Página 165
REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 126
ANO DE 1948 21 DE JANEIRO
IV LEGISLATURA
SESSÃO N.º 126 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
Em 20 de JANEIRO
Presidente: Exmo.
Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos Srs.Manuel José Ribeiro Ferreira
Manuel marques Teixeira
Nota. - Foi publicado um suplemento ao Diário das Sessões n.º 125, que inseria o parecer n.º 26 da Câmara Corporativa, sobre o projecto de lei n.º 170 (feriados e dia de descanso semanal).
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 5 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 124 e 125 do Diário das Sessões. Deu-se conta do expediente.
Por proposta do Sr. Presidente, foram aprovados votos de pesar pela morte do Sr. tenente-coronel Silva e Costa, genro de S. Ex.ª o Sr. Presidente da República, e da mãe do Sr. Deputado Cerveira Pinto.
O Sr. Presidente anunciou que recebera o parecer da Comissão de Legislação e Redacção acerca da situação parlamentar do Sr. Deputado Sá Viana Rebelo.
Foi autorizado o Sr. Deputado Henrique Galvão a depor como testemunha no inquérito aos serviços radioeléctricos da Administração Geral dos CTT.
O Sr. Presidente comunicou que fora já publicado o parecer da Câmara Corporativa sobre o projecto da lei do Sr. Deputado Mendes de Matos relativo aos feriados e descanso semanal.
O Sr. Deputado Águedo de Oliveira pediu ao Governo a criação de uma comissão que proceda à avaliação do rendimento nacional.
O Sr. Deputado Silva Dias falou sobre o centenário da elevação de Viana do Castelo à categoria de cidade.
O Sr. Deputado Antunes Guimarães tratou dos problemas dos transportes em Lisboa e no Porto.
O Sr. Deputado Henrique Galvão referiu-se ao tricentenário da reconquista de Angola.
Ordem do dia. - Prosseguiu o debate sobre o projecto de lei n.º 177, tendo falado o seu autor, o Sr. Deputado Melo Machado, que ficou com a palavra reservada.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 30 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 50 minutos. Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Albano da Câmara Pimentel Homem de Melo.
Albano Camilo de Almeida Pereira Dias de Magalhães.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Álvaro Eugénio Neves da Fontoura.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Maria do Couto Zagalo Júnior.
António de Sousa Madeira Pinto.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Ernesto Amaro Lopes Subtil.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Henrique de Almeida.
Henrique Carlos Malta Galvão.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Indalêncio Froilano de Melo.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Sá Alves.
Página 166
166 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
João Garcia Nunes Mexia.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João Xavier Camarate de Campos.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Alçada Guimarães.
José Dias de Araújo Correia.
José Esquível.
José Luís da Silva Dias.
José Maria de Sacadura Botte.
José Martins de Mira Galvão.
José Penalva Franco Frazão.
José Pereira dos Santos Cabral.
José de Sampaio e Castro Pereira da Cunha da Silveira.
José Soares da Fonseca.
José Teodoro dos Santos Formosinho Sanches.
Luís António de Carvalho Viegas.
Luís Cincinato Cabral da Costa.
Luís da Cunha Gonçalves.
Luís Lopes Vieira de Castro.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Luís Teotónio Pereira.
Manuel de Abranches Martins.
Manuel Colares Pereira.
Manuel da Cunha e Costa Marques Mano.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Marques Teixeira.
D. Maria Luísa de Saldanha da Gama van Zeller.
Mário Borges.
Mário Correia Carvalho de Aguiar.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Rui de Andrade.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Teotónio Machado Pires.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
D. Virgínia Faria Gersão.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 70 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 5 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 124 e 125 do Diário das Sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como nenhum Sr. Deputado deseja usar da palavra sobre os referidos Diários, considero-os aprovados.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Da Câmara Municipal das Caldas da Rainha solicitando o patrocínio da Assembleia Nacional para a construção do ramal ferroviário do Vale de Santarém a Peniche, passando por aquela cidade.
Da Comissão Concelhia da União Nacional e do Grémio do Comércio das Caldas da Rainha em idêntico sentido.
Dos Grémios da Lavoura do distrito de Leiria, em que manifestam o seu acordo cora as considerações dos Srs. Deputados Melo Machado e Homem de Melo em defesa da lavoura.
Do Dr. Gomes da Cruz pedindo que o ramal do caminho de ferro do Vale do Vouga para Gaia parta da estação de Arrifana, como é conveniente para os interesses da zona norte do concelho de S. João da Madeira e para os habitantes de Arrifana. De diversos antigos agentes de passagens e passaportes secundando a representação enviada à Assembleia Nacional pelos componentes da sua classe.
Representação
«Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Acaba este Grémio de ler a notícia de que entrarão em discussão na Assembleia Nacional, no próximo dia 20 do corrente, as alterações ao artigo 29.º do decreto n.º 28:652, de 16 de Maio de 1938, ou sejam as disposições legais vigentes para o julgamento das reclamações que, ao abrigo dos artigos 26.º e 27.º do mesmo diploma, hajam sido formuladas pelos proprietários dos terrenos abrangidos pelas obras de aproveitamento hidroagrícola.
Segundo a referida notícia, essas reclamações passariam a ser julgadas por um conselho, constituído por três membros da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola: o ajudante do Procurador Geral da República, o professor de Hidráulica Geral Agrícola do Instituto Superior de Agronomia e um representante da Direcção Geral dos Serviços Agrícolas, e por três representantes da lavoura: um eleito pelos Grémios da Lavoura dos distritos de Beja, Castelo Branco, Évora, Faro, Lisboa, Portalegre, Santarém e Setúbal, outro pelos grémios da lavoura dos restantes distritos e o terceiro pela Associação Central de Agricultura Portuguesa.
Objecção alguma tem este Grémio a opor à entrada para o projectado conselho de três vogais como representantes da Junta, desde que não lhe fique de antemão assegurada a maioria de votos; merece-lhe inteiro aplauso a atribuição conferida à Associação Central de Agricultura Portuguesa; outro tanto, porém, não pode ele dizer da escolha dos dois restante membros representantes da lavoura.
Com efeito, não pode este Grémio deixar de ponderar um dos mais graves inconvenientes que, em seu parecer, contraindicam a sua eleição pelos grémios da lavoura de todo o País, admitindo sem reparo que possam ser bons julgadores indivíduos inteiramente desconhecedores da matéria em debate. Não serão acaso os representantes do grémio da lavoura e das associações de regantes ou de beneficiários existentes no concelho a que pertencem os prédios a que as reclamações dizem respeito os mais idóneos para esclarecer os restantes membros e para poderem defender ou impugnar com inteira autoridade as alegações produzidas pelos reclamantes?
Outro inconveniente de vulto tem ainda este Grémio a apontar à anunciada constituição do projectado conselho: o de não bastarem os três representantes da lavoura para garantirem a necessária imparcialidade às deliberações desse conselho, visto que, fazendo parte dele três vogais da Junta com responsabilidades ligadas às resoluções visadas pelos reclamantes e aos julgamentos por ela já realizados das reclamações feitas em 1941 e devendo pertencer a um representante da Junta a presidência do referido conselho e, portanto, o voto de qualidade para desempatar as votações, resultariam vãos os esforços despendidos pelos três representantes
Página 167
21 DE JANEIRO DE 1948 167
da lavoura para que aquela imparcialidade ficasse assegurada. Não será de aconselhar a inclusão de um sétimo componente, estranho à Junta e à lavoura, com a categoria e idoneidade necessárias para presidir ao conselho e para assegurar essa imparcialidade?
Por tais fundamentos, tem este Grémio a honra de solicitar a atenção de V. Ex.ª para as projectadas alterações ao artigo 29.º do decreto n.º 28:652 e para os reparos que sumariamente acabam de ser apontados.
Com as minhas mais respeitosas saudações me subscrevo.
A bem da Nação.
Loures, 17 de Janeiro de 1948. - Pelo Grémio da Lavoura de Loures, o Presidente, Assinatura ilegível».
O Sr. Presidente: - Como é do conhecimento da Assembleia, faleceu no dia 17 do corrente, vítima de um lamentável desastre a bordo do vapor Rovuma, o Sr. tenente-coronel Silva e Costa, genro do venerando Chefe do Estado. A circunstância de se tratar de um oficial distinto que fez parte do Corpo Expedicionário Português em França e a de se encontrar estreitamente ligado à família do Chefe do Estado e aquelas em que ocorreu a sua morte não podem deixar de comover a Assembleia, sempre tão sensível às vicissitudes da vida do Sr. Presidente da República. Estou por isso certo de interpretar os sentimentos da Câmara propondo que na acta se exare um voto de profundo sentimento pela dolorosa ocorrência e se assegure ao Sr. Presidente da República a solidariedade da Câmara na dor que tão duramente o feriu e à sua família.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Sou agora informado de que ontem faleceu a mãe do digno Deputado Sr. Cerveira Pinto. Em nome da Assembleia, exprimo àquele ilustre colega o nosso pesar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Está na Mesa o parecer da Comissão de Legislação e Redacção acerca da situação parlamentar do Sr. Deputado Sá Viana Rebelo. Este parecer vai ser publicado no Diário das Sessões e será oportunamente submetido à apreciação da Assembleia.
O juiz síndico da Câmara de Falências de Lisboa pede autorização à Assembleia para que o Sr. Deputado Henrique Galvão, no próximo dia 22, pelas 16 horas, preste o seu depoimento no inquérito que S. Ex.ª o Ministro das Comunicações mandou proceder aos serviços radioeléctricos da Administração Geral dos CTT.
Comunico à Câmara que o Sr. Deputado Henrique Galvão informou que não vê inconveniente para a sua actuação parlamentar em que a Assembleia conceda a autorização solicitada.
Consultada a Assembleia, foi autorizado.
O Sr. Presidente: - Está na Mesa o parecer da Câmara Corporativa sobre o projecto de lei n.º 170, relativo a feriados e dia de descanso semanal.
Vai baixar às Comissões de Trabalho, Previdência e Assistência Social; de Educação Nacional, Cultura Popular e Interesses Espirituais e Morais e à de Política e Administração Geral e Local.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Águedo de Oliveira.
O Sr. Águedo de Oliveira: - Sr. Presidente: as considerações que vou fazer hoje, antes da ordem do dia, destinam-se a advogar perante a Assembleia e o Governo, particularmente junto do Ministro das Finanças, a necessidade de determinar, estatìsticamente e em trabalho oficial, qual seja o valor do rendimento nacional.
Falta-nos em Portugal essa noção. E sem ela quase se não pode dar um passo. E como a roda do leme do onde pode dirigir-se a marcha do navio. E a melhor pedra do xadrez económico. Para os estudiosos da previsão social pode afirmar-se ser também a sua indispensável tabela de cálculo.
Portanto, a armadura intelectual dos portugueses, as suas vistas mais largas, as projecções de ordem técnica continuam desfalcadas dessa noção preciosa, tão necessária ao alinhamento com os conhecimentos gerais e experiência dos demais países.
Somos ricos? Somos pobres?
Permanecemos confinados em insuperável modéstia?
A impecuniosidade portuguesa reduz-se e tende para o eclipse?
Não podemos aspirar a mais que uma filosófica mediania?
Temas controvertidos, dúvidas graves, ansiedades várias, estado de incerteza a que havemos de pôr termo por uma investigação oficial levada a cabo por especialistas.
Esta tarefa ultrapassa os trabalhos particulares que ostentam margens tão grandes de arbítrio como precariedade de estimativas e dados iniciais.
Falta-nos determinar o rendimento nacional e inventariar depois a fortuna dos portugueses.
Para defender esta verdade e para justificar o meu alcance, começarei por fazer desfilar alguns exemplos típicos que, estou convencido, impressionarão e nos porão, acto imediato, em frente do problema.
Foi publicado na tarde da última sessão desta Câmara o resumo do relatório do departamento do Estado Norte-Americano contendo os informes oficiais sobre a situação dos países auxiliados e beneficiários do plano Marshall, aliás, mais correctamente, programa Marshall.
Relativamente a Portugal acrescentam-se observações seguras sobre a firmeza e sanidade da nossa situação financeira, as possibilidades de que dispomos em prestar crédito e auxílio, a eventualidade de expansão comercial, os limitados riscos do bom Governo que nos rege e a estimativa das necessidades alimentares de pão. Mas acrescenta-se ainda e sublinha-se: a despeito da relativa prosperidade de Portugal, «os rendimentos reais do povo português continuam a ser dos mais baixos da Europa».
E, a propósito do plano Marshall, acho que seria interessante que, por algum dos nossos departamentos administrativos, pela própria Assembleia ou em qualquer das publicações que nos são habitualmente distribuídas - e à semelhança do que se faz em outros países civilizados - se publicassem os documentos relevantes da vida internacional que entroncam connosco.
Discute-se actualmente uma carta do comércio mundial, apresentaram-se e votaram-se vários projectos de união aduaneira e da Conferência dos 16 parece que saiu uma ideia paralela.
Qualquer que seja a nossa atitude, tais documentos interessam no ponto de vista do conteúdo e dos regimes que esboçam.
Mas, como dizia, afirma-se que os nossos rendimentos continuam dos mais baixos da Europa.
Mesmo depois de relatadas as penúrias e carências em que vive o oeste e o sudoeste?
Esta afirmativa, cuja origem desconheço e admito até que possa ter sido recolhida entre nós, confirma o que tenho ouvido a alguns poucos americanos com
Página 168
168 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
quem conversei. Depois cie reconhecerem as doçuras da vida portuguesa, depois de elogiarem os seus padrões, pelos quais testemunham grande entusiasmo, é fatal rematarem: a Mas não é certo que vocês mostram o mais baixo standard de vida europeia?».
Esta e outras afirmativas não sei ainda confirmá-las, mas não as impugno.
Outro exemplo:
De Julho de 1924 em diante houve um inquérito do Bureau International du Travail ao nível relativo da vida operária nalgumas capitais, abrangendo Lisboa.
Dispense-me, Sr. Presidente, os detalhes de ordem técnica.
Com base no salário real, semanal, dessas cidades e o custo do «cabaz de compras» que lhe correspondia, o citado Bureau pôde chegar à seguinte estatística indiciaria, que desce do mais alto escalão alimentar para o mais baixo, com referência a 1928:
Filadélfia .............. 180
Otava ................... 160
Copenhague .............. 108
Londres ................. 100
Estocolmo ............... 85
Amesterdão .............. 82
Berlim .................. 70
Paris ................... 56
Madrid .................. 54
Bruxelas ................ 53
Praga ................... 45
Viena ................... 43
Varsóvia ................ 42
Lisboa .................. 28
Menos do que uma sexta parte de uma cidade americana; metade de Paris; quase metade de Madrid, e ainda distante de Varsóvia!
Trabalhando com estes e outros números do Bureau em Outubro de 1933 o falecido professor Lima Bastos chegava a uma conclusão: a nossa situação era lamentável e, apesar de os géneros poderem ser aqui adquiridos mais baratos, encontrávamo-nos, tanto em Lisboa como no Porto, em situação bastante inferior à maioria dos países europeus.
Agora outro exemplo, em que a paisagem começa a mudar.
O mais famoso e surpreendente técnico estatístico da actualidade é Colin Clark e é ele que vai calcular o nosso rendimento real por habitante, com base numa remuneração em dólares, correspondente a 2:500 horas anuais de trabalho, e que nos dá:
1909-1913 ............. 115
1921-1924 ............. 100
1925-1929 ............. 110
1930-1934 ............. 120
1935-1938 ............. 125
Em 1960, daqui a doze anos, estaremos, porém, nuns 390, mais do triplo daquele último período.
Nessa altura, entre os países que são objecto de cálculo - e nem sequer são a maioria - deixaremos, para trás o Japão, a U. R. R. S., a índia e a China, estaremos em pé de igualdade com a Espanha e muito próximos da França e Noruega.
Já em 1935-1938 suplantávamos os Estados Bálticos, a Polónia e os Estados Balcânicos.
Podia repetir, acrescer e melhorar os exemplos, mas estes bastam.
Eu acredito que alguns dados, como sejam os de um país fracamente industrializado, a ausência de combustíveis, a existência de recursos naturais limitados e não de todo aproveitados, nos conduza a uma fotografia de debilidade económica.
Mas penso que o trabalho português, a sua organização e inteligência também pesam na balança em sentido inverso, aqui, nas colónias, no Brasil e na Califórnia.
Anemia congénita, mas existência de reconstituintes!
Interessa, pois, uma investigação dinâmica, destinada a avaliar o rendimento dos portugueses e a fazer o inventário do capital nacional que nos dê a verdadeira cinematografia do País.
Encontraremos assim no meio de complexidades alguns marcos de referência fundamentais.
Cada vez mais a política económica das nações adiantadas tende para o científico e se afasta dos tradicionais empirismos.
Interessa, pois, a determinação rigorosa do capitai e do rendimento nacional para facilitar a direcção superior da economia, melhorar a acção estadual e até privada, demarcando o seu mais largo campo de acção. Podemos depois estudar os padrões e planos de vida, tirar confrontos e saber dos progressos realizados na técnica e na ordem do bem-estar geral.
Embora detestando citações em intervenções parlamentares, desejo hoje fazer algumas referências que promoverão a defesa do meu alvitre.
Lavergne e Paul Henry mostram que a intervenção incessante do Estado na cidade futura, os aumentos orçamentais que a reflectem, o incremento dos valores mobiliários e a sociedade anónima, bem como as alterações de juro, levam-nos para um inquérito estatístico ao rendimento e à fortuna que ponha termo à ignorância dos recursos nacionais. Nitti entendia que para uma Itália melhor e mais rica, mas despida de ilusões e para dissipar os erros, era urgente investigar fastidiosamente e inventariar a riqueza complexa do país e a sua distribuição.
Foram já realizados trabalhos apreciáveis deste género - e até repetidos - na Inglaterra, Suécia, Alemanha, Estados. Unidos, Japão, Canadá, Nova Zelândia, Bélgica, índia, Austrália, etc. No país vizinho procedeu-se há dois anos a um trabalho oficial sobre La venta nacional de Espana. Por ordem da Presidência do Governo de 20 de Abril de 1944 criou-se uma comissão encarregada do estudo do rendimento nacional. Logo em 13 de Maio foi convertida em lei. Deste trabalho está publicado o 1.º volume, que contém dados muito curiosos, embora sujeitos a discussão.
Não tenho de referir agora as dificuldades de definição, as dificuldades de ordem teórica e técnica de um tal empreendimento, por serem em demasia reconhecidas e que não fizeram recuar aqueles Governos.
Digo novamente: é indispensável pôr termo a um estado de ignorância e incerteza que gera confusões e perplexidades e, sobretudo, interpretações apressadas lá fora.
Trata-se de uma tarefa pública de muita delicadeza, complexidade e imparcialidade. Há-de entregar-se a técnicos de visão serena. Nem estes pessimismos que confundem o País com um pedinte, clamando e apontando para as suas maselas, nem um optimismo panglóssico que faz da nossa casa o melhor dos mundos possíveis.
Se nestes assuntos não fôssemos verdadeiros, até a nós próprios mentiríamos. Mas mal faremos se continuarmos a deixar, estranhamente, os nossos créditos em mãos alheias. Não podemos titubear perante as flutuações de valores do momento ou a ameaça de tempestades que se avizinham. Keynes mostrou que hoje em dia dominam as preocupações a curto prazo, e não vale a pena estabelecer raciocínios para períodos muito dilatados.
Página 169
21 DE JANEIRO DE 1948 169
Pode-se realizar um trabalho relevante que não desmanche nas grandes realizações.
Possuímos certas condições de sucesso - estatísticas tributárias pormenorizadas e desenvolvidas, estatísticas comerciais escrupulosas e completas, estatísticas agrícolas esplêndidas, um inventário muito criterioso da Direcção Geral da Fazenda Pública aos bens do Estado e outros instrumentos de auxílio e reconstrução.
Temos, além disso, os organismos coordenadores que sabem bastas coisas - os animais abatidos por herdade ou quinta, as reservas da casa agrícola, a geologia e o número de cepas dos vinhagos, as produções, as safras de azeitona ... e que, portanto, será fácil chegarem a estimativas de réditos e valores fundiários, ao global dos seus numerosos conhecimentos.
Pois é crível que não se chegue a resultados gerais, conhecendo o pormenor e a minúcia?
O Governo considerará no seu alto critério a minha sugestão, certo, como nós, que tem de ser defendida e mantida a verdade científica e que o erro ou a ignorância sobre os alicerces fundamentais da sua vida e dos seus planas tem sido apenas logradouro ou de pessimistas derrancados ou de estrangeiros incautos.
Os rendimentos, a propensão ao consumo, o nível de emprego e o investimento formam hoje os objectivos mais sérios das políticas actuais e sem a sua estatística quase não pode dar-se um passo.
Na grande obra de recuperar o tempo perdido e aperfeiçoar ao máximo as nossas coisas, peço ao ilustre Ministro das Finanças que considere a oportunidade e conveniência de criar uma comissão composta de um professor de estatística ou de economia e de alguns técnicos imparciais que digam o que temos, a vaga das produções e o destino do que ganhamos - aspectos estes do rendimento nacional!
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Silva Dias: - Sr. Presidente: foi a 20 do Janeiro de 1848 que a Rainha D. Maria II elevou a antiga Viana da Foz do Lima, a «notável vila» de D. Sebastião, à categoria de cidade. Comemora-se hoje, portanto, o primeiro centenário da cidade de Viana do Castelo e não só estranhará, certamente, que eu, na honrosa qualidade de Deputado pelo círculo, levante a voz nesta Assembleia para louvar e exaltar a minha terra em unísono com os meus conterrâneos que hoje ali deram início a algumas modestas, mas significativas, festividades religiosas e cívicas.
Mas para louvar e exaltar a terra onde nasci quereria, antes de mais nada, que as minhas pobres palavras tivessem o maravilhoso condão de vo-la mostrar como ela é e eu a trago e vejo no meu coração - colocada, com tranquilidade luminosa, naquele anfiteatro do Lima, de incomparável beleza e doçura, onde, no dizer de António Feijó,
... a terra estende a sua toalha verde
e o céu acende os candelabros de oiro.
A história de Viana confunde-se com a história da Nação em todos os seus anseios, «cristãos atrevimentos» e provações, mas assinala-a desde sempre uma indelével característica, mais tarde vinculada por D. Manuel I na caravela do seu brasão de armas: o cuidado e a paixão do mar.
Viana fez-se com o mar pelos seus ousados mareantes, e, assim, os períodos de crescimento, apogeu, decadência e ressurgimento da povoação correspondem, através de toda a nossa história, às épocas de formação, esplendor, declínio e renascimento da actividade marítima cios portugueses no Mundo.
Num meio profundamente romanizado e cristianizado, onde a influência, da invasão árabe mal se fez sentir, já depois de a Igreja ter evitado a anarquia social que proviria da degenerescência e desaparecimento do poderio dos senhores das antigas vilas romanas, salvando as instituições e agrupando os filiis ecclesie em freguesias rurais, já depois de o mar ter sido liberto da pirataria sarracena pela tomada de Lisboa, as Inquirições de 1238 vão encontrar na foz do Lima um agregado populacional com porto rudimentar e rude estaleiro e cujas ocupações predominantes eram, além da pesca costeira ou no alto mar, o comércio com a França e o Levante.
Da análise das Inquirições e cláusulas do foral de D. Afonso III conclui Alberto Sampaio - o notável historiador das origens da nacionalidade e das instituições rurais do Minho - no seu magnífico trabalho As Póvoas Marítimas:
Não foi o foral que originou Viana: já existia antes e se notabilizara no trabalho do mar. Marcar o momento preciso da nascença do seu comércio marítimo é impossível; despontando após a abertura do Oceano, foi-se desenvolvendo obscuramente até que Afonso III o trouxe à luz da publicidade. O foral deste criou, é certo, a póvoa concelhia; mas sem concelho já era um povoado de armadores e mareantes.
Com o impulso que D. Fernando deu à marinha mercante por meio da publicação de leis que ainda hoje causam espanto pelo arrojo da iniciativa e seu aspecto moderno, Viana encontra ambiente ao pleno desenvolvimento da sua vocação. Ao trabalho da construção de navios nos estaleiros corresponde a formação de marinheiros nas tarefas da pesca e do comércio marítimo.
E com navios e marinheiros tecem os vianenses, através do Mundo e das épocas, sobre os vastos oceanos o ligada a novas ilhas e continentes, a renda maravilhosa do seu destino histórico - renda que a imaginação dolorida das mães, esposas e noivas, nas horas de longa ausência e saudade, reproduziram entrelaçando os bilros com os dedos ágeis enquanto lhes viajava o cuidado.
Assim os viemos nas fainas do comércio e também no rumo da história, contribuindo com o seu esforço para aparelhar, equipar ou prover as quatro armadas que na alvorada dos Descobrimentos, segundo o plano do Infante, ousaram e firmaram o nosso domínio no norte de África - a armada que no reinado de D. João I tomou parte na gloriosa expedição a Ceuta, a que sofreu o trágico revez de Tânger, no tempo de D. Duarte, e as que ajudaram D. Afonso V a conquistar Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger.
Iniciada, depois da posse de Ceuta, a espantosa irradiação dos portugueses pelo Mundo até então desconhecido, vemos daí a pouco vianenses a povoar a ilha Terceira, no arquipélago dos Açores.
Em 1521, segundo o testemunho de Francisco de Sousa, expresso no Tratado das Ilhas Novas, D. Manuel I faz ao vianense João Álvares Fagundes, conhecido por O da Terra Nova, mercê da capitania de todas aquelas ilhas e terras que ele descobrisse, procurando recompensar dessa maneira os serviços que já prestara e prestaria no reconhecimento e povoação da costa da América do Norte, para onde se dirigiu de novo com alguns fidalgos de Viana e outros casais que de caminho tomou nos Açores.
Anos depois, em ]534, D. João III faz doação ao vianense Pedro do Campo Tourinho de 50 léguas de largo, de Porto Seguro, na costa do Brasil. Este in-
Página 170
170 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
signe vianense, hábil e ousado, animado pela ideia de alargar até onde pudesse as fronteiras da Pátria, projecta e realiza uma emocionante aventura: comunica o seu entusiasmo à família, amigos e vizinhos, vende os avultados bens e com o produto destes arma uma flotilha, provê-a do necessário, a que não faltam sementes nem alfaias agrícolas, nela embarca todos os que o quiseram seguir, «mulheres e filhos, e muitos moradores casados com parentes e amigos e muita outra gente», faz rumo ao Brasil e aí, como donatário, edifica a cidade de Porto Seguro e as vilas de Santa Cruz e Santo Amaro.
A prosperidade de Viana após a era dos Descobrimentos era tão avultada que D. Sebastião concede à vila o título de «notável», por «ser uma das mais nobres e principais de meus reinos e de maior rendimento e a principal de Entre Douro e Minho».
E Frei Luís de Sousa, na Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, também testemunha ser:
Viana, vila das mais insignes deste reino, terra cheia de gente rica e muito nobre, de grande trato e comércio, por uma parte com as conquistas de Portugal, ilhas e terras novas do Brasil; por outra com a França e Flandres, Inglaterra e Alemanha, de onde e para onde recebia de ordinário muitos géneros de mercadorias e despedia outros; para os quais tratos traziam os moradores no mar grande número de naus e caravelas, com grossas despesas, a que respondiam iguais retornos e proveitos que tinham a vila florescentíssima.
Do mar aberto como uma estrada ao arrojo dos portugueses verifica-se que os vianenses preferiram os rumos da América setentrional e meridional.
Viana sofre então as vicissitudes da «apagada e vil tristeza» em que caiu a Nação, mas em 1640 expulsa o estrangeiro e aclama com delírio D. João IV, O Restaurador. E, prosseguindo o seu destino, continua tenazmente a mourejar na terra e no mar, arando, navegando e comerciando, sobretudo com o Brasil, do que resulta um novo período de prosperidade, atestado por inúmeros edifícios, entre os quais existem para regalo de nossos olhos preciosas jóias de arquitectura civil.
Se João Álvares Fagundes contribui com as suas viagens para intensificar e radicar a tradição da pesca do bacalhau nos mares da Terra Nova, para onde, segundo Pimentel em Arte de Navegar, entre 1613 e 1676, «iam todos os anos de Viana e Aveiro e outros portos de Portugal mais de cem caravelas», Pedro Tourinho ensinou aos vianenses o caminho do Brasil, onde já no século XVII, como afirma Fernão Cardim, «os habitantes mais ricos de Pernambuco eram oriundos de Viana».
Mas, passados que foram quase sete séculos de esplêndida unidade nacional, apenas interrompida por duas infelizes guerras civis, depois de 1820, Viana começa a sofrer as consequências inglórias e mesquinhas da sobreposição ao espírito da Nação de um sistema estrangeiro, que, embora imposto com intenções generosas, provocou a permanente divisão dos portugueses em bandos irredutíveis e, devido à forma de ser arrebatada destes, gerou desacatos, perseguições, pilhagens, morticínios, motins, golpes de estado e revoluções - enfim, desvairo das inteligências, arrebatamento das paixões, demagogia infrene, anarquia espontânea, guerras civis e até a humilhação de intervenções estrangeiras.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- E neste triste ambiente de lutas fratricidas, pouco depois de a Convenção de (Bramido ter tentado pôr termo à guerra civil patuleia, que D. Maria II eleva Viana à categoria de cidade e a designa «do Castelo» - daquele castelo que eu não posso evocar sem sentir pena do que nele se passou.
Eu não quero concluir este rápido e fragmentário escorço da história da minha cidade sem deixar de aproveitar o acontecimento que celebro nesta Assembleia para verberar o procedimento de um fulgurante panfletário que, animado pelo espírito negativista e denegridor que maculou o Oliveira Martins da História, de Portugal e influenciado pelas efémeras novidades e erradas perspectivas de Michelet e Edgar Quinet, depois de no prefácio da sua obra ter considerado os cronistas criados dos reis e mistifica d ores dos acontecimentos, vituperado a conduta de D. João I, negado o saber e as virtudes do Infante D. Henrique e coberto de insultos os Braganças para tentar atingir - ó desvairo da época! - o grande e cada vez maior Rei D. Carlos, interpretou alguns documentos relativos a Viana segundo o apaixonado objectivo proposto de provar que as aristocracias traíram sempre o interesse dos povos e que só estes tinham sido os autênticos obreiros dos sublimes e decisivos acontecimentos históricos.
Como se fosse possível vincular na História qualquer acontecimento fecundo e transcendente para a vida nacional que, à semelhança da união corporal do cérebro e do coração, do pensamento e sentimento do homem, não resultasse da esplêndida unidade de uma aristocracia dedicada ao serviço do bem comum com o povo, adivinhando e sentindo os mais, profundos motivos da sua vida histórica!
Viana deve já muito ao Estado Novo e a alguns dos seus Ministros, que a acarinharam como se fosse a própria terra.
Mas, além dos benefícios de ordem espiritual e material que são comuns a toda a Nação, como os da tranquilidade pública, os do incansável prosseguimento da união moral dos portugueses e da paz social entre os factores humanos da produção, os da reconstituição económica do País e do prestígio internacional; além dos benefícios de interesse local, como estradas, porto, novas escolas e edifícios públicos, restauração de monumentos e tantos melhoramentos rurais, canalizações de água, marcos fontanários, estradas e caminhos vicinais, Viana deve ao Estado Novo, como possibilidade de projecção em todo o País e no Mundo, o ter criado as condições necessárias ao redescobrimento da sua vocação marítima.
Como nos séculos XVI e XVII, os vianenses partem todos os anos para a pesca do bacalhau nos mares da Terra Nova, com frotas cada vez maiores, navios mais adequados e rápidos e pessoal mais adestrado e socialmente mais bem protegido.
Como nos primeiros séculos da Monarquia, devido à arrojada iniciativa de alguns de seus filhos e ajuda de estranhos, Viana possui o seu magnífico estaleiro e nele constrói já e repara barcos modernos.
Qual o vianense que não viu com alvoroço, como realização milagrosa do que há anos pareceria sonho inacessível, em duas docas secas, ao lado de espaçosas oficinas, as quilhas, querenas e cascas de navios de ferro, à volta dos quais formigam e labutam centenas de trabalhadores?
Mas Viana espera dever muito mais ao Estado Novo. Espera, porque sabe que pode confiar. Viana receberá do Governo da Nação o que legìtimamente ambiciona.
E, para terminar, não vou cair no desacerto de exortar os meus conterrâneos ao amor dedicado da Pátria, porque sei que eles a amam entranhadamente e se orgulham de ser portugueses como os melhores. Mas posso, desta Assembleia, como seu humilde representante, exortá-los à união de todos, esquecidos mesquinhos dissídios e ridículas questiúnculas perante o irresistível impulso dos valores permanentes da nossa Civilização
Página 171
21 DE JANEIRO DE 1948 171
e História - postergado, enfim, o que é mínimo e superficial em benefício do que é, evidentemente, grandioso e essencial - e exortá-los para todos juntos como um só trabalharmos pelo engrandecimento moral e material da nossa terra, certos de que esse engrandecimento será simultaneamente motivo e reflexo da grandeza e prosperidade da Nação.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Antunes Guimarães: - Sr. Presidente: apesar das melhorias, no que respeita a velocidade e pontualidade, recentemente introduzidas em alguns comboios que fazem o percurso Porto-Lisboa e vice-versa, ainda se encontra quem utilize o automóvel para vencer cerca de 350 quilómetros que separam aquelas cidades.
É certo que as estradas estão geralmente boas e atravessam regiões que interessam sob múltiplos aspectos, sendo agradável percorrê-las uma vez por outra em velocidade moderada e sem a preocupação de chegar depressa, como geralmente se verifica com os que se deslocam para tratar de negócios ou preencher formalidades que os obrigam a repetidas vindas à capital.
Há dias, um amigo que sistemàticamente recorre ao seu automóvel para se deslocar à capital asseverou-me que assim procedia principalmente para economizar tempo, não no percurso Lisboa-Porto, que certos comboios já vencem com horários que seria temeridade abreviar tratando-se de automóveis, mas para tratar de variadíssimos assuntos na capital, onde as repartições públicas e corporativas se distribuem pela vasta área da cidade, desde Algés e Belém a Santa Apolónia e do Terreiro do Paço ao Campo Grande e à Alameda das Linhas de Torres, onde colocaram os serviços de viação, e ainda outros locais excêntricos.
Este critério pode justificar-se como quiserem, menos com aquela atenção que a comodidade e interesses do público exigem, e que devia ser a principal orientadora da escolha da situação dos diferentes serviços públicos.
Outra, felizmente, é a estratégia adoptada pelas actividades económico-financeiras que se concentram nas artérias da Baixa e noutras de fácil acesso, quase sempre na zona central da cidade e sempre devidamente servidas de transportes.
Sr. Presidente: tem razão o meu referido amigo da cidade do Porto, porque, trazendo o seu automóvel, consegue resolver em poucas horas o que sem ele exigiria alguns dias.
Comodidade... e, feitas as contas, economia de dinheiro, porque a hospedagem é geralmente cara, e também de tempo, que é das coisas mais preciosas e a ter sempre em muita consideração.
O recurso ao carro eléctrico, além de frequentes e grandes esperas em bichas infindáveis, acontece exigir dos passageiros agilidade de acrobatas para se aguentarem nos cachos que se dependuram dos estribos.
E os táxis, sobretudo a certas horas, que são justamente as destinadas à vida activa das repartições, do comércio e indústria, só por acaso se encontram livres.
Geralmente não há outro remédio senão ir percorrendo a pé as enormes distâncias a que já aludi, o que, sendo moroso e extenuante, não deve nem pode continuar a verificar-se numa cidade como a de Lisboa, cumprindo por isso remediar o mais urgentemente possível tão grave lacuna.
Sr. Presidente: mutatis mutandis, as considerações que acabo de fazer podem aplicar-se em certo grau à cidade do Porto.
É, porém, de toda a justiça reconhecer o esforço realizado nas duas cidades para aumentar o número de carros eléctricos e suprir em parte a sua falta pondo em circulação alguns autocarros. Pelo que respeita à capital, há a registar o projecto da criação de um metropolitano, para o qual se pensa em constituir um sociedade mista, do tipo adoptado para o Zêzere e Cávado-Rabagão, isto é, uma fórmula em que se procura caldear interesses heterogéneos, pondo ao lado das actuais empresas e de novos capitalistas, que legìtimamente visarão o lucro uma larga comparticipação do Estado ou dos corpos administrativos, os quais nunca deveriam ser orientados por espírito lucrativo, uma vez que os respectivos créditos lhes são garantidos pelas diversas vias fiscais.
Sr. Presidente: se no que respeita a carros eléctricos não é fácil elevar rápidamente o seu número, já o mesmo se não verifica relativamente aos táxis, pois não faltam veículos do tipo correspondente à oferta e abundam os pretendentes à concessão de novos alvarás de serviço, tanto da parte das empresas que já exploram este ramo de transporte, como, e principalmente, na importante e numerosa classe dos motoristas, muitos dos quais se mostram interessadíssimos em obter autorização para explorarem na praça veículos que lhes permitam, aliás muito legìtimamente, deixar a situação de assalariados para ascenderem a certo grau de independência, trabalhando de conta própria, na esperança de conseguirem melhor nível de vida para si e suas famílias.
Como disse, esta premente necessidade da elevação imediata do número de automóveis taxímetros nota-se em Lisboa e Porto e, de uma maneira geral, em todo o País, impondo-se por isso as providências indispensáveis.
Mas convém que para a fixação dos contingentes relativos a cada terra se ouçam também as entidades directamente interessadas no reforço dos meios de transporte, tais como os grémios e outras associações da lavoura, da indústria e do comércio e, destacadamente, o Automóvel Clube de Portugal, cuja alta competência é por todos reconhecida e tem sido sistemàticamente considerada pelo Governo, que, vai para meio século, o vem justamente destacando, confiando-lhe durante muitos anos todos os serviços de registo e inspecção das diversas categorias de veículos automóveis, de exames dos respectivos condutores, de sinalização das estradas, da concessão de trípticos e certificados internacionais de condução, da mesma forma que rodeando do maior prestígio a sua colaboração no problema dos transportes, garantindo-lhe representação nos diferentes conselhos, sobretudo no Conselho Superior de Viação, onde o concurso dos seus delegados foi sempre do maior relevo e valor.
Sr. Presidente: após tão longa folha de serviços, entenderam, ao suprimir-se o Conselho Superior de Viação, não precisar de dar representação ao Automóvel Clube de Portugal no Conselho Superior de Transportes Terrestres, sucessor daquele, e onde a intervenção dos seus representantes não deixaria de continuar a ser preciosa para a equilibrada coordenação de todos os factores que intervêm no assoberbante capítula dos transportes terrestres.
Sr. Presidente: já que abordei este importante capítulo da vida nacional, permita V. Ex.ª me refira à reacção que, na importante classe dos concessionários de carreiras de camionagem, provocou a recente supressão dos 20 por cento que, com fundamento em carestias da guerra, eles vinham cobrando além das respectivas tarifas de transporte.
De uma maneira geral, afirmam que a correspondente baixa de receitas é incomportável, por não ser acompanhada de redução de despesas na mesma proporção.
Por sua vez o público, ainda sob a impressão de certos indicadores de avultados lucros auferidos por muitas daquelas empresas durante o período de guerra e no que se lhe seguiu, bem como pelo que se diz sobre preços
Página 172
172 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
pedidos ou realizados, mas sempre avultadíssimos, relativamente ao traspasse de algumas carreiras (que à legislação agora em vigor devem a inestimável prerrogativa de estarem livres de concorrência e até certas aparências de exclusivo), entende que a baixa de 20 por cento ordenada pelo Governo, além de coerente com a orientação geral seguida relativamente a preços, obedece à necessidade de uma política do embaratecimento de transportes, como factor geral e fundamental do trabalho, circunstância em que seria legítimo o recurso à respectiva nacionalização, se tanto fosse necessário, hipótese que, no meu parecer e no que respeita à camionagem, não está em causa.
É bem de ver que o Governo deve ter fundamentado aquela baixa de tarifas de camionagem num inquérito justificativo, e por certo não hesitaria em ordenar nova revisão se os interessados apresentassem elementos devidamente documentados para demonstração da impossibilidade de econòmicamente explorarem as respectivas carreiras.
Ainda sobre este assunto de camionagem: o público pede o estabelecimento de novas carreiras e o reforço das actuais, bem como a imediata substituição de muitas camionetas por outras que proporcionem aos passageiros o grau de segurança, higiene e comodidade compatíveis com a dignidade humana.
Sem isso toda a política de colonização interna seria inviável e iríamos pouco a pouco assistindo à tragédia do despovoamento rural.
Sr. Presidente: ainda sobre o importante tema da circulação, tem-me sido grato verificar que, de uma maneira geral, o trânsito tem melhorado no que respeita a disciplina e celeridade, notando-se que nas ruas centrais (salvo em certos funis que só o camartelo municipal poderá, modificar) já não existe aquele congestionamento que tudo paralisava, eléctricos, automóveis e peões, durante tempo sem fim.
Nas ruas pombalinas da Baixa os automóveis seguem céleres, animados pelos sinaleiros, e os peões só atravessam quando surge o sinal de paragem de veículos.
Quer dizer: aquelas importantíssimas artérias foram restituídas ao trânsito regular de veículos, pois, ainda recentemente quem se aventurava à sua travessia em automóvel corria o risco de nunca mais de lá sair.
Como os tempos mudam!
Quando em 1930 me coube o encargo de remodelar os preceitos reguladores do trânsito e as aludidas ruas da Baixa, já então pejadas de veículos que mal se podiam mexer, me obrigavam a dar uma grande volta para ir do Terreiro do Paço à estação ferroviária e chegar ali a tempo de apanhar o comboio do Norte, eu, convencido de que só acelerando a marcha dos veículos (simultâneamente com a disciplina dos peões) se poderia garantir naquelas e noutras artérias da capital e de outras cidades a circulação indispensável ao regular funcionamento de todas as actividades, escrevi o seguinte, que veio a fazer parte do artigo 61.º do Código da Estrada, cujo n.º 1.º ficou assim redigido:
De uma maneira geral, nenhuma viatura poderia, dentro das cidades e povoações, transitar nas vias públicas com velocidade superior a 30 quilómetros por hora, devendo essa velocidade ser reduzida até onde a prudência o indique e a segurança o exija, mas podendo aquele limite elevar-se até 50 quilómetros nos locais e horas em que o transito seja com isso compatível.
Pois, Sr. Presidente, foi «a cruz e o calvário». «Os atropelamentos seriam tais e tantos que constituiria temeridade circular nas ruas de Lisboa e doutras cidades», diziam-me então pessoas altamente categorizadas.
E o certo é que sòmente volvidos cerca de dezassete anos me foi dado o regalo de assistir ao desfile veloz de longas filas de automóveis nas ruas da Baixa e ao afã dos sinaleiros e doutros polícias para que não abrandassem a marcha.
De momentos a momentos os veículos paravam, e então os peões atravessavam sem o risco de serem atropelados.
Antes do publicação do Código da Estrada, em 1930, a marcha dos automóveis nas ruas tinha de ser a do caranguejo, sob pena de multa aplicada por brigadas que se escondiam nos vãos das portas, por detrás de muros, árvores, candeeiros e o mais que encontravam.
Os referidos preceitos do Código da Estrada e o § 2.º do artigo 148.º, que eu também ali introduzi - «das multas cobradas por transgressões ao Código da Estrada não cabe qualquer percentagem aos autuantes» -, muito contribuíram para modificar aquele intolerável procedimento.
Sr. Presidente: ainda sobre automobilismo, mas agora para terminar, em obediência ao nosso Regimento.
Lêem-se alarmantes referências e ouvem-se protestos, e até clamores, contra os abusos de alguns condutores de automóveis, acentuadamente de veículos utilizados na camionagem, sendo destes mais particularmente visados os que se destinam à carga de materiais e mercadorias.
Alude-se a incompetência, incapacidade física ou mental, a efeito de bebidas, a indiferença e desprezo pelos outros, a imprevidências e até às mais ousadas temeridades da parte dos respectivos condutores.
Registam-se desastres, alguns da maior gravidade, alude-se à perturbação que para o trânsito resulta daqueles deploráveis procedimentos e, com razão, dá-se o necessário, relevo ao mal-estar e alarme constante que daí resultam para os que circulam de qualquer forma nas vias públicas.
Sr. Presidente: eu, que circulo bastante nas estradas, tenho tido a satisfação de registar que, de uma maneira geral, o trânsito se faz com ordem e disciplina, consoante os preceitos legais e, portanto, sem pôr em risco a integridade física ou material alheia, e mesmo sem justificar a intranquilidade dos transeuntes.
Trata-se, portanto, de excepções muito deploráveis e que importa contrariar tanto quanto possível, atendendo às suas consequências, sempre sérias, e que podem ser gravíssimas.
Li que o ilustre titular das Comunicações, sempre atento aos importantes problemas na alçada da sua pasta e, portanto, aos relacionados com a circulação nas vias públicas, ordenou a rigorosa execução de preceitos do Código da Estrada ali introduzidos justamente para evitar as referidas insuficiências ou desmandos.
É no artigo 152.º do Código da Estrada que se encontram algumas das principais disposições no sentido indicado.
Se V. Ex.ª permite, eu leio o respectivo texto:
Ao condutor que pela segunda vez cometa atropelamento ou cause desastre grave, provando-se que transgrediu qualquer das disposições relativas ao trânsito, será pelo Conselho Superior de Viação cassada a respectiva carta de condutor, ficando inibido de conduzir automóveis por período não superior a um ano; e à terceira vez, e em iguais circunstâncias, ser-lhe-á apreendida a carta por período não superior a cinco anos.
a) Aquelas suspensões do direito de conduzir não livram o delinquente de outras penalidades em que esteja incurso;
b) Aos condutores que na via pública atropelarem alguém e não pararem imediatamente para prestar socorros, bem como aos que forem conde-
Página 173
21 DE JANEIRO DE 1948 173
nados por embriaguez, roubo, abuso de confiança ou burla, serão cassadas as cartas, por um período que não exceda cinco anos, pelo Conselho Superior de Viação;
c) Também o mesmo Conselho poderá deliberar cassar a carta, por períodos até um ano, aos condutores que, embora não causem atropelamentos e não pratiquem graves infracções, abusem imprudentemente de velocidade e de arriscadas manobras, cometam frequentes transgressões ou de cuja competência tenha dúvidas.
A alínea anterior só terá efectivação se o condutor, depois de avisado pelo Conselho Superior de Viação, reincidir na prática dos actos por este apontados.
Logo a seguir, isto é, no artigo 153.º, figura uma disposição que é garantia de que os condutores têm de estar sempre física e mentalmente íntegros.
É do teor seguinte:
O Conselho Superior de Viação ó competente para ordenar a reinspecção médica dos condutores de cuja integridade ou robustez física ou mental suspeite e cassar-lhes as cartas temporária ou definitivamente, conforme os casos.
E no artigo 154.º, para garantia da indispensável equidade na aplicação daqueles preceitos, estabeleceu-se o seguinte:
Em todos os casos de inabilidade para conduzir resultantes de terem sido mandadas cassar cartas, de condutor pelo Conselho Superior de Viação haverá a faculdade de recurso para o Ministro do Comércio e Comunicações.
Sr. Presidente: pelo que acabo de expor e de ler, e tudo aquilo conjugado com a intervenção inteligente e vigilante da guarda das estradas, também criada pelo mencionado Código da Estrada, de 1930, as irregularidades no trânsito a que me referi podem e devem ser reduzidas ao mínimo.
O que importa é a aplicação criteriosa e perseverante de todas aquelas disposições, de modo a que resultem eficazes, mas que não sirvam de pretexto para incomodar e prejudicar condutores que pela primeira vez transgridem, e muitas vezes em circunstâncias de importância mínima, obrigando-os a grandes deslocações, com a correspondente perda de tempo, para obedecerem a intimações que poderiam ser dispensadas quase sempre e privando-os, fora dos termos e do espirito da lei, da respectiva licença de condutor, sem atender a que o automóvel, em 99 por cento dos casos, ou é o único ganha-pão dos seus proprietários ou precioso instrumento de trabalho e, como tal, indispensável colaborador de médicos, engenheiros, advogados, lavradores e tantos outros que não podem parar na dura luta pela vida.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Henrique Galvão: - Sr. Presidente: neste ano de 1948, precisamente em l5 de Agosto, contar-se-ão três séculos sobre a reconquista de Angola pela armada de Salvador Correia de Sá e Benevides.
O facto e a data não são menos comoventes nem menos fulgurantes na História do que a própria descoberta das primeiras terras de Angola por Diogo Cão.
Não farei aos sentimentos de VV. Ex.ªs a injúria de consumir tempo e palavras a pretender demonstrar, através de digressão histórica, o valor sentimental e patriótico desta data; nem a mim próprio perdoaria a fraqueza de explorar em retórica fácil e gasta pelo seu uso imoderado a espiritualidade de um acontecimento cuja dignidade deve ser intangível.
Demais, se de facto são cada vez mais raros os portugueses ilustres que sabem o que em verdade se passa actualmente nas colónias, são numerosíssimos aqueles que não ignoram o que por lá aconteceu há muitos séculos!
Assinalarei apenas que a colónia, reconquistada em Luanda há trezentos anos, é hoje a mais bela e valiosa província do Império e que, como tal, ganhou personalidade e espírito que perfeitamente se podem nivelar em correspondência com a personalidade e o espírito de qualquer província metropolitana.
Ora esta colónia portuguesíssima e que, apesar da clareza com que se manifesta, parece não ser compreendida em certos meios da metrópole, demasiadamente afastados das suas realidades, lamenta que este tricentenário, por tantos títulos glorioso, não seja comemorado em Angola e em todo o Império tão condignamente quanto o desejou e concebeu.
Desejaria a colónia - e por essa ideia se manifestou muito oportunamente - que este ano de 1948 ficasse, em memória do facto histórico de 1648, assinalado mais por uma série de realizações e medidas, cujo interesse prático séria sentimentalmente elevado a puros níveis de puro patriotismo pela espiritualidade natural do próprio acontecimento a comemorar - medidas e realizações estudadas e reclamadas há anos e que não sofreriam oposição de ninguém - , do que por simples fachadas festivas, com os seus números de formulário banalizados pela repetição, e manifestações retóricas, cujo conteúdo, por mais eloquente e sincero, já não alcança, com o calor de outrora, só por si, as almas simples do povo. Quereria, enfim, que as manifestações puramente sentimentais, simbólicas ou representativas, que facilmente se organizam e fàcilmente se esquecem, constituíssem apenas o quadro de manifestações realizadoras respondendo à, capacidade progressiva da colónia no rumo dos seus destinos portugueses.
E, naturalmente com intuitos políticos claros, desejaria também que tais manifestações, as gentes, terras e problemas da colónia gozassem da presença e observação de metropolitanos de escol que ainda não conheçam as colónias e cuja consciência nacional precisa formar-se e documentar-se acerca do ultramar, para que possa dizer-se e ser verdadeiramente portuguesa e verdadeiramente útil. Presença e observação que, além de outras vantagens de largo alcance, muito contribuiriam para eliminar para todo o sempre o lamentável equívoco político tão frequentemente aceso na metrópole acerca de Angola - e que alguns especuladores alimentam com objectivos certamente pouco confessáveis.
A avaliar pelo que se diz em voz alta - se diz e se publica!- acerca de coisas e gentes de Angola em certos meios políticos ou influentes na política - os meios em que normalmente se acende e sopra a intranquilidade política que tantas vezes perturba os espíritos e embaraça a Administração, meios em que concorrem ortodoxos ou falsos ortodoxos de todas as cores e cambiantes - esta colónia seria um foco trepidante de gentes irrequietas e subversivas, com sentimentos e ideias políticas sistemàticamente oposicionistas, ingovernável.
Ainda recentemente se ergueram, em letra de forma, num jornal de Lisboa, acusações nítidas a esse respeito - acusações que visaram não somente a colónia no seu conjunto moral e espiritual, como também pessoas respeitáveis por muitos títulos, autênticos valores de Angola, aos quais a colónia e o País devem assinalados serviços.
Página 174
174 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
Não cuido de saber - e respondo imediatamente à objecção que está no espírito de certos ortodoxos- se o credo político de algumas dessas pessoas é igual ou oposto ao meu - digamos ao nosso. Mas sei, através do contacto intenso e constante que mantenho com as coisas e gentes da colónia, que nenhum dos visados é menos português do que eu, que nenhum quer menos que eu à colónia onde trabalha e ao país a que pertence e que, mesmo aqueles que ideològicamente se encontram do outro lado da trincheira, os tenho como adversários políticos, sim, mas sem razão objectiva alguma que me permita considerá-los inimigos. Ao contrário: honro-me com a amizade de alguns.
E nada tem de extraordinário, pois em boa verdade verifico que é entre o regime que sirvo, e não entre os meus adversários políticos, que alinham os meus inimigos.
Ao jornal referido, e em defesa do mais ilustre e venerando dos visados, e que, apesar de uma vida inteira santamente devotada ao serviço de Portugal em Angola, nem depois de morto - o seu cadáver ainda quente! - escapou ao ódio e ao espírito de intriga dos especuladores desse equívoco entre a metrópole e Angola -, a esse jornal que teve a desdita de dar guarida a tão venenosos dislates, já respondeu, galharda e brilhantemente alguém que não pode ser tido como suspeito de figurar entre inimigos ou adversários do regime: o ilustre prelado de Angola, arcebispo de Luanda, D. Moisés Alves de Pinho.
Tentarei, por minha parte, explicar o equívoco e mostrar a verdade que por detrás dele se encontra - menos para responder a caluniadores, e intriguistas do que para contribuir, junto dos espíritos inadvertidos, para que se esclareça de vez, neste 300.º ano da reconquista de Angola, uma situação cujas névoas não podem nem devem subsistir, a bem do País, da colónia e do regime.
Acusa-se Angola - e, como disse, em voz alta, que se documenta em boatos, que ressumam dos cafés e das esquinas de paleio - de irrequietismo quase permanente. E classifica-se tal irrequietismo como manifestações de rebeldia ou oposição ao regime, atribuindo-lhe os mesmos significado e expressão políticos que marcam, na metrópole, a fisionomia oposicionista dos partidos. E golfa-se a grande frase: «O Estado Novo ainda não chegou a Angola».
Nada mais falso nem mais oposto à maneira de ser psicológica e moral da colónia. Nada que mais claramente revele o desconhecimento, a incompreensão - ia dizer ou a estupidez - daqueles que armam e disparam estas atoardas!
É caso para dizer: se fossem eles os portadores do Estado Novo para Angola, nunca lá chegaria com certeza, porque o deixariam cair ao mar. Na verdade, só o comprometeram quando se apresentaram como seus agentes - oficiosos e dedicadíssimos, naturalmente.
Não há irrequietismo em Angola. Ao contrário: trabalha-se na colónia como nunca se trabalhou - e em termos de se poder dar lições a muitos meios da metrópole. E se algum dia, já distante, o irrequietismo ferveu, todos o sabemos: não foram os colonos que acenderam o lume. Também não há, confessados ou não, propósitos políticos oposicionistas.
Não podem dizer-se manifestações de irrequietismo - até porque se têm produzido com impecável correcção, mesmo quando foram mais vivas - as queixas da colónia contra a falta de reciprocidade por parte da metrópole nos sacrifícios pesadíssimos que faz como sua fornecedora; as suas lamentações quanto aos embaraços e prejuízos que causa aos colonos o funcionamento dos organismos de coordenação económica; as suas representações quanto à insuficiência dos serviços técnicos; as suas amarguras contra a burocratização da administração; as suas dificuldades contra um problema de mão-de-obra que se mantém sem ataque; os seus reparos contra os métodos de selecção de valores, etc.
E não se pode supor que sejam propósitos oposicionistas que movimentam estas manifestações de opinião, porque a colónia, ao mesmo tempo, nunca deixou de louvar e aplaudir - por vezes entusiàsticamente (haja em vista a sua atitude perante o governo do comandante Álvaro de Freitas Morna) - todos os esforços construtivos, todas as realizações visíveis, toda a sinceridade bem intencionada, a obra, enfim, que durante os últimos vinte anos se tem erguido vigorosamente sobre a paisagem, menos expressiva, de outras obras que não se fizeram, de problemas que não foram enfrentados ou de erros que ainda não se repararam. E também nunca negou aos governantes do regime (pelo contrário) nem créditos quase ilimitados de confiança à sua chegada nem boa colaboração a seguir - e isto apesar das falhas e mediocridade muito sensíveis que caracterizaram o governo de alguns.
É preciso realmente ter memória frágil! Como apodar de irrequieta e sistemàticamente oposicionista uma colónia que tão heróica, disciplinada e patriòticamente, com tanta fé, persistência e apego ao torrão, suportou, a pé firme (precisamente durante o mesmo período em que os colonos belgas debandavam do Congo) os espantosos sacrifícios que lhe impuseram ao mesmo tempo a crise económica resultante da grande guerra e o esforço para o seu ressurgimento financeiro e económico?
Também não se verifica oposicionismo político - tal como esta expressão se entende nos meios políticos e não políticos da metrópole. Nem a política lá tem a mesma feição e determinantes nem se articula e move sobre os mesmos fulcros.
Os conflitos ideológicos em que o país europeu - podia dizer uma grande parte do Mundo - por vezes se debate, semeando, em terreno de paixões e ideias de violência, ódios que reclamam sangue e tragédia, não se cultivam nem encontrariam ambiente propício em nenhuma das nossas colónias. Não são as ideologias políticas, criadoras e sustentáculos das oposições sistemáticas, que em Angola ou em quaisquer outras colónias portuguesas juntam ou dividem os homens, movem ou desorientam as opiniões, perturbam ou deixam de perturbar os espíritos. Falta-lhes o clima propício.
Por um lado, não medram por lá (e oxalá não medrem durante muitos e dilatados anos) os ociosos, profissionais da baixa política ideológica, cuja existência se garante à custa das próprias intrigas que armam e alimentam.
Por outro lado, trabalha-se muito e amo falta trabalho para todos - e cada um, por instinto, por falta de tempo, pelo domínio de outras razões mais directas, confia mais no próprio esforço do que nos filtros dessa política que conduz aos ódios subversivos e à intranquilidade permanente.
Isto não quer dizer, evidentemente, que não haja na colónia, e em todas as colónias, professos de diferentes ideologias, que não escondem o seu pensamento e que desejariam os regimes e os Governos que correspondem aos seus credos políticos. Mas nem constituem número apreciável, nem nenhum se pode dizer ou confessar activo em política. Têm mais que fazer - e toda a sua acção se resume a intervenções esporádicas, mais reaccionárias que activas, durante efémeros momentos políticos suscitados por acontecimentos na metrópole ou eleições.
E também não quer dizer que não haja e não se incendeiem na colónia grandes e pequenas paixões que agitam os homens e inquietam as suas sociedades, mis tudo isso é do domínio do económico, e não do político.
Página 175
21 DE JANEIRO DE 1948 175
Será puro erro ver nessa agitação qualquer fundo ideológico de carácter sistemàticamente oposicionista.
Tem sido este o erro que tem alimentado o equívoco a que há pouco me referi - o erro que conduziu a tentar transplantar-se para as colónias, sem atenção nem adaptação às realidades morais, espirituais e sociais, métodos de organização, propaganda e atracção políticas que haviam de falhar por falta de clima. O erro dos que não entenderam - tão-pouco conheciam as sociedades coloniais! - que os êxitos políticos que na metrópole alcançam certas palavras que suam das ideologias nas colónias só os obtêm as obras, realizações, ideias precisas, que correspondem às ansiedades económicas da maioria. Erro tanto maior quanto é certo que foram, por vezes, admitidos a colaborar nele alguns dos tais profissionais da baixa política, importados à pressa da metrópole, também por insubsistentes, razões políticas, e cujos fracassos aparatosos os conduziram para as atitudes irritantes e para os juízos sem conteúdo sério. Não perceberam muitos desses agentes que prestavam péssimo serviço ao regime com os seus figurinos excessivamente metropolitanos. E só não o comprometeram porque a colónia também os não tomou a sério.
Poderia citar, em abono do que afirmo, numerosos factos, bem mais claros e visíveis que os estafados argumentos de uma intriga com que alguns indesejáveis pretendem envenenar o bom entendimento entre o Governo Central e os colonos - porventura entre a própria Nação e a colónia, iludindo aquela e caluniando este.
Cito apenas três dos mais impressionantes e que bastam, na sua eloquência espontânea, para reduzir a nada quaisquer boatos e calúnias.
Primeiro: as nossas populações indígenas de Angola e Moçambique vivem em paz social tão invejável e perfeita que os nossos trabalhadores são activamente procurados e atraídos por todos os meios de propaganda pró-emigração pelas organizações patronais das colónias vizinhas, nas quais as perturbações sociais causam aos governos respectivos as maiores preocupações. Grande parte desses trabalhadores - hoje os melhores de toda a África Central - vai e não volta contaminada.
Poderá alguém que conheça um pouco o que a este respeito se está passando em África e a sensibilidade das populações indígenas ao comportamento político e social das populações brancas negar que esta situação seria impossível se os colonos de Angola se encontrassem, visível ou encapotadamente, em oposição ideológica ao Governo do seu País?
Que excelente clima para oposicionistas só Angola produzisse oposicionistas deste género!
Segundo: poderá alguém negar que a colónia tenha deixado de aplaudir - e por vezes com particular entusiasmo - as obras do regime que contribuíram para o seu progresso e, em especial, o seu ressurgimento financeiro? Onde viu alguém em Angola, como se vê todos os dias na metrópole e em tantos países da Europa, a oposição sistemática a unia medida sem outra consideração que não seja a da chancela política ou ideológica que traz? E quem distinguiu em tantas e tão calorosas manifestações feitas por Angola a governantes do regime - ainda recentemente o facto impressionante da despedida ao governador Lopes Alves -, quem distinguiu na massa entusiástica ou simplesmente polida outra coisa que não fossem colonos animados de puros e vivos sentimentos portugueses? E onde seria possível na metrópole, em meios políticos, verificar a normalidade de boas relações pessoais, por vezes muito íntimas, entre indivíduos separados por ideologias diferentes, como correntemente se verifica em Angola?
Finalmente: invoco o testemunho, sobre todos insuspeito, de S. Ex.ª o Presidente da República e de quantos o acompanharam nas suas viagens às colónias.
Onde, senão em Angola, atingiu S. Ex.ª o momento de culminância triunfal destas viagens? E tão triunfal que a população indígena e não indígena, em massas cerradas, em bloco único e impecàvelmente homogéneo de portugueses, rompeu todos os obstáculos da organização oficial, quebrou a rigidez do protocolo, esfrangalhou os cordões da polícia, transpôs, enfim, todas essas forças que se organizam para conter as torrentes do povo e que só não são frágeis quando os entusiasmos não são escaldantes.
S. Exa. poderá dizer que viu, de facto, uma colónia inteira, irrequieta, insubordinada, lutando com a polícia - mas apenas para o abraçar.
Sr. Presidente: cuido que não é necessário ir mais além. E cuido também que não foi descabido, a primeira vez que nesta Assembleia se faz uma referência à data próxima do terceiro centenário da reconquista de Angola, procurar esclarecer um equívoco grave e irritante, maldosamente tecido, em vez de colher a oportunidade para pronunciar acerca do acontecimento as palavras de exaltação patriótica que os sentimentos portugueses e a inteligência dos meus ilustres colegas teriam por redundantes.
E acabarei como principiei: Angola desejaria que este ano de 1948 ficasse assinalado menos por palavras e actos simbólicos do que por obras e medidas comemorativas.
A escassez de tempo paia a necessária preparação já não consente que se realize o programa que melhor corresponderia às aspirações da colónia.
Mas é talvez possível ainda satisfazer estoutro desejo: fazer visitar a colónia por um grupo de portugueses de escol, estudiosos e observadores - altos valores da Nação que, ao mesmo tempo que auscultariam os seus problemas mais palpitantes e dariam o concurso da sua presença muito útil e significativa às festas comemorativas, poderiam no regresso vir assegurar à metrópole, contra todas as intrigas e todos os equívocos, que Angola continua a ser a mais portuguesa da todas as colónias, um exemplo confortante de trabalho e de ordem e também uma província com espírito, personalidade e ideias próprias, que mais não pretende senão ser bem governada e bem conduzida.
E verifiquem aqueles que dizem que o Estado Novo não chegou a Angola se eles próprios são bastante fiéis e bastante puros para o poderem avaliar!
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão, na generalidade, o projecto de lei n.º 177, sobre alterações ao artigo 29.º do decreto n.º 28:652 (julgamento de reclamações em matéria de hidráulica agrícola).
Tem a palavra o Sr. Deputado Melo Machado.
O Sr. Melo Machado: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: as minhas primeiras palavras de hoje são para apresentar a VV. Ex.ªs as minhas desculpas pela minha falta na última sessão. Já as apresentei, com as razões que a explicavam, ao Sr. Presidente; todavia, não quis escusar-me de as apresentar a VV. Ex.ªs, na certeza de que a muita benevolência e simpatia que me têm dis-
Página 176
176 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
pensado serão suficientes para perdoarem quem, não costumando faltar, faltou no único dia em que não deveria ter faltado.
Sr. Presidente: eu sou um velho lutador pela hidráulica agrícola, não contra ela. Se das minhas intervenções amiudadas sobre este assunto resultasse para alguém a convicção de que eu era contra a hidráulica agrícola, posso afirmar a VV. Ex.ªs que isso me daria um profundo desgosto. Na verdade, Sr. Presidente, quem, sendo estruturalmente agrícola, poderá ser contra a rega? Quem, neste país de invernos chuvosos, extremamente chuvosos, e primaveras secas e ventosas, não compreenderá a indispensabilidade da rega?
É evidente, por consequência, que eu não podia ser de modo algum contra a hidráulica agrícola. Se queremos continuar a alimentar convenientemente o acréscimo da nossa população, se queremos extinguir, tanto quanto possível, o déficit dos nossos produtos agrícolas essenciais, é evidente que temos de recorrer à irrigação. O plano de obras de hidráulica agrícola propõe-se irrigar nada menos de 125:000 hectares e produzir 500.000:000 de kW, o que não é para desprezar. Não podemos limitar-nos, evidentemente, ao pequeno regadio, tão útil; onde quer que se possam implantar as grandes obras de hidráulica agrícola, temos de recorrer a elas.
Como foi então que, com esta ideia, eu pude impugnar a lei n.º 1:949, que foi votada nesta Assembleia em 1937? Devo recordar que a minha atitude nesse tempo causou uma certa surpresa.
Eu tinha na minha imaginação aquelas promessas constantes que sempre fizeram neste País os políticos durante muito tempo, que se sintetizavam nesta expressão: irrigação do Alentejo. E isto não tinha nenhum fundamento, não tinha atrás de si nenhum estudo; era nada mais que um bluff político, mas todavia consubstanciava uma aspiração.
Estava no consenso comum a necessidade de aproveitar as águas dos nossos rios para irrigar os nossos campos. E os políticos sobre esta justa aspiração sintetizavam tudo na expressão «irrigação do Alentejo». E sempre que havia eleições esta frase aparecia como uma bandeira, como uma esperança, como uma ilusão que era indispensável conservar para amimar.
Quando apareceu a proposta de lei nesta Assembleia eu fiquei radiante, fiquei contentíssimo, porque ia finalmente ver realizada uma obra que todos aqueles que se dedicam à agricultura julgavam indispensável.
Tendo a certeza de que o Estado Novo não deixaria de cumprir as suas promessas, o facto de vir a esta Assembleia uma lei sobre hidráulica agrícola dava-nos a certeza de que esse problema havia de ser resolvido. Cheio deste entusiasmo, desta boa vontade, deste desejo de cooperar numa obra admirável que eu reputava indispensável, procurei estudá-la conscienciosamente, para poder dizer da minha justiça.
Para tanto fui até Algés, onde estava localizada - e onde ainda está - a Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola, e ali, muito amàvelmente, como sempre, me foi fornecido o primeiro relatório.
Percorridas com atenção as suas páginas, confrontado com o texto da lei, ficou no meu espírito a convicção de que todas aquelas exigências que se faziam aos proprietários eram incomportáveis para as suas possibilidades e, porque estava convencido disso, vim a esta tribuna e fiz um ataque cerrado a essa parte da proposta de lei que, a meu ver, poderia tornar menos apetecida, poderia tornar antipática e mais difìcilmente exequível essa lei admirável por que todo o País esperava e por cujas consequências todos nós estávamos ansiosos.
Essa minha atitude causou nesse momento, em que ainda esta Assembleia - estava-se na I Legislatura - não se acostumara a ouvir palavras de oposição, causou, dizia eu, uma certa sensação.
Lembro-me muito bem de que, quando nos dirigíamos às sessões de estudo - e tenho pena que elas tivessem acabado-, se me dizia: então V., que é da oposição, não vem?
Ora eu não era da oposição por ser, não era da oposição pelo prazer de contrariar; eu era da oposição simplesmente porque estava convencido de que com aquelas exigências a lei havia de caminhar difìcilmente. Suponho que não estava em erro; ainda hoje me sinto convencido de que não estava em erro.
Tenho na minha frente o último relatório da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola. É o relatório de 1945 e suponho que não há mais nenhum publicado, porque mais nenhum me foi enviado.
Devo dizer a VV. Ex.ªs, Srs. Deputados, que os relatórios daquela Junta se podem ler com inteira confiança; neles está a verdade dos factos, neles nada se sofisma e nada se oculta.
Tudo aquilo, Sr. Presidente, que tenho podido dizer a favor ou contra a hidráulica agrícola encontrei-o nos seus relatórios. Como testemunho vivo de que estes relatórios são feitos sem tentar ocultar nada, nem pintar com coreis diferentes aquilo que se passa, tenho muito gosto em afirmar aqui esta verdade.
Diz-se a p. 33 - permita-me V. Ex.ª, Sr. Presidente, que eu leia - o seguinte:
Já se tem dito, em queixume, que o Estado faz uma excelente operação financeira com as obras de hidráulica agrícola e hidroeléctrica simultâneas, porque, não só recebe bons juros do capital que abona, mas aumenta grandemente este próprio juro com o acréscimo das contribuições.
Ora, Sr. Presidente, quem disse isto fui eu, e vou demonstrar a VV. Ex.ªs que tinha razão para o dizer. Mais adiante diz o mesmo relatório:
E porque, quanto a estes, o que o Estado tem feito pela hidráulica agrícola é sòmente torná-los justos, com o cadastro cuidadosamente estudado, que informa os rendimentos colectáveis, aqui deixamos o esclarecimento, pormenorizadamente obtido, de que na obra de Loures o valor médio colectável por hectare, para depois da beneficiação, é de 141$47, enquanto o das secções de finanças respectivas, para antes da obra, era já igual a 363$59, ou seja mais de duas vezes e meia superior ao da actual base das contribuições.
Explica-se numa página atrás que matrizes que davam lugar a estas contribuições tinham base numa avaliação de há mais de cem anos e acréscimos de sucessivas actualizações, numa progressão directa do avanço da ruína da riqueza da lezíria, pela falta de enxugo e defesa. Quer dizer: os campos de Loures deviam ter sido em tempos remotos uma região feracíssima. Simplesmente, com o tempo os rios foram-se assoreando, transformando-os em pântanos improdutivos.
Todavia o fisco, agachado atrás da sua indiferença granítica para toda e qualquer alteração económica que possa prejudicá-lo, continuava a pôr alcavalas sobre alcavalas nas contribuições de propriedades que se achavam desvalorizadas.
Quando, finalmente, a obra de hidráulica agrícola foi pôr ordem no que era desordem e tornar produtivo o que era improdutivo, reconheceu que aquilo que pagava 300 e tal escudos de contribuição não devia pagar, depois de estar em possibilidade de entrar em plena cultura, mais do que 149 e tal escudos.
Página 177
21 DE JANEIRO DE 1948 177
E quando às vezes me insurjo aqui contra estes factos VV. Ex.ªs têm um sorriso que corresponde mais ou menos a dizer: cá vem este. maçador, que tem pelo fisco uma quezília especial, a manifestá-lo com o costumado azedume!
Vozes: - Não apoiado!
O Orador: - Mas isto, Sr. Presidente, que sucedeu com os campos de Loures é um caso virgem. Não se encontra mais nada deste género. Basta voltar uma página deste relatório e ver o que se passa com relação à obra de Burgães, que peço licença para ler:
A estes rendimentos colectáveis de antes e depois da obra correspondem os encargos de contribuições e impostos iguais a 89$41 para antes da obra e 528$ para depois.
Quer dizer: a módica quantia de 438$59 de aumento de contribuição por hectare.
Ora este número só por si pode não impressionar suficientemente VV. Ex.ªs, mas se o cotejarmos com este outro de 972$, que representa a taxa de rega e beneficiação, e que engloba o pagamento de obra e os respectivos juros, verificar-se-á que existe uma duplicação ou triplicação do juro que o Estado recebe.
Já vêem VV. Ex.ªs que eu tinha alguma razão quando dizia que os encargos que recaíam sobre os proprietários, por virtude das obras de hidráulica agrícola, eram excessivamente pesados.
Sr. Presidente: isto justifica o que depois se passou, e foi o seguinte: esperei pacientemente a realização das obras de hidráulica agrícola, esperei pacientemente pelos seus resultados e, quando pude verificar os clamores que surgiam de todos os lados, apresentei o meu aviso prévio, que entreteve esta Câmara durante bastante tempo, para demonstração de tudo aquilo que eu tinha aqui afirmado.
As obras saíram caras; nada mais natural. Os nossos engenheiros não tinham prática de obras desta natureza. A aprendizagem é sempre uma coisa cara em qualquer parte. O que me parece que não era lógico era impor a obrigação aos produtores de pagar integralmente o custo das obras, acrescido por causa de deficiências que, aliás, se encontram referidas nos relatórios da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola.
As obras que se fizeram tinham esta razão para serem caras: ainda não estava a máquina devidamente apetrechada, havia uma larga aprendizagem a realizar. As dificuldades de início de uma obra difícil e de grande vulto são naturalmente compreensíveis. As dificuldades para as obras que ainda estão a ser executadas são de outra natureza.
Lê-se a p. 79 deste relatório a seguinte afirmação:
Mas, não obstante o esforço de todos, a realidade ultrapassou, em agravamento de custos, tudo que no período de 1944 se podia antever.
E que, além das deficiências próprias na condução de tão grandes empreendimentos, como são, na hora actual, os de hidráulica agrícola, e dos aumentos infindáveis do custo dos materiais, há três coisas que mormente influíram e continuam a influir e a pesar no agravamento do custo das obras: em primeiro lugar o fraco rendimento do operário, por carência de alimentação suficiente e adequada; depois a falta de peças de renovação de máquinas e ferramentas, e depois ainda, e muito, as horas perdidas com camionetas do Estado paradas por falta de pneus e a consequente desorganização dos transportes das obras.
Se formos, Sr. Presidente, a responsabilizar aqueles que depois hão-de utilizar estas obras por estas deficiências, que não são de sua culpa, é evidente que a economia agrícola as não pode suportar.
Não obstante, Sr. Presidente, suponho que a agitação regular que tenho dado a este assunto e o conhecimento mais directo das reclamações dos proprietários têm trazido um outro clima a este assunto.
E hoje já se compreende que há uma parte dessas obras que tem de ficar à conta do Estado.
Já se admite que o proprietário deva pagar só aquilo que pode efectivamente pagar e que o resto o Estado suportará sem prejuízo, e era isso que eu dizia também quando aqui me ocupei desta questão.
Tenho aqui atrás, a p. 13, uma afirmação curiosa neste mesmo relatório, que é quase um alcorão e que confirma este modo de ver.
O Estado então (se os beneficiários não podem pagar integralmente toda a obra) terá de se contentar somente com os resultados mediatos, que, todavia, muito grandes são sempre. Exemplo: na obra de rega feita pelo Governo da África do Sul para beneficiar 408:685 hectares, conforme a previsão de 1930, na qual em 1938 já estavam despendidos, 15,5 milhões de libras, dela se diz: «pelo menos, 75 por cento do dispêndio foi prejuízo financeiro, mas sabe-se que os resultados indirectos são inteiramente encorajadores.
É evidente, meus senhores, que do aumento de produção, quando esse aumento é sensível, resulta o desenvolvimento de todas as actividades afins.
Por consequência o Estado recebe aumento de contribuição de todas as actividades que se ligam e que estão em correlação com o desenvolvimento agrícola, vindo a ressarcir-se fàcilmente do prejuízo que possa ter e que todavia concorre para o desenvolvimento da economia nacional.
Diz-se, Sr. Presidente, que já há da parte dos beneficiados pelas obras já realizadas uma melhor compreensão da sua utilidade e até que há uma dessas obras para a qual já foi proposto o resgate.
Mas isto, que parece ser contra a minha maneira de ver, é, ao contrário, a favor dela. Eu explico a VV. Ex.ªs porquê.
Porque se realizou esta modificação e porque é já possível haver quem proponha o resgate?
É que essas obras, que eram caras há alguns anos, já estão baratas com a desvalorização da moeda e, consequentemente, em algum caso especial, em condições de poderem ser resgatadas.
É evidente que a ideia de resgate já pode aparecer quando a obra é economicamente comportável e há, consequentemente, vantagem em liquidá-la.
Nenhuma das cinco obras já realizadas, uma das quais é meramente de enxugo - a de Loures -, outra de enxugo e de rega e as três restantes de rega, têm «infelizmente» aproveitamento hidroeléctrico. E digo «infelizmente» porque assim não posso ter a ideia da influência que podia ter na economia destas obras a produção de electricidade.
Suponho que as consequências da existência desse aproveitamento devem ser muito grandes e muito interessantes, mas a verdade é que essas obras o não contêm e não dão assim esse índice de extremo interesse para se poder apreciar esta questão.
Podem VV. Ex.ªs verificar que o parecer da Câmara Corporativa - parecer que é a fotografia de um carácter - é de aplauso completo à minha iniciativa, e se VV. Ex.ªs notarem que este parecer é subscrito pelo presidente da Junta Autónoma das Obras de Hidráulica
Página 178
178 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 126
Agrícola, como relator, e que S. Ex.ª não conserva nenhuma reserva dos aborrecimentos ou das contrariedades que lhe possam ter trazido as minhas intervenções neste assunto e que, pelo contrário, com o melhor da sua imparcialidade e isenção, relatou este parecer com toda a simpatia, por entender que o meu projecto vem facilitar a resolução justa de um assunto que a vinha reclamando, hão-de concordar comigo em que S. Ex.ª demonstra ter um espírito justo e clarividente e que, apesar de todo o amor e interesse que tem pela sua obra, não se deixa cegar por ela, mas antes se apresta a emendar tudo aquilo que reconheça que deve ser emendado.
Se VV. Ex.ªs consultarem este parecer, verificarão a demora que houve em estabelecer as associações de regantes, demora que vai de dois a sete anos.
O Sr. Homem de Melo: - V. Ex.ª pode explicar à Assembleia as razões dessa demora?
O Orador: - Poderei dizer o que sei.
O Sr. Homem de Melo: - É que as associações de regantes têm de ser presididas por um técnico especialmente designado para esse fim. Ora, como as obras se têm amontoado e os técnicos não se podem desviar de outros serviços, pois a sua falta é manifesta, fatalmente há-de suceder isso, com prejuízo evidente para as obras de hidráulica agrícola.
O Orador: - Eu suponho que, além dessa razão, que eu ignorava, havia outra, e quando digo «suponho» posso dizer: tenho a certeza. Tenho estado em contacto com muitos interessados neste assunto, não porque eu os procure, mas porque eles me procuram a mim, e a razão por que eles não queriam constituir as associações de regantes é que estavam desconfiados com elas ou tinham medo de assumir as responsabilidades que lhes eram imputadas através dessas associações. Ora esta desconfiança é que me parece que é absolutamente necessário extinguir, porque uma obra de tanta importância como esta, cujos resultados podem ser tão benéficos para a economia nacional, uma obra que deve encontrar a melhor compreensão em todos os lavradores deste País que possam ser submetidos à sua influência, não se compreende por que razão há-de encontrar, pelo contrário, este regime de desconfiança em que se tem vivido. Digo que se inicialmente não tivesse havido a preocupação de ràpidamente fazer voltar ao Estado todo o dinheiro que se gastou, com os respectivos juros e aumentos de contribuições, o Estado poderia talvez realizar uma operação menos feliz, menos interessante financeiramente, mas, seguramente, os resultados finais seriam mais convenientes no aspecto geral, porque todos teriam aceitado de boa mente esta lei e a sua execução, e seriam eles os primeiros paladinos dessa obra, em lugar de serem os seus detractores.
E, já que falo em confiança, quero citar a VV. Ex.ªs um facto que se passa e que não me parece conducente à existência dessa confiança de que eu vinha falando.
Sucede que está quase praticamente realizada a obra de rega da campina da Idanha. Sucede, Sr. Presidente, que essa obra, ao contrário do que tem sucedido noutros sítios, tinha ali um ambiente de simpatia e de carinho.
Mas sucede também este caso estranho, Sr. Presidente: surgiu sobre esses, proprietários uma no vá ameaça, que se me afigura particularmente grave. Diz-se que os terrenos beneficiados por essa obra vão ser expropriados para que neles a Junta de Colonização Interna implante uma das suas obras. Daqui resulta o seguinte: pessoas que por necessidade precisam vender não encontram quem compre terrenos que estão debaixo da ameaça de expropriação.
Há quem queira prosseguir em cuidar amorosamente da sua propriedade, mas não teu li a coragem de continuar a investir nela quantias importantes, visto que sobre as mesmas impende a ameaça de uma expropriação.
A lei n.º 1:949 consigna, na sua base XIII, este princípio:
É obrigatória a- utilização da água de rega nas áreas, beneficiadas pelos canais em exploração, ficando o Governo autorizado a expropriar os terrenos, pelo valor que tinham antes da obra, acrescido da capitalização das anuidades já pagas, se os proprietários a não utilizarem.
É certo que na base XIV se diz:
Quando, por motivos superiores de ordem económica e social, o Governo reconhecer a necessidade de modificar o regime de exploração das terras irrigadas ou destinadas à irrigação, poderá reduzidas ao domínio privado do Estado, para seu parcelamento ou comparcelamento, mediante justa indemnização pelo valor que tiverem nesse momento.
Todavia, não há dúvida de que o primeiro pensamento, a primeira ideia, é de que esses terrenos só poderão ser expropriados se os beneficiários não quiserem utilizar a água; mas eu reputo altamente inconveniente o fazer impender sobre criaturas que desejam utilizar a obra de rega o perigo, o desgosto e o prejuízo de uma expropriação.
É mais uma razão de desconfiança que se vai lançar sobre esta obra, e amanhã, em qualquer região que seja sujeita ao regime de hidráulica agrícola, pode imediatamente nascer a suspeita de que os terrenos podem vir a ser expropriados.
E eu julgo que não há necessidade de fazer isto na campina da Idanha, aliás local extremamente interessante, pela natureza do seu clima, onde me dizem que é possível criar milho em pouco mais de dois meses e meio, graças à sua temperatura no verão.
A grande massa de terrenos pertence a dois proprietários, que não podem evidentemente irrigar toda a terra. De maneira que não faltaria espaço à Junta de Colonização Interna para realizar a sua acção, e como ela se sujeita ao feitio que têm os baldios, porque se não há-de sujeitar à figura geométrica que resultar dos terrenos depois de ter conservado cada qual o terreno que lhe pertence e queira regar?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Melo Machado: como a hora vai adiantada eu desejava encerrar a sessão. Pergunto se V. Ex.ª deseja terminar as considerações ou se deseja ficar com a palavra reservada para a sessão de amanhã.
O Orador: - Agradecia a V. Ex.ª que me reservasse a palavra, visto que ainda tenho algumas considerações a fazer.
O Sr. Presidente: - Então fica V. Ex.ª com a palavra reservada; e, antes de encerrar a sessão, convoco a Comissão de Política e Administração Geral e Local para amanhã, depois da sessão.
A próxima sessão será amanhã, com a mesma ordem do dia da de hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 30 minutos.
Página 179
21 DE JANEIRO DE 1948 179
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alexandre Ferreira Pinto Basto.
António Carlos Borges.
Artur Augusto Figueiroa Rego.
Artur Proença Duarte.
João Ameal.
Jorge Botelho Moniz.
José Nunes de Figueiredo.
Luís da Câmara Finto Coelho.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Álvaro Henriques Perestrelo de Favila Vieira.
António Cortês Lobão.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria Pinheiro Torres.
Armando Cândido de Medeiros.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo de Morais Bernardes Pereira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Diogo Pacheco de Amorim.
Eurico Pires de Morais Carrapatoso.
Fernão Couceiro da Costa.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Gaspar Inácio Ferreira.
Horácio José de Sá Viana Rebelo
Jacinto Bicudo de Medeiros.
João Cerveira Pinto.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Viterbo Ferreira.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Maria Braga da Cruz.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Mendes de Matos.
Manuel Beja Corte-Real.
Mário Lampreia de Gusmão Madeira.
Querubim do Vale Guimarães.
Rafael da Silva Neves Duque.
Ricardo Spratley.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes.
Documentos a que o Sr. Presidente da Assembleia se refere na sessão de hoje:
«Madrid, 7 de Janeiro de 1948. - Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Apresentando a V. Ex.ª os meus respeitosos cumprimentos, é meu dever informar que não me é possível assistir à presente sessão legislativa de 1947-1948, por só no próximo verão terminar a missão militar de que fui encarregado e que me obriga a permanência constante em Espanha.
Deste modo, submeto à alta apreciação de V. Ex.ª a minha situação nessa Assembleia quanto ao mandato de Deputado, cumprindo-me esclarecer, para completo julgamento do assunto, que para esta missão fui nomeado em Ordem do Exército, depois de escolhido entre os oficiais propostos pelo estado maior, e que a minha remuneração por este serviço militar é, além do soldo, a ajuda de custo diária corrente em tais casos.
Qualquer que seja, porém, a resolução tomada, poderá sempre V. Ex.ª dispor, bem como os dignos membros da Assembleia Nacional, dos meus préstimos, ainda que modestos.
Renovando a V. Ex.ª os meus cumprimentos, subscrevo-me com muita consideração e elevado apreço. - Horácio de Sá Viana Rebelo».
«Não parece à Comissão de Legislação e Redacção que a situação a que se alude na carta dirigida a S. Ex.ª o Presidente da Assembleia pelo Sr. Deputado Viana Rebelo possa integrar-se em qualquer dos números do artigo 90.º da Constituição. Isto quer dizer que o referido Deputado não perde o mandato por força de disposição constitucional. - Mário de Figueiredo».
Rectificação
Por lapso, foi omitido o título «Parecer n.º 26» no suplemento ao Diário das Sessões n.º 125, que inseriu o parecer da Gamam Corporativa sobre o projecto de lei n.º 170 (feriados e dia de descanso semanal).
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA