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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 148

ANO DE 1952 4 DE ABRIL

V LEGISLATURA

SESSÃO N.º 148 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 3 DE ABRIL.

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o n.º 146 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
O Sr. Deputado Pinto Barriga falou sobre o Decreto-Lei n.º 38:704 e o Sr. Deputado Carlos Mantero requereu que esse diploma fosse submetido à apreciação da Assembleia.
O Sr. Deputado Melo Machado agradeceu o voto de sentimento da Câmara pela morte de sua esposa.
O Sr. Presidente e o Sr. Deputado António Maria da Silva referiram-se à viagem do Sr. Ministro do Ultramar ao Oriente.

Ordem do dia. - O Sr. Deputado Sá Carneiro efectivou o seu aviso prévio acerca do Decreto-Lei n.º 37:667, que alterou, em parte, a Lei n.º 2:049, sobre os serviços de registo e notariado. Requerida a generalização do debate pelo Sr. Deputado José Meneres, falaram, além desse Sr. Deputado, os Srs. Deputados Ricardo Durão, Vasco Mourão, Galiano Tavares, Jacinto Ferreira e Mário de Figueiredo.
Foi lida na Mesa a informação que sobra o assunto o Sr. Ministro da Justiça enviou ao Sr. Presidente do Conselho.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 45 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
André Francisco Navarro.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Cortês Lobão.
António Jacinto Ferreira.
António Joaquim Simões Crespo.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António, dos Santos Carreto.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.

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Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique Linhares de Lima.
Herculano Amorim Ferreira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gualberto de Sá Carneiro.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
José Pinto Meneres.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Salvador Nunes Teixeira.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o n.º 146 do Diário das Sessões.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Como nenhum Sr. Deputado pede a palavra sobro este número do Diário, considero-o aprovado.
Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Representantes comércio e produção S. Tomé, Angola e Moçambique reunidos patriòticamente em assembleia magna na Associação Comercial Lisboa verificando os graves inconvenientes e prejuízos que resultariam para a economia ultramarina e ritmo em desenvolvimento com aplicação Decreto 38:704 resolveram elaborar fundamentada exposição a apresentar V. Ex.ª e solicitam desde já suspender discussão referido diploma até que por via. essa exposição se reconheçam os danos, prejuízos e inconvenientes sua aplicação. Respeitosos cumprimentos. Elísio Vilaça presidente em exercício secção corporativa comércio ultramarino Associação Comercial Lisboa.
Assinado por «Direcções» de organismos económicos de Angola, a repudiar afirmações feitas pelo Sr. Deputado Pinto Barriga acerca da sobrevalorização de alguns produtos ultramarinos.
Da Câmara Municipal de Esposende acerca do aviso prévio do Sr. Deputado Amaral Neto sobre dívidas dos municípios aos Hospitais Civis.

O Sr. Presidente: - Enviado pela Presidência do Conselho o para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, encontra-se na Mesa o Diário do Governo n.º 73, 1.º série, de 31 do mês passado, que contém os Decretos-Leis n.ºs 38:706 e 38:707.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Pinto Barriga.

O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: pedi a palavra na imediata sequência da sessão de ontem, por não estar presente na altura em que o Sr. Deputado Carlos Muntero defendeu, aliás com o seu costumado brilho e conhecimento de causa, os seus pontos de vista sobre os problemas suscitados pelo Decreto-Lei n.º 38:704, relativamente ao aproveitamento reprodutivo da sobrevalorização de alguns produtos ultramarinos.
Nessa supervalorização, o Estado manteve quase uma neutralidade fiscal, tanto mais de apreciar quanto ele tinha já realizado a ocupação militar, e tinha intensificado, de uma forma que só há que louvar, a ocupação económica do nosso ultramar.
Sobrevalorizados os produtos, sem uma equilibrada punção fiscal e uma readaptação de salários ao altismo, havia que fazer-se a revisão económico-financeira do problema.
Os dados que vou ler, e para que peço inserção no Diário das Sessões, mostram-nos que o sistema tributário não tinha elasticidade para acompanhar essa revalorização e ficou muito aquém do seu ritmo.

Receita cobrada em S. Tomé e Príncipe em 1951
(Em contos)

[Ver Quadro na Imagem].

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Evolução da cobrança das receitas da província de Moçambique nos últimos cinco anos
(Em contos)

[Ver Quadro na Imagem].

Nota - A reforma tributária ainda não foi efectuada e a reforma das pautas, que deveria ter começado a vigorar em 1 de Março de 1951, foi mandada suspender.

Evolução da cobrança das receitas da província de Angola nos últimos cinco anos
(Em contos)

[Ver Quadro na Imagem].


(a) As reformas tributária e das pautas começaram a vigorar em 1 do Janeiro de 1919.
(b) O imposto de defesa, que faz parte deste Fundo, foi extinto pela reforma tributária.
(c) Ano de transição.

Nas suas linhas gerais e intenções o Decreto-Lei n.º 38:704 merece ser considerado com atenção. No meu aviso prévio foquei o distanciamento dos impostos, mal duplicados pelos produtos, quintuplicados na sua generalidade.

O Sr. Carlos Mantero: - Contesto a afirmação de V. Ex.ª relativamente à quintuplicação dos preços.

O Orador: - Falei numa generalidade, e esta minha posição parece-me fundamentada, pois que, enquanto

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se mantinham praticamente os impostos, a circulação fiduciária, índice da riqueza económica das respectivas províncias, crescia desproporcionadamente com estes.

O Sr. Melo Machado: - Não há impostos de exportação?

O Orador: - Há, mas esses só dobraram.
Os salários só aumentaram na medida em que se deu a alta de preços da alimentação dos serviçais e em proporções tão pequenas que esta deveria ter-se necessariamente ressentido.

O Sr. Botelho Moniz: - E melhor não se falar muito nas salários, porque aí há umas coisas a que se chamam agora «os invisíveis».
O Orador:-Realmente é um problema pouco claro ...

O Sr. Botelho Moniz: - V. Ex.ª sabe onde eu quero chegar?

O Orador: - Pessoalmente, felizmente, não, mas como economista conheço bem os efeitos desses negrumes de todos os invisíveis ...

O orador releu os elementos relativamente a Moçambique.

O Sr. Carlos Mantero: - V. Ex.ª poderia indicar-me elementos para Angola e S. Tomé?

O Orador: - Posso. Mas eu pus o problema em referência aos salários, e isso é que é fundamental no meu ponto de vista.
E preciso fazer justiça ao nosso ilustre colega Teófilo Duarte, que muito recentemente cuidou do indigenato de forma a assegurar-lhe a realidade dos seus direitos, e, sem menosprezar e mesmo enaltecendo a obra dos seus antecessores, estou plenamente convencido de que o actual titular da pasta procurará ainda melhorar.
O decreto merece nas suas linhas gerais a minha aprovação. Simplesmente a sua mecânica económico-financeira, o peso dos seus encargos, a difusão das suas taxas, tudo isso tem de ser considerado numa regulamentação.
As intenções do decreto são magníficas, mas ele vai valer pelo que se demonstrar eficiente a sua regulamentação, a organização do fundo respectivo.

O Sr. Carlos Mantero: - V. Ex.ª prometeu que indicaria os inúmeros relativos às contribuições de S. Tomé.

O Orador: - Para a contribuição predial de S. Tomé os números são: 1:703 contos em 1949, depois 1:741, saltando em seguida para 6:198.
Este último é resultante de uma reavaliação predial estabelecida, ao que me informam, numa base dos (preços médios cio quinquénio. A economia de S. Tomé, dada a crise por que passou, merece um aceno de simpatia que não pode deixar de nos levar ao ponto de esquecermos os números ...

O Sr. Carlos Mantero: - V. Ex.ª pode dizer-me os números da receita total da província?

O Orador: - Os números sobem de 37:000 contos para 55:000.

O Sr. Carlos Mantero: - Já vê V. Ex.ª que as receitas orçamentais da província subiram ma mesma proporção da alta dos preços médios do cacau de 1949 para 1951. E, quanto a copra, o seu preço em vez de subir desceu.

O Orador: - V. Ex.ª tem razão quanto a S. Tomé, mas as minhas considerações referiam-se muito mais às outras duas províncias ultramarinas, em que se torna difícil, com verdade económica, estabelecer uma média para 1949, com écart de preços que se manifestaram nesse ano pelo reaparecimento de uma economia de rearmamento em virtude das hostilidades na Coreia. Repito: o decreto merece bem mas suas linhas gerais a nossa aprovação. No pormenor do articulado, as críticas do Sr. Deputado Carlos Mantero, se não são de aceitar inteiramente, são, pelo menos, de considerar em parte, pela sua experiência de distinto colonialista doublé de actualizado economista.
Estou absolutamente convencido de que a regulamentação deste tão discutido decreto se fará de forma a dar inteira satisfação às justas reclamações que apareçam dos respectivos meios coloniais.
Está sobre a Mesa um telegrama das direcções dos organismos económicos de Angola. Pessoalmente só respondo pelas afirmações que constarem do Diário das Sessões, nem outras fiz. Por isso parece-me um pouco precipitada a atitude desses organismos.
Por mais que percorra os n.ºs 144 e 145 do Diário das Sessões, que relatam oficialmente o meu .aviso prévio, não encontro qualquer expressão que possa dar a impressão de que modifiquei a minha admiração profunda pela grande obra realizada em Angola.
Folgo por prestar mais uma vez a minha homenagem mais sincera à dedicação e patriotismo com que os Lusos criaram nessa grande província uma economia que honra a nossa actividade e que tanto ajuda e pode ajudar no futuro o conjunto económico português.
Resumindo: este decreto, para dar ao assunto que discutimos uma solução prática, para chegar a conclusões política e económicamente equilibradas, terá de evitar congelamentos a destempo e paralisantes e a continuação de excedentes exportadores saldados por divisas não convertiveis, e, portanto, monetariamente desvalorizantes, e de procurar na reactivação das importações reprodutivas e na drenagem obrigatória para uma albufeira de investimentos o remédio para um mal maior: congelação ou desvalorização.
Ter-se-ia dê congelar para não desvalorizar? Neste decreto cria-se uma albufeira ou um frigorífico? Estatizam-se os fundos ou são reservas de iniciativa individual, privada, cooperativizadas? Poderá este diploma legal sugerir no espírito do produtor ou do exportador o desejo de preferir uma desvalorização que requeima capitais a um congelamento que os cooperativiza sem os socializar?
O decreto-lei é pouco, o regulamento muito mais, a execução quase tudo e o fundo a organizar a pedra de toque.
Taxar desde já percentagens de congelação, não como um máximo, como uma taxa invariável, é mobilizar o esquema de realizações previstas, é como, por assim dizer, congelá-lo.
Apoio as intenções e o espírito deste decreto-lei tão combatido, mas o Sr. Ministro do Ultramar terá de constituir este Fundo um pouco à sua imagem moral, para ser honestamente administrado, não para servir de sorvete, para ser degostado por uns tantos amadores de sinecuras burocráticas. Tem de regulamentá-lo de ânimo pensado.
Abrandar a exportação por medo de divisas inconvertíveis, esterilizar capitais por congelação para evitar excedentes fiduciários, criar albufeiras económicas para reter, reactivar as importações do necessário, tudo é preferível a desvalorizar a moeda pelo peso das divisas inconvertíveis, ou mesmo congelar é preferível a sofrer o choque da degradação monetária que uma exportação ilimitada acabaria por gerar no conjunto económico por-

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tuguês uma situação insustentável: o que se ganhava num dia perdia-se pela desvalorização no outro.
Era isso que queria Angola? Era o que desejava Moçambique?
Na política de excedentes, na U. E. P. não se podia, sem perigo, ir mais longe; a degradação monetária estava à vista, não só interna como externa.
O que se ia perder em valor de compra dos capitais imobilizados equivaleria ao que se congelaria.
Tudo o resto são ilusões, mas não são ilusões nessas províncias ultramarinas para um funcionalismo que já vive perto da miséria e que uma desvalorização arrancaria mais do seu pobre poder do compra, faria descer mais ainda o seu nível de vida.
O funcionalismo ultramarino vive deficitàriamente, num coeficiente de melhoria que não está proporcional à alta dos produtos supervalorizados. É isso que eu não quero. Prefiro também que se congelem capitais, e não mercadorias.
Para finalizar: que este Fundo seja como que um banco cooperativo de fomento ultramarino, supervisado pelos emissores, e não um organismo burocrático a mais na única dependência do Estado.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Carlos Mantero: - Sr. Presidente: depois das referências por mim feitas ontem ao Decreto-Lei n.º 38:704 e das críticas que acerca do mesmo tem sido produzidas, entendo que o mesmo deve ser submetido à apreciação desta Assembleia. Neste sentido mando para a Mesa um requerimento assinado também pelos Srs. Deputados Carlos Moreira, Botelho Moniz, Abrantes Tavares e Manuel Neto, que é o seguinte:
«Nos termos e para os efeitos constitucionais, requeremos que o Decreto-Lei n.º 38:704, publicado no Diário do Governo de 29 de Março de 1952, seja submetido à apreciação da Assembleia Nacional».

O Sr. Melo Machado: - Sr. Presidente: agradeço à Câmara o voto de sentimento que se dignou aprovar, manifestando-me, assim, a sua amizade e a sua solidariedade.

O Sr. Vaz Monteiro: - Tinha pedido a palavra sobre o Decreto-Lei n.º 38:704, a fim de rebater algumas considerações feitas pelo Sr. Deputado Mantero Belard, mas, como o ilustre Deputado pediu que o mesmo decreto-lei fosse submetido à apreciação da Assembleia, reservo-me para nessa ocasião expor os meus pontos de vista.

O Sr. Presidente: - Tomaram VV. Ex.ªs conhecimento do requerimento feito pelo Sr. Deputado Carlos Mantero. Como o decreto-lei foi publicado no Diário do Governo de 29 de Março último, o requerimento daquele Sr. Deputado foi, portanto, apresentado em tempo e está assinado, além do requerente, pelos Srs. Deputados Carlos Moreira, Botelho Moniz, Abrantes Tavares e Amaral Neto.
Nestas condições, marcarei na primeira oportunidade para ordem do dia a apreciação do referido decreto-lei.

Pausa.

O Sr. Presidente: - O Sr. Ministro do Ultramar, que hoje segue para a sua visita às nossas províncias ultramarinas do Oriente, teve a amabilidade de apresentar à Assembleia Nacional, na pessoa do seu Presidente, as suas despedidas. Hoje mesmo, antes de abrir esta sessão, fui em nome da Assembleia e no meu próprio apresentar-lhe os nossos cumprimentos de feliz viagem.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - E creio interpretar os sentimentos da Assembleia dirigindo-lhe daqui os mais ardentes votos por uma feliz viagem, quero dizer por uma viagem que resulte cheia de eficácia para um estreitamento das relações da metrópole e dessas províncias portuguesas do Oriente, num testemunho claro ao Mundo da perfeita unidade do Império Português.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. António Maria da Silva: - Sr. Presidente: no momento em que estou a fazer uso da palavra, segue do Tejo, pela barra fora, rumo ao Oriente, o Sr. Ministro do Ultramar, que foi inteligente Deputado nesta Assembleia.
Ontem ouvi saudar nesta Câmara o Sr. Ministro do Ultramar, por motivo da viagem, pelos meus colegas da índia, e não quero deixar de fazer o mesmo, em nome de Macau, saudando também S. Ex.ª por essa viagem, a primeira que vai fazer ao Oriente Português.
Todos nós conhecemos o que é o Oriente Português. Todos nós sabemos que, daquelas terras, a primeira que vai ser visitada pelo Sr. Ministro do Ultramar é o Estado da índia, que foi o berço da civilização latina e da expansão da fé cristã.
Macau e Timor são produtos da índia. Foi dali que Jorge Alves, o denodado capitão do grande Afonso de Albuquerque, aportou à costa da China* em 1510,. só não me engano, e praticou a primeira investida para a nossa permanência em Macau.
Sr. Presidente: mas o que é Macau? Macau é uma mina que não tem sido explorada. Macau é uma parte da China, que é um mundo, e as mercadorias do nosso país podiam ali ser consumidas todas vinte ou trinta vezes; mas nós não soubemos aproveitar este bocado de Portugal, que estava dentro da China, para enriquecermos.
Nós sabemos que um dos nossos períodos áureos foi aquele que se seguiu aos Descobrimentos, por motivo do ouro que veio do Brasil para a metrópole.
Tivemos mais períodos áureos em Portugal. Fomos grandes descobridores; fomos grandes combatentes; batemos os mouros, os africanos e os índios, mas não devo senão dizer a verdade - fomos fracos administradores.
Admiro o Governo de Salazar porque estamos agora a administrar bem, dentro daquilo que temos; e, por isso, tenho uma grande admiração pelos dirigentes do Pais.
Vim cá para trabalhar, para servir o País e, portanto, desde que aqui cheguei, não fiz outra coisa senão trazer Macau para Portugal e levar Portugal para Macau.
Tenho procurado trazer ao conhecimento completo de Portugal o que é Macau, pois muita gente portuguesa não sabia o que era aquela província. Alguns imaginavam até que os filhos de Macau estavam na Índia e que eram chineses. Ora não é nada disso. Somos descendentes de grandes e valorosos antepassados; somos descendentes desses grandes homens que mostraram Portugal ao Oriente e que serviram de intermediários entre os filhos do céu, dos chineses, e a Europa.
Não me canso de falar em Macau de Portugal e em Portugal de Macau, porque o nosso património ali é extremamente importante.
Nós perdemos muitos filhos por culpa nossa. Não havia escolas e o nosso auxilio foi para Inglaterra; os portugueses dispersaram-se pelo Extremo Oriente e fizeram a grandeza daquela imensidade, quando podiam ter feito um grande Portugal.
Por isso vejo com muito prazer a primeira viagem dum barco mercante, a primeira carreira para Macau, Índia e Timor; e com alegria vejo também que esse barco transportará as mercadorias da metrópole e trans-

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portará igualmente as mercadorias da China, que é um mundo habitado por 500 milhões de habitantes, que tudo produz e é riquíssimo. Mesmo durante a guerra negociou com toda a gente, menos connosco.
Desejo que os resultados da viagem do Sr. Ministro do Ultramar sejam profícuos e tragam óptimos resultados para Portugal. É evidente que o alcance político e patriótico desta viagem é grande, e por isso abraço o Sr. Comandante Sarmento Rodrigues, formulando os melhores votos porque da sua viagem resultem os maiores benefícios para a nossa terra.
É tudo o que tenho a dizer, pedindo desculpa do desabafo, porque não posso senão afirmar o que sinto e penso, e não estou aqui para outra coisa.
Desejo, por fim, uma viagem muito feliz ao Sr. Ministro do Ultramar o que ele volte com a satisfação de ter feito tudo para o progresso da Nação Portuguesa.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Vai iniciar-se a efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Sá Carneiro relativo ao Decreto-Lei n.º -37:666, que alterou, em parte, a lei do registo e notariado.
Está na M2sa a resposta do Governo ao assunto deste aviso prévio. Nos termos do Regimento, será lida depois de efectivado o mesmo aviso prévio.
Tem a palavra o Sr. Deputado Sá Carneiro.

O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: ao anunciar o aviso prévio referente ao Decreto-Lei n.º 38:385, de 8 de Agosto do ano findo, que revogou várias disposições da Lei n.º 2:049, de 6 desse mês e ano, logo manifestei a minha estranheza por, dois dias após a promulgação da lei, a mesma ser derrogada.
Apontei duas soluções que o Governo poderia ter escolhido na hipótese de a manutenção dos cartórios notariais extintos pelo Decreto-Lei n.º 37:666 causar perturbações graves para o serviço -e eu não descobria a possibilidade de as mesmas surgirem, antes é inegável que a conservação desses cartórios favorecia o público - ou produzir encargos incomportáveis para a economia cia reforma.
Ë óbvio que, em qualquer destas hipóteses, poderia adoptar-se uma terceira solução, que seria até mais natural que aquelas outras - a da não promulgação da lei.
Nos termos do artigo 98.º da Constituição Política, ao Chefe do Estado era lícito abster-se de promulgar a lei votada pela Assembleia e esta teria ensejo de apreciar de novo o assunto.
E da não promulgação da lei não adviria qualquer inconveniente, pois a reforma continuaria em vigor.
O certo é que o Chefe do Estado promulgou a lei, acatando, assim, todos os seus preceitos.
Como se compreende então que, dois dias volvidos, se revogassem diversos parágrafos do diploma?
Artes tão próximos tiveram como resultado final que o acatamento da lei votada pela Assembleia foi apenas aparente; no momento daquela promulgação, já por certo se premeditava a não observância do diploma quanto a um ponto que apaixonou vivamente a Assembleia.
Sempre reconheci a inexistência de obstáculo constitucional directo ao acto de o Governo revogar uma lei votada por esta Câmara.
A repartição das funções legislativas entre o Governo e a Assembleia permite que qualquer dos dois órgãos da soberania revogue os actos legislativos emanados do outro órgão, havendo, quanto à Assembleia, a restrição do artigo 97.º, cujo entendimento daqui a pouco aflorarei.
No entanto, o exercício da faculdade legislativa por esses órgãos está condicionado por regras intuitivas.
E representa observância ilusória da lei promulgar um diploma com o pensamento de o revogar antes mesmo de ele entrar em vigor. Isso constitui, a todas as luzes, uma não promulgação disfarçada, que ilude o preceito do artigo 98.º do estatuto fundamental da Nação e torna impossível à Assembleia novo exame do diploma, e sua votação por certo quórum.
A solução adoptada pelo Governo descontentou profundamente um grande número de Deputados; e cuido não alterar a verdade afirmando que a maioria da Assembleia sentiu o agravo que lhe foi feito.
Como tive ocasião de dizer, houve mesmo Deputados que pensaram abandonar a Câmara.
O objectivo principal do meu aviso prévio foi o de proporcionar ao Governo ocasião de demonstrar que não teve o propósito de desprestigiar nem ofender a Câmara, que apenas por razões de alto interesse nacional revogou disposições de uma lei votada no exercício dos nossos poderes constitucionais e que só nos termos da Constituição podia deixar de ser promulgada.
Apenas pela informação há pouco prestada por V. Ex.ª, Sr. Presidente, tive conhecimento de que o Governo respondeu sobre o meu aviso prévio, e aguardo a leitura da resposta para sobre ela me pronunciar.
Mas desde já declaro que quaisquer esclarecimentos que venham a ser tornados públicos apenas me satisfarão se neles se reconhecer que o processo adoptado para não acatar a lei votada não foi regular e não deve ser usado de novo; e, restabelecido o respeito do espírito da Constituição, é indispensável que se convença a Assembleia da impossibilidade de serem mantidos os cartórios aludidos, sem quebra da economia da reforma.
Não basta afirmar - sem provas! - que os parágrafos revogados envolviam aumento de despesa neste ou naquele montante.
Esse possível aumento jamais poderá ser estimado com rigor, por depender, como é óbvio, do rendimento futuro dos cartórios em causa.
E ainda que a não diminuição de despesas fosse previsível - e ela é natural em face dos números que eu próprio indiquei aquando da discussão da proposta do Governo -, isso não demonstraria a impossibilidade de a lei votada na Assembleia ser mantida.
E evidente que não me proponho renovar a discussão sobre se os cartórios extra concelhos deviam, ou não ser conservados.
Como relator da Comissão de Legislação defendi a proposta do Governo. Essa causa foi brilhantemente pleiteada pelo ilustre parlamentar Sr. Dr. Dinis da Fonseca.
O certo é que a Assembleia, por maioria, nos foi adversa.
O respeito por essa votação impunha ao Governo o acatamento leal do que foi deliberado, salvo se isso fosse impossível.
Mas em tal emergência a solução a adoptar não era a que foi seguida e que, como julgo ter demonstrado, constituiu respeito ... desrespeitador da votação da Assembleia.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - Ora isso envolvo o desprestígio deste órgão da soberania e dos próprios Deputados, individualmente.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não pequeno sacrifício fazem muitos de nós, abandonando as suas- actividades para darem a maior assistência possível aos trabalhos parlamentares.
Não é legítimo que o Governo nos coloque, ante o País, na situação lamentável do vermos sofismadas as Leis que votamos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E, se tal procedimento redunda em desabono da Assembleia, também não prestigia o Governo, pois a grande autoridade moral que lho advém sobretudo da presidência de Alguém que a história imparcial tem de considerar uma das grandes figuras nacionais ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... não deixa de ser afectada pelo uso de processos que não sejam plausíveis. O nosso colega Dr. Pinto Barriga diria que este caso é mais um de dessalarização ...

Risos.

Mas poderia a Assembleia ter mantido aqueles cartórios?
A Câmara Corporativa não deixou de ponderar - e precisamente a (propósito deles - o alcance do artigo 97.º da Constituição, que veda aos Deputados a apresentação de propostas de alteração que envolvam aumento de despesa ou diminuição do receita criada par lei anterior.
E a Comissão de Legislação estudou, como lhe cumpria, esse delicado aspecto do problema, resolvendo, porém, que, na votação da proposta do Governo, não seria levantada a questão de saber se a Assembleia estava, ou não, inibida de manter os cartórios que o Decreto-Lei n.º 37:666 extinguia.
O que não nos era talvez-lícito, como eu disse na sessão de 14 de Março (Diário das Sessões n.º 84, p. 614), era restabelecer aqueles cartórios que o Código do Notariado de 1935 extinguira.
A propósito desses - e só desses - invoquei o artigo 97.º da Constituição, pois, se qualquer proposta de alteração visasse a restaurá-los, era quase certo o aumento de despesa.
Relativamente, porém, aos cartórios cuja extinção o Governo propunha, sempre entendi e entendo que a Assembleia tinha liberdade plena para mante-los, sob pena de, na discussão e votação da proposta governamental, a Câmara ter de conformar-se com o que o Governo queria. Se assim fora, esta Assembleia não apreciava a proposta, limitava-se apenas a pôr-lhe a «chancela» de uma votação obrigatória.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nem sequer nos seria lícito extinguir mais cartórios, pois tal extinção poderia representar diminuição de receita ... e logo o «papão» do artigo 97.º entraria em campo, a restringir a natural liberdade de a Assembleia votar como lhe aprouvesse sobre os assuntos sujeitos à sua apreciação!
Recuso-me a aceitar um entendimento do artigo 97.º que reduza esta Câmara ao ridículo papel de carimbar tudo o que o Governo proponha.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Se aquele artigo-travão pudesse dar-se tal significado, ao votarmos a Lei de Meios - da nossa indiscutível competência e que bastaria para justificar que esta Assembleia exista -, não poderíamos discutir emenda que produzisse aumento de despesa e tão-só diminuirmos as receitas derivadas do texto proposto, visto a redacção dada ao artigo pela Lei n.º 2:009, de 17 de Setembro de 1945, quanto à receita, acrescentar: «criada por lei anterior».
Daqui é legítimo concluir que pode ser diminuída a receita criada pelo próprio diploma em discussão.
O acréscimo feito pela dita lei ilumina, a meu ver, o sentido do artigo 97."
Do facto de a Constituição apenas se referir à receita criada por leis anteriores não é lícito concluir - a contrario sensu - que nos é vedado aumentar a despesa prevista pela proposta em causa.
Mesmo nos casos em que o diploma ratificado com emendas vigora provisoriamente, a despesa resultante da1 proposta em que o decreto-lei se converteu não está fixada em definitivo.
A Assembleia não podo ter - se tem - outras peias ao fazer a apreciação do diploma em causa além das que constem das leis anteriores.
Foi por isto que na discussão da proposta do Governo não invoquei, quanto aos cartórios cuja extinção o Decreto-Lei n.º 37:666 propunha, o artigo 97.º E certamente pela mesma razão de probidade mental o Sr. Dr. Dinis da Fonseca não defendeu a proposta do Governo com a inibição constitucional do artigo 97.º
Eu consideraria destoante dos princípios leais que devem informar qualquer discussão - e especialmente uma discussão parlamentar - o emprego de argumento que reputo contrário à Constituição.
Sr. Presidente: as considerações que fiz são aquelas que de momento mo ocorreram e que considerei essenciais para justificar o meu aviso prévio.
Se vier a ser lida resposta do Governo e caso o debate se generalize, poderei acrescentar mais alguma coisa.
Quero, todavia, vincar que não me move o menor propósito de ataque ao Governo ou ao Sr. Ministro da Justiça.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Simplesmente entendi que o procedimento havido para com a Assembleia não podia ficar som um veemente protesto.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vai ler-se a resposta do Governo ao aviso prévio do Sr. Deputado Sá «Carneiro. Trata-se de uma resposta do Sr. Ministro da Justiça enviada ao Sr. Presidente do Conselho e que por S. Ex.ª foi remetida à Assembleia Nacional.

Foi lida a resposta. É seguinte:
«Sr. Presidente do Conselho. - Excelência. - Dignou-se V. Ex.ª transmitir-me o teor do aviso prévio apresentado na sessão da Assembleia Nacional do 13 de Dezembro pelo Sr. Deputado Sá Carneiro sobre a publicação do Decreto-Lei n.º 38:385, de 8 de Agosto de 1951, na parte que revoga os §§ 2.º, 1.º e 5.º, respectivamente dos artigos 1 .º, 7.º e 14.º da Lei n.º 2:049, publicada em 6 de Agosto.
I) O Decreto-Lei n.º 37:666, de 39 de Dezembro de 1949, presente à Assembleia Nacional para ratificação,

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foi objecto de parecer da Câmara Corporativa, no qual foram sugeridas emendas que acarretariam um aumento de despesa de cerca de 6:800 contos.
A Assembleia Nacional não discutiu ou rejeitou a maioria destas emendas, tendo apenas aceitado e votado, em contrário da proposta do Governo, a (manutenção de cartórios situados fora das sedes dos concelhos, agravando com essa emenda os encargos da reforma em 740 contos anuais, aproximadamente.

II) O artigo 97.º da Constituição dispõe:

A iniciativa da lei compete indistintamente ao Governo ou a qualquer dos membros da Assembleia Nacional; não poderão, porém, estes apresentar projectos nem fazer propostas de alteração que envolvam aumento de despesas ou diminuição idas receitas do Estado ...
A praxe constitucional seguida pela Assembleia Nacional não revelara quaisquer dúvidas sobre o alcance deste preceito, a não ser quando da discussão do projecto de criação de feriado nacional no dia 28 de Maio, da autoria do Sr. Deputado Paulo Cancela, de Abreu. Ouvida a Câmara Corporativa, foi esta de parecer que o acréscimo de um feriado contendia com o artigo 97.º da Constituição e o projecto foi retirado pelo seu autor. Tratava-se então de interpretar aquela limitação constitucional como abrangendo a diminuição do rendimento nacional, diminuição essa que seria causa da diminuição das receitas do Estado.
Esta interpretação, porventura extensiva, foi apreciada e criticada por alguns oradores na sessão da Assembleia Nacional de 22 de Fevereiro de 1936 e o Sr. Presidente da Assembleia, tendo sido retirado o projecto, não pôs à discussão o problema da inconstitucionalidade, entre outros motivos, por considerar delicado estabelecer uma discussão para fixar doutrina sem a Câmara dispor já de tempo suficiente.
A oportunidade, porém, surgiu com a apresentação pelo Governo da proposta de lei n.º 110, sobre alterações à Constituição e ao Acto Colonial. Aceitando a interpretação do artigo 97.º da Constituição defendida por uma minoria de Deputados na sessão de 22 de Fevereiro de 1936, o Governo sugeriu o acréscimo de um parágrafo àquele artigo, redigido nos seguintes termos:

§ 1.º A disposição da segunda parte deste artigo só se aplica aos projectos e propostas de alteração que, convertidos em lei, importem por si mesmos um aumento de despesa ou uma diminuição de receita cuja cobrança já' tenha sido autorizada pela Assembleia Nacional.
Ao apreciar esta proposta a Câmara Corporativa elucida-nos sobre o seu alcance, negando-lhe a sua concordância. Reza assim o texto do respectivo parecer (Diário das Sessões de 16 de Junho de 1945, suplemento ao n.º 176, pp. 642-(9) e seguinte):
A novidade consiste em esclarecer:

1.º Que os projectos e propostas de alteração, para se dizerem causadores de aumento de despesa ou diminuição de receita, hão-de importá-los por si mesmos;
2.º Que deve tratar-se de receita cuja cobrança já tenha sido autorizada pela Assembleia Nacional. E que sentido atribuir à expressão e que importem por si mesmos um aumento de despesa ou uma diminuição de receita»? Cremos que o seguinte: o aumento de despesa ou a diminuição de receita devem resultar necessária e directamente da execução das disposições legais em que o projecto de lei ou a proposta de alteração venham a converter-se. Pretende-se assim ampliar a iniciativa dos Deputados.
Ora a Câmara Corporativa considera perigosa a alteração na parte relativa ao aumento de despesa. E a razão é simples: o grau e, como consequência, a gravidade do aumento não vivem em absoluto relacionados com o facto de este resultar ou não directamente da execução das respectivas disposições legais, bem podendo suceder que os reflexos de certa medida, aliás tantas vezes previsíveis, acarretem aumentos de despesa Superiores ao provocados directamente por outra. A Câmara Corporativa crê, por isso, que será preferível deixar nesta parte as coisas como estão1.
O mesmo não se dirá da alteração respeitante à diminuição de receita; não porque a reputo em absoluto necessária, mas porque reconhece a conveniência do esclarecimento. E dizemos esclarecimento, visto que numa interpretação razoável do artigo 97.º deve entender-se que a restrição abrange sómente os projectos de lei ou as propostas de alteração que diminuam as receitas legalmente cobráveis, e não as receitas constantes do projecto ou proposta em discussão.
E a Câmara Corporativa acaba por sugerir a rejeição da proposta do Governo, acrescentando-se apenas ao texto do artigo 97.º o esclarecimento de que a diminuição de receitas, vedada à iniciativa da Assembleia, se refere à receita criada por leis anteriores.
Desta sorte, a discussão sobre a alteração do artigo 97.º transformou-se, na verdade, numa votação sobre a interpretação a dar pela Assembleia ao referido artigo. Em presença, apenas duas teses: a da proposta governamental, que esclarecia aquele artigo no sentido de a restrição nele contida não abranger o aumento indirecto de despesas ou a diminuição indirecta de receitas, brilhantemente defendida pelo Sr. Deputado Dr. Mário de Figueiredo, e a da Câmara Corporativa, sustentando a interpretação até então adoptada pela própria Assembleia Nacional. Esta última foi defendida, com notável elevação, pelo actual Presidente da Assembleia Nacional nas suas funções, de Deputado. Nesta defesa se mostra, com grande clareza, a orientação da Assembleia Nacional e a sua justificação 2.
A Assembleia Nacional aprovou o texto sugerido pela Câmara Corporativa rejeitando a proposta governamental. Deste voto, e por isso que a discussão nos revela tratar-se.
A interpretação constitucional ato então seguida pela Assembleia Nacional é exposta com inexcedível concisão na sessão da Assembleia Nacional de 6 de Julho do 1945 Diário das Sessões n.º 190, de 7 de Julho de 1945, p. 764) pelo Sr. Deputado Dr. Mário de Figueiredo:

Para não cansar VV. Ex.ªs, direi apenas que a interpretação que tem sido dada à Constituição nesta parte é a seguinte: a Assembleia não pode, mesmo a propósito de uma proposta do Governo em discussão, propor qualquer emenda que importe uma diminuição de receitas ou um aumento de despesas relativamente àquela proposta.
Esta tem sido a interpretação adoptada quanto ao aumento de despesas e diminuição de receitas, mas sempre supus que, quanto a esta última, ela era errónea. Isto pelo que respeita a propostas de alteração a propostas ou projectos de lei.
Pelo que respeita à iniciativa de projectos de lei, tem a mesma disposição sido interpretada no sentido de que aquela não existe quando desses projectos resulte directamente, ou possa resultar indirectamente, aumento de despesa ou diminuição de receita. Ora creio também errónea esta interpretação quanto aos projectos de lei de que indirectamente possa resultar aumento de despesa ou diminuição de receita ...

2 Diário das Sessões de 7 de Julho de 1945, pp. 766 e 767.

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tar-se apenas de uma questão de interpretação do artigo 97.º, no sentido de a restrição nele contida abranger, ou não, o aumento indirecto de despesas ou a diminuição indirecta de receitas, poderá inferir-se a posição tomada pela Assembleia Nacional nesta matéria e o cuidado posto no seu esclarecimento, ainda que a divergência de interpretação seja de pequeno alcance.
O debute da Assembleia Nacional de Julho de 1945 e a subsequente votação interessam agora apenas na medida em que mostram a plena luz qual a doutrina constitucional que a praxe e adesão contínua da Assembleia solidificou e em que dão conhecimento dos pontos restritos sobre os quais se levantaram esporadicamente vozes discordantes. Em matéria de aumento de despesas, o único ponto que foi objecto de opinião divergente refere-se a projectos de lei ou propostas de alteração que determinem indirectamente aumento de despesa. Em tudo o mais verificou-se na Assembleia a mais firme e completa unanimidade.
Ora o agravamento da despesa com a reorganização dos registos e notariado constitui um aumento de despesa do Estado. Não se trata indubitavelmente de um aumento indirecto de despesas. Despesa pública é todo o emprego por parte do Estado de quantias em dinheiro para satisfação de necessidades colectivas. E não é duvidoso que o custeio de serviços públicos constitui despesa pública.
Tão-pouco tem que ver, ao que parece, com a definição de despesa pública, a sua previsão no Orçamento Geral do Estado ou em orçamento próprio. A personalização financeira de um serviço, com a consequente consignação de receitas, constitui uma excepção à universalidade do Orçamento Geral do Estado, em obediência a conveniências da Administração ou de técnica financeira, mas não suprime a natureza das receitas ou despesas como receitas e despesas do Estado.
A Assembleia Nacional, porém, votou o aumento dos encargos da reorganização. Logicamente, este voto poderia explicar-se ou por olvido da disposição constitucional do artigo 97.º e da praxe até agora seguida e tão firmemente exposta na própria Assembleia, ou pressupondo nova e diversa interpretação do referido artigo 97.º
III) Se fosse o caso de presumir que a Assembleia Nacional assentara em nova e diferente interpretação do artigo 97.º da Constituição e o Governo tomasse posição oposta, verificar-se-ia uma divergência de interpretação da Constituição pelos órgãos da soberania e, em consequência, inevitáveis embaraços na coordenação das respectivas funções. Para- tais casos só haveria recurso à intervenção do Chefe do Estado. Na verdade, «a soberania reside em a Nação e tem por órgãos o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os tribunais» (artigo 71.º da Constituição), mas é ao Chefe do Estado que, em casos extremos, cabe usar de poderes, por sua natureza excepcionais, de maneira a garantir aquela coordenação: recusar a promulgação das leis, demitir o Governo ou dissolver a Assembleia.
Mas não me era lícito admitir que tal hipótese, puramente lógica, resistisse a- um breve exame dos factos. E na verdade a Assembleia Nacional, que ainda em 1945 e com impressionante unanimidade fixara uma interpretação do artigo 97.º da Constituição, inclinando-se firmemente, nos pontos que se julgara esclarecer, para uma doutrina restritiva, mesmo quando contrária à proposta governamental, não desprezaria os seus próprios ensinamentos sem que tivesse discutido de novo amplamente o problema constitucional, tanto mais que a Assembleia tinha então poderes constituintes.
Seria por isso inconveniente seguir o caminho de aconselhar a V. Ex.ª, no exercício das prerrogativas de Chefe do Estado em que se encontrava investido, a recusa de promulgação da lei. Haveria para tanto que justificar essa recusa com o fundamento da violação do artigo 97.º da Constituição, quando é certo que fora sempre a Assembleia a mais eficiente defensora da limitação constitucional constante daquele preceito, e a referida votação só poderia, dadas as circunstâncias que aponto, atribuir-se a simples lapso. Acresce que a recusa de promulgação abrangeria a Lei n.º 2:049 no seu conjunto, levantando graves inconvenientes para a Administração e suscitando porventura reacções de ordem política. Pareceu assim preferível revogar as disposições da Lei n.º 2:049 que contrariavam o equilíbrio financeiro da proposta governamental; mantinha-se, desta sorte, a doutrina constitucional, consoante a interpretara a própria Assembleia (à qual cumpre especialmente vigiar pelo cumprimento da Constituição, nos termos do artigo 91.º, n.º 2.º). sem proclamar uma divergência de interpretação, certamente inexistente, entre a Assembleia Nacional e o Governo.
IV) Como nota final resta fazer referencia às observações do Sr. Deputado Sá Carneiro sobre a extinção dos cartórios em localidades fora das sedes de concelho.
A proposta do Governo incluía uma disposição assim redigida: «Os cartórios actualmente existentes que excedam o número previsto no referido mapa serão extintos à medida que vagarem» (§ único do artigo 7.º). A Assembleia Nacional votou a manutenção dos cartórios notariais existentes fora das sedes de concelho em Dezembro de 1949. A Comissão de Legislação e Redacção da Assembleia, ao redigir a lei em face do voto para manutenção daqueles cartórios, cindiu a matéria constante do corpo e parágrafo do artigo 7.º da proposta do Governo, acrescentando-lhe um outro parágrafo relativo aos cartórios mantidos ou restaurados, de sorte que o princípio da extinção de cartórios subsequente à vacatura de lugares poderia julgar-se não abranger, após a publicação do Decreto-Lei n.º 38:385, os lugares de cartórios em freguesias, desde que se aceitasse uma argumentação a contrario sensu.
A interpretação a contrario sensu, porém, é sempre perigosa. A própria possibilidade dessa interpretação só me foi sugerida pelo teor do aviso prévio. A extinção de todos os lugares suprimidos pela reorganização dos registos e notariado, incluindo os cartórios em sede de freguesia, só se verifica à medida que os mesmos lugares vagarem. E neste sentido foi interpretado o Decreto-Lei n.º 38:385. Ignoro quais as informações colhidas sobre extinção de cartórios pelo Sr. Deputado Sá Carneiro; mas são, sem dúvida, inexactas/
Em 8 de Agosto de 1951 existiam os seguintes cartórios com sede em freguesias: Alcanede, Alpedrinha, Arazede, Fermil, Lixa, Louriçal, Negrelos, Paião, Rio Tinto, S. Lourenço do Bairro e Serzedo (Boletim Oficial do Ministério da Justiça n.º 23, ano XI). De todos estes cartórios foram sómente extintos, após a publicação do Decreto-Lei n.º 38:385, o cartório notarial de Arazede, pela colocação por concurso do respectivo notário na secretaria notarial da Guarda (despacho publicado no Diário do Governo de 6 de Outubro de 1951) e o cartório notarial de Negrelos, por o respectivo notário ter atingido em 27 de Agosto de 1951 o limite de idade.
Apresento a- V. Ex.ª, com respeitosos cumprimentos, o testemunho da minha mais elevada consideração.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 1952. - O Ministro da Justiça, Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira.

O Sr. José Meneres: - Sr. Presidente: requeiro a generalização do debate.

O Sr. Presidente: - Declaro generalizado o debate.

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O Sr. José Meneres: - Sr. Presidente: pela intervenção que tive na discussão da Lei n.º 2:049, julgo-me no dever de intervir neste debate, não para acrescentar quaisquer novas considerações às produzidas pelo Deputado Sr. Dr. Sá Carneiro ou para comentar a resposta do Governo, mas apenas para marcar uma posição que julgo ser também a de muitos Srs. Deputados. Eu vim a esta Assembleia com o sentimento, que talvez fosse ilusão, de que a minha presença e a atenção que sempre presto a todos os encargos que me cometem poderiam ser úteis à boa marcha da governação do País.
Presente à nossa apreciação o decreto-lei sobre a reforma dos registos e notariado, esforcei-me para que vingasse aquilo que se me afigurou ser a melhor doutrina e, em muitos dos seus aspectos, VI os meus pontos de vista serem sancionados por uma significativa maioria de votos desta Assembleia e transformados em lei.

O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª disse significativa maioria de votos? Gostaria que V. Ex.ª me esclarecesse o que entende por significativa maioria de votos, porque realmente a maioria foi o mais reduzida possível.
Portanto, a declaração que V. Ex.ª faz de que teve uma significativa maioria de votos, desculpe V. Ex.ª, não é exacta, porque a maioria, como já disse, foi o mais reduzida possível.

O Orador: - V. Ex.ª por certo não contou os votos.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Está V. Ex.ª enganado, porque os contei.

O Orador: - Entenda V. Ex.ª essa maioria como quiser. Basta saber-se que foi a maioria. Apesar disso, o Governo entendeu, dois dias passados, revogar, sem qualquer explicação prévia, alguns dos seus preceitos, precisamente aqueles cuja discussão tinha provocado maior celeuma.
Não me interessa, neste momento, nem é meu propósito reabrir a discussão sobre as vantagens, conveniências ou legalidade dos preceitos aprovados e logo em seguida revogados por disposição intercalada e escondida em decreto-lei regulando matérias especificas.
Quero apenas exprimir o desgosto que senti por ter inutilmente perdido tanto tempo com a discussão da lei e ter contribuído para que fosse emitido um voto que nem por provir da representação nacional serviu para informar a orientação do Governo.
O caso aditem importância sob este aspecto e nem sequer se justifica com a longa explicação do Governo, que, se quisesse respeitar a vontade da Nação, aqui conscientemente manifestada, tinha ao seu alcance os meios para suprir qualquer deficiência constitucional, se é que ela existiu.
A desilusão que senti pelo desinteresse assim manifestado pela representação nacional levar-me-ia a abandonar os trabalhos desta Assembleia se tal gesto não importasse deserção de um posto de combate, à frente da actual situação política, que, se tem inimigos, também tem alguns maus servidores, que só a prejudicam e contra os quais é preciso estarmos precavidos.
É tudo quanto tinha para dizer e creio que basta na emergência.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Ricardo Durão: - Sr. Presidente: as razoes que me levam a tomar parte no debate são, como sempre, mais sentimentais do que técnicas. Isto não quer dizer, porém, que me deixe arrastar pela paixão num assunto deste melindre.
Sempre tive a preocupação de contribuir, na medida dos meus fracos recursos, para o prestígio da classe ou do organismo a que pertenço.
É o caso presente; e por isso aqui estou,
Há mais de vinte e cinco anos que sirvo a política de Salazar, porque a considero u causa da Nação, a garantia da letra que lho assinámos em branco. Há mais de vinte e cinco anos que lhe ofereci - o todos os dias lhe ofereço, em todas as circunstâncias a minha palavra e a minha espada, ambas sem brilho, é certo, mas sem mancha.
Não posso invocar, e não invocaria mesmo que pudesse, uma folha de serviços ou um rol de sacrifícios que me autorize a prevalecer. Nem sequer a minha isenção posso provar, porque só se recusa o que se oferece; e nunca me ofereceram coisa alguma.
Dir-se-á que estas afirmações não interessam ao caso - eu sei -, mas apraz-me fazê-las neste exórdio, e com toda a sua projecção no futuro, porque elas amarram para sempre um homem à grilheta da sua renúncia.
Esta escravidão é toda a minha independência - o único ornamento da minha mediocridade.
Por ocasião da última eleição presidencial foram citadas nos comunicados da oposição algumas frases que proferi nesta Assembleia. Não me deram com isso prazer algum. Pelo contrário, prefiro sempre que as minhas palavras e as minhas intenções não sejam deturpadas no seu significado, nem por amigos nem por adversários.
E dito isto, permita-me, Sr. Presidente, que comece o meu discurso por V. Ex.ª o mais graduado de todos nós nesta Assembleia de representantes da Nação.
Iniciarei portanto as minhas considerações lembrando as palavras de saudação, neste momento oportuníssimas, dirigidas a V. Ex.ª pelo Sr. Deputado Bartolomeu Gromicho aquando é o seu regresso ao Parlamento:
A nobre e prestigiosa actuação de V. Ex.ª na última legislatura constitui para nós uma garantia absoluta de que a Assembleia Nacional há-de firmar e valorizar cada vez mais a sua útil e verdadeira posição no conceito da Nação, que, de facto, nos observa e que, decerto, nos julga.
Comentando estas palavras, direi, por minha vez, que para sermos observados com respeito e julgados com justiça temos de nos impor ao conceito da Nação.
Permita-me ainda V. Ex.ª que eu recorde uma passagem de outra estreia parlamentar, que define e dignifica a alta missão do Deputado. Passo a ler:
Manterei nesta Assembleia uma atitude disciplinada no cumprimento dos meus deveres de Deputado, o que não quer dizer, Sr. Presidente, que me dispense de proceder com aquela independência de julgamento • sem a qual não seria digno de transpor os umbrais destas portas.
Dirigiu-se a V. Ex.ª nestes termos o general Craveiro Lopes, para nós, militares, o camarada exemplar; para vós, senhores, o colega inolvidável; para o País o servidor inconsútil.
Não digo isto para fazer retórica ou especular com a glória de um nome, na mira do sucesso fácil; nem tenho a pretensão de o conseguir num auditório de tão preclaro escol. Digo isto. que aliás sinto com todo o meu coração de português, sobretudo, para escorar, na construção do meu discurso, alguma afirmação mais delicada.
Deu lugar ao presente aviso prévio a revogação ou, mais propriamente, a alteração intempestiva dum decreto que o Governo «submeteu» à discussão da Assembleia, que, por esse motivo, se declara agravada. Esta premissa teve repercussão e tomou consistência. Admitamos, portanto, o agravo ab initio.

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E, já que estamos no campo das hipóteses, eu agora não sou Deputado: sou um julgador, um inquiridor, um bonzo.
Mas desta vez não julgo de direito puro, nem mesmo impuro; não me embrenho no labirinto da técnica jurídica, onde me espera o dragão implacável: trago nas minhas mãos o fio de Ariadne; estou salvo porque julgo só de facto.
Nesta altura sou portanto intangível como os bonzos - soberba hipótese! Oh, como é cómoda, divinamente cómoda, paradisíaca, esta situação do intangibilidade!
Mas, reatando, dizia eu - eu, julgador - que o Governo alterou como quis, som prévia explicação, um decreto que antecipadamente «submetera» à discussão da Assembleia. Este verbo «submeter» envolvo um reconhecimento de soberania, aliás desnecessário, visto que a Constituição o proclama.

O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª dá-me licença?
Há aí um pequeno equívoco. Não foi o Governo que submeteu à apreciação da Assembleia um decreto. Foi a Assembleia que, no uso de uma atribuição constitucional, requereu que um decreto do Governo fosse submetido à ratificação.

O Orador: - Porque é que eu citei este facto? Foi para me agarrar ao verbo «submeter». Não se deu isto com esse decreto, mas outros tem sido submetidos à ratificação; para o caso é o mesmo.

O Sr. Manuel Lourinho: - Não sucedeu, mas veio para ratificação da Assembleia.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Como V. Ex.ª disse que ia julgar «do facto», eu quis pôr os factos.

O Orador: - Eu não estou a pôr os factos com má fé. O que eu quero, repito, é pegar no verbo «submeter».

O Sr. Mário de Figueiredo: - Eu não tenho dúvida alguma acerca da boa fé de V. Ex.ª, mas foi exactamente por V. Ex.ª ter pegado, como disse, no verbo «submeter» que eu acudi a tempo.

O Sr. Presidente: - Eu desejo esclarecer V. Ex.ª do seguinte: segundo a Constituição, os decretos-leis publicados durante o período de funcionamento da Assembleia Nacional podem ser submetidos à ratificação da mesma, se esta o requerer.
Portanto, trata-se de uma faculdade da Assembleia, e não de uma obrigação do Governo.

Q Orador: - Muito obrigado a V. Ex.ª

O Sr. Carlos Moreira: - Não há dúvida do que desde que o decreto cá veio, ficou submetido.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Um decreto não fica submetido à apreciação, mas sim à consideração da Assembleia, para que, se esta o requerer, seja então submetido à apreciação da Assembleia.
O Orador:-Convém lembrar que eu, julgador, admiti em princípio a hipótese do agravo. Analisemos, pois, as consequências.
Dir-se-á, no entanto, que, uma vez encerrado o Parlamento, o Governo procedeu apoiado num direito que a mesma Constituição lhe confere ou, melhor neste caso, lhe faculta. Tanto pior.
Quem agrava publicamente um amigo, um colaborador, um confrade, à sombra de um direito, por mais legal que seja, em pouco apreço tem a sua confiança e a sua estima.
E certo que não houve da parto do Governo arbitrariedade ou prepotência; mas neste caso antes houvesse, para se poder protestar com razão ou perdoar com galhardia.
Perdoar? Porque não? «Se receberes agravo de um mau», dizia Santo Agostinho, «perdoa-lhe, para que não haja dois maus». E ainda o inquiridor quem fala.
Tudo se afigura afinal como se houvesse da parte do Governo o uso imoderado de um direito, que deixou mal colocados os representantes da Nação perante os povos cujos interesses serviam.
E, assim, depois das manifestações de regozijo efectuadas nas localidades favorecidas pela votação da Assembleia; depois dos agradecimentos que lhe foram dirigidos pulas virias comissões locais; depois do fogo do artifício, dos arraiais e das bandas do música, aparece de súbito, ante os olhos atónitos das massas desiludidas e desorientadas, um novo decreto revogando todos os benefícios que uma assembleia pseudo soberania lhes tinha outorgado.
E isto com a agravante de se terem suprimido nesse diploma definitivo - como no aviso prévio se alega - as próprias dilações que o Governo anteriormente admitira.
Dir-se-ia, portanto, que foi mal interpretada a discordância dos Deputados, discordância que, aliás, manifestaram no propósito apenas de defender interesses que consideravam legítimos.
Desta forma os únicos prejudicados foram precisamente os suplicantes, enquanto a Assembleia Nacional, atingida, ou suposta atingida, nas suas prerrogativas morais, via o seu crédito e o seu prestígio abalados. Entristece-nos realmente que não se tenha, considerado a tempo que essa medida infeliz poderia representar para a Assembleia Nacional um gesto simbólico de interdição.
E agora, voltando a ser Deputado, pergunto a mim mesmo: seria desejo deliberado do Governo agravar a Assembleia?
Foi esse, evidentemente, o resultado, com toda a sua inevitável repercussão, mas não foi esse decerto, o propósito governamental. Supor o contrário seria admitir um suicídio político. E tanto é essa a minha convicção que desde já me recuso a assinar ou a votar qualquer moção de censura ao Governo.
Há dois órgãos de soberania - dois sobretudo - aos quais interessa, nesta causa comum, a colaboração, a harmonia, a convergência de esforços e o respeito mútuo.
Refiro-me ao Executivo e ao Legislativo. A nenhum deles convém o desprestígio do outro e, apesar da atitude de crítica que este pode assumir em relação àquele, não temos o direito moral de responder a um agravo com outro agravo.
«Não ofende quem quer» - é um lugar-comum tão falso como quase todos os lugares-comuns, porque a verdade é esta: só ofende quem quer, e o Governo não quis ofender-nos. Procurar desacreditar-nos seria, além de tudo, uma injustiça e uma ingratidão da sua parte.
V. Ex.ª é testemunha, Sr. Presidente, da nossa correcção dentro desta Casa; V. Ex.ª tem verificado a moderação e a delicadeza, a preocupação de justiça e de louvor com que criticamos os actos do Governo ou lhe pedimos providências1, salvaguardando sempre todas as susceptibilidades. E não é só pelo prestígio de V. Ex.ª, por todos nós reconhecido, não é só pela sua capacidade de persuasão, por todos nós acatada, que obedecemos às suas directrizes e aos seus conselhos; é também pela nossa clara noção de civismo e pela nossa lealdade a Salazar.
É ele, é a sua isenção, o seu sacrifício que nos faz calar; e, se alguma vez falamos com mais desassombro, é precisamente para lhe darmos força.

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Recordando ominosos tempos, Salazar disso um dia:

O Parlamento oferecia permanentemente o espectáculo da desarmonia, do tumulto, da incapacidade legislativa ou do obstrucionismo, escandalizando o Pais com os seus processos e a inferior qualidade do seu trabalho.
Com efeito, Sr. Presidente, quando o Parlamento era uma fanfarra, a sua desautorização explicava-se. Mas agora, porquê?! Onde está a semelhança entre o Parlamento e a Assembleia que justifique igual tratamento?
Dizem por ai que a Assembleia Nacional é um orfeão. Talvez pela disciplina coral quando nos tocam na corda sensível, mas não pela sujeição incondicional a qualquer batuta; talvez porque aceitamos a subordinação voluntária, mas não transigimos com a subserviência imposta.
Que uma assembleia se arvore em soberana indiscutível, emperrando a cada passo a máquina governativa, atraiçoando mesmo a confiança da Nação, comprometendo tantas vezes o bom nome e ás relações internacionais do País, é, sem dúvida alguma, inadmissível; mas desprezar os direitos que assistem à Assembleia Nacional, não só perante as normas constitucionais que regulam o seu funcionamento, mas também perante o mínimo de decoro necessário à sua função e ao seu prestígio, isso é que já envolve afronta opinião pública que a elegeu para seu representante directo.
Posso individualmente não me preocupar com a opinião pública, mas como representante da Nação não posso alhear-me dela; acho até naturalíssimo que as suas reflexas encontrem eco nas ressonâncias deste hemiciclo, por onde tem desfilado tanta grandeza e tanta miséria.
Mas, prosseguindo, proclama a Constituição a independência dos três poderes do Estado, mas é a segurança do próprio Estado que aconselha a sua interdependência. Essa interdependência baseia-se naturalmente no respeito mútuo.
Por isso mesmo, e apesar das razões sentimentais que me assistem, como Deputado à Assembleia, repito que não aprovarei qualquer moção de censura. Não procuro esmagar um adversário, pretendo apenas convencer um amigo.
O que importa sobretudo é procurar conseguir que o Governo reconsidere sobre a atitude que tomou ex abrupto. Qualquer das soluções preconizadas no aviso prévio suavizaria porventura as susceptibilidades da Assembleia, mas não resolveria o problema quanto à situação dos povos interessados. A solução perfeita seria o restabelecimento do decreto tal cromo a Assembleia o votou.
Nesta conformidade, darei o meu inteiro aplauso a qualquer moção em que a Assembleia solicite do Governo esta dupla satisfação.
Será isto exigir muito? O Governo que responda. Mas se esta solicitação peca por excesso, a verdade é que a resposta do Governo também peca por diferença, e mais pela insuficiência de satisfações morais do que jurídicas.
Ouvi há poucos dias a um ilustre colega nosso, a propósito do assunto em questão, este conceito magnífico: a Nada há mais esterilizante do que empurrarem-nos para o cepticismo». E, com efeito, meus senhores, mal vai a uma causa quando os seus servidores perdem a fé na sua própria missão. Ora é isso precisamente que desejamos evitar a todo o transe.
Com este aviso prévio prova-se entretanto o que já é bastante animador - que a sensibilidade, pelo menos, ainda a não perdemos.
E vou terminar, Sr. Presidente:

Seria uma injustiça não frisar condignamente a rara isenção e a elegância surpreendente com que foi levantado este aviso prévio. Ele pertence, desde hoje, à Assembleia, porque faz parte integrante do seu património moral. Já não é do seu promotor, é de todos nós.
Isso não impede, contudo - até obriga -, que eu, neste momento, lhe preste a devida justiça e, como membro da Assembleia Nacional, com a mesma isenção e a mesma elegância, o saúde do alto desta tribuna.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Vasco Mourão: - Sr. Presidente: pelo nosso sistema constitucional, tinha-se conseguido ama útil forma de equilíbrio entre a comprovada necessidade dum governo forte e a indispensável fiscalização dos seus actos por parte duma assembleia política.
Dotados, tanto a Assembleia como o Governo, de funções legislativas, o sistema funcionou sem atritos até à publicação do Decreto-Lei n.º 38:385, que revogou algumas disposições da Lei n.º 2:049, votada nesta Assembleia.
Esse acto do Governo causou, como era Se prever, justificada reacção nesta Assembleia, que se traduz no aviso prévio agora em discussão.
Estamos numa assembleia política, e em política o que parece é.
Consequentemente, sejam quais forem as razões que se invoquem para justificar a atitude do Governo, a verdade é que dessa atitude resultou publicamente uma quebra de prestígio para esta Assembleia.
Ora se é certo que algumas divergências podem sempre surgir entre o Governo e a Assembleia em consequência da disparidade de pontos de vista quanto à solução adoptada para um ou outro problema de interesse nacional, o que nada fazia prever é que se fosse provocar um atrito grave com esta Assembleia por uma questão que, em si mesma, não justifica a importância que o Governo lhe atribuía, revogando por decreto-lei disposições que, embora de carácter secundário dentro do conjunto da reforma que a Lei n.º 2:049 consubstancia, foram justamente das que mais acalorada discussão haviam provocado nesta Assembleia antes da sua votação definitiva.
E, desde que a pouca importância das disposições revogadas não justificava a atitude do Governo com 8 publicação do Decreto-Lei n.º 88:385 a seu respeito, tem de concluir-se que essa atitude representou, por parte do sector ministerial directamente interessado ha reforma, um propósito de marcar vincadamente um princípio de completa independência do Governo em relação à Assembleia Nacional, mesmo quanto aos textos legais por esta votados definitivamente.
Pela parte que me diz respeito, assim interpretei a atitude do Governo e não tenho razões para modificar a minha maneira de ver em face da leitura que acaba de ser feita da extensa resposta governamental.
Nela se contêm especiosas razões de ordem jurídica, mas o facto fundamental mantém-se e o correspondente desprestígio que atingiu esta Assembleia.
Ora, Sr. Presidente, quem ler desapaixonadamente a discussão travada nesta. Assembleia sobre o projecto que veio a transformar-se na Lei n.º 2:049 e as propostas de emendas apresentadas, tem de concluir que essa discussão foi conduzida com a maior elevação, dela ressaltando nitidamente o único propósito de uma leal colaboração com o Governo, evitando-se alterações fundamentais que pudessem afectar a própria estrutura do projecto em causa.
Esta posição tomada pela Assembleia merecia melhor acolhimento da parte do Governo; merecia até uma real prova de consideração.
Julguei-me no dever de produzir estas breves considerações pela circunstância de ter intervindo naquele debate e subscrito algumas das propostas de emenda que vieram a ser integradas no texto da Lei n.º 2:049, para mani-

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festar aqui a minha discordância e o meu desgosto pela atitude do Governo neste caso concreto.
Não terminarei, no entanto, estas considerações sem formular o voto e exprimir o desejo muito sincero de que não voltem a praticar-se por parte do Governo actos como aquele que determinou o presente aviso prévio, pois que o desprestigio que resulta de tais actos para o nosso sistema constitucional vem a reflectir-se, cedo ou tarde, no próprio prestígio da entidade que os tenha praticado.
JE é isso, fundamentalmente, o que todos nós desejamos que venha a evitar-se.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Galiano Tavares: - Sr. Presidente: não intervim no debate que nesta Câmara suscitou a proposta de lei sobre o notariado, mas segui-o com atenção e apercebi-me em dado momento de que se tratava, efectivamente, do interesse de certos povos. Votei, por isso, contra a proposta do Governo.
Não o fiz por mero espírito de oposição. Procedi livremente e apenas me determinei por mim próprio e pelo respeito que me merecem sempre, quando se me afiguram legítimas, as aspirações das populações e dos povos que vivem longe dos centros urbanos, por conhecer as incomodidades e perdas de tempo e despesas que representam as deslocações para quem carece de tratar da sua vida. Ainda hoje não estou arrependido de o ter feito.
Sei que os modernos parlamentos evolucionam num sentido mais de fiscalização administrativa do que legislativa e legiferante, missão que já Stuart Mill considerava de muito maior importância que a simples feitura de leis. A própria estrutura interna dos parlamentos se modificou com a criação de comissões indispensáveis ao estudo dos vários problemas, cada vez mais complexos e múltiplos, embora sempre mais ou menos impregnados do espírito político que não pode deixar de os caracterizar.
São estas comissões absolutamente indispensáveis, dada a' natureza técnica dos problemas que surgem e que a cada passo e constantemente se modificam num mundo em permanente renovação.
A Assembleia Nacional votou contra a proposta, mas não votou contra o Governo, e por isso mesmo nos surpreendeu que, quarenta e oito horas depois de publicada a lei aprovada, fossem revogados por decreto-lei os artigos sobre os quais se havia desenvolvido, com mais calor e entusiasmo, a discussão e que a Assembleia aprovara por maioria.
O aviso prévio do Sr. Deputado Sá Carneiro, com a autoridade que provém da sua própria posição de relator da comissão que estudou a proposta de lei, a adoptou e defendeu, traduz uma atitude de reabilitação que a Assembleia Nacional merece e o seu prestígio exigia.
Tenho esta Assembleia como colaboradora do Governo, como colaboradora útil e proveitosa, porque aqui tenho ouvido tratar, com seriedade e elevação, problemas de manifesto interesse público e nacional.
Não posso, por isso, compreender a pouca consideração que se lhe deu na atitude do Governo e no esquecimento dos seus deveres na colaboração com os demais órgãos de soberania e especialmente com esta Assembleia, colaboração que aliás é pressuposto necessário do seu próprio exercício.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Jacinto Ferreira: - Sr. Presidente: poderá parecer estranho que um Deputado adversário declarado das chamadas instituições parlamentares (apesar de Deputado) venha associar a sua voz a este debate, reclamando para o órgão representativo dessas instituições toda a consideração que lhe é devida.
ï! porque, embora discordando do mecanismo da sua designação, eu entendo que a Assembleia Nacional representa essencialmente o princípio do direito fundamental que aos povos assiste de serem consultados pelos seus governantes, às vezes de deliberarem sobre determinados assuntos e sempre, e em todos os casos, de fiscalizarem os actos daqueles. E tanto faz, para isto, que os governantes o sejam por direito próprio, como por apropriação do poder à qual o consentimento público por um período mais ou menos longo tivesse acabado por conferir foros de legitimidade, como ainda por designação legal efectuada em harmonia com os princípios das Constituições.
Durante muito tempo os demolidores dos mitos democráticos assestaram os seus ataques sobre o Parlamento, e muito bem, porque ele talvez nunca tenha merecido a justiça de um louvor e raramente terá sido digno de ouvir uma palavra de gratidão.
Mas a má compreensão desses ataques levou a confundir o superficial com o profundo e a tornar propício o clima para o desabrochar de uma floração de ditaduras, em relação às quais a história não está a ser mais benévola do que o foi para as instituições genuinamente democráticas.
Supôs-se, em geral, que a condenação dos métodos de designar os representantes da Nação abrangia o princípio da legitimidade dessa representação, e por tal forma isto se radicou que se torna hoje necessário um intenso trabalho de recuperação para que se possa conseguir uma inteira reeducação política.
Reeducação, sim, porque educar, politicamente, se não é criar bandos de agitadores e de arruaceiros embriagados no gozo dos direitos que lhes disseram serem seus, tão-pouco é criar populações humildes e submissas à voz ou ao gesto do primeiro polícia à paisana que se lhes dirija.
E antes incutir em cada um a noção justa dos seus deveres, cujo cumprimento integral e espontâneo deva ser religiosamente guardado, e, paralelamente, gravar na consciência de cada cidadão o conhecimento perfeito dos seus direitos, para que em caso algum se preste a entregar a sua primogenitura moral em troca do ilusório prato de lentilhas da ordem e do progresso indefinido que em qualquer momento lhe venha a ser oferecido pelos mais espertos ou pelos mais ambiciosos.
E por isso que, discordando profundamente do sufrágio universal presidindo à designação dos representantes da Nação para constituírem os chamados corpos legislativos, me não presto a calar a minha voz quando vejo essa representação -bem feita ou mal feita, agora não interessa diminuída nas suas atribuições pelos outros órgãos da soberania ou pelos representantes e delegados destes.
E certo que esta Assembleia não terá sido sempre inteiramente feliz na realização do seu desejo de atrair sobre si o prestígio devido. Censuramos nós, os desta geração, as dos regimes anteriores pelo seu excesso de calor, pelo seu excesso de zelo dos interesses partidários, pelos seus excessos de comportamento. Mas não será absurdo admitir-se a hipótese de as gerações futuras nos dirigirem não menos amargas censuras por deficiências de entusiasmo na discussão, por excesso de pacatez, senão mesmo, em muitos casos, por uma pronunciada apatia.

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Repito, porém: o que está em causa não deve ser esta ou aquela Assembleia, mas o princípio permanente de que todas derivam.
O assunto aqui trazido em aviso prévio pelo ilustre Deputado Sr. Dr. Sá Carneiro não é um caso esporádico, mas apenas um lapso mais de uma série já longa, a alguns dos quais me vou referir.
Na passada sessão legislativa foi posta em destaque a irreverência de um alto funcionário que se permitiu comentar publicamente as apreciações, justas ou injustas, feitas por um ilustre Deputado aos serviços da sua, aliás competente, direcção.
Não pretendo reavivar questões e dou até como prova do que afirmo o facto de não as ter levantado quando, primeiro do que o ilustre referido Deputado, fui objecto dos comentários irónicos desse alto funcionário. De resto, alimento a seu respeito uma opinião bastante lisonjeira, mesmo a despeito da que falta de serenidade.
Somente desejo acentuar que não foi enviada a esta Assembleia a propósito do incidente qualquer explicação. Decerto, se ela tivesse vindo, V. Ex.ª, Sr. Presidente, não se teria dispensado de a comunicar a todos nós, que a receberíamos com a benevolência e o agradecimento devidos.
Ainda na anterior sessão legislativa foi pela Assembleia aprovado um projecto de lei de amnistia, e foi-o por unanimidade de votos. No Diário do Governo apareceu essa resolução com o título de Lei n.º 2:039, salvo erro, e mais tarde apareceu o Decreto n.º 38:287, que pretendia ser o regulamento da lei aqui aprovada, mas que se permitiu antes alterar profundamente o espírito das resoluções parlamentares, a ponto de em alguns aspectos as ter desvirtuado por completo. Já terá sido enviada a esta Casa qualquer explicação sobre o sucedido? Continuo a pensar que, a ter sido dada, não estaríamos nós, os Deputados, na ignorância de tão importante facto.
Terá a Assembleia errado, tal como mais tarde - segundo lhe foi feito sentir - o fez ao modificar não sei já que artigo da Constituição?
Também na sessão anterior foi aqui tratado em aviso prévio o desemprego intelectual. Parece que muita gente se dispensou de ler as páginas do Diário das Sessões onde foi reproduzido o debate a propósito, pois a única providência até hoje tomada a tal respeito consistiu na publicação do diploma que está sendo objecto de crítica, pelo qual foram extintos, ao que me informam, duzentos lugares de licenciados em Direito. Como afirmação de boa vontade para com esta Assembleia e de consideração pelo voto que formulou no fechar o debate não se poderia exigir mais nem melhor...
No parecer sobre as Contas Públicas de 1950 diz, a p. 134, o seu ilustre relator:

Parece ter sido publicado pelo Ministério das Obras Públicas em meados de 1951 um relatório sobre a actividade deste Ministério no período respeitante a 1950. Procurou o relator das Contas Públicas esse relatório e não pôde encontrá-lo na Assembleia Nacional nem em nenhuma das comissões nem no seu arquivo.
E comenta, entre surpreso e desolado:
Parece não ter sido enviado àquele alto corpo político, onde todos os anos se apreciam as contas do Estado ...
Claro! Para quê?... Que teríamos nós a ver com isso?...
Reclamações, queixas, alvitres formulados encontram quase sempre da parte dos Ministérios a que dizem respeito um mutismo, um silêncio verdadeiramente desalentadores para quem ingenuamente alimenta ilusões sobre a eficácia das suas intervenções. E informações pedidas já têm chegado a demorar dezoito meses e algumas acabam mesmo por não ser prestadas. Leis aprovadas aqui nunca foram postas em execução.
Por último inaugurou-se na administração pública o hábito de, quando surge qualquer acontecimento importante para o País, se fazer reunir um parlamentozinho de jornalistas, aos quais se faz uma leitura mais ou menos longa e a cuja disposição se põem em seguida os titulares e subtitulares das pastas para responderem às perguntas ou objecções que venham a ser-lhes feitas pelos presentes.
Não desconheço o valor da imprensa no mundo de hoje; simplesmente se as declarações fossem feitas perante esta Assembleia, não deixariam de ter repercussão na imprensa diária, enquanto que as prestadas nas circunstâncias referidas não ficam registadas no Diário das Sessões.
Concordo em que seria ridículo e inconveniente convocar especialmente a Assembleia Nacional para lhe dizer que a balança comercial apresentou melhoria em relação ao ano anterior, ou a razão das causas da desvalorização do escudo em face do dólar. Hás talvez certos comunicados pudessem ser feitos depois de ela estar aberta ou aproveitar-se o seu funcionamento para fazer outros e assim se mostrar que os representantes da Nação merecem do Poder Executivo o respeito devido.
Sr. Presidente: com estas considerações não tive em vista outra intenção que não fosse uma teórica afirmação de princípios, pois tenho por seguro que nada se modificará.
O desprestígio das instituições parlamentares é um facto inegável em todo o Mundo. E, caso notável, ele é principalmente fomentado pelo próprio funcionamento normal dos chamados «governos populares B, das democracias, cada vez mais transformadas em oligarquias.
Também em política parece que para se alcançar o dom do meio termo, do equilíbrio perturbado por um extremismo, é forçoso primeiramente ter-se de viver o extremismo oposto.
Este equilíbrio, entre nós, só um regime verdadeiramente inspirado na tradição nacional o pode trazer. Durante algum tempo pareceu que nos encaminhávamos abertamente para essa direcção; depois os acontecimentos modificaram as perspectivas e houve muita gente de Portugal que se deixou possuir pelo desalento.
Por mim, continuo a ter fé na volta do equilíbrio, até porque ele é necessário e por isso possível.
(Continuo a ter fé na harmonia da autoridade com as liberdades; da autoridade representada pelo Executivo com as liberdades simbolizadas pelos órgãos legislativos constituídos com base nas realidades nacionais e soberanos nas suas atribuições racionais e legítimas.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Mário de Figueiredo: - Sr. Presidente: tem a questão sido posta no terreno do prestígio da Assembleia e as criticas vivas que aparecem resultam precisamente do facto de haver a convicção de que está real e efectivamente tocado esse prestigio.
Se tivesse propensão para aderir desde logo, sem qualquer juízo crítico, às afirmações que se fazem, diria que nunca podia ter-me sentido nesta tribuna tão pouco à vontade como hoje.

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Isto, repito, se tivesse de aceitar afirmações que se fazem sem sobre elas exercer qualquer juízo crítico.
Tenho a consciência de que tanto como aos outros Srs. Deputados me interessa defender o prestigio da Assembleia.
Tenho a consciência de que, na medida das minhas possibilidades, procuro encarar as funções que me incumbem nesta Assembleia com os cuidados de que sou capaz.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Refiro-me à preocupação de desempenhar o mandato de um modo geral. Não falava agora de outras funções de que porventura tenha sido em especial incumbido; falava do exercício de mandato, de um modo geral. Suponho que tenho procurado cumpri-lo, quer seguindo os problemas que aqui se debatem quer estudando-os com o cuidado de que sou capaz. Tenho de me informar para poder colaborar.
Suponho que também este é um processo de colaborar no prestígio da Assembleia ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -... o cuidado de intervir sempre e em tudo o que toque ou possa tocar esse prestígio: mesmo quando o que se pretende atingir é a atitude de um Deputado que, como tal, desenvolve as suas críticas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Interessa-me, portanto, e suponho que como a qualquer dos meus caros colegas, defender o prestígio da Assembleia.
Posto isto, vou direito ao problema.
Está real e efectivamente tocado, com o caso em debate, o prestígio da Assembleia?
Ponho o problema com o modo habitual de quem quer tratar as questões e não evitá-las. Está real e efectivamente tocado o prestígio da Assembleia?
A aparência conduzir-nos-ia a afirmar que está.
Não vou discutir problemas de carácter jurídico, mesmo para evitar que o nosso querido camarada coronel Durão me promova às altitudes a que promove os «dragões» ...

O Sr. Ricardo Durão: - V. Ex.ª tem a certeza de que me referi a si? Eu referi-me ao dragão do labirinto.

O Orador: - Do labirinto jurídico. Não vou tratar de questões jurídicas, não vou mo ter-me no labirinto jurídico, porque podia perder o fio que conduziu V. Ex.ª a porto de salvamento. Não vou meter-me no labirinto jurídico, porque quero ficar tranquilo, com a tranquilidade de que não serei promovido a dragão. Aliás, não vale a pena tratar de questões jurídicas neste momento.
Das questões jurídicas a que se alude no aviso prévio, uma perdeu todo o interesse. É aquela segundo a qual a decisão da Assembleia teria conduzido a que os cartórios existentes fora das sedes dos concelhos, mantidos, até vagarem, pelo decreto convertido em proposta de lei, ficassem extintos com a revogação por decreto - o decreto que originou o aviso- das disposições da lei votada pela Assembleia. Perdeu todo o interesse porque na resposta do Governo este ponto está esclarecido.
Está esclarecido no sentido de que o decreto, melhor direi o regime de direito, se executará por forma a que aqueles cartórios notariais se mantenham até vagarem.
Também não vou discutir a outra - a da constitucionalidade da disposição que votámos mantendo a título permanente os cartórios notariais com sede fora das sedes dos concelhos. Não vou discutir também esse problema. De resto, eu não podia discuti-lo porque mantenho sobre ele a opinião aqui marcada e que está expressa no Diário das Sessões.
Sobre a interpretação do artigo 97.º da Constituição tenho a opinião que afirmei e se debateu aqui.
Para o caso não interessa a minha opinião; o que interessa é a da Assembleia, e essa é contrária à minha.
Tenho de partir daquela, e não da minha, na sequência das questões a resolver pela Assembleia. Não hei-de estar a discutir permanentemente, uma questão já resolvida pela Assembleia. Seria, além de inútil, impertinente.
Não há dúvida de que a Assembleia tomou uma posição sobre o sentido do artigo 97.º da Constituição.
A opinião que defendi sobre a interpretação desse artigo conhecem-na VV. Ex.ªs, e foi esta: a de que só são inconstitucionais as propostas de alteração às propostas de lei que importem directamente aumento de despesa ou diminuição de receita do Estado, mas não as que só reflexiva ou indirectamente a determinem.
A solução estabelecida pela Assembleia é que são inconstitucionais tanto umas como outras.
É esta que temos de considerar, e não a minha.
A Assembleia, quando se pronunciou sobre o alcance do artigo 97.º expressamente, isto é, quando precisamente o que se discutia era o conteúdo desse artigo, pronunciou-se no sentido que acabo de afirmar.
Pode ter acontecido que, ao discutir não propriamente o alcance daquele artigo nas outra questão, tenha resolvido esta de modo a pressupor que tal alcance era diferente do que havia estabelecido na altura em que precisamente o que buscava era determiná-lo.
Quando a solução de uma questão tem como pressuposto a solução de outra que é em relação a ela uma questão prévia, acontece frequentemente que a primeira se resolve sem pensar nesta.
Se se tivesse pensado nesta, ter-se ia resolvido aquela em sentido diferente. Isto é comum até nos tribunais. E por isso é que, segundo aprendi, de certos despachos não há recurso: consideram-se de mero expediente, quer dizer que não obrigam o tribunal a dar como resolvida a questão prévia que pressupõem.
No caso que agora interessa não só discutia o alcance do artigo 97.º; discutia-se outra questão, cuja solução podia implicar uma certa interpretação daquele artigo. A Assembleia, porque não pensou no sentido que havia atribuído ao dito artigo, resolveu a questão que tinha diante de si dando-lhe uma solução diferente da que lhe teria dado se tivesse pensado nele.
Isto é perfeitamente compreensível.
O importante, em presença disto, é determinar como teria procedido a Assembleia se tivesse pensado no problema ou na questão prévia de cuja solução dependia a da questão sobre que se pronunciou. Como teria, afinal, resolvido esta? Para responder a esta pergunta importa determinar como teria resolvido a questão prévia, a questão da constitucionalidade, se tivesse pensado nela. É legítimo supor que a resolveria de acordo com a posição que havia tomado quando foi chamada expressamente a discuti-la. Mas, a ser assim, resolvia a questão de que aquela era preliminar em sentido oposto àquele em que a resolveu: no mesmo sentido em que veio a resolvê-la o decreto que originou o aviso prévio.
Se isto é assim, suponho que não constitui nenhuma espécie do agravo o adoptar-se uma solução que seria aquela a que era conduzida a própria Assembleia se tivesse posto a questão. Explico-me. Na hipótese que debatemos, se a Assembleia tivesse posto a questão da constitucionalidade, tê-la-ia resolvido por forma tal que

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na questão que resolveu seria conduzida a solução diversa daquela que estabeleceu.
E, assim, eu pergunto: em que pode haver agravo para a Assembleia ao estabelecer-se uma solução igual à que a Assembleia estabeleceria se tivesse posto a questão da constitucionalidade?

O Sr. Carlos Moreira: - V. Ex.ª dá-me licença?

Como não podia deixar de ser, estou a seguir com toda a atenção a lógica sempre segura e firme das considerações de V. Ex.ª Mas sou levado a uma conclusão, não sei se bem ou mal: a Assembleia Nacional não considerar essa questão prévia.
Não teria, em consequência, sido mais lógico, mais natural que se tivesse recusado ao projecto de lei votado por esta Assembleia a respectiva promulgação?

O Orador: - Adiante trato do problema. Mas antes propriamente de tocar a questão que acaba de ser posta pelo nosso colega Carlos Moreira, quero não evito questões- admitir que a Assembleia, posta a questão da constitucionalidade, alterava a sua orientação.

O Sr. Sá Carneiro: - Quando V. Ex.ª diz que a orientação da Assembleia é no sentido contrário faz uma afirmação, permita-me, um pouco ousada. Aquilo que se discutiu em 1940 foi um problema diferente - o do aumento directo ou indirecto das despesas - e aquilo que a Assembleia condenou foi a possibilidade de um aumento indirecto de despesas. Mas o problema que se põe agora aqui é diferente.

O Orador: - Não e; é esse mesmo. Estou precisamente a dizer que a solução fixada pela Assembleia é no sentido de se considerarem inconstitucionais as propostas de alteração a propostas de lei que envolvam, mesmo indirectamente, aumento de despesa.

O Sr. Sá Carneiro: - Isso é outro problema. Uma coisa é uma proposta de alteração que visa aumentar despesas fixadas por lei anterior e outra é visar a própria proposta.

O Orador: - V. Ex.ª está equivocado. As propostas de alteração a que se refere o artigo 97.º são propostas de alteração a propostas de lei e não a leis já vigentes.
O Sr. Sá Carneiro: - Isso é que eu não aceito.

O Orador: - É assim como digo e comprometo-me a discutir o ponto com V. Ex.ª, como jurista. Em todo o caso, o que digo parece-me indiscutível.

O Sr. Sá Carneiro: - Eu entendo que não.

O Orador: - A proposta de alteração refere-se à própria proposta de lei, e não à lei anterior. Mas não vamos discutir isso agora.

O Sr. Sá Carneiro: - Mu adio que se podia discutir agora.

O Orador: - Para quê? Esta é que seria uma pura questão jurídica - a questão dos «dragões» ...
Continuando:

Isto não é de admitir, mas suponhamos que a Assembleia tinha posto a questão de constitucionalidade e a tinha resolvido em sentido diferente do que anteriormente adoptara. Não me parece que possamos recusar ao Governo o direito de manter a interpretação do artigo 97.º que a Assembleia, na minha hipótese, abandonara.

O Sr. Melo Machado: - Simplesmente não me parece ter sido boa a forma por que o fez.

O Orador:- Lá chegaremos a esse ponto.
Compreendo que o Governo tomasse esta posição: a solução adoptada pela Assembleia é inconstitucional; ou, desinteressando-se da constitucionalidade, estoutra: a decisão da Assembleia, em vez de ser tomada em vista do interesse nacional, foi tomada em consequência de razões de política local, que podem não coincidir com o interesse nacional.
Estou a pôr em toda a extensão o problema, sem olhar a dificuldades. Num ou noutro caso, tinha diante de si este caminho: recusar ou promover que fosse recusada a promulgação. No primeiro caso, recusava, por hipótese, a promulgação por achar particularmente grave deixar passar em julgado a possibilidade de uma interpretação do artigo 97.º que, dada a prodigalidade das assembleias políticas, podia comprometer até o princípio do equilíbrio das contas; no segundo, por não querer deixar sacrificar ao interesse local o interesse geral.
E o que é que acontecia com a recusa da promulgação, segundo os textos constitucionais? Voltava o decreto à Assembleia Nacional.
E a Assembleia, a avaliar pela reduzidíssima maioria que decidiu a questão e dada a exigência dos dois terços, vinha certamente a resolver que não onde tinha resolvido que sim.
Pergunto: era isto mais prestigiante para a Assembleia, ou menos desprestigiante para a Assembleia, do que o Governo ter, ele mesmo, revogado as disposições respectivas ?
VV. Ex.ªs lembram-se de que foi requerida a ratificação em 1949 e que foi discutida e votada a proposta de lei em que se converteu o decreto ratificando à volta de dois anos depois.
O Sr. Sá Carneiro: - Não é bem assim, porque tendo o decreto a data de 19 de Dezembro de 1949, a ratificação com emendas foi votada em Janeiro de 1950 e em Março de 1951 estava a lei votada.

O Orador: - Lembro-me de que se passaram duas sessões legislativas em que se assistiu a isto: o decreto, de harmonia com a Constituição, estava em execução, e constantemente aqui se faziam alusões a esse facto, criticando-o por se estarem a criar situações que seria depois difícil corrigir.
Se o decreto fosse promulgado, quando voltava à Assembleia para esta reconsiderar sobre ele?
Foi promulgado como lei em 6 de Agosto e só podia, portanto, se o não fosse, voltar na sessão seguinte, mantendo-se assim a instabilidade das situações, tão duramente criticada. Voltava à Assembleia para, dados os precedentes, esta vir afinal a decidir o mesmo que o Governo decretou!
Compreende-se que o Governo tenha pensado assim: para quê recusar a promulgação,, deixando de novo a questão em suspenso antes do que resolver por decreto o mesmo que a Assembleia, chamada a reconsiderar, certamente resolveria se lhe fosse posta a questão da inconstitucionalidade e até, conhecida a reduzidíssima maioria que decidiu e dada a exigência dos dois terços, mesmo independentemente de ser posta a questão da inconstitucionalidade ?
Acresce que o problema da recusa de promulgação era particularmente delicado por, ao tempo, o Chefe do Estado ser também o Chefe do Governo. Compreende-se perfeitamente que ele não hesitasse em exercer a sua acção como Chefe do Governo mas não quisesse, no caso, exercê-la como Chefe do Estado. Creio que isto é perfeitamente compreensível. Tratava-se de usar atri-

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bulcões que são exclusivas do Chefe do Estado, em face de outro órgão da soberania.
Olhando o problema a esta luz, pergunto: supondo que a atitude do Governo se desenvolveu dentro do quadro, que acabo de pôr, é legítimo interpretá-la como tendo sido tomada com o intuito de desprestigiar a Assembleia? Ou deve antes ser tomada como sendo aquela que, em todo o caso, melhor assegurava o prestígio da Assembleia?
Eu suponho que pôr a pergunta é deixá-la desde logo resolvida.
Eu, que tomo a peito defender o prestígio da Assembleia, que me dói pelo menos tanto como a qualquer de VV. Ex.ªs que esse prestígio seja tocado, inclino-me a crer, convenço-me mesmo de que ainda a forma mais delicada de se atingir o resultado foi aquela que se adoptou.

O Sr. Melo Machado: - E, adoptando a interpretação que V. Ex.ª estará dar ao caso; a resposta do Sr. Ministro é que a não continha.

O Orador: - Em todo o caso o Ministro, razoavelmente, não podia proceder de outro modo. Não podia pedir pura e simplesmente desculpa. A única coisa que lhe cabia era justificar, uma vez posta a questão, o seu procedimento. Foi o que fez.
E como o fez? No fundo, o sentido da sua resposta é este: buscou-se uma solução idêntica à que a própria Assembleia adoptaria :e fosse chamada a reconsiderar.

O Sr. Sá Carneiro: - Suponho que a resposta do Sr. Ministro não dá à Assembleia nenhuma satisfação, pois considera o facto como um lapso.

O Orador: - A Assembleia não pôs a questão da constitucionalidade. Se a tivesse posto não resolveria como resolveu, dada a sua orientação fixada. Desta forma, resolveu como resolveu por lapso. Dizer isto atinge a dignidade de alguém? Quem há aí que não tenha praticado lapsos?

O Sr. Sá Carneiro: - Mas atinge a competência. O problema foi posto na Comissão.

O Sr. Proença Duarte: - Julgo que o Governo não tinha absoluta necessidade de considerar o aspecto da constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Nós temos de supor que a Assembleia quando vota considera todos os aspectos da questão.

O Sr. Sá Carneiro: - Eu pus o problema do artigo 97.º em relação às vagas existentes e suponho que interpretei o pensamento da Comissão ...

O Orador: - Não me obrigue a dizer tudo ...

O Sr. Sá Carneiro: - Acho que devo dizer-se tudo!

O Orador: - O problema foi posto, não em sessão pública, mas na Comissão de Legislação o Redacção. V» Exa. sabe qual a minha opinião sobre o fundo do
problema. Eu comecei, de resto, por dizê-la no princípio o meu discurso. Na Comissão acabou por assentar-se em que o melhor era não pôr a questão da constitucionalidade a propósito do caso em debate e doutros.

O Sr. Sá Carneiro: - E como se compreende que o Governo considerasse inconstitucionais esses parágrafos e considerasse constitucional o artigo 148.º, sobre as pensões de reforma?

O Orador: - Eu tenho desgosto que V. Ex.ª me tenha perguntado isso, porque, assim como eu estava a dizer o que se passou na Comissão de Legislação e Redacção a respeito da constitucionalidade no caso sujeito, vou dizer também o que se passou sobre esse artigo na mesma Comissão. Vou dizê-lo, forçado por V. Ex.ª
O Sr. Dr. Sá Carneiro sabe muito bem que o problema foi posto quanto à disposição desse artigo, e sabe muito bem que a Comissão foi para a solução adoptada depois de informada de que essa era a opinião do Ministro. No momento ainda não vigorava a disposição constitucional segundo a qual o Governo pode apresentar propostas de alteração durante o debate, mas entendia-se que, estando o Governo de acordo, a inconstitucionalidade estava sanada.
Se a solução foi adoptada de acordo com o Ministro, então, sim, era uma indignidade da parte do Ministro revogar uma disposição com um conteúdo que ele mesmo tinha aceite, com fundamento na inconstitucionalidade.

O Sr. Sá Carneiro: - Entendo que a opinião do Ministro não pode dar constitucionalidade a uma disposição.

O Orador: - Simplesmente como isso não foi considerado e o Executivo não pode agora pôr o problema da constitucionalidade da disposição, ela é executada.

O Sr. Proença Duarte: - Eu estava, a pôr esta questão : se o Governo entende que é de uma indispensabilidade absoluta considerar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do que aqui se havia aprovado. Ainda que considerasse que era indispensável atender a esse ponto da constitucionalidade, eu pergunto se o modus faciendi de pôr em relevo ou de reparar esse mal era aquele por que resolveu e que está em discussão neste momento.

O Orador: - Certamente que V. Ex.ª não estava com atenção, porque respondi há pouco a esse ponto, mas, se quiser, repito; vou até mais adiante e digo: o Governo não podia, ele mesmo, conhecer da constitucionalidade.

O Sr. Proença Duarte: - Então, se não podia conhecer da constitucionalidade,[não podia vir reparar uma falta que se diz ser da Assembleia.

O Orador: - V. Ex.ª continua a não ter estado presente, porque eu também já esclareci isso.
O Governo só através da promulgação é que podia pôr o problema da constitucionalidade; depois da promulgação já não pode pô-lo - nem pô-lo nem resolvê-lo. Só nós, a Assembleia, é que temos, então, competência para o pôr.
Por isso, expliquei há pouco que o Governo o teria posto no momento da promulgação o podia não promulgar. Mas achou preferível e decerto menos desprestigiante, em vez de recusar a promulgação, revogar.
É que, se não promulgasse, a solução era voltar o decreto à Assembleia e o mais que VV. Ex.ªs conhecem. Mas o que convém mais, desde que o resultado que se pretende atingir é um certo, será evitar que a proposta fique outra vez in totum, no ar, ou proceder como a Assembleia teria procedido se tivesse sido chamada a reconsiderar sobro a questão.

O Sr. Proença Duarte: - Acompanhei perfeitamente o raciocínio de V. Ex.ª, mas o que penso é que a oportunidade de reparar a questão dar-se-ia por parte da Assembleia até mesmo seis ou sete meses depois, em vez de dois dias.

O Orador: - Também é raciocinar precipitadamente falar em dois dias, porque o decreto da Assembleia, se não estou em erro, é de 19 de Março e até 8 de Agosto

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decorreram mais de dois dias. O que a Assembleia tinha votado ainda cão estava em vigor e o que era natural era que a revogação se desse acto contínuo. O que se deu não constitui de maneira nenhuma um toque no prestigio da Assembleia.
Suponho ter prestado a VV. Ex.ªs todos os esclarecimentos e suponho ter demonstrado que não é razoável interpretar-se a atitude do Governo como desprestigiante para a Assembleia.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão. O debate continuará na sessão de amanhã, em que se iniciará também a efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Manuel Lourinho, sobre melhoramentos rurais.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 46 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

António Calheiros Lopes.
Délio Nobre Santos.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Srs. Deputados que faltaram à sessão: 9
Alberto Cruz.
Américo Cortês Pinto.
António Carlos Borges.
António Júdice Bustorff da Silva.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Diogo Pacheco de Amorim.
Gaspar Inácio Ferreira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
José Cardoso de Matos.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Maria Vaz.
Manuel de Sousa Meneses.
Teófilo Duarte.
Vasco de Campos.
Vasco Lopes Alves.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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