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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
SUPLEMENTO AO N.° 125
ANO DE 1948 16 DE JANEIRO
CAMARA CORPORATIVA
IV LEGISLATURA
Projecto de lei n.° 170
FERIADOS E DIA DE DESCANSO SEMANAL,
A Câmara Corporativa, consultada acerca do projecto de lei n.° 170, relativo a feriados e dia de descanso semanal, emite, pelas secções de Interesses espirituais e morais, Autarquias locais e Política e administração geral, o seguinte parecer:
I
Considerações gerais
1. Objecto e oportunidade ao projecto de lei. - O projecto de lei n.° 170, relativo a feriados e descanso semanal, que cabe a esta Câmara apreciar, é ditado pelo alto e muito louvável propósito de insuflar de espírito cristão e patriótico a fixação e a observância dos dias festivos e dedicados ao repouso.
É oportuna a reforma preconizada, pois hoje, mais do que nunca, é necessário fortalecer a alma das nações a fim de não as deixar soçobrar na idolatria da matéria, na barbárie comunista. Ao esquecer Deus e ao erguer a felicidade terrena a valor supremo, julga o homem moderno libertar-se e realizar plenamente a sua personalidade; o erro, porém, como Saturno na velha fábula, alimenta-se dos próprios filhos, e as ideias com que tantos - quiçá de boa fé - supunham instaurar a era da paz e fraternidade entre os homens em breve acenderam neles o desejo desenfreado de satisfazer todos os instintos, ainda que à custa dos seus semelhantes, senão da própria liberdade e vida. Na ânsia de possuir a riqueza se geraram a nova escravidão do trabalhador, a luta de classes, o ódio entre os homens e entre as nações; e a miragem do paraíso materialista tudo faz esquecer, e até a família e a pátria se apresentam como empecilhos para a satisfação do orgulho e do sôfrego instinto.
Muitos assistem ao drama do Mundo sem o compreenderem, admirados da violência com que ele se desenrola. E, contudo, cada vez mais se vão extremando os campos e mais evidente se torna que não são meras desinteligências passageiras ou entrechoque de interesses secundários o que divide os homens e lança os povos uns contra os outros; a crise moderna provém da luta de duas concepções integrais de vida radicalmente opostas - cristianismo e materialismo -, e desgraçados serão os homens se não compreenderem a tempo qual a fonte de seus males e os procurarem remediar com os próprios erros que àqueles deram origem.
Mas se a restauração do espírito e dos costumes cristãos é, assim, condição impreterível para a reconstrução do Mundo, tem para Portugal alcance mais vasto que para muitos- outros países. Todas as nações, porque compostas de homens, devem reconhecer a Deus como seu fim último; a portuguesa, porém, não recebeu do cristianismo apenas a sua razão final e o fundamento da sua vida colectiva, antes hauriu nele um dos traços essenciais da sua personalidade: a missão de cruzada e de evangelização.
Com razão, pois, disse já S. Ex.ª o Presidente do Conselho que «a primeira realidade que o Estado tem diante de si é a formação católica do povo português; a segunda é que a essência desta formação se traduz numa constante da história».
Houve, infelizmente, portugueses que negaram eslu realidade e supuseram que a «dilatação da Fé» não passou de disfarce à «dilatação do Império». Foram esses mesmos, porém, os que desconheceram a alma da história pátria e consideraram aberração a política que outrora fez de Portugal uma das primeiras nações do Mundo; a aproximação deste e daquele facto é bem a prova de que sem o cristianismo não pode compreen-
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der-se o espírito nacional. Fundado foi, por isso, o juízo de Gonzague de Reynold sobre o nosso passado e o nosso presente. «Le Portugal lui-même est une fondation de la croisade. La grande ligue de force qui traverse 1'kis-toire portugaise a son origine au pied de Ia croix. Lê Portugal e&t predestine à être un Ëtat chrétien, un Ëtat catholique. Toutes les fois qu'il l'oublie, il se retrouve nu comine Adam après le péché. Nu, c'est-à-dire un petit pays, divise, décadent, sans raison dêtre. Lê regime de Salazar n'est-il point le préliminaire, la préparation de l'État chrétien? 1
O Estado Novo compreendeu bem a importância que para o próprio interesse nacional tinha a restauração dos costumes cristãos e a liberdade de consciência dos católicos, e por isso tem procurado sempre - mormente pela Constituição Política e pela Concordata com a Santa Sé - tomar em consideração na política superior do País a necessidade de respeitar a tradição cristã viva na alma nacional.
Mantêm-se, no entanto, alguns preceitos nas nossas leis, ditados pelo jacobinismo que dominou o regime demo-liberal, preceitos esses que constituem grave violação da consciência católica e nacional. Referimo-nos às disposições reguladoras dos feriados e, em algumas localidades, do descanso semanal, as quais o projecto n.° 170 visa remodelar; por isso ele nos parece ser digno dos maiores louvores.
Para bem se apreciar o valor do projecto, cremos ser útil dizer, antes de o analisar, alguma coisa sobre o significado cristão e nacional do domingo e dos dias festivos e da consequente importância da respeito deles para o fomento da civilização cristã.
2. Importância dá reforma preconizada. - Por exigência da própria natureza, deve o homem dedicar ao serviço directo de Deus algum tempo, por meio do culto em que participe de modo adequado à mesma natureza, ou seja, não apenas por actos internos, mas com todo o seu ser, não somente por actos individuais, senão também como membro da sociedade, portanto em colectividade. E o próprio Deus declarou essa obrigação, recomendando ao homem no Decálogo que não se esquecesse de santificar o dia do Senhor. A Igreja mais não fez em tal matéria que regulamentar esta lei divina.
Tão profundamente se quadra à natureza do homem a obrigação de santificar os dias festivos que o próprio organismo dele exige o repouso periódico, sob pena de o trabalho o escravizar e brutalizar e de o lançar no ódio e na revolta.
Como se vê, a santificação do domingo e dos outros dias festivos não é um simples rito nem tem importância secundária, antes constitui condição fundamental, não apenas da vida propriamente religiosa, mas de toda a vida digna do homem e da sociedade.
Desligado de todo o pensamento cristão, o repouso cria no homem o amor da ociosidade e do prazer vão e, por contraste destes com o trabalho, desgosta o homem do labor diário e cria nele sentimentos de inveja e de revolta; desprovido de utilidade positiva, o descanso passa a ser visto pêlos patrões como entrave ao seu lucro e, se não os leva simplesmente a negá-lo ao trabalhador (como aconteceu no domínio do liberalismo), é considerado como concessão gratuita, mero favor ou conquista violenta dos assalariados.
Deste modo, o descanso, que devia ser fonte de energias e de elevação moral, torna-se origem de egoísmo, de desleixo e de dissenções e contribui para enfraquecer as virtudes necessárias à vida familiar e social.
Pelo contrário, quando vivificado pelo culto divino, o repouso recorda ao homem o seu fim eterno e a sua dignidade, irmanando no serviço de Deus homens de todas as condições e mostrando-lhes que, como filhos de Deus, todos são iguais; contribui para fomentar o amor recíproco e diminuir as diferenças de classes; alimentando o ideal cristão da vida, dá sentido elevado e sagrado ao trabalho e enche-o de alegria; fortalecendo as virtudes naturais e sobrenaturais, é esteio imprescindível para a vida da família e da sociedade.
A vida litúrgica, que através do ano faz reviver os grandes factos e verdades do cristianismo, é ainda indispensável meio de educação cristã e precioso instrumento de cultura humanista. Não estará aí, até, a explicação dos verdadeiros, rasgos de pensamento, de poesia e de arte, que tantas vezes nos surpreendem nos velhos autos e canções populares? Não estará aí a razão da dignidade que, no simples vestir, apresentava o trabalhador medieval e que de todo desapareceu?
Esquecidos de que o repouso dominical e festivo é um mandamento divino, cujo cumprimento é essencial à vida cristã, vêem-no alguns como perda de tempo, e chegam por vezes a querer corrigir a negligência lançada na vida pública pêlos costumes materialistas com a redução do tempo dedicado ao serviço de Deus. Pensar e proceder assim - urge acentuá-lo - é pretender remediar o erro por ele próprio, em vez de restaurar a vida cristã, verdadeira fonte do zelo e do entusiasmo no trabalho.
Demorámo-nos nestas considerações porque nos parece indispensável mostrar que o preceito de guardar os dias festivos não é mera rotina ou decreto arbitrário da Igreja. Só assim se vê até que ponto escandaliza e violenta a consciência católica tudo quanto contribua para o desprezo dos dias santificados; e só assim se explica o empenho dos inimigos do cristianismo em desviar o povo do cumprimento deste dever.
A obrigação, que o Estado Português assumiu no artigo XIX da Concordata, de providenciar no sentido de tornar possível a todos os católicos, que estão ao seu serviço ou que são membros das suas organizações, o cumprimento regular dos deveres religiosos nos domingos e dias festivos, esta obrigação - dizíamos - não é, pois, de somenos importância, antes de alto valor cristão e nacional.
E deve advertir-se que tal obrigação não se satisfaz com simples ausência de obstáculos ao cumprimento do preceito da Igreja, nem com meras facilidades para à pressa se ouvir missa. O preceito ordena a santificação dos dias festivos, entendendo-se por tal o lapso de vinte e quatro horas, de meia-noite a meia-noite. E essa santificação envolve, no aspecto positivo, o dedicarem-se esses dias ao serviço divino, à cultura do espírito e à vida familiar e, no aspecto negativo, a abstenção de todo o trabalho servil e de quaisquer ocupações que impeçam a santificação desses dias. É elucidativa, por exemplo, a censura de S. S. Pio XI à prática exagerada do desporto aos domingos, em uso na Alemanha nazi; falando do desporto, diz a encíclica Mit brennender Sorge: «quanto ao tempo que se lhe consagra, alarga-se ele muitas vezes ao ponto de parecer não se ter em conta nem o desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito, nem as obrigações da vida de família, nem o preceito da santificação do domingo. Com tal indiferença, vizinha do desprezo, tira-se ao dia do Senhor todo o carácter sagrado e de recolhimento, embora conforme às melhores tradições alemãs 1».
Tudo quanto deixamos dito demonstra a importância do projecto de lei em exame; e se pensarmos em como
1 Portugal, Éditions Spes, Paris, 1936, p. 166.
1 In Lumen, I, p. 389.
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o cristianismo contribuiu no passado para a glória de Portugal, maior alcance e valor lhe atribuiremos. Só a civilização cristã pode salvar o Mundo e engrandecer o nosso País; e onde não se respeitar o carácter sagrado do domingo e dos dias- festivos, onde se julgar que o produto do trabalho ou as simples comodidades são mais valiosos que .a santificação desses dias, a civilização cristã não será uma realidade viva, mas uma aparência vã e enganadora.
Se pensarmos agora nos dias festivos meramente civis, diremos que devem inspirar-se nos mesmos princípios que enformam o repouso cristão. Feriados que recordem factos indiferentes à maioria dos cidadãos ou de carácter, sectário serão ineficazes ou nocivos; só os que fizerem vibrar os cidadãos num sentimento unânime, profundo e elevado poderão afervorá-los no ideal patriótico e no serviço nacional.
3. Plano da exposição subsequente. - Contém o projecto n.° 170 três artigos: no primeiro declara feriado nacional o dia 8 de Dezembro, festa da Imaculada Conceição; no segundo generaliza o descanso dominical a todo o País; no terceiro incumbe o Governo de rever os feriados nacionais.
Ao analisá-lo, na especialidade, não seguiremos: esta ordem, não porque não seja aceitável para o texto da lei, mas porque nos parece necessário, para clareza da exposição, separar dois aspectos fundamentais do projecto: o que respeita ao descanso dominical e o tocante aos feriados nacionais. Começaremos pelo primeiro destes aspectos.
II
Análise na especialidade
A) Descanso semanal:
4. Obrigatoriedade do descanso dominical. - Preceitua o artigo 26.° do Estatuto do Trabalho Nacional que «os trabalhadores da agricultura, da indústria e comércio têm direito a um dia de descanso por semana, que só excepcionalmente e por motivos fundamentados pode deixar de ser o domingo». Por seu lado, o artigo 19.° do decreto-lei n.° 24:40,2, de 24 de Agosto de 1934, dispõe o seguinte: «Todos os estabelecimentos comerciais e industriais deverão encerrar-se durante um dia completo, em cada semana. A determinação do dia de encerramento, que só excepcionalmente pode deixar de ser o domingo, é da competência das câmaras municipais, depois de ouvidos os organismos corporativos interessados, e sujeita à aprovação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência».
Como se vê, as nossas leis declaram-se nitidamente partidárias do descanso dominical, conformando-se aliás com os costumes universais 1. E o pensamento oficial do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência -estamos autorizados a dizê-lo - é inteiramente favorável à generalização deste princípio.
No entanto, e mau grado os porfiados esforços daquele organismo, há ainda em Portugal, onde outrora o domingo era respeitado e festejado, diversos concelhos que adoptam dia diverso para o descanso semanal.
(Esta prática, tão altamente atentatória da consciência da quase totalidade dos portugueses e tão notada pêlos estrangeiros que nos visitam, é inteiramente injustificada.
Pelos inquéritos efectuados pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência conclui-se que as razões por que geralmente nesses concelhos não se adopta o descanso dominical se reduzem à pretensa comodidade dos povos e à concorrência feita ao comércio local pelo de outros concelhos ou freguesias que descansam em dia diverso do domingo.
O argumento fundado na pretensa comodidade dos povos respeita à utilidade que haveria para as populações rurais, geralmente respeitadoras do domingo, em poderem aproveitar este dia para compras nas sedes dos concelhos.
Se é essa a razão do trabalho no comércio ao domingo, ela mesma o condena. Com efeito, esse sistema de descanso semanal consiste como se deduz do próprio argumento, em obrigar a trabalhar uns para que outros aproveitem o domingo em negócios que igualmente o profanam, facto duplamente reprovável, que de forma nenhuma pode justificar excepções ao preceito dominical.
A verdade, porém, é que a experiência de alguns concelhos que espontaneamente restabeleceram o descanso dominical demonstra que tal reforma em nada prejudicou os povos, que logo se adaptaram às novas circunstâncias. Por seu lado, o trabalho de parte da população ao domingo tem graves inconvenientes que urge suprimir.
Além do respeito devido ao domingo, que só com inteira inversão de valores pode subordinar-se a interesses materiais, graves inconvenientes do regime vigente exigem a generalização do descanso dominical.
Assim, nas localidades em que o dia de descanso para o comércio tem lugar fora do domingo, em dia, portanto, em que estão abertas as repartições públicas e outros serviços, cujo descanso é neste último dia, é frequente os patrões prevalecerem-se deste facto para forçarem os empregados a tratar de diversos assuntos junto dessas repartições e serviços no próprio dia de descanso, o qual assim fica prejudicado.
O uso do domingo como dia de mercado obriga os lavradores a deslocarem-se à sede do concelho mais de uma vez, uma para o mercado dominical e outra para tratarem de assuntos oficiais nas repartições públicas, encerradas no domingo.
Finalmente, a falta de uniformidade no dia de descanso semanal entre as populações, rurais e urbanas e entre as diversas localidades divide as famílias, pois não permite o convívio dos parentes nos dias dedicados ao repouso.
Deve ponderar-se ainda que esta falta de uniformidade coloca o trabalhador na situação desagradável e desmoralizante de ter de trabalhar quando os seus iguais repousam. Perde-se assim aquele sentido de comunhão espiritual criado pelo convívio no culto e na família, que tão grande valor humano dá ao descanso semanal.
Conclua-se, portanto, não só que são ilusórias as vantagens do repouso fora do domingo, mas também que essa prática tem graves inconvenientes. Acima de tudo, porém, condena tal sistema o preceito da santificação do domingo, o qual, na hierarquia dos valores que à sociedade cumpre observar, supera quaisquer interesses de ordem material.
Quanto à segunda razão apontada - a de pelo descanso dominical se permitir a concorrência de estabelecimentos pertencentes a localidades em que ele não é adoptado -, cumpre reconhecer que ela se baseia num facto real. A verdade é, todavia, que tal consideração não pode impedir a solução justa do problema, antes deve levar a generalizar, quanto antes, o repouso dominical; é essa, aliás, a aspiração de mui-
1 Vide Rapport sur le repos hebdomadaire dans l'industrie et le commerce, da 3.ª sessão do B. I. T., de Genebra, em 1921.
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tos concelhos e também por este aspecto o projecto se mostra particularmente oportuno 1.
Para terminar, resta-nos referir a opinião, por vezes sustentada, segundo a qual o descanso do comércio ao domingo, obrigando os trabalhadores rurais a tratar dos seus negócios nas sedes dos concelhos em dias de semana, poderia fomentar o trabalho nos campos em dia de domingo. Esta opinião é desmentida pela prática de muitos concelhos; mas, ainda que fosse verdadeira, seria preferível decretar o descanso dominical, pois, consagrado ele, seria possível chamar os povos ao cumprimento do dever de santificar o domingo, enquanto no regime actual nem isso é possível.
A regra estabelecida no artigo 2.° do projecto é, portanto, no parecer desta Câmara, inteiramente de aprovar.
5. Excepções ao descanso dominical. - No artigo 2.° do projecto n.° 170, depois de se fixar o domingo como dia de repouso em todo o País, acrescenta-se: «é da exclusiva competência do Governo autorizar as excepções que os serviços de interesse público justificarem».
Fundamentalmente idêntica ao preceituado no artigo 19.°, § 2.°, do decreto-lei n.° 24:402, esta disposição é lógico complemento da primeira parte do artigo e como tal inteiramente de aceitar. Cumpre, porém, fazer-lhe algumas observações de pormenor:
a) A necessidade de admitir excepções ao descanso dominical escusado é justificá-la, pois é bem evidente que há actividades que não podem suspender-se durante o domingo.
Importa, no entanto, acentuar dais pontos fundamentais: as excepções não só devem ser cuidadosamente delimitadas e baseadas em necessidades imperiosas, como devem consistir sempre na permissão de actividades especiais ou gerais, mas então só num certo e determinado domingo (por exemplo: por ocasião de uma feira anual que caia, em certo ano, messe dia).
Do citado relatório da 5.ª sessão do B. I. T., em 1921, vê-se que este organismo propunha como excepção ao descanso dominical apenas certas actividades taxativamente indicadas; e alguns países acentuaram nas suas respostas a necessidade de delimitar cuidadosamente as excepções, para que, no dizer da delegação alemã, elas não se convertessem em regra; segundo a mesma delegação, já antes da guerra de 1914-1918 os pedidos de autorização para trabalhar ao domingo se tornavam na Alemanha cada vez unais raros. Das respostas às perguntas 3.ª (relativa à regra do descanso dominical) e 4.ª (relativa às excepções) vê-se que todas as delegações, mesmo algumas que propunham que não se limitassem as excepções, só pensavam em actividades especiais ou, se gerais, relativas a populações com características particulares (comunidades judaicas, designadamente).
Ora do projecto não se deduz rigorosamente que as excepções admitidas consistem, não em fixar-se o descanso semanal em dia diverso do domingo, mas sim em permitirem-se, em circunstâncias especiais, determinadas actividades no dia de repouso.
Convém, por isso, esclarecer expressamente este ponto.
b) Admite o projecto as excepções que «os serviços de interesse público justificarem».
Esta fórmula pode, talvez, considerar-se excessivamente limitativa ou dar lugar, quando menos, a algumas dúvidas. Com efeito, a expressão «serviços de interesse público» pode confundir-se com a de a serviços públicos», o que deixaria de fora numerosas actividades particulares cuja laboração deve admitir-se ao domingo; além disso, há indústrias de laboração contínua que só poderão considerar-se de interesse público tomando este em acepção muito ampla (fabrico de papel e certas operações do da cerveja, por exemplo), que, no entanto, são autorizadas a trabalhar continuamente para evitar prejuízos que a interrupção delas causaria.
Melhor será, por isso, usar expressão menos limitativa, tal como «excepções exigidas por imperiosas necessidades» ou outras semelhantes.
c) Ao prever as excepções convém ressalvar as que se acham admitidas por lei expressa, como as mencionadas no citado preceito do § 2.° do artigo 19.° do decreto-lei n.° 24:402.
Tomadas em consideração estas observações, o preceito da segunda parte do artigo 2.° do projecto merece inteira aprovação.
B) Feriados nacionais:
6. Doutrina do projecto de lei. - Como se disse já, o projecto preceitua no artigo 1.° que é restabelecido o feriado nacional do dia S de Dezembro; no artigo 3.° que o Governo promoverá a revisão dos feriados nacionais e o seu possível ajustamento aos dias santos preceituados pela Igreja Católica e às grandes datas da história nacional.
Vamos examinar separadamente estas duas disposições e as razões em que se fundam; faremos depois algumas considerações complementares.
7. Restabelecimento do feriado do dia 8 de Dezembro, - A restauração do feriado nacional da Imaculada Conceição constitui não apenas a satisfação da consciência nacional, que comemora essa festa com particular devoção, mas um acto de alto valor moral e patriótico. Se o respeito de todos os dias festivos é um dever e uma necessidade nacional, como dissemos, o deste dia é-o em grau muito especial, pois nele se comemoram conjuntamente em íntima associação a glória da Virgem e o bem da Pátria, que a Ela se consagrou e A elegeu como Padroeira.
São bem conhecidas as circunstâncias que intensamente ligaram o culto de Nossa 'Senhora da Conceição à independência de Portugal. Logo após a gloriosa revolução, D. João IV fez comemorar o dia 8 de Dezembro com grande solenidade e prometeu consagrar o Reino à Imaculada Conceição, promessa que veio a cumprir, reunido em Cortes, com os três estados, proclamando Nossa Senhora da Conceição padroeira de seus reinos e senhorios «para que os amparasse e defendesse dos seus inimigos».
Desde então o dia 8 de Dezembro constituiu não apenas uma grande festa da Igreja, mas grande festa de júbilo nacional e uma das maiores consagrações do patriotismo português.
Várias vezes na Assembleia Nacional se ergueram protestos contra o esquecimento pelo Estado da festa da
1 De um inquérito do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência sobre a possibilidade de instaurar o descanso dominical em várias localidades, respigamos as seguintes súmulas de respostas, que ilustram bem o que se diz no texto:
De Arruda dos Vinhos - prejudicial aos interesses da colectividade, a não ser que seja fixado em todas as terras do Pais.
Do Bombarral - concorda, desde que seja fixado também para o concelho das Caldas da Bainha.
Do Cadaval - concorda, aguardando apenas para o propor superiormente que tenha a anuência dos concelhos do Bombarral e das Caldas da Bainha.
Das Caldas da Rainha - prejudicial aos interesses económicos e turísticos, desde que não seja o designado por lei em todo o País.
Assim se debate o problema num círculo vicioso, que seria irrisório se não estivesse em causa matéria tão grave como o descanso dominical. Note-se que o concelho do Bombarral (e não sabemos se mais algum dos mencionados) já adopta hoje o descanso semanal ao domingo.
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Imaculada Padroeira de Portugal, e ainda há pouco o ilustre Deputado Sr. Ribeiro Cazaes proferiu a esse respeito justas e vibrantes palavras que não podem deixar de ser atendidas.
8. Dias santificados de preceito, em geral. - Como se disse, o artigo 3.° do projecto incumbe o Governo de rever os feriados nacionais, de modo a ajustá-los aos dias santificados e às grandes datas da história nacional; no preâmbulo expõem-se os motivos por que não se entende conveniente propor a Assembleia Nacional que tome a seu cargo a reforma projectada. Examinemos primeiro (referindo-nos por ora apenas às festas de carácter religioso) a restauração dos dias santificados como feriados; Em seguida ponderaremos as razões invocadas para não regular directamente em lei esta matéria:
a) Os feriados nacionais que nos dias santos de preceito (então em maior número do que hoje) se guardaram em Portugal até à implantação da República foram abolidos pelo decreto de 26 de Outubro de 1910; apenas se mantiveram dois - Natal e Circuncisão do Senhor -, declarados feriados pelo decreto de 12 de Outubro do mesmo ano, embora designados- com nomes laicos, a fim de, na impossibilidade de os fazer esquecer, lhes tirar todo o sentido religioso. A precipitação e empenho que se puseram nesta, reforma1 mostram quão sectário era o espírito que a ditava e como ela era importante para a campanha de descristianização do País. Não obstante a intenção com que foram abolidos estes feriados, e apesar de assim se violentar gravemente a consciência dos católicos, nunca se restabeleceu o regime anterior.
É certo que o artigo 26.°, § 1.°, do Estatuto do Trabalho Nacional estabelece que as exigências do serviço (na agricultura, comércio e indústria) serão quanto possível harmonizadas com o respeito dos feriados civis e religiosos observados pelas localidades. É certo também que, segundo referimos, o Estado se obrigou, pelo artigo XIX da Concordata, a providenciar no sentido de tornar possível a todos os católicos que estão ao seu serviço ou são membros das suas organizações o cumprimento regular dos deveres religiosos nos dias festivos. A verdade é, porém, que nenhuma providência genérica se tomou - que saibamos - para dar cumprimento a estas disposições.
Entre parêntesis, observemos até que ainda há pouco se proibiu rigorosamente no Estatuto do Ensino Liceal (artigo 349.°) a concessão de quaisquer outros dias feriados (além dos domingos e feriados nacionais, das férias escolares e... da terça-feira de Carnaval) ou tolerância total ou parcial de ponto aos professores ou aos alunos.
Tem esta disposição por fim evitar possíveis abusos; simplesmente, pode entender-se que com ela se aboliram anteriores decisões oficiais que mandavam transferir para o sábado seguinte as aulas que caíssem em dia santificado. Esta última orientação, além de satisfazer ao disposto na Concordata, constituía um meio indispensável para assegurar a educação cristã, nos termos da Constituição Política, e garantia a eficácia do próprio ensino da religião e moral legalmente estabelecido. Por isso é de esperar que o novo regime não inutilize o progresso que deste modo se alcançou, e a forma de o conseguir - possivelmente já no pensamento do Governo - é consagrar agora, em lei geral, os dias santos como feriados nacionais.
Ora restaurar os feriados nacionais nos dias festivos de Igreja é, para o Estado, como sabemos, obrigação assumida, pela Concordata, pois já pusemos em evidência que os deveres religiosos a que este se refere são o de repouso festivo e o de santificar integralmente esses dias. Ainda, porém, que não houvesse tal obrigação, exigi-lo-ia o respeito pela consciência da maioria doa portugueses e a necessidade de fortalecer as virtudes nacionais neste momento em que o Mundo se debate na mais grave das crises, originada fundamentalmente na desorientação ideológica e no desregramento de costumes. É, portanto, a todos os respeitos um dever e uma necessidade restabelecer os aludidos feriados, e não seria compreensível ter-se, para o fazer, menos coragem e firmeza do que tiveram os que em 1910 calcaram as mais profundas convicções da maioria nacional.
b) Diz-se no preâmbulo do projecto em exame que, embora a Assembleia Nacional pudesse tomar a seu cargo resolver o problema, prefere-se incumbir a revisão dos feriados ao Governo, em virtude de se considerar a primeira solução, por unilateral, pouco conforme à política concordatária e se entender que os feriados assim decretados poderiam afigurar-se excessivos.
Salvo o devido respeito, não nos parecem convincentes estas razões.
A resolução do problema pela Assembleia Nacional não pode ter-se por unilateral, pois é satisfação de um dever imposto pela Concordata, como referimos; ainda que assim não fosse, porém, parece-nos que a solução unilateral em nada contraria a orientação definida pela Concordata.
Quanto ao número de feriados que resultaria de se acrescentarem aos existentes (ainda que todos devessem subsistir) os dias santificados de preceito, não nos parece que deva considerar-se excessivo.
Advirta-se, antes de mais, que o critério para apreciar este assunto não pode assentar em interesses de ordem puramente material. É sobretudo à luz da importância que, segundo dissemos, o respeito dos dias santificados tem para a vida cristã e cívica que o problema há-de resolver-se; ora, analisando-o desse ponto de vista nunca o número actual dos dias santos de preceito pode considerar-se demasiado.
Aliás, impõe-se notar que a febre de trabalho, que leva a desprezar um dever religioso que - como mostrámos - é fundamental, não tem origem na preocupação virtuosa de exercer utilmente as faculdades humanas, para servir a Deus e ao bem comum; é, antes, fruto do espírito materialista que subordina os valores morais ao puro interesse material e tende a escravizar o trabalhador ao Estado e aos patrões e a fomentar a revolta, além de, como reacção natural, senão lógico efeito daquele mesmo espírito, desenvolver a negligência e a resistência passiva, as exigências do trabalho. O tempo, como factor do trabalho, tem importância muito menor que a vontade, e esta só pelos grandes ideais pode fortalecer-se.
Por outro lado, cumpre ter presente que o número actual dos dias santos (dez, dos quais dois já são feriados) é muito menor que o dos observados em outros tempos e inferior ao dos que ainda hoje são oficialmente respeitados em outros países.
As Ordenações Afonsinas (L. III, III, XXXVI e § 1) mandavam guardar como férias judiciais os dias de Na-
1 O decreto de 12 de Outubro fixou os feriados nacionais, sem nada dizer quanto aos anteriormente consagrados nas leis nem quanto aos dias santificados. Num artigo sobre o assunto a Gazeta da Relação ao Lisboa (ano 24.°, n.° 35, de 27 de Outubro de 1910) sustenta que era intenção daquele diploma revogar a legislação anterior sobre feriados e dias santificados, aduzindo, entre outras razões, os «princípios e ideias do partido republicano» e a pressa com que o decreto foi promulgado; afirma até que pode assegurar ser aquela a intenção legal. Foi o citado decreto de 26 de Outubro de 1910 que veio remediar esta sôfrega precipitação, consignando no § único do artigo 1.° um preceito que, pelo sabor sectário, merece transcrever-se: «Os dias até agora considerados santificados serão dias úteis e de trabalho para todos os efeitos».
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tal, da Páscoa e de Pentecostes, sete dias depois do Natal, sete antes e sete depois da Páscoa e três depois de Pentecostes; além destes, todas as festas de Jesus Cristo, de Santa Maria e dos Apóstolos, bem como a de S. João Baptista, e mais ainda as da Invenção da Santa Cruz, de Santa Maria Madalena e de Santa Catarina, de S. Lourenço, de S. Vicente, de S. Jorge, de Santo António («por ser nosso naturais), de Santo André e a de S. Brás.
Informa o Dr. Luís de Almeida Braga que os dias santos de preceito fixados no século XVII nas Constituições diocesanas (que as Ordenações mandavam acatar) variavam entre quarenta e quarenta e seis, o que, com os domingos, representava em cada ano cerca de cem dias de descanso, às vezes sete, oito e nove em cada mês. Havia, assim, como nota o mesmo ilustre autor, aproximadamente duzentos e sessenta dias úteis no ano, cuja duração variava de sete a doze horas, regulada só pela luz do Sol; cada dia era cortado por duas refeições no Inverno e três no Verão; aos sábados e nas vésperas das festas (ou seja ao todo cerca de cem dias anualmente) o trabalho terminava às 15 horas 1.
Se pensarmos que foi na vigência destes costumes que Portugal, com população muito inferior à actual, levou a cabo uma das maiores obras de tenacidade, de organização e de heroísmo que a História regista, não poderemos negar nem o valor do cristianismo como alma da nacionalidade, nem - é força dizê-lo - o contra-senso que haveria em considerar desperdício de tempo o respeito dos dias santificados, hoje em número muito menor.
No século passado e, segundo cremos, até à República ainda eram feriados nacionais catorze dias santos de preceito, além de mais dois no patriarcado de Lisboa (Santo António e S. Vicente) e um no reino do Algarve (S. Vicente) 2.
Segundo elementos particularmente obtidos nas respectivas legações, guardam-se hoje como feriados nacionais: na Argentina oito dias santos (além de nove feriados civis), na Bélgica nove dias, dos quais seis são de carácter religioso, e na Suíça onze dias, dos quais seis são dias santificados (além de outros guardados em alguns cantões). Em (Espanha equiparam-se ao domingo para efeitos do trabalho treze dias santos, além de outros de carácter local 3. Segundo informações fidedignas, em França, tal como na índia Inglesa, guardam-se como feriados quatro dias santos. Em Itália o Estado reconhece dez dias santos, que são precisamente os mesmos que se festejam em Portugal 4.
Perante as tradições nacionais nesta matéria e estes eloquentes exemplos, parece-nos não poder restar dúvida de que não é excessivo criar oito novos feriados (demais, o Governo pode, em qualquer momento, negociar um acordo com a Santa Sé para obter a dispensa de alguns deles). E a Assembleia Nacional, órgão de eleição directa do povo, está especialmente indicada para dar esta satisfação à consciência nacional.
Se, porém, não se entender possível consagrar como feriados todos os dias santos, ao menos que haja a coragem de reconhecer algumas festas com grandes tradições no País, como a do Corpo de Deus (móvel), o dia de Todos-os-Santos (1 de Novembro) e o da Imaculada Conceição (8 de Dezembro).
Esperamos, no entanto, que não se adoptará esta solução acanhada, que nos deixaria muito aquém de alguns; países acima citados.
9. Feriados civis. - Não nos alongaremos nesta matéria porque o projecto não concretiza a reforma que preconiza.
Diremos, no entanto, que também a esta Câmara se afigura conveniente rever os feriados nacionais, pois nem todos os actuais terão sido determinados com o melhor critério.
Como, porém, essa revisão - embora deva ser orientada por critérios exclusivamente patrióticos e educativos - pode ser vista como acto de natureza política, parece a esta Câmara que, feita na mesma lei, ela iria, na aparência, diminuir moralmente o significado da consagração dos dias santificados como feriados, e por isso melhor seria deixar para outra oportunidade a resolução do problema em causa.
Conclusão
Em síntese, a Câmara Corporativa dá todo o seu aplauso ao projecto de lei n.° 170. Sugere, porém, e apenas por lhe (parecer realizar melhor os fins do projecte, que ele tenha a seguinte redacção:
Artigo 1.° Os dias santos actualmente preceituados pela Igreja Católica são reconhecidos como feriados nacionais. Deixarão, porém, de o ser aqueles que a mesma Igreja dispensar.
Art. 2.° O domingo será o dia de descanso semanal em todo o País.
§ 1.° No domingo apenas são permitidos os trabalhos admitidos por lei em dia de descanso semanal e os que forem exigidos por necessidades- imperiosas.
§ 2.° É da exclusiva competência do Governo determinar as excepções previstas na parte final do parágrafo antecedente, sempre sem prejuízo da regra fixada no corpo deste artigo.
Palácio de S. Bento, 17 de Janeiro de 1948.
José Gabriel Pinto Celho, presidente com voto.
Afonso de Melo Pinta Veloso.
Amadeu Guerreiro Fortes Ruas.
Aurélio Augusto de Almeida.
Fernando de Freitas Simões.
Joaquim Manuel Valente.
D. Maria Joana Mendes Leal.
Álvaro Salvação Barreto.
Luís José de Pina Guimarães.
Alberto Sá de Oliveira.
Álvaro Malafaia.
Paulo de Oliveira Machado.
Oscar Baltasar Gonçalves.
António de Freitas Pimentel.
Afonso Rodrigues Queirós.
João Serras e Silva.
Manuel Gomes da Silva, relator.
1 Dr. Almeida Braga, Paixão e Graça da TErra, Livraria Civilização, Porto.
2 Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, IV, Coimbra, 1923, p. 319.
3 Cf. A. Fernandez Heras, Tratado Prático de Legialación Social, 2.ª ed., Saragoça, 1942.
4 Artigo 11.° da 2.ª Concordata entre a Itália e a Santa Sé, de 11 de Janeiro de 1929, in Pierre Délhac, Les Accords de Latran, Paris, 1932.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA