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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 65
ANO DE 1951 11 DE JANEIRO
V LEGISLATURA
SESSÃO N.º65 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 10 DE JANEIRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs.Gastão Carlos de Deus Figueira
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada
Nota. - Foram publicados dois suplementos ao Diário das Sessões n.º 64, inserindo: o 1.º, o texto aprovado pela Comissão de Legislação o Redacção acerca do decreto da Assembleia Nacional sobre autorização de receitas e despesas para 1951; o 2.º, o aviso convocatório da Assembleia Nacional para o dia 10 do corrente.
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 10 minutos.
Antes da ordem do dia: - Foram aprovados os n.ºs 63 e 64 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Presidente comunicou que recebera da Presidência do Conselho, para os fins do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, vários decretos-leis.
O Sr. Deputado Pinto Barriga anunciou um aviso prévio acerca da desactualização do Ministério dos Negócios Estrangeiros em face de uma, renovada economia nacional e mundial.
O Sr. Deputado Melo Machado fez votos pelas melhoras do Sr. Deputado João Antunes Guimarães.
Os Srs. Deputados Silva Dias e Lopes de Almeida evocaram a figura e a obra de António Sardinha a propósito do 26.º aniversário da sua morte.
O Sr. Deputado Ricardo Durão fez a apreciação de um discurso.
O Sr. Deputado Carlos Moreira falou acerca de Guerra Junqueiro.
O Sr. Deputado João do Amaral discordou do discurso do Sr. Deputado Ricardo Durão.
O Sr. Presidente, em nome da Assembleia, congratulou-se com o restabelecimento e o regresso aos trabalhos parlamentares da Sr.ª Deputada D. Leonor Correia Botelho.
Ordem do dia: - O Sr. Deputado Tilo Arantes efectuou o seu aviso prévio sobro a mecânica dos assentos do Supremo Tribunal de Justiça e de algumas das suas aplicações práticas.
O Sr. Deputado Cancela, de Abreu requereu a generalização do debate.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 35 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 16 horas.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calheiros Lopes.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Júdice Bustorff da Silva.
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António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António Sobral Mendes de Magalhães Ramalho.
António de Sousa da Câmara.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Gosta.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Cardoso de Matos.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Luís da Silva Dias.
José Pinto Meneres.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Colares Pereira.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Meneses.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arautos.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 73 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 10 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 63 e 64 do Diário das Sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Visto que nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra, considero aprovados estes Diários.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Vai ler-se o expediente. Como a Assembleia certamente se recorda, no início dos nossos trabalhos dei conhecimento do que se havia passado com a missão de Espanha que veio a Portugal durante as comemorações do centenário de S. João de Deus, tendo sido resolvido pela Assembleia enviar um telegrama de saudação às Cortes Espanholas. Efectivamente enviei, em nome desta Assembleia, aquele telegrama de saudação, e, em resposta, na primeira sessão das Cortes de Espanha foi resolvido enviar a esta Assembleia o telegrama que vai ser lido.
Foi lido. É o seguinte:
«Enteradas las Cortes Españolas que ayer celebraban la primera de sus sesiones plenarias luego de nuestro último viaje a esa fraterna tierra de las innumerables atenciones que pueblo autoridades y corporaciones lusitanas tributaron a la Misión Española con motivo de las fiestas centenarias de San Juan de Dios acordaron constase en acta el testimonio de su cálida gratitud celebrando muy de veras la feliz coyuntura que permitio manifestarse con tan inequívoca espontaneidad la solidariedad que existe entre ambos pueblos peninsulares gratitud más obligada por el acuerdo de esa Asamblea que V. E. con insuperable acierto preside y que viene a ratificar colectivamente el abrazo que V. E. en su nombre y yo en el de las Cortes Españolas hubimos de estrechar en ese Palacio de São Bento ejemplo hoy de una auténtica democracia. Las Cortes Españolas que escucharon con la más honda emoción vuestro afectuoso telegrama no pueden menos de corresponder a sus términos agradeciendo la justiciera felicitación que expresais por el último acuerdo de la Asamblea internacional que rectificando pasadas injusticias nos devuelve el derecho que V. E. afirma corresponde indiscutiblemente a la Nación que así como la vuestra incorporaron a la fraternidad universal una gran parte de la especie humana. La Cámara Española reconocida a vuestras nobles manifestaciones acorda por unánime aclamación reiterar una vez más y ante la vuestra la estrecha solidaridad que juntando fraternalmente a ambos pueblos ibéricos los constituye hoy más que nunca en valedores de unos mismos inmortales princípios fundamento de la verdadera paz y única posible razón del derecho de gentes cordialmente los saluda con fuerte abrazo. - Esteban Bilbao, Presidente Cortes Españolas».
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Do Conselho Provincial da Beira Alta saudando a Assembleia e lembrando a urgente necessidade de reforma dos organismos de província quanto à divisão territorial e insuficiência dos seus recursos.
Da Câmara Municipal de Vimioso louvando a actuação acertada do Ministério da Justiça.
Do Grémio da Lavoura de Estremoz apoiando a criação do Ministério da Agricultura.
Exposição
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Lisboa. - A freguesia de Gavião é, sem dúvida, a de mais pobres e estéreis terrenos rio distrito de Portalegre e de todo o Alentejo.
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A agravar tal circunstância vem ainda o acidentado orográfico, o que os torna declivosos.
Finalmente, para completar um quadro já de si tão trágico, acresce, em quase toda a sua área, a impossibilidade de irrigação, por falta de nascentes e cursos de água apreciáveis.
É o que exprime eloquente e sucintamente a velha canção popular:
Gavião, altas mesas, pouco pão!...
A freguesia de Gavião constitui assim transição entre os terrenos acidentados e cobertos de pinhal da região limítrofe da Beira, do aquém Tejo, e a charneca plana do Alentejo.
Com uma demasiada população, exclusivamente rural e de psicologia marcadamente alentejana, entalado logo a sul e leste pela propriedade latifundiária e a norte e oeste pelo profundo vale do rio Tejo, nela, o homem, para persistir em viver, tem tido, desde séculos atrás, de sustentar luta heróica com a magreza e ingratidão do solo.
E, desta forma, não querendo revestir de pinhais as lombas das teimas que a Providência lhe concedeu em pobre quinhão, com o que ficaria sem o necessário sustento, desde tempos imemoriais se deu trabalhosamente e àrduamente a rompê-las a enxadão e picareta, povoando-as de vinhedos em consociação com olivais.
As vides, aliás de uma produtividade e duração diminutas, mal pagavam a despesa da sua plantação, mas, mais tarde, lá ficaram as oliveiras, que hoje constituem. o melhor rendimento da região.
A população, sempre em aumento (5:555 habitantes do concelho em 1890 para 10:214 em 1940), cada vez exige mais da terra, e esta, coitada da pobre, não dá culturas arvenses que compensem.
Só resta o velho processo: mais vinhas para mais olivais, para mais mão-de-obra, para o único rendimento apreciável, em suma, de que aqui é susceptível a terra.
Com referência ao recente projecto de novo condicionamento do plantio da vinha, enviado por S. Ex.ª o Ministro da Economia para apreciação da Assembleia Nacional, há, pois, que ter em vista o caso muito especial de Gavião.
Assim:
Para os efeitos da alínea a) do artigo 5.º, a freguesia de Gavião é indubitavelmente região a demarcar.
Porque:
1) É de tradição secular de vinhedos;
2) Produz vinhos d» magnífica qualidade e tipo muito especial;
3) E quase exclusivamente constituída por terrenos do grupo I, referido no artigo 4.º;
4) Não fará concorrência de temer no mercado nacional dos vinhos, porque aã suas cepas são de fraquíssima produtividade lê esta foi sempre insiuficientissima para o consumo dos seus habitantes;
5) Nela a vinha é elemento imprescindível de estabilização social, por proporcionar em épocas oportunas a mão-de-obra de que é tão carecida.
Se, contra toda a razão e (evidência, assim não for julgado, ao menos na alínea d) do mesmo artigo 5.º, deve estabelecer-se uma escala em que se permita tanto maior número de pés de videira quanto menor a fertilidade dos terrenos.
Desta forma:
Plantações até 20:000 pés em terrenos dos grupos III e IV;
Plantações até 30:000 pés em terrenos do grupo II;
Plantações até 100:000 pés em terrenos do grupo I.
A alínea c), ainda do artigo 5.º, só poderia satisfazer parcialmente o caso especial da freguesia e dos terrenos de Gavião se aos cordões de vinha fosse admitida a equidistância mínima de 1 metro.
Assim, parece mais concorde com a primeira parte das considerações do douto relatório que antecede o projecto e com o espírito do seu ilustre autor.
Para a freguesia de Gavião seria o mínimo admissível para a sobrevivência digna dos seus habitantes.
Estes, pobres e activos, só pedem que os deixem trabalhar a terra, conforme a velha e valiosa experiência dos seus antepassados, que, in loco, nenhum técnico pode condenar, e que lhes proporcionem mão-de-obra suficiente para o seu magro sustento.
Tudo isto, sem perigo de atropelos aos direitos dos demais portugueses, sem desperdício de terras que melhor se utilizariam em outras culturas, e, finalmente, sem outro recurso, o que é razão suprema!
A bem da Nação.
Câmara Municipal do Concelho de Gavião, 7 de Dezembro de 1950. - O Presidente da Câmara, Joaquim Raimundo Cardigos.
Representações
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional. - Lisboa. - Excelentíssimo Senhor. - Os abaixo assinados, por si próprios e em representação de um grande número de estudantes desta cidade, os quais não concluíram na passada época de exames o 6.º ano liceal (velha reforma), sentindo-se extremamente prejudicados por terem de ingressar na nova reforma de estudos (Decreto n.º 36:508, Estatuto do Ensino Liceal), visto que terão de prestar provas de exame do 5.º ano para a conclusão do 2.º ciclo dos liceus;
Atendendo a que estão, desde há muito, afastados das matérias de algumas disciplinas, tais como Francês, Geografia e Desenho;
Atendendo a que um grande número dos alunos em questão apenas pretende alcançar o diploma do curso geral dos liceus, a fim de concorrer a cargos públicos;
Atendendo, ainda, a que muitos de nós se encontram em atraso por virtude de impedimento durante a prestação do serviço militar:
Mui respeitosamente, vêm rogar a V. Ex.ª se digne mandar apreciar e discutir a sua pretensão, que supõem ser justa, numa das próximas sessões da Assembleia da digníssima presidência de V. Ex.ª, de molde a que S. Ex.ª o Sr. Ministro da Educação Nacional lhes conceda mais uma época de exames (Junho de 1951), como oportunidade última para a conclusão do 2.º ciclo liceal (velha reforma), pelo que pedem deferimento.
Coimbra, 5 de Janeiro de 1951. - (Seguem-se vinte e sete assinaturas).
Foram também recebidas, no mesmo sentido, representações de estudantes de Bragança e de Castelo Branco.
O Sr. Presidente: - Enviados pela Presidência do Conselho, e para os fins do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, encontram-se na Mesa os n.ºs 257, 261, 262, 268 e 269 do Diário do Governo, respectivamente de 15, 20, 21, 29 e 30 de Dezembro findo, que inserem os Decretos-Leis n.ºs 38:089, 38:095, 38:104, 38:105, 38:114, 38:116, 38:117, 38:118, 38:119, 38:120, 38:124, 38:125, 38:126, 38:127, 38:128, 38:129, 38:130, 38:135, 38:136, 38:141, 38:142, 38:143 e 38:144.
Pausa.
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O Sr. Presidente: - O 8.º juízo cível, da comarca de Lisboa pede à Assembleia que autorize o Sr. Deputado Pinto Barriga a prestar o seu depoimento no dia 11 de Abril, pelas 14 horas. Informo a Assembleia de que o Sr. Deputado Pinto Barriga hão vê qualquer inconveniente para o exercício da sua função parlamentar em que a Câmara conceda a autorização solicitada pelo 8.º juízo cível.
Consultada a Assembleia, foi concedida a autorização.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, para anunciação de um aviso prévio, o Sr. Deputado Pinto Barriga.
O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: pedi a palavra para apresentar o aviso prévio que passo a ler:
Nos termos regimentais, desejo tratar em aviso prévio: da desactualização da orgânica do Ministério dos Negócios Estrangeiros em face de uma renovada economia nacional e mundial.
Para o que provarei principalmente:
1) Que esse Ministério, embora preenchida a pasta por figuras do mais alto e merecido relevo intelectual, subalternizou a sua acção, perante os outros departamentos do Estado, em matéria de política económica internacional;
2) Que a Direcção-Geral dos Negócios Económicos não se apetrechou tecnicamente, se bem que servida por um pessoal competente, para desempenhar totalmente os fins a que deveria estar destinada;
3) Que a nossa rede consular se burocratizou excessivamente, deixando, salvo raras excepções, de ocupar na dinâmica económica portuguesa a posição desejável.
Sr. Presidente: aproveito estar no uso da palavra o a propósito da assinatura do Acordo luso-americano, na sequência do Pacto do Atlântico, para afirmar, como Deputado independente que nesta Casa tem procurado realizar uma oposição construtiva e patriótica, a minha solidariedade com o Governo em matéria de política internacional.
Enquadrada a nossa política externa adentro do Pacto do Atlântico, das realidades hispânico-lusas o da velha aliança com a Grã-Bretanha, que se actualiza constantemente pela permanência dos imperativos que a criaram e a vivificaram, temos bem definida a nossa posição internacional, bem confiada a sua direcção superior ao alto patriotismo e sagacidade do Sr. Presidente do Conselho.
Voltarei de novo ao assunto, quando forem conhecidas as cláusulas do Acordo luso-americano para, a sua ratificação, constitucionalmente, necessária, por esta Assembleia, ou quando o Congresso norte-americano tiver também ratificado o acordo agora ajustado.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - O aviso prévio do Sr. Deputado Pinto Barriga vai ser imediatamente comunicado ao Governo e oportunamente será designado para ordem do dia.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Melo Machado.
O Sr. Melo Machado: - Sr. Presidente: toda a Câmara sabe que tem estado gravemente doente o nosso ilustre colega Sr. Dr. Antunes Guimarães, um dos Deputados mais operosos desta Câmara, e tanto nos habituámos ouvir as suas considerações e tão popular é nesta Assembleia a figura desse bom homem nortenho
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - .... tanta a simpatia com que todos nós o acompanhamos, que eu não quero deixar passar esta oportunidade, Sr. Presidente, certamente interpretando o pensamento de toda a Assembleia ....
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: -.... de desejar a S. Ex.ª todas as melhoras possíveis de forma a o vermos brevemente de novo entro nós, no convívio sempre agradável da sua inteligência e da sua capacidade.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Silva Dias: - Sr. Presidente: sendo esta a primeira vez que me é dado usar da palavra nesta legislatura, apresento a V. Ex.ª os meus cumprimentos da mais alta consideração e respeito.
Não vou repetir o que na legislatura anterior tive a honra de dizer a propósito das qualidades de V. Ex.ª e que o tornaram, tão merecedor das nossas atenções e simpatias.
Mas, se não vou repetir o que então afirmei, desejo pelo menos acrescentar que, com o decorrer do tempo, quanto mais o conhecemos tanto mais o admiramos e estimamos.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Desejo também apresentar os meus cumprimentos de muita consideração aos ilustres Deputados, meus prezados colegas, e afirmar-lhes o meu propósito de íntima colaboração e leal camaradagem.
Sr. Presidente: temos assistido nos últimos tempos ....
O Sr. Presidente : - Sr. Deputado Silva Dias: lembro V. Ex.ª a conveniência de vir à tribuna, para expor as considerações que vai fazer.
Vozes - Muito bem, muito bem!
O orador subiu à tribuna.
O Orador: - Sr. Presidente: temos assistido nos últimos tempos a arrojadas tentativas de aproveitamento de certas efemérides para edulcorar e enaltecer a memória de algumas figuras literário-políticas mais ou menos ligadas, pela influência das suas obras o atitudes, aos acontecimentos históricos do tumultuoso período político que decorreu do final do século XIX até ao advento da Revolução de 28 de Maio. Vimos então como se procurou obliterar misericordiosamente a parte truculenta, demolidora e negativista das obras desses homenageados - contra cujos efeitos tantas vezes tivemos de lutar nos tempos de turbação -, para destacar e sublinhar apenas o que em tais obras, como um lampejo, foi testemunho acidental de louvor a cortas verdades eternas que nenhum artista ou escritor pode em absoluto e sempre negar.
Se não nos é lícito duvidar das boas intenções de alguns dos promotores e animadores dessas comemorações, também nos parece digna de referência a atitude de muitos que, conhecendo a verdade dos factos e o sentido e conteúdo de várias obras, sacrificaram (à parte reparos meramente simbólicos) o bastante que poderiam rectificar e, dessa maneira cordata, se esforçaram por amnistiar no seu íntimo tantos erros e desvarios para que só fosse
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recordado o exaltado o que merece perdurar como afirmação de amor a Deus e à Pátria.
Quando assim se procede em holocausto aos princípios de unidade nacional que marcam a linha de horizonte moral da nossa vida política, alegrando-nos com a pequena parcela de ouro que foi possível separar da imensa ganga de algumas obras, ninguém certamente estranhará que ou, na passagem do 26.º aniversário da morte de António Sardinha, levante a voz nesta Assembleia Nacional para rememorar a figura gentil de um dos melhores portugueses da nossa época.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sem pretender contrapô-lo a ninguém, pois isso seria manchar a sua memória e trair a minha intenção, eu desejo recordá-lo como precursor do ressurgimento de Portugal, delineador esclarecido o infatigável dos princípios da reconstrução moral da Nação e arauto de "uma outra manhã de Ourique - que ele profetizou -,tão gloriosa como a primeira".
É que na obra o na acção de António Sardinha quase tudo é ouro puro o infinitamente pequena a ganga em relação com as ideias e os sentimentos que nos animam. Por isso, António Sardinha é um dos mortos que mais entranhadamente vive no meio de nós.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Outros poderão falar dele com mais autoridade e saber, mas não ficaria de bem com a minha consciência se não aproveitasse esta oportunidade singular para prestar o meu testemunho de apreço, embora apagado e desataviado, ao mestre o amigo que Deus me concedeu conhecer, admirar e estimar.
Sr. Presidente: no 25.º ano da gloriosa Revolução de 28 de Maio muitos dos novos que hoje vivem o clima moral de ordem o paz do Estado Novo, ao ponto de anelar por mais e melhor, mal podem aperceber-se do que foi na nossa perturbada mocidade a presença de António Sardinha.
Vivíamos então, em pleno regime de anarquia mental o política, as trágicas consequências do que já Antero classificara:
Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obus.
Tudo parecia irremediavelmente perdido. Perante a desilusão, o desalento e o desespero da geração de nossos pais, a Nação marchava à deriva, como navio no mar alto encapelado, sem piloto, sem bússola nem leme. Se a fé em Deus nos tinha sido acalentada e ateada pela piedade resignada e o heróico exemplo de nossas mães o sentimento inato da Pátria, que em nós tremulava como luz prestes a apagar-se, não encontrava uma, ideia para se estruturar, reavivar e progredir.
Que poderíamos ser, se tudo o que tinha fugazmente entusiasmado as gerações anteriores agonizava ante os nossos olhos em espectáculos pavorosos de destruição e ódio ?
Seríamos anarquistas à moda de Bakunine, socialistas marxistas ou niilistas segundo o modelo de Kropotkine. Sim, nós poderíamos ser tudo menos pactuar ou aderir ao que então existia torpemente, porque nada disso estancaria a sede de infinito e a angústia desgarradora da nossa juventude, tão, cedo atirada para as preocupações e lutas políticas.
E que líamos, santo Deus? Zola, Faure, Shopenhauer, Kropotkine, livros com berrantes capas vermelhas e prefácios aliciantes - tudo o que envenenava a alma, desvairava a inteligência e amotinava os sentimentos. Conhecíamos de cor versos de Baudelaire e o Verlaine, não o da Sagesse, mas o dos Poèmes saturniens. Discutíamos utopicamente sem rumo e sentíamos tumultuosamente ...
Foi então quando António Sardinha se abeirou de muitos de nós e começou a falar-nos, numa nova e ardente linguagem, das raízes profundas da nossa Pátria, "das próprias razões de ser tanto territoriais como morais de Portugal", da necessidade do voltar "à senda esquecida, da tradição" e nos mostrou que qualquer coisa de estranho cobria a verdadeira essência e a substância viva da Nação, qualquer coisa que devíamos afastar o extirpar para se redescobrir a ideia secular que, repensada segundo as circunstâncias da nossa época, nos ajudaria a reconstruir institucionalmente a Casa Lusitana e a retomar o caminho para uma nova grandeza futura.
E nunca mais até á sua morte deixou de continuar o maravilhoso diálogo em que o Mestre, solícito, como amorável jardineiro, cuidou das belas plantas que semeou no coração da nossa mocidade.
Nessa incansável faina de semeador de ideias nobres e sentimentos elevados, cultivou em nós o gosto de ler os melhores livros da literatura histórica portuguesa, um Herculano, Gama Barros, Alberto Sampaio, etc., e, em muitos outros escritores contemporâneos, ajudou-nos a separar o trigo do joio, por exemplo a preferir A Ilustre Casa de Ramires, de Eça, ao Crime do Padre Amaro, o Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, à negativista História de Portugal. Ele próprio nos acompanhava às livrarias para nos aconselhar as obras que devíamos comprar ou encomendar, e desse modo conhecemos os críticos da Revolução Francesa, Bonald, Taine, Le Play, Tour du Pin La Charce, Maurras, Bainville, Dom Besse e tantos outros.
E incitou-nos a escrever, comunicando-nos a ânsia de proselitismo que o arrebatava, e também a espalhar a nova doutrina aos nossos condiscípulos e amigos o pelos jornais de província onde podíamos colaborar. E assim, dia após dia, em leituras, conversas e discussões, até que a publicação do primeiro artigo de um de nós no diário de então, A Monarquia, com elogiosa referência, significava que fôramos armados cavaleiros da grei para a reconquista de Portugal.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - De facto, perante Deus e os homens, indiferentes às ironias, sarcasmos e insultos dos adversários desse tempo, nós tínhamos feito a nossa profissão de fé.
Foi assim Sardinha para muitos de nós. Acendeu no nosso coração um fogo que nunca mais se extingue e que, pelo contrário, segundo a admirável definição de amor de San Juan de la Cruz, "arde com desejo de arder mais". Fogo que se tornou labareda e iluminou os que viviam à nossa volta e se propagou à terra portuguesa.
Éramos poucos então; mas que nos importava o número, se estávamos misticamente convencidos de que tínhamos razão? Rememorando essa heróica velada de armas, António Sardinha escreveu em 1923: "pegámos no arado, lançando na bordado lusitana um sulco tão profundo que já não há vento daninho que o possa apagar".
Sr. Presidente: eu pretendi recordar, embora a traços largos, o ambiente moral e político da época em que começámos a descobrir a realidade histórica de Portugal, para tentar mostrar o que representou para a minha geração a figura tutelar de António Sardinha.
Não posso ir muito além nesta ligeira nota comemorativa. Contudo, não queria deixar de destacar, também de forma sucinta, alguns dos aspectos da sua doutrina de reconstituição nacional que mais vincadamente formaram o nosso carácter político.
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Em primeiro lugar, a mais límpida e firme honestidade intelectual na investigação das origens da nacionalidade e da parte viva e eterna da tradição portuguesa.
Alguns, como Raul Proença, julgaram que nos animava apenas o propósito obscurantista de copiar e impor formas políticas passadas, quando se procurava regressar sómente para descobrir o arquétipo da nossa vida nacional e, segundo esse modelo, ordenar as realidades actuais o reconstruir a Nação.
O processo então seguido foi antecipação do que mais tarde Javier Conde, no seu livro Introducción al derecho político actual, denominou recurso à dimensão incoativa do pensamento. «Esta dimensão incoativa permite ao homem - di-lo o citado autor - desfazer criadoramente o caminho andado, retrotraindo a sua mente até àqueles pontos de germinação e buscando neles novas rotas do pensamento ainda intactas».
Tal sentido de tradição, «continuidade no desenvolvimento», ou, melhor, «permanência na renovação», caracteriza, por sua vez, o conceito do nosso nacionalismo. Forque católico, esse nosso nacionalismo não se compraz no «encanto bárbaro» do narcisismo, do exclusivismo ou da agressividade nacional.
Se, por um lado, se supera no acatamento e defesa dos legítimos direitos e liberdades da pessoa humana e das instituições que formam a estrutura viva da Nação, por outro lado reconhece as limitações que o harmonizam em relação a um bem comum universal. Isto é, segundo o sentido etimológico da palavra «universo», unidade do que por si é diverso, o nacionalismo português, pelo espírito católico e missionário que sempre o assinalou no Mundo, procura tornar-se forte, como uma família próspera e feliz entre as nações, para melhor servir os interesses comuns de todos os povos afins da civilização ocidental e da humanidade.
Como consequência lógica desses conceitos, a intuição do interesse nacional numa determinada conjuntura política deverá servir de norma de conduta para todos os portugueses, subordinando-se-lhe, sem pensamento reservado, qualquer preferência ideológica de ordem secundária ou meramente acidental.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Desta maneira se formaram doutrinàriamente muitos dos homens que mais tarde colaboraram na Revolução de 28 de Maio, trabalharam para que ela se não limitasse ao propósito de arrumar a casa, regressando-se depois à «balbúrdia sanguinolenta» do regime de partidos, e se sentiram satisfeitos quando Salazar, no célebre discurso de 30 de Julho de 1930, lhe marcou o rumo político.
Sr. Presidente: vou terminar e faço-o com a consciência tranquila e contente por ter cumprido um dever de gratidão.
Mas rememorei eu simplesmente um mestre e amigo que morreu?
De facto, pelo que pensamos e sentimos, por tudo o que fizemos e esperamos, António Sardinha é um dos mortos a quem se pode aplicar o significativo epitáfio de Ozanam: «Porque procurais entre os mortos aquele que está vivo?».
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Manuel Lopes de Almeida: - Sr. Presidente: esta é a primeira vez em que tenho oportunidade de saudar directamente V. Ex.ª na minha qualidade de Deputado. Faço-o com tanta mais liberdade de espírito e íntima satisfação quanto é certo reconheço na ilustre pessoa de V. Ex.ª todos aqueles dons que se requerem para o exercício continuadamente delicado e sagaz da alta magistratura moral e política em que foi investido pela Assembleia Nacional e que V. Ex.ª com elegância insuperável e assinalada pureza de juízos dignamente defende e conserva.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Ao dirigir gratamente as minhas saudações a V. Ex.ª eu quero, cordial e vivamente quero, torná-las extensivas a todos os Srs. Deputados para que as acolham e também sintam como expressão calorosa do meu respeito e afirmação de lealdade em afectuosa convivência.
Sr. Presidente: pedi a palavra para recordar no dia de hoje o nome de António Sardinha, polígrafo eminente, mas sobretudo pensador, cuja acção doutrinadora deixou largo sulco aberto na inteligência e na sensibilidade política portuguesas. Morto há vinte e seis anos, o seu preceptorado está vivo como na hora e a sua figura mental cada dia mais se engrandece e ascende no consenso dos homens de pensamento e fé nacionalista, como a de alguém que rasgou clareiras vastas de elevação e resgate espiritual com rara coragem moral e intangível dignidade. Mal andaríamos todos, ainda mesmo os que não compartilharam das suas lides e das suas aspirações, se não reconhecêssemos que o grande moto da sua vida ideológica e sentimental foi esta coisa, ao parecer tão simples: restaurar Portugal para Portugal.
Apoiados.
Esta é que foi a ideia directriz e inalienável de todo o seu pensamento, o voto de se entregar intensamente à reconquista do sentimento profundo de nacionalidade pelo apego ao mandato sagrado dos nossos mortos, que nos obrigam a empreender as caminhadas ásperas de Portugal português na ânsia de perscrutar as incertezas do futuro com o gosto da obediência e a resignação heróica do sacrifício. Muitos dos que aqui estamos lhe devemos, sem desânimo nem arrependimento, esta presença na quietação e na paz, e todos os mais, em grande parte, a preparação ideológica da plácida atmosfera em que se vai reparando e refazendo o destino duma pátria criminosamente quebrado no espaço de poucas gerações.
Quando se considera o panorama intelectual das três primeiras décadas deste século, já sem constrangimento arrepiador do nosso espírito, soerguendo-nos às paixões que vivemos e esquecendo até os males que nos doeram na carne e no sangue, pode afirmar-se que foi António Sardinha e os seus companheiros de Coimbra quem ergueu na sociedade portuguesa o mais veemente, o mais fecundo e arrojado timbre de voz nacionalista, gritando pela recuperação de todas as forças e verdades da Nação inerme, presa de lutas estéreis, com a intrepidez duma funda convicção. Desde os dias de Antero de Quental não se vira surgir na placidez da vida universitária uma ideia nova tão fortemente vivida e sugestiva.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - As circunstâncias temporais e a ordem moral e política eram então totalmente diversas do que haviam sido na segunda metade do século XIX e talvez em larga parte uma consequência da ideologia, estranha e inconformável com a tradição portuguesa, propugnada pela geração de Antero. Os sonhos do poeta-filósofo, como as adivinhações e transigências de Oliveira Martins ou os brados sonorosos de Junqueiro, cavaram fundo na inteligência e na alma dos Portugueses e deixaram nelas um travo de amargor e de desconfiança que as inibia de encontrar-se a si mesmas e potencializar-se para a acção nacional. Todos eles se alevantaram em juizes implacá-
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veia do passado da sua Pátria, que, em seus juízos, perdera o significado duma realidade permanente para só lhes aparecer como pretexto de bandeira de partido, por entre os negrumes de que pareciam carregados os dias que viriam próximo.
Quem quisesse então descer ao terreiro agitado da nossa vida política para combater por uma soma de verdades nacionais e confessar a crença na realidade intangível da Pátria havia de ter alma forte, coração leal e espirito aberto até mesmo às criticas e insinuações maledicentes, de que infelizmente a nossa vida não é parca.
Aqueles rapazes de Coimbra tinham e sabiam isso, mas possuíam também uma cabeça esclarecida e um dom inestimável - o de sorrir generosamente. No domínio da acção prática, nenhum lugar e meio era mais propício à sua doutrinação intelectual veraz, impetuosa e confiada. Eles souberam transplantar para os saudosos campos o mesmo ardor de espiritualidade que animava os planos amaviosos e as brandas colinas suavemente impressionistas da terra irreal de Garlândia, onde algum dia demoraram aqueles ante cujos olhos, claramente abertos, luziu o fogo inextinguível do ideal.
Entre todos destacava-se uma personalidade que os próprios companheiros consideravam à parte, pela vastidão das suas leituras, pela fogosidade da sua nobre alma, pelo temperamento vibrátil e candente, enfim, pela multiplicidade dos seus dotes literários, e na qual avultava ainda um raro poder e qualidade de intelectualizar os assuntos e temas, ainda que parecessem mesquinhos. Assim era António Sardinha, que não se iludia nem amedrontava ao enunciar o caminho e missão que o seu rasgo de doutrinação política de vero fundamento histórico suscitava e impunha:
A estrada a pisar-se é só uma e já Deus nos fez a mercê de nos ensinar qual ela seja. Se os perigos, aumentando, nos procuram, como ferros de espada, .tanto melhor! A nossa existência encher-se-á de um sabor de virtude e de heroísmo, por onde há-de regressar à nossa terra o património esquecido da sua glória e da sua grandeza. Só assim seremos dignos da Pátria que nos foi transmitida como um bem de família e que como um bem de família é preciso defender e conservar!
Desde logo, e como acaba de ser expresso, a nobreza posta ao serviço duma ideia e a coragem revelada na propugnação duma soma de verdades de inconcusso realismo nacional. Por isso mesmo os seus combates iniciais, algumas vezes abruptamente iniciados, deixarão nas suas páginas a denúncia e marca de um surto intelectual não facilmente apagável na história e evolução das doutrinas políticas contra-revolucionárias em Portugal.
Esta foi, ao que me parece, a fase de combatividade estreme e à qual a maturação do espírito e o continuar da experiência haviam de opor e propor a suma dum pensamento político organicamente concretizado no reconhecimento destas quatro realidades com direitos insofismáveis: a Terra, o Povo, a Língua e a Fé.
Duas formas tem a gente para pugnar por estas realidades maiores: ou integralmente por elas, ou tibiamente com elas. Decidindo-se pela primeira com honrada clarividência, António Sardinha, sempre com palavras fortes de esperança, lutou bravamente por entre as navalhas do arco dos pelotiqueiros e com aquela satisfação moral de pensar independente que nenhumas onças de ouro podem pagar neste Mundo.
A sua voluntariosa comunicabilidade arrastava e convencia, pois o sen espírito não sofria do mal da desesperança nem do ressentimento. Nele crepitava latente a chama dum ideal definido, que se alvoroçava de esperanças redentoras. Acodem-me neste momento algumas palavras suas, que não deviam andar esquecidas.
Palpita dentro de mim um intento modesto, mas sólido, de construir, que, mesmo quando contempla o espectáculo melancólico de quaisquer ruínas, encontra sempre nelas motivos vitoriosos de afirmação e de confiança. Não me será talvez dado a mim, nem nos que comigo mais de cerca rezam e aguardam, levantar o grande edifício que já avistamos, erguido, com os olhos serenos da convicção, para além da orla sangrenta em que tudo parece acabar nesta expectativa de Apocalipse.
O homem que escreve e prega há-de ser fiel à sua própria razão. Pensar uma coisa e fazer outra pode ser cómodo, mas não deixa de ser uma torpeza intelectual e moral. Toda a obra de António Sardinha aí está para afirmar a sua contínua sinceridade e a plena conformação do seu espírito com o espírito nacional, e por isso mesmo a subsistir como um verdadeiro «tratado de bem servir a nossa terra, escrito com o ardor de uma apologia» em altos clarões de fé e de verdade. Ele próprio confessou coram populi que o mais belo titulo da sua inteligência de estudioso o da sua sensibilidade era o de sentir-se voluntário da reacção nacional para a conquista da ordem e das liberdades tradicionais, contra uma política de abstracções e contra a execrável mentira dos seus ídolos.
No dia em que elevamos o nosso espírito para glorificar a sua memória honradíssima e o seu fecundo preceptorado, agradeçamos a Deus ter permitido que também nós nos não perdêssemos nas estradas do Egipto.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Ricardo Durão: - Sr. Presidente: decorreram durante as férias parlamentares as cerimónias de encerramento do centenário de Junqueiro. Só hoje, portanto, ao reabrir o Parlamento, tenho a oportunidade de fazer, a propósito, algumas considerações, que não julgo inconvenientes nem descabidas.
Considerando quê o presidente de honra da comissão organizadora dessas comemorações era o Sr. Marechal Carmona e que dela fazia parte um membro do Governo, nosso colega nesta Câmara e parente próximo de Junqueiro, abordarei o assunto com a delicadeza e o respeito que merecem estas altas individualidades, sem pôr de parte, é claro, a sinceridade de que sempre abuso.
Entre os comentários às cerimónias até então realizadas interessam-nos sobremaneira, como representantes da Nação, as afirmações produzidas na Assembleia Nacional pelo Sr. Deputado Carlos Moreira, a quem presto neste momento as minhas homenagens pelo desassombro, a independência e o brilho das suas palavras.
De facto, quem assim levanta a sua voz discordante na grande massa coral dos louvores académicos merece realmente a admiração devida às opiniões corajosas.
Simplesmente, eu, que não tencionava falar sobre Junqueiro, julgo agora conveniente que se saiba, depois da intervenção do nosso ilustre colega, que outra voz se levantou na Assembleia Nacional para reconhecer e aplaudir o sentido e o alcance das comemorações do centenário.
Resta-me agora - e considero indispensável- dizer porquê. Fá-lo-ei sem espirito de polémica, sem acrimónia, procurando, pela minha parte, não dar motivo a uma controvérsia de combate. Nem desejo de forma alguma destruir ou rebater uma opinião; pretendo apenas compensá-la.
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E tanto assim que começo precisamente por dar razão, em grande parte, ao Sr. Deputado Carlos Moreira nas suas referências ao regicídio.
Quando mataram D. Carlos tinha eu 15 anos e era republicano ... Era e sou, porque não foi a República que o matou.
É, portanto, como republicano que arrisco esta opinião, meramente, mas convictamente, pessoal: D. Carlos foi, porventura, em toda a dinastia de Bragança, sobretudo a partir dum dado momento da sua vida, o rei de Portugal mais digno deste nome, pela expressão varonil das suas atitudes, pelo seu portuguesismo bravo e castiço, pela sua simpatia irradiante e pela sua bondade imanente. Mesmo que assim não fosse, todo o acto criminoso repugna ao coração dum trovador, dum idealista. E, contudo, o que Junqueiro disse e escreveu sobre o regicídio é inacreditável, desconcertante!
O poeta da Morte de D. João era o ídolo da mocidade do meu tempo; recitávamos uns aos outros os seus versos, electrizantes como toques de clarim e rufos de tambor. E todavia a retórica piramidal e capciosa que ele desenvolveu sobre os assassinatos atirou tudo a terra. Foi como se ouvíssemos o fragor duma ilusão que desaba; foi como se víssemos tombar do pedestal da nossa idolatria um deus imarcescível ante os nossos olhos devaneadores de adolescentes, atónitos de assombro.
E no entanto o poeta tem desculpa, porque era um poeta ... O que ele escreveu nessa altura não se deve considerar como afirmações de um facínora, mas simplesmente como divagações dum lunático. Não aprovou o crime nem o condenou, procurando apenas explicá-lo com a lógica incongruente dum nefelibata.
Junqueiro errou, é certo, mas todos nós erramos, sobretudo quando transportados ao ambiente febril em que ele viveu, propício a todas as mórbidas concepções.
Todos nós erramos; errou talvez o Sr. Deputado Carlos Moreira nas conclusões a que chegou.
O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex.ª o demonstrará.
O Orador: - Erro eu, porventura, nesta apagada resposta que lhe dou; erram também - e esses lamentavelmente, miseravelmente- homens que, num dado momento histórico, empunham nas suas mãos inconsequentes os destinos do Mundo, adiando indefinidamente as resoluções salvadoras, até perderem por completo o domínio da situação.
Entremos agora na matéria de discordância: diz o nosso ilustre colega que Junqueiro a é incitador à revolução social da desordem» ; e transcreve, em apoio desta asserção, a primeira estância de uma das mais vigorosas composições do poeta:
Faminto, nu, sem mãe, sem leito,
Roubei um pão.
Quem vai além de farda e de grã-cruz ao peito?
Um ladrão!
Esta farda - é bom frisar - não diz respeito ao uniforme militar. Cá na tropa quem as faz paga-as; e muitas vezes até se pagam as que os outros fazem. Haja em vista, por exemplo, em grande escala, a guerra da Coreia. Porque, em pequena escala, os exemplos apontam-se a cada passo.
Mas o Sr. Deputado Carlos Moreira não disse o resto Já poesia; eu continuo, para agravar ainda mais a situação do poeta:
Todos os crimes da desgraça
Em mim reúno.
Quem vai além tirado a parelhas de raça?
Um gatuno!
Pela miséria crapulosa
Eu fui traído.
Que esplêndido palácio em festa! Quem o goza?
Um bandido!
Convém que se diga, nesta altura, que a poesia se intitula: Falam os condenados. Diante disto, invoco em defesa de Junqueiro todos os santos da corte do Céu, desde S. Tomé a Santo Afonso de Ligório; todos os doutores da Igreja, desde Leão XIII ao cardeal Manning, sem falar de Cristo. E nenhum deles contradiz o pensamento que preside a esta admirável síntese de Junqueiro, que não é mais revolucionária nem mais subversiva do que o vibrante slogan de Salazar, a mais formosa epígrafe da nossa causa:
«Enquanto houver em Portugal um lar sem pão, a revolução continuai». Porque a verdade é esta: só tem direito moral à riqueza quem a souber adquirir com dignidade e aplicar com galhardia. Só tem direito moral à riqueza quem fizer dela um instrumento do Bem.
Não é no apelo dolorido do vate apaixonado que está o incitamento à revolução social da desordem. Pelo contrário, os seus gritos de protesto e os seus gemidos de dor podem até contribuir para deter ou desviar a marcha da torrente.
O incitamento à revolução social da desordem, em todo este mundo de Cristo, reside essencialmente na crápula dos costumes e na inversão dos direitos, a coberto da injustiça impune e soberana.
E, se queremos salvar a nossa fé e o nosso ideal, é sobre este objectivo e nesta direcção que temos de montar o ataque.
Junqueiro «colérico, rebelde» ? Talvez. Mas Junqueiro anárquico-comunista, porventura? Não me parece.
Arquimedes disse um dia: «Dai-me uma alavanca e um ponto fixo no espaço e eu levantarei a Terra». E eu direi, por minha vez: dai-me a lira de Junqueiro e a hermenêutica de um apóstolo e eu levantarei uma cruzada anticomunista.
Mas prosseguindo: termina a apóstrofe do poeta com uma estância que eu já tinha citado a propósito da Lei de Meios, procurando justificá-la, e que o nosso colega citou também, quero crer que por mero acaso:
Viola, seduz, furta, assassina,
Milhão, és rei!
Que prostituta está cantando àquela esquina?
A Lei!
Ora o Sr. Deputado Carlos Moreira, que é um homem de leis, sabe melhor do que eu que só é digno de julgar quem tiver a consciência da sua missão, quem possuir autoridade e coragem moral, capacidade e independência mental para defender a lei contra toda a especulação jurídica, adaptando-a exclusivamente ao fim moralizador para que foi criada. E, quando assim não sucede, o julgador, ou quem o designou para julgar, traiu a sua missão. Porque os tribunais, Sr. Presidente -e V. Ex.ª com o seu exemplo de alto magistrado o confirma-, os tribunais são templos da Justiça, não são prostíbulos do Direito.
Mais adiante cita o nosso colega uma passagem da Morte de D. João, endossando à responsabilidade do poeta palavras que este coloca na boca do seu protagonista, diante de um crucifixo. Mas não se pode responsabilizar Junqueiro pelos sarcasmos de um «canalha gentil», que se arrasta, bêbedo e sifilítico, entre as ruínas da sua alma putrefacta, na última fase do cinismo e da degradação moral; esse torpe D. João. com o seu cortejo de donzelas desvairadas, o sedutor irresistível, o galã rafiné, o charmeur ou o rufia, que Junqueiro matou como se mata um lobo, em defesa da sociedade ultrajada.
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O Sr. Mário de Albuquerque: - Matou, mas foi o pai dele.
O Orador: - Não compreendo.
O Sr. Mário de Albuquerque: - Ele é o autor e o criador; portanto, é o pai.
O Orador: - A peça de Junqueiro A Morte de D. é um poema, mais ou menos teatralizado. D. João e uma personagem.
O Sr. Mário de Albuquerque: - Mas o autor é responsável pelas personagens que cria nu pela forma por que as adopta.
O Orador: - Um autor que faz uma comédia será responsável pelos disparates das suas personagens?
O Sr. Mário de Albuquerque: - Mas, se formular ideias imorais nas personagens que cria, é responsável por isso.
O Sr. Presidente : - Eu peço ao Sr. Deputado Mário de Albuquerque que não continue a interromper o orador sem licença da Presidência.
O Sr. Mário de Albuquerque: - Peço desculpa a V. Ex.ª
O Orador: - Eu, por mini, não vejo inconveniente na interrupção do Sr. Deputado, tanto mais que tudo ó discutível.
Mas, prosseguindo:
No que respeita à Velhice do Padre Eterno, onde há páginas de ouro de um relevo inconfundível, alternando com sátiras iconoclastas dum grotesco atroz, algumas mesmo em que a poética sofre, também tudo se explica. E para o compreender e desculpar é preciso transportar Junqueiro ao ambiente jacobino e sardónico da sua época, aliás até certo ponto justificado, porque há cinquenta anos ainda era frequente encontrar se em cada padre um sibarita, em cada cura de aldeia um devoto de Epicuro.
Entretanto a Igreja transformou-se, constituindo hoje um escol dentro da Nação: um escol de humanistas, de educadores, de filantropos e até de heróis.
E quem sabe, Sr. Presidente, quem sabe se as sátiras da Velhice não teriam também contribuído para impulsionar, em contrapartida, a ascese máxima do espírito religioso e a reabilitação do sacerdócio?
Pessoa que nos merece todo o crédito informou-me nesta Camará que o Senhor Cardeal-Patriarca, sondado sobre a viabilidade da sua colaboração nas cerimónias comemorativas, respondeu simplesmente:
Porque não hei-de colaborar no centenário de Junqueiro? Mas decerto que sim, rezando pela salvação da sua alma; e isso fá-lo-ia sempre, mesmo que não mo tivessem solicitado.
Nobilíssima resposta! Digníssima atitude a da Igreja portuguesa : ausente, alheia à consagração do ímpio, mas abstendo-se de comentários ad odium, recolhendo-se em espirito para rezar em êxtase, no silêncio augusto da sua nave austera.
E, apesar disto, foi mais longe o Senhor Cardeal-Patriarca, quando há poucos dias, na sua mensagem de paz e de amor, fez plena justiça às intenções de Junqueiro num largo gesto de reconhecimento e de absolvição.
A propósito da antologia junqueiriana, diz ainda o nosso ilustre colega que a Revolução Nacional de 28 de Maio «anda desviada em vários sectores e detida por muitos que dizem servi-la». Sim, é possível, mais que possível, absolutamente certo, mas não por esse motivo.
Seja-me permitido, a propósito, pedir ao Sr. Deputado Carlos Moreira que leia o discurso do Dr. Augusto de Castro: e que leia depois um artigo do Diário da Manha, intitulado «Junqueiro profeta da Revolução Nacional», em que as afirmações deste orador, já de si poderosas, se apresentam solidamente reforçadas. Ali se prova que a Revolução Nacional, além da profecia do poeta, era também a sua mais bela aspiração.
Ainda sobre a antologia, receia o nosso colega que «o crivo da selecção tenha sido largo o haja passado algum joio para o campo de sementeira da juventude».
Ora eu não conheço pessoalmente o seleccionador dos trechos publicados; nunca lhe falei. Verifico, porém, que ele é, no momento actual, pelas altas funções que exerce, a figura mais representativa das letras portuguesas; e, pelos serviços que já tem prestado, pode tacitamente considerar-se integrado na situação vigente. Trabalha ao nosso lado.
Não vejo, portanto, qualquer razão que nos impeça de confiar no seu critério de antologista.
E, depois, pergunta o Sr. Deputado Carlos Moreira:
Quem nos diz que os jovens se limitarão a conhecer somente os pedaços do antologia que lhes ministram? E o resto da obra? Quem lha oculta ou lha destrói?
Mas por esse raciocínio teríamos de excluir das antologias a grande maioria dos melhores autores portugueses, alguns mesmo entro os que S. Ex.ª cita.
O que seria de Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão, de Fialho de Almeida, de Oliveira Martins, de Bocage, de A útero, de Herculano e até do próprio Camões?
Teríamos de banir das escolas as fábulas do mavioso La Fontaine, as metamorfoses do clássico Ovídio, etc.
O nosso colega sabe com certeza o que está por detrás destes mariolas... É o pior que há -perdão!-, é o melhor que há; e o mal é esse.
Em resumo, teríamos de queimar muitos livros e talvez dos melhores. E todo esse auto-de-fé só para não despertar a curiosidade da juventude!
Mas é tempo de terminar, Sr. Presidente, e termino guardando a convicção de que Junqueiro continuará a ser, através dos séculos, o poeta, por excelência, da mocidade heróica e bela.
O Sr. Carlos Moreira:- Nisso é que V. Ex.ª está redondamente enganado.
O Orador: - Continuará ou voltará a ser.
Ele o disse.
«É de bronze inteiriço a espinha dos heróis».
Não pode haver mocidade que não sinta reboar, dentro do seu coração, este grito indómito contra a renúncia e contra a subserviência. E a mocidade tem de servir sem subserviência, servir sem servilismo, porque é sobre a lealdade e o orgulho do quem serve que os chefes podem construir com segurança.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito e cumprimentado.
O Sr. João do Amaral: - Peço a palavra!
O Sr. Presidente: - As limitações que o Sr. Deputado Carlos Moreira nesta Assembleia pôs às comemorações solenes do centenário de Junqueiro, aliás com a maior elevação, espírito de justiça e do são nacionalismo apoia-
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dos), entendeu o Sr. Deputado Ricardo Durão contrapor o seu modo de considerar Junqueiro. A controvérsia leva, segundo vejo, o Sr. Deputado João do Amaral a usar da palavra para explicar a sua posição de nacionalista e homem de letras no debate.
Peço ao Sr. Deputado João do Amaral que seja breve.
O Sr. João do Amaral: - Srs. Presidente: pedi a palavra para discordar de ideias e conceitos que se encontram expostos no, aliás eloquente, discurso do Sr. Deputado Ricardo Durão, mas vejo e sinto que não devo usar dela senão como um pedido para explicações. Procurarei enquadrar-me nesse imperativo regimental, embora desejando que fique bem assente que aquela intervenção eloquente se me afigura particularmente extemporânea neste dia em que os nacionalistas portugueses comemoram a morte de António Sardinha.
O Sr. Ricardo Durão: - Quando me inscrevi desconhecia tal facto. No entanto, devo dizer que não acho motivo para os melindres de V. Ex.ª
O Orador: - Num jornal que fundei e do que fui redactor principal António Sardinha escreveu há mais de trinta anos um artigo que foi um julgamento inexorável da obra de Junqueiro.
Mas, cingindo-me ao meu pedido para explicações, desejaria que ficasse bem definido que a intervenção do Sr. Deputado Ricardo Durão não traduz qualquer movimento de adesão deste órgão de soberania às homenagens que tomaram um carácter de glorificação de um poeta e de umas ideias que não estão de acordo com a fidelidade que devemos à Igreja, pois padres e príncipes foram os fundadores e construtores da nossa nacionalidade política.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Antes de passar à ordem do dia, desejo congratular-mo com a Assembleia pelo regresso da Sr.ª D. Leonor Correia Botelho, que vejo presente no seu lugar e nesta sessão.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - A Sr.ª D. Leonor Correia Botelho, que nos dera as mais lisonjeiras esperanças de uma acção parlamentar fecunda e a certeza de uma gentil camaradagem, foi afastada desta Casa por uma longa doença, durante a qual todos nós a acompanhámos com o maior interesse.
Vozes: - Muito bem, muito bem !
O Sr. Presidente: - Vemo-la hoje, restabelecida, ocupar o seu lugar. Creio que a Câmara ine acompanhará nos votos que em nome dela faço para que o seu restabelecimento seja completo e para que possa, desde agora, dar-nos o conforto da sua presença e a sua brilhante colaboração.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Tem a palavra para realizar o seu aviso prévio o Sr. Deputado Tilo Abrantes.
O Sr. Tito Abrantes: - Sr. Presidente: quando se fala de um assunto técnico perante uniu Assembleia composta, como esta, em parte por técnicos e em parte por pessoas que o não são, há preliminarmente que optar por um de dois riscos: ou tratar dos problemas em toda a sua profundidade, tentando interessar :le algum modo os técnicos, mas dessa maneira cansando com certeza os não técnicos; ou tratar os problemas sem sair da generalidade, procurando assim respeitar a «atenção dos não técnicos, mas incorrendo então na censura dos técnicos, por excessiva superficialidade.
Entre estes dois riscos opto resolutamente pelo segundo; quer dizer que vou procurar falar o menos possível como jurista e o mais possível como observador não especializado que procura analisar com simples bom senso determinados problemas jurídicos.
Sr. Presidente: um dos piores males que podem afectar a vida de relação nas sociedades civilizadas é, sem dúvida, a incerteza do direito: cada um tem de saber em que lei vive, aquilo que lhe é permitido fazer, aquilo que lhe é vedado, e quais são, com segurança, na ordem jurídica, as consequências que os seus actos importam.
Quando assim não acontece gera-se um ambiente de franco mau estar, em que os cidadãos hesitam antes de dar um passo, com receio dos alçapões que, na hipótese de uma questão, debaixo dos pés se lhes podem abrir, e nem sequer poderão ser elucidados com firmeza pelas pessoas a quem deveria caber tal missão - os advogados -, porque também estes não poderão garantir-lhes a ortodoxia dos seus conselhos.
O facto de a lei ser escrita constitui a primeira garantia no sentido da certeza do direito.
Mas a lei destina-se a ser aplicada.
E ou porque o texto não está claramente redigido, ou porque enferma de lacunas que os tribunais têm de suprir, ou porque às vezes, apesar de a lei ser perfeita e clara, os juizes a entendem de um modo diferente, a verdade é que as decisões judiciais surgem com frequência desconcertantemente contraditórias, «com manifesto prejuízo para a boa administração da justiça e para o prestígio dos tribunais», como já em 1898 se lia numa portaria do Ministro Alpoim.
A pecha, já se vê, não é exclusivo nosso. Mas manda a verdade confessar que o problema chegou a assumir em Portugal uma particular acuidade.
Os julgamentos do nosso mais alto tribunal ofereciam em dado momento, no dizer do eminente processualista, presidente ilustre que foi desta Assembleia, Doutor José Alberto dos Reis, «o panorama desconsolador de uma jurisprudência incerta, variável e caprichosa» (1).
Não admira, por isso, que diversos esforços e providências se tenham entre nós ensaiado no sentido de conseguir uniformizar a jurisprudência.
Cabe, porém, ao grande Ministro da Justiça que foi o Prof. Manuel Rodrigues - tão presente e vivo na obra gigantesca por ele deixada que nos esquecemos de que já morreu ...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... como, em diverso campo, também acontece com outro grande Construtor desaparecido da era de Salazar, o Ministro Duarte Pacheco ...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador:- ... cabe a Manuel Rodrigues, dizia, a honra de ter enfrentado e resolvido, com a sua habitual coragem, o problema da uniformização da jurisprudência.
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Foi no artigo 66.º do Decreto n.º 12:353, de 22 de Setembro de 1926, que se deu remédio ao inquietante mal. Hoje, como é sabido, a matéria encontra-se regulada nos artigos 763.º a 770.º do Código de Processo Civil.
Em que consiste esse remédio?
Consiste nisto: quando o Supremo Tribunal de Justiça profere um acórdão (geralmente tirado por três ou cinco juizes) que está em oposição sobre a mesma questão de direito com outro acórdão por ele anteriormente proferido e no domínio da mesma legislação, a parte vencida pode interpor recurso para o tribunal pleno.
Este tribunal pleno é constituído pelos quinze juizes conselheiros que actualmente compõem as três secções do Supremo Tribunal de Justiça e no julgamento do recurso terão de intervir, pelo menos, quatro quintos desses juízes.
Apreciando os seus julgados contraditórios, o Supremo lavrará então um assento em que resolve o conflito pela fornia que lhe parecer mais justa.
A doutrina desse assento, e aqui é que reside o principal interesse tio caso, fica sendo obrigatória para todos os tribunais, incluindo o próprio Supremo Tribunal de Justiça.
Para não haver o perigo de o direito, que é essencialmente evolutivo, ficar eternamente estagnado, o legislador previu, contudo, uma forma de os assentos poderem ser alterados pelo mesmo Supremo Tribunal de Justiça: tal verificar-se-á quando, num posterior processo, a maioria dos juizes que nele tiverem de intervir se pronunciar contra a doutrina do assento; se tal acontecer, o processo será concluso a novos juizes até que se obtenham sete votos conformes. Se esses sete votos forem confirmativos do assento, este manter-se-á; se forem contra, o processo será então continuado com vista a todos os restantes juizes, e em tribunal pleno o conflito se decidirá, lavrando-se novo assento no caso de a maioria dos juizes deliberar efectivamente revogar o anterior.
Devo desde já esclarecer VV. Exas. que em vinte e três anos, ou seja desde que foi proferido o primeiro assento, até hoje tal nunca aconteceu.
Acerca da verdadeira natureza jurídica dos assentos do Supremo Tribunal de Justiça divergem as opiniões.
Como leis interpretativas os consideram os Profs. Cabral Moncada (2) e Paulo Cunha (3), o próprio Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 13 de Abril de 1948 (4), e o Doutor Manuel Rodrigues (5); como fonte de direito, o Prof. Fezas Vital (6) e a Revista de Justiça (7); como quase fonte de direito, o Prof. Pires de Lima (8); como quase leis o Prof. Barbosa de Magalhães (9) e o Doutor Palma Carlos (10); como norma interpretativa, mas não lei interpretativa, o Prof. Marcelo Caetano (11), etc.
De modo diverso, classificando os assentos como simples jurisprudência qualificada e obrigatória, manifestaram-se a Revista de Legislação e Jurisprudência (12), os Doutores Martins de Carvalho (13), Fernando Olavo (14), etc.
Desta própria diversidade de conceitos creio podermos concluir que os assentos do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à sua natureza, flutuam entre as verdadeiras leis e os simples restantes acórdãos do mesmo Tribunal, mas muito mais próximos daquelas do que destes.
Chegado a este ponto, é o momento de perguntar:
1.º Se a mecânica actualmente estabelecida para a formulação dos assentos se tem revelado absolutamente isenta de senões, ou se, ao contrário, não será susceptível de qualquer melhoramento?
2.º Se nas decisões que o Supremo Tribunal de Justiça nestes vinte e três anos tem proferido no seu papel de quase legislador não haverá também alguma coisa a retocar?
Creio que, tanto num caso como noutro, se impõe realmente uma revisão cuidada.
Sr. Presidente: começarei por aludir ao processo para a elaboração dos assentos.
Lançando uma vista de conjunto sobre aqueles até hoje proferidos logo se verifica uma circunstância chocante: a percentagem relativamente alta de votos de vencido que se registam em algumas dessas decisões.
Basta dizer que seis assentos foram obtidos apenas com dois votos de maioria; três assentos apenas com um voto de maioria; e em outros dois assentos registou-se um empate na votação, tendo o presidente do Tribunal sido forçado a intervir para desempatar (15).
Ora, como primeira condição para que o Supremo Tribunal de Justiça possa editar normas interpretativas, cuja observância se impõe, obrigatoriamente a todos es tribunais, parece que deve estar o facto de, antes de tudo, o próprio Supremo Tribunal estar convencido da exactidão da doutrina com que pretende convencer os outros.
Se o próprio Supremo manifesta tamanha hesitação na resolução dos conflitos jurisprudenciais que às vezes só com um voto de maioria consegue chegar a uma conclusão, é evidente que o assento proferido surge eivado de um carácter dubitativo que não se compadeça com a sua função definidora da verdade jurídica.
Sou de parecer, portanto, que a lei deveria ser modificada no sentido de os assentos só poderem ser tirados desde que a sua tese congregue uma determinada maioria - digamos, por exemplo, dois terços dos votantes.
Na, hipótese de essa maioria se não obter o presidente do Tribunal faria enviar ao Ministro da Justiça cópias das peças fundamentais do processo os acórdãos em oposição e as alegações das partes, e então o Ministro, dentro de um prazo a assinalar, promoveria, em diploma legal competente, o esclarecimento da questão de direito controvertida.
Creio que esta reforma contribuirá para uma melhor distribuição da justiça e para a defesa dó prestígio de que justamente goza o nosso mais alto tribunal.
O Sr. Sá Carneiro:- V. Ex.ª dá-me licença? Eu concordo plenamente com o princípio de se exigir certa maioria para ser tirado assento. Simplesmente, como V. Ex.ª sabe, há duas espécies de recursos para tribunal pleno. Um deles, o normal, é o interposto pela parte vencida e, quando julgado existente o conflito de jurisprudência, o assento não só resolve o pleito como fixa a interpretação obrigatória para o futuro; o outro é o interposto pelo Ministério Publico, com o único objectivo de fixar jurisprudência.
A proposta de V. Ex.ª é aceitável para a última espécie de recursos, mas não para a primeira, visto as questões judiciais deverem ser julgadas pelos tribunais e não pelo Poder Legislativo.
Para o primeiro recurso parece-me que só há uma solução - obter dentro da magistratura judicial a necessária maioria de juizes, fazendo intervir os juizes conselheiros que estejam em comissões de serviço e, sendo necessário, juizes das Relações, a começar pela de Lisboa.
O Orador: - Mas o Governo não julgaria o caso particular, decidiria em geral...
O Sr. Sá Carneiro: - Mas haveria sempre a intervenção do Governo ...
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O Sr. Pinto Meneres: - E a decisão ficaria influenciada pela intervenção do Governo.
O Sr. Morais Alçada: - Parece-me que a solução pode alcançar-se pela adopção simultânea de mais de um sistema; de mais do que um mecanismo: um que diria respeito para os casos de divergência de interpretação superior em estado, digamos, latente. E então para essa modalidade interviria o legislador. Na hipótese de haver interposição de recurso para o pleno, apoiada em divergência de julgados, invocados aí pelo próprio interessado, então o Supremo ficaria, em sistema futuro, também com poderes para unificar o conflito de interpretações.
O Sr. Carlos Borges: - Suponho que tenha sido enunciado o aviso prévio. Neste caso, VV. Ex.ªs podem pedir a generalização do debate e a expor na tribuna os seus pontos de vista.
O Orador: - A solução poderia também estar em o tribunal pleno resolver apenas o caso subjudice, quando não obtivesse a maioria dos dois terços; .mas o assunto ser depois submetido ao Ministério da Justiça para resolver, querendo, de uma forma geral, o conflito em aberto.
Outro ponto que carece de urgente intervenção - esse não por culpa do legislador, mas de uma jurisprudência que, sem base na lei, ultimamente se estabeleceu no Supremo Tribunal - é o que se refere ao número de acórdãos a invocar como fundamento do recurso.
Como já referi, estes recursos para o tribunal pleno têm por base a afirmação do recorrente de que o Supremo Tribunal de Justiça, em anterior processo sobre o mesmo ponto de direito e sob o domínio da mesma legislação, proferiu um acórdão contraditório com aquele de que se pretende recorrer.
Ora, o que é que geralmente acontece ?
Acontece que as questões de direito acerca das quais se levantam estes problemas são geralmente complexas e difíceis; por outro lado, as circunstâncias de facto variam de hipótese para hipótese.
Deste modo, quando o Supremo profere uma decisão contrária a certo ponto de vista, o advogado que o defende entra legitimamente em dúvida sobre quais são os anteriores acórdãos do mesmo Tribunal que deve citar como mais contraditórios, digamos assim. Nuns a contradição parece mais flagrante por isto, noutros por aquilo; uns foram proferidos sobre uma questão absolutamente idêntica, outros sobre uma questão que só difere, em seu entender, em pormenores sem interesse.
Mas, já se vê, tudo isto é discutível, tudo isto é contestável.
À cautela, não só no uso de um direito, mas até no cumprimento de um dever, o advogado fundamenta o seu recurso invocando por isso os vários acórdãos de que tem conhecimento. O Supremo vai apreciando-os até encontrar o primeiro que repute realmente contraditório.
Durante cerca de vinte anos assim se procedeu pacificamente, sem suscitar reparo de ninguém.
Porém, a partir de há três anos para cá, o Supremo passou a julgar que só pode indicar-se um acórdão fundamentando o recurso para o tribunal pleno! E esta jurisprudência, apesar de logo criticada pela Revista de Legislação e Jurisprudência (16), Revista dos Tribunais (17), etc., pode dizer-se lixada.
Não desconheço que esta estranha a inconvenientíssima doutrina surgiu como reacção contra alguns casos especiais, em que os recorrentes fundamentaram os seus recursos invocando treze, dezanove e até, de uma vez, trinta e um acórdãos como contraditórios, o que forçava o Supremo, como é óbvio, a um trabalho desmedido (18).
Mas para esses abusos tinha o Tribunal um remédio, de que, aliás, chegou a usar: a condenação do recorrente como litigante de má fé, quando se demonstrasse que no meio da avalanche das decisões não havia sequer uma única que pudesse, na verdade, ser tida como contraditória (19).
De qualquer modo, nem oito nem oitenta.
A proibição de citar mais de um acórdão é absolutamente inaceitável; inclusivamente porque ofende - e ainda não vi este argumento claramente empregado - letra expressa da lei: o § 2.º do artigo 768.º do Código de Processo Civil,- que terminantemente se refere aos acórdãos anteriores invocados como fundamento do recurso, «Acórdãos», no plural; logo mais do que um.
Mas a possibilidade de citar vinte ou trinta é igualmente inadmissível.
A lei precisa de ser esclarecida. Se se estabelecer que no recurso para o tribunal pleno podem invocar-se até, por exemplo, cinco acórdãos como contraditórios (quanto à mesma questão de direito), já se dará ao recorrente uma suficiente possibilidade de defesa, sem, em contrapartida, ir sobrecarregar o tribunal com uma tarefa esmagadora e inútil.
Outro aspecto do problema a considerar deverá ser a definição da expressão «no domínio da mesma legislação», que se lê no artigo 763.º do Código de Processo Civil.
Como já referi, para se fundamentar um recurso para o tribunal pleno é necessário demonstrar que o acórdão de que se pretende recorrer está, sobre a mesma questão de direito, em oposição com outro anterior acórdão do mesmo Supremo Tribunal, acórdão esse que há-de ter sido proferido no domínio da mesma legislação. Se o não foi, o recurso é inadmissível.
Este requisito justifica-se absolutamente, porquanto, se os acórdãos que se apontam como contraditórios foram proferidos no domínio de duas legislações diferentes, não há que. falar em aposição de julgados, pois não foi a jurisprudência mas os textos legais que variaram.
No Supremo Tribunal de Justiça, porém, têm-se manifestado duas correntes acerca do que deve entender-se por acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação.
Segundo uma dessas correntes, a legislação é a mesma &e o texto do preceito legal objecto da controvérsia se mantém sem alterações, muito embora esse texto ontem fizesse parte dum determinado diploma e hoje esteja inscrito num diploma diferente.
Segundo outra corrente, para os acórdãos serem considerados como proferidos no domínio da mesma legislação é indispensável, não só que se verifique a identidade do preceito legal em causa, mas ainda a identidade do próprio diploma onde esse preceito está inscrito.
Um exemplo, para tornar o caso mais claro, e que é dos mais frequentes: suponhamos que o Supremo pronuncia uma decisão sobre uma questão regulada por determinado artigo do novo Código de Processo Civil, que é de 1939, e que a parte vencida recorre para o tribunal pleno, invocando um anterior acórdão do Supremo em sentido oposto, mas proferido no domínio do Código de Processo Civil de 1876, o qual sobre a matéria em causa continha um artigo absolutamente idêntico àquele que o novo código reproduziu.
Segundo uma das correntes em vigor no Supremo, o recurso será inviável, porque as duas decisões não foram proferidas no domínio da mesma legislação, pois unia provém do código de 1876 e outra do código de 1939.
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Segundo a outra corrente, o recurso tem viabilidade, porque os artigos das duas leis vigentes à data dos acórdãos são absolutamente idênticos, e assim as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação.
A questão tem sido largamente discutida e ainda recentemente foi estudada, num douto artigo publicado na Revista dos Tribunais, pelo ilustre jurisconsulto, e nosso querido colega, Dr. Sá Carneiro (20).
Considero, como ele, infundamentada a corrente rigorista do Supremo.
O recurso para o tribunal pleno tem por objectivo não só permitir que ao recorrente se faça justiça nó caso vertente, mas, principalmente, permitir a uniformização, e o consequente prestígio, da jurisprudência e pôr termo ao caos das decisões contraditórias.
Ora, se o preceito legal é o mesmo, não é por estar inserto em diplomas legais diferentes que a contradição dos acórdãos desaparece ou se atenua.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - V. Ex.ª dá-me licença?
Eu sustentei na Ordem dos Advogados precisamente essa opinião: desde que o texto é o mesmo, que o assento prevalecesse. Mas a minha opinião foi vencida.
O Sr. Sá Carneiro: - Quando o Código de 1939 começou a vigorar, surgiu este problema: estariam revogados os assentos anteriores produzidos com base na legislação anterior, embora a legislação de 1939 fosse idêntica? E admitiu-se que estavam todos revogados.
O Orador: - O que é preciso é que não haja transposição das questões.
A decisão que se tome quanto ao problema da vigência dos assentos sobre matéria de processo depende da noção em que assentarmos sobre o que é o domínio da mesma legislação, e não é a inteligência desta expressão que pode depender da solução do outro problema. Um é causa e outro efeito.
O Sr. Sá Carneiro: - Revogados estão todos os assentos sobre processo. Estão revogados porque o assento não pode ser discutido.
O Orador: - Eu sei que se observa, e com mais subtileza de dialéctica do que justa razão, que o texto de dois artigos pode ser igual, mas a sua interpretação dever ser diferente, porque podem ter variado o espírito, o sistema, ou outros preceitos dos diplomas em que se integram.
Mas, se assim é, torna-se necessário demonstrá-lo.
Admito que as palavras dos dois preceitos podem ser iguais, e, contudo, às vezes significarem coisas diversas (só excepcionalìssimamente, porém, tal acontecerá, porque o legislador, quando quer que ao novo preceito se dê uma interpretação diferente, não vai empregar redacção idêntica à antiga); mas muito mais facilmente admito ainda que as palavras de dois preceitos podem ser diversas, e, não obstante, significarem a mesma coisa.
Por conseguinte, determinar se as duas decisões em conflito foram ou não proferidas no domínio da mesma legislação não é questão a resolver apenas pelo confronto material das palavras, nem da data, nem dos números dos respectivos decretos ou leis.
E uma questão de essência, é uma questão substancial.
O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-me licença?
E para trazer um elemento de elucidação ao problema que está posto: é conhecida a lei uniforme em matéria de letras.
A lei uniforme tem o mesmo texto e contexto nos vários países em que vigora. E pode ser diversamente interpretada, em consequência de sistemas diferentes de Direito em que se integra. Pode aparecer com um conteúdo diferente imposto pelos sistemas de Direito em que se integra; e, no entanto, a disposição é a mesma.
O Orador: - Agradeço a V. Ex.ª a informação que me presta.
Quando o recorrente cita um acórdão oposto ao recorrido proferido no domínio do artigo tal do Código de Processo de 1876, igual ao artigo tal do de 1939, o Supremo não pode - entenda-se, mão deve poder - indeferir còmodamente o recurso, sob o pretexto de que os dois códigos constituem legislações diferentes.
Se essa diversidade ide legislação alterou, no entender do Supremo, a inteligência do preceito em causa, há que dizer em quê e porquê.
E se houver razões para demonstrar concretamente em cada hipótese, e anão teoricamente, aprioiristicamente e em abstracto, que realmente o preceito tem um alcance distinto do preceito anterior, apesar da redacção idêntica, então sim -e só então- haverá motivo para recusar seguimento ao recurso.
Julgo indispensável, numa eventual reforma da lei, eliminar também a este respeito qualquer possibilidade de dúvida.
Antes de encerrar este capítulo acerca do processo ou da mecânica por que são tirados os assentos, apenas esta ligeira nota:
O Supremo Tribunal de Justiça manteve durante certa época uma jurisprudência inabalável no sentido de que contra os seus assentos não eram admissíveis sequer aquelas reclamações que o código faculta no caso de uma decisão conter um lapso manifesto, um erro de escrita ou ide cálculo, uma inexactidão material, etc. (21).
Contudo, em arestos posteriores, embora com votos de vencido, o nosso primeiro tribunal já tem julgado em sentido inverso (22).
Creio ser conveniente, para evitar novas flutuações futuras, estabelecer expressamente que contra os assentos podem ser deduzidas reclamações - muito embora se preveja qualquer sanção especial contra o litigante que infundadamente, apenas para incomodar ou protelar, põe em andamento a demorada e complicada máquina que é o tribunal pleno.
Sr. Presidente: já não é sem tempo que chego à segunda parte das considerações que me propus fazer.
Consiste ela em apreciar algumas das conclusões concretas a que o Supremo Tribunal de Justiça tem chegado nos conflitos de jurisprudência que lhe são submetidos. Até hoje aquela corte tem já proferido mais de cento e trinta assentos.
Decerto a esta Assembleia será grato prestar homenagem ao intenso e digníssimo labor desenvolvido por aquele venerando Tribunal.
Apoiados.
E de elementar justiça destacar que na enorme maioria dos assentos proferidos o Supremo soube sempre escolher a melhor de entre as soluções possíveis e que muitos desses arestos são modelos perfeitos, pelo seu conteúdo, pela sua concisão e até pela elegância literária com que estão redigidos.
Apoiados.
Mas, a par disto, ninguém poderá estranhar - visto que a perfeição absoluta não está ao alcance da pobre Humanidade - que algumas das decisões proferidas sejam mais discutíveis e outras, felizmente poucas, francamente infelizes.
De resto isso nem sempre acontecerá por culpa dos doutos conselheiros que tiram os assentos. Algumas
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vezes é o próprio texto legal que é deficiente, forçando os magistrados a proferir decisões com as quais, de jurie condindo, eles talvez sejam os primeiros a não estar de acordo.
De uma forma ou de outra, a verdade, já apontada pelo Prof. Doutor José Alberto dos Reis, é que o «Supremo tem sido infeliz na enunciação de alguns assentos» (23).
Porque me vou ocupar apenas desses, que criticarei, era preciso dizer isto, para não se cuidar que esqueço o muitíssimo que haveria que louvar.
O primeiro assento que, pela importância da doutrina fixada, merece o maior reparo é o de 8 de Maio de 1928 - um dos tais só tirado com um voto de maioria -, onde se julgou que a entrega ao credor de uma letra aceite pelo devedor, à conta da sua dívida, representa uma novação, ou seja a extinção da dívida antiga e a criação de uma dívida nova, que é a representada pela letra.
Sem falar em outras graves consequências de ordem jurídica que esta decisão logicamente importa, salientarei que, por ela, se um comerciante tiver um crédito privilegiado - por exemplo, sobre um navio, por falta de entrega de mercadorias carregadas - e depois receber do seu devedor, em representação da dívida, uma letra por este aceite, perderá o privilégio de que gozava, porque a emissão da letra extingue a dívida antiga e, consequentemente, a sua garantia. Logo, se o devedor depois não pagar a letra, o credor passará a ser um credor comum, como outro qualquer.
Esta tese de que a emissão das letras produz novação estava, antes do assento, há muito condenada pela quase unanimidade da doutrina em Portugal.
Não admira, por isso, que a decisão do Supremo, tirada por um único voto de maioria, fosse recebida com um coro geral de reprovação.
«Infeliz assento, doutrina inadmissível», assim se exprimiu a Revista de Legislação e Jurisprudência (24).
O assento «esquece toda a teoria jurídica das letras» ... «parece-nos que terá vida fugaz, se o legislador sensatamente não o inutilizar com um preceito interpretativo», comentou o Sr. Dr. Sá Carneiro (25).
«Um verdadeiro desafio à jurisprudência de todos os países e ao consenso geral da doutrina», assim se lhe refere o Sr. Dr. Gonçalves Dias, na sua monumental obra Da letra e da livrança (26).
«Detestável acórdão, que tem de ser urgentemente expurgado da nossa jurisprudência para prestígio da magistratura portuguesa», nestes termos vibrantes o aprecia o Sr. Dr. Cunha Gonçalves (27).
Combatido igualmente pelo Sr. Dr. José Alberto dos lieis (28), pelo Prof. Doutor Mário de Figueiredo (29), pela Gazeta Judiciária (30), pelo Dr. Humberto Pelágio (31), contrariado mesmo pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça em decisões posteriores (32), a verdade é que a lamentável decisão continua de pé.
Continua de pé é como quem diz.
Houve quem sustentasse, como a Gazeta da Relação de Lisboa (33), que este assento não tinha força obrigatória, por ter sido proferido indevidamente num caso em que não havia oposição de acórdãos; como há quem sustente, com fundadas razões, que o assento é inaplicável às letras no regime da. lei uniforme (34).
De qualquer modo, trata-se de questões discutíveis.
Para evitar mal-entendidos, o melhor remédio é publicar um texto legal consagrando doutrina oposta à do assento de 8 de Maio de 1928, que foi proferido - se a expressão me é permitida - contra a consciência jurídica da Nação.
Sr. Presidente: outro assento que reputo gravíssimo nas suas consequências, que felizmente ainda não foram exploradas até onde o poderão ser, é o de 26 de Janeiro de 1937, referente às acções intentadas pelas vítimas de desastres de viação, nos termos do Código da Estrada (35).
Discutia-se até aí dentro de que prazo essas acções deviam ser propostas: um ano, por aplicação do artigo 539.º, n.º 6.º, do Código Civil? Cinco anos, nos termos do artigo 543.º, n.º 3.º? Trinta anos, nos termos gerais? O assento assentou no pior: trinta anos!
Um desastre de viação verifica-se, por assim dizer, instantaneamente. Mesmo quem o presencia muita vez não sabe explicar como as coisas ocorreram, porque não estava preparado para o que se ia desenrolar. Contar como as coisas se passaram um ano depois já demanda uma memória muito razoável. Mas poder explicar num tribunal se o motorista ia devagar ou depressa, se ia junto do passeio ou pelo meio da rua, se buzinou ou não buzinou, «e o peão olhou ou não antes de atravessar - tudo isto mais de trinta anos depois de o desastre se ter dado! -, é, sem dúvida alguma, um absurdo inadmissível.
Em trinta anos (desapareceu o automóvel com que se deu o desastre, em muitos casos terão desaparecido os protagonistas, as testemunhas e até, nesta febre de renovação que se regista por toldo o País, ,e especialmente em Lisboa, poderão ter desaparecido a estrada ou rua onde o acidente ocorreu, englobados em qualquer plano rodoviário ou de urbanização...
Mas tudo isto, que já torna absurda a possibilidade de se estar, a trinta anos de distância, a esquadrinhar em quantos metros o automóvel parou ou quantos centímetros a vítima distava do passeio, tudo isto ainda não é nada.
O pior é que os doutos conselheiros que tiraram o assento mão atentaram, ao proferi-lo, em que nas acções de responsabilidade civil por acidentes de viação o ónus da prova está invertido.
Quer isto dizer, em linguagem comum, que a negra geral de todas as acções é que a quem alega é que incumbe provar.
Por conseguinte, quanto mais tempo um autor demorar tem recorrer a juízo, tanto pior para ele, porque mais dificuldade terá - cinco, dez, quinze, vinte anos depois dos factos ocorridos de fazer a demonstração daquilo que pretende.
Por isso nenhum mal advém ide haver o prazo geral de trinta anos para propor qualquer acção, visto que o interesse dos autores é o primeiro a forçá-los a virem a juízo o mais cedo possível.
Há, contudo, dois únicos sectores ide relações jurídicas onde se faz excepção a esta regra: em matéria de acidentes de trabalho e em matéria de acidentes ide viação.
Nestes dois campos o autor tem apenas, a bem dizer, de provar a materialidade do desastre, o que a todo o tempo é demonstrável.
Os réus - ou seja os patrões em acidentes de trabalho, os automobilistas em acidentes de viação, ou os respectivos seguradores é que, se quiserem ser absolvidos, deverão provar que se verifica uma causa exoneradora da sua responsabilidade.
Por outras palavras: não saio ,as vítimas que têm de provar que os acidentes! ocorreram por culpa dos patrões ou dos condutores dos veículos; os patrões é que terão de provar que o desastre foi devido, por exemplo, a um acto temerário do operário, e os automobilistas que o atropelamento foi devido a culpa ida própria vítima.
Há, pois, como disse acima, uma inversão do ónus da prova.
Daqui se conclui que, ao contrário do que acontece em toldos os restantes casos, mestas hipóteses especialíssimas de acidentes de trabalho e de viação, quanto
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mais tempo o autor demorar em vir a juízo tanto melhor paira ele, porque mais dificultará a prova que em sua defesa o réu é obrigado a fazer.
Talvez por isso, em matéria de acidentes de trabalho - em que, contudo, o legislador tem um interesse manifesto em proteger as vítimas ainda mais amplamente do que tratando-se de acidentes de viação - a Lei n.º 1:942 concede (artigo 32.º) apenas o prazo de um ano, a contar do acidente, para o operário ir a juízo reclamar o que lhe for devido.
Pois fim matéria de acidentes de viação o assento de 26 de Janeiro de 1937 concede às respectivas vítimas o prazo de trinta anos para poderem accionar os condutores dos veículos!
Elas só terão de demonstrar que no dia tal de 1922, por exemplo, foram atropeladas pelo veículo número tal, pertencente ao Sr. Fulano, o que, sendo verdade, a todo o tempo se pode provar, inclusivamente pelos jornais ou pelos registos da polícia.
Eles, os condutores dos carros (ou possivelmente os seus herdeiros), é que terão - a trinta anos de distância - de provar com testemunhas (que na sua maioria morreram ou desapareceram) a forma como tudo se passou!
É simplesmente assombroso!
Só me espanta que, num tempo em que pulula para aí tanto aventureiro à cata de negócios, ainda não tenhamos deparado com anúncios deste género publicados nos jornais: «Direitos litigiosos de vítimas de acidentes de viação ocorridos há mais de vinte anos e menos de trinta anos compram-se por bom preço».
O cessionário destes direitos, accionando, em massa, os donos dos carros, faria fortuna em pouco tempo. Faria, se estas minhas exortações não encontrarem nenhum eco; porque, se encontrarem, deverá publicar-se uma disposição legal estabelecendo para a propositura destas acções de responsabilidade civil um prazo razoável, por exemplo, um ano, como está estabelecido em acidentes de trabalho, prazo que já permite largamente às vítimas coligirem os seus elementos ofensivos, mas que também não deixa os réus sem possibilidades de defesa.
Um dos casos anais estranhos que nesta ordem de ideias há que referir é o do assento de 9 de Julho de 1937 (37).
Esse, então, foi tirado sem um voto de discrepância pelos seus doze signatários e recebeu geral aprovação dos jornais de direito onde veio publicado (37) - como se a fascinação de um erro tivesse produzido um fenómeno colectivo de mimetismo intelectual.
Contudo, a doutrina do assento, que deixou um acto criminoso impune, é de tal forma imoral que os próprios signatários se declararam confrangidos por deixar impunes actos que repugnam aos sentimentos humanos e à moral social e é tão antijurídica que o Prof. Marcelo Caetano, nas suas Lições de Direito Penal, se refere nestes termos ao assento: «é nitidamente ilegal, e espanta como foi votado e assinado, nos termos de verdadeira inópia jurídica com que está redigido, por todos os Venerandos Conselheiros» (38).
O caso é o seguinte:
Determinado proprietário lançou fogo a um edifício seu, situado fora do povoado, não habitado, nem destinado a habitação, com o fim de receber das companhias seguradoras a respectiva indemnização.
Fora condenado em 1.ª instância, absolvido na Relação, novamente condenado no Supremo Tribunal de Justiça e finalmente absolvido outra vez, e desta definitivamente, pelo tribunal pleno. A eterna dança das decisões, mas em que, desta vez, estas oscilaram com o ritmo certo e a amplitude máxima do metrónomo!
Pois o assento de 9 de Julho de 1937, lamentando muito qne, em sen entender, uma lacuna da lei o forçasse a julgar assim, declarou que este facto não era punível!
Como o artigo 468.º do Código Penal, onde a incriminação poderia fazer-se (e onde a tinha feito o acórdão recorrido), remete, na parte que interessa, para os casos previstos nos artigos 463.º e 464.º, o assento declarou que a hipótese do processo - fogo posto em edifício fora do povoado, não habitado nem destinado a habitação - não era nenhuma das indicadas nesses artigos 468.º e 464.º
Ora o n.º 1.º do artigo 464.º fala expressamente em «embarcação, armazém ou qualquer edifício, dentro ou fora do povoado, não habitados nem destinados a habitação».
Exactamente aquilo que o criminoso incendiara no processo em que foi proferido o assento.
A atenção dos doutos signatários deste foi, portanto, desta vez lamentavelmente traída.
Mas, mesmo que o não tivesse sido e que a culpa da deplorável decisão coubesse a uma deficiente redacção da lei, isso seria apenas mais um motivo para urgentemente corrigir o que está errado.
O que é inadmissível é haver em Portugal certos crimes de fogo posto em que o nosso mais alto tribunal manda em paz o incendiário, embora lamente muito ter de fazê-lo, e diga para o prejudicado, em ar de consolação: «Tenha paciência, irmão; não pode ser».
Sr. Presidente: para não fatigar demasiadamente a atenção desta Câmara (não apoiados) aludirei apenas a mais dois assentos do Supremo, os de 9 de Julho de 1948 e 18 de Maio de 1949, ambos respeitantes a matéria de processo (39).
O assunto é o menos próprio para ser desenvolvido aqui, e portanto limitar-me-ei a um ligeiro apontamento.
Pelo artigo 690.º do Código de Processo Civil, os advogados deverão terminar as suas alegações escritas de recurso perante os tribunais superiores pela indicação resumida dos fundamentos em que as baseiam. São as chamadas conclusões.
Se à alegação faltarem essas conclusões, devem os juizes convidar os advogados a formulá-las, sob pena de não se tomar conhecimento do recurso - diz ainda o mesmo artigo 690.º
O assento de 9 de Julho de 1948 julgou que para o Supremo poder conhecer de recurso fundamentado em ofensa de lei é indispensável que esta seja especificada nas conclusões das alegações.
Quer dizer: se a lei transgredida foi invocada seis linhas atrás, no contexto das próprias alegações, isso de nada servirá. Sem que nenhuma lei expressamente o diga, o assento exige que a citação do artigo se repita no fecho da minuta.
Como o artigo 690.º declara, como já vimos, que, no caso de faltarem conclusões à minuta, o recurso não ficará perdido sem que o tribunal convide o advogado para as formular, havia quem sustentasse que, se a minuta continha conclusões, mas deficientes no entender do Supremo, por lhes faltar a indicação da tal lei ofendida, com maioria de razão nessa hipótese também se deveria convidar o advogado para suprir a omissão.
Veio então o assento de 18 de Maio de 1949 e fechou também essa porta, consignando que e o convite ao advogado, a que se refere o artigo 690.º do Código de Processo Civil, só pode fazer-se no caso da falta absoluta de conclusões na alegação de recurso».
De modo que ficou consagrado este tremendo absurdo: se um advogado se esquece totalmente de formular conclusões na sua minuta, não há perigo nenhum, porque o tribunal convidá-lo-á a reparar a falta.
Mas se o lapso foi muito menor, o advogado formulou conclusões e apenas se esqueceu de nelas reproduzir a citação de um artigo de lei, porventura men-
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cionado três linhas antes, então -aqui-d'el-rei!- o caso não tem desculpa e o recorrente perde irremediavelmente o recurso!
A doutrina destas decisões foi combatida, com excepção da Vida Judiciária (40), por toda a imprensa jurídica, como o Prof. J. Alberto dos Beis, na Revista de Legislação e Jurisprudência (41), a Revista de Justiça (42), a Revista de Direitos e Estudos Sociais (43), a Revista dos Tribunais (44), o Jornal do Faro (45), etc.
O conselho directivo deste último o menos que diz do assento de 9 de Julho de 1948 é que ele é atentatório do prestígio dos tribunais e especialmente do prestígio do Supremo Tribunal de Justiça.
Alguns outros assentos fixaram preceitos de que por igual discordo, como, por exemplo, o de 4 de Maio de 1950, que permite aos juizes, em processo crime, agravarem a pena em que foi condenado o réu no tribunal inferior, ainda que o recurso haja sido interposto unicamente por esse próprio réu. (46).
Se este debate se generalizar, decerto outros Srs. Deputados apontarão outros assentos de que discordam.
Eu não tive a pretensão de esgotar o assunto; não era esse o meu desejo, e, se fosse, com certeza que não saberia realizá-lo com a suficiência indispensável.
Não apoiados.
Mas por satisfeito me dou se de quanto expus tiver transmitido a esta Assembleia uma convicção: a de que, tanto na parte processual como na parte substantiva desta matéria, há correcções importantes e urgentes a fazer.
Seria extraordinário que as não houvesse.
Todos os dias nós assistimos à alteração de leis e de decretos que nasceram logo tortos, ou cujos inconvenientes só a sua vigência revelou.
Os assentos do Supremo Tribunal de Justiça não podiam escapar a esta regra -tanto mais quanto é certo que todos eles são proferidos sobre problemas controvertidos e, por conseguinte, geralmente complexos e de difícil solução.
Graças, até, deveremos dar ao nosso primeiro tribunal pela pequena percentagem de imperfeições que neste pampo a sua obra encerra.
Direi mais: a magistratura portuguesa nestes vinte e cinco anos demonstrou de uma forma geral estar à altura da espinhosa missão de quase legislador que o Estado Novo lhe confiou ao cometer-lhe a função ide uniformizar a sua própria jurisprudência.
Apoiados.
E é, Sr. Presidente, com estas simples palavras de justiça e de apreço que termino, agradecendo à Câmara a paciente atenção que me dispensou.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
(1) Breve Estudo, 2.º edição, p. 688.
(2) Lições de Direito Civil, p. 108.
(3) Direito, 68.º, p. 15.
(4) Revista dos Tribunais, 66.º, p. 132.
(5) Revista da Ordem dos Advogados, 1.º, p. 119.
(6) Boletim Oficial do Ministério da Justiça, 3.º, XIII.
(7) Vol. 30., p. 127.
(8) Noções Fundamentais do Direito Civil, pelo Dr. João Varela, 1.º, p. 42.
(9) Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, 1.º, p. 234.
(10) Código de Processo Civil Anotado, 1.º, p. 41.
(11) Tratado Elementar de Direito Administrativo, 1.º, p. 56.
(12) Tomo 75, n. 249.
(13) Direito, 68.º, p. 40.
(14) Gazeta da Relação de Lisboa, 47.º, p. 81.
(15) V. assentos de 16 de Dezembro de 1927; 8 de Maio de 1928; 12 de Julho de 1929; 28 de Julho de 1944; 27 de Maio de 1947; 12 de Julho de 1949; 10 de Maio de 1950.
(16) Vol. 81.º, p. 167.
(17) Vol. 67.º, p. 98.
(18) Vida Judiciária, 9.º, p. 264.
(19) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 1946, na Vida Judiciária, 8.º, p. 164.
(20) Vol. 68.º, p. 242.
(21) Acórdãos de 10 de Outubro de 1944; 17 de Outubro de 1944; 28 de Novembro de 1944; 2 de Fevereiro de 1945, etc.
(22) Acórdão de 5 de Julho de 1946, na Vida Judiciária, 8.º, p. 359, e de 9 de Dezembro de 1947, na Revista dos Tribunais, 66.º, p. 36.
(23) Breve Estudo, 2.ª ed., p. 697.
(24) Vol. 65.º, p. 20.
(25) Revista dos Tribunais, 46.º, p. 247.
(26) Vol. 1.º, p. 349.
(27) Tratado de Direito Civil, 5.º, p. 110.
(28) Revista de Legislação e Jurisprudência, 68.º, p. 297.
(29) Lições de Direito Comercial, de Eduardo Ralha, 2.º ed., p. 258.
(30) Vol. 1.º, p. 102.
(31) Da Venda a Prestações, pp. 100 e segs.
(32) Vide Acórdão de 18 de Dezembro de 1934, na Colecção Oficial, 33.º, p. 298; de 22 de Outubro de 1935, na Revista de Legislação.
(33) Vol. 42.º, p. 40.
(34) Dr. Gonçalves Dias, ob. cit., 1.º, p. 357.
(35) Diário do Governo, 1.ª série, de 2 de Março de 1937.
(36) Diário do Governo, 1.º série, de 27 de Julho de 1937.
(37) Revista de Justiça, 22.º, p. 197; Gazeta da Relação de Lisboa, 51.º, p. 141; Revista dos Tribunais, 55.º, p. 215.
(38) Lições de Direito Penal (1938-1939), p. 179.
(39) Diário do Governo de 9 de Julho de 1948 e 28 de Maio de 1949.
(40) Vol. 10.º, p. 320.
(41) Vol. 80.º, p. 354; vol. 81.º, p. 282; vol. 82.º, p. 63.
(42) Vol. 33.º p. 152.
(43) Vol. 3.º, p. 216.
(44) Vol. 66.º, p. 220, e vol. 67.º, p. 154.
(45) N.º 86, p. 52.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: - Requeiro a generalização do debate.
O Sr. Presidente: - Está generalizado o debate.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. Amanhã haverá sessão, com a mesma ordem do dia da de hoje, e será também submetida à apreciação e votação da Assembleia a situação parlamentar do Sr. Deputado Santos da Cunha.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 35 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Délio Nobre Santos.
José Dias de Araújo Correia.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
António de Almeida.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Diogo Pacheco de Amorim.
Página 233
11 DE JANEIRO DE 1951 233
Francisco Higino Craveiro Lopes.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Herculano Amorim Ferreira.
João Antunes Guimarães.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Maria Braga da Cruz.
José dos Santos Bessa.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Domingues Bastos.
Manuel Maria Vaz.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Sebastião Garcia Ramires.
Vasco de Campos.
Vasco Lopes Alves.
O REDACTOR - Leopoldo Nunes.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA