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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 48
ANO DE 1950 22 DE ABRIL
V LEGISLATURA
SESSÃO N.º 46 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 21 DE ABRIL
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.
Antes da ordem do dia. - Fornia. aprovadas os n.ºs 44 e 45 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
Foi autorizado o Sr. Deputado Manuel Múrias a depor como testemunha na Polícia Judiciária.
O Sr. Deputado Marques Teixeira ocupou-se da situação dos grémios da lavoura.
O Sr. Deputado Cerveira Pinto solicitou que seja criado no Torto um centro para diagnóstico e tratamento do cancro.
O Sr. Deputado Paulo Cancela de Abreu renovou o seu projecto de lei sobre abandono de família.
O Sr. Deputado Gaspar Ferreira requereu vários elementos sobre a produção de. leite e a indústria de lacticínios.
Ordem do dia. - Discutiu-se o projecto de lei de amnistia e banimento, da autoria do Sr. Deputado Botelho Moniz. Além deste Sr. Deputado falaram os Srs. Deputados Mário de Figueiredo, Ribeiro Cazaes, pinto Barriga, Armando Cândido, Craveiro Lopes, Paulo Cancela de Abreu, Sousa Rosal e Mendes Correia.
Quanto às leis de banimento, foi a pró nado o projecto sugerido pela Câmara Corporativa. Quanto a amnistia, foi aprovado um novo articulado apresentado pela Comissão de Legislação e Redacção.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 20 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 4õ minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Avelino de Sousa Campos.
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Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Paniel Maria Vieira Barbosa.
Délio Nobre Santos.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Cerveira Pinto.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Cardoso de Matos.
José Diogo de Mascarenhas Galvão.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
José Maria Braga da Cruz.
José Pereira dos Santos Cabral.
José Soares da Fonseca.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Domingues Basto.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sonsa.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Vasco Lopes Alves.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 80 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 44 e 45 do Diário dais Sessões.
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: desejo apenas que no n.º 45 do Diário das Sessões, em reclamação, a p. 797, col. 2.ª, 1. 6.ª, seja substituído o ponto de exclamação que ali vem inserto por um ponto de interrogação, por aquele modificar completamente o sentido da frase.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Visto mais nenhum dos Srs. Deputados desejar fazer qualquer reclamação sobre aqueles números do Diário, considero-os aprovados com a alteração apresentada.
Deu-se conta do seguinte:
Expediente
Exposições
Várias, com numerosas assinaturas, enviadas pelo advogado Dr. Manuel Carrusca solicitando uma ampla amnistia.
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa os elementos fornecidos pelos Ministérios da Economia e das Colónias a requerimento do Sr. Deputado Pinto Barriga. Vão ser entregues àquele Sr. Deputado.
Está também na Mesa um ofício da Polícia Judiciária solicitando autorização para que o Sr. Deputado Manuel Múrias possa comparecer perante aquela Polícia a fim de depor no dia 22 do corrente, pelas 15 horas.
Vou consultar a Câmara sobre se concede autorização.
Consultada a Câmara, foi concedida autorização.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Marques Teixeira.
O Sr. Marques Teixeira: - Sr. Presidente: quando V. Ex.ª se dignou conceder-me o uso da palavra na sessão de 12 de Janeiro próximo passado feri uma pequena nota alusiva à situação dos grémios da lavoura.
Sem pruridos de grande originalidade, pretendo hoje abordar o mesmo assunto de então com maior amplitude. Move-me apenas, Sr. Presidente, agora e sempre, a ambição mais pura de procurar bem servir o interesse da Nação.
Seguindo o pendor do meu feitio moral, usarei, mais uma vez, franqueza do linguagem ao serviço de uma crítica nobremente construtiva. Cuido ser esse um. indeclinável dever, Sr. Presidente, de quem sente a honra, mas tem, outrossim, a grande responsabilidade de pertencer a este alto órgão da soberania nacional. E iniciarei, Sr. Presidente, as minhas desluzidas considerações.
Não vale a pena focar em pormenor a situação difícil que atravessa a nossa lavoura, mercê de factores de vária ordem, muitos dos quais fugiram e escapam à previsão o controle das possibilidades humanas; já colegas muito ilustres desta Câmara o fizeram com profundo conhecimento de causa e, por isso, com a seriedade de espírito, consequente objectividade de estudo e maturidade de reflexão que lhes permitiu equacionar brilhantemente o problema, buscando-lhe as soluções mais justas e mais harmónicas com o sagrado interesse nacional. Quando o doente está, na realidade, atacado de enfermidade grave, Sr. Presidente, não é displicente o concurso de todos os abalizados «especialistas» que se disponham a prestar-lhe assistência, ministrando-lhe a terapêutica adequada a fins paliativos e curativos, já que se não observaram, por este ou aquele motivo, métodos mais seguros, e com certeza mais económicos, de natureza preventiva ou recuperadora. É redundante acrescentar que me não atribuo a categoria imerecida de especialista, mas sim, e somente, a de um pobre João Semana de aldeia.
Não apoiados.
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Sr. Presidente: que a situação da lavoura foi, com efeito, angustiosa em 1949 comprova-o ainda a eloquência dos números que se citam no relatório do Banco de Portugal, através de cuja leitura se conclui que houve um decréscimo de produção de 1.384:000 toneladas de géneros, no valor de 866 mil contos por ano, relativamente ao que aconteceu no sexténio anterior, com a agravante de que as despesas efectivamente feitas com esta produção não diminuíram nem se mantiveram, mas sofreram notável aumento.
Recordo-me, Sr. Presidente, de que repetidamente tenho ouvido, com espírito de compreensão, ao distinto Deputado Rev. Domingues Basto a afirmação justa de que o exercício do seu nobilíssimo múnus de cura de almas, num meio essencialmente agrícola como é o de Fafe, segundo creio, o tem naturalmente conduzido ao contacto estreito com o povo do seu Minho florido e encantador, auscultando as suas aspirações, palpitando os seus anseios, ouvindo os seus queixumes, sentindo as suas amarguras, vivendo, em suma, os seus problemas.
Pois bem, Sr. Presidente, também eu e igualmente todos nós, que estamos nesta Assembleia com a alta consciência das pesadas responsabilidades inerentes ao mandato da representação do povo que nos elegeu, não somos nunca insensíveis, a quaisquer problemas sérios que digam respeito à colectividade, sem esperar que nos espevite a atenção o S. O. S. dos seus apelos.
Todos nos esforçamos por que as intervenções-feitas nesta Assembleia se revistam de um elevado sentido de utilidade colectiva. É só uma e a mesma a divisa da nossa actuação e a meta que com ela procuramos alcançar: imbuídos do pensamento permanente das obrigações contraídas com o Pais, nada mais apraz ao nosso espírito, nem melhor quadra à nossa sensibilidade moral, nem ao sentimento de dignidade que devemos aos outros e a nós próprios, do que a ideia aliciante de inteira e dedicadamente servir os superiores interesses da comunidade nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - É, pois, Sr. Presidente, em estrita obediência ao imperativo irreprimível de um dever, que ergo hoje a minha humilde voz para com lealdade e com firmeza respeitosa dizer ao Governo que urge rever, com cuidado e sem tardança, o condicionalismo da vida, por vezes dificílima, em que vivem, em que mal vivem e se debatem e se enredam e quase asfixiam, muitos dos nossos grémios da lavoura. Todos os seres vivos, para que não pereçam, carecem de ar.
É condição primária da sustentação da vida possuírem-se possibilidades de .boa e desafogada respiração. A dispneia é uma doença fortemente perturbadora. Adoptando o símile relativamente às condições financeiras da existência de alguns grémios da lavoura, pode, porventura, afirmar-se que elas não lhes criaram uma atmosfera pesada, plúmbea, sofocante, a bem dizer irrespirável ? Em consciência, creio que não pode produzir-se tal afirmação. E é indiferente que isso tivesse sucedido e continue sucedendo?
Positivamente que não é de modo nenhum indiferente nem à Nação, nem ao Estado, este como intérprete zeloso e fiel das necessidades daquela e garante responsável da sua plena satisfação.
E avanço até a afirmativa de que reputo a manutenção do statu que um mal grave que urge remediar, a bem da salvaguarda do prestigio dos princípios que informam o sistema corporativo em toda a beleza da ortodoxia da doutrina e possível rendimento prático da aplicação das suas regras, a bem, Sr. Presidente, dos sérios interesses da economia nacional.
Como é sabido, constitucionalmente vivemos num regime político assente no corporativismo de carácter associativo, o qual serve de suporte à nossa organização económico-social. É também do conhecimento de todos que os grémios da lavoura se consideram um dos elementos estruturais da nossa orgânica corporativa.
Ora bem! Por força dos princípios que os geraram, com base na natureza das suas funções e atendendo aos fins que prosseguem, nunca os grémios da lavoura, Sr. Presidente, podem, em meu entender, ser encarados à luz do falso critério que lhes atribua a feição de empresa.
No exercício das suas actividades anima-os o pensamento da consecução do interesse público, pelo que, como é intuitivo, ao desempenhar as suas funções, não podem ter a preocupação dominante, essencial, do lucro.
Posta a questão como pode e julgo que deve ser posta, é estranho e é lamentável, Sr. Presidente, que se verifique a incidência de tão pesados encargos sobre o orçamento dos grémios da lavoura.
Apenas referindo, sem comentários, o pagamento, por vezes exigido, da denominada licença de porta aberta, do imposto complementar, em alguns casos, do imposto de selo e do mais que se prende com o abono de família e a contribuição para a Caixa de Previdência do Pessoal dos Organismos Corporativos e Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, quedo-me, por agora, Sr. Presidente, na citação especial e na análise da quebra que suportam as finanças, já de si débeis, dos grémios da lavoura, no tocante ao cálculo da contribuição industrial em que são colectados estes organismos corporativos, os quais só inexactamente poderão considerar-se, salvo o devido respeito por diferente opinião, como quaisquer contribuintes do grupo C.
Fazendo-se a leitura atenta do que se contém nos Decretos n.98 24:916, por um lado, e 26:806 e 26:963, por outro, ressalta, quanto a mim, o principio indicativo da especialidade do regime assinalado por estes dois últimos diplomas legais, merecedor, sem dúvida, de um entendimento uniforme, que bom seria tivesse uma integral observância. Põe-se neste momento o problema de saber o que deve entender-se por preço de custo comercial.
A tal respeito existem despachos esclarecedores de S. Ex.ª o Ministro das Finanças, de 7 de Fevereiro de 1947, e de S. Ex.ª o Subscretário de Estado das Finanças, de 6 de Agosto de 1947 e 29 de Setembro de 1948, que conduziram a que fossem atenuadas, quiçá prevenidas, as tremendas dificuldades que assoberbavam a vida dos grémios da lavoura, por virtude da incidência pesadíssima, exagerada, da taxa de contribuição industrial, cuja arrecadação -cito-o em parêntesis- rendeu em 1948 e 1949 as cifras de 2:527.221006 e 1:686.169$26, respectivamente.
Mas, Sr. Presidente, considerando a maneira como a Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, em face do problema posto acima, parece interpretar os aludidos despachos, continua sem defesa a situação económico financeira dos grémios da lavoura, podendo até, ao que me consta, fazer a asserção, embora sob reserva, de que entre órgãos do mesmo Estado, em presença de igual matéria, existe diversidade de critério julgador, e, enquanto que um marca uma determinada posição ante os grémios da lavoura, o outro firma uma posição diferente ante as secções de finanças! E isto é, evidentemente, um mal perturbador, que, além do mais, origina um ambiente de confusão e embaraço aos corpos gerentes dos grémios da lavoura, carecendo, portanto, duma imediata correcção.
Ainda dentro do capítulo da contribuição industrial de que são passíveis os grémios da lavoura, não posso nem devo calar, Sr. Presidente, a estranheza chocante que em mim causaram os resultados de um apuramento
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feito conduzindo à impressionante demonstração de que estabelecimentos comerciais da mesmíssima terra em que alguns daqueles grémios têm a sua sede pagavam um montante de contribuição industrial sensivelmente menor do que estes, não obstante o volume de transacções por aqueles realizado ser em grau bem mais elevado. Deixo o comentário à inteligência compreensiva de VV. Ex.ªs
E pensarmos nós, Sr. Presidente, que muitos e largos anos antes de o acorporativismo, elevado a regra constitucional da ordem nova, a princípio informador da comunidade nacional, caldear a Nação no Estado...» - no pensamento luminoso de Salazar - e pensarmos nós, ia dizendo, que os antigos sindicatos agrícolas, de iniciativa meramente individual, nascendo e vivendo num clima político-social tão diferente do dos nossos dias, gozavam de importantes concessões e regalias que, inclusivamente, iam até à isenção da própria franquia postal!
Isto, que já aqui foi brilhante e justamente assinalado pelos ilustres Srs. Deputados Melo Machado e Rev. Domingues Basto, constitui uma situação verdadeiramente paradoxal, que reclama revisão urgente.
Sr. Presidente: terminarei dentro de instantes, mas peço vénia a V. Ex.ª para ainda aditar algumas considerações.
Os grémios da lavoura prestaram e podem prestar altos serviços aos seus associados, cujos interesses legitimamente representam, tendo muitas virtualidades que lhes permitem beneficiar o condicionalismo em que se enquadra a vida agrícola do País.
Ponto é que também no tocante a eles, como se lê num bem elaborado trabalho que um dia encontrámos em cima das nossas carteiras, intitulado A Cidade e o Campo, da autoria do Dr. Mário de Oliveira, «se proceda a um amplo reajustamento da máquina burocrática da Administração no sentido de a ordenar à orgânica corporativa».
Ordená-la à orgânica corporativa e ainda - acrescento agora- levando-a a compreendê-la e verdadeiramente respeitá-la.
Não pode cair no olvido o papel de larguíssimo alcance económico desempenhado pelos grémios da lavoura quando, durante os difíceis e perturbados tempos da guerra e pós-guerra, lhes incumbiu a distribuição dos produtos condicionados.
Está demonstrado à saciedade que é de grande altitude o pensamento determinante e informador da organização corporativa da lavoura, que não teve senão a finalidade justa e meritória de prestar ao agricultor a merecida protecção sob o ponto de vista técnico e económico.
Prescreve-se que a acção dos grémios da lavoura, no sentido do engrandecimento, da renovação, da intensidade da vida agrícola, seja estimulante, orientadora, protectora. É normal que se entreguem à distribuição de matérias fertilizantes da terra e façam a cedência de diversas alfaias e máquinas que ajudam a melhor preparar e trabalhar o agro português em termos de condiciona* o seu rendimento mais abundante e mais compensador.
Teoricamente, em muitos casos, aponta-se-lhes a relevante missão - que, na verdade, o era - da extirpação pura e simples do parasitismo de certos intermediários, ou, ao menos, a função moderadora dos seus lucros desmedidos.
Creio que a lei orgânica que os rege lhes inculca, como é natural, a iniciação e realização de melhoramentos fundiários e num outro plano porventura o impulso da criação magnífica de pequenas indústrias transformadoras, cuja acção complementar das tarefas puramente agrícolas seria na realidade utilíssima e de forte projecção económico-social.
E quem poderá seriamente argumentar de imprópria ou fora da sua esfera de acção a montagem de pequenos cursos de ensino agrícola, pelo menos de índole elementar?
E porque não serem os grémios da lavoura ouvidos, de facto compreensivamente ouvidos, na fixação do justo preço dos produtos oriundos da terra?
De tudo isto que acabo de aduzir, Sr. Presidente, pouco, lamentavelmente muito pouco, se terá concretizado na prática, quanto ao clima de vida e modo de actuação de um grande número dos nossos grémios da lavoura.
Num belo estudo da Repartição das Corporações e Associações Agrícolas da Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas lê-se, Sr. Presidente, este passo expressivo:
... os organismos de finanças pouco sólidas não só estão impossibilitados de desenvolver em profundidade qualquer acção de relevo, como se tornam frequentemente alvo de críticas depreciativas.
Esta é a desoladora e cruel realidade. Apelo, por intermédio de V. Ex.ª, Sr. Presidente, para o alto e esclarecido critério do Sr. Ministro das Finanças, solicitando respeitosa e veementemente a S. Ex.ª que determine, e de vez, o alívio dos incomportáveis ónus tributários que sobrecarregam os grémios da lavoura e que resultam principalmente do modo como se vem fazendo a colecta da contribuição industrial.
E procure evitar-se todos os pretextos a que se ergam as tais a críticas depreciativas», já que, ao menos, é psicologicamente nefasta a criação de uma atmosfera derrotista em redor da actividade esforçada e criteriosa daqueles que, apenas com o seu espírito aquecido pela flama da devoção ao bem comum, não se furtaram a incomodidades é dedicadamente se mantêm na direcção dos destinos dos grémios da lavoura com o fito exclusivo de serem prestáveis aos seus conterrâneos, à lavoura e à economia da Nação, com o desinteressado anseio e no digno propósito do manejo de instrumentos de útil trabalho colectivo a que o Poder Central, por seu turno, não pode nem deve ser indiferente.
Sr. Presidente: levanto o meu grito de alerta e junto o meu protesto ao protesto erguido nesta Câmara em 29 de Janeiro de 1948 pelo nosso muito ilustre colega Sr. Melo Machado contra o que foi qualificado, com tanta propriedade, de «morte lenta» dos grémios da lavoura.
Instaurem-se, efectivamente, as previstas federações destes organismos corporativos - conclamo em unísono com o desejo igualmente manifestado nesta Assembleia pelo brilhante camarada Rev. Domingues Basto.
Em harmonia com a verdade lucidamente apresentada pelo Sr.º Presidente do Conselho, as necessidades dos tempos em que vivemos já não podem dispensar orientação superior e uma disciplina económica, seja mesmo qual for a doutrina oficial do Estado.
Registe-se o axioma. Sendo, com efeito, os grémios da lavoura elementos primários da organização corporativa, eu, Sr. Presidente, encerro a intervenção que venho fazendo neste período de antes da ordem do dia, para o que V. Ex.ª se dignou conceder-me prévia autorização, exprimindo ardentemente o voto de que, por sérias razões originárias de um evidente estado de necessidade, em obediência aos nobres princípios de quem não quer quebrar uma linha de congruência, a bem da lavoura, que tudo merece, em proveito da economia da Nação e para prestígio do nosso sistema corporativo, tudo se empreenda, e sem demora, para que se evite a tal «morte lenta» dos grémios da lavoura - essa bela e promissora criação do Estado Novo. Fazê-lo, Sr. Presidente, é realizar obra de cunho autenticamente nacional.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
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O Sr. Cerveira Pinto: - Sr. Presidente: numa das sessões deste período legislativo requeri que pelo Ministério competente me fossem fornecidas informações dos motivos por que ainda não foram organizados os centros regionais previstos no artigo 4.º do Decreto n.º 9:333, de 29 de Setembro de 1923, que criou o Instituto do Cancro, nem tão-pouco as delegações do Instituto de Oncologia e centros de tratamento no Porto e Coimbra, expressamente considerados na base X da Lei n.º 1:998, de 15 de Maio de 1944.
Em resposta, recebi do Ministério da Educação Nacional uma exposição que sobre o caso lhe foi dirigida pelo Instituto Português de Oncologia, acompanhada de vária documentação referente ao assunto do meu requerimento.
Por essa exposição e pelos documentos juntos verifiquei que o problema da criação dos centros de tratamento do cancro, principalmente o do Porto, não tem sido descurado.
Assim é que no boletim do Instituto Português de Oncologia de Novembro de 1937 o ilustre presidente da comissão directora daquele Instituto pôs em evidência a necessidade de se estabelecer no Pais uma rede de centros regionais para diagnóstico e tratamento do cancro e no referido boletim de Maio de 1945 dizia-se que o centro de tratamento no Porto seria dentro em breve uma realidade.
Volvidos, porém, já tantos anos, a verdade é que a respeito de tratamento do cancro continuamos a contar exclusivamente com o Instituto Português de Oncologia, de Lisboa.
Estabelecimento magnifico, grandioso, esplendidamente apetrechado, como melhor não há no Mundo.
Não somos nós que, por «cchauvinismo» patriótico, o dizemos. São os maiores mestres estrangeiros, vindos a Lisboa, que o têm proclamado, em quase todas as línguas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O Instituto Português de Oncologia, obra exclusiva do Estado Novo, constitui um dos grandes motivos de glória de um regime que, na sua acção construtiva, partiu, neste sector como em quase todos os outros, do zero absoluto.
Apoiados.
Reconhecê-lo significa apenas assumir uma atitude de probidade mental.
Contudo, no resto do País, e nomeadamente no Porto, que, quer queiram, quer não queiram, é uma grande cidade, cabeça da zona mais populosa de Portugal, não existe, neste capitulo, absolutamente nada.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Dos 4:151 óbitos causados pelo cancro em 1948, respeitam ao Norte do País 1:525.
Dizia não sei que economista que todas as estatísticas mentem pelo menos duas vezes.
Esta mente com certeza mais.
É que se o número de 1:525 óbitos motivados pelo cancro é em si impressionante, a verdade é que não é proporcional à população do Norte do País. E essa desproporção mais se acentua se atentarmos em que no referido ano de 1948 faleceram em Lisboa, vitimas do terrível mal, 1:021 pessoas, ao passo que no Porto, esse número é apenas de 170.
Ninguém acredita que os habitantes do Norte gozem de singular protecção ou de particular imunidade.
Os números que citei são simplesmente indicativos de que o número conhecido de vítimas é tanto menor quanto mais precários forem os meios de diagnóstico e tratamento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Há vastas regiões do Norte do Pais onde as estatísticas quase não acusam óbitos motivados pelo cancro, simplesmente porque as vítimas passaram para o mundo da verdade sem que se saiba o mal de que vieram a falecer.
Mas, atendo-nos apenas ao número de 1:025 óbitos verificados em 1948 no Norte, o certo é que, por não haver no Porto qualquer centro de serviço especializado para o diagnóstico e tratamento do cancro, todos os que sucumbiram vitimados por este temível flagelo teriam de se deslocar a Lisboa para receberem o tratamento de que careciam.
E então ocorro perguntar:
Deles, quantos poderiam suportar as despesas de deslocação? Quantos se poderiam ter salvo se o seu mal tivesse sido diagnosticado a tempo e se não salvaram pelo facto de o diagnóstico ter sido feito tardiamente, em virtude de no Norte não haver centros especializados para esse efeito?
É hoje do conhecimento comum que a cura do cancro é possível desde que um diagnóstico feito a tempo permita o tratamento pelos métodos experimentados e que são a cirurgia, os raios X e o rádio.
Em França considera-se que o diagnóstico e tratamento precoce podem curar um grande número de doentes afectados de cancro, nas percentagens seguintes:
Percentagens
Cancros da pele ....................... 95
Cancros do lábio ...................... 60
Cancros da língua o da laringe ........ 35
Cancros do seio e do útero ............ 50
Cancros do estômago e dos intestinos .. 40
Estas percentagens só por si justificam a necessidade de estabelecer nas cidades principais, a começar pelo Porto, centros de diagnóstico servidos por pessoal tecnicamente preparado e dispondo dos meios necessários para descobrir a doença logo que surjam os primeiros sintomas e para a tratar eficientemente.
Eu sei muito bem que falar, que pedir, não custa nada. O que custa é realizar.
Permito-me, no entanto, chamar desta Câmara a atenção do Governo para este gravíssimo e momentoso problema.
Permito-me chamar, em especial, a atenção do Sr. Ministro da Educação Nacional, que é um ilustre nortenho e por cuja pasta correm estes assuntos, para a inadiável necessidade de se criar no Porto um centro de diagnóstico e tratamento do cancro.
Não peço para o Porto um edifício com luxo, grandiosidade ou sumptuosidade, mas apenas o estritamente indispensável, para que se inicie uma luta vigorosa e eficiente contra este terrível flagelo.
O Porto bem o merece. E a gente do Norte também.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: na sessão de 1 de Abril de 1949 apresentei nesta Assembleia um projecto de lei sobre o abandono de família e para ele requeri e foi votada urgência.
Era o projecto n.º 388.
A Câmara Corporativa, com a urgência marcada, emitiu sobre ele o seu parecer n.º 38, em 26 de Abril; mas, é claro, já não foi possível a Assembleia Nacional apreciá-lo na legislatura encerrada quatro dias depois.
Por isso renovo hoje a iniciativa; e não o fiz mais cedo por saber antecipadamente que os outros assuntos
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importantes que prendem a Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional não permitiam a inclusão do meu projecto na ordem do dia no decurso do corrente período legislativo.
Precedi o projecto de um extenso relatório, suficiente para a Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional apreciarem as suas razões e os fins que me propus atingir. Mas repito o que já disse: não tenho a ilusão de que apresento um trabalho perfeito e completo.
E é apenas parte de um todo que, infelizmente, não sabemos quando surgirá e não se compadece com a demora. E, enfim, uma base de estudo que, sem dúvida, deve encontrar discordâncias e sofrer críticas e alterações que tendam a corrigi-lo e completá-lo. Só terei de regozijar-me com isto, porque outra coisa não pretendo que não seja obra perfeita.
Bem entendido que só quero referir-me às críticas sérias e construtivas, que oportunamente apreciarei, porque às outras, às dos que nada fazem e tudo criticam leviana e desdenhosamente, essas não me interessam nem perturbam.
E agora tenho a animar-me o autorizado parecer já emitido pela Câmara Corporativa, que, embora propusesse algumas alterações, acentua que o projecto trata de efectivar parcialmente um dos mais salutares princípios da nossa lei fundamental (a constituição e a defesa da família) e acrescenta que a intenção que o anima é por isso merecedora do maior louvor e aplauso. E, noutra passagem, presta homenagem ao seu alto objectivo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Acresce que, depois de apresentado há um ano, o projecto originou aplausos e palavras de incitamento e, mais recentemente, tenho recebido repetidas sugestões para renová-lo. Isto demonstra a utilidade, digo mais, a necessidade, das medidas que proponho e a sua oportunidade, tanto mais que tem chegado ao meu conhecimento verdadeiras tragédias familiares, situações e casos confrangedores e que não encontram sanções na lei, mão obstante revelarem repugnantes aberrações morais, degradação de costumes e o abandono à miséria e ao vício, sem possibilidade de salvação.
O projecto destina-se especialmente a punir devidamente os pais e mães, com filhos menores, que abandonem o domicílio comum, ou recusem aos filhos os alimentos a que estiverem legal ou judicialmente obrigados e não cumpram os demais deveres de assistência económica e moral inerentes ao poder paternal, quando daí resulte perigo moral para aqueles.
Pune também os que, por período superior a sessenta dias, tendo recursos, se recusem a pagar ao outro cônjuge ou divorciado os alimentos a que estão obrigados, e os maridos que, por falta de assistência moral e económica, originem a miséria e a corrupção dias suas mulheres, etc.
Regula também a legitimidade para a participação e a competência para o julgamento destes delitos.
Sr. Presidente: receia-se que esta intromissão do Estado, por via criminal, na vida da família tenha os seus inconvenientes. Mas a esta objecção responde-se que mm ou dais dos casos previstos no projecto já eram objecto de sanção criminal, que agora se actualiza e aperfeiçoa. E bendito o intervencionismo do Estado quando, através de sanções penais, se destina a evitar a irrelevância dos preceitos da lei civil relativos aos deveres de família; da família que o artigo 12.º da Constituição consagra como a fonte da conservação e desenvolvimento da raça, como base primeira da educação, da disciplina e harmonia social e como fundamento da ordem política e administrativa.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O projecto de lei é o seguinte:
Abandono de família
Relatório
O artigo 12.º da Constituição de 1933 assegura a organização e a defesa da família como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, da disciplina o harmonia social e como fundamento da ordem política e administrativa, pela sua agregação e representação na freguesia e no município.
Assim teve consagração no diploma fundamental do Estado o grande princípio de que a família é a base da estrutura da Nação.
«A família é a primeira e verdadeira célula da sociedade», afirmou-o Pio XII na encíclica Summus Pontificatus; e é da Rerum Novarum, de Leão XIII, esta sentença:
Os filhos são alguma coisa de seus pais; são de certa maneira uma extensão do seu poder, e, para falar com justeza, não é imediatamente por si mesmo que eles se agregam e se incorporam na sociedade civil, mas por intermédio da sociedade familiar.
Segundo Savatier, um país só será poderoso e terá numerosos filhos se as famílias forem fortes (L'Art de faire les lois). E André Henry, citado por Mabile de la Paumelière, acrescentou que a família é forte, sã e próspera quando se desenvolve segundo as previsões do legislador e, sobretudo, quando tende a realizar esse alto ideal que é o casamento no direito canónico. (L'Abandon de Famille en Droit Inverne Français}.
Em presença deste princípio imutável e eterno, era mister que os Estados, pelos seus órgãos representativos, promulgassem medidas legislativas de carácter civil, social e mesmo fiscal para conservar, fortalecer, prestigiar e defender material e moralmente o agregado familiar, imunizando-o contra todas as tendências de enfraquecimento e dissolução, particularmente acentuadas durante e após as últimas guerras, como efeito da onda de devassidão de costumes que alastrou em todo o Mundo, abalando a construção social nos seus mais sólidos fundamentos.
E como se tem comportado o Estado Português?
Antes da Constituição de 1933, a legislação portuguesa já não fora avara em medidas de defesa material e moral da família e especialmente de protecção aos menores, através do exercício do pátrio poder ou da tutela e da intervenção do Estado quando necessária e operante.
Mesmo nas velhas Ordenações do Reino destacaram-se largas medidas de protecção da família, levando-se ao máximo o rigor penal, como: a pena de morte aos adúlteros e aos raptores; a de degredo em África e perda da fazenda ao que casasse com mulher de 25 anos «em licença da pessoa a cuja guarda ela estivesse; a de degredo por três anos e tributo pecuniário ao marido com barregã teúda e manteúda; a de açoites pela vila, com baraço e pregão, e degredo no conto de Castro Marim às mulheres de costumes pervertidos, etc. E, no que diz respeito ao exercício do pátrio poder e à protecção dos
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menores, as Ordenações continham, entre outras, a instituição dos juízes dos órfãos, a garantia e defesa do património destes através do inventário, e também graves penalidades contra as infracções dos deveres do pátrio poder.
São numerosas no Código Civil as disposições de alcance sobre os direitos e deveres matrimoniais, manutenção, defesa e sucessão do património familiar, filiação, poder paternal, tutela e alimentos; sendo de notar que no artigo 285.º e outros se faz já alusão a um conselho de beneficência pupilar ou a qualquer outra magistratura que o substitua como órgão de defesa e protecção de menores expostos ou abandonados, magistratura esta que veio a ser constituída pelas tutorias da infância. B é rigoroso o sexagenário Código Penal nas sanções contra os atentados à moral da família, à honra da mulher e à protecção da infância. Pune o adultério, o lenocínio, a subtracção, ocultação, exposição e abandono de menores, o aborto, o infanticídio, o parricídio, e agrava as penas dos restantes crimes comuns, quando cometidos contra menores ou ascendentes e descendentes, etc.
Depois, são dignas de referência as chamadas «Leis da Família» de 25 de Dezembro de 1910, embora não alterassem substancialmente a doutrina do Código Civil e as tivesse desastrosamente precedido a instituição do divórcio, com uma amplitude inigualada nos outros países, e ainda por rever quase quarenta anos decorridos! Felizmente, a última Concordata com a Santa Sé vibrou-lhe golpe decisivo em referência ao casamento católico e o Código de Processo Civil estabeleceu algumas restrições objectivas ao divórcio por mútuo consentimento. O mais subsiste, com a sua acção nefasta, especialmente nos lares com filhos.
Ainda da legislação anterior ao Estado Novo merecem destaque os Decretos de 1 de Janeiro e 27 de Maio de 1911 e n.º 10:767, de 15 de Maio de 1925.
Pelo primeiro, reconhecendo-se que era mister estudar e atacar com medidas preventivas as causas de actos que perturbam o bom funcionamento da sociedade portuguesa, criou-se uma comissão de protecção aos menores de 16 anos em perigo moral, pervertidos ou delinquentes, com os fins da sua preservação e de reformação.
O segundo, promulgado também em ditadura, criou as tutorias da infância, regulou as formas de inibição do poder paternal e tutelar e providenciou a respeito dos menores em perigo moral, abandonados, desamparados, pobres, maltratados e dos delinquentes, indisciplinados e anormais. Foi um importante diploma, em que transpareceu a autoridade e a competência do padre António de Oliveira.
O terceiro decreto organizou e regulamentou todos os serviços jurisdicionais e tutelares de menores.
Vieram depois: o Decreto n.º 15:162, de 5 de Março de 1928, do Prof. Manuel Rodrigues, que alterou em parte a legislação anterior quanto à organização e funcionamento dos institutos auxiliares das tutorias da infância e quanto à competência e funcionamento destas; o Decreto n.º 18:996, de 1 de Novembro de 1930, primeiro diploma que regulou o exercício do poder paternal sobre os filhos nascidos de casamento anulado e sobre filhos de cônjuges divorciados ou separados judicialmente e filhos ilegítimos, perfilhados por ambos os pais, quando não haja acordo entre eles no que toca a esse exercício, e classificou como crime a falta de cumprimento das obrigações relativas a alimentos devidos aos filhos menores; o Decreto n.º 19:230, de 10 de Janeiro de 1931, que, essencialmente, estabeleceu a sanção de natureza penal como forma de garantir o cumprimento por parte de qualquer dos pais, a cuja guarda tenha sido confiado um filho menor, da obrigação de não estorvar o direito reservado ao outro progenitor de o ver, visitar e ter em sua companhia nos dias que o tribunal tiver determinado; o Decreto n.º 20:431, de 24 de Outubro de 1931, que compendiou as disposições dos dois decretos anteriores, alargou a matéria da regularização do exercício do poder paternal aos filhos dos cônjuges separados de facto por desavenças ou abandono do lar, e, de um modo especial, procurou providenciar no sentido de proteger os menores contra os perigos da sua frequência a casas de toleradas ou de passe, de jogo, tabernas e clubes, e espectáculos que pudessem contribuir para a sua desmoralização e perversão, e contra os riscos da publicidade de determinados actos praticados por menores. Também sobre a assistência de menores a certos espectáculos existe a Lei n.º 1:994, que continua letra morta por falta de regulamentação.
O Estatuto Judiciário passou a designar por «tribunais de menores» os órgãos da jurisdição tutelar de menores.
A matéria da regularização do pátrio poder e de alimentos encontra-se hoje prescrita nos artigos 1452.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Finalmente, ainda como de protecção à família, destacam-se, pelo seu valor e grande alcance, outros diplomas do Estado Novo, mesmo de natureza fiscal, como o que instituiu o abono de família e a notável Lei n.º 2:022, que, para manutenção e defesa dos patrimónios familiares, estabeleceu importantes isenções do imposto sucessório e encargos judiciais em favor dos descendentes; benefício sempre defendido mas só consagrado pelo Estado Novo de modo a, só por si, dignificar a actual legislatura parlamentar.
Desta síntese conclui-se sem esforço que, na verdade, na antiga e na moderna legislação portuguesa se continha e contém matéria importante, nomeadamente sobre a defesa moral e social dos menores em perigo moral.
Deve-se, porém, corrigir e completar o que está feito, em obediência ao mandato imperativo do artigo 12.º da Constituição; e, para isto, de grande utilidade seria a compilação num Código da Família de tudo o que a ela diga respeito.
Sem embargo, há um importante aspecto do problema que é conveniente contemplar e resolver urgentemente, porque, a meu ver, não se compadece com a morosidade necessária para a elaboração de um código completo.
Quero referir-me a faltas ou deficiências da legislação actual no que respeita a sanções penais contra os cônjuges, pais e tutores transgressores dos deveres de assistência material e moral entre si ou para com os menores.
É certo que o Código Penal pune com uma pequena multa os pais legítimos que, tendo meios para sustentar os filhos, os abandonarem nos locais destinados aos «expostos» (artigo 348.º); pune o adultério da mulher e, em certos casos, o do marido (artigos 401.º e 404.º, modificados pelo artigo 61.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910); pune o lenocínio a respeito da mulher ou dos filhos ou tutelados menores (artigos 405.º e 406.º), e pune com pena agravada os crimes contra a honra e os de difamação, calúnia ou injúria cometidos pelos filhos contra o pai ou mãe legítimos ou naturais, ou contra algum dos descendentes legítimos.
Prevê assim um número limitado de actos ou omissões praticados por ou contra os membros do agregado familiar.
Pelo seu lado, o Código Civil, depois de definir e regular o poder paternal nos artigos 137.º e seguintes, só no artigo 141.º dispõe que, no caso de abuso, os pais podem ser punidos na conformidade da lei geral e ser inibidos daquele poder.
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E noutros diplomas apenas encontro o seguinte:
O artigo 27.º do citado Decreto de 27 de Maio de 19J1 pune, com prisão correccional até seis meses, os pais ou tutores que infligirem aos menores maus tratos, os privarem habitualmente dos alimentos e cuidados de saúde, os .empregarem em profissões proibidas ou desumanas, ou perigosas para a vida ou saúde, ou os incitarem à gatunice, à mendicidade ou à prostituição; o artigo 104.º aplica pena correccional até seis meses aos pais ou tutores que praticarem determinados actos em relação aos menores confiados pelas tutorias da infância a oficinas, escolas, famílias adoptivas, etc., e o artigo 107.º castiga com multa ou prisão os pais ou tutores de menores desamparados ou delinquentes que os excitem ou os favoreçam neste desamparo, na delinquência ou no alcoolismo.
O Decreto n.º 20:431, de 24 de Outubro de 1931, no artigo 16.º, manda aplicar até seis meses de prisão correccional aos que, estando obrigados a prestar alimentos a menores, não os prestem durante o prazo de noventa dias. Pune na mesma pena os que se coloquem em condições de não prestar os alimentos a que estiverem obrigados, e o artigo 25.º estabelece prisão até um ano e multa, ou só multa, para os pais, tutores ou encarregados da educação de menores que tiverem sido causa ou não impedirem, podendo fazê-lo, que eles se tornem delinquentes, alcoólicos, libertinos ou viciosos, ou contribuam para a sua desmoralização, perversão ou desamparo.
O actual Código de Processo Civil manteve a competência dos tribunais de menores (antigas tutorias), em matéria de poder paternal, nos casos de divórcio, separação de pessoas e bens e anulação do casamento, destino e alimentos dos filhos de cônjuges separados de facto por desavença ou abandono do lar, e dos filhos ilegítimos perfilhados, e no artigo 1465.º providencia para o caso de falta de pagamento, dentro de dez dias depois do vencimento, dos alimentos e pensões ou encargos a que os pais estão obrigados. Neste caso, tratando-se de funcionários públicos e de empregados ou assalariados particulares, a dívida é deduzida nos vencimentos; e, não sendo isto possível, os tribunais de menores aplicar-lhes-ão, em processo correccional, a pena de prisão até seis meses, não convertível em multa.
Em resumo:
Actualmente, a legislação portuguesa apenas manda processar criminalmente os pais ou tutores que durante certo prazo faltarem à prestação dos alimentos ou pensões a que estão obrigados ou praticarem, em relação aos menores, alguns actos ou omissões de que resultem as consequências que os referidos diplomas prevêem.
Não existem, portanto, sanções penais para a falta de cumprimento de vários deveres matrimoniais ou paternais, nomeadamente:
Para os pais que abandonem voluntariamente o domicílio comum;
Para os pais ou tutores que voluntàriamente faltaram a outros deveres materiais e morais inerentes ao exercício do poder paternal ou à tutela;
Para o cônjuge ou ex-cônjuge que não paga ao outro as pensões a que estiver judicialmente obrigado;
Para o marido que faltar ao cumprimento dos seus deveres de assistência moral e económica, originando assim a miséria ou a corrupção da mulher.
Ora a falta de sanções penais para estas graves ocorrências constitui, na minha opinião, uma lacuna que é urgente preencher.
A deserção do lar é geralmente o ponto de partida, a origem primária da sua desaglutinação. Segue-se-lhe o cortejo de misérias morais e materiais raramente evitáveis: o adultério, a prostituição, o concubinato, o abandono dos filhos sem pão e sem educação e em perigo moral, e tudo o mais que, nos tribunais e na polícia, com frequência se revela confrangedoramente.
Disse o relatório da Lei de 23 de Julho de 1942 do Governo Francês que a família está ameaçada não só por causas externas, mas também por causas internas ou íntimas, logo que se desagrega quando um dos cônjuges abandona o lar. E acrescenta:
Cet abandon, qui est une désertion, revêt une gravite particulière lorsque le foyer est peuplé et que le père ou la mère, fuyant ses responsabilités, espose son conjoint et ses enfants à de graves difficultés ou même à la misère.
E o catedrático espanhol Cuello Calón também atribui ao abandono definitivo do lar a primeira causa da desagregação material e moral da família. (El delito de abandono de la familia o de incumplimiento de los deberes de asistencia familiar).
Não devemos manter-nos de braços cruzados perante este aliciante problema, perante a onda de perversão e imoralidade que assola o Mundo e ameaça destruir nas nações a sua instituição basilar. Certo é que, graças a Deus, Portugal se tem mantido, em parte, incólume perante a invasão do escalracho oriental, a que as dolorosas vicissitudes das guerras forneceram terreno propício; mas é mister alicerçar melhor e fortalecer mais o dique que opomos ao alastramento do mal.
Não são, na verdade, tão fortes entre nós as razões que levaram outros países, como a França, a reagir. Mas reacção semelhante se operou na própria Espanha, onde, porventura, o problema não tem uma acuidade superior à do português. Refiro propositadamente dois países de regimes diversos.
A França, por razões de ordem política e por efeito das guerras, foi naturalmente mais assolada pelo germe da devassidão, produto também do espírito individualista de que a Revolução a impregnou.
Aponta La Paumelière como causas desta grave crise em França, como afinal em todos os países, além daquelas doutrinas individualistas, o êxodo rural, o trabalho da mulher, a crise social e moral, que Alexis Garrel fundamenta e aprecia em exactos conceitos.
A Espanha, apesar de muito menos contaminada, precata-se também, porque, ma expressão de Calón, a decadência da família é um dos males mais graves entre os terríveis males que na época presente afligem a Humanidade; e aponta como origem, entre outras, as actuais condições económicas e sociais, o desenvolvimento da grande indústria em detrimento das patriarcais indústrias domésticas e do trabalho agrícola, com a sua nociva e imediata consequência do abandono da vida campestre pelos fáceis atractivos das grandes cidades, a ânsia cada vez maior de lucros adquiridos com rapidez impetuosa e o debilitamento das crenças religiosas.
Podemos acrescentar: por toda a parte, a falta de higiene e conforto nos lares, as dificuldades da vida e o seu baixo nível, e, noutra camada, até o abuso da ocupação em serviços públicos e particulares de um número excessivo de raparigas de famílias suficientemente remediadas e de esposas, e especialmente de mães com filhos menores, que não sejam chefes de família necessitada. Um verdadeiro êxodo do lar!
Ainda durante a ocupação, a França promulgou aquela Lei n.º 676, de 23 de Julho de 1942, e, antes, a Espanha promulgara a Lei de 12 de Março do mesmo ano, atinentes precisamente a regular a punição do abandono material e moral do lar.
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A lei francesa pune com prisão de três meses a um ano ou em multa de 1:000 a 20:000 francos o pai ou a mãe de família que abandonem sem motivo grave, durante mais de dois meses, a residência familiar e se subtraiam a todas ou a parte das obrigações de ordem moral e material resultantes do poder paternal ou de tutela legal e o marido que por igual período abandone voluntàriamente sua mulher, sabendo-a grávida.
Pune também com a prisão de três meses a um ano ou multa de 1:000 a 20:000 francos todos os que, estando condenados ao pagamento de pensões alimentares ao cônjuge, a ascendente e a descendente, suspendam o pagamento durante anais de dois meses.
Os pais condenados podem ser privados, no todo ou em parte, do poder paternal, de direitos políticos e de determinados direitos civis durante cinco a dez anos. A lei espanhola castiga a inobservância dos deveres de assistência inerentes ao pátrio poder, à tutela e ao estado matrimonial, proveniente do abandono do domicílio familiar ou de conduta desordenada, e ainda a não prestação de assistência indispensável ao sustento dos descendentes menores ou incapazes para o trabalho, ascendentes e cônjuges necessitados. E as penas são de prisão e multa.
Afigura-se-me, porém, que a moderna legislação francesa e espanhola não foi amoldada às suas premissas, pois nestas considera a deserção do lar como o «pecado original» de toda a desagregação familiar e naquela ao a pune quando cumulativamente se verifique a infracção de outros deveres paternais e matrimoniais. Não atacam o mal aia sua raiz.
Na relação entre causa e efeitos é necessário combater estes, mas impõe-se sobretudo destruir aquela. O Código Penal italiano (artigo 570.º) castiga com reclusão até um ano, ou multa de 1:000 a 10:000 liras, o que abandone o domicílio doméstico.
Entre as sanções prescritas no direito inglês avulta a perda do direito de sucessão ai) intestato dos bens da mulher pelo marido culpado da deserção (Judicature Act de 1925); e o que abandonar a mulher e seus filhos e os filhos de sua mulher, deixando-os a cargo de uma paróquia, de uma cidade ou vila, será reputado vagabundo e castigado com três meses, de trabalhos (forçados.
Julguei convenientes as ligeiras considerações que precedem para mais rápida apreciação do estado do problema e dos objectivos deste projecto, de lei.
Como resulta do exposto, o projecto visa especialmente a tornar extensivas à deserção do lar com filhos e a casos ainda não incriminados de abandono material e moral dos filhos e da mulher sanções penais semelhantes às que já existem na nossa lei para outros casos. E, pelas razões que indiquei, o projecto, em contrário das apontadas legislações francesa e espanhola; incrimina o próprio acto do abandono do lar, isoladamente considerado. Abandono voluntário, intencional, bem entendido. Por isso lhe chamei deserção.
Para limitar a dispersão das regras de natureza penal sobre estas relações de família, julguei oportuno reproduzir no projecto a punição da falta de pagamento de alimentos e pensões.
No tocante às penalidades, tive em atenção a conveniência de elevar os limites mínimo e máximo da prisão e o máximo da multa e, à semelhança da lei francesa, permitir a condenação simultânea em suspensão de direitos políticos, cumprindo também assim um voto da 5.º Conferência para a Unificação do Direito Penal.
O projecto adopta o mencionado preceito da lei inglesa acerca da perda da herança ab intestato. É justo e moralizador.
Eis as razões e os .fundamentos deste projecto. Por eles e também porque o n.º 5.º do artigo 14.º da Constituição determina que o Estado «tome todas as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes», julgo-o justificado.
Não é suficiente, bem sei. Mas constitui parcela de um conjunto que, como disse Casanova, se manifestará pela propagação de ideias e de doutrinas sãs, pelo afervoramento da moral cristã, pela luta contra as teorias e os sofismas perniciosos e contra todos os outros flagelos morais e sociais que enfraquecem a família, tais como o alcoolismo, a pornografia, a união livre, a prostituição, o divórcio, etc. (L'Abandon de Famille).
Projecto de lei
Artigo 1.º Serão condenados na pena de .prisão correccional de um mês a dois anos e multa até 10.000$:
1.º Os pais ou mães com filhos legítimos menores que, voluntariamente e sem motivo justificado, abandonarem o domicílio comum por período de tempo superior a sessenta dias, embora continuem a cumprir os outros deveres inerentes ao poder paternal;
2.º Os pais, as mães e as demais pessoas que, por tempo superior a sessenta dias, faltarem, voluntàriamente e sem motivo justificado, à prestação de alimentos a que estiverem legal ou judicialmente obrigados para com os menores;
3.º Os pais, as mães e os tutores que faltarem, voluntariamente e sem motivo justificado, ao cumprimento de outros deveres de assistência económica e moral inerentes ao poder paternal e à tutela, quando daí resulte perigo moral para os menores;
4.º Os que, por tempo superior a sessenta dias, faltarem, voluntariamente e sem motivo justificado, ao pagamento ao seu cônjuge ou ex-cônjuge das pensões alimentícias a que estiverem judicialmente obrigados;
5.º Os maridos que faltarem aos deveres de assistência económica e moral para com suas mulheres, causando com este procedimento a sua miséria e corrupção;
6.º Os que, por alienação ou ocultação de bens e rendimentos ou por qualquer outro meio, se colocarem voluntária e intencionalmente em condições de não poderem ser coagidos a cumprir os deveres referidos nos números anteriores.
Art. 2.º Em todos os casos mencionados no artigo anterior o réu pode ser condenado cumulativamente na suspensão de direitos políticos por dois a cinco anos.
§ 1.º Havendo mais de uma condenação pelos delitos previstos nos n.ºs 4.º e 5.º do artigo anterior, o cônjuge condenado perde o direito à herança ab intestato do outro cônjuge, excepto se, pelo menos, sessenta dias antes do falecimento deste, tiver pago as pensões alimentícias em dívida ou voltado a cumprir os demais deveres de assistência material e moral indicados no n.º 5.º
§ 2.º Se, no caso do n.º 5.º do artigo 1.º, a mulher estiver grávida e o marido tiver conhecimento do estado de gravidez, esta circunstância será havida como agravante na graduação da pena.
Art. 3.º O prazo de sessenta dias estabelecido no n.º 1.º do artigo 1.º pode ser continuo ou interpolado, excepto quando, neste último caso, o regresso ao lar resulte do manifesto propósito de restabelecimento da vida em comum e se prolongue por mais de seis meses consecutivos.
Art. 4.º A participação dos delitos previstos nos n.ºs 1.º, 2.º e 3.º do artigo 1.º compete ao outro progenitor, ao curador de menores ou ao Ministério Público e a dos previstos nos n.ºs 4.º e 5.º do mesmo artigo compete aos interessados.
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§ único. A participação do delito previsto no n.º 6.º do artigo 1.º compete ao outro progenitor, ao curador de menores ou ao Ministério Público nos casos dos n.ºs 1.º, 2.º e 3.º do mesmo artigo, e nos restantes casos cômputo aos interessados.
Art. 5.º Os tribunais de menores são os competentes para a instrução e julgamento dos delitos previstos nos n.ºs 1.º, 2.º e 3.º e, tratando-se de menores, no n.º 6.º do artigo 1.º
Art. 6.º Fica revogada a legislação em contrário.
O Sr. Gaspar Ferreira: - Sr. Presidente: ao usar da palavra pela primeira vez nesta Assembleia na presente legislatura cumpro gostosamente o dever de apresentar a V. Ex.ª as minhas mais respeitosas homenagens, com a expressão da minha mais viva admiração por todas aquelas qualidades, geralmente reconhecidas e unanimemente apontadas nesta Assembleia, que firmam V. Ex.ª entre os mais proeminentes homens de Estado e entre os mais prestimosos cidadãos.
O conjunto das mais nobres qualidades morais e das mais brilhantes faculdades intelectuais, tão larga e prodigamente manifestadas por V. Ex.ª na presidência desta Assembleia, eleva-o no alto conceito, na grande admiração e na respeitosa estima de todos os que desta Assembleia fazem parte e é contributo poderoso para o prestigio desta no conceito da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A VV. Ex.ªs, Srs. Deputados, eu apresento os meus cordeais cumprimentos e as minhas homenagens, com a afirmação do meu mais deliberado propósito de leal colaboração no serviço da Nação.
Sr. Presidente: pedi a palavra unicamente para mandar para a Mesa um requerimento em que peço que me sejam fornecidos, pelas instâncias competentes, alguns elementos indispensáveis para me esclarecer sobre a propriedade e justeza do sistema que a Junta Nacional dos Produtos Pecuários se propõe estabelecer através da sua circular n.º 148/Lt, de 29 de Março último, a fim de assegurar, como se diz naquela circular, os legítimos interesses da produção de leite e da indústria de lacticínios.
Porque o problema do leite é para a lavoura do distrito de Aveiro - do qual tenho a honra de ser um dos representantes nesta Assembleia - da mais alta importância, não só sob o ponto de vista económico, mas também sob os pontos de vista político e social; porque é, de facto, da mais alta conveniência estabelecer urgentemente, sem se esquecer a consideração dos interesses dos consumidores, a harmonia dos interesses da lavoura e da indústria dos lacticínios, o que já sustentei na minha intervenção nesta Assembleia sobre tal assunto em 20 de Fevereiro do 1946; porque se principia a notar que, após uma relativa acalmia da acuidade do problema, acalmia estabelecida principalmente pela resolução ministerial de terminar com as zonas de abastecimento das fábricas de lacticínios privativas de cada uma delas e pela melhoria do preço do leite fornecido pelos produtores a indústria, se está regressando a uma viva perturbação - por todos esses motivos é indispensável considerar - urgentemente e dar pronta resolução a tão importante problema, que se não nega ser da maior complexidade.
Envolve esse problema interesses primaciais para a apertada economia dos lavradores do distrito de Aveiro, no seu conjunto tão digna e tão necessitada de melhor consideração do que a que lhe tem sido prestada, tornando-se necessário, para a libertar de catastrófica ameaça de asfixia, aliviá-la do aperto da corda entretecida com aviltamento de preços, com diminuição de poder de compra, com especulações de vária ordem de que é vítima, com a falta de necessária e apropriada assistência técnica e com o ataque de parasitismo de diversas naturezas.
A importância do problema do leite e de outros interessando à agricultura do distrito de Aveiro não me permite que me dispense de em ocasião oportuna, tratar deles nesta Assembleia e para o fazer estou coligindo elementos, tornando-se necessário aditar-lhes os que solicito no requerimento que vou enviar para a Mesa e que peço licença a V. Ex.ª, Sr. Presidente, para ler.
Requerimento
«Requeiro que, pelo Ministério da Economia, mo sejam fornecidos com urgência:
a) Cópia do despacho de S. Ex.ª o Subsecretário de Estado do Comércio o Indústria, de 11 de Março findo, sobre a valorização do leite para fins industriais pelo teor butiroso;
b) Cópia do parecer da Junta Nacional dos Produtos Pecuários, sobre o qual foi lançado o despacho referido na alínea anterior;
c) Esclarecimento sobre o que se deve entender por «leite para fins industriais», isto é, se é sòmente leite entregue à indústria e por esta transformado ou se é todo o leite entregue aos estabelecimentos industriais com inclusão do que estes fornecem, em natureza, aos diferentes agrupamentos populacionais;
d) Quantidades de leite fornecidas por cada uma das empresas industriais do distrito de Aveiro em cada um dos anos de 1945 a 1949, inclusive, e ainda no período decorrido do corrente ano, com indicação dos preços correspondentes;
e) Preço fixado ao leite entregue pelos produtores do distrito de Aveiro aos estabelecimentos industriais durante os períodos de tempo indicados na alínea anterior;
f) Quantidade de leite laborado em cada uma das fábricas de lacticínios do distrito de Aveiro (incluindo as pertencentes a cooperativas) e quantidades dos produtos fabricados;
g) Indicação do destino dado ao leite desnatado sobrante do fabrico dos diferentes produtos, com a indicação da sua quantidade e qual a sua valorização;
h) Quantitativo dos capitais realmente investidos em cada um dos estabelecimentos fabris de lacticínios do distrito de Aveiro.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Vai discutir-se o projecto de lei n.º 50, do Sr. Deputada Botelho Moniz, sobre amnistia e revogação das leis de banimento.
Tem a palavra o Sr. Deputado Botelho Moniz.
O Sr. Botelho Moniz: - Sr. Presidente: nunca como hoje me senti tão tristemente perturbado pela certeza da minha inferioridade em relação a missão que as circunstâncias me impuseram.
Exactamente há um quarto de século, a 21 de Abril de 1925, eu era um vencido, prisioneiro a bordo da fragata D. Fernando. Estava aguardando a formação do processo que me levaria, em companhia honrosa, a ser julgado na Sala do Risco pelo crime de sublevação militar.
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Por graça de Deus, nascemos e vivemos neste país de boas gentes que se chama Portugal.
A ninguém causará espanto que eu continue pronunciando palavras de amor e palavras de pacificação em vez de requerer represálias contra adversários.
O que sofri na derrota entre o assassinato de Sidónio Pais e o triunfo do 28 de Maio; o que lutei paia conservar a vitória desde o advento do Estado Novo ato aos dias de hoje; as incompreensões, as insídias e as calúnias com que os inimigos - e até pretensos amigos - desvirtuam os actos dos combatentes civis e militares que com mais frequência aparecem na liça política, nada disso me impediu de manter-me alheio, quer a ódios pessoais, quer a dissídios doutrinários de ordem secundária.
Pugno, cristãmente, pela unidade nacional, pela conciliação dos portugueses, pelo desaparecimento dos motivos de divisão. Fui culpado, em lutas de mocidade, de intolerância excessiva. Procuro redimir-me hoje, não por meio do exagero inverso, isto é, da transigência dos débeis, mas devido a compreender qual a missão nacional de um regime forte. O Estado corporativo marcha de vitória em vitória há vinte e quatro anos, adquiriu estabilidade incontestável e soube prestar ao País serviços inigualáveis. Nem necessita de esmagar os adversários nem deve ser ingrato para com os colaboradores da sua obra de redenção. Por via dessa obra o Estado corporativo adquiriu dois direitos: primeiro, o de estender mão amiga aos adversários políticos que sejam patriotas; segundo, o de restituir os seus direitos às vítimas de lutas anteriores a 28 de Maio.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Esses combatentes, monárquicos ou republicanos, são acima de tudo nacionalistas que sempre foram nossos camaradas valorosos e queridos em horas de risco e de amargura.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por excelso de legalismo, por ingratidão manifesta ou por incompreensível escrúpulo político, temo-los conservado afastados dos quadros dá Armada e do Exército ... embora lhes agradeçamos a colaboração noutros sectores da vida nacional.
Não me movem sentimentos de generosidade. Não me coloco na situação de perdoar. Quando escrevo a palavra «amnistia» adopto-a por ser a expressão jurídica de mais fácil utilização, sem lhe dar qualquer sentido pejorativo que ela não possui. Também a própria oposição a empregara primeiro que eu na campanha eleitoral. Se me refiro a crimes políticos faço-o com a despreocupação de quem não se envergonha, e antes se gloria, de ter cometido crimes semelhantes aos dos revoltosos que pretende ver amnistiados.
Em matéria de sublevação política existem duas alternativas imediatas: ser-se criminoso ou ser-se herói, conforme ficarmos derrotados ou alcançarmos o triunfo. Só o futuro e a história decidirão em definitivo. Não façamos questão de palavras, nem nos deixemos arrastar por movimentos de orgulho. Amnistia significa esquecimento eterno. Esqueçamos as nossas desavenças passadas - e Portugal viverá anos de paz, de felicidade e de trabalho próspero.
Não me movem sentimentos de generosidade dignas de agradecimento. Obedeço à lógica política, à ética mais pura da doutrina corporativa, baseada na harmonia das actividades, na igualdade de direitos, no desaparecimento do espírito de partidarismo e de luta de classes, sejam elas quais forem, por meio da subordinação ao interesse geral.
Para se compreender em toda a sua profundidade este pensamento político há que recordar o ambiente em que foram apresentados, extraparlamentarmente, dois projectos de amnistia: primeiro em data, o do candidato presidencial de certa parte da oposição. S. Exa em começo de 1949, propunha-se conceder amnistia ampla... a todas as vítimas políticas posteriores a 28 de Maio de 1926. Retorqui, em entrevista publicada no Diário de Lisboa, aos 12 de Janeiro de 1949, que amnistia política sòmente para benefício dos amigos, tal qual a preconizava o candidato oposicionista, seria nova lei de excepção, tão parcial como outras que em nome da liberdade se votaram e promulgaram.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Acrescentarei que não deveriam ser esquecidas as vítimas havidos de 1910 para cá, incluindo os monárquicos, meus adversários em Monsanto. Repugnava-me o perdão só para alguns, isto é, eivado de ódios ou semeador de mais tempestades. Além disso, eu não admitia que a oposição considerasse crime político digno de amnistia a traição à Pátria, o assassínio e o terrorismo, isto é, a sublime essência das actividades comunistas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Passada a campanha eleitoral, logo que e Parlamento reabriu, cumpri a promessa feita. Procedi com a independência completa que a União Nacional concede aos seus Deputados, independência desconhecida em qualquer agremiação partidária, por mais liberal que se diga.
Vozes: - Muito bem!
O orador: - não consultei prèviamente nem o leader, nem o Governo, nem a comissão executiva da União Nacional. Porquê? Primeiro, porque desejava deixar aos outros a mesma liberdade de decisão que me concediam; segundo, porque, em consequência da orientação pública que eu dera, também com plena liberdade de acção, à minha modesta colaboração na campanha eleitoral, me sentia obrigado moralmente a incluir no projecto de lei uma Segunda parte que me parecia assunto muito dedicado, devido às especulações a que talvez desse lugar. Essa Segunda parte - restituição de direitos - era melindrosa, sob o ponto de vista militar, no que respeitava aos inválidos de guerra. Poderia parecê-lo ainda mais em matéria política, ou seja quanto ao artigo referente à revogação das leis de banimento. A minha intenção era, evidentemente, contribuir para a conciliação lusíada. Todavia, entre as boas intenções de um sonhador e a forma como o País as compreendesse e apreciasse poderia existir um abismo em vez de obter acalmia, receava levantar discussão azeda, filha de extremismos e cegueiras.
O raciocínio dizia-me que o ideal do projecto era justo. Mas quantas vezes o raciocínio é vencido pelas paixões de uns e pelas invejas de outros!
Se eu estivesse em erro, se me tivesse enganado na previsão dos acontecimentos, não queria que a situação ficasse prejudicada por acto individual meu, nem me era lícito solicitar solidariedade fosse de quem fosse.
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midade. Entretanto, é caso de perguntar: porque se misturariam matérias tão diversas no mesmo projecto de lei? Que tem a amnistia com os inválidos de guerra ou os heróis militares com as leis de banimento?
A razão do conjunto acha-se exactamente na preocupação de evitar especulações políticas, no desejo de demonstrar completa ausência de partidarismo e na ansiedade de eliminar injustiças e causas de descontentamento. Para conciliar é indispensável agradar a gregos e a troianos. Por isso pretendi obter plataforma comum aos desejos de todos.
A meu ver, o projecto, depois de apresentado em conjunto, poderia ser dividido em três leis separadas, cada uma relativa a seu assunto: amnistia, restituição de direitos a inválidos de guerra e revogação das leis de banimento. Mas convinha que a apresentação e o debate parlamentar da generalidade considerassem o todo, porque isso aparecia como indispensável à realização do ideal de apaziguamento.
Para apreciar em conjunto não há que cair novamente no erro de tomar uma das partes pelo todo, erro que já deu lugar a discussões não isentas de azedume. No seu primeiro parecer n.º 37, de 25 de Abril de 1949, relativo ao projecto de lei n.º 289, a Câmara Corporativa intitulou-se, indevidamente, «Amnistia aos crimes políticos e faltas disciplinares». Este lapso, consequente a interpretações erradas aparecidas na imprensa, deu origem, no final da legislatura passada, a algumas referências nesta Assembleia.
Tiveram os seus quês de bizantinas, porque, embora estivéssemos de acordo na essência, perdemos tempo em busca de fórmulas já expressamente encontradas.
O segundo parecer da Câmara Corporativa, n.º 6/V, de 17 de Março último, não comete o mesmo lapso de título. Cita apenas o novo n.º 50 do projecto de lei.
Para abreviar a apreciação desses dois documentos devo começar por apontamento sincero em que nada ponho de modéstia falsa: mais do que ninguém considero o meu projecto de lei insuficiente, incompleto e imperfeito. Não possui a amplitude de amnistia que julgo conveniente à conciliação nacional. Não irmana todos os inválidos de guerra na restituição dos seus direitos antigos.
Estas são insuficiências reais, de que resulta injustiça profunda.
Quanto ao artigo 5.º, relativo à revogação das leis de banimento, não me interessa a redacção, mas apenas o objectivo a atingir. Aceito sem discussão que o texto da Câmara Corporativa contenha melhor forma jurídica. Também já declarei publicamente, dentro e fora do Parlamento, um ano antes de esse parecer ser publicado - e acabo de repeti-lo há poucos minutos -, que nada impede transformar esse artigo 5.º em artigo único de lei separada. Segundo o parecer da Câmara Corporativa, ficará com a redacção seguinte, que inteiramente aceito, por mais adequada:
Artigo único. São revogadas a Carta de Lei de 19 de Dezembro de 1834 e o Decreto de 15 de Outubro de 1910.
Pesa-me sòmente que Portugal não tenha sido a primeira nação a dar este exemplo de dignidade política. A grande República Brasileira, filha carnal e espiritual dos portugueses, mostrou-nos o caminho a seguir. A República Francesa já admitiu no seu território o conde de Paris e os seus descendents. A declaração universal dos direitos do Homem, adoptada pelas Nações Unidas (à excepção da Rússia e dos seus satélites), proclama democrática e implicitamente a injustiça do exílio das famílias reais. Os seus artigos 2.º, 7.º, 9.º e 13.º são eloquentes.
Nada necessito acrescentar ao que escrevi nos jornais e ao que declarei nesta Assembleia como justificação desta parte do projecto. O primeiro parecer da Câmara Corporativa é-lhe inteiramente favorável. O segundo parecer, salvo o pormenor secundário da redacção, confirma inteiramente aqueloutro.
No intervalo de tempo que mediou entre ambos alguém que sabe medir as suas responsabilidades de chefe, alguém que sempre actua com raro sentimento das oportunidades e sabe definir com clareza luminosa e coragem inigualável o seu modo de ver, não hesitou em declarar qual era a opinião do Governo. Fê-lo em termos de não afectar a liberdade de decisão da Assembleia Nacional.
Acham-se representadas aqui várias correntes doutrinárias. Mas, por felicidade do País, todas elas são 100 por cento portuguesas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Não nos digladiamos sistematicamente. Podemos discordar nos pormenores, mas colaboramos em grandiosa obra comum. Por consequência aprendemos a não ser movidos por quaisquer interesses partidários. Porque não agimos em nome destes, mas de um ideal mais alto, a revogação das leis de banimento merece ser admitida unanimemente. Não há que discuti-la.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Em nome da nossa Pátria, como representantes legítimos de um povo orgulhoso da epopeia dos seus antepassados, constituiremos um bloco único e proclamaremos solenemente que os Príncipes de Portugal, património da Nação, possuem, como qualquer dos portugueses, o direito sagrado e inalienável de viver na sua terra!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Pode parecer impróprio da magnitude deste momento histórico acrescentar quaisquer outras considerações às palavras que acabo de pronunciar sobre a justiça nacional da revogação das leis de banimento.
Mas não fica mal aos príncipes serem, acompanhados por militares heróicos, cujas mutilações atestam os sacrifícios feitos pela Pátria. Outro seria o destino dos povos se os grandes deste Mundo se rodeassem de homens que aprenderam a servir e a combater, mas não aprenderam a adular e intrigar.
A parte do meu projecto que se- refere aos inválidos de guerra ou inválidos em consequência de desastre em serviço de campanha ou manutenção de ordem pública prevê apenas a restituição dos direitos concedidos anteriormente pelo revogado Código de Mutilados a condecorados com a Torre e Espada, medalha de valor militar e cruz de guerra, louvados por feitos em campanha, promovidos por distinção por feitos em combate ou beneméritos dia Pátria por legislação individual.
Qual o motivo desta limitação? Porque não propus, pura e simplesmente, a reposição do antigo Código de Mutilados?
Diz-se que à sombra dele se cometeram abusos em benefício de determinados militares e que daí resultou u necessidade de sua revogação. Não quero responder que me pareceria mais justo rever os casos de abuso que prejudicar a generalidade dos inválidos. Para eliminar uma injustiça não convém praticar injustiças maiores ou mais numerosas.
Entretanto, fosse esse o motivo dá revogação do Código, ou devesse-se ela ao facto de se considerarem exa-
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geradas as vantagens concedidas anteriormente aos sacrificados pela Pátria - não pode existir dúvida de que, pelo menos, os militares mais altamente condecorados não devem ser considerados indignos da gratidão da Pátria. Pelo menos esses são indiscutíveis. Pelo menos a esses devem ser restituídos os direitos que já possuíram.
O meu projecto, insuficiente como é, não podia nem devia ir mais além. Em primeiro lugar, porque nem sou demagogo nem pretendo adquirir popularidade. A mais elementar lealdade para com a Assembleia Nacional exigia-me que propusesse pouco para que a Assembleia pudesse, se assim o entendesse, ampliar e melhorar o texto que eu lhe apresentava. Proceder ao invés constituiria incorrecção..
Em segundo lugar, necessitava não correr o risco de que o projecto logo de início fosse dado como inconstitucional, por envolver aumento de despesa. Só o Governo tem poderes para publicar diplomas legislativos que criem novos encargos ao erário público. A Assembleia Nacional não possui atribuições para tanto.
Como rodear a dificuldade? Ouvidos os mestres da matéria, introduziu-se no projecto nova limitação constituída pelas palavras e na medida das vagas existentes ou que vierem a dar-se», o que tornava o sistema praticável dentro das verbas orçamentadas, isto é, não obrigava a alterações no orçamento. Graças a esta redacção, o projecto não foi considerado inconstitucional por qualquer das comissões parlamentares. Mas a Câmara Corporativa fulminou-o, não admitindo aquela fórmula de transacção. Na impossibilidade constitucional de fazer justiça a todos ou beneficiar todos, tentei beneficiar o maior número.
Mas sempre acrescentei que isto era apenas o primeiro passo, base de partida ou base de discussão, cujo alargamento ou aperfeiçoamento eu aceitaria com prazer, quer partissem da Assembleia, quer viessem do Executivo.
O segundo parecer da Câmara Corporativa propõe a substituição do artigo 3.º do projecto de lei n.º 50 por novo projecto com um artigo único e dois parágrafos.
A míngua de melhor, eu concordaria com eles se, em vez de substituição, se dissesse aditamento.
A aceitação do texto da Câmara Corporativa, como adicional ao que propus, daria o resultado seguinte:
Os militares inválidos, altamente condecorados, oficiais ou praças de pré seriam promovidos e os seus respectivos soldos ou pensões elevar-se-iam em consequência.
Os oficiais inválidos que não pudessem ser beneficiados pelo meu texto sê-lo-iam apenas moralmente pelo da Câmara Corporativa, obtendo a promoção honorária, sem aumento de pensões.
Mas não é altura ainda para discutir a especialidade. Tento esperança de que as nossas comissões parlamentares, que estão estudando cuidadosamente o assunto, encontrem soluções mais amplas e mais justas. Dar-se-lhes-ia aplauso pleno se atingissem o objectivo que na generalidade se pode definir assim:
Torna-se necessário assegurar meios de existência condignos aos militares que dão o seu sangue e a sua saúde pela Pátria, porque eles, que foram e são os primeiros no sacrifício, não devem ficar em desigualdade de posto e de proventos em relação àqueles a quem a sorte poupou.
Infelizmente, a Assembleia Nacional não possui maneira constitucional de alcançar tanto. Resta pronunciar-me sobre a amnistia. Aplicam-se-lhe as considerações acerca do receio de inconstitucionalidade que produzi relativamente aos inválidos.
Este capítulo do projecto enferma das mesmas causas de insuficiência e injustiça relativas. Deixo à Assembleia Nacional o cuidado generoso de o melhorar, alargar e completar, se o julgar digno disso, apesar dos pareceres nitidamente contrários da Câmara Cooperativa.
A meu pesar, vejo-me forçado a rebater, desta voz com. alguma veemência, os argumentos aduzidos pelos Dignos Procuradores. O último parecer, n.º 6/V, de 7 de Março último, confirma o antecedente, n.º 37, de 25 de Abril de 1949. Por isso os criticarei em conjunto.
A Câmara Corporativa não é assembleia política. Prima pela técnica, não sente como os Deputados as aspirações do povo, não vibra em unísono com eles, não contacta com a grande massa eleitoral, não tem obrigação nem ocasião de viver o ambiente político. Daí um certo rigorismo de processos, que pode traduzir-se em abstracção das realidades. Por exemplo, a interpretação que dá aos sublimes votos de perdão, reconciliação e concórdia expressos pelo Santo Padre na sua mensagem radiofónica de 23 de Dezembro passado é totalmente diversa da publicada pelo brilhante jornal católico As Novidades no número de 24 de Fevereiro último ou pelo Osservatore Romano, orgão do Vaticano, na véspera do Natal.
«Quem quer ser sinceramente cristão deve saber perdoar», proclamou Sua Santidade a todo o Mundo. Mas a Câmara Corporativa entende que estas palavras não se aplicam a Portugal. Porque não fazemos parte do Mundo? Porque não queremos ser sinceramente cristãos? Porque somos todos santos e não há pecadores entre nós?
Não! Segundo se depreende das alegações daquela Câmara, pela simples razão de que em Portugal já não existe ninguém necessitado de perdão. Na verdade, cita dezenas e dezenas de decretos de amnistia, como se interessasse o número deles e não o número e a qualidade das pessoas não abrangidas.
Felizmente há poucos presos políticos em Portugal. Entretanto existem centenas de vítimas a quem se concedeu a liberdade mas amo se restituíram os cargos oficiais. Algumas vivem na miséria.
A realidade, a realidade pungente, a realidade estranha e inexplicável, mas realidade indiscutível, é só esta: o maior número dessas vítimas encontra-se exactamente entre os percursores do 28 de Maio e entre os colaborades constantes, desinteressados, abnegados e heróicos do Estado Novo!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Depois do 28 de Maio amnistiaram-se e promoveram-se, até ao mais alto posto da hierarquia militar oficiais culpados de chefia de movimentos oposicionistas. Mas conservam-se afastados do Exército ou reintegraram-se como milicianos oficiais de carreira que são exemplos vivos de puras virtudes nacionalistas.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O caso Moreira Lopes constitui flagrante e completa demonstração de desigualdade de tratamentos. Serve, simultâneamente, para revelar a insuficiência ou disparidade dos critérios de amnistia e a injustiça da revogação do Código de Mutilados. O tenente Moreira Lopes, herói da Flandres mia, primeira guerra mundial, precursor do 28 de Maio, combatente denodado nas ocasiões em que o nacionalismo periga, bate-se como leão em 7 de Fevereiro. Depois de gravemente ferido, é mandado ingressar no quadro de mutilados, no posto de tenente, mas com o direito legal, adquirido por feitos em combate realizados durante a
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vigência do Código, a ascender, por arrastamento, ao posto de coronel. Muitos dos oficiais sublevados seus adversários do combate do Rato foram amnistiados, readmitidos ao serviço, e ocupam hoje altos cargos do Exército, medida de excepção de que outros, menos responsável, não beneficiaram. Moreira Lopes, o bravo e abnegado combatente do Estado Novo, a cuja resistência indomável se deve o malogro do ataque inimigo, continua tenente porque o Código de Mutilados foi revogado.
Nenhum comentário é preciso.
Outro exemplo: o alferes Jorge Henrique de Almeida da Costa Pereira tomou parte no «movimento das espadas», combateu os revoltosos do 14 de Maio de 1915 e pediu a demissão de oficial em Dezembro do mesmo ano por discordar da forma ilegal por que foram separados do serviço vários camaradas seus. Tomou parte no movimento revolucionário de 5 de Dezembro de 1917, chefiado por Sidónio Pais, que o mandou reintegrar no quadro permanente, como capitão, posto que lhe pertencia. Sidónio Pais procedeu da mesma forma em relação a numerosos oficiais nacionalistas que os Governos democráticos haviam afastado do Exército.
Em 1920 o capitão Costa Pereira, sem qualquer forma de processo, é mandado demitir, nos termos da alínea c) da odiosa Lei n.º 1:040. A outros oficiais nacionalistas sucede igual, mas pouco a pouco, mesmo anteriormente ao 28 de Maio, conseguem dos democráticos a reintegração. À. data do movimento de Braga restam três oficiais afastados do Exército por aquela alínea da Lei n.º 1:040: capitães Costa Pereira, João Carlos de Sousa Maia e Amável Jardim Granger.
Quanto nos dois últimos, a injustiça foi reparada, apenas em parte, pela situação actual ... que os mandou reintegrar onze anos depois (Janeiro de 1937)
no posto de capitão na situação de reforma, com pensão miserável. Em 5 de Dezembro de 1938 o capitão Costa Pereira, oficial com o curso da arma, foi, como muitos outros também afastados, mandado reintegrar ... na situação de miliciano licenciado, sem qualquer pensão. Desde 1920 (há trinta anos!) este precursor nacionalista espera serenamente que lhe façam justiça ... Mas muitos daqueles que nos combateram em 3 e 7 de Fevereiro, na revolta da Madeira, no 26 de Agosto, etc., desfrutam hoje altas posições de confiança.
Note-se que não protesto contra as reintegrações destes últimos. Não conheço caso de rei incidência enfare militares readmitidos ao serviço activo. Só existem, salvo entro, entre demitidos, reformados ou separados do serviço. Esse é o melhor argumento em favor da amnistia com reintegração nos cargos dos funcionários civis e militares que algum dia se sublevaram. Outro existe ainda que consiste na desigualdade já referida de tratamento. Tal destrinça seria ainda compreensível quando motivada por graduação de responsabilidades, ilibando aqueles que se limitaram a cumprir ordens e conservando afastados os chefes principais. Mas, coisa extraordinária, há ou houve subalternos e sargentos demitidos ou reformados e chefes revoltosos repostos no serviço activo!...
Além da opinião contrária, na generalidade, à amnistia e da alegação de inconstitucionalidade do meu projecto, a Câmara Corporativa formula várias críticas de especialidade. Creio inútil voltar a responder às que se referem ao defeito de falta de amplitude, porque vezes sem conto, na imprensa, nos comícios, nas palestras radiofónicas, no Parlamento e hoje novamente, expliquei os motivos dessa insuficiência e declarei aceitar todas as emendas que alargassem os benefícios a conceder. Mas, quanto aos fundamentos e à mecânica do meu sistema de reintegração, houve incompreensão quase total no parecer subsidiário emitido pela secção de Defesa nacional da Câmara Corporativa.
Facto curioso: a maior parte das objecções à mecânica formuladas nesse documento subsidiário acha-se anulada no último parecer da Câmara Corporativa, porque o seu sistema de promoção dos inválidos é, sem tirar nem pôr, igual ao que proponho para inválidos e amnistiados.
Verifico com prazer que, depois de um ano de meditação profunda, tempo decorrido entre o primeiro e o segundo pareceres, a secção de Defesa nacional acabou por compreender o problema e encontrou solução igual à minha: a da antiguidade ou arrastamento.
Claro está que se se trata, de promoções por antiguidade: elas não podem ir além do posto de coronel. Não seria necessário explicá-lo a quem soubesse que a elevação a brigadeiro e contra-admirante se faz exclusivamente por escolha. De resto, quando, como no caso dos inválidos, se tratava, de restituição de direitos, torna-se também evidente que a promoção não podia ir além do posto de coronel.
Bastaria à secção de Defesa nacional da Câmara Corporativa um pouco de generosidade para com o modesto autor do projecto para, em vez de alegar impossibilidades ou faltas de clareza, haver proposto há um ano processo de promoção idêntico ao que propôs agora. E todos ficaríamos de acordo, sem que pudesse supor-se que a secção citada, por qualquer motivo, tivera propósitos de crítica excessiva em relação ao projecto.
Quando escrevo e falo, devido à rapidez com que sou forçado a trabalhar e ao facto de estar habituado a colaborar com pessoas que assimilam fàcilmente as minhas ideias e palavras, cometo frequente e pecados de omissão. Para eles peço amnistia benévola.
Outro ponto que não é possível deixar sem reparo: diz-nos aquela secção de Defesa nacional que o «mérito das condecorações e dos louvores seria objecto de controvérsias, das quais algo adviria para o elevado conceito em que aquelas devem ser tidas». Nunca me atrevi a discutir o mérito de altas condecorações alheias adquiridas em combate!
Torre e Espada, medalha de valor militar e cruz de guerra são, para mim, incontestáveis. Se alguém ousou praticá-lo com justiça, inveja, ou espírito de maldizer, decerto o fez na ocasião em que elas foram concedidas ou conhecidas pùblicamente. Não seria agora, tantos anos passados, que a controvérsia renasceria. Mas se ela existiu, ou se renascesse, isso constituiria caso esporádico, anormal e pessoal. Nunca poderia transformar-se em crítica geral aos militares altamente condecorados, que sempre me habituei a respeitar e a ver respeitados por toda a gente. Só uma excepção conheço em matéria de desrespeito geral. E ela parte, paradoxalmente, donde menos poderia esperar-se, isto é, da própria secção de Defesa nacional da Câmara Corporativa, porque essa, sim, estabelece controvérsia, de que algo de muito prejudicial pode advir para o elevado conceito em que as altas condecorações devem ser tidas.
Com todas as veras do que me resta de espírito militar, contesto algumas das afirmações incluídas nas frases que passo a ler:
«Se as condecorações e os louvores representam ou devem representar aos olhos de todos o justo prémio de actos meritórios, isso não significa, contudo, que aqueles que as não obtiveram não sejam elementos tanto ou mais valiosos do que muitos dos que as podem ostentar.
Para se ser condecorado ou louvado é preciso que a ocasião se proporcione, e só a repetição sistemática de feitos dignos de louvor poderá permitir aceitar a superioridade de quem os praticou em relação àqueles que não tiveram oportunidade de os praticar.
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Por isso, não parece base suficientemente sólida para tratamento desigual o simples facto de o indivíduo possuir uma única condecoração, ainda que das consideradas de maior valor. E, se assim é, menos se justifica que um único louvor por feitos em campanha possa ser considerado bastante para a concessão a quem o possua de benefícios como os que resultam da reintegração com. direito a vencimentos».
Quando comecei a aprender orgânica militar discutia-se muito sèriamente se a condução da guerra era arte ou ciência. Chamado à lição, respondi que era arte, por necessitar de carácter e intuição; ciência, por requerer estudo superior, conhecimentos vastos e experiência adquirida, mas que a considerava principalmente devoção.
O militar em cujo peito arde a chama do espírito de sacrifício não faz da condução da guerra modo de vida burocrática. Quer viver perigosamente, busca o perigo, procura a oportunidade de afirmar-se, contagia pelo exemplo, estabelece a competição, provoca iniciativas de outrem e cria o moral da vitória.
Para ser condecorado ou louvado não é preciso que a ocasião se proporcione. «Real Senhor, se uma lebre se levanta em Portugal, vamos caçá-la à Índia!).
Se a oportunidade aios faltar na metrópole - e a ninguém faltou!-, iremos agarrá-la, graças ao espírito de aventura, onde ela puder encontrar-se. Viver perigosamente! Que mais bela divisa pode desejar um militar?
Quem mandou Mouzinho prender o Gungunhana? Quem lhe determinou que arriscasse numa cartada todo o seu alto prestígio de chefe e de soldado? Par ventura não lhe recomendavam oficialmente que esperasse com prudência, muita prudência, sempre prudência? Não é verdade que classificavam de loucura a sua intuição genial e a magnífica confiança em si próprio que o guiava? Não é verdade que ele soube adivinhar o valor dos seus homens? Que importavam as maldições dos descrentes e dos tímidos?
Lá no meio do sertão havia o objectivo final a atingir, um combate a travar, uma glória mais alta a obter! É que viveiro de heróis souberam criar os homens como Mouzinho, como Gomes da Costa, como Aires de Orneias, como Azevedo Coutinho! Sidónio Pais, outro iluminado, não esperou que a oportunidade lhe caísse do céu. Criou-a ele e formou espiritualmente essa, plêiade primorosa de oficiais nacionalistas que ontem asseguraram o triunfo do 28 de Maio e que hoje comandam as unidades militares que defendem a continuidade da redenção lusitana.
A repetição sistemática de feitos de guerra não dá lugar em Portugal, infelizmente, à repetição de condecorações. Ao invés do que sucede noutros exércitos, desde longa data que se adoptou entre nós o critério do condecorar por campanhas, em vez de premiar cada feito. Salvo excepções pouco numerosas, só ao final das operações, depois do relatório do chefe, se têm distribuído os prémios. Perdeu-se assim a ocasião de estimular e reduziu-se o espírito de competição. Todos conhecemos casos em que uma única condecoração premiou vários feitos.
Do atraso sistemático na concessão de prémios resultou também que militares louvados por actos de bravura em campanha nem sequer chegaram a ser condecorados com a cruz de guerra que lhes pertencia. Isso aconteceu, por exemplo, na primeira guerra mundial, em África. Lògicamente, para esses, o meu projecto equipara o louvor à condecoração.
Compreendo, admito, aceito, que existam heróis em potencial, homens de valor inegável, que se revelarão amanhã por feitos de guerra. Mas, enquanto não os praticarem, não desdenhem de quem os praticou nem afirmem que a vida de secretaria ou de quartel é mais digna que a vida de campanha.
Se alguma emulação sentirem, guardem-na no íntimo da sua alma, a fortalecê-la para a conquista das oportunidades, a temperá-la para a gesta de amanhã. Entretanto, admitam que as condecorações por méritos de guerra constituem distinção real e efectiva, que pode traduzir-se em processo de escolha, nos termos legais ou regulamentares.
Tomo este calor em defesa dos possuidores de uma única Torre e Espada, de uma única medalha de valor militar, de uma só cruz de guerra, porque não sou dos atingidos pela controvérsia estabelecida pela secção de Defesa nacional da Câmara Corporativa. A que extremos nos poderia levar o seu critério de a uma só Torre e Espada serem preferíveis repetidos louvores e condecorações de importância secundária! Salazar, o herói máximo e providencial, que, com risco de vida e sacrifício completo da sina pessoa, salvou a Nação e elevou o Império, possui uma única Torre e Espada. Para ser consagrado grande homem, nesta terra de pessoas exigentes, falta-lhe apenas a medalha de cobre de comportamento exemplar e um louvor em ordem de batalhão...
Risos.
Outro reparo: o processo de promoção por meio de preenchimento de vagas existentes ou que vierem a dar-se foi-me imposto, já o disse e toda a gente o sabe, por necessidades de ordem constitucional. A secção de Defesa nacional da Câmara Corporativa aflige-se pelo facto de essas vagas virem talvez a ser roubadas «a outros que nunca prevaricaram e que possìvelmente prestaram à Marinha ou ao Exército e à Nação serviços mais valiosos, comprovados por repetidos louvores e condecorações».
Educaram-me no Colégio Militam, onde aprendi o dever que se chama camaradagem.
Fui ali condiscípulo de um dos Dignos Procuradores que subscrevem os pareceres. Amigos e companheiros, nunca deixei de admirar o seu saber e inteligência.
Aluno insuficiente, como quase sempre tenho sido, nada tenho a ensinar-lhe em matéria de camaradagem e de ciência, militar.
Mas convém recordar, a quem tão brilhantemente se manifesta contra os meus erros técnicos e políticos, que eles eram inevitáveis ao momento da apresentação deste insuficientíssimo projecto de lei.
Ouso recordar ainda que aqueles que amanhã pudessem ser prejudicados na ascensão hierárquica devido ao preenchimento de vagas por oficiais reintegrados nada mais fariam que restituir-lhes um pouco do que já haviam ganho em promoções graças à exclusão doa seus amigos companheiros de armas.
Sr. Presidente: vou terminar. Embora a superioridade intelectual dos dignos adversários seja manifesta, recuso render-me. Todavia há males que vêm por bem. A afronta do ultimato inglês promoveu reacção útil por cuidarmos melhor do futuro do Império Lusitano.
Um desastre em desafio de futebol internacional possuiu a virtude de trazer a terreiro dois ilustres professores universitários, que, finalmente, conseguiram ensinar-nos a formar equipe. Antes isso que dar pontapés na lógica. A minha derrota parcial perante a Câmara Corporativa terá também o condão de provocar reacções salutares, porque anima os políticos responsáveis a examinarem novamente o problema. Além disso, ainda não gastei os últimos cartuchos. Reservo-os, se necessário, para a discussão na especialidade.
Mas tenho esperança, quase certeza, de que a Assembleia Nacional me ajudará no bom combate.
Instituição essencialmente política, saberá encontrar a melhor solução hoje possível para o problema que só chama a unidade da grei.
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Tenho fé na nossas comissões parlamentares. Tenho inteira confiança no Governo e na sua boa disposição de realizar aquilo que a Assembleia Nacional, por dificuldades constitucionais, não possa aprovar explicitamente. Não ignoraremos que Portugal faz parte da cristandade e que os católicos respeitam a súplica comovente, a ideia plena de eloquência o de bondade posta por Deus no coração, no cérebro e na palavra do Santo Padre.
Eliminemos, naquilo que estiver ao nosso alcance, as causas de desavença e as consequências de lutas passadas. Trabalhemos sem desânimo pela conciliação dos Portugueses, pela serenidade dos ânimos e pelo apaziguamento das paixões ruins. Assim daremos exemplo de tolerância, assim ganharemos mais força moral para contrariar as manobras dos extremistas da esquerda e da direita. A frente patriótica, que Salazar tenazmente preconiza, é causa sagrada e justa, porque se baseia na compreensão mútua, na subordinação completa ao interesse nacional, no amor e na paz entre os Portugueses.
Deixemos aos piores dos nossos adversários a responsabilidade de agirem, tal qual fizeram no passado, em nome da intolerância, do ódio e da parcialidade. Nenhuma causa justa pode assentar no ódio, no rancor e na represália.
Todos os portugueses patriotas são nossos irmãos na terra, na alma, no sangue e na carne. Estendamos-lhes mão amiga. Se continuarem cegos, se teimarem em não nos compreender - a responsabilidade pertencerá à oposição, e não ao Estado Novo.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Neste momento não está mais ninguém inscrito para usar da palavra na generalidade. Alguns Srs. Deputados que tinham manifestado o desejo de o fazer reservaram as suas considerações para a especialidade.
Portanto, está concluída a discussão na generalidade e vai passar-se à especialidade.
O Sr. Soares da Fonseca: - Pedi a palavra para requerer a V. Ex.ª que a discussão na especialidade corra sobre o texto preconizado pela Câmara Corporativa.
O Sr. Presidente: - Consulto a Assembleia sobre a proposta do Sr. Deputado Soares da Fonseca no sentido de que a discussão na especialidade incida sobre o texto da Câmara Corporativa.
Consultada a Assembleia, foi aprovado que a discussão incidisse sobre o texto da Câmara Corporativa.
O Sr. Presidente: - Vai, portanto, passar-se à discussão na especialidade, tomando por base o texto da Câmara Corporativa.
Como a Assembleia sabe, a Câmara Corporativa fraccionou o projecto apresentado pelo Sr. Deputado Botelho Moniz em dois contraprojectos: um restrito ao banimento; outro respeitante à amnistia.
Vou pôr em discusão na especialidade o contraprojecto da Câmara Corporativa relativo ao banimento.
O Sr. Mário de Figueiredo: -Sr. Presidente: votarei sem constrangimento, e antes com o sossego de alma de quem pratica um acto de reparação, o projecto em debate.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Creio que todos nesta Assembleia temos sobre o projecto a mesma posição e atrevo-me por isso a afirmar-me intérprete do seu pensamento tanto como o sou do meu.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As leis que com o projecto convertido em lei se pretendem revogar expressamente já estão revogadas pelo costume ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador:-... por usos repetidos (Apoiados) da iniciativa do Poder ou por este caucionados, contrários aos imperativos que naquelas leis se contêm. Dizem-no os factos e disse-o quem tinha particular autoridade para o fazer.
Mas não é nesses usos que vou fundar o voto.
Está actualmente pendente da Assembleia Nacional francesa um projecto semelhante para tornar possível aos herdeiros do trono de França a residência no seu país. Parece que todos em França estão de acordo com a doutrina do projecto, menos os comunistas.
Risos.
Mas não é ainda neste facto que vou fundar o voto. Que tal projecto não existisse, nós votaríamos da mesma forma o nosso.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Vamos votá-lo para corresponder às solicitações sugeridas pela nossa história, na atitude de quem faz uma restituição por ela imposta.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não faria sentido que a família que traz no sangue e no peito tudo o fio da história de Portugal não pudesse, por deliberação expressa, mas só por consentimento tácito, viver em Portugal!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A história é feita de glórias e de dramas, de triunfos e de derrotas. Amassam-se uns e as outras e vivem-se pelos tempos até formar esta coisa sagrada que é a nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - As vozes dos mortos são o eco a comandar o movimento dos vivos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quem comandou a Nação na tarefa de construir a sua história? Os grandes antepassados da família a quem o projecto se refere. Votando-o, praticamos um acto de justiça e estamos a homenagear os responsáveis primeiros pelo desenrolar do fio da nossa história.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - É, pois, de votar!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à votação.
Vai votar-se o artigo único do projecto de lei sugerido pela Câmara Corporativa relativamente ao banimento, e
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que é do seguinte teor: «São revogados a Carta de Lei de 19 de Dezembro de 1834 e o Decreto de l5 de Outubro de 1910».
Submetido à votação, foi aprovado.
O Sr. Soares da Fonseca: - Sr. Presidente: requeiro a V. Ex.ª que fique consignado no Diário das Sessões que a votação foi feita por unanimidade.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Presidente: - Ficará consignado no Diário das Sessões que a votação se fez por unanimidade.
Ponho agora à discussão, na especialidade, o outro projecto da Câmara Corporativa relativo a amnistia.
O Sr. Soares da Fonseca: - Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª para substituir o texto do projecto preconizado pela Câmara Corporativa por um outro que tenho a honra de enviar para a Mesa e sobre o qual requeiro que incida a discussão.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Soares da Fonseca acaba de mandar para a Mesa uma proposta articulada em forma de projecto destinado a substituir aquele que a Câmara Corporativa sugeriu, proposta que vem assinada por vários Srs. Deputados.
Vou mandar ler o projecto do Sr. Deputado Soares da Fonseca.
Foi lido. É o seguinte:
«Propomos o seguinte projecto de lei, em substituição do proposto pela Câmara Corporativa sobre amnistia e inválidos:
Artigo 1.º São amnistiados os crimes políticos e as faltas disciplinares da mesma natureza.
§ único. Ficam excluídos desta amnistia:
1.º Os crimes referidos no corpo deste artigo quando praticados com as circunstâncias mencionadas na primeira parte do artigo 7.º do Decreto n.º 23:203, de 6 de Novembro de 1933, que para este efeito se repõe em vigor, e os indicados na segunda parte do § único do artigo 39.º do Código de Processo Penal;
2.º As actividades a que se referem os n.ºs 1.º e 2.º do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 37:447, de 13 de Junho de 1949;
3.º Os crimes de subversão dos princípios e instituições fundamentais da sociedade e os do seu incitamento, propaganda e apologia.
Art. 2.º O Governo poderá reintegrar os amnistiados por crimes políticos ou faltas disciplinares da mesma natureza, por força desta lei ou de outras anteriores, desde que se mostre:
a) Não terem sido punidos, depois de afastamento do serviço, por crime infamante ou por deserção em tempo de guerra ou de perigo iminente dela, com mobilização geral ou parcial das forças armadas;
b) Estarem integrados na ordem social estabelecida.
§ 1.º Se os amnistiados forem militares, a reintegração far-se-á, nos postos a que poderiam ascender por antiguidade, até tenente-coronel ou capitão-de-fragata; se já tiverem posto superior ou forem funcionários, far-se-á nos postos ou cargos que ocupavam quando foram afastados do serviço.
§ 2.º A reintegração far-se-á, conforme os casos, na situação de actividade, reserva, reforma ou aposentação.
§ 3.º A reintegração dos militares só poderá fazer-se nos termos do § único do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 26:036, de 25 de Maio de 1936, mas sem necessidade de requerimento, e ficará ainda dependente, salvo até ao posto de capitão ou primeiro-tenente, do preenchimento das condições especiais de promoção.
§ 4.º Os militares ou funcionários reintegrados na situação de reserva, reforma ou aposentação receberão a pensão calculada sobre o mínimo de tempo para a ela adquirirem direito, se o não tiverem superior.
Art. 3.º O disposto no artigo anterior é aplicável aos militares e funcionários que tenham solicitado a demissão ou abandonado o serviço por motivos políticos.
Art. 4.º O Governo poderá fazer reingressar na actividade, no posto que lhes competiria se se tivessem conservado ao serviço, os inválidos de guerra e os reformados em virtude de desastre em serviço de campanha ou de manutenção da disciplina militar ou da ordem pública, desde que, submetidos a uma junta médica, tenham sido julgados aptos.
§ único. Se, nos termos da lei geral, o acesso ao posto depender de condições especiais de promoção e o interessado não puder preenchê-las, será reintegrado na reserva ou na reforma nos termos do § 1.º do artigo 2.º
Mário de Figueiredo, José Soares da Fonseca, Joaquim Mendes do Amaral, Luís Maria Lopes da Fonseca, Vasco Lopes Alves, José Cabral, Francisco Higino Craveiro Lopes, Ulisses Cortês, Jorge Botelho Moniz e João Mendes do Amaral».
O Sr. Presidente: - Como VV. Ex.ªs acabam de ouvir, o projecto do Sr. Deputado Soares da Fonseca destina-se a substituir completamente o projecto sugerido pela Câmara Corporativa. Aquele Sr. Deputado requereu que a discussão se fizesse sobre o texto que mandou para a Mesa, o que parece conveniente para a boa ordem das votações, mas a Assembleia resolverá.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Submeto à aprovação da Assembleia o requerimento do Sr. Deputado Soares da Fonseca para que a discussão na especialidade do projecto de lei relativo à amnistia recaia sobre o texto acabado de ler à Assembleia.
Submetido à votação, foi aprovado.
O Sr. Presidente: - Está em discussão o artigo 1.º Alguns Srs. Deputados, especialmente os Srs. Deputados Ribeiro Cazaes, Armando Cândido e ainda o Sr. Deputado Pinto Barriga, tinham manifestado o desejo de usar da palavra na generalidade. Porém, para que a discussão do projecto de lei relativo ao banimento tivesse a sobriedade e a dignidade que a nobreza do assunto requer, acederam à sugestão que lhes fiz de transferirem para a discussão na especialidade as considerações que desejavam fazer na generalidade. Agradeço-lhes a gentileza e vou dar-lhes a palavra na especialidade, da qual poderão usar com a necessária amplitude.
Tem a palavra o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes sobre o artigo 1.º
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Sr. Presidente: num dos últimos dias da legislatura passada expus a minha opinião sobre o projecto de lei do Sr. Deputado Botelho Moniz que agora se discute.
Quem me deu a honra de ouvir-me talvez se recorde ainda de que tudo o que disse se limitou, em primeiro lugar, ao desejo de mostrar a conveniência de traduzir o pensamento do Sr. Deputado Botelho Moniz em três disposições bem distintas - a que respeita à família de Bragança, o caso dos inválidos em serviço da Pátria, a. amnistia de crimes políticos - e, depois, em focar cada, um destes assuntos de modo a não ficar perdido este passo de um soldado do ressurgimento, que define uma das ansiedades da geração a que pertenço, uma aspiração muitas vezes já manifestada.
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Vamos a ver se, neste Ano Santo, Portugal é santificado pela justiça que todos esperam, marcando uma nova era de paz e de sólida confiança no futuro, nesta hora em que o Mundo parece ignorar o norte da vida.
Para o casa da família de Bragança apresentei então um projecto de lei. Hoje abster-me-ia de quaisquer considerações, além das que nesse momento formulei, para só pedir justiça. Foi feita! É uma garantia de que vamos por caminho certo!
O Sr. Botelho Moniz: - Muito bem!
O Orador: - Pelo que respeita ao caso dos inválidos, sei perfeitamente das inúmeras dificuldades de que ele se reveste.
Admito que a fórmula apresentada seja melhor do que a minha sugestão do ano passado - criação do grau de inválido em serviço da Pátria - e só receio que ela possa conduzir a uma diminuição da altura em que coloco esses soldados, que são o mais alto exemplo de devoção patriótica.
Acerca da amnistia dos crimes políticos, mantenho o meu ponto de vista, várias vezes expresso, de desejar uma ampla e clara manifestação da justiça dos homens, não só como demonstração dos sentimentos de generosidade da Revolução Nacional, mas também para pôr termo a muita ingratidão, a muitas amarguras, de que são vítimas leais servidores da Pátria em muitos ramos da actividade nacional.
Pensando desta forma, não posso deixar de considerar que, se a Revolução Nacional se dignifica com uma atitude desta grandeza, abrindo os braços a quem a tem combatido, erguendo nos escudos quem foi vítima das paixões políticas, é imperioso dever de todos nós pensar também naqueles que sempre trilharam o caminho da disciplina, que sempre foram exemplos vivos de dedicação patriótica.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sim, meus senhores, aceito e desejo firmemente ver nas fileiras do Exército, no lugar que lhes competiria, aqueles que delas foram arredados por suas atitudes políticas ou pelos ódios que durante anos e anos andaram à solta na nossa terra, mas não posso deixar de chamar a vossa atenção para este facto, que se traduz em poucas palavras: se for aprovada uma lei de ampla amnistia, muitos dos que dela beneficiarão tomarão posições superiores àqueles que foram os maiores guardiões da disciplina e da ordem e que delas estão afastados por vários motivos, e até por disposições legais não existentes quando vestiram a sua farda de soldados.
Justiça e generosidade para os vencidos das lutas internas sim, mas justiça também para os que os venceram.
Os nomes desses homens surgem no pensamento de todos nós neste instante, tenho a certeza.
Não é de admitir que se olhe com generosidade e justiça para aqueles que foram acusados de andar aos pontapés à lei e não se queira saber dos que dela receberam encontrões.
Penso em Passos e Sousa, que foi chefe indiscutível no momento em que poucos o queriam ou podiam ser. Penso em Passos e Sousa, que foi na guerra um símbolo alto das virtudes da Raça, que durante estes vinte anos de Revolução pode ser apontado como guia seguro de leais servidores, de quem deseja ser verdadeiramente soldado. Penso em Passos e Sousa, simples coronel, comandante da Praça de Elvas, ele que venceu generais.
Penso em David Neto, a quem o rei de Inglaterra pôs ao peito a Military Cross. Que altos serviços ele prestou à .Pátria! Na guerra e na paz, quem foi maior do que ele como servidor do pensamento da Revolução Nacional?
Penso em Mário Pessoa da Costa e Assis Gonçalves, com altos feitos na guerra de 1914, nomes gravados no livro de ouro da nossa infantaria, com serviços não ultrapassados à causa da Revolução, nomes que não precisam de designação de posto para serem grandes e para serem chefes quando os chefes faltam, embora só brilhem nos seus braços os galões de major e de tenente!
Outros nomes poderia citar, não maiores, mas de quem, como eles, tem sido, em todas as circunstâncias, a garantia mais sólida de paz na nossa terra.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E tu, Botelho Moniz! Não, não me conformo que fiques amarrado aos galões de major - tu, que venceste generais!
Generosidade sem limites para quem, por ser educado num meio escravo de paixões políticas, muito sofreu e sofre; justiça, reparação, às vítimas das injustiças que definiram uma época sem grandeza, que ensanguentou a nossa terra e a diminuiu perante o Mundo; mas quero pôr perante a consciência dos que me escutam e do Governo o meu desejo de justiça também para os que sempre souberam ser exemplo alto de bem servir.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: duas palavras apenas: esta Assembleia -votando o projecto de lei sobre a amnistia, proposto com insistência e persistência admirável pelo ilustre Sr. Deputado Botelho Moniz e melhorado pela redacção cuidadosa das competentes comissões desta Casa, e relevar-me-ão os meus distintos colegas, sem menosprezar tudo o que fizeram pela pacificação da família portuguesa, que saliente a acuidade, a sensibilidade e o tacto com que, usando das suas invulgares qualidades de inteligência e de bondade, apesar da fadiga esgotante dos seus trabalhos parlamentares de leader, o ilustre Sr. Deputado Mário de Figueiredo tratou desveladamente do texto deste projecto, de modo a torná-lo viável e a que não viesse a ferir a susceptibilidade dos seus adversários -, dizia eu, esta Assembleia, aprovando a amnistia, honra-se e honra o seu mandato, e o Governo, dando inteiro e cabal cumprimento à vontade pacificadora da Nação, honrar-se-á também.
A amnistia e reintegração, nos termos dignos em que é concedida, independentemente de requerimento, não rebaixa os adversários que se bateram e lutaram desinteressada e galhardamente pelo seu ideal.
Amnistiar é esquecer, o que deve acontecer não só para os que a outorgam, mas ainda, e também, para os que dela aproveitam. Devemos deslembrar as nossas dissenções, olvidar o que nos divide, para só rememorar o que nos une. Portugal precisa de todos os seus cidadãos, porque todos são ainda poucos para o engrandecer.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Lamento que a letra deste projecto não possa abranger a reintegração nos seus direitos a pensões dos herdeiros daqueles que, se vivessem, seriam compreendidos nesta proposta. Senão a letra, o espírito generoso desta amnistia inclui-os, e a nossa sensibilidade não se recusa a esse acto de justiça.
Apoiados.
Desejaria mais extenso o acto de olvídio, reconfiar-mos na lusitanidade daqueles portugueses que, embora
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desvairados, de momento, pelas doutrinas que professam, conservam intacto no âmago da sua consciência, de certeza, um amor entranhado à nossa querida pátria. Ao votar este projecto de amnistia, de olhos fitos na nossa bandeira, ouvindo com orgulho, como num murmúrio, os acordes do hino nacional, só posso gritar, com toda a força da minha alma, que Portugal viva, e viva eternamente.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Armando Cândido: - Sr. Presidente: não é nova nesta Casa a discussão sobre o direito de perdoar aos delinquentes. Pelo Diário das Cortes de 1821 pode rever-se o duelo que travaram aqui alguns Deputados desse tempo.
Eu não concederia o direito de perdoar nem o de comutar as penas a poder algum - foram as palavras de Gouveia Durão no começo do seu discurso.
Depois, entre outros, atirou este argumento:
... equivale o direito de perdoar a uma quebra de fé pública, porque a lei criminal faz duas promessas solenes: uma a todo o cidadão, afiançando-lhe a sua propriedade, a sua liberdade, a sua segurança, nas penas que comina ao invasor ou invasores de qualquer destes direitos; e outra a estes invasores, declarando-lhes o que devem sofrer quando violem algum ou alguns desses direitos; e no perdão há uma quebra pública destas públicas promessas, porque nem se realizou a fiança prometida àqueles nem o castigo cominado a estes.
Então, citando exemplos, deu as últimas cutiladas:
Assim pensava o duque de Montausier quando, dizendo-lhe Luís XIV que entregara à justiça um réu que tinha feito dezanove mortes depois que ele lhe perdoara a primeira, respondeu que o réu sómente fizera essa primeira e sua majestade, perdoando-lhe esta, fizera as outras dezoito.
Opõe-se-lhe o Deputado Sarmento, que entra no debate com o verso de Terêncio:
Homo sum: nihil humani a me alienum puto
Prossegue:
A utilidade pública, que é o que deve medir os castigos, pode muitas vezes exigir que se suspenda um artigo porque tal será o préstimo de um ou outro cidadão, que a sociedade ganhe mais na conservação da vida do mesmo e na liberdade dele do que sujeitando-o às consequências da transgressão daquela lei de cuja transgressão ele foi réu.
Combatendo o exemplo referido pelo ilustre preopinante - era assim que se dizia - que o precedeu no uso da palavra, lembra a figura do general Picton, a quem se devem as vitórias de Badajoz e de Waterloo, e que não teria prestado tão relevantes serviços nem o seu nome teria sido perpetuado pelos extraordinários feitos que cometeu «se com ele se executassem austeramente as leis da sua pátria».
Discutia-se, nessa altura, um projecto de Constituição. Outros Deputados animaram a luta. E, ontem, como hoje, as ideias podem dividir-se e chocar-se no mesmo campo.
Haverá o direito de perdoar aos delinquentes?
Penso que sim.
O castigo penal .não é só uma medida de sofrimento, é também um processo de recuperação.
O delito não puxa a lei com a frieza matemática de uma dedução algébrica. Chegaríamos assim à descoberta da máquina que, ao simples contacto do botão sobre o quadro do crime em causa, indicasse, de pronto, a pena correspondente.
O conceito de justiça é penosamente trabalhado sobre os factores individuais dos agentes que perturbam a ordem legal estabelecida. O lugar, as forças do ambiente, as condições despertantes da acção criminosa, a estrutura onde nasceu o móbil, o ímpeto ou a calma de agir, a capacidade de determinação em face das situações físicas ou dos estados morais, dispõem-se para a apreciação do julgador, e o direito, traduzido em norma, nem sempre é maleável para dar a cada caso a solução mais justa.
O direito não é rígido, nem o direito concepção abstracta, nem o direito disposição vigente. Cabe, no conceito, o raciocínio de aplicação da norma, a graça de a individualizar.
Em direito não há dogmas, há razões que moldam as exigências do mundo jurídico.
Gustav Radbruch, professor de Direito em Heidelberga, toma a existência da instituição jurídica do perdão como demonstrativa do inequívoco reconhecimento da fragilidade de todo o direito.
Mas o perdão é uma criação humana de poder imanente. Existe para ser aplicado quando for oportuno.
É que o direito supõe a justiça e a justiça não pára no ponto em que usa o direito; prolonga-se na execução do julgado, acompanha a evolução da pena, segue as reacções do condenado, apreende as tendências do meio.
Refiro-me à justiça que se mede pela medida do direito positivo, e não à justiça que é a própria medida do direito positivo, para usar as expressões de Radbruch. Posso mesmo considerar a justiça na razão do conceito de direito, mas invadindo o conceito. O direito seria, assim, o expoente de ideias, código de preceitos, garantia de equidade, desenvolvimento e execução de justiça. A justiça, princípio, meio e fim de todo o direito.
Neste curso cabe o instituto jurídico do perdão, e já o direito não é frágil.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não há antagonismos, há elementos que valorizam e completam um conteúdo.
Eu sustento que o perdão tem sempre alcance jurídico, porque - mesmo no caso de se festejar com ele uma data patriótica - ganha-se, pela satisfação de uma justificada expectativa pública, o valor jurídico dessa satisfação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Radbruch aponta o indulto de Barrabás e a rotura da corda ou o erro de pontaria no golpe que deviam executar o condenado, para recordar como pessoas que não eram órgãos regulares da vida jurídica e o acaso, ou a vontade divina nele descortinada, intervinham na concessão do perdão.
E conclui:
O que se vê é que o perdão obedecia por essas épocas recuadas a um conceito muito mais flexível e rico de conteúdo do que o nosso de hoje. Nós outros pesamos hoje o perdão na balança do direito e procuramos achar-lhe aí o seu peso rigoroso.
Se cortarmos a meio o pensamento que se segue, Radbruch ilumina a minha posição:
O perdão converteu-se hoje numa forma de actividade benéfica administrada segundo princípios certos...
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E não há dúvida. A nossa Constituição, por exemplo, no n.º 8.º do seu artigo 81.º, concede ao Presidente da República a faculdade de indultar e comutar penas. Mas nesse próprio número se regula que o indulto não pode ser concedido antes de cumprida metade da pena e o artigo 82.º não exclui esse acto dos que precisam do referendo do Presidente do Conselho e do Ministro competente.
Disse «a minha posição», porque a do mestre é mais subtil, mais exigente e de mais capacidade filosófica, olhando o perdão como um raio de luz que funde em si valores estranhos ao mundo jurídico, aflorações, domínios de outros mundos, e até a suave força do acaso o os suaves imprevistos da contingência.
O parecer n.º 37 da Câmara Corporativa, relatado em 2õ de Abril de 1949, toma posição perante o problema:
Só os fanáticos do direito ou de uma absoluta legalidade se não deixam impressionar por outros e mais altos valores que só a justiça e a primacial necessidade de segurança nacional impedem de ser incondicionalmente colocados acima dos valores jurídicos.
Isto é, o fundamento do perdão emerge de valores muito mais profundos do que os que seguram o conceito de direito, tanto que, se não fossem a justiça e a necessidade da segurança nacional, aqueles valores estariam, em absoluto, acima dos valores jurídicos. Não se diz fora dos valores jurídicos. E ainda bem, porque então se poderá admitir, mesmo dentro do parecer, que os valores jurídicos, pròpriamente ditos, coexistem com os valores de fundo do instituto do perdão, e não se excluem, combinando-se uns e outros, embora os primeiros com mareada ascendência.
Para mim, e salvo o devido respeito pelo alto espírito jurídico e pela sólida cultura do ilustre relator do parecer da Câmara Corporativa, a que me estou referindo, o instituto do perdão situa-se, como já disse, no desenvolvimento da aplicação da norma, para a servir sempre que os imperativos da ordem social o determinem.
É uma força prevista no quadro das armas legais e não unia força superior a esse quadro e não integrada nele.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Também não é a válvula de segurança da definição de Jhering.
Isso importaria a ideia de recurso estreme. E não se trata de recorrer a um meio da última hora ou de pura previdência disposta para uso de força maior; trata-se de um elemento de correcção, sereno e forte, que se utiliza naturalmente, como ajuda para o mesmo fim de pacificação, quer o fim se atinja pela medida de repressão declarada, quer pela mesma medida de repressão posteriormente mitigada.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Posta a questão no terreno da ordem política, o parecer da Câmara Corporativa é perfeito na análise e na dedução, quando verifica que tudo está em saber se, em dadas circunstâncias políticas concretas, a segurança das instituições, a estabilidade constitucional, é ou não compatível com a reabilitação dos que se colocaram em condições de merecerem castigo. Se for compatível, não devem os órgãos constitucionalmente competentes deixar de utilizar a amnistia aos delinquentes políticos como utilíssimo expediente de pacificação e de concórdia civil.
Este caminho, indicado pela Câmara Corporativa em Abril de 1949, mantém-se bom para ser seguido, acrescendo agora, como argumento do maior interesse, o facto de se estar no Ano Santo, porta rasgada para a reconciliação entre os homens sob o signo da paz real, realmente sentida e realmente vivida, depois de tantos anos de paz aparente, em que o silêncio ainda é a maior arma, por nele se forjarem as piores armas.
Com brilho e ponderação se dá conta deste estado do Mundo no novo parecer da Câmara Corporativa de 7 de Março último.
Quando se recolhe em nós a certeza de que parecem perdidas as virtudes primárias que garantiam no homem a nobreza de ser homem, de que já não há direito de asilo, direito de perdão, direito de imparcialidade, direito de ser justo sem força para impor a justiça, direito de ser fraco com direito a ser justo, sentimos que tudo se afunda à nossa volta e que já não há tábua de salvação no mar todo revolto.
O parecer transcreve, e muito bem, o apelo do Sumo Pontífice, traduzido na chamada, que faz, às supremas autoridades dos Estados, para que exerçam «generosamente o seu direito de perdão, ordenando que para esse efeito, na ocasião tão solene e propícia do Ano Santo, se concedam, como mitigação da justiça punitiva, as amnistias previstas nas leis de cada país civilizado».
É certo que Portugal está fora do número dos Estados «onde estes terríveis desregramentos legislativos e judiciais tiveram e estão ainda desnecessàriamente tendo lugar», como se anota no último parecer da Câmara Corporativa. Mas, e por isso mesmo, maior será a nossa autoridade na obediência e maior o nosso contributo no exemplo, respondendo ao apelo na medida do possível.
Ocorre agora perguntar se isto de perdão ou de amnistia é assunto que se ponha em face das conclusões a que chega, no seu parecer de 7 de Março, a Câmara Corporativa.
Os inválidos de guerra, os reformados em consequência de desastre em serviço de campanha ou de manutenção da disciplina militar ou da ordem pública precisam de ser amnistiados ou perdoados? Cometeram algum crime? Cometeram alguma falta? Ou serão eles que têm dê perdoar? É evidente que o significado do perdão ou da amnistia não se põe quanto a homens que serviram a Pátria e nesse serviço e por causa dele se diminuíram fìsicamente, imolando parte da sua saúde, que é como quem diz parte da sua vida.
Não, o que se disse e eu disse sobre o perdão não é para esta proposta da Câmara Corporativa que estou apreciando, é para o projecto do Deputado Botelho Moniz, que não podemos aprovar tal qual se mostra redigido por envolver aumento de despesa e a tanto se opor o artigo 97.º da Constituição e o artigo 33.º, n.º 3.º, do Regimento da Assembleia Nacional.
É também, e em cheio, para a proposta agora mesmo apresentada pela Comissão de Legislação e Redacção, com o acordo das Comissões de Defesa Nacional e de Finanças, e que há pouco nos foi lida.
Esforcei-me, até, por mergulhar no conceito de direito as raízes do perdão, para ser mais premente a obrigação de perdoar. Assim não será preciso colocarmo-nos acima do direito, exercendo justiça com o nome de misericórdia. É o direito, na sua evolução, que se superioriza no entendimento de quebrar a sua rigidez, que se submete e progride na tarefa de recuperação a que se propõe. Ainda mesmo que não se individualize, que se destine à categoria dos casos e não à particularidade das pessoas, e seja, porventura, um meio mais tolerante ou mais geral de recuperação, o direito de perdoar recomenda-se a nós e ao Governo nesta conjuntura política em que somos
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suficientemente fortes para sermos totalmente compreensivos.
Creio que se impõe uma revisão completa dos valores depostos pela sorte da política. Alguns, e é pena, terão de continuar, necessàriamente, a suportar as consequências da sua paixão e dos seu erros. Outros, muitos outros, decerto, hão-de voltar a sentir na alma entristecida o calor benfazejo do seu regresso à tranquilidade civil. E urge que alguns não morram sem o conforto desta alegria.
É este, sem dúvida, o objectivo da nova proposta, em boa hora concebida pela nossa Comissão de Legislação e Redacção, a quem, desta tribuna, felicito e louvo entusiàsticamente pela forma e pelo espirito com que traduziu e condensou a vontade, que suponho unânime, desta Assembleia.
Estou a dizer isto e a lembrar-me de um velho sargento da minha terra que entrou na revolução de Abril de 1931.
Servia na Guarda Fiscal. O respectivo comandante dera-lhe ordens. Cumpriu-as. A revolução foi batida. Os revolucionários demitidos. O sargento também. Mais tarde o comandante, que lhe dera ordens, conseguiu a readmissão. O subalterno envelheceu a pedir que lhe fizessem o mesmo. Levou anos a demonstrar, com atitudes sinceras, o seu arrependimento. Continua a demonstrar. Nem assim.
O Sr. Botelho Moniz: - É mais um exemplo do que eu disse.
O Orador: - Exactamente. O direito que se lhe aplicou carece, há muito, do alívio do perdão.
Porque se não perdoa?
Porque se não faz justiça?
Porque não se dá ao direito o direito de ser direito?
Exercia eu, ao tempo, o cargo de delegado do procurador da República na comarca da Povoação, da ilha de S. Miguel, e, nessa qualidade, recebi um telegrama da junta revolucionária, então dona e senhora daquela ilha, para promover que se arquivassem os autos de polícia correccional e correccionais em andamento e se soltassem os presos já condenados em todos os processos daquela natureza.
Reagi fortemente e quis que ajunta sentisse e medisse a minha reacção. Para isso, enviei-lhe logo um telegrama em que afirmava categoricamente o meu inabalável propósito de lhe não obedecer e de resistir no meu lugar. O juiz da comarca, honra lhe seja, quis assinar, e assinou, comigo, esse telegrama. Não consta ter havido outra reacção igual que me desse, ao menos, a impressão de não estar quase só na minha intransigência.
Cito o facto porque ele me dá autoridade.
Dirigi o telegrama à junta e passei o resto do dia e grande parte da noite no tribunal. Não me foram prender nem tentaram, sequer, contra mim qualquer espécie de violência. Mas estive arriscado a tudo isso, e se o sargento da minha terra, que dista 80 quilómetros da sede da comarca da Povoação, tivesse sido nomeado para se avistar comigo em som de guerra, e se tivéssemos os dois escapado desse contacto, eu estaria aqui agora com o mesmo denodo e o mesmo interesse a solicitar, para ele e para os outros, a graça do perdão.
O Deputado Botelho Moniz disse na sessão de 16 de Dezembro desta legislatura:
... mas não esqueçamos também as desigualdades havidas depois de 28 de Maio, porque, enquanto alguns dos responsáveis principais por movimentos subversivos foram reconduzidos nos seus cargos, outros homens, que só momentâneamente se transviaram, continuam sob os efeitos do castigo.
Ninguém pode negar àquele ilustre Deputado a alma de combatente de todas as horas, o carácter de lutador consciente e afoito, provado em todos os lances de perigo para a Pátria e para o regime.
Não podemos aprovar o seu projecto, mas podemos aprovar o seu empenho, e acrescentá-lo, até, na nova proposta que estamos discutindo.
Recorro à máxima de Heitor Pinto:
Grande virtude é não empeceres a quem te empeceu; grande glória perdoares a quem pudeste fazer dano; nobre género é de vingança perdoares ao vencido.
Não podemos transformar em certeza de lei a proposta do Deputado Botelho Moniz. Más, verdadeiramente, é a sua ansiedade, o tenaz fervor da sua alma, que nos junta e comanda, como soldados da mesma aspiração.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E se, à luz dos nossos votos, o Governo for até onde deve ir no perdão aos vencidos, nem por isso eles escapam ao triunfo da nossa bondade, e então só uma desforra lhes é possível: a de se tornarem tão bons como nós.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Craveiro Lopes: - Sr. Presidente: as minhas primeiras palavras são de homenagem ao nosso colega Sr. Deputado Botelho Moniz, pois não há dúvida de que foi o seu espírito generoso, a sua insistência, a sua persistência que tornaram possível que neste momento estejamos a discutir documento de tamanha importância.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Na verdade não pode existir sombra de dúvida de que ao coração do soldado é sempre grato, após aqueles momentos difíceis em que se opõem os homens aos homens, poder estender a sua mão àqueles que foram seus adversários.
Desejamos ver para sempre afastadas da nossa terra as lutas fratricidas, as lutas sangrentas, que por tantos e tantos anos dividiram a gente portuguesa.
Desejamos que os nossos filhos vivam momentos de maior tranquilidade, em que possa o trabalho da Nação ser próspero, ser fecundo.
Se desde logo não demos completo apoio ao projecto Botelho Moniz foi porque pensámos sempre que só seria possível contribuir eficazmente para a concórdia entre todos os portugueses quando a disposição legal sobre á concessão da amnistia abrangesse o maior número possível de indivíduos.
A Comissão de Defesa Nacional verificou que a proposta apresentada e sobre a qual recaiu a discussão é suficientemente ampla, merecendo, assim, a sua aprovação.
Dá também a Comissão a sua concordância ao articulado da proposta no que se refere aos inválidos de guerra, esses homens mutilados no seu corpo ou arruinados na sua saúde, que são para nós exemplo de patriotismo e que desejaríamos ver colocados em situação de prestígio, não só para eles próprios como também para a Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas se o coração de todos nós está cheio de ansiedade em bem fazer, de realizar completa justiça, no entanto as circunstâncias, as próprias rea-
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lidades da vida obrigam a que sejamos suficientemente razoáveis, pondo de um lado aquilo que o nosso coração desejaria e do outro o que realmente a nossa razão compreende que é possível fazer.
É de facto com um sentimento de insatisfação, permitam-me o termo, que a Comissão de Defesa Nacional assiste e toma parte na discussão deste projecto, lamentando sinceramente não poder dar a uns e outros maior soma de facilidades, fazer mais ampla justiça, para que lhes fosse possível esquecer para sempre uma época tormentosa de que resultou para eles dificuldades e sacrifício.
Sr. Presidente: a Comissão de Defesa Nacional dá o seu voto ao projecto que está em discussão e deseja de todo o coração que o seu fundamento venha a contribuir efectivamente para congraçar, para unir toda a gente portuguesa, de forma a que possamos atravessar este momento crucial da vida do Mundo de corações ao alto, cheios de fé e do ânimo para vencer todas as dificuldades, quer internas, quer ainda aquelas que da nossa posição no plano internacional resultem da ajuda que temos o dever de conceder a todas as nações que lutam no hemisfério ocidental pela manutenção dos sentimentos cristãos o de independência dos povos.
Tenho dito.
O Sr. Presidente: - Se mais nenhum dos Srs. Deputados deseja fazer uso da palavra, vai passar-se à votação.
Vai votar-se o artigo 1.º com o seu § único e números respectivos.
Submetido à votação, foi aprovado.
O Sr. Sebastião Ramires: - Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª que fique consignado no Diário das Sessões que a votação se fez por unanimidade.
O Sr. Presidente: - Ficará consignado no Diário esse facto.
Está em discussão o artigo 2.º
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: poucas palavras.
Depois de nas sessões de 30 de Abril e 15 de Dezembro de 1949, me ter ocupado desenvolvidamente dos oficiais e sargentos de terra, mar e ar e dos civis afastados do serviço antes do 28 de Maio por motivos políticos, nada mais tenho a dizer para justificar o dever de se lhes fazer justiça e dar a reparação a que têm direito e há muito vem sendo reclamada.
O assunto está suficientemente esclarecido; e insistir na argumentação aqui apresentada e renovada já na presente legislatura pelo ilustre Deputado Carlos Moreira e por mim equivalia a admitir o absurdo de a Assembleia Nacional não estar suficientemente esclarecida e consciente da razão que nos assistia ao pôr repetidamente o problema.
E agora, que chegou, finalmente, o momento de se converter em realidade a nossa veemente aspiração, eu não desejo retardá-lo com palavras desnecessárias para o fim em vista, e a que eu nem sequer conseguia dar o brilhantismo adequado ao feito.
Dada a impossibilidade constitucional, de por motivo do aumento de despesa, a Assembleia resolver por si o assunto de modo expresso e definitivo, era nosso propósito apresentar uma moção que exprimisse o voto da Assembleia no sentido que, em última análise, se traduz em grande parte no artigo em discussão, apresentado pela ilustre Comissão de Legislação e Redacção, que assim, vindo ao encontro das nossas aspirações, se tornou credora de incondicionais aplausos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Basta-nos, portanto, apenas perfilhá-lo entusiàsticamente e regozijar-nos por vermos, finalmente, compreendida a nossa razão e prestes a ser coroada de êxito uma campanha em que sincera e ardorosamente nos empenhámos, e ficar aguardando que o Governo da Nação faça o resto.
E aguardamo-lo confiadamente, porque estamos certos de que os Srs. Presidente do Conselho e Ministro da Guerra e os seus colegas estão empenhados na resolução urgente e definitiva do assunto.
E assim - embora tarde e, infelizmente, em alguns casos sem remédio - vai entrar um pouco de luz em muitos lares, a cuja porta bateram a miséria ou as privações, e chegar ao coração de todos os beneficiados o conforto da certeza de que não estão esquecidos pela Pátria os sacrifícios, as privações e os riscos que correram na defesa da ordem, das nossas vida e fazenda e da honra da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O Estado Novo não lhes dá esmola, nem lhes concede um perdão; o Estado Novo vai fazer-lhes justiça e dar-lhes a reparação que lhes deve.
E a Assembleia Nacional hoje e o Governo amanhã praticam um dos actos que mais podiam nobilitá-los.
Com a revogação das leis de banimento da família de Bragança e com a proposta ora em discussão, o dia de hoje ficará, por todos os títulos, assinalado com uma pedra branca nos anais da Assembleia Nacional.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Continua em discussão o artigo 2.º
Pausa.
O Sr. Presidente: - Se nenhum dos Sr. Deputados deseja usar da palavra, vai votar-se o artigo 2.º com suas alíneas e parágrafos.
Consultada a Assembleia, foi aprovado o artigo 2.º com as suas alíneas e parágrafos.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Peço a palavra!
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Peço a V. Ex.ª, Sr. Presidente, que fique exarado no Diário que esta votação foi por unanimidade.
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Muito obrigado a V. Ex.ª, porque era exactamente o mesmo pedido que queria fazer.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Peço desculpa a V. Ex.ª, Sr. Deputado, porque não me apercebi de que tinha pedido a palavra. Nestas condições peço ao Sr. Presidente que me autorize a retirar o meu requerimento..
O Sr. Ribeiro Cazaes: - Por amor de Deus! Eu apenas agradeci a V. Ex.ª por ter de facto ido ao encontro do meu pensamento, não sendo por isso caso para retirar o seu requerimento, até porque me honra bastante.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Muito agradecido.
O Sr. Presidente: - Ficará registado no Diário, a requerimento dos Srs. Deputados Ribeiro Cazaes e Cancela de Abreu, que a votação do artigo 2.º foi feita por unanimidade.
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O Sr. Presidente: - Está em discussão o artigo 3.º
Pausa.
O Sr. Presidente: - Se nenhum de VV. Ex.ªs deseja usar da palavra, vai votar-se o artigo 3.º
Consultada a Assembleia, foi aprovado.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª que, do mesmo modo, se registe que este artigo foi votado por unanimidade.
O Sr. Presidente: - Ficará registado no Diário que este artigo foi votado por unanimidade.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Está em discussão o artigo 4.º
O Sr. Sousa Rosal: - Sr. Presidente: começo por declarar que este artigo merece inteiramente a minha aprovação, mas devo dizer também que no meu íntimo ele não me satisfaz.
Vou explicar, muito resumidamente, o meu pensamento.
Aprovo porque as condições em que a Assembleia se tem de manifestar sobre este projecto de lei aconselham a que o aceitemos inteiramente. No meu íntimo não satisfaz porque ele abrange um número muito limitado de inválidos de guerra. Devo dizer que também não me satisfazia aquilo que propunha o projecto do Sr. Deputado Botelho Moniz, nem tão-pouco o projecto da Câmara Corporativa.
E não satisfazia porquê? Porque entendo que a satisfação daquilo que é mais premente e anda na boca dos interessados são reivindicações, permita-se-me o termo, mais de natureza material do que moral. A promoção resolve um problema que para nós, militares, é dos mais queridos, não apenas porque nos torna menos pobres, mas muito especialmente porque nos proporciona um maior e mais alto campo para exercer a nossa actividade e nos acarreta mais responsabilidades. O culto da responsabilidade é da boa ética militar. Na reforma não lhes é dado este prazer.
Vou esclarecer melhor o meu pensamento.
O Governo não teve oportunidade, ou meios, de melhorar até hoje a situação dos inválidos, mas pode, até certo ponto, fazê-lo sem grandes encargos para a Fazenda Nacional, pondo novamente em execução o Código de Inválidos, pelo menos na parte que diz respeito a vencimentos. Estes inválidos voltariam a ter assim os mesmos vencimentos que têm os oficiais no activo. Se lhes fosse dada a promoção sem qualquer compensação de ordem material, não poderia o Governo talvez fazê-lo depois, em face doutros postos mais elevados, visto que acarretaria maiores despesas.
Devem ser poucos, cada vez menos, e a diferença de vencimentos para o activo não é grande.
Julgo que não fica mal, neste ambiente de grandeza em que se tem mantido esta discussão, pedir ao Governo que reveja a situação dos inválidos, procurando a maneira, dentro do possível, de satisfazer as suas necessidades de ordem material, por eles mais queridas neste momento, visto que assim deixarão de exercer certas actividades muito honradas, é certo, mas por vezes pouco honrosas, que tem de exercer por lhes não chegar a pensão para se manterem a si e aos seus.
Sr. Presidente: talvez um pouco fora da matéria em discussão, mas em ligação íntima com ela, eu desejo juntar um novo pedido ao Governo para olhar também para os inválidos militares por motivos de serviço.
Devo declarar a V. Ex.ª que é verdadeiramente desconcertante saber-se que a lei que regula a situação desses homens lhes dá, depois da aplicação de uma fórmula complicadíssima, em que há multiplicações e divisões várias, um vencimento que anda à volta de $90 diàriamente, acrescidos de 50 por cento de melhoria. Isto para o caso de um soldado com 15 por cento de invalidez e sem anos de serviço. Não pode considerar-se pensão e o seu conhecimento pode ser desmoralizador para quem trabalha em meio perigoso.
Um outro motivo de desigualdade que se nota na aplicação do Decreto-Lei n.º 32:691, de 1943, é o de que o mesmo homem, nas mesmas circunstâncias e com a mesma invalidez, tem, pelo facto de pertencer à guarnição de Lisboa, da província ou à Marinha, vencimentos diferentes.
Talvez que esta situação- se modificasse se se tornasse extensivo a estes indivíduos o que se determina, no § 3.º do artigo 2.º do projecto de lei em discussão, para inválidos de guerra, dando-se-lhes também o mínimo de tempo para a reforma, porque a maior parte das situações dolorosas se devem ao facto de estes homens se invalidarem com pouco ou nenhum tempo de serviço.
Vou terminar as minhas considerações, pedindo a V. Ex.ª, Sr. Presidente, que seja considerada pelo Governo não só a situação dos inválidos de guerra e reformados em virtude de desastre em serviço de campanha ou de manutenção da disciplina e da ordem pública, criada pela legislação que suspendeu o Código de Inválidos, mas também a dos inválidos por motivo de serviço, que é aflitiva.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Botelho Moniz: - Sr. Presidente: as considerações que produzi na generalidade acerca dos inválidos e da injustiça da revogação do Código de Mutilados poderiam dispensar-me de pedir novamente a palavra neste momento.
Entretanto, não quero deixar de apoiar as declarações do Sr. Deputado Sousa Rosal, porque elas exprimem aquele ideal que nós desejaríamos atingir e que eu já definira nestes termos:
Torna-se necessário assegurar meios de existência condignos aos militares que dão o seu sangue e a sua saúde pela Pátria, porque eles, que foram e são os primeiros no sacrifício, não devem ficar em desigualdade de posto e proventos em relação àqueles a quem a sorte poupou.
Mas logo em seguida a estas palavras pronunciei mais as seguintes:
Infelizmente a Assembleia Nacional não possui maneira constitucional de alcançar tanto.
Recordo à Câmara que a parte do meu projecto sobre inválidos de guerra que concedia melhoria de pensões foi dada por inconstitucional pela Câmara Corporativa. E temos de agradecer, agradecer vivamente, à nossa Comissão Parlamentar de Legislação e Redacção, assim como às nossas Comissões de Defesa Nacional e de Finanças, terem conseguido, graças ao saber e ao espírito de justiça de todos os seus componentes, designadamente do ilustre leader desta Câmara, Sr. Dr. Mário de Figueiredo ...
O Sr. Mário de Figueiredo: -... de todos os componentes da Comissão de Legislação e Redacção.
O Orador: - ... terem conseguido - dizia eu - rodear, tanto quanto era possível, uma dificuldade que nos parecia insuperável.
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À míngua de poderes constitucionais é-nos impedido votar aquilo que os inválidos merecem. Como disse o Sr. Deputado Craveiro Lopes, sentimos profundamente, no melhor do nosso coração e do nosso raciocínio, essa impossibilidade legal.
Mas votamos este artigo 4.º no espírito de que deveríamos ir muito mais além.
Disse ainda o Sr. Deputado Craveiro Lopes que os mutilados e inválidos de guerra - heróis sacrificados ao serviço da Pátria - não necessitam de decretos de amnistia. Nem o artigo que lhes respeita representa perdão. Quem precisa efectivamente de amnistia somos nós perante eles. Nós, homens do Estado Novo, temos de lhes pedir perdão por não lhes havermos ainda concedido a reparação que é devida.
Disse.
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: duas palavras por um impulso de consciência, de acordo, aliás, com o que já foi dito aqui.
Eu voto o artigo 4.º pelo que ele tem de positivo, de justo e favorável para com os inválidos e os reformados a que se refere, mas lamento que nenhuma disposição legal permita solucionar a situação desfavorável e injusta em que se encontram outros autênticos inválidos de guerra, porventura precisamente aqueles que, pela sua invalidez mais profunda, pelas suas grandes mutilações, têm maior necessidade do apoio da Nação. Um princípio de justiça se encontra nos projectos, mas está com certeza no ânimo de todos que a justiça venha completa, mais dignificadora e honrosa para quem a fizer do que para quem a receber.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Há grandes sacrificados que não tiveram promoções que tiveram outros, nem os suplementos de vencimentos de qualquer funcionário.
Confio em que o Governo tomará as providências que certamente o ilustre autor do projecto, as comissões, a Assembleia e todos desejariam promover se estivesse nas suas possibilidades constitucionais.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Como mais nenhum Sr. Deputado se deseja pronunciar sobre este artigo, vai votar-se.
Submetidos à votação, foram aprovados, por unanimidade, o artigo 4.º e seu § único.
O Sr. Presidente: - A próxima sessão será na terça-feira às 10 horas, para discussão das Contas Gerais do Estado relativas a 1948, bem como das contas da Junta do Crédito Público.
Às l5 horas do mesmo dia haverá outra sessão.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 20 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Alberto Cruz.
Horácio José de Sá Viana Rebelo.
José Dias de Araújo Correia.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel França Vigon.
Manuel de Magalhães Pessoa.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
Miguel Rodrigues Bastos.
Ricardo Malhou Durão.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
lexandre Alberto de Sousa Pinto.
António Calheiros Lopes.
António Carlos Borges.
António de Sousa da Câmara.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Diogo Pacheco de Amorim.
Domingos Alves de Araújo.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
José Pinto Meneres.
José dos Santos Bessa.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Colares Pereira.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Maria Vaz.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Vasco de Campos.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA