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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES
SUPLEMENTO AO N.° 139
ANO DE 1948 31 DE MARCO
CÂMARA CORPORATIVA
IV LEGISLATURA
PARECER N.° 28
Projecto de lei n.° 201
Protecção e conservação dos valores monumentais e artísticos dos concelhos de Portugal
A Câmara Corporativa, pelas suas secções de Belas-Artes e Autarquias locais, emite parecer acerca do projecto de lei n.° 201, para protecção e conservação dos valores monumentais e artísticos dos concelhos de Portugal, remetido pela Assembleia Nacional.
1. Constitui o referido documento - composto de doze bases precedidas da habitual introdução justificativa - mais uma medida de superior alcance no domínio dos interesses morais da Nação. Conservar e proteger «religiosamente os elementos de reconhecido interesse arqueológico, arquitectónico, monumental e artísticos dos estragos do tempo, do vandalismo consciente, da simples ignorância, que destrói ou deixa destruir, e da indiferença que abandona é acto de veneração pelo a património espiritual que os nossos maiores nos transmitiram», é contribuição para elevar o nível cultural da Nação. O simples enunciado do projecto e o discorrer sobre as possibilidades de lhe dar execução efectiva evocam o panorama dos valores nacionais, onde não são apenas a paisagem, os monumentos e obras de arte mais valiosos, mais conhecidos ou mais divulgados que contam, mas também todos esses elementos dispersos, numa pulverização de acaso, que contribuem para que a ideia de uma nação cheia de personalidade e de beleza comece por estabelecera» interrogativamente ma nossa consciência e nela acabe por concretizar-se em evidência indiscutível.
O mais elementar respeito pelo passado, a anais vulgar afectividade pela presença viva das coisas mortas, deveriam tornar esses elementos merecedores de alguma coisa mais do que indiferença ou inatenção. Infelizmente nem sempre assim sucede, e os retalhos que em seu conjunto constituem a fisionomia própria de - uma nação vão-se perdendo, maltratados pelo tempo e abandonados, mutilados e destruídos pêlos homens, muitas vezes sem que interesses verdadeiramente superiores possam justificar, ou impor até, a sua demolição. Por isso esta Câmara concorda, na generalidade, com o presente projecto de lei.
2. A história pregressa desta providência é simples. A ideia de arrolar, classificar e proteger os valores artísticos e históricos, olhando pela sua conservação, restauração e dando-lhes relevo, tem raízes fundas no tempo. Relembramos passagens de um decreto do século XVIII, de 14 de Agosto de 1721, onde se diz: que daqui em deante nenhuma pessoa de qualquer estado, qualidade e condição que seja desfaça, ou destrua em todo, nem em parte qualquer edifício, que mostre ser daqueles tempos, ainda que em parte esteja arruinado e, depois de pormenorizada enumeração das espécies a proteger «... encarrego as Câmaras das cidades, e Vilas deste Reyno tenhão muito particular cuidado em conservar, e guardar as antiguidades sobredittas ...». Nos nossos dias, em
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sessão da Câmara Municipal de Lisboa de 12 de Abril de 1934, o vereador Luís Pastor de Macedo propõe a criação de uma categoria de «monumentos municipais», para os quais pede a guarda, protecção e conservação do Município, medida para que o actual presidente chama insistentemente a atenção do Governo; em 1942, sendo presidente o Sr. Leonel Pedro Banha da Silva, a Câmara Municipal de Beja publica uma postura para o mesmo efeito, a qual, segundo afirmações feitas publicamente pelo primeiro signatário do presente projecto de lei, já falecido, foi a fonte de inspiração deste; o actual presidente da Câmara Municipal do Porto, em ordem de serviço de 1 de Setembro de 1945, determina que se proceda ao cadastro dos monumentos citadinos de carácter arqueológico e histórico, e a cidade de Coimbra vê executado o seu plano de urbanização e nele prescrita a defesa das belezas naturais e dos valores da municipalidade.
Quantas iniciativas e medidas deste género poderíamos apontar se fôssemos a discriminar as actividades honrosas de muitas das câmaras municipais do País! Em matéria de legislação, e a partir do advento da República, o panorama é este:
Em 1911 publicava-se o decreto n.º 1 de 26 de Maio, para reorganização dos serviços artísticos e arqueológicos. Um decreto ulterior, adiante citado, classificava esse diploma de «marco miliário da evolução administrativa deste importante ramo dos serviços públicos» - o de Belas-Artes. Nele se estabeleciam directrizes para o arrolamento da riqueza artística e arqueológica do País- e o princípio de zelar o Estado pela sua conservação; nele se previa que, não podendo a classificação de «monumentos nacionais» abranger todos os edifícios de algum interesse artístico ou histórico, era necessário descrever estes em cadastro especial, determinando-se que não poderiam ser objecto de qualquer obra de alteração que não fosse autorizada superiormente. Data de então a criação dos conselhos de arte e arqueologia, em número de três, distribuídos por igual número de circunscrições, e a de dois conselhos especiais, um dos quais se ocuparia da classificação dos «monumentos nacionais».
Em 1924 publicava-se o decreto-lei n.º 1:700, de 18 de Dezembro, inspirado nos princípios basilares do relatório que antecede o citado decreto n.º 1. Nele se atribuía à Direcção Geral de Belas-Artes a coordenação e unidade dos trabalhos das diferentes entidades a cujo cargo ficavam, os serviços artísticos e arqueológicos do País, criando-se o Conselho Superior de Belas-Artes, constituído pelos três presidentes dos conselhos de arte e arqueologia, pelos directores das Escolas de Belas-Artes de Lisboa e Porto, directores dos museus dependentes daqueles conselhos e três representantes dos mesmos. Das atribuições do Conselho Superior de Belas-Artes fazia parte o empregarem-se os meios necessários para se completar o arrolamento da riqueza artística e arqueológica nacional, feita por intermédio dos três conselhos de arte e arqueologia.
Dentro da actual situação política surge o decreto-lei n.º 20:985, de 7 de Março de 1932, em cujo capítulo I (Guarda e protecção das obras de arte e peças arqueológicas) se fala de novo no inventário dos móveis e imóveis de valor artístico e outros valores e, no capítulo IV, da classificação de «monumentos nacionais», incluindo-se nesta (§ 1.º do artigo 25.º) «os locais onde se encontrem monumentos megalíticos, grutas, castros, rochedos fisionómicos, etc. Surge também uma nova categoria de valores: a dos «imóveis de interesse público». Os conselhos de arte e arqueologia são substituídos pelas comissões municipais de arte e arqueologia, às quais compete, entre outras obrigações, a de «organizar, de acordo com a Academia Nacional de Belas-Artes, o inventário índice de todos os monumentos, obras de arte, quadros, esculturas e mobiliários existentes nos concelhos».
Finalmente, em 11 de Abril de 1936, é instituída a Junta Nacional da Educação pela lei n.º 1:941 e, em Maio do mesmo ano, publicasse o decreto-lei n.º 26:611, que estabelece o regimento da mesma. O problema do cadastro nacional dos imóveis e inventário de móveis, a orientação na conservação e tratamento de que os mesmos carecerem, a classificação dos valores históricos e1 artísticos continuam a constituir assunto latente e são agora da exclusiva competência da 1.º sub-secção da 6.ª secção da Junta Nacional da Educação.
Através deste panorama legislativo tão variado passa sempre o mesmo sol, igual em grandeza e brilho, do respeito pelo património moral, mas não pode deixar de adivinhar-se uma insatisfação por parte do legislador, que compõe e recompõe direcções e comissões, que lhes muda os títulos, que procura distribuir logicamente atribuições, de modo que não se atropelem ou confundam, e cuida de tornar possível o funcionamento da máquina sem que os orçamentos sofram e contando, porventura excessivamente, com a devoção de funcionários não remunerados.
Infelizmente - e é preciso dizê-lo claramente -, se o decreto-lei n.º 26:611 (regimento da Junta Nacional da Educação) é um diploma completo, a falta de publicação dos regulamentos, estatutos e instruções complementares previstos no artigo 58.º, a necessidade de recorrer para os casos omissos à lei anterior e a ausência de uma inspecção de belas-artes (artigo 47.º) - que não se chegou a criar mas de que existe projecto aprovado - dão lugar a que a missão da Junta não possa atingir a eficiência que seria para desejar.
3. Passando à análise do actual projecto de lei, esta Câmara verifica que o que nele se contém, de essencialmente novo - excluída a matéria adjectiva, mais de regulamento ou postura - é o seguinte:
1.º A legalização de uma terceira categoria de valores artísticos, históricos, arqueológicos, etc. - a dos «monumentos- de interesse concelhio»;
2.º A possibilidade legal, por parte das câmaras, de defender e conservar esses valores.
Para este efeito, o projecto cria comissões especiais, as quais teriam o encargo de arrolar valores que, automaticamente, passariam a figurar ma nova categoria de a monumentos de interesse concelhio». Detenhamo-nos nestes dois aspectos da questão: por um lado a criação de novas comissões; por outro, a autonomia completa das mesmas.
Criar novas comissões quando existem comissões municipais de arte e arqueologia, a que competem os mesmos encargos que o projecto atribui àquelas, parece desnecessário: estão previstas no Código Administrativo e no decreto n.º 20:985, em vigor, decreto a que o regimento recorre nos casos omissos, como já dissemos.
Que as comissões propostas funcionem sob a presidência dos presidentes das câmaras ou de um vereador em quem ele delegue essa presidência, parece-nos praticamente o mesmo, desde que o presidente da comissão interprete devidamente o seu papel de simples orientador dos trabalhos, sem se sobrepor às deliberações dos restantes membros.
O facto de no projecto serem apenas dois dos seis membros nomeados pelo Ministro da Educação Nacional, em vez de o serem todos - decreto n.º 20:985 e o Código Administrativo -, não cremos que constitua vantagem particular. O Ministro da Educação Nacional, aliás, poderá ser elucidado - pelos presidentes das câmaras e pela 6.ª secção da Junta, que conta alguns vogais correspondentes na província - acerca das individualidades do concelho capazes de compor as comissões mu-
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nicipais de arte e arqueologia e saberá encontrar a fórmula que corrija as deficiências possíveis do decreto e do Código, tanta mais que neles existem aspectos aleatórios: um director do museu, se o houver; um professor do liceu, se o houver, etc. A verdade é que há casos, por exemplo, de modestos professores primários que se nos revelam muito sabedores da história local, que por força das suas funções se dedicam ao estudo dos problemas arqueológicos e outros, e - a menos que se proponha à Assembleia Nacional a alteração do artigo 113.º do Código Administrativo, aliás reprodução do artigo correspondente na lei que antecede o regimento ida Junta Nacional da Educação, o que se nos afigura complicado - não julgamos que uma nova comissão, composta de maneira diferente da estabelecida, venha trazer vantagens reais. As competências faltam e esta é a razão por que os elementos constituintes de novas comissões acabariam por ser, pouco mais ou menos, os mesmos de comissões já existentes, qualquer que viesse a ser a fonte de selecção. O que tem importância, de facto, é a autonomia que às comissões do projecto possa ser dada, porque, se o acto de arrolar valores implica desde logo idoneidade para quem o pratica, o automatismo com que na base IV do projecto «valor arrolado» é e valor classificado» merece-nos atenção muito maior do que a aceitação tácita dos inconvenientes da composição prevista para as comissões municipais de arte e arqueologia.
Abstraímos porém, e por momentos, do aspecto «falta de idoneidade» das comissões, que pode levar estas a classificar demais, o que pode ser grave, ou a classificar de menos, o que pode ser igualmente inconveniente, e pomos de parte aqueles aspectos de ignorância que têm levado à destruição de tanta espécie valiosa, ou, em contrapartida, à admiração ingénua perante falsos valores generosa e genericamente atribuídos cão tempo dos mouros».
4. Consideradas as duas categorias de valores oficialmente estabelecidas, verifica-se que a primeira - «monumentos nacionais» - abrange obras de arte de alto valor histórico e - arqueológico, como os Jerónimos, a Batalha e o Convento de Cristo, mas, simultaneamente, chafarizes, sepulturas e até, por exemplo, os três braceletes de ouro da época proto-histórica aparecidos no Monte da Senhora do Pilar, em Braga; na segunda - «imóveis de interesse público» - figuram igrejas, ermidas, capelas e até ... as duas salas do 1.º andar do prédio n.º 90 da Rua Cecílio de Sousa, em Lisboa. Este último exemplo não é apresentado senão com o propósito de acentuar quanto é difícil estabelecer classificações dentro das duas categorias legais, a avaliar da natural estranheza que causa ao grande público a consideração havida com duas divisões do andar de um prédio!» O advento de uma terceira categoria - a de «monumentos de interesse concelhio» - poderá não constituir dificuldade para aqueles a quem, até hoje, tem competido classificar, em condições de idoneidade que não se discutem e dentro de um critério único; mas pode conduzir à arbitrariedade e criar situações perigosas se o encargo de classificar for cometido a comissões praticamente autónomas e de idoneidade, em certos casos, discutível. Não pode negar-se a existência de indivíduos de alto valor que, por terem vivido sempre apegados às localidades onde nasceram, permitem que algumas câmaras municipais possam dispor de elementos capazes para certas iniciativas, menos de natureza administrativa que da ordem superior das coisas ligadas à sensibilidade estética e ao culto do passado; mas uns são particularmente historiadores, outros especializados em azulejos, em pintura antiga ou em mobiliário, e o critério da sua classificação tem de possuir aquela universalidade de vistas que conduzirá à selecção equilibrada e parcimoniosa que parece ser de desejar; porque, repetimos, o classificar de menos pode ser tão grave como o excessivo classificar, ou este mais - grave ainda do que aquele, pelos ónus inúteis que pode começar por criar em relação a particulares - e que tornarão difícil o policiamento efectivo dos valores arrolados - e pelas restrições desnecessárias que poderiam atingir os progressos urbanísticos das localidades, tão de respeitar como o louvável e nobre culto dos valores em questão.
Sabe-se que estes valores tem, em geral, uma zona de protecção circular de que são o centro e cujo raio atinge 50 metros. Uma simples janela de sacada foi recentemente objecto de uma dessas protecções, e se o projecto não foi superiormente homologado - não porque o valor considerado o não fosse de facto-, poderia tê-lo sido. Se este exemplo frutifica, por excessos locais compreensíveis, se as amizades lisonjeiras se dispõem a atribuir ao imóvel deste munícipe a honrosa distinção de ter sido classificado, ou se, noutro sentido, as animosidades procuram criar encargos para aqueloutro, se se criam rivalidades e desacordos de peritagem e outros, ter-se-á uma ideia dos inconvenientes de conferir autonomia às comissões.
5. O encargo do arrolamento dos valores artísticos - artes maiores e menores- foi cometido à Academia Nacional de Belas-Artes, que dele se tem ocupado desde 1940. Mostram-no os dois volumes do Inventário Artístico já publicados, referentes ao distrito de Portalegre e à cidade de Coimbra, a que se seguirão três, dos quais dois se encontram prontos a entrar no prelo - distritos de Coimbra e Santarém - e o respeitante a Braga quase pronto. Este trabalho poderia servir de guia; por outro lado, os arrolamentos das comissões municipais facilitariam porventura, em parte, a missão da Academia, sabido como é que os munícipes têm muitas vezes maior conhecimento dos valores existentes nos concelhos, sobretudo dos «móveis», do que os delegados daquela, que encontram resistências passivas, baseadas no receio que os possuidores de valores têm de virem a ser desapossados deles.
Em qualquer caso, não se vê que haja inconvenientes quanto à existência de duas fontes arroladoras, por não serem exactamente os mesmos os fins para que a Academia trabalha e as comissões municipais o venham a fazer no seu campo restrito.
6. Quanto às sanções que o projecto de lei prevê, também as prevê o decreto anterior ao regimento (n.º 20:985). Assim, por exemplo, o artigo 33.º leva aos tribunais comuns os infractores de delitos de natureza vária relativos aos monumentos nacionais, e os móveis de reconhecido valor estão protegidos contra a sonegação, alienação e outros delitos qualificados no Código Penal. Encontrar nesses e noutros artigos a latitude necessária para abranger os casos dignos de sanção, segundo este projecto de lei, não será difícil para o legislador.
Parece inútil a esta Câmara, porém - visto que em casos extremos se poderão invocar as leis vigentes -, ir mais além das simples multas previstas no projecto, e que são mais matéria de regulamento que de base de lei.
7. Os encargos de conservação dos imóveis classificados como «monumentos de interesse concelhio» serão de conta dos respectivos proprietários, aos quais as câmaras não passarão licença de pinturas, caiações ou obras de maior vulto sem que o aspecto da defesa do valor e sua conservação seja considerado; quanto àqueles valores que pertencem ao domínio público, esses organismos saberão encontrar as receitas correspondentes às despesas a fazer no sentido de os reparar, restaurar ou valorizar e, em casos particulares, não será impossível
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que o Governo, através dos organismos competentes, possa vir a subsidiar as câmaras municipais. Em boa doutrina, dada a escassez de recursos de muitos destes organismos administrativos, e posto que os mais insignificantes valores representam ainda e sempre uma parcela de riqueza que não é para desperdiçar, esses subsídios deveriam estender-se às três categorias dê valores consideradas.
Infelizmente, uma recente estimativa, feita por elementos com a experiência devida, estabelecia a verba de 250:000 contos só para o simples restauro das sés, mosteiros, Igrejas e capelas, castelos e «diversos» de Portugal. E esses restauros não incluíam a mais ligeira obra de adaptação para quaisquer fins de utilização prática! Acontece muitas vezes, é certo, serem presentes à Junta Nacional da Educação pedidos de classificação apenas para o efeito de a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais - à qual bompete a execução de obras e a cujas realizações o projecto presta justiça- reparar telhados e paredes, colocar vidros, ferragens, etc.
É uma maneira, aliás perdoável, de juntar aos beneficias que mais directamente advêm para o valor classificado aqueles que indirectamente atingem os moradores ou indivíduos que neles exercem funções transitórias. Se as municipalidades, porém, além dos recursos dó que possam dispor, das obrigações que criem aos - proprietários dos imóveis valorizados, necessitassem de recorrer a comparticipações do Estado, essas comparticipações seriam justíssimas, afinal.
Que sejam incomportáveis até para a mais rica das nações e a mais zelosa dos seus interesses superiores - é outro aspecto da questão, que não se discute.
8. Deseja esta Câmara, ainda, encarar outro ponto que pode vir a enriquecer o património concelhio: o dos achados de valores nas obras de escavações, demolições ou outras idênticas, e por isso propõe uma nova base, além de outra que se refere à expropriação, tão necessária quando a falta de recursos dos proprietários possa votar ao abandono imóveis de certo valor, cuja utilização prática seria, para mais, de considerar.
9. A designação de a monumentos de interesse concelhio» suscita dúvidas a esta Câmara.
Entre as duas classificações anteriormente estabelecidas - a monumentos nacionais» e «imóveis de interesse público» - existe, na realidade e na aparência, uma hierarquia de valores. Pode observar-se, no entanto, que, se o «imóvel de interesse público» não é um monumento nacional, este, imóvel ou móvel, é com certeza valor de interesse público. O mal está na dificuldade de definir, agravada agora pelo advento de uma terceira categoria de valores, que, sendo de interesse concelhio, o são, afinal e também, de interesse público. Sem pretender especular com o sentido das palavras, parece que seria preferível adoptar outra expressão que valesse mais pelo que sugerisse do que por função definidora que pretendesse ter e não chegasse a alcançar. Eis por que propomos, em substituição da designação do projecto de lei, a de «valores concelhios», que vincaria mais fundamente a gradação de categoria dos três valores a considerar de futuro.
Além de outras razões, tal designação teria a vantagem de alargar o âmbito da classificação, atingindo maior número de espécies que um regulamento a publicar enumeraria, aliás, com mais precisão.
É ainda por idênticas razões que se propõe a alteração da expressão «de reconhecido interesse arqueológico, monumental e artístico» (base I) pela «de interesse arqueológico, histórico, artístico e paisagístico», eliminando o «monumental», que na acepção vulgar evoca ideia de grandeza, e acrescentando «histórico» e «paisagístico»: o primeiro adjectivo justificando algumas vezes a protecção de valores a que (maiores qualidades faltem, o segundo constituindo uma das facetas mais vulgares do que se pretende proteger.
10. Como, na introdução ao projecto de lei, se faz enumeração larga das espécies a considerar, mas se deixa prever, no «etc.», que muitas mais haveria que definir, deseja esta Câmara acentuar que no grupo dos valores concelhios que venham a merecer esta classificação - o que só poderá ser feito em regulamento- estão naturalmente incluídos os conjuntos, arquitectónicos ou paisagísticos: pequenas ou grandes praças que conservam unidade de conjunto e oferecem interessei pelo pitoresco ou por certa beleza das construções, ainda que modestas, trechos de paisagem ou simples manchas de vegetação e muitos outros. Por isso na base I acrescentámos à ideia de «elementos» a de «conjuntos», sabendo perfeitamente que a missão das câmaras municipais e a das suas comissões de arte e arqueologia se encontra por este facto dificultada, mas contando, por outro lado, que a autonomia que se lhes confere reduz as complicações burocráticas ao mínimo.
Em todo o caso esta Câmara põe sempre de reserva o aspecto autonomia, esperando que o futuro virá demonstrar se lhe assiste razão quando hesita ou se, pelo contrário e na prática, as dúvidas que tem hoje não são justificadas.
A noção de responsabilidade corresponde um estímulo mais forte para aqueles que têm espírito de iniciativa. Se as câmaras municipais devessem percorrer longos caminhos, em que cada passo deixa a pegada de uma meia folha de papel selado ou timbrado, até encontrarem satisfação para os elevados desígnios que as animem, o critério da classificação ganharia, os inconvenientes dê um «mal classificar» reduzir-se-iam, mas perder-se-ia também o entusiasmo, impossível de legislar, que tem levado algumas a valorizar o nosso património, com melhores ou piores resultados, mas sempre com ardor.
11. Dissemos a trás que, muitas vezes, há interesses vitais que superam o respeito devido aos valores históricos e artísticos.
As necessidades de urbanização estão neste caso, quando o saneamento de certas zonas, as exigências de trânsito e outros factores obriguem à demolição ou ao desmonte e mudança de posição daqueles valores. É evidente que, em tais casos, as câmaras municipais saberão recorrer à consulta a outros organismos, como a Direcção Geral dos Serviços de Urbanização, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e à própria Junta Nacional da Educação, não por necessidade de diluir a responsabilidade que lhes cabe, mas para poderem, em plena consciência, corresponder, senão ao reconhecimento público da razão que lhes assiste, pelos menos ao das entidades que com mais idoneidade possam representar a opinião geral.
12. A aprovação da lei projectada vai trazer com certeza benefícios à Nação, embora na prática se! levantem naturalmente problemas, como o de constituir comissões nos concelhos rurais, senão até em concelhos urbanos onde de todo em todo faltam elementos para tal.
A valorização de certos elementos exigirá projecto e as câmaras municipais, em geral, não possuem arquitectos no seu quadro. A falta destes profissionais e a entrega desse projecto a amadores podem constituir ... uma desvalorização do valor concelhio, sobretudo se juntarem à sua ausência de idoneidade o propósito,
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beto intencionado mas perigoso, de enveredar por um falso tradicionalismo ou pseudonacionalismo arquitectónico a que as sugestões contidas- nas bases X e XI podem dar lugar. Espera-se também que a placa com a indicação «Valor concelhio» - possivelmente a adoptar no regulamento futuro - não atinja, por excesso de entusiasmo local, a grandeza despropositada que encontramos por vezes na sua parente do «Património do Estado», ou não vá criar ao valor classificado um ambiente artificial, muito contrário ao espírito da lei e ao mais vulgar bom senso; mas isto é matéria do regulamento a publicar depois.
Imaginar que, publicada, a lei projectada vai solucionar definitivamente um problema nacional é ambiciosa pretensão que esta Câmara considera com dúvida. As câmaras municipais, que até hoje, sem lei adequada, têm tomado iniciativas, sentir-se-ão talvez com mais forças para continuar; quanto àquelas que nada fizeram, ou fizeram pouco, este diploma poderá ser um estímulo, o respectivo regulamento uma correcção, mas não se julga que a lei possa criar o que falta, corrigir o que falha e prover com o que não tem. A ser aprovada, requer o estudo imediato de um regulamento cuidadosamente tratado por quem de direito, sob pena de por mais uma razão, a sua publicação não ter êxito ou constituir até uma inutilidade.
13. bestas condições, a Câmara Corporativa tem a honra de propor uma nova redacção para o projecto de lei n.º 201, em que se alteraram algumas das bases, se acrescentaram outras e se eliminaram aquelas que
constituíam sugestões ou matéria de regulamento.
BASE I
Todos os elementos ou conjuntos de interesse arqueológico, histórico, artístico ou paisagístico existentes nos concelhos de Portugal; que não sejam, classificáveis como «monumentos nacionais» ou «imóveis de interesse público» ingressam, na categoria de a valores concelhios», ficando sob a protecção e vigilância dos respectivos municípios.
BASE II
Compete às câmaras municipais deliberar sobre a classificação descrita na base I, após arrolamento prévio cometido às comissões municipais de arte e arqueologia.
BASE III
Toda e qualquer alteração ou adaptação, parcial ou total, dos valores concelhios depende de licença camarária especial.
BASE IV
O adiado de todo e qualquer elemento que possa ser considerado de valor arqueológico, histórico ou artístico deverá ser comunicado às câmaras municipais por aquele que o fizer, quando proceda directa ou indirectamente a obras de escavação, demolição ou outras.
BASE V
As câmaras municipais poderão promover a expropriação de imóveis classificados como valores concelhios, quando se verifique não estar devidamente acautelada a sua conservação ou quando a sua utilização não esteja de acordo com a dignidade ou valor histórico dos mesmos.
BASE VI
As infracções ao disposto nas bases III e IV serão punidas com multas nos termos de regulamento a publicar.
BASE VII
O Governo promoverá a imediata publicação do regulamento necessário à execução da presente lei.
Palácio de S. Bento, 30 de Março de 1948.
Júlio Dantas, assessor, sem voto.
Manuel Ivo da Cruz.
Reinaldo dos Santos.
Samuel Dinis.
Álvaro Salvação Barreto.
Luís José de Pina Guimarães.
Alberto Sá de Oliveira.
Álvaro Malafaia.
Armando Jacques Favre Castelo Branco.
Paulo de Oliveira Machado.
Oscar Baltasar Gonçalves.
José Angelo Cottinelli Telmo, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA