944-1945 o consumo a copo se elevou a 2.500:000 pipas.
Trata-se, dentro do quadro da nossa economia, de uma formidável fonte de riqueza.
Basta meditar-se que a exportação de vinho em 1946 trouxe para o País um valor de mais de 800:000 contos, não contando com a exportação do da Madeira.
Os números, na sua frieza, não falam de todo esse mundo de factores que dão possibilidades de melhores condições de vida ao povo português. Mas não seremos nós os que estamos deste lado da barricada, tendo como única divisa os altos interesses da grei - que nos possamos esquecer do que esses números representam.
Sim, a produção vinícola é um pilar da vida económica do País.
Mas há mais: ouso mesmo afirmar que em largas regiões, sem os lucros obtidos na cultura da vinha, seria impossível praticarem-se outras culturas indispensáveis ao abastecimento público, ouso afirmar, para concluir que, nestes casos, que são muitos, há que escolher entre a vinha ou a miséria.
Parece, portanto, que sob o aspecto económico é grave pecado combater-se o uso do vinho, antes será virtude fomentar-se o seu consumo.
Sr. Presidente: chegados à conclusão de a produção vinícola ser uma fonte de riqueza, cabe-nos perguntar se
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ela constitui directamente também uma fonte de trabalho.
Primeiro deixem-me dizer que na propriedade essa riqueza se distribui por 350:000 vinicultores, o que desde logo lhe empresta um sentido eminentemente social.
Depois a vinha é cultura essencialmente colonizadora, quer dizer, não só mobiliza grande número de braços, como ainda garante, na roda do ano, a contínua ocupação dos mesmos. E só quem não se tenha um dia debruçado sobre os problemas da mão-de-obra na agricultura é que pode esquecer os gravíssimos inconvenientes económicos, sociais e morais que advêm para uma massa rural influenciada por crises ora de falta, ora de excedente de mão-de-obra.
Só nos 345:000 hectares de vinha e nas respectivas adegas podemos calcular, segundo a estimativa do engenheiro agrónomo Cunha Parro, da Junta Nacional do Vinho, a utilização anual de 57 milhões de dias de salários (unidades-homens).
Isso já era bastante.
Mas o vinho não fica na propriedade, segue para o consumo do mercado interno e externo. E então é todo o trabalho dos transportes, dos armazéns, das tanoarias, da indústria do vidro, dos fungicidas, da cortiça, dia caixotaria, etc., e ainda essa prestimosa classe que permite levar o vinho ao consumidor, constituída por mais de 55:000 pessoas.
No dizer do nosso ilustre colega, meu querido amigo e meu sábio Prof. Luís Cincinato da Costa, «não seria difícil concluir que mais de metade do País está ligada a esse primordial valor da nossa riqueza pública».
Parece, portanto, que sob o aspecto social é grave pecado combater-se o uso do vinho, antes será virtude fomentar-se o seu consumo.
Pode dizer-se, Sr. Presidente, que se aceitam as incontestáveis vantagens de carácter económico e da mobilização e distribuição do trabalho que o consumo do vinho faculta, mas que se ignora a sua influência sobre a saúde pública.
Será ou não o vinho uma bebida higiénica?
Todos sabemos que há quem o condene, a ponto de haver certos países que chegaram a decretar leis secas. E eu direi, como afirmou o Prof. Dr. Kaufman, da Universidade de Missouri: «estes estão dominados por uma falta surpreendente do sentido da verdade».
Desde a mais remota antiguidade que o uso do vinho é defendido.
Já Hipócrates, considerado o pai da Medicina, há dois mil e quinhentos anos dizia: «O vinho é uma coisa conveniente ao homem, tanto ao homem são como ao homem doente; deve ser usado e ministrado no momento oportuno e numa justa proporção, segundo a constituição individual».
E através dos tempos os grandes médicos -, baseados em estudos científicos, proclamaram as virtudes do vinho.
E Galeno, Calvo e Plínio, e depois, para me referir a tempos menus recuados, tapamos com Paterson, Júlio Cloquet, Guy de Chauliac, Ambroise Pare, Sydenham, Dupuztren e Malgaigue, Richerand, Bonchordat, Disprone e Dubois, Nelaton, Baudelocque até Laborde, Duclaux, Gautier, Maurice, Perrin, Labemand e Duroz, Hopp-Seyler, Bruke, Volflag, Bunge, Albertoni, Rossi, Porteman e assim sucessivamente. Não desejaria porém esquecer-me da contribuição trazida à defesa do vinho pelos médicos portugueses da actualidade, entra os quais citarei: Samuel Maia, Heitor da Fonseca; Mário Rosa, Carlos Santos, Rafael da Cunha Franco, Toscano Rico, Marques de Almeida, Malafaia Baptista, Ernesto Roma, Adriano Burguete, D. Salvador da Cunha, Mário Cardia, etc.
Sei que é fastidioso para VV. Ex.ªs a enumeração de todo este rosário de nomes - e tantos ficaram por citar -, mas creiam que também foi fastidioso para mim poder esclarecer a minha consciência na busca dos depoimentos de medicina.
Afãs continuemos.
Segundo Duclaux, 79 gr,5 de bom álcool vínico produzem 512 calorias. Ora 37 gramas de gordura e 45 gramas de hidratos de carbono representam 520 calorias, tendo verificado que não se dá alteração na economia quando se substitui o álcool vínico pelas gorduras ou os hidratos.
Armando Gautier e outros médios confirmaram que o vinho tomado em quantidades convenientes fixa 1 gr,5 por dia e por quilograma de peso de cada pessoa.
Um litro de vinho parece oferecer um valor alimentar igual a 600 gramas de pão, 600 gramas de leite, 500 gramas de carne, 1 quilograma de batata, além das vitaminas C e B.
Compreende-se, pois, o valor que o consumo do vinho representa no complemento da ração alimentar das classes menos abastadas do nosso País, por ser abundante e barato.
Compreende-se a afirmação do Sr. Dr. Joaquim Decref, da Academia Real de Medicina de Madrid e vice-presidente da Sociedade Espanhola de Higiene.
O vinho, tal como se produz em Espanha e quando tomado em quantidades moderadas, constitui não só uma bebida higiénica, estimulando as secreções gástricas, como também, pela sua composição complexa, proporciona elementos importantes para a nutrição, além de que, pelo seu álcool etílico, representa um alimento químico de natureza dinâmica directamente utilizável pelo organismo, sendo insubstituível na economia doméstica do trabalhador do nosso País, em virtude do seu preço pouco elevado.
E, para não maçar mais VV. Ex.ªs, direi apenas que, para além do valor fisiológico, o vinho tem o seu valor terapêutico, indicando o que nos diz o Dr. Maurício Loeper, professor da Faculdade de Medicina de Paris:
1.º O vinho pode e deve ser aconselhado:
a) Na dispepsia hiposténica e na hipercloridia;
h) Nas infecções, visto que aumenta a resistência do organismo;
a) Na astenia e na anemia;
d) Em determinadas oligúrias, hipoazotúrias ou hipoclorúrias cuja origem não seja nefropata.
2.º É discutível a sua acção na tuberculose pulmonar.
3.º Está contraindicado:
a) Na gastrite mucosa e hipergenética;
L) Na hipersensibilidade gástrica;
e) Nas colites e na coleldiase;
d) Na hipertensão;
e) Na nefrite crónica;
f) Na cirrose do fígado.
É bem de aceitar que o Dr. Gueniot, que viveu mais de cem anos, atribuísse a sua longevidade ao uso contínuo, mas moderado, do vinho.
O Sr. Mendes de Matos: - Aí é que está o problema. O problema está na moderação.
O Orador: - Perfeitamente de acordo. Por isso o Sr. Dr. Samuel Maia diz: «O vinho é bom, no bom momento, em boa conta».
Mas, Sr. Presidente e Srs. Deputados, curvemo-nos diante da opinião de um dos mais luminosos valores de todos os tempos, esse homem extraordinário cujo labor transfigurou a ciência, salvando milhares de vidas, esse
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grande católico que quase tocou em Deus. Refiro-me a Pasteur, que disse: «O vinho é a mais sã e a mais higiénica das bebidas».
Parece, portanto, que, sob o aspecto higiénico, é grave pecado combater-se o uso do vinho, antes será virtude fomentar-se o seu consumo.
Vimos que o vinho é fonte de riqueza, de trabalho e de saúde, mas essas vantagens terão de ser colhidas à custa de sacrifício do consumidor?
Não; saber beber vinho é poder ter um prazer físico e intelectual.
Dá pão, lida e vigor, mas dá também, tomado com parcimónia, o inofensivo gozo de um dos mais subtis bens terrenos.
Refeição sem vinho é lareira sem lume.
E, se pensarmos então na nobreza dos produtos deste País vinhateiro, podemos avaliar as preciosidades com que a Natureza nos bafejou.
São os vinhos licorosos Estremadura, Carcavelos, Moscatel de Setúbal, Madeira e o Porto, este o mais nobre vinho do Mundo, que traz em si todos os segredos imponderáveis do solo e do clima da região do Douro, que lhe foi berço. O vinho do Porto, esse grande, permanente e fiel embaixador da nobreza dos produtos portugueses. Admirável dádiva da Natureza, diria mais, excelso bem terreno oferecido aos homens pela mão divina.
São os vinhos de mesa, desde os vinhos verdes aos Colares e Dão, onde (podemos encontrar toda a gania de valores enológicos, no paladar, na cor, no corpo, no aveludado, na frescura, na leveza, na maleabilidade, dando-nos as excepcionais massas vínicas portuguesas.
Nobre bebida; tão nobre que a Cristo, Senhor Nosso, entre tantas, foi ela, e não outra, que mereceu a Sua escolha para transubstanciar para todo o sempre no sacrifício do Seu divino sangue.
Parece, portanto, que, sob o aspecto da sua nobreza, é grave pecado combater-se o uso do vinho; antes será virtude fomentar-se o seu consumo.
Mas é evidente que, para que o vinho seja o factor económico, social e higiénico que temos demonstrado, é necessário que seja consumido e para ser consumido é indispensável que quem o utilize possa encontrá-lo com facilidade, quer dizer, que lhe seja acessivelmente distribuído.
Não se topa outra forma, em qualquer parte do Mundo, para atingir esse fim senão por intermédio da existência de casas de venda a retalho.
Se queremos, pois, que o vinho se beba, temos de considerar a função dos retalhistas.
Falei há pouco do consumo do vinho em Portugal. Mas esse consumo dá-se porque existem mais de 55:000 retalhistas.
Esta noção julgo-a fundamental.
Sr. Presidente: repare-se que tenho estado a defender o uso do vinho, mas não o abuso.
Este é condenável e todos os meios úteis que utilizemos para o combater são benvindos.
Quem procura mover-se na vida pública e particular dentro dos rígidos princípios cristãos não poderá pensar de outro modo.
Mas o que não se pode é confundir os efeitos do uso do vinho com os efeitos do abuso do vinho e muito menos confundir o abuso do vinho com o abuso do álcool.
Por o abuso do vinho causar algumas vítimas na sociedade não podemos condenar o vinho.
A água ... a água é responsável por muito mais mortes do que o vinho, e não condenamos por isso a água.
O Sr. Melo Machado: - Consoou polo dilúvio.
O Orador: - O sal das cozinhas, tão indispensável ao tempero dos alimentos, utilizado com abuso é veneno, e não condenamos por isso o sal.
O calor, imprescindível à existência, em excesso murcha, queima, mata, e não vamos por isso condenar o calor.
O amor, um dos mais belos sentimentos humanos, pode, por exagerado, levar ao crime, e não condenamos por isso o amor.
A Religião - felicidade da vida - pode por desvio ser fanatismo, e não condenamos por isso a Religião.
E até a política, tão necessária ao eficiente govêrno dos povos, quando ministrada com exagero é essa trapaça que se chama demagogia, e não vamos por isso condenar a política.
O Sr. Mendes de Matos: - Simplesmente a autoridade julga-se na obrigação de a reprimir e evitar.
O Orador: - E evidente ... mas não se condena nem com medidas policiais nem fechando os estabelecimentos.
Tudo afinal neste Mundo, mesmo os melhores bens que ele nos oferece, tem de ser utilizado com moderação.
Por isso se confirma que o abuso do vinho é condenável, mas, por ser condenável, não podemos responsabilizar o uso do vinho pelo alcoolismo.
Não se nega existirem casos isolados de alcoolismo provocado pelo abuso do vinho, mas não têm o menor significado como fenómeno colectivo.
O alcoolismo, quando se manifesta com aspecto de flagelo social, nunca se apresenta como efeito do abuso do vinho, mas sim como abuso do álcool contido nas bebidas brancas e, dentro destas ainda, naquelas que não são derivadas do vinho.
É do conhecimento geral que uma das formas de combater o alcoolismo é o vinismo, conclusão a que se chegou pela observação da circunstância de nas regiões vinhateiras onde se bebe mais vinho se registar a menor frequência de casos de alcoolismo.
Em França, por exemplo, por cada 100:000 habitantes verificou-se o seguinte:
[Ver Tabela na Imagem]
O que indica que numa região vinícola onde se bebe vinho a longevitude das pessoas é maior.
Mas ouçamos o que proclamou o Prof. Gautier, da Academia de Ciências e da Academia de Medicina de França: «Os consumidores de vinho não são consumidores de álcoois. Nas regiões vinícolas encontram-se muito poucos alcoólicos.
Já Rabuteau dizia em 1878, no seu trabalho Des Alcools et de l'Alcoolisme: «Insisto sobre esta posição, que considero hoje como uma verdade, que o alcoolismo propriamente dito não é o resultado do abuso de aguardente de vinho ou de vinho natural, mas sim que é o resultado do consumo de álcoois industriais impuros, contendo substâncias tóxicas».
Disse Charrin, professor da Faculdade de Medicina do Paris: «O desenvolvimento do alcoolismo seguiu uma marcha cujo ritmo acompanha a evolução da crise filo-
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sófica. Enquanto a produção do vinho descia, o consumo de álcoois aumentava».
E poderia citar outros testemunhos.
Não, Sr. Presidente, não vamos levantar uma questão que está morta pela ciência e enterrada por todos quantos se têm debruçado sobre este problema. O consumo do vinho não é o causador do alcoolismo; pelo contrário, o vinismo combate o alcoolismo.
O Sr. Mendes de Maios: - Desejaria que V. Ex.ª me explicasse uma questão que já aqui foi posta: qual é a razão de nos hospitais, e para falar deles, morrerem de cirrose muitos doentes que nunca beberam álcool senão no vinho ...
O Orador: - Sobre os casos de cirrose não sei explicar nada a V. Ex.ª Mas combate V. Ex.ª o consumo do vinho?
O Sr. Mendes de Matos: - Eu não combato o consumo do vinho, antes quero que se aumente o seu consumo, generalizando o seu uso moderado e higiénico.
O Orador: - Folgo imenso com isso. Verifico que já fizemos uma aquisição.
O alcoolismo é proveniente não do uso, mas do abuso de bebidas brancas.
Já vimos que todos os abusos são nefastos é a este - porque é este que está em causa - atribuem-se-lhe graves consequências.
Não queremos, não desejamos fugir ao seu quadro.
O álcool tomado em excesso é um veneno do sistema nervoso, entorpecendo ou paralisando os centros do julgamento, da razão, da crítica, deixando trabalhar por si mesmo os centros animais, instintivos, impulsivos, o que pode dar origem a um aumento da pequena criminalidade e do número de acidentes. Influi desfavoravelmente na vitalidade do homem, de onde aumenta a morbidez, a mortalidade e diminui a longevidade. Pode ter acção sobre a raça, por ser responsável pela predisposição hereditária de alguns casos de degenerescência, idiotia, epilepsia e imbecilidade.
A observação destes factos tem levado os poderes públicos de todos os tempos a tomar medidas contra o consumo das bebidas alcoólicas, julgando assim acabar com o alcoolismo.
Desde as repressões policiais, e não fujo à tentação de citar as determinadas por Francisco I da França em 1536, que mandavam prender qualquer indivíduo encontrado pela primeira vez embriagado, ficando detido a pão e água, pela segunda vez seria chicoteado na cadeia, pela terceira vez seria fustigado publicamente e, se fosse incorrigível, ser-lhe-ia amputada uma orelha, desde as repressões policiais, dizia, à limitação do número de casas de venda a retalho, ao aumento do imposto sobre bebidas alcoólicas, ao monopólio da venda, até à proibição total da produção ou do consumo, tudo se tem experimentado com resultados ineficientes ou mesmo contraproducentes.
Na observação do facto de que as medidas repressivas, fiscais, etc., se manifestaram ineficazes, chegou-se à doutrina do monopólio das vendas.
Vejamos o que nos diz Borodine, que era presidente da comissão científica da Associação dos Economistas de S. Petersburgo, sobre os efeitos do monopólio russo no fim do século passado:
«1.º O sistema actual da venda de aguardente modificou o modo de consumo, provocando fenómenos indesejáveis de carácter público (consumo e embriaguez na rua);
2.º Depois do monopólio a embriaguez no lar aumentou, pois passou do cabaret para dentro da família;
3.º O consumo de aguardente não diminuiu.».
Mas houve quem quisesse ir mais longe, chegando à proibição do consumo - as leis secas.
Veja-se o que se passou no estado norte-americano do Maine, um dos primeiros no século passado a decretar a lei seca. O cônsul de Inglaterra em Portland escrevia: «Uma longa estadia de catorze anos neste estado deu-me muitas ocasiões de estudar esta questão, e não hesito em declarar que, à excepção de algumas aldeias afastadas, a lei seca foi um fiasco para as cidades e que o bem real que ela produziu foi mais que compensado - pela hipocrisia e desmoralização permanentes de uma classe numerosa de pessoas que, bem que proibicionistas de nome e por cor política, são inconsequentes na sua maneira de viver e de que eu tenho provas diárias».
Todos conhecem o flagelo que constituiu a generalização da lei seca a toda a América do Norte. Foram atrás de quimeras e colheram ruínas.
Sabe-se que o alcoolismo não decresceu; mas há mais. Ouça-se o que diz o Prof. Cambiarre, da Universidade de Lincoln: «Privados do vinho, os americanos procuraram no ópio um produto de substituição. Um inquérito da Sociedade das Nações estabeleceu que os Estados Unidos são os maiores consumidores de ópio do Mundo».
E, já que falei em ópio, recordarei o resultado de outra grande proibição levada a efeito.
Fala o Dr. Dougnac: «Foi no século VI da nossa era que se decretou na China a proibição total. Em alguns anos esse país, que era uma imensa vinha, tornou-se um vasto campo de ruínas. Os chineses intoxicam-se com ópio depois que lhes foi proibido beber vinho».
Sr. Presidente: julgo demonstrado à evidência que o consumo do vinho não é causador do alcoolismo, antes pelo contrário. Mas a observação dos factos verificados através dos tempos nas mais diversas raças e latitudes conduz-nos a esta realidade: as medidas policiais, a limitação dos retalhistas, o condicionamento e os monopólios de venda e a proibição total não diminuíram os efeitos do alcoolismo e provocaram flagelos de gravidade infinitamente maior.
Sr. Presidente: mesmo que neste País estivessem em vigor as leis de Francisco I e que, por efeito delas, andassem muitos homens sem orelhas - hipótese absurda para quem conheee este admirável povo de costumes sóbrios -, seria ingenuidade, para não dizer grave falta, cairmos, por puritanismo abstracto, nos erros em que os outros tombaram e de que já se arrependeram.
O problema é outro. Para estabelecermos os remédios temos de conhecer as causas.
«O alcoólico é um doente», como disse o Dr. Verhaeche.
E-o algumas vezes por hereditariedade. «Nasce-se alcoólico», segundo o Dr. Smeth. Outras vezes o alcoolismo tem origem no excesso de trabalho, o que é confirmado por Kovalenkv. A actividade febril, que está para além das forças do organismo, gasta os tecidos, produz muitas vezes o surmenage e acorda a necessidade do álcool ou de outros narcóticos para sustentar a energia quebrada.
Mas quase sempre o alcoolismo é filho da miséria. «É a miséria que produz o alcoolismo», proclamou Domela Nieuwenhuis.
«A miséria gera o alcoolismo», confirma Colaganni no seu trabalho O alcoolismo, suas consequências morais e suas causas.
A miséria, com o seu cortejo de angústias, leva os homens que não são portadores de uma fé ardente, e que não podem por isso encontrar-se arrimados a uma
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disciplina cristã, a procurar o esquecimento no excesso de bebidas alcoólicas.
Por outro lado, a miséria traz a subalimentação, e nesse ambiente fisiológico o álcool produz os seus estragos, mesmo ingerido em doses relativamente baixas.
Um inquérito levado a efeito por Bolmert em 106 fábricas da Alemanha, que utilizavam 100:000 operários, chega à conclusão nítida de que os casos de alcoolismo encontrados estavam ligados à alimentação insuficiente.
Roncati declara que as sociedades de abstinência e de temperança só teriam uma acção eficaz no dia que fossem ao mesmo tempo sociedades de abundância alimentar.
Sr. Presidente: permito-me chamar a esclarecida atenção da Assembleia para este caso.
Se a miséria é uma das principais responsáveis pelo alcoolismo, e se a produção vinícola nacional é uma das suas maiores e mais firmes fontes de riqueza e de trabalho, se o vinho sé a mais sã e higiénica das bebidas», tudo quanto possa contrariar o seu consumo é trazer uma contribuição de miséria ao povo português, e portanto abrir-lhe as portas ao alcoolismo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E quem tem por ansiedade revolucionária, como todos os que estamos nesta linha da frente, o bem do povo, não se pode calar ao ver o perigo de se trazer, na asa das mais puras intenções, sombras de fome que arruinem os corpos e as almas dos portugueses.
O Sr. Querubim Guimarães: - Diz V. Ex.ª muito bem. Todos direitos e perfilados na primeira linha.
O Orador: - Vistas as causas, encontremos os remédios.
Como católico fervoroso e praticante, não se admire que eu veja na Religião o primeiro grande remédio para o alcoolismo.
Depois, o alcoólico precisa de ser tratado como um doente.
Doente incurável?
Grothers diz: «A minha experiêneia e a de outros dão-me o direito de afirmar que o alcoolismo é de todas as nevroses a mais curável, se ela é tratada a tempo e por meios racionais e científicos».
É necessário internar o doente em estabelecimentos que permitam sujeitá-lo aos tratamentos clínicos.
O Sr. Mendes de Matos: - V. Ex.ª dá-me licença para uma pequenina pergunta?... Quais são os estabelecimentos que V. Ex.ª destina no nosso País para a reeducação desses doentes?
O Orador: - Mas não se trata da questão de reeducação. Para mim, como simples elemento de reeducação, vejo a Religião; mas, sob o aspecto clínico, eu direi a V. Ex.ª que vejo para o efeito os numerosos hospitais espalhados pelas províncias e onde se podem realmente curar esses doentes.
Estudar a questão sob este aspecto parece-me ser o único caminho que nos pode conduzir a resolver o problema do alcoolismo.
De resto são perigosas panaceias.
E a Revolução Nacional já nos habituou a acreditar que os problemas são ponderadamente estudados para serem depois efectivamente resolvidos.
E, chegado aqui, Sr. Presidente, sobem-me ao espírito as palavras que fundamentam o aviso prévio em causa; ouço ainda o eco das que aqui tão brilhantemente foram proferidas pelo nosso ilustre colega Sr. cónego Mendes de Matos.
Desejo neste momento prestar às intenções de S. Ex.ª - tão dignificaste ornamento da nossa Igreja e desta Casa - as minhas mais profundas homenagens e testemunhar-lhe o sentimento da minha mais viva admiração.
Eu senti nas suas palavras o palpitar de um grande coração a transbordar de generosidade cristã, procurando buscar alívio para sofrimentos dos outros.
Novamente me curvo respeitosamente perante a bela atitude de S. Exa.
Mas, Sr. Presidente, recordem-se os fundamentos do aviso prévio, rememorem-se as realidades que procurei trazer a VV. Ex.ªs e, quanto a mim, para além da grande virtude de se ter agitado o problema e do alto prazer espiritual de termos ouvido a inteligência fulgurante do Sr. cónego Mendes de Matos - quanto a mim, dizia, pouco resta de pé.
Depressão moral e social, crimes, poderoso factor da degenerescência da raça, tudo por terra.
Resta-nos o abuso do vinho ser o mais nefasto desorganizador da vida familiar e ser perturbador de toda a economia industrial e agrícola pela redução do poder de produção de numerosos trabalhadores.
Primeiro clarifiquemos o problema.
Os casos de alcoolismo são excepções.
Conheço bastante a vida rural portuguesa e estou em contacto diário com algumas dezenas de trabalhadores da cidade, e confesso que encontrei raríssimos casos de alcoolismo.
Tomar as excepções pelo todo é equacionarmos o problema sobre premissas erradas.
Não se nega existirem casos individuais em que o abuso do vinho pode trazer a desorganização da vida familiar e prejudicar o potencial de trabalho do doente.
Mas, graças a Deus, este País não é composto de alcoólicos e não façamos a blasfémia ao povo português de o considerar dominado por este flagelo social. São casos que se têm de tratar sob o aspecto individual e não colectivo.
Eu tenho aqui o resultado de um inquérito levado a efeito pela Junta Nacional do Vinho, sob a orientação do Sr. engenheiro Vieira de Campos, chefe da fiscalização daquele organismo o que lhe empresta significado especial não só pela autoridade moral do técnico em causa, mas ainda porque os seus serviços estão em contacto permanente com os retalhistas de vinho -, em que se conclui que, dentro das medidas tomadas pelas autoridades, as tabelas não são factores de desordem nem de crimes.
Em referência ao despacho de 1941 do Sr. Subsecretário de Estado das Corporações, que foi dito ter ficado letra morta, direi que apenas se fez o seguinte:
Leu.
É pouco em face da nossa ansiedade revolucionária? Sem dúvida. Mas calar estas realidades seria uma injustiça para com a doutrina corporativa e os homens - e destaco o admirável labor do engenheiro Higino de Queirós - que a realizaram.
Pode dizer-se que não se ataca o consumo do vinho, mas sim o seu comércio de retalho.
Está demonstrado que as medidas tomadas contra o comércio a retalho não têm a menor influência no decréscimo do alcoolismo, mas também está demonstrado que essas medidas dão como consequência a diminuição do consumo geral do vinho.
Ora é necessário fazer esta afirmação para se evitar que, para atingir uma finalidade útil, se vá cair no erro grave de dificultar uma distribuição acessível e fácil do vinho ao consumidor.
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130 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 122
Porque a verdade é esta: reduzam-se as 50:090 casas de retalho, criem-se-lhes embaraços, quem sofre é o público, pois o alcoólico, esse, procurará sempre a bebida onde e na ocasião em que ela esteja à venda. De resto, nas circunstâncias actuais, e se existe receio que o abuso do vinho possa provocar desordens, as autoridades sabem onde estão as tabernas e têm a auxiliá-las o próprio retalhista, que não deseja ver a sua casa fechada. De outra forma, a observarem-se os inconvenientes apontados, estes passariam, sem possibilidade de fiscalização, para as adegas dos lavradores.
O Sr. Cancela de Abreu: - V. Ex.ª dá-me licença? Pior do que as tabernas são os cabarets, e os bars, que ainda por cima vendem bebidas estrangeiras.
O Orador: - Nós muitas vezes começamos por fazer restrições ao povo e depois ... todos nós nos calamos.
Para mim julgo mais perigosa para a saúde moral e física da raça a embriaguez de puritanismo, que traga uma contribuição de miséria colectiva, do que a embriaguez alcoólica, que pode e deve ser tratada por meio de processos específicos.
Sr. Presidente: se o vinho dá pão, dá trabalho, dá saúde, dá alegria ao povo português, porque é que devemos ser ingratos para com ele?
Calculem VV. Ex.ªs que, segundo o testemunho do nosso ilustre colega Prof. Cincinato da Costa, se chegou a pôr num compêndio oficialmente aprovado para as escolas primárias que o uso do vinho causa grandes prejuízos à saúde.
Parece-nos ser tempo de, neste País vinhateiro, definitivamente o resgatarmos da posição de triste vítima em que alguns teimam em lançá-lo. Nós temos de ser justos e, se não tivermos coragem de ser justos, sejamos ao menos práticos.
Possuidores de admirável património constituído pelas nossas massas víneas, que correm Mundo para seu deleite e nosso orgulho e riqueza, como se poderia compreender que nesta Casa, que representa o País, as virtudes dessa bebida fossem maculadas?
Tenho a certeza de que não o faremos. Não o faremos por nós, por aqueles que antes de nós criaram a riqueza vinícola nacional, por aqueles que depois de nós terão direito a usufruí-la.
Mas há mais. Não nos podemos esquecer que pertencemos às gerações que fizeram a Revolução e que, por isso, estamos ligados a uma das suas mais belas obras; trata-se da organização corporativa da vinicultura, considerada hoje no estrangeiro como a mais perfeita e eficiente organização realizada no mundo vinícola. E acontece encontrassem-se nesta Assembleia, como seus pares, alguns dos seus pioneiros e continuadores. Refiro-me ao engenheiro Sebastião Ramires, Dr. Rafael Duque, Prof. Cincinato da Costa, Conde de Penha Garcia e Luís Teotónio Pereira. Tudo se fez por motivos económicos e soerias, mas também porque se tinha uma razão moral.
Não será certamente esta Assembleia que irá, condenando o consumo do vinho, estirar ao País e à Revolução a razão moral que lhe permitiu estruturar a vida económica e social da vinicultura portuguesa.
O edifício já vai alto, os caboucos estão firmemente enraizados no solo, o travejamento é forte, mas o momento é grave, porque vemos adensarem-se sobre as nossas cabeças algumas nuvens negras que merecem todas as atenções e que ainda hoje foram referidas pelo nosso colega Dr. Bustorff da Silva.
Haverá que construir a seu lado novos elementos que permitam o tratamento clínico dos alcoólicos? Lancem-se mãos à obra, mas não se corra atrás de miragens, porque então o flagelo não será o alcoolismo, mas sim a crise vinícola.
Tenho dito..
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
A próxima sessão será na terça-feira 13, tendo por ordem do dia a continuação deste debate e a apreciação do texto aprovado pela Comissão de Legislação e Redacção sobre a proposta de lei de protecção ao cinema nacional.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 15 minutos.
Sr s. Deputados que entraram durante a sessão:
Álvaro Eugénio Neves da Fontoura.
Diogo Pacheco de Amorim.
João Ameal.
Jorge Botelho Moniz.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Luís da Silva Dias.
Manuel Colares Pereira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Sr s. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Carlos Borges.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Coueeiro da Costa.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique de Almeida.
Herculano Amorim Ferreira.
Horário José de Sá Viana Rebelo.
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Pereira dos Santos Cabral.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Pastor de Macedo.
Manuel Beja Corte-Real.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
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10 DE JANEIRO DE 1948 131
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.
Sebastião Garcia Ramires.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes.
Documentos sobre a situação parlamentar do Sr. Deputado Duarte Silva, aos quais se referiu o Sr. Presidente:
Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Excelência. - Quando em 1945 fui eleito Deputado à Assembleia Nacional, desempenhava eu desde 1933 as funções de agente consular de França em S. Vicente de Cabo Verde.
Pouco depois, em Janeiro de 1946, cessou o exercício desse cargo, pela criação de um consulado de França naquela ilha, confiado a um funcionário de carreira.
Resolveu agora o Govêrno de França suprimir esse consulado e convidou-me a retomar as antigas funções.
Como se trata de uma nova nomeação, ainda que para um cargo honorário, não sei se me é possível aceitá-lo sem incorrer na sanção do artigo 90.º da Constituição.
E porque não desejo incorrer de forma alguma na referida sanção, muito agradeço a V. Ex.ª se digne de me esclarecer a tal respeito.
Aproveito o ensejo para renovar a V. Ex.ª os protestos da minha muito elevada e respeitosa consideração.
Lisboa, 2 de Dezembro de 1947. - Adriano Duarte Silva.
Despacho:
A Comissão de Legislação e Redacção. - Lisboa, 2 de Dezembro de 1947. - A. Reis.
Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Excelência. - Na sua carta de 2 de Dezembro último informa o Sr. Deputado Adriano Duarte Silva que, quando foi eleito em 1945, desempenhava desde 1932 as funções de agente consular da França em S. Vicente de Cabo Verde, mas que deixou de exercer essas funções em Fevereiro de 1946, por ter sido ali criado um consulado destinado a funcionários de carreira.
Informa ainda o mesmo Sr. Deputado que o Govêrno Francês resolvera extinguir agora aquele consulado e, por isso, o convidara a retomar o exercício das suas antigas funções, mas, porque não deseja incorrer na sanção do artigo 90.º, n.º 1.º, da Constituição Política, pretende saber se pode ou não aceitar a nomeação sem perda do mandato.
Ouvida a Comissão de Legislação e Redacção, emite esta o seguinte parecer:
Um dos requisitos naturais e legais de elegibilidade dos candidatos a Deputados é a sua qualidade de cidadãos portugueses (decreto-lei n.º 34:938, de 22 de Setembro de 1945, artigo 3.º).
Por isso, e em primeiro lugar, importa averiguar quais os efeitos que aquela nomeação teria sobre a nacionalidade, visto que, nos termos do artigo 5.º, n.º 1.º, do referido decreto-lei e do artigo 16.º, n.º 2.º, do regimento da Assembleia Nacional, a perda da qualidade de cidadão português importa perda de mandato.
Ora o artigo 22.º, n.º 2.º, do Código Civil dispõe que perde a qualidade de cidadão português aquele que, sem licença do Govêrno, aceita funções públicas, graça, pensão ou condecoração de qualquer Govêrno estrangeiro.
Deverá a aceitação do cargo de simples agente consular de um país estrangeiro considerar-se abrangida por esta disposição?
Procurando interpretá-la, há quem entenda que para que a aceitação de funções públicas faça perder a nacionalidade é preciso que elas constituam e representem propriamente um emprego ou serviço, de carácter permanente, retribuído, voluntariamente prestado a um Estado estrangeiro, por nomeação do seu govêrno e com prestação do juramento a que estão sujeitos os funcionários públicos.
De harmonia com esta orientação, o preceito não abrangeria porventura os simples agentes consulares, e neste sentido até os tribunais portugueses tiveram já ocasião de se pronunciar há anos, decidindo que não perde a qualidade de cidadão português aquele que, sem licença do Govêrno, aceitar de cônsul inglês a nomeação de agente consular, sobretudo se essa nomeação não for precedida do respectivo exequatur.
Efectivamente, segundo a prática mais corrente entre os Estados - designadamente a França, segundo informações fornecidas a esta Comissão -, a nomeação dos simples agentes consulares não compete aos govêrnos, mas aos cônsules a cuja circunscrição os agentes consulares pertencerem, embora seja dependente da prévia concordância ou confirmação dos govêrnos dos respectivos países.
É assim que o regulamento consular português, aprovado pelo decreto n.º 6:462, de 7 de Março de 1920, estabelece no seu artigo 27.º que os agentes consulares são nomeados pelos cônsules, mas a nomeação carece de ser confirmada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Poderá assim julgar-se duvidosa aquela doutrina - já pela necessidade de confirmação ou de prévia concordância dos govêrnos estrangeiros, já porque os agentes consulares ficam sujeitos às leis administrativas dos países que representam, pela natureza e responsabilidade das suas funções, já ainda porque nesta matéria parece mais conforme ao espírito da lei uma interpretação restritiva, visto ela considerar motivo de perda da nacionalidade a simples aceitação sem licença de uma condecoração de govêrno estrangeiro.
Mas, se não se der a perda da nacionalidade, implicará perda de mandato a aceitação do cargo?
O artigo 90.º, n.º 1.º, da Constituição Política estabelece que importa perda de mandato para os membros da Assembleia Nacional aceitar de qualquer govêrno estrangeiro emprego retribuído ou comissão subsidiada.
Portanto, mesmo que, em razão de quaisquer eventuais emolumentos inerentes ao cargo, possa considerar-se abrangida na expressão «emprego retribuído ou comissão subsidiada» a qualidade de agente consular, certo é que a sua nomeação não compete normalmente aos govêrnos, mas aos cônsules das respectivas circunscrições, aos quais ficam directamente subordinados. É o que acontece, como vimos, na organização consular de Portugal e da França.
Por outro lado, as funções de agente consular, além da sua precariedade, têm um carácter relevantemente honorífico, segundo o conceito corrente nas recíprocas relações entre os Estados, não comprometendo na realidade os fundamentos daquele preceito constitucional.
Nestas circunstâncias, e pelo exposto, esta Comissão é de parecer que será de exigir, para a nomeação, a licença prévia do Govêrno Português, mas, concedida ela, a aceitação do cargo não importará perda de mandato.
Palácio de S. Bento, 7 de Janeiro de 1948. - Mário de Figueiredo.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA.