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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 195
ANO DE 1953 30 DE JANEIRO
V LEGISLATURA
SESSÃO N.º195 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 29 DE JANEIRO
Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro
SUMÁRIO: O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.
Antes da ordem do dia. - O Sr. Presidente anunciou, estarem na Mesa, para os efeitos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 39 089 e 39 090.
Consultada a Assembleia, foi o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes autorizado a depor no 1.º juízo criminal de Lisboa.
Foi denegada autorização para o Dr. Deputado Manuel Maria Vaz depor no tribunal de polícia.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Silva Dias, que agradeceu os votos de pesar manifestados pela Assembleia aquando do recente falecimento de uma sua filha: Pinto Barriga, para enviar para a Mesa um requerimento, dirigido ao Ministério competente, acerca do Caminho de Ferro da Beira; Manuel Domingues Basto, que chamou a atenção do Governo para certos factos que então a, ocorrer na região demarcada dos vinhos verdes, e António de Almeida, no sentido de serem garantidos aos oficiais que frequentam os cursos do Estado-Maior amplos conhecimentos de índole etnológica ultramarina.
Ordem do dia - Continuou a discussão na generalidade da proposta da lei orgânica do ultramar.
Usou da palavra o Sr. Deputado Mendes Correia.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 5 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 50 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Adriano Duarte Silva.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Cruz.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
António Abrantes Tavares.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão.
António Joaquim Simões Crespo.
António Júdice Bustorff da Silva.
António Maria da Silva.
António de Matos Taquenho.
António Pinto de Meireles Barriga.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
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Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Ameal.
João Cerveira Pinto.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim de Oliveira Calem.
Joaquim de Pinho Brandão.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís da Silva Dias.
José Pinto Meneres.
José dos Santos Bessa.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Mário Correia Teles do Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Vaz Monteiro.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Tito Castelo Branco Arantes.
Vasco Lopes Alves.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 70 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, para os efeitos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 39 089 e 39 090, publicados no Diário do Governo n.º 16, 1.ª série, de 24 do mês corrente.
Está na Mesa um ofício do 1.º juízo criminal de Lisboa a pedir autorização para nesse tribunal depor o Sr. Deputado Ribeiro Cazaes no dia 9 do próximo mês.
O Sr. Deputado, consultado, diz não ver inconveniente para a sua acção parlamentar em que a Câmara lhe conceda esta autorização.
Submetida à votação, foi concedida a referida autorização.
O Sr. Presidente: - Está também na Mesa um ofício da Subdirectoria da Polícia Judiciária de Lisboa em que pede seja informada sobre se o Sr. Deputado Manuel Maria, Vaz deseja ser ouvido relativamente a um caso ocorrido nas suas propriedades.
O Sr. Deputado, consultado, diz não desejar ser ouvido.
Foi denegada autorizarão.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado Silva Dias.
O Sr. Silva Dias: - Sr. Presidente: agradeço muito reconhecido a V. Ex.ª os sentimentos de pesar que gentilmente manifestou na sessão da Assembleia do dia 27, pela morte de minha filha. Permita também V. Ex.ª que aproveite esta oportunidade para agradecer aos Exmos. Srs. Deputados, meus ilustres colegas, as amáveis deferências com que me acompanharam nesse transe da minha vida.
O Sr. Presidente: - Está na Mesa um requerimento do Sr. Deputado Pinto Barriga, que vai ser lido.
Foi lido. É o seguinte:
«Requeiro, nos termos regimentais e constitucionais, paru mero efeito do conhecimento da história económica da Administração, a devida autorização para consultas no Ministério competente dos documentos relativos à Companhia do Caminho de Ferro da Beira, no caso de o Governo não tencionar publicar em livro branco os documentos elucidativos dessa operação».
O Sr. Manuel Domingues Basto: - Sr. Presidente: decidiram-me a usar hoje da palavra factos, que estão a passar-se na região demarcada dos vinhos verdes, que bem merecem, pela sua importância e pela repercussão que tem na economia regional e nacional, as atenções dos Srs. Ministro da Economia e Subsecretário de Estado da Agricultura.
É sabido que os viticultores do Norte do País, sem assistência técnica ante a invasão da filoxera, cuidaram de defender-se recorrendo às videiras americanas para porta-enxertos e valendo-se mesmo dos produtores directos, que, produzindo embora vinho de fraca qualidade, começaram, pelo seu fácil desenvolvimento e grande fertilidade, a ter a simpatia dos lavradores minhotos.
Esquecido o princípio moral e jurídico de que se deve obstar aos males no começo e não consentir que os erros se agravem, a cultura dos produtores directos invadiu a região dos vinhos verdes em proporções assustadoras de completo abastardamento do vinho verde, tão típico, tão característico, e tão apreciado quando proveniente das castas tradicionais na região.
As estâncias oficiais e os técnicos só repararam no mal quando ele tinha assumido já proporções de enorme calamidade.
E se nos organismos físicos é muito difícil extirpar o mal quando vem de longe, não é menor a dificuldade de remediar erros acumulados desde longa data em economia e produção, sobretudo quando esses erros conquistaram a simpatia das multidões, que, em regra, querem sempre ao que mais lhes agrada, e nunca, ou poucas vezes, o que mais lhes convém».
Foi necessário enfrentar o caso dos produtores directos - e eu recordo lis lutas que foi preciso sustentar para convencer a gente da província do Minho de que tinha de decidir-se pela enxertia do americano se queria ter a protecção e a defesa da lei para a sua região demarcada.
O nosso distinto colega nesta Assembleia Sr. Dr. Alberto Cruz recorda-se certamente da reunião a que presidiu, há cerca de dezasseis anos, no Salão Recreativo, em Braga, o de que foi o sacerdote Deputado que se encontra agora no uso da palavra nesta Casa quem naquela reunião mais se esforçou por levar a numerosa e irrequieta multidão que a ela acorreu a vencer sentimentalidades de inclinação para os produtores directos e votar a sua enxertia, como se impunha, para cumprimento da lei e para bem da própria região dos vinhos verdes.
Nunca me arrependi desta atitude, e creio ter prestado com ela um bom serviço à região dos vinhos verdes, embora deva, por amor a verdade, afirmar agora
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que, fora desta região, verifiquei não faltar quem quisesse que os Minhotos fizessem à pressa a enxertia do americano para invadirem a região demarcada dos vinhos verdes com os seus vinhos ordinários, colhidos em terras mais próprias para outras culturas, terras alagadiças, vinhos esses que não mereciam mais protecção que o fraquíssimo vinho dos produtores directos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas isto é apenas um pormenor na questão, como há tantos em muitas outras questões, e têm de ser inevitavelmente sentidos nas suas consequências por todos os que em qualquer assunto entram sempre com toda a sua lealdade e de] olhos fitos no bem comum e no interesse geral.
Começou-se assim, no Minho a enxertia dos produtores directos. Em volta dela alguns factos se passaram que, embora dentro da letra da lei, me parece que fugiram muito do seu espírito e do bem comum que se tem em vista atingir com toda a lei.
Se a culpa do erro praticado com o alargamento dos produtores directos na região dos vinhos verdes não era sómente das populações, mas sobretudo da falta de orientação técnica e oficial, tudo indicava que a reparação do erro se fizesse com o tempo e a demora proporcionais, e nunca abruptamente e de forma a provocar reacções e a despertar o odioso.
Houve de tudo, porém, na execução das determinações legais sobre enxertia dos produtores directos. Até houve quem, tendo pago a multa por não haver enxertado, ficasse em pior situação do que aqueles que nem enxertaram nem pagaram a multa.
Que se passou, Sr. Presidente? Simplesmente isto: houve em alguns concelhos do Minho centenas de lavradores que não enxertaram no prazo legal. Foram multados; e uns pagaram a multa, outros não se importaram com ela. E como estes eram em grande número, o Governo ordenou que fosse concedido novo prazo para a enxertia e restituída aos lavradores que a haviam pago a importância da multa aplicada.
Acontecia, porém, que a grande maioria destes tinha perdido o recibo do pagamento da multa. Pequenos lavradores com casa de habitação pequena e sem cofre nem ao menos escrivaninha para guardar os seus documentos, habituados a trazer a licença do carro de trabalho na fita do chapéu, alguns deles tinham até rasgado e queimado o recibo, certos de que o Estado é pessoa de bem e não lhes ia pedir outra importância para pagamento da multa já paga.
Só deram pelo erro quando souberam que o Governo prorrogara o prazo da enxertia e restituía a importância da multa. Nas tesourarias de finanças havia a prova de que a tinham pago. Como, porém, tinham perdido ou queimado o recibo, não lhes foi restituída a importância, visto que a lei prevê um processo dispendioso para a justificação de tais casos. E, assim, os lavradores que tinham pago a multa foram, na prática, castigados e premiados os relapsos e faltosos.
Mas também isto é um pormenor da questão, que se destaca apenas para demonstrar que a lei, pelas suas exigências burocráticas, pode deseducar e deixar de atender ao bem comum, e que até em matéria de execução da lei civil não deixa de ter aplicação a máxima do Evangelho de que «a letra mata e é o espírito que educa e vivifica».
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: a questão dos produtores directos está hoje regulada pelo Decreto-Lei n.º 38 525, de 23 de Novembro de 1951. São por esse decreto-lei proibidas a cultura e a venda de viveiros de produtores directos, embora «os serviços oficiais possam autorizar que determinados produtores directos se utilizem como porta-enxertos, nos casos especiais em que a opção de outros não seja técnica e económicamente viável». Tudo isto está certo, como lei e em princípio, visto que deixar o campo aberto à cultura dos produtores directos seria manter o erro ou pelo menos tolerá-lo em grande parte.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Se, porém, da lei e do principio que ela consagra se vai à sua aplicação sem critério, pode chegar-se ao extremo oposto de deixar agora os viticultores minhotos sem porta-enxertos e infligir-lhes danos graves, que o são também para a economia regional e nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por falta de assistência técnica o oficial é que os viticultores do Minho, levados apenas pelo legítimo instinto de defesa, alargaram a cultura dos produtores directos. Para que não praticassem o erro que cometeram era indispensável que os instruíssem e obstassem a que a falta tomasse as proporções que infelizmente chegou a ter.
Agora encontramo-nos em face do mesmo problema da falta de assistência técnica, mas noutro sentido. Baniram-se os produtores directos, mas, ou não se indicaram porta-enxertos que os substituam, ou os que só indicaram não dão resultado.
Tenho em meu poder a carta de um viticultor minhoto, homem culto e formado, que já foi durante anos presidente do Grémio da Lavoura de Braga.
São particularmente significativos e cheios- da trágica eloquência das realidades os dizeres dessa carta.
Queixa-se o viticultor - e a sua voz é apenas o eco de muitas queixas idênticas - de estar cansado de prestar a sua quinta para cobaia do ensaios que nunca dão resultado. Lamenta-se de ao fim de três anos após a enxertia se ver forçado a arrancar dezenas e dezenas de pés de videiras por falta de afinidade entre os porta-enxertos e os garfos de variedades regionais, ou porque os técnicos, à ligeira, se contentaram com indicar a. variedade de porta-enxertos exclusivamente à base o tendo apenas em conta a análise físico-química do terreno.
É a terra um organismo vivo, e se para indicar o melhor porta-enxertos se não atende ao grau de humidade do terreno, à incidência solar, à circunstância de na mesma propriedade haver o que o povo chama «veios» de terra diferentes, se para o eleito se tomam unicamente como indicação os dados da retorta ou do organismo sem vida que é o laboratório, as experiências falham e quem as paga é o viticultor.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Porque infelizmente é assim que só tem trabalhado, à pressa e sem estudar em concreto cada meio e cada caso, é que muito justamente se queixam os lavradores minhotos dos prejuízos que estão a sofrer.
Há ainda nos factos que estou apresentando e nos clamores da gente da minha região de que me estou a fazer eco nesta Casa um aspecto particular para que é também meu dever chamar a atenção do Governo.
Exactamente porque se repetem de ano para ano os clamores e protestos dos viticultores, entenderam os técnicos e as brigadas de fiscalização que deviam tolerar como porta-enxertos o produtor directo Jaquer, ao menos enquanto se não encontra, como diz o decreto-lei no período citado, outro porta-enxertos que seja económica e tecnicamente mais viável.
Esta tolerância permite-se, porém, duma maneira incompleta para as sub-regiões da região demarcada dos
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vinhos verdes, em que a cultura do vinho é em árvores, pelo sistema de enforcado, ou em ramadas altas.
Tal é o caso de Braga e de outros concelhos do Norte do País.
Em muitos deles as brigadas de fiscalização consentem o Jaquer no primeiro e no segundo ano, mas exigem impreterivelmente que no terceiro seja enxertado ou arrancado.
Mas porque a enxertia, no sistema de vinhas de enforcado ou de ramadas altas, precisa de ser feita quando o porta-enxertos atinge a altura devida, esta exigência das brigadas de fiscalização causa sérios prejuízos aos viticultores. É fácil às brigadas verificar se o Jaquer se destina a porta-enxertos ou não e se o viticultor tem na sua quinta ou nas suas propriedades videiras altas deste produtor directo com vista à produção de vinho e se deixou de enxertar logo que a videira se encontra na altura necessária.
Desde que cumpra e se limite a ter o Jaquer sem enxertar só até atingir a altura devida, parece que não deve ser punido. Trata-se, afinal, de uma interpretação humana e justa da lei, fora de empirismos rígidos e atendendo à realidade das coisas.
Numa carta que sobre o assunto recebi em fins do ano de 1952, aproximadamente na época em que a Igreja celebra a festa litúrgica dos Santos Inocentes, sacrificados à vaidade e ao furor de Herodes, chamava-se ao arranque ou enxertia do Jaquer desde que passe dos dois anos, a «degola dos inocentes».
Bem comparado, porque de facto não é por o Jaquer se conservar um ano mais à espera de atingir a altura própria para a enxertia que se adultera a pureza das castas regionais, que de facto é preciso manter; mal comparado, porém, visto que não há em Portugal, nem no Governo nem entre os agentes da fiscalização, quem seja capaz de representar Herodes no orgulho e na ferocidade.
Bem sei que os agentes de fiscalização podem invocar o velho aforismo de direito: dura lex sed lex. Eu, que já ouvi contar ao ilustre leader desta Câmara, Sr. Dr. Mário de Figueiredo, em conversa nos Passos Perdidos, que uma senhora que em Coimbra negociava em leques o traduzia assim: «é duro mas é leque», direi apenas que, se for aplicada na sua rigidez, em vez de leque a suavizar as faces pela frescura trazida com os movimentos, a lei será uma tremenda bordoada nos viticultores e na viticultura.
Resumindo o que fica dito, e como eco e porta-voz dos viticultores minhotos, peço licença para lembrar ao Governo:
a) Que se dê assistência técnica aos viticultores minhotos, indicando-lhes os porta-enxertos adequados às suas castas regionais, à natureza do solo e às condições do clima;
b) Que os técnicos assumam a responsabilidade das indicações que prestam, para que não aconteça que o Jaquer seja substituído por porta-enxertos que se não desenvolvem e têm de ser arrancados, com enxerto ou ainda sem ele, ao fim de dois ou três anos;
c) Que no caso de se verificar que o Jaquer é para certas regiões o porta-enxerto mais viável económica e tecnicamente, se faça a sua enxertia no ano de desenvolvimento mais de acordo com o sistema de cultura da vinha de cada sub-região;
d) Que se evite, por falta de assistência técnica, cair hoje no erro oposto ao que se cometeu ao deixar generalizar a cultura dos produtores directos americanos.
Sr. Presidente: antes de terminar quero associar-me às palavras ontem proferidas nesta Assembleia pelos ilustres Deputados Srs. Melo Machado e Alberto de Araújo, que aqui levantaram a sua voz contra a adulteração do vinho. De pouco valerá estarmos a defender as nossas castas regionais da adulteração que à qualidade dos nossos vinhos podem causar os produtores directos americanos se, por falta de uma fiscalização rigorosa, se consentir na falsificação deles pela mixórdia.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - O Sr. Deputado Melo Machado comparou o que certo comércio ganancioso e sem escrúpulos está a fazer ao milagre das bodas de Canaã. Não aplaudo a comparação. Em Canaã da Galileia, Cristo, pela força omnipotente do seu poder, mudou a água das talhas, abençoando-a, no melhor vinho do banquete, ao passo que os que se valem da água e de certas substâncias químicas para fazer vinho dão-nos uma mixórdia.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Tal acto, que é crime e não tem nada de milagre, é precisamente o contrário do que sucedeu nas bodas de Canaã. Feita, porém, esta reserva, até pelo respeito que se deve à Sagrada Escritura, aplaudo os dois oradores que ontem se ocuparam deste assunto. Sei bem a decepção que sofrem os minhotos quando vem a Lisboa e procuram vinho verde para as suas refeições. Seria interessante que as estatísticas nos dissessem quantas as pipas de vinho verde que na roda do ano entram em Lisboa e qual o número exacto das pipas de vinho que na capital se vendem como se fossem da região demarcada dos vinhos verdes.
A diferença indicar-nos-ia que para este ponto é necessária e urgente mais e melhor fiscalização.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. António de Almeida: - Sr. Presidente: o Diário do Governo do 26 do Dezembro passado publicou o Decreto-Lei n.º 39 053, que promulga a organização dos cursos de Estado-Maior, a ministrar no Instituto de Altos Estudos Militares.
Embora este diploma - que V. Ex.ª se dignou mandar inserir no Diário das Sessões n.º 188, de 16 do corrente, para efeitos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição - pudesse ser discutido na Assembleia Nacional, ou não ousaria fazer quaisquer considerações sobre o seu conteúdo se actualmente as nossas forças militares terrestres do ultramar não estivessem sob a superintendência do Ministério do Exército.
Este notável decreto-lei, que aplaudo calorosamente, declara no seu conciso mas bem elucidativo preâmbulo que, não obstante a experiência haver demonstrado a excelência do método de formação dos nossos oficiais do estado-maior seguido nos últimos anos, se torna indispensável remodelar o respectivo curso, de modo a poder dar-se completa satisfação a compromissos internacionais e a prementes necessidades, derivadas da criação de novos organismos de coordenação superior das forças armadas, carecidas de maior número de oficiais providos de mais ampla cultura não militar.
Para se atingir esta finalidade e sem alterar a estrutura do curso do Estado-Maior, em vez de um só curso com três anos de duração, instituem-se dois: o curso geral e o curso complementar, respectivamente com dois e um ano lectivos, e, a par das cadeiras de feição militar já existentes, criam-se outras destinadas a conceder aos futuros oficiais mais extensa cultura geral,
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como seja: Noções Gerais de Psicologia e Sociologia, Noções Gerais de Direito Constitucional e Direito Internacional Público; as três últimas cadeiras outra coisa não são mais do que o desenvolvimento e individualização de assuntos professados no antigo curso, e a cadeira de Economia Política, até aqui tirada nas Universidades e fazendo parte dos preparatórios para a admissão nesse curso, passa agora a ser frequentada no Instituto de Altos Estudos Militares.
Sr. Presidente: porque a cultura geral é preciosa para a formação do escol de qualquer classe social, não há dúvida de que os conhecimentos referidos hão-de valorizar extraordinariamente os nossos futuros oficiais do estado-maior.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por motivos tão evidentes que dispensam comentários, entre as novas e importantes cadeiras do curso do Estado-Maior considero fundamental a que prelecciona matérias de natureza psicológica e sociológica.
Como é natural, nos corpos do exército português hão-de vir a reunir-se homens de várias raças e com heterogéneos usos e costumes, e, por consequência, portadores de psicologia e preceitos sociológicos diversos. Ora semelhante diferenciação somato-étnica implica a necessidade do reconhecimento de alguns aspectos de antropologia cultural dos povos atrasados ou menos evoluídos do nosso ultramar, para que mais facilmente se compreendam as suas instituições tradicionais e as convenções sociais, a sua complexa psique e as estranhas normas que orientam as suas primitivas sociedades.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E que assim é, melhor do que eu o sabe S. Ex.ª o Ministro do Exército, Sr. General Abranches Pinto, tão distinto soldado como colonialista.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Por isso estou convencido de que no programa da cadeira do Noções Gerais de Psicologia e Sociologia figurarão adequados ensinamentos de índole etnológica ultramarina.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Desta sorte, com maior apetrechamento cultural dos nossos oficiais do estado-maior, haver-se-á contribuído de maneira bem eficiente para difundir, reforçar e esclarecer a mentalidade ultramarina num dos mais valiosos sectores das élites nacionais.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão na generalidade a proposta de lei orgânica do ultramar. Tem a palavra o Sr. Deputado Mendes Correia.
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: quando nesta Assembleia se discutiu, em 1951, a integração do Acto Colonial na Constituição, com algumas adaptações e modificações, tive a honra de exprimir abertamente o que pensava, especialmente em relação ao problema do indigenato e à necessidade do reconhecimento legal da estrutura heterogénea de muitas populações ultramarinas.
Agora, que, em execução das normas constitucionais então estabelecidas, a Assembleia se encontra na apreciação duma lei orgânica do ultramar que substituirá a anterior Carta. Orgânica do Império Colonial Português, não vou decerto embrenhar-me na discussão minuciosa, ponto por ponto, do texto da proposta do Governo ou do da redacção da Câmara Corporativa, tarefa evidentemente para especializados nas matérias de direito e de administração ali versadas. Mas não quero deixar de, embora com rapidez, dizer alguma coisa sobre os mais importantes aspectos políticos e humanos da orientação que me pareço dever informar aquelas matérias, na lógica dos nossos princípios tradicionais e das imperativas necessidades dos povos e da época em que vivemos.
Fiéis a princípios, devemos estar sempre prontos a rever problemas e processos, desde que a pressão dos factos imponha a aceleração de um ritmo ou as realidades internas ou externas aconselhem a ponderação da conveniência e da oportunidade de novas técnicas ou novas directrizes.
Não é isento de perigo fechar os olhos a algumas dessas realidades, obstinando-nos na recusa a qualquer mudança que a reflexão ou o bom exemplo recomendem. Mas não é menos perigoso oscilarmos ao sabor de inovações imprudentes e incessantes, quebrando a todo o instante a continuidade, a firmeza duma política que, para honra nossa, procura mostrar-se, não mutável e contraditória, mas tanto quanto possível subordinada á um pensamento rectilíneo, lógico, tradicional, aliás sem improgressivo imobilismo, mas com a legítima e útil margem de maleabilidade e realismo.
Nesta ordem de ideias, limitar-me-ei a algumas considerações sobre os aspectos referidos da proposta de lei orgânica do ultramar, não querendo, porém, omitir a menção, desde já, da impressão excelente que mo causa a intensidade da atenção que, neste como noutros lances, se verifica estar o Governo dispensando ao estudo e solução dos problemas fundamentais do ultramar português o carinho devotado com que acompanha a vida o as necessidades daqueles territórios, a rasgada decisão com que encara a realização ali não só de grandiosos trabalhos de valorização material e moral, mas também do transformações jurídicas e sociais, cuja simples enumeração causaria grandes inquietações a espíritos prudentes que espectáculos recentes de desagregação e perturbação de grandes impérios coloniais enchem de naturais preocupações.
A meu ver, os receios e as dúvidas que ao primeiro relance suscitam nesses espíritos algumas disposições da proposta do lei orgânica não devem subsistir. Decerto não pretendo formular previsões, a curto ou a longo prazo, sobre a marcha dos acontecimentos nas várias partes do Globo, e ninguém pode estar seguro de que se não darão reflexos, interferências e propagações de acontecimentos externos em territórios que a lógica e a justiça indicariam como imunes a qualquer agitação ou perturbação. Mas, tanto quanto é legítimo imaginar a coragem, o desassombro de que o Governo e a Câmara Corporativa dão prova representam a tranquilizadora confiança de que ninguém erroneamente interpretará a atitude tomada como sendo de fraqueza, de subserviência a estados da opinião mundial, de concessão ou lisonja a aspirações de certos sectores.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não, meus senhores. Os dois aspectos que me parecem mais salientes politicamente na proposta - o da constituição de conselhos legislativos de eleição e o da quase total omissão de referências à política indígena e ao indigenato -, esses dois factos não constituem modificações arriscadas da nossa política ul-
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tramarina, no sentido, por exemplo, do regime de transição para o self-government, regime tão favorito dos ingleses, por exemplo, numa política cujos resultados estão à vista de todos.
Não! Portugal não abandona os seus princípios de soberania, de integridade absoluta dos seus territórios ultramarinos, e não se desvia da política tendencial de unificação e de assimilação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Os conselhos legislativos não significam um preliminar do self-govermnent à maneira inglesa, mas conselhos provinciais com certas faculdades legislativas e deliberativas, dadas a distância da metrópole e a conveniência da expressão das opiniões locais. Mas tudo dentro de certos limites, nunca para além destes, e nunca sobretudo com risco da integridade nacional e desprestígio do representante do Governo Central. Os conselhos legislativos que se constituíssem em focos de perturbação e de autonomismos subversivos, aqueles que pretendessem transformar-se em câmaras de deputados de tipo demagógico, aqueles que quisessem ultrapassar os limites legais da sua competência, não poderiam subsistir. Estariam irremediavelmente condenados à dissolução por usurpação ou adulteração de funções, por esquecimento deplorável do seu verdadeiro papel. Automaticamente se destituiriam deste.
Então seria justo e admirável que os portugueses das províncias ultramarinas tivessem dois parlamentos - a Assembleia Nacional e o Conselho Legislativo - e os portugueses da metrópole apenas tivessem representação na primeira?
Aliás, da natureza dos colégios eleitorais para aqueles conselhos resultará o carácter político dos mesmos. Há quem os veja como puras expressões do sufrágio universal, deixando ha obscuridade o papel relativo dos colonos de ascendência europeia e das populações autóctones.
Ora, forças corporativas - não apenas económicas, mas também morais e espirituais -, contribuintes (individuais e colectivos), população indígena, etc., terão voz ao lado dos eleitos do sufrágio universal. Não tenhamos receio de que todas essas delegações de interesses e proveniências tão diversas se unam num propósito autonomista ou subversivo comum. Vejamos a diversidade de atitudes de delegados nativos e de representantes de colonos europeus na discussão provocada recentemente pela Inglaterra para a constituição de uma federação africana da Niassalândia e das Rodésias do Norte e do Sul.
Mas admitamos que todos se entendiam para o mal, para o erro, para a agitação. A lei conteria o remédio para tal atitude. Aliás, quem promulga as disposições é o governador-geral. Se não concorda, elas não podem ser lei, salvo se o Governo Central assim determinar.
Enfim, o Conselho Legislativo, em que os elementos oficiais, os técnicos, tenham voz esclarecedora, o não voto (para os poupar eventualmente a ficarem em minoria), constitui - se se conservar dentro das suas atribuições - um útil eco de variados sectores da opinião local - sectores de interesses e tendências heterogéneos, mesmo frequentemente antagónicos.
Eu rendo homenagem ao excelente espírito de colaboração e do simpatia que, na generalidade, as populações nativas do ultramar português testemunham a Portugal. Rendo homenagem à devoção patriótica dos colonos, dos admiráveis e laboriosos portugueses de origem metropolitana, que tem sido obreiros magníficos do engrandecimento daqueles territórios.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas não ignoro que, entre uns e outros, pode haver elementos transviados por ideias erróneas duma auto-suficiência sua em relação à metrópole. Como se enganam tragicamente uns e outros! Então de nada valem e valeram os esforços e sacrifícios metropolitanos? Dinheiro, braços, sangue, inteligência, técnicos, soldados, professores, missionários, médicos e assistência, tudo a metrópole teria dado para que pouco mais de 150 000 portugueses pudessem excluir 8 500 000 compatriotas dum património que é afinal de todos? Há no ultramar grandes trabalhadores, grandes homens de acção, pessoas das mais altas capacidades, verdadeiros escóis. Mas na metrópole também os há, e todos - uns e outros - não são em demasia para continuar Portugal, dum e doutro lado do oceano.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ainda agora se anunciou que setenta e um geólogos estrangeiros vão fazer prospecções de minérios radioactivos em Angola e Moçambique. Onde estão afinal os nossos geólogos de cá e de lá? Verifica-se que todos juntos não bastam para a tarefa? Que tristeza sinto!
O caso do Conselho Legislativo na Índia reveste carácter especial. Deu-se tradicionalmente à Índia Portuguesa a designação de Estado. Mas nem assim creio que a criação daquele Conselho ali suscite interpretações erróneas dum enfraquecimento da intransigência portuguesa no que respeita à soberania nacional nos nossos territórios indianos. Não duvido da lealdade dos habitantes destes a uma nação e a um povo que tão fraternalmente se uniram com eles e colocaram naturais da Índia em magistraturas das mais altas deste país. Mas também não duvido da sua inteligência, porque os indo-
portugueses sabem que não encontrariam sob qualquer outra bandeira a calma e feliz mediania, a afectuosa e franca solidariedade, que desfrutam sob a bandeira de Portugal.
Há anos, num inquérito sobre preferências raciais na África do Sul, os indianos ali residentes votaram com particular simpatia pelos Portugueses. Estou certo de que análogo inquérito daria resultado semelhante no perturbado Quénia, onde pessoalmente verifiquei há dois anos o ambiente carinhoso de que Portugal desfrutava não só entre indo-portugueses mas também entre outros indianos ali residentes.
Entre parêntesis, direi que ao passo que a Casa do Portugal é em Nairobi, e muito bem, uma verdadeira Casa da índia, os Indianos vivem ali em separação dos outros europeus.
Visitei um grandioso e belo parque municipal que foi abandonado por estes quando começou a ser frequentado pelos Indianos. Felizmente, nós, portugueses, manifestamos a maior divergência em relação a factos como este, bem tristes, de indevida segregação racional.
Ainda entre parêntesis, eu quero dizer-lhes que estive também no seio da tribo dos Quiquios, onde existe essa famosa seita secreta dos Maus-Maus, a que se atribuem tão graves perturbações, desordens, crimes, etc., naquela região africana. Alguns têm um nível de vida que eu pude concretizar numa fotogravura de um livro meu: um casal quiquio, numa excelente residência, tomando o chá das cinco horas...
Pois, apesar disso, a solidez do domínio europeu em regiões destas nada é comparada com a da soberania portuguesa nos nossos territórios.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - A razão sabe-se muito bem qual é. Nenhum povo é mais franco, aberto, acessível a todos os outros povos e raças do que o nosso.
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30 DE JANEIRO DE 1953 559
Mas, voltando ao meu toma, o ambiente que temos entre indianos de vários territórios estrangeiros é, afinal, o reconhecimento da atitude fraternal dos Portugueses. Não creio que esse ambiente se tenha modificado, se possa modificar, porque também não creio que possamos algum dia abandonar a nossa tradição gloriosa de fraterno universalismo cristão.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Outro ponto importante que desejo versar é o respeitante às escassas referências da proposta de lei ao regime de indigenato que subsiste nalgumas das nossas províncias de além-mar.
Na primeira impressão fiquei surpreendido. Depois, melhor esclarecido, achei bem, e vejo mesmo no facto a expressão duma tendência para uma unificação política e jurídica que preconizei nesta Assembleia aquando do debate constitucional. Pronunciei-me então em favor da generalização da cidadania a todas as populações portuguesas do nosso ultramar, concomitantemente com a supressão duma condição genérica de indigenato e da própria expressão jurídica «indígena». Afirmei - e conservo-me fiel a essa convicção - que a existência legal de - estatutos especiais para grupos de população que pelo seu grau de civilização ou pelos seus costumes próprios não pudessem enquadrar-se perfeitamente no regime metropolitano de cidadania resolveria as dificuldades emergentes desse condicionalismo próprio, mas sem necessidade de se falar sequer, genericamente, em indígenas e indigenato.
O meu alvitre não foi então adoptado, mas vejo com satisfação que a proposta governamental de lei orgânica, sem deixar de entrar em conta com as particularidades de alguns territórios e populações, toma como fórmula fundamental a da possível unificação, no padrão, que direi civilizado, metropolitano.
Subsistem naturalmente as disposições constitucionais relativas a indígenas, a estatutos especiais, etc., mas é visível que se considera esse regime como sendo de transição, de adaptação passageira. Estabelece-se uma forma especial de representação da população indígena nos conselhos legislativos, reconhece-se a propriedade gentílica, admitem-se, não tribunais indígenas, mas julgados municipais, em que a autoridade administrativa pode ser o juiz, mas a hierarquia, a arquitectura, a disciplina, estão dentro dos moldes do direito civilizado, por maior atenção que em casos numerosos mereça o direito nativo, o costume.
Admitiu-se mesmo - e eu concordo - que as intendências não constituam escalões normais da divisão administrativa, mas funcionem apenas como entidades suplementares, onde os problemas de política indígena exijam especial atenção e vigilância. Por mim, entendo mesmo que não ficava mal consignar expressamente nesta lei que seriam exigidas responsabilidades não apenas disciplinares, mas também criminais, a quaisquer funcionários que violassem os preceitos constitucionais referentes ao trabalho indígena.
Creio na probidade e humanitarismo do nosso funcionalismo ultramarino em geral, mas não é ofender uma corporação consignar penalidades severas a quem, dentro dela, faltar a deveres elementares de ética e de justiça.
O mesmo penso em relação a empresas que violarem estes preceitos no recrutamento e utilização de mão-de-obra.
Considero como de aplaudir de modo especial o artigo 71.º da proposta do Governo. Ele condensa de modo feliz, em síntese lapidar, os objectivos fundamentais da acção ultramarina de Portugal dentro da Constituição e das nossas tradições civilizadoras.
Aplaudindo igualmente de maneira especial os preceitos do artigo 80.º da proposta do Governo tendentes à difusão interna da cultura portuguesa em todo o ultramar e ao estreitamento dos laços espirituais entre este e a metrópole, não posso, porém, deixar de formular a tal respeito alguns reparos. Assim, não sei como se irão efectivar os n.ºs I e II do mesmo artigo, referentes à acção «das Universidades portuguesas e institutos afins» nos estabelecimentos de ensino do ultramar. Porquê uma total omissão de qualquer referência especial à Escola Superior do Ultramar e, no que respeita à investigação científica, à Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar ou a qualquer organização análoga, cuja existência é axiomática em países civilizados com o papel do nosso? Decerto as Universidades e escolas superiores e técnicas de Portugal tem uma função indeclinável na formação e orientação de pessoal especializado do nosso ultramar, e ilusórias são as aspirações dos seus diplomados que por lá julguem poder prescindir do forte laço espiritual que os prende e deverá sempre prender aos estabelecimentos portugueses de ensino que os educaram e diplomaram.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas é nessa acção formativa e numa irradiação cultural menos directa que estes estabelecimentos influirão no ensino e na investigação nos territórios ultramarinos.
Não possuímos, por exemplo, a tradição inglesa dos colégios universitários, em vigor, por exemplo, nas Universidades negras de Achimota e de Makerere, respectivamente da Costa do Ouro e da Uganda, ou na de Yaba, na Nigéria.
Aliás o que interessa, nos pontos de vista cultural e nacional, não é a criação próxima de escolas superiores em regiões que não possuem ainda massas consideráveis de candidatos à sua frequência útil, nem escóis docentes em proporção bastante.
As bolsas de estudo a que se refere o n.º V do artigo 80.º evitarão a perda de valores, de capacidades. Por outro lado, o progresso e a difusão da cultura no ultramar estarão mais eficazmente assegurados por agora com centros e institutos de cultura e investigação, já previstos na lei que reorganizou a Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar e que até já foram dotados nos orçamentos de Angola e Moçambique do ano de 1952.
Esses centros e institutos congregarão esforços de estudiosos da metrópole e do ultramar, em perfeito espírito de colaboração e sem rivalidades, científica e politicamente inadmissíveis. Repito, Sr. Presidente, o que há pouco disse: uns e outros não são bastantes para a grandiosidade da tarefa que lhes cabe imperativamente. Temos excelentes modelos desses estabelecimentos nos institutos franceses de Dacar e de Madagáscar, nos belgas I. N. E. A. C. e I. R. S. A. C., etc.
Isto não exclui a realização, ainda, de algumas missões com elementos - sendo possível - da metrópole e do ultramar. Por mim não me parece que devam deixai de se levar a termo satisfatório os trabalhos de missões científicas cuja instituição honrou Portugal.
A investigação científica é, em toda a parte, dispendiosa, demorada, pouco espectacular. Entrámos, felizmente, num caminho plausível. Não devemos renunciar, ou cruzar os braços, não raro desperdiçando mesmo os sacrifícios e esforços anteriormente feitos por estudiosos e pela Nação. Eu sei que é triste sestro de muita gente denegrir todo o labor bem intencionado, procurar invejosamente aniquilar toda a iniciativa alheia, as mais cheias de inteligência, de dedicação e de fé. Mas as entidades responsáveis não vêem os problemas com olhos míopes e entendimentos mesquinhos. Tenho fé.
Vozes: - Muito bem!
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560 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 195
O Orador: - Tendo aludido à colaboração de elementos metropolitanos e ultramarinos nos institutos e centros a criar no nosso ultramar, ocorre-me que há anos sustentei nesta Câmara o interesse que haveria, a meu ver, para a unidade nacional na existência, tanto quanto possível, de quadros comuns de funcionalismo, especialmente técnico, para a metrópole o para os territórios ultramarinos. Não sei se alguém reparou na minha sugestão. Decerto passou como inviável e utópica para alguns daqueles que lhe concederam um momento de atenção.
Ulteriormente, o Serviço Meteorológico Nacional englobou o nosso ultramar. As guarnições militares deste passaram também a depender do Ministério do Exército, e não do do Ultramar. Houve decerto ponderosas razoes para este facto, mas, no meu modesto parecer, talvez a unidade de quadros entre a metrópole e as províncias ultramarinas tivesse mais urgente indicação do que a unificação no campo militar. Não ponho agora a questão, aliás já aqui largamente debatida. Esboço um apontamento, a que junto o referente à evolução do regime aduaneiro prevista no artigo 77.º
Também desejo, ainda a propósito do artigo 80.º, aludir ao texto do seu n.º VII, referente às línguas vernáculas ou nativas no ensino no ultramar. Sou um apologista caloroso da difusão da língua portuguesa. Mas tenho por esta, pelo idioma sagrado que minha mãe me ensinou a falar, um afecto bastante profundo e enternecido para que não reconheça a outrem, com o maior respeito, o direito de consagrar igual afecto, um quase religioso culto, à sua língua materna, por mais humildo e bárbara que esta seja, por mais diversa que esta seja da minha.
Reconheço, porém, ao mesmo tempo, que os idiomas nativos constituem frequentemente, em virtude da sua restrita expansão, das suas limitações vocabulares e, sobretudo, da falta de correspondente literatura escrita, instrumentos de cultura, e de progresso inferiores à língua portuguesa.
A política linguística dos países que praticam a discriminação racial pode mesmo visar a conservação dos mais restritos falaces nativos como meio de segregação, de isolamento. A nossa política linguística não é, evidentemente, a mesma, pois temos intuitos diversos, bem diversos. Se, por um lado, não devemos desrespeitar os idiomas alheios, não devemos, por outro, deixar de procurar que a língua portuguesa venha a ser o meio comum, normal, de compreensão recíproca, do difusão cultural, de assimilação.
Não me aflige que, como até sucede em países altamente civilizados, um bilinguismo se estabeleça nalgumas populações. Aliás, no caso da maioria das populações do nosso ultramar, esse bilinguismo seria transitório. É natural que o idioma de maior expansão venha a prevalecer pouco apouco, pela maior amplitude de expressão que faculta. Mas que seja um processo natural de evolução glossológica que entre em acção, nunca o resultado duma ofensiva legal contra o idioma nativo. E ainda independentemente do interesse científico - que não está em causa - do estudo deste.
À parte estas pequenas reflexões, que não implicam restrição de maior ao pensamento de progresso o unificação que domina e orienta a proposta de lei, eu manifesto, em suma, a minha concordância com as linhas gerais desta e com aquele pensamento orientador.
Na proposta em discussão ressaltam ao meu espírito como aspectos mais marcados:
a) O caráter electivo dos conselhos legislativos dentro de atribuições bem definidas e com garantia da integridade nacional, mas com evidente intuito de interessar as populações, os órgãos e os elementos locais no esclarecimento dos problemas próprios; b) A progressiva redução da condição de indigenato como regime genérico, no sentido de uma unificação jurídica, mas sem abandono das normas constitucionais e morais de protecção o bem-estar dos nativos.
Assim, Sr. Presidente, sinto que, apesar de certa descentralização, se está num caminho cujas vantagens tenho há muito proclamado: o caminho de uma integração geral e profunda, de uma unificação dentro do possível e do justo, da maior solidariedade dos territórios e das gentes cujo conjunto, firme, harmónico, intangível e sagrado, é a Nação Portuguesa, é Portugal.
Tento dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - A próxima sessão será na terça-feira 3 de Fevereiro, à hora regimental, sendo a ordem do dia a mesma que estava marcada para hoje.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 5 minutos.
Sr. Deputados que entraram durante a sessão:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Alberto Henriques de Araújo.
André Francisco Navarro.
António de Almeida.
António Calheiros Lopes.
António Jacinto Ferreira.
Artur Proença Duarte.
João Alpoim Borges do Canto.
Jorge Botelho Moniz.
D. Maria Baptista dos Santos Guardiola.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Ricardo Malhou Durão.
Salvador Nunes Teixeira.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Américo Cortês Pinto.
António de Sousa da Câmara.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão,
Délio Nobre Santos.
Diogo Pacheco de Amorim.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Henrique Linhares de Lima.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
José Cardoso de Matos.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel de Sousa Meneses.
Miguel Rodrigues Bastos.
Vasco de Campos.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA