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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 223

ANO DE 1953 21 DE MARÇO

V LEGISLATURA

SESSÃO N.º 233 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 20 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos. Srs. Gastão Carlos de Deus Figueira
José Guilherme de Melo e Castro

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 50 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 219 e 220 do Diário das Sessões, com uma rectificação do Sr. Deputado José Meneres quanto a este último.
O Sr. Presidente informou estarem na Mesa, para os efeitos do § 3.º do artigo 109º da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 39 128 e 39 130 e também haver sido recebido um oficio da Presidência do Conselho a solicitar autorização da Assembleia para que S. Ex.ª o Sr. Presidente da República possa, deslocar-se do Pais em visita oficial a Espanha; esse oficio será submetido à deliberação da Assembleia numa próxima sessão.
Usaram da palavra os Sr. Deputados Galiano Tavares, acerca da» deficiências no ensino superior de Arquitectura, e Ernesto de Lacerda, a solicitar providências para a reparação da estrada nacional n.º 350, que serre a barragem do Cabril.

Ordem do dia. - O Sr. Deputado Manuel Cerqueira Gomes realizou o seu aviso prévio sobre a Previdência Social.
Seguidamente, foi lida, na Mesa a resposta, de, S. Ex.ª o Ministro das Corporações ao aviso prévio do Sr. Deputado Cerqueira Gomes, enviada pela Presidência do Conselho, que será publicada no Diário das Sessões.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 30 horas.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 40 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Bartolomeu Gromicho.
António Cortês Lobão.
António Joaquim Simões Crespo.
António de Matos Taquenho.
António Raul Galiano Tavares.
António dos Santos Carreto.
António de Sousa da Câmara.
Armando Cândido de Medeiros.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Diogo Pacheco de Amorim.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Frederico Maria de Magalhães e Meneses Vilas Boas Vilar.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Jaime Joaquim Pimenta Prezado.
João Ameal.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim de Oliveira Calem.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Diogo de Mascarenhas Gaivão.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Pinto Meneres.
José dos Santos Bessa.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Cerqueira Gomes.

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Manuel Domingues Basto.
Manuel França Vigon.
Manuel Hermenegildo Lourinho.
Manuel José Ribeiro Ferreira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Marques Teixeira.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancela de Abreu.
Ricardo Vaz Monteiro.
Sebastião Garcia Ramires.
Tito Castelo Branco Arantes.
Vasco Lopes Alves.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 48 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 50 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 219 e 220 do Diário das Sessões.

O Sr. José Meneres: - S. Presidente: pedi a palavra para fazer a seguinte rectificação ao Diário n.º 220: a p. 922, col. 1.ª, 1. 34.ª, onde se lê: «receitas», devo ler-se: «servidões».

O Sr. Presidente: - Não havendo mais nenhum Sr. Deputado que peça a palavra sobre estes números do Diário, considero-os aprovados, com a rectificação apresentada.
Está na Mesa. para os fins do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Diário do Governo n.º 46, 1.ª série, de 19 do corrente, que contém os Decretos-Leis n.ºs 39128 e 39 130.
Igualmente está na Mesa um ofício do Sr. Presidente do Conselho a solicitar autorização da Assembleia para Sua Excelência o Senhor Presidente da República poder ausentar-se do País em viagem oficial a Espanha. Vai ser lido esse ofício.
Foi lido. É o seguinte:

Senhor Presidente da Assembleia Nacional-Excelência. - O Governo tem a honra de comunicar haver sido diplomaticamente concertada uma viagem oficial a Espanha de Sua Excelência o Presidente da República Portuguesa, a realizar em Maio, a convite do Chefe do Estado Espanhol. Esta viagem, que corresponde à visita oficial que Sua Excelência o Generalíssimo Franco fez a Portugal em 1949, inscreve-se na política de bom entendimento e amizade que felizmente liga as duas nações da Península, e dela há a esperar benéficos resultados. para o desenvolvimento das excelentes relações entre Portugal e a Espanha.
Não pode, porém, por força do artigo 76.º da Constituição, o Chefe do Estado ausentar-se para país estrangeiro sem assentimento da Assembleia Nacional e do Governo. Tendo o Governo no Conselho de Ministros de 17 do corrente dado por sua parte assentimento àquela visita, venho rogar a V. Ex.ª o obséquio de submeter o caso à Câmara, para efeito do cumprimento da citada disposição constitucional.
A bem da Nação.

Presidência do Conselho, 20 de Março de 1953. - O Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar.

O Sr. Presidente: - Este oficie será submetido à deliberação da Assembleia numa das próximas sessões.
Tem a palavra antes da ordem do dia o Sr. Deputado. Galiano Tavares.

O Sr. Galiano Tavares: - Sr. Presidente: numa das últimas reuniões da Câmara Municipal de Lisboa apreciou-se com decisão e clareza de ideias a expansão arquitectónica da capital e acentuou-se1 com certa energia:
Enquanto existirem casas miseráveis não pode haver uma Lisboa monumental.
Na verdade, e segundo o censo de 1936, viviam em barracas ou em furnas, clandestinamente, em Lisboa 41 796 pessoas; em quartos ou partes de casa alugados 31 834 famílias - 150 000 pessoas.
Exaltando em seguida a actividade municipal, que tem sido, na verdade, extraordinária, exprimiram-se votos para que seja posta em execução a reforma do ensino das Belas-Artes, consoante a proposta aprovada em 20 de Abril nesta Assembleia Nacional. O ilustre vereador que assim falou, evocando Duarte Pacheco quanto à sua esclarecida o prodigiosa visão e propósitos de permanente colaboração diferenciada entre o arquitecto, o engenheiro e o construtor, formulou votos para que se fortaleça essa concepção, para bem da cidade e dos seus habitantes.
O Sr. Presidente, apreciando os temas enunciados e desenvolvidos quanto ao problema da arquitectura citadina, afirmou, segundo consta dos jornais:
A falta de gosto, de escola ou de monumentalidade que parece ter fundamento em causas históricas, não pode ser suprida pelo serviço público, até mesmo porque não é seguro que o bom gosto tenha assento obrigatório nos departamentos municipais.
E prosseguiu:

Debatem-se no Mundo em congressos e conferências os conceitos e os métodos sempre em busca de realizações apropriadas aos ambientes, às condições próprias aos usos e costumes.
E acaso da competência dos serviços municipais a intervenção em tal plano? Não, a Câmara não pode. substituir-se à escola nem menosprezar o diploma.
E se o problema for afinal de formação, ainda é a escola n responsável.
Sr. Presidente: do relatório do I Congresso Nacional de Arquitectura, no ano de 1948, extraio uma das conclusões das teses apresentadas:
Proceder à reorganização do ensino da arquitectura no sentido de o tornar mais concordante com as necessidades e progresso da vida contemporânea.
Decerto em obediência a este pensamento dominante, o Governo apresentou em Janeiro de 1950 uma proposta de reforma dos estudos de Arquitectura, largamente informada pela Câmara Corporativa, discutida com interesse nesta Assembleia Nacional, aprovada com ligeiras alterações e promulgada na Lei n.º 2043, em Julho de 1950.
A falta de regulamentação desta lei implica a vigência do Decreto n.º 21 662, de Setembro de 1932, considerado pouco depois como imperfeito, pelo que se constituiu desde logo uma comissão para elaborar nova reforma Diário do Governo, 2.ª série, de 6 de Julho de 1936), com o Decreto adicional n.º 34 607, de 1945, e pelo

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qual se criaram as cadeiras de Urbanologia, Projectos e Obras de Urbanização.
O Sr. Presidente da Câmara Municipal de Lisboa tem razão: «se o problema for afinal de formação, ainda é a escola a responsável».
Nas circunstâncias em que vivem, com um reduzido corpo docente - em Lisboa, oito professores, três contratados e dois assistentes, para uma frequência de quinhentos alunos; e no Porto, quatorze professores e dois assistentes, para uma frequência equivalente, em regime permanente de acumulação de cadeiras -, as escolas de arquitectura não poderão cumprir com eficiência a sua missão.
O problema da arquitectura, tal como em todas as épocas de grandes realizações, parte de princípios que exigem segurança e estabilidade - os princípios construtivos.
Sendo a arquitectura - consubstancia-se ainda como resultado do Congresso a que me referi - uma arte e a arte um fenómeno da vida, a criação dos elementos arquitectónicos deve relacionar-se com os elementos da própria natureza; isto ó, do lugar determinado onde se viva e coadjuvar esses elementos com tradições históricas, económicas e sociais.
A estandardização da arquitectura não será a monotonia?
A arquitectura funcional não significará a materialização dos princípios basilares da estética? No prefácio da Arquitectura Social, de Neutra, escreve-se:

Arquitectura social é aquela que se situa acima do nível individualista, pelo que é realidade incontroversa falar hoje em construção sem admitir dois preceitos essenciais - urbanismo e arquitectura.
Mas também ó preciso não esquecer de que, se o homem ó feito, como também então se acentuou, pela sociedade, também a sociedade é feita pelo homem.
Com efeito, equacionando as necessidades da época e os problemas que surgem, não podemos deixar de falar nos novos processos de construir.
Sr. Presidente: no decorrer dos últimos anos foi reformado todo o ensino médio, de um modo geral, nas suas diferentes modalidades. Ao actual Ministro da Educação Nacional se deve essa renovação, quer quanto aos sistemas, quer quanto à situação dos professores.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Há todos os motivos para confiar que outro tanto venha a suceder em relação às escolas superiores de arquitectura.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Ernesto de Lacerda: - Sr. Presidente: no extremo Norte do distrito de Leiria encontra se em curso uma das mais importantes, senão a mais importante, das obras públicas que se estão presentemente realizando no Puís.
Refiro-me à barragem que está a erguer-se em grande ritmo de trabalhos nas proximidades da vetusta vila de Pedrógão Grande e no local onde o rio Zêzere corre em cachoeiras susurrantes nos recôncavos profundos do Cabril, por entre rudes e majestosas penedias.
O acesso a esta obra, que será um apreciável elemento do nosso progresso pela energia eléctrica que há-de produzir, é feito na margem direita do rio Zêzere, através da estrada nacional n.º 300, que de Figueiró dos Vinhos conduz àquela referida vila.
Esta estrada encontra-se em parte do seu percurso em lamentável estado de conservação.
S. Exa. o Sr. Ministro das Obras Públicas, incansável paladino do interesse dos povos, que está sempre atento aos problemas da sua pasta ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -... quando na sua peregrinação pelo País em visita de estudo e de trabalho percorreu aquela estrada no dia 30 de Junho de 1949, teve oportunidade de directamente verificar a imperiosa necessidade da sua urgente reparação.
Por isso mesmo, deve-se àquele ilustre membro do Governo a reparação, já efectuada, de um primeiro troço, na extensão de 10 km, e a inclusão no plano da Junta Autónoma de Estradas para os anos de 1952-1953 do outro troço, que se encontra quase intransitável.
Sabe-se quanto o bom estado das vias de comunicação é indispensável para satisfazer as exigências da vida moderna, assegurando a ligação rápida e cómoda entre os aglomerados populacionais, e quanto estas vias são, por isso mesmo, imprescindíveis para o desenvolvimento e para o progresso dos povos.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Graças ao Estado Novo, casos como o desta estrada constituem verdadeira excepção, em face do muito que se tem feito em prol das estradas do País.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É inegável que o problema das estradas se pode considerar quase inteiramente resolvido e é fora de dúvida que com essa resolução se abriram novos horizontes à marcha progressiva da nossa restauração económica.
A obra do Governo e da Junta Autónoma de Estradas, criada em Junho de 1927, tem sido verdadeiramente notável e grandiosa ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -... se olharmos a que partiu do estado de quase completa ruína em que se encontrava a nossa rede de estradas àquela data.
Os benefícios resultantes de tal obra, que compreende trabalhos de construção, de grande reparação e de conservação, tiveram o maior e mais útil reflexo na vida do País, o que facilmente se verifica e pode ser avaliado em face do constante e considerável aumento de circulação de veículos de tracção mecânica.
Porque assim é, mal se compreende que continue no estado deplorável em que se encontra a estrada a que me refiro, com os grandes prejuízos que dele resultam e atingem os interesses das populações de todo o Norte do distrito de Leiria.
O estado lamentável daquela estrada origina o desvio do trânsito para outras em melhores condições, torna mais onerosos os transportes e impede o afluxo de viajantes a toda aquela região, dotada de belezas naturais que a tornam especialmente fadada para o desenvolvimento do turismo.
Dai as constantes reclamações das entidades a quem compete velar pelos interesses e pela comodidade dos respectivos povos, que se sentem abandonados pelos Poderes Públicos e inferiorizados perante um estado de coisas que, por constituir excepção, mais se torna notório e gritante.
A circunstância de estarem em curso as grandiosas obras da barragem do Cabril, que podiam ser servidas

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- pelo menos em parte - por esta estrada, mais reforça a necessidade de urgentemente se proceder à reparação, que foi incluída no plano da Junta Autónoma o é tão necessária e tão justamente reclamada.
Já tive oportunidade de me avistar com o Sr. Director dos Serviços de Conservação da Junta Autónoma de Estradas e de lhe solicitar a sua valiosa intervenção no sentido de abreviar o início dos trabalhos, e apraz-me declarar que encontrei em S. Ex.ª a melhor boa vontade e o melhor espírito de compreensão para este assunto, pelo que lhe apresento o testemunho do meu sincero reconhecimento.
Porém, por razões que desconheço, ainda não foi designado dia para o concurso dos respectivos trabalhos.
Será por insuficiência de pessoal técnico?
Será antes por excessiva burocratização dos serviços?
Qualquer que seja a resposta a dar a estas perguntas e a explicação para a demora, urge remover os obstáculos com a brevidade exigida pela satisfação das legítimas e prementes necessidades que estão em causa.
Para que tal se consiga, permito-me chamar a esclarecida atenção e alto patrocínio do Sr. Ministro das Obras Públicas, a quem apresento o preito da minha homenagem pela notável obra de valorização do País que está realizando e de quem aguardo confiadamente a pronta solução deste caso.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Quero prevenir a Assembleia, designadamente a Comissão de Negócios Estrangeiros, de que numa das próximas sessões será submetido à apreciação da Câmara o Protocolo adicional ao Pacto do Atlântico Norte, sobre o qual já recaiu parecer da Câmara Corporativa.
Pausa.

O Sr. Presidente:-Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Consta a ordem do dia da efectivação do aviso prévio do Sr. Deputado Manuel Cerqueira Gomes sobre Previdência Social.
Tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Cerqueira Gomes.

O Sr. Manuel Cerqueira Gomes: - Sr. Presidente: mio quero começar pela história dos nossos seguros sociais obrigatórios. Seria fértil de ensinamentos, como é sempre para uma ideia a revisão da sua marcha, lembrar, com o ambiente de 1919, a viçosa legislação que despontou ria pujança daquela Primavera, o sonho que a embalou, a irrealidade que a comprometeu, o declínio triste e feio em que se submergiu.
Donde me interessa partir é do ano de 1933, em que se promulgou o Estatuto Nacional do Trabalho. Até essa data havia exclusivamente em Portugal a responsabilidade patronal pelos acidentes de trabalho e doenças profissionais. E é o artigo 48.º do Estatuto do Trabalho que afirma a intenção de se criarem, em realização progressiva, a as caixas ou instituições de previdência tendentes a defender o trabalhador na doença, na invalidez e no desemprego involuntário e também a garantir-lhe pensões de reforma», atribuindo aos patrões e aos trabalhadores obrigação de concorrer para a formação dos fundos necessários e deixando a administração das instituições para representantes de ambas as partes contribuintes.
Abriu-se efectivamente aqui o caminho da nossa Previdência Social, ao mesmo tempo que se marcaram as suas características essenciais. Logo um ano e meio depois se publicou a Lei n.º 1 884, em que se classificaram as instituições de previdência e se determinaram os princípios gerais da organização.
Esquematicamente posso dizer que os princípios eram: obrigatoriedade, generalidade e organização diferenciada, não unitária, e as instituições reconhecidas -a par duma classe que devia abranger os servidores do Estado, dos corpos administrativos e das associações de socorros mútuos ficavam limitadas a:

1.º Caixas sindicais de previdência (criadas por convenção colectiva de trabalho);
2.º Caixas de reforma ou de previdência (agrupando indivíduos que exerçam determinada profissão, serviço especializado ou actividade diferenciada, ou ao pessoal duma só empresa);
3.º Caixas de previdência de Casas do Povo;
4.º Casas dos Pescadores.
Sorte diversa correram estes quatro grupos de instituições. O mais feliz foi o das Casas dos Pescadores. Levantaram-se no continente vinte e três destas instituições, que englobam ao redor de 46 000 sócios efectivos e que, por um sistema de «quinhões, partes e percentagens» no produto da pesca, conseguem um volume de receitas suficiente para cobrir as despesas da assistência médica como as da acção cultural.
O menos venturoso foi o das Casas do Povo. Com a reforma de 1940 passaram as Casas do Povo a ser elas próprias as instituições de previdência, firmou-se a obrigatoriedade de inscrição e ampliou-se a receita, decretando, para além das taxas que já vigoravam quanto ao trigo e ao vinho, a tributação sobre o arroz, o azeite, a cortiça, a resina e a lã. Mas o que chega ao fundo comum da Junta Central das Casas do Povo como contribuição dos organismos corporativos e de coordenação económica oscila pelos 6 000 contos, o montante das quotizações das Casas do Povo pouco excede os 18 000 contos e um total de receitas que anda pelos 35 000 contos de muito pouco vale para a previdência duma massa superior a 200 000 sócios efectivos, repartida por mais de 450 Casas do Povo.
Não se enxerga com facilidade melhor ventura dentro do dispositivo que nós temos: os salários do campo são muito reduzidos e só garantem pequenas contribuições; o custo da previdência tinha de ficar quase inteiramente do lado dos produtores. E pode bem responder-se que a lavoura não comporta o encargo, sabendo-se que, pelos cálculos feitos, a previdência exigiria uma soma equivalente à actual contribuição agrícola. Havemos de ver se os arranjos que proponho trazem para o problema outra solução.
Entre as duas sortes diferentes - a dos trabalhadores do mar e a dos trabalhadores da terra- coloca-se o resto da Previdência: os trabalhadores do comércio, da indústria, das profissões livres e de outras actividades ou serviços diferenciados. É o mundo das caixas de previdência, que abarca já mais de 1 milhão de pessoas, que se exprime por uma contabilidade superior ao milhão de contos anuais e que traz a força própria duma crescente expansão em todos os números designativos. Teve este mundo um caminhar acidentado: ao princípio, porque os passos eram lentos e curtos, não se deu bem pelo que trazia inerente; mas, quando a marcha se tornou mais veloz e mais ampla, pôde medir-se noutra projecção para onde nos levava em consequências doutrinárias e económicas.
Então, já lá vão mais de três anos, foi-lhe imposto um alto. Era prudente reflectir. Era indicado rever a

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organização. E todos os aspectos se denunciavam merecedores de exame, desde a estrutura administrativa ao campo de aplicação, ao esquema de benefícios, ao regime financeiro e à prestação dos serviços assistenciais. Estava em boa posição quem assim mandava. A revisão, que é sempre uma atitude científica, põe-se para os homens do Governo como um dever de consciência.
Os anos vão passando. E este problema, que é dos mais vultosos da nossa hora, e esta ideia, que é das mais belas do regime, continuam detidos. Temos já elementos para os rever? Podemos obstar a que os erros tanchem raízes mais fundas, as situações se compliquem no seu desarticulado e no seu indefinido? Ganhámos consciência bastante para rectificar doutrinàriamente, expurgando os enxertos de teor ou de finalidade contrários aos nossos princípios político-sociais?
Tenho estudado e oferecido a minha colaboração na Previdência Social o melhor que sei e posso. Pela força do cargo, pesado mas honroso, que a corporação dos médicos portugueses me confiou, tenho vivido, talvez mais profundamente do que ninguém, as realizações mais expressivas da nossa Previdência Social.
Na mesma atitude me mantenho hoje ao erguer aqui, até ao Governo, este magno problema, com a serena consciência e também com a perfeita responsabilidade do interesse que ele desperta no País: quero, ainda e simplesmente, ao lado de quantos trabalham para a reorganização da nossa Previdência Social, continuar no estudo e na colaboração. Tudo o que eu possa dizer tem assim de ficar num plano de crítica séria e objectiva.
Nunca também seria de outro modo, porque o impede a minha formação, para a qual, justo é confessá-lo, muito contribuem estes trinta e quatro anos que já levo de trabalho científico, na disciplina da Medicina, onde os factos se movem no campo mais objectivo, a verdade se busca pela verdade e a revisão dos conceitos se propõe e impõe a toda a hora.
Estou certo de que não abandonarão o mesmo terreno alto aqueles que, porventura, participem no debate. Todos conhecem -e melhor do que eu a função que nos cabe nestes lugares: a de dar ao Governo e ao Pais a certeza de que estamos atentos ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -... de que nos entram na inteligência e no sentimento todos os problemas dos diferentes andares em que se hierarquiza e se entrelaça a vida da Nação, desde os morais aos sociais e desde os espirituais aos económicos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Só uma coisa peço aos que me escutam: é que se lembrem de que não sou técnico de previdência ou de seguros, nem tenho por mim as repartições especializadas, e me perdoem se; para. fora das grandes linhas da construção doutrinária e administrativa, eu cair em erros de pormenor.
Ora o que me oferece o aspecto actual da nossa organização de Previdência Social? Como está edificado até agora? Tem erros de construção? Se os tem, como rectificá-los? E em que perspectivas delinear ç remate do edifício?
O que vou dizer não é matéria perfeitamente nova. É apenas o enfeixamento e a culminação de ideias que já apontei na Assembleia Nacional ao discutir a lei de combate à tuberculose, que já referi no parecer n.º 35 da Câmara Corporativa sobre a lei de combate às doenças infecto-contagiosas e que andam espalhados por estudos vindos a lume ou nas revistas médicas ou nos jornais do grande público.
É também certo que algumas das sugestões e das soluções que vou enunciar coincidem com outras que estão gravadas por diferentes lados ou que ouvi de bocas autorizadas; mas a coincidência não significa que eu filtre para aqui posições ou critérios oficiais nem me obriga claramente à reserva das opiniões.
Vou então desenvolver o exame pela ordem que tracei na minha nota:

I) ESTRUTURA ADMINISTRATIVA. - A primeira protecção obtida para os nossos operários foi a de doença. E começaram a usufruí-la pela acção dos sindicatos. Nos dez anos que se seguiram à promulgação do Estatuto do Trabalho Nacional, ou seja nos primeiros oito de vigência da lei que criou as instituições de previdência e as separou em grupos, foram os sindicatos, e não as caixas, que dominaram na assistência médica então prestada. Ainda em 1944 as caixas sindicais gastaram apenas 673 contos com a assistência médica e os sindicatos despenderam quase três vezes mais com as mesmas despesas.
Por essa altura arrancava já o grande movimento ascensional das caixas, favorecido pelo Decreto de 20 de Fevereiro de 1943, que punha no Instituto Nacional do Trabalho e Previdência a iniciativa da constituição de caixas de reforma ou de previdência. Foi rápida a expansão; em 1946 estavam erguidas 72 caixas, com uma população de beneficiários ao redor de 300 000.
Pode dizer-se que esta velocidade de progressão não foi regida por boa disciplina. Houve o propósito de estender o seguro obrigatório, e cumpriu-se. Mas faltou uma visão e um plano de conjunto. Se é certo que entre nós se pisava terreno virgem, por isso mesmo os passos deviam ter sido mais cautelosos. Existia, de resto, na Europa, por essa hora, já delineadas e legisladas, organizações de seguros obrigatórios que bem podiam servir-nos para meditar na necessidade de não construir sem uma disciplina em extensão e em profundidade.
Criaram-se rapidamente muitas caixas, sem dúvida. Cada uma delas ficou, no entanto, com um regime, a bem dizer, próprio: organizou como quis os seus quadros administrativos e burocráticos; com mais ou menos folgança remunerou-os a seu talante e instalou-se como melhor lhe apeteceu.
Justamente porque não havia nem risco nem moldes, algumas perderam-se nos caminhos e foi preciso retirar-lhes a espontaneidade de governo e impor comissões administrativas. Ficou tão gritante o desacordo entre elas no que diz respeito a quadros, categorias e remuneração do pessoal que acabou por estudar-se um regulamento, agora mesmo publicado, para, ainda que dentro de tipos, as uniformizar e, como diz o despacho respectivo, as dotar e um mínimo de disciplina indispensável.
A esta disparidade do lado administrativo juntava-se igual desencontro do lado assistencial. Cada caixa tinha o seu esquema de protecção à doença: umas davam muito, outras pouco; aqui, apenas se lograva a visita e a consulta; acolá, também as especialidades e os meios laboratoriais de diagnóstico; além, toda a assistência farmacêutica; depois, os internamentos; mais adiante, a cirurgia e, para além ainda, o auxílio à maternidade. E viam-se os mais opostos sistemas: umas caixas tinham postos privativos e médicos avençados, outras deixavam que o beneficiário consultasse o médico da sua escolha e pagavam os preços comuns ou uma tabela combinada. Se em tão larga escala de diferenças intervinham, naturalmente, os recursos de cada instituição, também é certo que regiam, em grande parte, o critério e tino administrativos.
Paralelamente às caixas de previdência montaram-se outras caixas para abono de família, depois do Decreto-

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Lei n.º 33 512, de 13 de Agosto de 1942. De início as duas organizações não se entenderam, embora se erguessem lado a lado, no mesmo departamento da Previdência Social.
Os âmbitos das caixas de previdência e das caixas de abono de família desencontravam-se em algumas profissões, mas cruzavam-se na maior parte, e assim grande número das caixas de abono de família era verdadeira duplicação das caixas de previdência, com o prejuízo inerente à repetição das formalidades e dos gastos administrativos e gerais.
A nossa Previdência começou a notar o erro desta fragmentação. Erro grave, filho da pressa inicial, que não deixou esquematizar uma realização de conjunto. Logo se moderou a criação de novas caixas de previdência; o número não aumentou sensivelmente desde 1946 e passaram a incorporar-se em algumas já existentes grupos profissionais variados.
Por sua vez, o abono de família passou a ficar dependente da organização de previdência e as caixas de abono integraram-se, até onde puderam, nas de previdência; a má concepção inicial do desparalelismo de âmbitos continua a exigir vinte e três caixas de abono de família para os casos com direito a abono e ainda não compreendidos nos outros riscos da previdência.
Era já muito sustar a fragmentação. Mas era ainda preciso descobrir outros caminhos. Os inconvenientes da dispersão estavam à vista nos resultados a que tinham levado os cuidados médicos entregues à acção isolada das caixas: obrigava a despesas inúteis pela repetição em cada caixa dos mesmos serviços e deixava núcleos de beneficiários bem assistidos ao lado de outros com assistência precária. E no espírito da nossa Previdência evolucionou-se para a concentração. Era, de facto, o remédio lógico, conquanto tivesse de ponderar-se seriamente que o tipo de assistência a modelar para todos devia, por elementar justiça, ser bastante e ser suficiente.
Cometeu-se então na nossa Previdência um outro erro administrativo - o das federações. Porque não se federaram caixas; federaram-se serviços de caixas. As caixas continuaram a existir e delas se extraíram serviços para serem concentrados em novos organismos.
Quatro federações se levantaram: a Federação dos Serviços Médico-Sociais, a Federação das Casas Económicas, a Federação dos Serviços Mecanográficos, e a Federação de Divulgação, Informação e Cooperação Internacional. A mais importante foi a dos Serviços Médico-Sociais.
Velozmente se desenvolveu esta Federação, que, de entrada, abrangia apenas a Caixa Sindical dos Profissionais do Comércio e a do Pessoal da Indústria Têxtil; em 1947 contava 70 000 beneficiários e 20 postos; no ano seguinte o número de beneficiários subiu para 240 000 e o de postos para 03, e em 1949 os beneficiários atingiam 330 000 e os postos somavam 06.
Ein meados de 1949 esta marcha foi superiormente detida. Em boa verdade, ela pareceu excessiva. O montante das suas construções e instalações privativas ultrapassava as possibilidades orçamentais, que eram alimentadas pelas caixas federadas em adiantamentos, à maneira das necessidades.
Mesmo detida a moio do ano, nesse 1949, a sua contabilidade revelou um déficit de 40 000 contos; e como as caixas tinham esgotado a verba da doença, o desnível foi coberto pelo Fundo Nacional do Abono de Família, que nos anos de 1948 e 1949 deu à Federação subsídios de 46 300 contos. Do termo de 1949 para cá vive, pode dizer-se, sem construir mais obras e mais serviços privativos, também sem aumento de população assistência! e com um orçamento equilibrado, na altura dos 83 000 contos.
Porque isto exigiu das caixas adiantamentos superiores aos que vinham fazendo e para cima da percentagem atribuída à doença, o artigo 18.º do Decreto n.º 37 763, de 24 de Fevereiro de 1950, mandou englobar na percentagem de doença o que constituía até ali fundo de assistência.
A Federação dos Serviços Médico-Sociais não correspondeu aos fins que determinaram a sua criação: nem trouxe «diminuição de encargos» nem «grau superior de eficiência».
Os segurados ficaram mais caros quando transitaram das caixas para a Federação e, muitas vezes, perderam em amplitude de benefícios. Se é certo que algumas caixas concederam larga protecção à doença e avultados subsídios, hipotecando os próprios fundos de assistência, também é verdade que depois do Decreto n.º 37 763 o facto já não é possível. E mesmo discutida que fosse a origem dos recursos para prestar mais ou menos ampla assistência, o que importa essencialmente é o custo da assistência.
Em 1949 a Federação estudou o encargo de cada beneficiário para o seu esquema assistência! e fixou a capitação de 24.630$ por mês.
Ora, se a Previdência quiser usar de esclarecimentos próprios, tem na Direcção-Geral um inquérito que no mesmo ano mandou realizar à Caixa Sindical de Previdência do Pessoal da Indústria dos Lanifícios, onde se comparam esquemas e capitações entre a Caixa e a Federação e se chega a estas conclusões: a Caixa de Lanifícios tinha uma capitação ligeiramente superior à da Federação para um esquema de benefícios muito mais largos, e, se a Caixa dos Lanifícios restringisse o seu esquema ao da Federação, em vez de 24.630$, exigidos pela Federação, podia baixar a capitação para .750$. Mesmo com todas as ressalvas que o inquiridor anota, não pode deixar de vincar-se a impressionante diferença.
É por isso que as caixas resistem a ser integradas na Federação: gastam menos e dão mais. E algumas, como esta dos Lanifícios, continuam vida independente. Tenho na minha mão um exemplo, que não resisto a invocar pelo que ele tem de saboroso.
Entre os poucos protestos da organização operária que para esta Assembleia foram mandados a propósito do meu aviso prévio felizmente nem todos os operários deixaram de ver que eu lhes defendo uma melhoria de benefícios -, há um telegrama do Sindicato dos Operários da Indústria de Cerâmica, em que o seu presidente clama contra a minha «tentativa de novo desvio da orientação básica da orgânica corporativa».
Pois há dois anos e meio, quando eu defendi em alguns jornais diários as mesmas ideias que hoje desenvolvo, recebi do mesmo sindicato o ofício n.º 733/49, assinado pelo mesmo presidente que agora assina o telegrama de protesto, a dizer-me:
Venho felicitar V. Ex.ª pelo que diz sobre previdência e informá-lo de que a Caixa de que fazemos parte está a trabalhar nos moldes exactos da sua sugestão.
Temos de facto resistido quanto temos podido à integração na Federação das Caixas de Previdência, porque temos médicos de clínica geral e de todas as especialidades que dão consultas nos postos privativos e nos seus próprios consultórios; temos visitas domiciliárias aos doentes que não podem ir aos consultórios; temos operações de grande e pequena cirurgia; temos internamento em hospitais e Misericórdias e estágios em sanatórios; temos tratamento da tuberculose com fornecimento dos medicamentos necessários; temos aparelhos pró-

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prios de radioscopia e agentes físicos: temos assistência a parturientes e à primeira infância; temos fornecimento de toda a medicamentosa necessária e que seja receitada e mais óculos, cintas, dentaduras, etc.
Além disso fazemos uma grande obra de assistência, concedendo auxílios vários, eventuais, aos casos de reconhecida emergência, nas famílias dos nossos associados. Tudo isto nos custa menos cerca de 300 contos do que a Federação nos pedia, para fazer apenas a sua assistência, cheia de restrições.
Se. este mesmo presidente, o do oficio de felicitações e o do telegrama de protesto, me afirmava há dois anos e meio: «resolvi escrever-lhe para que se não julgue tudo na orgânica corporativa pela mesma bitola» - a Assembleia Nacional que faça agora o favor de o julgar.
Não se pode dizer que o encarecimento do beneficiário na Federação é devido ao que custam os serviços propriamente médicos. A Federação não paga mais do que as caixas por análises e radiografias e a remuneração fixa de 2.000$ mensais que dá aos seus médicos de clinica geral, se excede a de algumas caixas, também outras caixas satisfazem as consultas por tabelas mais altas do que fica a média da consulta na Federação.
Podemos fazer de tudo isto uma ideia clara se compararmos nas estatísticas o que se passa entre caixas sindicais e Federação - em 1951 as caixas sindicais prestavam ainda directamente acção médico-social a 167 000 beneficiários e familiares, um quarto dos 630000 que englobava a Federação; e as caixas sindicais pagaram a médicos um pouco mais do que o quarto que lhes cabia nesta comparação (6 898 contos, contra 20 406); e despenderam com análises e radiografias médias sensivelmente mais altas do que a Federação (para radiografias, as caixas 188$ e a Federação 176$; para as análises, as caixas 42$ e a Federação 25?$).
As federações foram um desvio doutrinário da nossa previdência. É difícil arrumar com segurança a sua natureza institucional.
Há o ofício n.º 16 239-P do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, que mereceu despacho concordante do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social de 25 de Maio de 1948, em que se diz taxativamente que as federações não são organismos corporativos.
Assim o penso também. Mas as federações construíram-se como delegações das caixas, para realizarem serviços de caixas e devem claramente subordinar-se às caixas. E estão, realmente, as federações dependentes das caixas que nelas se dizem federadas e das quais recebem as únicas contribuições?
Vejamos o que se passa pela Federação dos Serviços Médico-Sociais: existe de facto um conselho de administração constituído por representantes das caixas federadas; por cima, no fecho da abóbada, há uma direcção, em que três dos seus cinco membros, o presidente e dois vice-presidentes, são de dependência ministerial - pelo Ministro nomeados e demitidos; o comando efectivo da organização sai desta direcção, que trabalha directamente com o Gabinete do Ministro, sem ter de passar pela Direcção-Geral da Previdência, como são obrigadas a fazer as próprias caixas nela representadas.
Quer dizer: a organização assenta em instituições de raiz profissional com administração patronal e operária, mas para cima de certos elos perde esta característica e passa a ser tomada pelo Estado.
As federações foram também um erro administrativo. A nossa Previdência defendeu a doutrina da concentração e caminhou nesse sentido. Através duma das suas federações, escreveu, a propósito das caixas:
O princípio da economia dos gastos gerais, assim como o principio especifico do seguro, isto é, a lei dos grandes números, melhor só compadece com as organizações de tipo mais amplo.
Não está o erro na doutrina. De facto, a concentração tem decididas vantagens. Tomando como exemplo os serviços do assistência médica, a concentração, diminuindo os gastos, permite melhorar a qualidade da assistência.
Somente - já o disse aqui na Assembleia ao discutir-se a lei de combate à tuberculose e volto firmemente a repeti-lo - a doutrina não se aplicou com acerto; não se chegou à concentração pelo caminho mais simples, mais eficiente e mais económico.
Estava verificado que as caixas não correspondiam em trabalho separado, que era preciso associar-lhes os esforços? E o que se fez? Juntaram-se as caixas? Não. As caixas foram sucessivamente despojadas dos serviços, criaram-se para realizar novas organizações, agora de tipo unitário, levantando-se uma atrás de outra quatro federações; mas, embora desfalcadas nas funções, as caixas continuaram a existir, deixaram-se ficar com a mesma instalação e o mesmo esquema administrativo.
As federações impuseram outras administrações, outras burocracias e outras instalações, primeiro na sede central, depois, como no caso dos Serviços Médico-Sociais, em. delegações periféricas.
Escreveu um dia a Federação das Caixas de Divulgação, Informação e Corporação Internacional que oeste conceito de federação ó original da orgânica portuguesa de previdência».
E não há dúvida; temos hoje este singular sistema - único no Mundo -, que mantém ao mesmo tempo e para a mesma função dois alinhamentos de organismos: as caixas e as federações, as segundas erguidas para corrigir as desvantagens. das primeiras, ambas caras e de larga montagem.
Se olharmos a estatística da organização corporativa e previdência social de 1901, publicada pelo Instituto Nacional de Estatística, encontramos que a Federação dos Serviços Médico-Sociais, embora exista para essencialmente prestar serviços médicos, gastou nesse ano 20 406 contos com o pessoal médico e 16 492 com as despesas de administração; e as mesmas fontes dizem que no mesmo ano de 1951 as caixas de previdência despenderam 66 600 contos em gastos administrativos.
E inútil replicar que não há aqui propriamente duplicação de serviços, porque todos vêem a duplicação de instalações, de sedes e de administrações. E pode legitimamente perguntar-se para que havemos de ficar neste dispositivo, para que servem então as caixas, se têm constantemente de corrigir-se com as federações?
Era preciso concentrar a organização? Mas concentrar não ó duplicar, e as federações são uma duplicação. Era urgente associar os serviços? Pois devia-se, muito simplesmente, fundir as caixas numa caixa única, onde os serviços, logo de entrada e sem mais, se concentrassem e unificassem.
Já começaram a demolir-se as federações; foi extinta a dos Serviços Mecanográficos; e ó de esperar que o erro se apague completamente no novo sistema em que se vai reorganizar a nossa Previdência.
Eu defendo a caixa única. Não um monstro central, com tentáculos periféricos, mas uma organização forte e autónoma na periferia e só articulada centralmente para a unidade geral do plano.
Defendo a caixa única distrital, de administração parietária, com delegados dos organismos corporativos

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patronais e operários, para onde revertam todas as contribuições da área, encarregada da gestão dos vários seguros, prestando directamente, sem necessidade de organismo intermediário, os benefícios dos ramos segurados, autónoma dentro da jurisdição respectiva e com maleabilidade para se adaptar às características locais, especialmente no que respeita à patologia da região e às doenças profissionais mais em relação com as peculiaridades do trabalho.
As caixas únicas distritais devem ligar-se por representantes à caixa única central, em cujo conselho administrativo participem e no qual também figurem delegados de vários departamentos do Estado, como a saúde, o trabalho e as finanças, presidida por um representante do Ministro da Previdência, e que tenha por função especial assegurar a unidade do plano de previdência e equilibrar financeiramente os diversos ramos do seguro.
Dentro da caixa nacional central alvitro que se constituam pequenas delegações permanentes para cada risco ou grupo de riscos segurados e junto da delegação da doença e invalidez advogo a existência de conselhos técnicos, especialmente dum conselho médico, obrigatoriamente ouvido em todos os problemas que respeitem ao exercício da medicina, e composto por médicos escolhidos, uns pela caixa, outros pelo órgão representativo do corpo médico.
Este esquema de caixa única é barato, simples, eficiente e calcado na experiência de outros países. Também não é doutrinàriamente reprovável: a administração sai, em todos os andares, dos organismos corporativos e o unitarismo justifica-se pelos próprios fins do seguro, se até não está fundamentado nos mesmos princípios que, em realidade, se impõem por todas as profissões - o campo de aplicação, as contribuições e os benefícios.
Digamos claramente que num regime como o nosso o que importa, pela força dá doutrina, é que as instituições de previdência se alicercem ou saiam dos organismos corporativos e deles fiquem dependendo. Mas depois o que passa a impor-se são os fins da previdência, e para a realização dos fins da previdência não é obrigação doutrinária que saiam múltiplas instituições, uma para cada profissão, ou que se forme apenas uma instituição para todos os corpos profissionais; aqui o carácter institucional não vem nem implica a representação orgânica das actividades.
Sem qualquer afronta ideológica, o nosso seguro social pode organizar-se pelo sistema unitário. Nem lhe falta, se assim escolher, fundamento jurídico: o nosso seguro postula para todas as profissões iguais deveres e iguais direitos. Também as federações se construíram com tipo unitário; e não foi por ele que pecaram. A nossa Previdência tinha razão quando escreveu:

A tendência na orgânica do seguro social obrigatório é no sentido da concentração, coincidindo com a evolução do âmbito profissional para o âmbito económico.

II) CAMPO DE APLICAÇÃO DO SEGURO SOCIAL. - Não é aqui o lugar de fazer o processo dos seguros sociais. Nasceram, pode bem dizer-se, da ânsia geral de um inundo social melhor e foram por todos os lados evoluindo num sentido correlativo às ideologias político-sociais.
Onde havia progressão crescente da intervenção do Estado os seguros sociais estenderam o âmbito, caminharam para a generalização, para uma fornia colectivista, e passaram a ser mais ou menos dirigidos pelo Estado e por ele financiados no todo ou em parte.
Também dentro dele se foram sucedendo os objectivos, quanto se considerava risco ou necessidade, não já dos grupos mas de toda a população, e se chegou ao conceito e à realização do que hoje se chama a segurança social.
E cedo para avaliar, em boa medida, as consequências dos seguros sociais: quais as vantagens e quais os inconvenientes, e principalmente a repercussão que vai ter sobre a vida económica, sobre o trabalho, sobre a produção, numa palavra, sobre a riqueza de cada país.
Vozes autorizadas erguem-se já por vários quadrantes do Mundo a perguntar se esta segurança social, alargada até ao limite da sociedade humana, não está enfraquecendo o sentimento de trabalho, quebrando as molas da actividade individual, adormecendo o poder de iniciativa e a vontade de melhoria. E alguns questionam até se o indivíduo tem o direito de se proclamar, assim, credor do todos os riscos, mesmo o de tornar-se preguiçoso, mesmo o de se invalidar pelo vício.
Entre nós os seguros sociais têm de confinar-se em termos diferentes de uma generalização colectiva.
A tanto os obriga a nossa doutrina, que não é socialista como não é estadista e «faz profissão de fé na iniciativa individual».
Proteger, organizar um sistema de previdência, uma garantia contra a miséria das circunstâncias não voluntárias; mas proteger os que economicamente precisem e deixar ao encargo particular a defesa dos que podem.
Ou porque não tivessem em bom conceito o sentido da nossa doutrina ou porque fossem levados pelos ventos de outros países, os organizadores da nossa Previdência marcaram o campo de aplicação dos seguros sociais naquelas célebres normas que saíram do afogadilho de 1945-1946:

1.º O âmbito de uma caixa é extensivo a todo o pessoal, qualquer que seja a sua profissão, que preste serviço em empresas já contribuintes dessa mesma caixa;
2.º Alargar-se o conceito de trabalhador a todo o indivíduo que receba uma remuneração, de forma a abranger os administradores, gerentes e outros em situação paralela ou equivalente.
O que aconteceu? Os sectores do modo especial atingidos pelo seguro social foram o comércio e a indústria; e nestes dois grandes ramos da economia o seguro abrangeu em cada sector todos os andares, englobando indivíduos com índices de vida muito variáveis, desde os mais humildes operários aos técnicos, guarda-livros, chefes, engenheiros, administradores e gerentes das empresas mais ricas.

O Sr. Mário de Figueiredo: - V. Ex.ª está a criticar a organização de 1945, mas sabe que hoje já não é assim.

O Orador: - Eu já vou explicar mais adiante, mas só os administradores e gerentes é que foram eliminados.

O Sr. Mário de Figueiredo: - E também os trabalhadores independentes.

O Orador: - Perdão; os trabalhadores independentes não estão excluídos na totalidade.
Como mostrarei mais adiante, o seguro absorve todas as profissões liberais.
E o que foi isto senão uma generalização colectivista do seguro? Estendido horizontalmente aos outros grupos económicos, o nosso seguro social acabaria por fechar em superfície o critério socialista que já adoptara em sentido vertical.
Houve aqui um claro erro de doutrina. Prevenir contra a miséria da doença, da invalidez ou dos anos, em regime de seguro social, os que precisam de protecção não

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atinge, não podo referir-se aos postos superiores do comércio e da indústria, aos que no cimo dirigem e administram, a quantos vencem remunerações altas e são capazes para uma economia livre.
Esqueceram os que assim normalizaram que o interesse doutrinário era manter socialmente livres os que são economicamente suficientes; nem repararam quanto se prepara a sujeição colectiva ao apagar o amor da defesa pessoal.
Quem primeiro se opôs à generalização do seguro foi, logo pelo ano de 1947, a Ordem dos Médicos, que pediu a limitação do seguro de doença aos economicamente débeis, definidos por um salário limite.
Não era isolada esta atitude; a World Medicai Association, a que pertencem as mais categorizadas associações médicas do Mundo, tinha pouco antes, em magna reunião, aprovado, com votos gerais, a franca cooperação dos médicos no seguro de doença com a obrigação recíproca do o seguro se limitar aos economicamente débeis.
Logo nesse ano de 1947 o então Subsecretário das Corporações e Previdência Social, Sr. Dr. Castro Fernandes, prometeu na Faculdade de Medicina do Porto, ao encerrar o I Curso de Aperfeiçoamento da Ordem dos Médicos, que a assistência na doença pelo seguro se iria restringir aos economicamente débeis.
E depois, em sucessivas entrevistas com o presidente da Ordem, reiterou o mesmo propósito, bem esclarecido como ficava, entre outros exemplos, por aquele esplêndido Packard que levou a um dos postos da Federação, a colher benefícios, no pleno uso dum direito, a esposa do sócio gerente de uma das mais ricas empresas de Lisboa.
Apesar de também superiormente reconhecido que o campo de aplicação do seguro devia limitar-se aos economicamente débeis, definidos por um salário-limite, nunca se conseguiu que a Previdência Social tomasse esta atitude.
Os técnicos oficiais da Previdência opuseram contra o valor doutrinário da tese razões de ordem económica e administrativa.
Conheço-as bem para poder dizer que quase todas representam dificuldades de escrituração e de contabilidade e para não aceitar que a excelência duma ideia tem de renunciar pelas dificuldades da sua execução.
Também em Espanha há limitação das rendas de trabalho para ingresso no seguro social, e nem a administração nem a contabilidade deixaram de se cumprir.
Duas razões quero, no entanto, destacar. A primeira é a injustiça que pode representar a definição de «economicamente débil por um salário-limite». É certo, como disse a Ordem dos Médicos:

... que a fórmula tem defeitos, que o nível económico dum trabalhador não é função exclusiva do salário, varia com o estado civil, com a extensão da família, com a junção de outros bens ... Mas nenhuma fórmula quantitativa de limitação é capaz do prever todos os casos, e já é boa quando satisfaz a justiça do maior número.
Assim acontece, por exemplo, no limite de idade para a reforma dos cargos públicos. E, tendo o Estado do fixar as condições económicas que permitem a cada um suportar os riscos com os próprios . meios, a limitação não pode deixar de exprimir-se em fórmula quantitativa.
A segunda é que:

... a exclusão dos beneficiários com rendimentos acima de uma certa quantia acarreta prejuízo financeiro, porque,- eliminando-se rendimentos mais elevados, baixam as receitas.
E quantos dos actuais inscritos se excluiriam por um salário ou vencimento-limite? Os cálculos estão feitos. Se o máximo de rendimentos de trabalho fosse de 2.000;5 mensais, ou aproximadamente 70$ diários, ter-se-ia de exceptuar entre 10 a 15 por cento. Se o máximo subisse para 3.000$ mensais, ou 1005 diários, o número dos excluídos não passava além de 3 por cento.
Portanto, ou 10 a 15 por cento de redução no montante do espaço entre 2.000$ a i5.000?5 ou simplesmente 3 por cento no topo segurável de 3.000$. Num caso ou noutro as percentagens são, como se vê, reduzidas, e, consequentemente, o que fica em carência de receitas, deduzida a falta das respectivas despesas, não perturba a vida do sistema.
Foi pena que a doutrina não tivesse há anos força bastante para se impor às considerações administrativas, e, até, se fosse preciso, dominar as situações económicas.
Hoje, a anos de distância, o erro deve pagar-se mais caro, como sempre acontece quando adiamos a cura dos males. O que se vai fazer?
Eliminar do seguro os que estão para cima dum quantitativo de salários ou vencimentos, restituindo-lhes o que corresponde às suas reservas dos seguros a longo prazo? Mas as reservas foram capitalizadas em títulos, em imóveis, em acções de empresas, e, ainda que seja lícito computá-las em algumas dezenas de milhares de contos, a deslocação traz, sem dúvida, difíceis problemas. Ou deixamos ficar todos os actuais recrutados e proporcionamos aos atingidos pelo topo segurável todo o esquema inicial menos o seguro de doença? Talvez esta segunda solução seja a mais conciliatória, mas a escolha entre elas ou de outra tem de fazer-se superiormente, num plano de interesses que eu não posso julgar.
O que temos, seguramente, de estabelecer, antes de a Previdência incorporar novos grupos de trabalhadores ó a nossa doutrina sobre o campo de aplicação do seguro social.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Espera-se para breve o ingresso de toda a construção civil, o que vai aumentar em boas dezenas de milhares a massa populacional dos beneficiários. E deve pedir-se que o seguro abranja em progressão decisiva os demais ramos de trabalhadores por conta de outrem, embora se entenda que, por situações já criadas, alguns - como os ferroviários - não entrem na fórmula geral, tenham regime à parte, e outros, pelas condições especiais da profissão trabalhadores adventícios, indústrias caseiras, serviço doméstico -, ponham problemas de carácter particular.
O mesmo acontece noutros países que têm considerado regimes distintos para este ou aquele sector profissional.
Largo espaço em branco na aplicação do seguro é constituído pela massa dos trabalhadores rurais, que totalizam cerca de 1 milhão. Entristece, realmente, as condições dos nossos trabalhadores da terra, principalmente depois de quanto está feito para os trabalhadores do comércio, da indústria e do mar. E são inúteis as lamentações perante a verdadeira impossibilidade, já exposta, de financiamento do seguro pela lavoura.
Há outra solução? Eu admito que a caixa única, solidarizando todas as quotizações, seja capaz de dar margem a que se leve, ao menos, uma assistência na doença aos trabalhadores rurais. E não deixo de sugerir a experiência: que se faça trabalhar durante dois ou três anos a caixa única sem integração dos rurais; e ao fim deste tempo, conhecido com segurança o volume de gastos num esquema suficiente, que se avalie se,

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pedindo à lavoura um esforço aceitável, embora, como já se faz, por contribuições indirectas, ele acrescentaria até ao total requerido para assistir medicamente os trabalhadores da terra.
Outro aspecto que merece estudo dentro do campo de aplicação da previdência é o da obrigatoriedade dos trabalhadores independentes. Nascem daqui circunstâncias muito especiais.
Em primeiro lugar, como não há entidade patronal, os recursos para o financiamento do seguro tom de sair dos próprios trabalhadores ou de alguém que os ajude. Entre nós, por atitude doutrinaria, o Estado não contribui, de maneira que a prima é totalmente suportada pelo trabalhador.
E isto, como disse Henri Fuss, presidente do Office National de Sécurité Sociale na Bélgica, faz com que o seguro obrigatório apareça a numerosos trabalhadores autónomos não como uma vantagem, mas como uma carga a que eles preferem escapar.
Em segundo lugar, o recebimento da prima cria, por vezes, sérias dificuldades. Se o trabalhador independente pertence a um ramo qualquer do comércio ou da indústria, e está adstrito à caixa de previdência do mesmo ramo, a quotização ainda consegue ser incluída no globo das outras contribuições e facilmente paga.
Mas se o trabalhador independente é, por exemplo, duma profissão liberal, já não há entidade que fique responsável; na Ordem dos Advogados a cobrança da prima, aliás pequena, porque a Caixa de Previdência recebe aqui participação de certa receita dos tribunais comuns, faz-se em conjunto com a quota da própria Ordem; na Ordem dos Médicos e na dos Engenheiros as respectivas Caixas de Previdência mandam os recibos directamente aos filiados.
A nossa Previdência começou já a desligar da obrigatoriedade do seguro alguns trabalhadores independentes do comércio e da indústria. Louvo a atitude. Sou, de maneira franca, contra a inscrição compulsória dos trabalhadores independentes no seguro social.
O que me parece justo ó a inscrição facultativa; os trabalhadores independentes devem ter direito de sor admitidos, se assim o quiserem, no esquema total ou parcial do seguro. Só teria de manter-se o critério geral do economicamente débil, definido aqui noutro nível, por exemplo no das contribuições ao Estado.
De todos os modos o que peço é que acabe o particular, o estranho facto de as Caixas de Previdência dos Médicos e Engenheiros, com base na falta de pagamento de uns meses de quota, possam considerar médicos e engenheiros como não inscritos nas respectivas Ordens, suspendendo-os do exercício profissional, pondo-os sob a alçada da lei, que castiga o exercício ilegal da medicina e da engenharia.
Nunca me entrou na cabeça, embora aceite a existência de outras melhores, que as Caixas de Previdência dos Médicos e Engenheiros tenham o poder de suspender médicos e engenheiros do exercício da sua profissão. Cancelem-lhes os benefícios, como se faz pelas outras caixas, que está certo; e dê-se às dívidas das caixas das profissões liberais outro poder de liquidação, tornando-as, por exemplo, títulos de execução fiscal.

III) ESQUEMA DE BENEFÍCIOS. - Pelo nosso seguro social o beneficiário goza de assistência na doença, pensões de invalidez, de reforma e de sobrevivência e abono de família.
A assistência na doença funciona assim: depois de um período de garantia de um ano o beneficiário tem direito a trezentos dias de prestações sanitárias o de prestações em metálico.
As prestações sanitárias divergem segundo as instituições; na Federação, que uniformiza o maior núcleo,
constam de consultas nos postos privativos ou nos consultórios das delegações, de visitas domiciliárias, meios auxiliares de diagnóstico, como análises clínicas, radiologia e electrocardiograma, tratamento por agentes físicos e raios X e por administração de injectáveis.
As prestações em metálico são representadas por um subsídio pago durante um período não superior a duzentos e setenta dias, seguidos ou interpolados, em cada período de doença, subsídio que, esgotado o limite, só pode de novo ser recebido decorridos doze meses e que não se concede nos primeiros seis dias úteis em cada impedimento de doença verificada pelo médico; o subsídio é de 60 por cento sobre a média de salários auferidos no ano transacto ao anterior àquele em que se verifica a baixa. Se ao fim de trezentos dias a doença continua, fica o segurado sem qualquer assistência sanitária e económica desde que não tenha já dez anos de contribuição, tempo mínimo para ser pensionado pelo risco de invalidez.
Este esquema assistencial nem é bem concebido nem medicamente suficiente. Quando se olha com atenção, fica-se a perguntar se houve a vontade de erguer, não um corpo inteiro, mas uma fachada e uma fachada dourada.
Diz-se e escreve-se que, por exemplo, na Federação há consultas de clínica geral e de algumas especialidades, há visitas domiciliárias, há análises clínicas, há radiologia, e é certa a existência de tudo isto.
Diagnostica-se, e diagnostica-se hoje melhor do que ontem, não por culpa ou mérito dos médicos, mas porque há mais tempo para ver os doentes, até pelo fenómeno, cheio de significado, de que desce cada ano o número dos que vão à consulta, embora cresça cada ano a população beneficiária.
O tratamento é que não vai além dos agentes físicos e de exígua assistência farmacêutica, quase toda de injectáveis aplicados nos postos, com falta grave de assistência nocturna, de cirurgia, de hospitalização, de tratamento completo da tuberculose, de infecto-contagiosas, de cancerosos e de mentais e ausência inteira no importante sector das medidas preventivas.
Ora para que serve o diagnóstico senão para abrir o caminho da terapêutica? A medicina é, essencialmente, a arte de curar, e que vale tanto dinheiro gasto em análises e radiologia, para apurar que um pulmão é tuberculoso, que um rim está destruído, que uma vesícula tem cálculos, que um estômago sangra por ulceração, se o pulmão se não comprime, a vesícula se não extrai, o estômago se não resseca, o rim se não extirpa?
Quando ao beneficiário da Previdência se põe uma destas circunstâncias tem de ir ao regedor da freguesia pedir atestado de pobreza e com ele recorrer a um hospital das Misericórdias ou da assistência pública.
Podia multiplicar os exemplos; basta-me personalizar naquele torneiro mecânico, beneficiário da .Caixa dos Metalúrgicos, que me escreveu a história da sua hérnia inguinal, diagnosticada na Federação, tão dolorosa que o impedia de trabalhar, para cujo tratamento lhe foi negada qualquer ajuda, e que acabou por internar-se e operar-se no Hospital de Santo António, do Porto, e por comprar uma funda à sua custa.
Se é já muito o que se faz, é preciso cumprir mais vastamente a assistência na doença. Tratar como se deve tratar. Deixemos já as insuficiências da montagem do seguro, até os prejuízos de horas de trabalho que acarreta a tantos operários o simples facto de se deslocarem a um posto distante para receber uma injecção. Subamos mais alto, ao plano das verdadeiras realizações nacionais.
Votaram-se aqui, nesta Assembleia, a lei do combate às doenças infecto-contagiosas, que manda hospitalizar obrigatoriamente certos doentes por elas atingidos, e a

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lei de combate à tuberculose, que articula as bases do tratamento nos dispensários e sanatórios. E como se hão-de cumprir satisfatoriamente estas leis do Pais, como se pode fazer seriamente a luta contra a tuberculose e contra as doenças infecto-contagiosas desde que a Previdência, na sua vasta massa populacional de muitos centos de milhares, não paga a hospitalização nem os tratamentos necessários?
O esquema de assistência médica tem de completar-se, igualar-se ao de outros países, para que se possa dizer que há, entre nós, verdadeiro seguro de doença. Devem entrar nele todos os actos médicos que visam ao diagnóstico exacto e ao tratamento necessário de qualquer estado patológico: a consulta, a visita, as especialidades, as análises clínicas, a radiologia, os preparados farmacêuticos, as intervenções cirúrgicas, a hospitalização, o tratamento da tuberculose, de cancerosos, de mentais, as próteses, e ao lado de tudo isto os partos normais e distócicos.
No dispositivo que está criado não cabe, também, o tratamento da doença longa: ao fim de trezentos dias acabam as prestações sanitárias e económicas. Atende-se especialmente às doenças de curta duração, e é um sentido que se deve inverter.
O dinheiro não é elástico, não chega para tudo. E ao gastar em assistência médica quanto se pode gastar deve fazer-se recair o maior esforço sobre as doenças que mais carecem de protecção. Está discutido, por muitos lados o problema dos pequenos riscos.
Há, sem dúvida, uma frequente e real patologia de breve curso, como as amigdalites, os catarros respiratórios, os acidentes digestivos, indisposição geral ...; mas há também o colorido e repetido cortejo das queixas fictícias, a criar o absenteísmo, aqui a perda de muitas dezenas de milhares de dias de trabalho por ano.
Com razões verdadeiras ou razões simuladas as baixas de curta duração, pelas somas que absorvem, são o pesadelo das tesourarias. Por cima da natural tentação humana não chegou o tempo, nem aqui nem lá fora, para uma educação correctiva; demora, como observava um dia Pierre Laroque, director-geral da Sécurité Sociale, em França, até que os trabalhadores ganhem suficiente consciência do que representa para eles o seguro social.
As soluções propostas têm sido variadas e eu não vejo melhor do que deixar fora da boa protecção do seguro estes espaços de curta duração. Nós já alargámos o período de carência na doença de três para seis dias, dando um passo neste sentido. Também escusa de alargar-se desde que nos primeiros oito ou dez dias se conceda um subsídio mínimo, não tentador. E claro que deve ficar aberto o acesso à consulta;, quando se adoece, mesmo sem aparências alarmantes, ninguém sabe se vai ou não começar um período de grave ou longo sofrimento. Hás o seguro tem a defesa de negar a sua responsabilidade nos actos médicos que não digam respeito a doenças de certa duração.
O melhor esforço tem de voltar-se para as doenças de longo curso, justamente as que o trabalhador menos suporta. E o fim não se atinge só porque acabados os trezentos dias de prestações sanitárias e em metálico da 'doença o beneficiário passa a ser socorrido economicamente pelo risco invalidez.
A França fez assim de início e depressa reconheceu o erro; a tesouraria da invalidez gemeu pelos encargos e 40 por cento destes eram pensões aos tuberculosos. Também logo reparou o erro criando a modalidade do risco doença longa, deslocando para ela, além do mais, todos os trabalhadores e garantindo durante três anos uma assistência médica completa.
Entre nós, eu penso que o problema fica bem satisfeito nas bases seguintes: se o beneficiário continua doente, antes de acabar os trezentos dias, verifica-se, por conferência médica, se a doença é ou não recuperável; sendo susceptível de recuperarão o beneficiário continua a receber assistência médica e económica até o limite que se convencionar; não havendo tratamento eficaz o beneficiário passa imediatamente ao risco invalidez, devendo estabelecer-se, no momento e através de revisões periódicas, se tem capacidade para uma ocupação remunerada, variando a pensão segundo esta classificação e segundo haja ou não encargos de família.
Por um quadro assim concebido o beneficiário fica sempre com amparo desde que adoece, ou até à recuperação ou até à entrada na incapacidade subsidiada.
Precisamos então de mudar a nossa invalidez; abandonar o período de carência de dez anos, torná-la maleável, estabelecendo escalões de incapacidade e, sobretudo, impedindo que continue definitiva, levar-lhe a grande alma da readaptação e da reeducação profissional.
Foi, por certo, este sentido estático de invalidez que entre nós a prendeu ao risco reforma. Já por várias partes sublinhei a má companhia, e volto hoje a propor que a doença e a invalidez se juntem num ramo comum e numa gestão comum, como se faz na Bélgica, onde o seguro social me dá mais frutuosas lições e me parece ter mais coisas dignas de servir como paradigma.
No sentido humano, no sentido social e no sentido económico deve procurar limitar-se o mais possível o número de inválidos, e nada influencia tanto como alargar os cuidados da saúde, seja porque evitam, seja porque minoram a invalidez. Há entre as duas - doença e invalidez - tanta penetração e enlace de actos médicos que seria erro desprendê-las do mesmo pessoal técnico e de uma direcção unificada.
Já se legislou o princípio da participação do segurado nas despesas da assistência. É um princípio diferentemente encarado nas legislações, mas que vigora em países de bom nível social, como a França e a Bélgica. A participação é boa disciplina para evitar abusos das consultas e dos remédios.
Foi pena que não tivesse sido posta de entrada, como naqueles países, e aparecesse depois, com o mau sabor das medidas de restrição de benefícios. O que já se paga na senha de admissão às consultas da Federação deve andar pelos 20 por cento do preço do acto médico; pode estender-se a mesma percentagem às visitas e aos medicamentos correntes, e até elevá-la para outros de excepção.
O encargo que por este lado assume o beneficiário não é grande; outro tanto não aconteceria se a participação abrangesse as análises, as radiografias, a hospitalização, a cirurgia, a terapêutica pelos agentes físicos, as próteses e ainda os partos. Aqui os nossos salários não suportam participação, e, como no esquema belga, a responsabilidade do seguro deve ser total.
Para dar corpo, força e suficiência aos riscos doença-invalidez, ampliando-lhes as atribuições, é preciso limitar os outros riscos. E já vamos ver os cálculos financeiros.
Ora o subsídio de morte, que ó pelas diferentes caixas de cálculo variável, pode reduzir-se uniformemente a vinte e cinco vezes a remuneração diária do defunto. E não se assume atitude de excepção, que assim está também legislado na Bélgica.
A pensão de reforma, que por uns lados se estabelece aos 65 anos e por outros aos 70, deve ficar com início uniforme aos 70 anos. E, se a não pede, entenda-se, sem mais, que ele prefere continuar no trabalho.
Não é uma obrigação que se lhe impõe, ó uma regalia que se lhe confere. Mais do que a pensão de reforma, pode convir-lhe a totalidade da remuneração, e para

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cima do proveito económico há ainda a melhoria da própria vida.
Morre-se mais depressa quanto em idades altas se deixa o trabalho e este não ó ainda uma impossibilidade. Ensinam as estatísticas que a taxa de mortalidade nos dois anos que se seguem à reforma é aqui maior do que a verificada entre os indivíduos da mesma idade que continuam ao serviço.
Certo que os que ficam devem ter capacidade. Exactamente porque contribuem para a pensão de reforma, as empresas têm direito a operários de rendimento. Mas, para tanto, basta legislar a obrigatoriedade de revisões módicas periódicas, onde a qualidade do trabalho se ponha em confronto com o valor da resistência.
O abono de família pode bem ficar dentro do nosso seguro social; também pelos diferentes países os subsídios familiares alinham lado a lado com os outros riscos cobertos pela segurança social. Não é, como diz Carlos Posada, «que se deva considerar a família como um risco; o risco está em não possuir recursos com que sustentá-la».
Foi, sem dúvida, a escola social católica que primeiro se bateu pelo salário familiar, na esteira dos ensinamentos pontifícios. E se o princípio veio por aí fora, com sorte variada, foi ganhando, foi vencendo nas próprias assembleias internacionais de política social, e acabou por tomar a forma de um subsídio instituído com carácter compulsório e proporcional às cargas de família. É hoje um verdadeiro seguro familiar obrigatório.
Dentro já da nossa Previdência o abono de família, conveniente seria que a administração dos nossos seguros, incluindo o próprio desemprego, se concentrasse em articulação comum.
Assim se faz por outros países e assim está no espírito inicial do nosso Estatuto do Trabalho. Em nada a concentração escusaria de impedir que o seguro de desemprego continuasse fundamentalmente a ser entre nós uma criação de trabalho.
Não parece que, dentro dos recursos disponíveis, possam sofrer aumento os escalões iniciais do abono de família. Aqui, pela primeira vez entre nós, as prestações são uniformes, não em função ou correspondência com a taxa das quotizações. Sem querer levantar a debatida questão de saber se, assim, uniformemente, se deviam nivelar todos os restantes subsídios, o da doença ou de sobrevivência, o de invalidez e o da reforma, aceitemos a opinião dos especializados, quando nos garantem que a uniformidade tem vantagens e é de adoptar nos subsídios familiares.

IV) REGIME FINANCEIRO. - O financiamento da nossa Previdência é exclusivamente assegurado por contribuições profissionais. Não participa o Estado, nem, por doutrina, o deve fazer. Como normaliza o Estatuto do Trabalho «são o patrão e o operário quem concorre para a formação dos fundos necessários à previdência e são eles que os administram»; o Estado apenas orienta e fiscaliza,
É que, para nós, a previdência é um direito do trabalhador ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -... um direito que ele adquire pelo trabalho; e a contribuição que garante a previdência, descontada sobre o trabalhador ou acrescentada pelo patrão, é sempre salário, salário «humanamente suficiente», justa paga do trabalho.
Podemos dizer que está aqui a diferença substancial entre previdência e assistência; a primeira é um direito, a segunda é um favor; a primeira ganha-se, a segunda aceita-se.
Temos, por isso, mais em conceito a dignidade do trabalhador ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -.... que outros regimes em que a segurança social só concebe e pratica como assistência pública financiada pelos impostos. Reconhecemos melhor no trabalhador os seus direitos do homem. Temos um ideal moral.
Não destrói o conceito nem a posição, antes valoriza o alto sentido do seguro, que o Estado tenha dado às contribuições da previdência o valor jurídico dos impostos: como as receitas de direito público, o recebimento das contribuições da previdência é garantido pelos órgãos de execução de direito público. Outro é o aspecto se economicamente elas representam um verdadeiro imposto.
Mesmo sem lhes dar o significado de salário, as contribuições da Previdência são, em realidade, um aumento de salário, que entra necessariamente no cálculo dos preços e sai da responsabilidade da empresa para o âmbito geral do consumidor.
Traz, como as outras cargas, um factor de agravamento ou de subida no valor monetário das coisas; pode trazê-lo até mais do que uma vez se o produto segue o caminho do que fabrica até ao que armazena e ao que vende directamente ao público. Todos os encargos se pagam assim, repetidos ou somados: os do capital, os das exigências da vida pública ou da vida familiar ou individual.
Não há dúvida de que é pesado o encargo da nossa Previdência ; em realidade, devíamos marcar as primas dos nossos seguros sociais em 22,5 por cento, porque o desemprego cobra 2,5. Mas, se quisermos considerar somente o que movimenta a Previdência, fixemos as contribuições em 20,5 por cento, visto que do desemprego vai 0,5 por cento para risco de doença. É já um esforço de boa grandeza, absorvendo o quinto das remunerações que vão até 3.000$ mensais e a participação de 600$ mensais em todas as remunerações acima deste limite.
Maior, bem maior, é o encargo de outros países, por exemplo a França, onde a segurança social, fora da participação a cargo do Estado, exige 34,5 por cento de contribuições patronais e operárias. Levar-me-ia longe explicar em que reside a diferença entre o globo das nossas contribuições e as de outros países, nomeadamente da França.
Há por muitos lados riscos que nós não abrangemos o há em alguns riscos grandes oscilações de pais para país.
Na França, para me servir sempre do mesmo exemplo, a precária situação demográfica firmou os benefícios de maneira especial na ajuda da família. Deve-se no entanto dizer que, exceptuado este risco, os outros que nós cobrimos não se cifram por quantitativos muito diferentes dos outros países.
Como se reparte a prima e a que chegam as respectivas percentagens ? Os nossos 20,5 por cento estão assim distribuídos: 5,5 por cento para a doença e sobrevivência, 7 por cento para o abono de família, 7 por cento para invalidez e reforma e 1 por cento para despesas de administração.
Por sua vez os 5,5 por cento da doença são decompostos em: 0,5 para pagamento das contribuições durante o período de doença do segurado, 2 para o subsídio de doença e para o subsídio de morte, 3 para a assistência médica. Ora estes 3 por cento são manifestamente insuficientes para custear uma assistência de nível eficiente.
Aqui tem razão a nossa Previdência; se não ganha inteiro, recebe grande apoio a velha e repetida sentença

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da Federação, que nem reduzindo a zero os seus gastos administrativos podia realizar uma acção médica satisfatória.
E como fazer? Vamos aumentar as contribuições globais da Previdência? Não o permitem as nossas condições económicas nem me parece necessário. Pelo esquema de benefícios que já descrevi, a invalidez prende-se à doença; reforça-se este grupo, mantém-se o abono de família e aliviam-se os riscos sobrevivência e reforma e os gastos administrativos.
Significa isto que temos de alterar a repartição das percentagens, e eu proponho o seguinte quadro: para a doença, invalidez e sobrevivência deslocam-se 9,5 por cento; o abono de família continua com os 7 por cento; a reforma fica com - 3,0 por cento e a administração reduz-se para 0,5 por cento.
Afecta esta nova repartição apenas a reforma e a administração, atribuindo-lhes outras dotações E baseei-me para tanto no seguinte:

1.º A substituição da actual estrutura administrativa pela caixa única traz uma nítida diminuição de encargos;
2.º Há um menor número de prestações de reforma com o alívio do risco no sentido proposto;
3.º 4 por cento é o que a Espanha determina para os dois riscos invalidez e velhice, e, embora as pensões de reforma sejam lá inferiores às nossas, a legislação que aumentou a percentagem também já estabeleceu para a velhice pensões basilares de 125 pesetas mensais, com muitos casos de 175 e podendo noutros chegar a 200;
4.º Os cálculos para as reservas matemáticas são feitos ano a ano para cada caixa; como não possuímos tabelas nossas, temos de aplicar as estrangeiras, primeiro não actualizadas e segundo estabelecidas sobre grandes números; como a aplicação se presta a erros, deixa-se sempre uma folga anual no cálculo das reservas de cada caixa; a multiplicação de caixas leva as folgas a muitas dezenas de milhares do contos; federando as caixas, trabalhando sobre ti massa de uma caixa única, consegue-se uma diminuição franca no quantitativo a reservar.
A lei do seguro é, como todos sabem, a lei dos grandes números, e foi ainda a nossa Previdência que escreveu:

Quanto menos numeroso for o grupo a proteger pelo seguro, maior terá de ser a margem a conceder ao acaso para se atingir uma protecção igualmente efectiva.

Fica, assim, para o agregado doença-invalidez a percentagem de 9,5 por cento das remunerações, ou, melhor, de 9 por cento, visto que 0,5 se destina, como já vimos, ao pagamento das contribuições dos beneficiários doentes. Chegam os 9 por cento para um seguro doença--invalidez prestado nas condições que ficaram esquematizadas? Temos no País lições proveitosas.
Há caixas que com os 5 por cento actuais montaram um serviço assistência já bastante aproximado. E o exemplo de fora pode ainda orientar-nos melhor.
A Espanha, com prestações sanitárias de consultas,, visitas, especialidades, análises, radiologia, intervenções cirúrgicas, hospitalização, larga prescrição de medicamentos e também assistência no parto, sem qualquer participação do segurado, destina 9 por cento ao risco doença. E a Bélgica, onde funciona um seguro doença-invalidez-pensão de morte muito semelhante ao que para nós deixei esboçado, atribui a este grupo de riscos uma percentagem de 8 por cento sobre as remunerações, contando o subsídio do Estado e o total das quotizações.
Sem este arranjo, sem deslocar mais capacidade, digamos mais dinheiro, para a doença e a invalidez não é possível cumprir um serviço assistencial digno e satisfatório. Ou, por outras palavras, não há bases, nem recursos, nem amplitude para levantar a sério um novo edifício da previdência.
Temos de gastar mais nos seguros a curto prazo, na doença e na invalidez, já que o risco invalidez anda colado e subordinado às vicissitudes do risco doença. E temos de guardar menos para os riscos que verdadeiramente precisam de mealheiro: a reforma e a sobrevivência. O que equivale a distribuir mais e ti capitalizar menos.
Até aqui a nossa Previdência tem vivido no regime de capitalização para, quer dizer, capitaliza o saldo total de cada ano; e a capitalização da Previdência ia já, no fim de 1952, em 3 500 000 contos.
Servindo-nos das últimas contas publicadas, as de 1951, vemos que, no fim desse ano, as receitas totais, incluindo rendimentos, foram de 1167 000 contos, as despesas totais de 635 000 contos e o saldo total, incluindo também os rendimentos, destinado a capitalização, de 532 000 contos.
Pode bem dizer-se que esta capitalização é excessiva; os três riscos que pelo esquema actual obrigam à constituição de reservas são a invalidez, a reforma e a sobrevivência, atingindo cerca de 8 a 8,5 por cento das percentagens, ou seja 38-40 por cento das remunerações, o que dá, no milhão de contos das contribuições, um nível de 400 000, bem inferior ao de 532 000 do saldo do fim de 1951.
Mas, alargada a área dos riscos a curto prazo e reforçando a sua dotação, diminuem-se as reservas destinadas a investimentos; deixando somente as pensões de morte e de reforma e atribuindo-lhes na percentagem global entre 4,5 a 5 por cento, no milhão de contos de contribuições as disponibilidades para capitalização escusam de exceder 250 000 contos anuais.
Quer dizer, teríamos de distribuir, de gastar, anualmente mais 250 000 contos do que hoje gastamos. Chegam os outros 250 000 que ficam para os compromissos em que se envolveram as reservas da Previdência? De compromissos certos só há os do Plano de Fomento; o próprio Decreto-Lei n.º 35613, de 25 de Abril de 1946, estabelece apenas quais as aplicações que poderão representar os valores da Previdência.
Ora, nos recursos para o financiamento do Plano de Fomento, as instituições de previdência entram para os seis anos com uma participação de 1 400 000 contos, ou seja 235 000 cada ano, perfeitamente dentro da. reserva capitalizável de 250 000.
Se o Estado tem de renunciar a uma volumosa colocação de títulos, anima-me boa esperança que os arranjos se hão-de dispor para a Previdência poder cumprir satisfatoriamente os seus fins. Em todo o caso a renúncia é susceptível de ser atenuada, porque se com a reforma da Previdência vier brevemente a integração de outros grupos do trabalhadores, especialmente o vasto sector da construção civil, logo sobe a importância disponível para investimentos. • Já preceitua a lei que a aplicação dos valores 'da Previdência está dependente de autorização ministerial e de aprovação em Conselho de Ministros, mas a verdade é que a Previdência fica ainda directamente ligada às empresas que financia. E dentro de anos as nossas instituições de previdência, que se levantaram para corrigir os desmandos da economia capitalista, prosseguindo a intervenção directa nas empresas e ato na sua administração, acabam por se tornar as nossas mais fortes instituições capitalistas.

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Será aquele quadro que muito bem traçou o ilustre actuário Dr. António Leão:

Potentíssimas organizações de alta finança, mais preocupadas com as cotações dos títulos das suas ou alheias empresas ou com o preço do carvão importado que com a impertinência dos beneficiários doentes que desejam receber os subsídios diários de 10$ ou 12$ ou a modesta pensão mensal de invalidez.
Bem apetece aqui propor que, ao reformar-se para tantos bens, a Previdência se desprenda da colocação dos seus fundos e os entregue a uma entidade oficial de crédito, já existente ou a criar.

V) PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. - Quase todas as nossas instituições de previdência cumprem o encargo das prestações sanitárias com médicos privativos. Poucas são as caixas que mantêm para os segurados o direito de procurar o médico mais da sua confiança.
A Federação, que representa mais de metade do total dos beneficiários, tem um quadro de médicos contratados, com vencimento fixo, para ver os doentes, em horas certas, nos postos, ou para visitar em casa, durante o dia, os doentes não ambulatórios, ou para atender no consultório aqueloutros que estão fora das terras onde há postos.
Estes, em número de 71, estão dispersos pelo País e foram especialmente construídos pela Federação. Houve a preocupação de construir muito e rapidamente, o assim nos primeiros três anos estavam levantados 60 postos e, a bem dizer, começados os 5 restantes do grupo actual. O pensamento foi prender a obra logo do entrada u realização de grande investimento de capitais de tal modo que elas próprias defendessem a razão da obra.
Deixemos as condições de construção dos postos, que já tiveram suficiente julgamento até no próprio inquérito feito em 1949 à Federação, para esclarecer que dentro deles há gabinetes do clínica geral e algumas especialidades e ainda de enfermagem.
Para além dos postos quisse, há quatro anos, alargar a fase de realizações com a construção de hospitais privativos. Fui daqueles, que se levantaram contra a intenção da Previdência; além do desvio doutrinário que representava, o Estado tinha delineado e começado a construir uma rede de hospitais largamente concebida pelo País e não havia decididamente possibilidades económicas ou técnicas para uma duplicação. Assim foi entendido superiormente e os hospitais -o primeiro já estava planeado não se edificaram.
Ao lado dos postos tem a Federação tentado criar serviços próprios para os meios auxiliares de diagnóstico, especialmente análises clínicas e radiologia. Os de radiologia assumiram ultimamente um aspecto acidentado. Passaria de alto se a minha nota de aviso prévio não tivesse provocado neste passo uma exposição do Sr. Presidente da Federação à Assembleia Nacional e ela não merecesse sérios reparos. A Federação entendeu há meses que devia baratear os serviços de radiologia e elaborou uma tabela para os diferentes tipos de radiografias.
Então o Sr. Presidente da Federação, munido da tabela, foi primeiro a Coimbra e lá os radiologistas aceitaram-na a título de experiência; depois convocou os radiologistas do Porto e encontrou desacordo quanto a poucos - note-se bem, poucos - dos exames; o mesmo aconteceu com os radiologistas de Lisboa. Seguiu-se uma série de episódios entre os radiologistas e a Federação, e para bem os esclarecer vou respigar alguns trechos de uma carta que os radiologistas de Lisboa me enviaram, devidamente assinada.
Antes de 1948 a Federação tinha em Lisboa quatro ou cinco radiologistas exclusivos. Nesse período o número de exames requisitado a esses especialistas era de tal maneira avultado que os seus proventos podiam ser grandes. Mas em Julho de 1948 todos os radiologistas de Lisboa passaram a fazer o serviço da Federação, como era de justiça.
No convite-circular que lhes foi dirigido, foi a própria Federação que propôs a tabela de preços, que, de resto, eram idênticos ou mesmo inferiores aos que os seguros sociais de outros países pagam pelos seus exames radiológicos. Esses preços eram os que há anos vigoravam para muitas das caixas antes de serem federadas.
Em 1951 há um primeiro apelo para abaixamento de tabelas, invocando não lucros excessivos, mas dificuldades financeiras da Federação.
O então presidente, Sr. Dr. João Moreira, pediu uma limitação substancial dos proventos. A questão foi estudada e chegou-se a acordo com uma redução de cerca de 20 por cento sobre os preços da tabela. Ficou também acordado que se o preço do material aumentasse a tabela fosse revista. Aumentou, e um ano depois o novo e actual presidente, em Janeiro de 1952, reviu, sim, a tabela, mas para impor nova e mais substancial redução.
Os radiologistas de Lisboa e Porto verificaram que desta vez os preços propostos eram incomportáveis, porque em muitos casos lhes davam prejuízo.
Toda a questão entre nós e a Federação se resume nesta diferença de opinião: a tabela é considerada remuneradora pela Federação e não remuneradora por nós, que conhecemos as nossas despesas.
A Ordem dos Médicos, através da sua comissão de radiologia, propôs-se demonstrar que os cálculos do estudo da Federação estavam certamente errados. A direcção da Federação não quis ser esclarecida.
Ficou o dilema: não há que discutir, há que aceitar; ou aceitar o prejuízo ou serem instalados serviços privativos.
O prejuízo foi admitido quando se disse aos radiologistas: e Os preços propostos são baixos, muito baixos. Também algumas companhias de navegação têm carreiras em que perdem para lucrar em outras».
O lucro para os radiologistas seria o evitar os serviços privativos da Federação, que ameaçam gravemente a sua vida profissional, tanto mais que todas as entidades dependentes da Previdência seriam obrigadas a recorrer a esses serviços. Seria melhor aceitar essa tabela que a ruína total da radiologia. Vem a seguir outro argumento: «Os grandes não podem aceitar, mas os pequenos podem».
O espanto que causou os pequenos radiologistas não terem aceitado levou a direcção da Federação a uma afirmação de alta gravidade, por ser totalmente contrária à verdade: «Os grandes tinham amarrado os pequenos por um compromisso de honra».
Ora foi unanimemente e espontaneamente, porque todos estavam de acordo sobre a inaceitabilidade das tabelas propostas, que os radiologistas resolveram não as aceitar. Ninguém amarrou ou se deixou amarrar a pretensos carros dourados.
Vem então nova afirmação da presidência da Federação: «Foram concedidos subsídios, verdadeiros subsídios de greve». É uma afirmação falsa. Nenhum radiologista recebeu qualquer subsídio.

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Afirma a Federação que alguns radiologistas da província aceitaram a sua proposta: entre eles cita Coimbra, núcleo tão importante como todos os outros somados.
O que não diz é que três meses depois de Coimbra ter aceite a título de experiência a nova tabela, unanimemente oficiou ao Sr. Presidente da Federação para lhe comunicar que tinha chegado à conclusão que essa tabela não era remuneradora. É um lacto importante que não deve ser encoberto; foram seis ou sete radiologistas da província que em todo o País aceitaram a tabela da Federação.
Há ainda uma referência a um caso isolado, que nos parece descabida, sobretudo se não houver intenção de confundir a excepção com a regra: é o caso de um radiologista que a Federação diz ter feito sessões de radioterapia a mais do que 'devia. Desconhecemos o caso em particular, não sabemos o critério que a Federação segue para saber o número conveniente de sessões para cada doente e temos fortes razões para duvidar da sua competência técnica para o fazer.
Se houve abuso, o caso necessita de ser esclarecido, sobretudo que nós, radiologistas, não consideramos, como o Sr. Presidente da Federação considera, que o nosso colega se tivesse reabilitado apenas por ter feito um desconto nos seus honorários.
Achamos moralmente fraco o critério de reabilitação e entendemos que a Federação só para poupar dinheiro não devia ter deixado impune o abuso se o houve e tinha, obrigação de o participar à Ordem dos Médicos.
Tenho alguma coisa que acrescentar a esta carta - garantida nas suas afirmações com a assinatura de trinta médicos radiologistas, cinco primeiros dos quais são professores universitários- porque na exposição do Sr. Presidente da Federação se diz que «eu não exerci acção decisiva, na qualidade de presidente da Ordem dos Médicos, no conflito surgido entre a Federação e os radiologistas de Lisboa e Porto».
Ora eu quero dizer à Assembleia que:

1.º Reuni os radiologistas de Lisboa e Porto e pedi-lhes que ajudassem a Federação nas suas dificuldades financeiras e os radiologistas ofereceram um desconto de 10 por cento sobre os preços da tabela em vigor, por um prazo a ser determinado, o que não foi oficialmente aceite;
2.º Propus que fosse nomeada uma comissão de arbitragem ou um árbitro para solucionar os diferenciais em litígio, garantindo em nome dos radiologistas que eles punham toda a sua contabilidade à disposição dos árbitros e se comprometiam a aceitar as' conclusões que daqui saíssem, o que também não foi aceite;
3.º Pacientemente esperei que a Federação se dirigisse à Ordem, da mesma maneira como tinha procurado os radiologistas para lhes levar os seus preços e como era seu dever desde que eles lhe tinham comunicado que entregavam à Ordem a defesa do que já não podiam defender;
4.º Fui eu quem pediu ao conselho geral da Ordem dos Médicos que mandasse à Federação, com. credenciais para discutir a tabela dos preços, a própria comissão de radiologia, que assiste ao conselho geral da Ordem e é constituída por três professores universitários da especialidade.
Não procurei, então, os meios de chegar a um acordo? Não me esforcei porque a minha acção fosse decisiva? Tenho a consciência perfeitamente tranquila; guardo na minha mão os documentos com que posso demonstrar que, a este respeito, me esforcei, no meu posto da Ordem, por limar arestas, evitar atritos, procurar entendimentos. O que lucrei eu? O que ganhou a Ordem em ir até à Federação?
O Sr. Presidente da Federação deu à comissão de radiologia da Ordem os «elementos de estudo que serviram de base à elaboração da tabela da Federação», como diz no seu próprio ofício.
A comissão da Ordem examinou os «elementos de estudo», mostrou em longa exposição como não estavam certas as parcelas constitutivas do total dos preços de cada unidade de radiologia e pediu uma discussão sobre estes factores básicos.
O Sr. Presidente da Federação contestou que «a Federação tem todos os preparativos concluídos para a montagem de serviços próprios de radiologia», que «a discussão pormenorizada de todos os elementos que serviram de base ao estudo parece desprovida de interesse prático, dada a variabilidade dos preços do material, das despesas de instalação, manutenção, funcionamento, etc.», e que «terá de resolver o problema no decorrer do mês». E eu pergunto: o que é a recusa em discutir os elementos que serviram de base à elaboração da tabela, o prazo para a aceitação, a notícia de preparativos concluídos para a montagem, o que é senão, como aqui disse, impor a criação de serviços privativos de radiologia?
Eu fui sempre contra a criarão de serviços sanitários privativos dentro do seguro social. Primeiro, não é esta a função do seguro social. No colóquio que o Instituto Internacional de Finanças Públicas realizou em Mónaco, no ano de 1950, vozes das mais autorizadas do Mundo definiram assim:

Os seguros têm por objecto garantir aos trabalhadores e à sua família uma pensão ou indemnizações, que se substituem, ou por vezes se juntam, ao seu salário quando eles se encontrem em circunstâncias em que o rendimento resultante do trabalho pode desaparecer ou tornar-se radicalmente insuficiente.

Ou ainda:

Os seguros sociais são um meio ou um instrumento técnico de financiamento que permite cobrir certos riscos sofridos pelos indivíduos que numa comunidade política contribuem para o processo da produção.
A nossa legislação estabelece também que a Previdência «se destina a proteger o trabalhador na doença contra certos riscos».
Ora proteger contra os riscos, cobrir contra os riscos é dar fiança de fundos, garantir que nas circunstâncias previstas o segurado terá um auxílio para lhes fazer frente. É esta a essência do seguro social, e respeitaram-na dentro da Europa os países para cá daqueles onde o Estado tudo observa e comunica.
O exemplo da França ó bem curioso: os serviços sanitários, quer os particulares, quer os da assistência pública, estavam envelhecidos e entorpecidos por anos de guerra e de ocupação; pois a Sécuritó Sociale, organizada depois da guerra, não se meteu a criar apetrechamento sanitário próprio, mandou os seus doentes aos serviços particulares e aos serviços da assistência pública, dando-lhes assim possibilidade de renovação.
Mais ainda: financiou muito do que estava, e, numa larga compreensão do esforço dos médicos, ajuda mo-

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netàriamente a própria investigação; ainda há dias li numa das maiores revistas da França um trabalho médico leito no serviço do grande mestre Pasteur Vallery-Radot e subsidiado na parte experimental pela Sécurité Sociale.
Nem na Suécia nem na própria Inglaterra, onde o seguro social tem feição mais nacionalizada e estatificada, se caminhou para instalações sanitárias próprias, mas se aproveitou o que havia feito e levantado a iniciativa particular ou interesse público. Só a Espanha anda desde há tempos a construir hospitais privativos da previdência, na designação adocicada de «residências sanatoriais».
Já algures denunciei este mau caminho, que jornais espanhóis apontaram também e que se ouve amargamente de muitas bocas responsáveis: a sobreposição duma outra rede hospitalar à que já existe, de hospitais provinciais, clínicos e da assistência, está levantando sérios problemas financeiros, de administração e até escolares. Diminuem cada vez mais os doentes nas enfermarias universitárias e os professores começam a estar aflitos com a escassez de material de ensino para os futuros médicos, cada vez mais numerosos.
Também não é assim a nossa doutrina. Não há dúvida de que a criação de serviços sanitários próprios pela Previdência, não somente os de diagnóstico, mas também os de tratamento, e os farmacêuticos e os de internamento de doentes, traz barateamento de preços.
Os serviços da Previdência não pagam aluguer, não gastam dinheiro em contribuições, não têm de existir como pessoas, nem de sustentar e de educar a família e os filhos. Mas o conceito doutrinário recorta-se com nitidez: nos Estados da nossa doutrina político-social os serviços oficiais ou oficializados não podem ser postos em concorrência ou ameaça de subversão com os serviços de iniciativa particular.
O conceito é tão certo que, quando a Federação tentou já por outra vez montar um serviço próprio de radiologia, com as mesmíssimas razões de economizar uns dinheiros o problema como se vê, não começa agora -, e tinha comprado um aparelho de raios X e instalado um posto de radiologia no Porto, o Sr. Ministro das Corporações e Previdência Social, na lógica perfeita da sua doutrinação, determinou - e honra lhe soja- que o posto não abrisse e que o aparelho se vendesse, porque aquilo era obra socialista.
Não é, igualmente, justo que o seguro social aspiro os doentes de muitos sectores de trabalho para encarregar da sua assistência um corpo de médicos contratados. Não tem paralelo nem pode servir como modelo comparativo o que se passa com algumas associações profissionais, em organizações especiais como a dos C. T. T., em mutual idades, nos próprios serviços de assistência pública.
Nuns casos os benefícios são simplesmente aproveitados por aqueles que para eles contribuem; ó livre a inscrição; o trabalhador paga se tem vontade de usufruir as regalias que a instituição oferece.
Noutros casos os benefícios são dados gratuitamente àqueles que nada têm e para eles em nada podem contribuir. Mas a Previdência não faz assim:

1.º É generalizadora, quer dizer, estende a todos os duma profissão o campo do seguro;
2.º É obrigatória, quer dizer, impõe o seguro;
3.º É exclusiva, quer dizer, não admite outras instituições do mesmo seguro.

Logo, se a Previdência leva para dentro dela os doentes de muitos estratos populacionais - generalizadamente, isto é, a todos obrigatoriamente, isto é, sem o consentimento do próprio segurado, exclusivamente, isto é, sem que o seguro possa ser entregue a outro organismo -, também deve levar todos os médicos, porque todos têm o mesmo direito de abrir os seus serviços aos doentes assim generalizadamente, obrigatoriamente, exclusivamente incorporados.
Não quis a Previdência ir pela via justa, e centenas de consultórios ficaram desertos sem que os médicos pudessem seguir os doentes que lhes eram subtraídos, mesmo aceitando outras condições de exercício. Chegam até mim depoimentos de médicos de todo o Pais, e sei e posso testemunhar a séria crise que se abriu para tantíssimos profissionais habituados a viver com os doentes e dos doentes que o seguro absorveu.
Diz o seguro que, ao inverso do que alegam os médicos, ele lhes aumentou o número de clientes, trazendo para a assistência remunerada muitos que não comportavam qualquer remuneração. O argumento só podia ser posto se o seguro entregasse o acréscimo de doentes à divisão geral dos médicos, e depois havia que perguntar ao seguro se a remuneração pelos que chegam de novo compensa a baixa geral de remuneração.
Nunca os nossos médicos se recusaram a prestar serviços gratuitos, deram-nos e continuam a dá-los com a maior generosidade; mas pediam, e também continuam a pedir, a justiça - a justiça que assiste a quantos trabalham- de deixar que paguem os que podem e na medida do que podem.
Consequências ainda mais graves são as que a racionalização da medicina pelo seguro cria aos médicos acabados de formar. Todos nós, quando saímos das Faculdades, começámos a exercer pelas pessoas mais próximas, as do bairro ou as mais amigas, em todo o caso as mais acessíveis em condições económicas.
Depois lá fomos alastrando em marcha excêntrica e os que tiveram possibilidades escalaram os- vértices. Mas hoje ... hoje não há positivamente campo de trabalho para os médicos que chegam ao patamar do dia, depois duma carreira que exige muito dinheiro e em que se queimam muitos anos de esforço.
O seguro social absorveu a massa de trabalho, meteu dentro dele os grupos mais representativos de trabalhadores das cidades e das vilas, e, quando os médicos lhe batem à porta para o exercício legítimo da profissão, responde que tem os quadros completos.
E que hão-de fazer estes médicos recém-vindos, de que hão-de viver, se os que estão fora do seguro procuram, muito legitimamente, os nomes já consagrados?
O que fazem, na sua grande maioria, descontados aqueles que se acolhem à protecção de um médico mais antigo, é, depois de um ano ou de dois de vida errante pelos hospitais ou pelas clínicas, aceitar qualquer lugar, qualquer situação que lhes dê uns magros centos de escudos e os liberte de continuarem a receber da família a pensão de estudantes. E isto é o afundamento do ânimo, a revolta contra a própria profissão, a impossibilidade de subida, de aperfeiçoamento, de melhoria, até pela impossibilidade de comprar um livro ou de assinar uma revista.
Eu ouço, vivo todos os dias este quadro nos que me procuram e meço na sua real dimensão as graves perspectivas criadas aos rapazes que andam, despreocupados, pelas nossas Faculdades de Medicina. Como as avaliam muitos professores que me contam a sua reflexão amarga; a obra dos mestres não acaba no ensino e na preparação dos médicos; fica no melhor da alma, com amor quase paternal, a sorte dos que ungem com o poder de curar e trazem pela mão à porta da Faculdade.
É certo que os médicos quinhoam das dificuldades que no momento afligem o caminho de todos os diplomados. Mas, porque há-de o sistema de racionalização da medicina adoptado pela nossa Previdência agravar

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particularmente o que já está difícil? Se o seguro social nasceu da ânsia de um mundo com melhor justiça, não pode tornar aflitivas as condições de vida de uma classe social.
O errado caminho da burocratização conduz ainda a outros males. O maior é a privação da liberdade de escolha do médico. Não se conferindo a todos os médicos o direito de prestar serviços no seguro de doença não se pode dar aos segurados o direito de escolher o módico da sua confiança. A liberdade de escolha é uma das características essenciais da arte de curar. Não há que jogar com o seu sentido.

A Ordem dos Médicos esclareceu bem:

A medicina coloca a liberdade de escolha dentro do condicionalismo das outras liberdades; não a crê ilusória só porque o doente não pode escolher entre todos os médicos do Mundo ou entre todos os médicos do País; considera-a real, efectiva, quando o doente vai até ao médico que, por uma ou por várias razões psicológicas, escolheu entre os que estavam ao alcance da sua escolha. E é esta razão ou razões psicológicas que interessam a medicina; é a sua existência e a sua importância como factor activo, de real actuação no jogo terapêutico, que a medicina quer defender.
A medicina trata pessoas. O homem não adoece só no corpo; adoece no seu todo solidário e harmónico, adoece inteiro, traz para a doença tudo quanto o constitui, desde a herança, desde o modo de ser orgânico e psíquico, desde os valores morais e afectivos, até ao meio em que luta e se defende. E esta pessoa humana que se recorta e se afirma na particularidade do seu sofrimento, diz a nossa doutrina, e di-lo rasgadamente, está por cima da lei social.
O nosso Estado não pode tolher ao doente a liberdade de escolher o seu médico, tem de a respeitar, de curvar-se perante o que é lídima dignidade da pessoa humana.
Curioso, bem merecedor de ser lembrado, é que o binário - direito de todos os médicos de prestarem serviços no seguro e direito de todos os segurados de escolherem o médico- se respeita por outros Estados sem a nossa ideologia, mesmo aqueles onde o seguro se estruturou em moldes socialistas.
Na Suécia e na Inglaterra, por exemplo, todos os médicos podem à vontade entrar no seguro ou ficar fora dele e o beneficiário pode escolher o médico que mais preferir.
Colectivizaram-se os riscos, os Estados tomaram à sua conta os seguros de todos os cidadãos e financiam as responsabilidades pelos impostos gerais, mas respeitou-se o carácter individual do acto médico. É que a consulta e, com ela, o diagnóstico e a terapêutica não se exprimem, como nos outros seguros, por números e tempos fixos, não se subordinam a série e a massa, são problemas fundamentalmente, essencialmente, pessoais, diferentes para cada homem. E ou se respeita este modo de ser do acto médico ou se faz tudo menos medicina.
Seria estranho que fôssemos nós os doutrinários do Estado que não é fim do homem, os defensores da dignidade da pessoa humana, quem destruísse o bom sentido da medicina social. Fala-se muito de medicina social; ó uma expressão que anda por aí facilmente na pena ou na boca de muita gente. E eu lembro que para saber o que é medicina social não basta ser técnico do social, impõe-se também ser médico.
Posso repetir aqui o que disse há pouco mais de um ano na Faculdade de Medicina de Coimbra, quando abri o curso de férias que se realizou ali em colaboração com o conselho regional da Ordem dos Médicos:

Pensa-se que para ser social a medicina tem de mudar, não já o ruma ou exercício, mas o próprio sentido. A medicina não precisa de chamar-se social só porque tem de acudir à higiene e à assistência da família, da profissão ou da cidade.
Porque a medicina ó feita do homem e para o homem e só cumpre o bom sentido quando acompanha o homem na expressão de todas as suas realidades naturais. E se o século agrupou os homens, se são os grupos que organizam a prestação da medicina, se o homem não chega hoje ao médico na sua independência individual e chega integrado no grupo, número dum colectivo maior ou menor - no fim, no último elo, para que haja medicina tem sempre de ficar o homem, a unidade irredutível ao nivelamento, o particular e o distinto do drama de cada um.
E posso também acrescentar o que disse há meses aos médicos do V Curso de Aperfeiçoamento do conselho regional de Lisboa:

A medicina não é, como alternada e erradamente se tem defendido, nem celular, nem humoral, nem psicossomática, nem agora social; é tudo isto, é o conhecimento do homem total, do homem inteiro, a viver e a sofrer na equação do seu eu e das suas circunstâncias, das realidades naturais em que se integra, desde a família ao grupo profissional e ao agregado civil.
Quer dizer, não há em bom rigor medicina social; há o aspecto, o lado, a face social da medicina. E se vimos de um tempo em que a medicina foi quase exclusivamente individualista, não corrigimos o caminho se ela passa a ser exclusivamente social. Continuamos a não compreender-lhe o sentido de totalidade. De um erro caímos para outro erro, na mesma atitude, porque os fenómenos são conexos daquela visão parcial do homem que ontem fez o pecado do individualismo e hoje fere de morte as doutrinas comunitárias.
Se a todos os médicos deve ser dado o direito de prestar serviço no seguro, também é preciso que se mude o sistema de retribuição dos médicos, acabando com o vencimento fixo. Desde há anos que a Ordem dos Médicos vem insistindo por que os médicos recebam em função dos serviços prestados.
Em 1951 o Sr. Subsecretário das Corporações e Previdência Social nomeou uma comissão para estudo dos quadros, categorias e remuneração do pessoal médico da Federação; dela faziam parte um representante da Direcção-Geral da Previdência, um representante da Federação dos Serviços Médico-Sociais, que era o seu vice-presidente, e um representante da Ordem dos Médicos. Elaborou a comissão um apreciável relatório, redigido pelo vice-presidente da Federação, onde se propõem já todos os princípios que venho aqui defendendo:
1.º O direito de prestar serviços concedido a todos os médicos da área de um posto;
2.º Consultas nos consultórios médicos e aproveitamento dos postos como centros administrativos da área;
3.º Faculdade de o beneficiário escolher entre todos os médicos da área;
4.º Remuneração dos médicos em função dos serviços prestados ou pelo sistema de capitação, no caso de haver bastantes doentes para a assistência, ou então a remuneração por serviço ou acto médico.

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Convém referir e sublinhar tudo isto para que se verifique como os princípios não suo errados nem impraticáveis e como os delegados da nossa Previdência os compreenderam já bem amplamente. Porque não foram realizadas, postas em vigor, as sugestões da comissão de há três anos?
O Subsecretariado passou a Ministério, a continuidade dos critérios interrompeu-se e entrou a crescer e a avolumar-se, brandindo por vários lados, um argumento máximo: o pagamento em função dos serviços favorecia o abuso dos médicos.
Era o perigo de corrupção, e começou a forragear-se através da? caixas, para alinhar em decisiva lista negra quantos profissionais tinham excedido a liberdade de consulta e de prescrição.
Ora entendamo-nos. Não pode a classe médica evitar que entre as suas fileiras se aninhem maus profissionais. Como acontece em todas as outras classes, é uma condição inevitável, uma realidade de construção, com que se conta em qualquer das organizações onde entram os homens. E sempre os regimes jurídicos postulam maneira de a conjurar.
Mas que haja pelas nossas terras vinte, mesmo cem, médicos que abusem ou prevariquem? Basta, sinceramente chega para invalidar as virtudes do sistema? Como não compreender que uma forte atitude punitiva da instituição defraudada e dos tribunais disciplinares da Ordem dos Médicos não deixaria que o mal se repetisse ou alastrasse?
O argumento não pode convencer a quantos são bons homens e bons portugueses. Por essa Europa fora, com excepção dos países soviéticos, na Espanha, França, Suíça, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Inglaterra, os seguros sociais remuneram os médicos segundo a actividade exercida.
Na Espanha e na Inglaterra são remunerados por capitação; nos outros países por unidade de serviço. Tem o seguro na Europa fiscais e inspectores; defende-se contra a fraude, investiga, apura, facilita e premeia a denúncia; e a verdade, a escandalosa verdade, ó que poucos, pouquíssimos médicos fraudadores se têm averiguado contra a multidão imensa dos que servem honestamente.
Vamos então aceitar que é diferente a craveira moral dos médicos portugueses? Que não têm uma honestidade igual à dos seus companheiros europeus? Não concluamos injustamente.
Os nossos médicos merecem o nosso respeito. Na proporção de tudo o que é humano, perfila-se em alta beleza o número dos que cumprem honradamente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Quantas dedicações por esse país fora?
Quem dá, todos os dias, mais gratuitidade de serviços?

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Fora do sacerdócio da alma, quem mais se levanta a horas escuras para assistir à dor humana e tantas vezes sem mais paga que o próprio coração?

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Bastaria que cem o fizessem entre os sete mil profissionais do País para que a sua altura moral resgatasse os outros cem trazidos ao pretório do seguro.
Eu sei que a remuneração dos médicos em função de serviço foi lia meses discutida pouco favoravelmente pela Organização Mundial da Saúde. Houve instituições de previdência que entre nós logo puseram a correr o informe, triunfalmente, nas mãos dos seus médicos.
Mas ó preciso dizer que contra as conclusões do relatório se insurgiu com fortes razões a Associação Médica Mundial; o relatório peca do defeito de tantos; foi elaborado exclusivamente por técnicos ou funcionários de saúde, médicos sem o contacto da vida real, fora dos passos da clinica e desconectados das reacções dos doentes.
O trabalho dos médicos funcionalizados e com um vencimento fixo é um trabalho sem estímulo, que leva a consequências dignas de meditação. Por muitas partes vão julgados os malefícios desta burocratização dos médicos, mais depressiva do que outra qualquer, porque é estática, definitiva, pela própria natureza da profissão: o médico ó sempre médico e igual no exercício a outro médico.
Não há muito que o mais importante diário de Madrid comentava:
Se o facultativo recebe um soldo fixo do Estado, cure ou não cure os seus pacientes, perde um dos estímulos mais poderosos para a sua autoformação.
Se, para mais, comprova que os colegas que procuram estar em dia e os que se banalizam gozam de idêntica consideração e benefícios, é muito provável que se desmoralize, e, se não tem uma forte vocação, deixará de estudar.
Numa ciência experimental como a medicina, que está sempre em marcha, deter-se equivale a perecer. Esta burocratização estendida a toda uma geração de médicos pode chegar a produzir uma verdadeira crise sanitária.
Para que um médico se aperfeiçoe bom é que ao seu estimulo se abra o ganho de melhores posições científicas e económicas. E não tolhamos os passos livres do médico com os cambões, os agenciamentos, a angariação suspeita da clientela.
O trabalho do médico enreda-se nas mesmas malhas das outras profissões, sofre de tudo o que é humano. O que temos é de procurar que o trabalho do médico seja melhor, maior, mais alto de nível científico e mais fecundo de interesse para os doentes.
Há, sem dúvida, entre os médicos, como entre todas as profissões, almas de apóstolo, vocações superiores, vontades guiadas por uma luz espiritual ou até por um determinismo constitucional, que estão acima dos bens e das recompensas do Mundo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas o homem corrente, o homem de todas as ruas e de todas as horas, mo vê-se, na equação das actividades, pelas forças, também humanas, da ambição ou do desejo de ser mais e maior. E, se o funcionalizamos, se o enquadramos, se o nivelamos sem a compensação relativa de esforços, quebramos muito das molas espontâneas, muito do que nele é constitutivo e particular.
A medicina burocratizada não leva espontaneamente às elites. Ainda não se viu a grandeza das consequências porque os vértices actuais, feitos em outro sistema, florescem compensadoramente. Mas, se não mudamos o que está - ca todos nos interessa uma medicina de alto nível-, os próprios acontecimentos hão-de acabar por impor a correcção. O inevitável pendor das coisas humanas trará com a mentira da medicina a mentira da assistência.
É de verdadeira excepção a posição dos médicos portugueses em relação ao seguro social. E não sei que estranha atitude é a dos que insistem em que os médicos continuem assim funcionalizados com um vencimento certo. Paro muitas vezes a meditar porque se

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teima em desumanizar a medicina, por que razão tantos homens, mesmo entre os que se dizem na guarda dos nossos valores espirituais, trabalham contra o homem, andam empenhados em quebrar-lhe os ângulos distintivos, dissolvê-lo na poeira da multidão.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Porque, se é verdade que o maior cuidado da nossa hora é a defesa da pessoa humana, se é certo que a grande ruína cada vez mais presente é o aniquilamento do homem pela massa, então não trituremos a medicina, deixemos que ela se expanda na força dos seus valores.
Nenhuma disciplina como a Medicina forma do lado do homem contra a massa; nenhuma como ela encontra nos passos de toda a hora a verdade natural de desigualdade humana, a realidade de que os homens nascem iguais e ficam para sempre distintos na particularidade das suas reacções.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Temos de reorganizar a nossa Previdência. Detida há três anos, suspensas as suas directrizes, são horas de recomeçar. Há muito que fazer e desfazer na nossa Previdência. Fora da realidade estaria quem julgasse encontrar duma vez as soluções definitivas para problemas que oscilam ainda na mente e nas mãos dos melhores técnicos, mas a verdade também é que a nossa experiência e a dos outros já nos dão luzes bastantes para romper a. indecisão actual e, de momento, construir um sistema, especialmente um sistema sem pecados de doutrina.
O problema é vasto no que joga com a administração de grandes dinheiros e no que respeita às condições de vida e ao nível profissional da classe médica; também ó belo no que traduz de amparo aos mais importantes riscos dos nossos trabalhadoras.
Aqui o deixo entregue ao Governo, com o melhor de mim. Ao Sr. Presidente do Conselho, ao grande construtor da nossa doutrina, à inteligência superior que tão claramente abarca os problemas e tão rapidamente sobe do pormenor à síntese como desce da visão panorâmica à intimidade individual, ao homem bom, simples, conciliador da autoridade com a liberdade, honesto, duma honestidade que o País aceita sem discutir como penhor das virtudes do regime ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - ... deixo nas suas mãos quanto estudei e meditei, cheio de fé, porque conheço o particular carinho com que olha o problema. E entrego-o, bem do coração, ao Sr. Ministro das Corporações e Previdência Social, antigo companheiro das nossas lides, que todos daqui vimos partir com saudade mas alegres pela certeza de mais altos destinos.
Não me cega a amizade ganha em anos de caminhos comuns para o. afirmar um dos nossos melhores valores de inteligência e de doutrina.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Vivi muito a seu lado e conheço a sua meditação sobre a providência para dizer e agradecer aqui, como português, como Deputado e como médico, o grande serviço que vai prestar ao País.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Interrompo a sessão por 5 minutos.
Eram 18 horas e 25 minutos.

O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Eram 18 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - O Sr. Presidente do Conselho enviou à Assembleia Nacional a resposta ao aviso prévio do Sr. Deputado Cerqueira Gomes, que fica ao dispor dos Srs. Deputados, pelo que será publicada no Diário das Sessões, e vai ser lida.

Foi lida. É a seguinte:

«Sr. Presidente do Conselho. - Excelência. - 1. Em referência ao aviso prévio sobre a Previdência Social apresentado na Assembleia Nacional pelo Sr. Deputado Manuel Cerqueira, Gomes, julgo conveniente fornecer a V. Ex.ª algumas explicações, com vista a elucidação da mesma Assembleia.
Para tanto, embora por ordem diversa da sua enumeração no aviso prévio, percorrerei os quatro pontos em que aquele Sr. Deputado procura desenvolver a tese proposta.

2. O aviso prévio (n.º II) pretende demonstrar que a «expressão máxima da Previdência Social são as caixas - caixas sindicais ou de reforma, ou de previdência - e as federações», sendo as «outras expressões da, Previdência, como as Casas dos Pescadores e as Casas do Povo (...), de muito menos, monta»; e que as primeiras «abrangem desde já uma população» de «l milhão entre beneficiários e pessoas de família, e dão uma receita de contribuições» superior a «1 milhão de contos».
Esta proposição, em rigor, não carece de qualquer demonstração e, portanto, nada, há de especial a anotar-lhe, a não ser, talvez, que tanto as Casas dos Pescadores como as do Povo, em matéria de segurança sócio 1, são, sobretudo, instituições que. mercê da sua «debilidade económica», precisariam de estar ... seguras. O aviso prévio imita-se aqui a uma simples verificação de factos, em que se não vislumbra qualquer conteúdo crítico. As chamarias «expressões» da Previdência Social constam da lei e afio de todos conhecidas. Os números referidos ou outros aproximados (por exemplo o de l 200 000 para beneficiários e pessoas de família e o de 800 000 para contribuições da Previdência Social andariam mais próximos ria realidade) são elementos estatísticos já várias vexes divulgados.

3. O aviso prévio (n.º I) pretende demonstrar também que a Previdência Social «foi detida há mais de três anos», «depois de uma montagem e de uma expansão rápida», «quando começaram a patentear-se os erros doutrinários com que vinha estruturada e quando as realizações ameaçaram atingir volume incomportável de despesas e isolar-se em discordância dos restantes serviços sanitários».
Ignoro se neste passo está contida só uma afirmação: a de que a Previdência Social foi detida há mais de três anos, sendo todo o restante do período gramatical meros complementos circunstanciais de tempo (a juntar ao «há mais de três anos»), ou se os ditos complementos envolvem também verdadeiramente aspectos do problema a demonstrar no desenvolvimento do aviso prévio.
Partindo do pressuposto de que se verifica a segunda hipótese, cumpre-me esclarecer o seguinte:
a) Ao Ministro das Corporações e Previdência Social não cabem responsabilidades na rapidez de montagem e expansão da Previdência Social, que são factos anteriores à criação do Ministério. Mas nem por isso se

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furtará a dizer que encontra para o caso, considerado genericamente, unia compreensível explicação:
Trata-se, entre nós como lá fora, de um fenómeno natural da nossa época. Por outras palavras, e para citar os dizeres do ilustre autor do aviso prévio, há cerca, de quatro anos estamos perante uma ideia que «se decidiu francamente no nosso País em 1933, com o Estatuto Nacional do Trabalho» (ou, mais rigorosamente, Estatuto do Trabalho Nacional) e de um «movimento» que «recrudesceu» vigorosamente em todo o Mundo «com a última guerra», dando melhor do que nenhum outro, a «característica social da nossa hora»1. Nascida num ambiente febril de ansiosas esperanças e por entre juvenis entusiasmos, a Previdência procurou afanosamente «desbravar os seus caminhos» e, abrindo «um mundo de coisas novas para a nossa meditação», ainda segundo expressões do Sr. Deputado Manuel Cerqueira Gomes, foi-se desenvolvendo depressa, até vir a sofrer do que já um dia eu próprio chamei «crise de crescimento».
b) Não cuido bem quais possam ser os «erros doutrinários com que vinha estruturada» a Previdência Social.
Se as caixas são a sua «expressão máxima» e, portanto, a sua estrutura fundamental, parece que, no entender cio aviso prévio, serão estas o grande vício do sistema. Mas, em tal caso, não se descobre porquê. Como refiro em trabalho anexo o. esta exposição, considero que mais facilmente pode acusar-se de anticorporativo ou socializante o monolitismo de um sistema institucional igual ou idêntico ao preconizado no aviso prévio para substituir os actuais caixas (o sistema de caixa única, fazendo tábua rasa da unidade da «empresa.» e da identidade da «profissão»), do que o presente mosaico variegado de múltiplo» instituições.
Se é ao regime financeiro da Previdência Social que o aviso prévio pretende referir-se, há-de dizer-se que, sem deixar de se respeitar o seu vivo desamor ao regime de capitalização, era por este, certamente, que uma razoável prudência aconselhava a começar-se, não sendo agora momento oportuno paro, o alterar ou rever, como o mesmo aviso reconhece. Parece, de resto, que ninguém adquiriu ainda certezas- definitivas neste como em outros domínios da previdência social.
Creio também não1dever pôr-se o ... nódoa negra no esquema de benefícios., que o próprio aviso prévio considera pecar por míngua, antes que por1 excesso de regalias ou concessões.
Em resumo, para não alongar inutilmente esta análise exegética: o pensamento do aviso prévio terá talvez sido atraiçoado pela infelicidade das palavras. Pretenderia, acaso, referir-se menos a erros doutrinários de estrutura da Previdência Social do que a simples desvios de funcionamento de alguma das suas instituições em momento já passado e ultrapassado. Mas, a ser assim, a. questão é de mero carácter histórico e não tem ao presente interesse relevante.
c) Quanto às realizações que «ameaçaram atingir volume incomportável de despesas» e a «isolar-se em discordância dos restantes serviços sanitários», parece que o aviso prévio não deverá ter querido atingir propriamente a Previdência Social, mas apenas uma das suas muitas «expressões» - a Federação dos Serviços Médico-Sociais. Tomando a (parte pelo todo, de novo foi atraiçoado pela imprecisão das palavras.
Parece igualmente que se reporta «penas a tempos volvidos, e, portanto, «em conteúdo útil para os fins em vista.
Sem embargo, informar-se-á o seguinte: não se descortina onde haja presentemente qualquer tendência de isolamento «em discordância dos restantes serviços sanitários» e, mais do que isso, pode afirmar-se com
inteiro rigor que a Federação tem estado a proceder exactamente ao arrepio de tal orientação, como o ilustre autor do aviso prévio muito bem saberá e sem dúvida virá a fazer a justiça de esclarecer na Assembleia Nacional. Quanto ao «volume das despesas», o Sr. Deputado Manuel Cerqueira Gomes decerto não ignora também (até por várias indicações pessoais do Ministro, designadamente a propósito do problema da radiologia) os notórios esforços da Federação para reduzir esse volume a limites comportáveis. Espera-se que S. Ex.ª possa aproveitar a efectivação do aviso prévio para o reconhecer expressamente e que não perca a oportunidade de ao mesmo tempo, habilitar a Câmara e o Governo a ajuizarem com exactidão da viabilidade financeira, do esquema de benefícios preconizado no aviso prévio, de modo a ninguém ter legítimas dúvidas de que não arrastará a Previdência Social para um ... permanente «volume incomportável de despesas» e, portanto, para a completa falência financeira do sistema.
d) A afirmação de que a Previdência Social foi «detida há mais de três anos», não tendo em si mesma qualquer interesse visível, parece ter sido feita apenas para se reforçar um reparo: o de que, não obstante esse espaço de tempo, a Previdência Social, «que é um dos mais vultosos problemas da nossa hora, continua sem revisão».
O alcance da afirmação deverá, portanto, ser o seguinte: a Previdência Social foi detida pelo Governo há mais de três anos e esta detenção tem de significar o reconhecimento de que era necessário revê-la. Como tal revisão fé não fez até agora, o Governo deixou de dar satisfação a uma necessidade que ele próprio reconhecera.
Ao Ministro das Corporações e Previdência Social afigura-se, porém, que esta conclusão é de todo improcedente.
Na verdade:
1.º Se o aviso prévio, falando genericamente em «previdência social», pretende referir-se à ... Previdência Social propriamente dita, é errada a premissa de que partiu para a sua aludida conclusão, pois ninguém fez deter a Previdência. Social há mais de três anos.
A única directriz marcada a este propósito deu-a o Ministro da Corporações e Previdência Social há ... menos de três anos, quando aconselhou «pausa» nas ... realizações da Previdência, isto é, nas conquistas da sua acção em profundidade e precisamente em ordem a um «exame autocrítico» que tornasse possível eventuais revisões.
Mas não quis deter e não deteve a Previdência Social, de resto já aplicada à generalidade do comércio e da indústria. Tanto ela não foi detida que se alargou em 1952 às indústrias de sapataria e chapelaria. O próprio aviso prévio pôde categoricamente afirmar que «está para breve» (sic) a incorporação «de outros grupos de trabalhadores assalariados» - embora o Ministério das Corporações e Previdência. Social não disponha de mais notícias a tal respeito do que as ministradas no referido aviso prévio ...
2.º Se o aviso prévio, ainda que falando genericamente da Previdência Social, pretende atingir apenas (com nova imprecisão de linguagem) uma idas suas várias «expressões», a Federação dos Serviços Médico-Sociais, ou mesmo esta e o esquema de seguro doença por ela praticado, terá talvez razão na premissa, anãs continua a não ter na conclusão.
O ilustre autor do aviso prévio estará certamente recordado de que, pouco depois da data que designa por «há mais de três anos», foi reorganizada a Federação (26 de Setembro de 1949) e reformado o esquiem a do seguro doença (Decreto n.º 37 762, de 24 de Fevereiro de 1950).

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Ova, salvo melhor critério, isto chamasse, em termo rigorosamente adequado, uma revisão ...

4. Pode, todavia, independentemente de todo o exposto, colocar-se a questão de saber se deve ou não pensar-se numa reforma geral da Previdência Social.
O aviso prévio (n.º IV), depois de enunciar os problemas que tal reforma deveria comportar, propõe-se fazer a demonstração de que «tanto a nossa como a alheia experiência já nos duo luzes bastantes para romper a indecisão actual e de momento construir um novo sistema».
Também o Ministro das Corporações e Previdência Social entende que, para além da disciplina de funcionamento que ele tem procurado instaurar ou reforçar na vida das instituições da Previdência Social, são aconselháveis certas reformas de fundo ou de estrutura, até agora impedidas, não pelo que no aviso prévio se quis chamar a indecisão actual», mas por uma efectiva impossibilidade prática, derivada do desconhecimento do regime financeiro que poderia adoptar-se, como se esclarece em documento anexo a esta exposição.
No referido documento fie explanam igualmente as razões pelas quais o Ministro das Corporações e Previdência Social tem de lamentar, e sinceramente lamenta, não poder partilhar do optimismo do aviso prévio quanto à suficiência das «luzes» da nossa e da alheia experiência para a construção «de um novo sistema». Aqui dir-se-á apenas que todas as aludidas razões se apoiam, no facto de ser uma novidade a instituição da Previdência Social, em Portugal como no resto do Mundo.
Esta novidade obriga e haverá ainda, de obrigar, por bastante tempo, a uma aprendizagem que nem sempre é barata e que uns têm pago mais caro do que outros, conforme a segurança dos princípios de onde se partiu e a prudência dos critérios por onde se actuou. Já um dia pude afirmar que suponho difícil emitir-se, por enquanto, juízo seguro sobre um perfeito sistema de previdência social, porque se não sabe como reagirá a vida, em definitivo, relativamente a qualquer deles. «Neste domínio, entre nós como lá fora (concluía eu então), pisa-se verdadeiramente uma terra de experiência».
Presto ao ilustre autor do aviso prévio a grata homenagem de afirmar que o Ministro das Corporações e Previdência. Social enfileira no número das pessoas que mais têm procurado conhecer e examinar as suas ideias sobre previdência social, sempre na preocupação de encontrar a, firmeza do pensamento condutor de S. Ex.ª Mas, infelizmente, ainda não foi possível descortinar, até agora, «luzes bastantes» para nele adquirir certezas capazes de ajudarem a «construir um novo sistema».
Ilustrarei a afirmação com alguns exemplos - que me limito a apontar:

a) Pelo menos até à apresentação do aviso prévio nunca discordou de que se tivessem incluído as doenças de curta, duração no esquema de benefícios da Previdência Social e, antes, encomiàsticamente se referiu a esta inclusão, que dizia estar de harmonia com a Regulamentação Internacional do Trabalho3 e considerava como « os primeiros degraus na protecção dos nossos trabalhadores», assim libertos da dependência «dos favores da caridade ou da filantropia». Ainda há relativamente poucos meses, em trabalho que se dignou elaborar a meu pedido, mantinha a defesa deste seguro, propondo até como uma das formas de se «evitar a fraude das baixas», o regresso «à carência inicial de três dias», que, pelo mesmo motivo, fora alterada para seis, em 24 de Fevereiro de 1950 (pelo (Decreto n.º 37 762, onde se deu satisfação a várias críticas ao tempo formuladas por S. Exa.).
No mesmo trabalho, defendendo, embora, também a inscrição do seguro de longa doença no esquema de benefícios da Previdência Social, admitia, no entanto, que não viesse a estabelecer-se («não se querendo adoptar ou criar a modalidade do risco doença longa», escrevia ).
Agora, porém, diz no aviso prévio que «deve inverter-se o período do plano assistencial», em ordem a «não atender as doenças de curso prazo, que pela tentação das baixas são pesadelo das tesourarias» ...
b) Referindo-se ao modo de prestação dos serviços médicos, não recusou, até há pouco, legitimidade ao princípio da existência de médicos privativos, quer na Federação ou nas caixas, quer nas Casas do Povo ou dos Pescadores, limitando-se a alvitrar formas diversas de selecção e modificações no regime de remuneração5.
Reconhecia, é certo, que «a racionalização da medicina ergue ainda entre nós oposições enérgicas», visto preferirem nalguns que se tivesse adoptado o regime da clínica aberta». Mas, para resignação destes inconformados, logo acrescentava, sem anátemas doutrinários, que tem de reconhecer-se a necessidade de «enveredar no nosso país pelo caminho da racionalização» e que, «fechando a exiguidade dos recursos (...) possibilidade de opção» pelos «processos de um ou de outro sistema», «não cabe outra atitude além de aceitar». E, como que a invocar legitimidade, em face dos princípios, para a solução adoptada, reforçava a justificação desta dizendo que «podem continuar as opiniões divididas, mas a força evolutiva dos acontecimentos, com a extensão progressiva dos serviços sanitários pelo regime dos seguros obrigatórios, vai levando a medicina para uma socialização mais ou menos completa». Já antes, no mesmo pendor de espírito, erguera um hino de louvor ao «domínio social»7, afirmando que se fechou «o episódio do individualismo e dos Estados liberais, (...) guardas benévolos das iniciativas privadas»! «Particularmente, acentuava, pode cada um de nós ficar no quadrante que melhor preferir» (saudoso do liberalismo, defensor do estatismo, etc.); mas, nas questões da previdência em geral e da saúde em especial, «temos de ser objectivos: a hora é do social». Daí que a medicina, «de livre no seu exercício e de individual na sua prestação de serviço», tenha passado a ser gradualmente «regulamentada em mais ou menos extensão» e a caminhar «em sentido social», «num social que ganha significado diferente do que era tradição».
Louvava, entretanto, que o nosso sistema de previdência sócia:! não tivesse passado de «meia socialização» e pedia que se procurasse sempre «funcionalizar o médico» o menos possível, indicando o processo adequado da simbiose, que ela este7: aos clínicos gerais e especialistas, que só estavam a receber «vencimento fixo» (funcionalização), deveria manter-se este «vencimento básico» e, semelhantemente ao sistema adoptado para os «cirurgiões», ordenar «sobre ele um suplemento em proporção do número de doentes, assistidos, desde um mínimo até um máximo a considerar» (desfuncionalização) - donde resultava a defendida «meia socialização».
Agora, no aviso prévio, embora sabendo-se que não aumentaram os recursos financeiros, (cuja exiguidade era justificação prática do médico privativo) e que se deve ter mantido a «força evolutiva dos acontecimentos» (dos quais resultara termos de escolher o «quadrante» chamado da «meia socialização»), -arvora, como princípio incontroverso, que «a .nossa Previdência deve renunciar a funcionalizar os médico com vencimento fixo» e que «todos os médicos devem ler o direito de prestar serviços no seguro de doença, como todos os segurados devem ter o direito de escolher o médico da sua confiança».

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c) Ainda a propósito da debatida questão entre médicos privativos ou clínica livre, partia da existência daqueles para a legitimidade, do princípio dos economicamente débeis, escrevendo9: «Se (o seguro doença), limita os médicos, porque não limita, em justo paralelo, os doentes, a exemplo da Espanha, que tem também médicos privativos e restringe o campo de aplicação aos economicamente débeis, definidos por um salário anual que não exceda 18 000 pesetas?» Logicamente, entendia também que, mantendo-se a extensão da assistência médieo-social para além dos economicamente débeis, isto é, podendo incluir-se nela a generalidade, da população, deveria a Previdência Social, como nos países onde esta se mostra mais socializada, admitir a todos os médicos», visto «levar todos os doentes» 10.
Com base neste raciocínio, o Ministro das Corporações e Previdência. Social alvitrou um dia que se aceitasse a baliza limitadora dos economicamente débeis e, em princípio (ao menos em princípio), se mantivesse a admissibilidade de médicos privativos, conforme o referido «justo paralelo».
Agora, no aviso prévio, considera incindíveis o critério dos economicamente débeis e o critério da clínica livre.
d) Apontava com frequência o exemplo da previdência social em Espanha 11, «onde rege a doutrina de um Estado forte com tendências sociais», mas «não socialistas, e onde, no entanto, o seguro doença «abrange todos os produtores por conta própria ou alheia» (só com a restrição de «rendas de trabalho cujos limites progressivamente se ampliam), tem médicos, privativos, possui postos em que «se concentram os clínicos gerais e os especialistas com o seu instrumental de semiótica» e com os seus «laboratórios de análises e de raios X», ergueu hospitais e sanatórios, etc.
No aviso prévio, todavia, considera que hão-de ter-se como fenómenos inequívoco* de socialização dia nossa Previdência Social a inclusão dos trabalhadores de conta própria, ou independentes no seguro doença, a existência de médicos privativos e a criação de qualquer serviço próprio, incluindo os «radiológicos e analíticos».
e) Entendia, há quatro anos, que «a concentração dos serviços médico-sociais das caixas» na Federação «marca um aumento real de eficiência» sobre o que «anteriormente se fazia» - embora à Federação se não possam «pedir maravilhas e perfeições», porque a solução que busca é, «como em todos os países», «por caminhos virgens», e porque, também «em todos os países a «organização do seguro contra a doença levanta desagrados e protestos», acrescentando que «se o Estado, na sua função orientadora, conseguir (...) rectificar-lhe algumas atitudes (...), benditos os esforços, porque teremos uma obra de notável utilidade social»12.
Apesar deste referido estado de coisas só ter melhorado de então para cá e de terem sido designadamente rectificadas as aludidas atitudes, entende agora, no aviso prévio, que da concentração não resultou nem «superior eficiência» nem embaratecimento do serviço - atribuindo a causa ao suposto facto de as caixas continuarem «com o mesmo sistema, de encargos» e de haver, portanto, «sobreposição de dois organismos para o mesmo fim»; mas achando perfeitamente lógico concluir daqui, com menosprezo das alegadas vantagens da concentração, não a necessidade de as caixas abandonarem a duplicação, mas a conveniência de recusarem integrar-se na Federação.
f) Proclamava, há cerca de quatro anos, que «decididamente» ainda se não pode dar «um juízo nem completo nem definitivo» sobre os Serviços Médico-Sociais da Previdência Social, não só porque ainda «tacteiam», mas também porque «em nenhuma parte se encontrou ainda a fórmula feliz».
No aviso prévio, porém, considera já chegada a hora cia, com as «luzes bastantes» da nossa e da alheia experiência, «construir um novo sistema».
Para não alongar demasiado este quadro exemplificativo acrescentarei apenas que no próprio aviso prévio aparecem contradições, a eriçar de dificuldades uma visão perfeita do pensamento do seu ilustre autor. Citam-se as seguintes a título demonstrativo:
1.ª Entende que a Previdência Social «não deve atender as doenças de curto prazo».
Mas entende também que as prestações médicas e farmacêuticas «devem completar-se» (as actuais, que respeitam às doenças de curto prazo), garantindo ... «assistência nocturna» e ... «ampliando os medicamentos», como já tinha entendido, noutro lugar, que deveriam completar-se gastando «dinheiro na medicina, preventiva» 13.
2.ª Entende que «o financiamento do Plano de Fomento supõe para a Previdência, durante seis anos, a manutenção da capitalização actual».
Mas entende também que se deve «capitalizar menos» e construir desde já «um novo sistema» nessa base, com maior distribuição nos riscos imediatos e menores reservas para os seguros a longo prazo.
3.ª Entende que «entre os trabalhadores assalariados não deve haver ramos com privilégio», pois «o seguro tem de chegar a todos» (exceptuados certamente os não económica mente débeis).
Mas entende também que, quanto aos trabalhadores rurais (os mais numerosos e mais débeis) a organização deveria ... «prestar ao menos o seguro doença».
4.ª Entende que a estrutura administrativa da Previdência Social ficaria melhor determinada com as caixas federadas, logo de entrada, numa «caixa única, que preste directamente os serviços sem necessidade de órgão intermediário».
Mas entende também que esta caixa única seriam «caixas únicas distritais», federadas ou ligadas a uma a caixa nacional central», que «asseguraria a unidade do plano geral de previdência».
Tudo quanto se deixa exposto nada prova contra o aviso prévio- ou contra o seu ilustre autor. Prova simplesmente que estamos em face de problemas delicados pela sua novidade, pela sua complexidade e pelos seus profundos reflexos na vida social. Daí, naturalmente, que tenha de haver, perante eles, muitos espíritos com algumas indecisões e alguns espíritos com muitas confusões.

5. O aviso prévio (n.º III) pretende, finalmente, demonstrar qual o «novo sistema» de previdência social a «construir», e é assim, nesta parte, verdadeiramente programático.
O plano geral da reorganização ou «revisão» proposta foi ou virá a ser encarado sol) cinco aspectos a que muito pouco há a esclarecer, se de esclarecimentos «e pode tratar aqui. Em duas reuniões, realizadas respectivamente em 11 de Outubro de 1951 e 4 de Fevereiro de 1953 (a primeira das quais foi honrada com a presença do ilustre - autor do aviso prévio, na sua qualidade de bastonário da Ordem dos Médicos), o Ministro das Corporações e Previdência Social teve oportunidade de fazer algumas considerações, tanto quanto possível desenvolvidas, sobre aqueles referidos aspectos (além de outros a eles ligados). Remetendo a V. Ex.ª, em documento anexo, os apontamentos de que então me socorri ao apresentar essas considerações, a Assembleia Nacional poderá tomar conhecimento exacto do pensamento do Ministro a respeito de tais problemas. De outro documento, que também peço licença para junto re-

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meter a V. Ex.ª, constam, os esclarecimentos que me forneceu a Federação dos Serviços Médico-Sociais, directamente visada em vários passos desta parte do aviso prévio.
Ao exposto nesses dois mencionados documentos acrescentarei as anotações seguintes:

a) A estrutura administrativa preconizada no aviso prévio, admitindo apenas caixas pluriprofissionais (ditas caixas únicas) distribuídas par distritos ou outras áreas regionais, parece mostrar-se excessivamente geométrica ou rigidamente planificadora - é monolítica. Não tem lugar para caixas de empresa (instituições de previdência que, quando se mostrem viáveis, são «providenciais» à face da nossa ética político-social) e não abre excepção nenhuma para caixas de actividade (justificáveis ou até indispensáveis em casos de características especiais, como, por exemplo, a marinha mercante).
A propósito da actual estrutura administrativa, o aviso prévio critico, a existência da Federação - que diz ter encarecido o sistema pela sobreposição que dois organismos para o mesmo fim.
Já me referi a esta crítica nas alíneas e) e f) do anterior parágrafo 4- Ao que nesse lugar ficou dito, com palavras do próprio autor do aviso prévio, acresce que:
1.º Verificando-se o alegado «encarecimento do sistema» e resultando, pomo pretende o aviso prévio, da invocada «sobreposição de dois organismos para o mesmo fim», o comentário lógico seria, dado o «interesse real em concentrar a organização», discordar-se do facto de as caixas manterem o seu sistema (porque não ... «em defesa de sua burocracia»?), em vez de se atirar a Federação.
2.º Na realidade não há «sobreposição de dois organismos para p mesmo fim», visto as caixas terem de continuar a existir para a realização nos vários fins da previdência social e da sua organização, exceptuado o fim específico de acção médico-social - cuja realização foi confiada ao órgão concentrador.
3.º De um modo absoluto não pode afirmar-se o alegado encarecimento. Há caixas não federadas que, por terem esquemas mais ricos, gastam mais por cabeça. Interessa também averiguar, quando se pretendem fazer comparações, se as prestações sanitárias abrangem ou não pessoas de família dos beneficiários. Importa igualmente considerar as «frequências», isto é, p número de tratamentos, de serviços de enfermagem e de uso dos meios auxiliares de diagnóstico. O aviso prévio lerá tomado em consideração, por exemplo, o ... volume e o peso cias análises e das radiografias no custo da acção médico-social da Federação?
b) Sobre o campo de aplicação da Previdência Social parece-me de considerar os apontamentos que faço a seguir:
1.º O aviso prévio defende que só restrinja este campo aos económicamente débeis; mas não esclarece se tal restrição deve abranger todos os ramos do seguro social ou apenas o ramo seguro doença e, sobretudo (porque, é o mais difícil), não indica o «salário-limite» que servirá para definição prática do económicamente débil.
Não custa chegar-se a acordo na aceitação do princípio, conhecido da doutrina e da legislação; mas resta apurar critério razoável para a sua aplicação. Nos meus apontamentos, atrás indicados, está expresso o «sentido em que, a este respeito, se orienta p pensamento do Ministro das Corporações e Previdência Social.
2.º O aviso prévio .afirma que, por ser demasiado «ampla» a «extensão» do seguro social (chegando a abranger os trabalhadores de conta própria ou independentes, «os administradores e os gerentes»), «deve rectificar-se» este campo de aplicação, «antes de incorporar na Previdência, como está para breve, outros grupos de trabalhadores assalariados».
A parte esta ... anunciada incorporação (que se desconhecia no Ministério, como atrás ficou dito) e as possíveis divergências sobre a definição concreta dos económicamente débeis, cumpre-me informar que não tem oportunidade a reclamação feita no aviso prévio. Efectivamente, conforme se refere nos apontamentos juntos em anexo, há quase um ano que os sócios, directores ou administradores e gerentes de empresas, e bem assim os trabalhadores da conta própria (mesmo ... quando económicamente débeis), foram eliminados da Previdência Social - o que tudo consta de despachos publicados no Diário do governo.
3.º O aviso prévio vai demonstrar que, com a sua nova organização das caixas, «seria possível, pela solidariedade de todos os contribuintes, prestar ao menos o seguro de doença aos trabalhadores rurais, que excedem o milhão».
Ignoro se, no pensamento do aviso prévio, o alargamento do «regime de medicina organizada» a mais não sei quantos por cento (muitos, sem dúvida) da população portuguesa não será também mais um alargamento da temida «socialização da medicina» . Igualmente ignoro os cálculos financeiros em que o aviso prévio, se terá baseado para afirmar que cria posa irei aplicar, não já um seguro doença aos trabalhadores rurais, mas o mesmo seguro dos trabalhadores do comércio e industria e praticado até nas mesmas caixas.
Aguardo que o desenvolvimento do aviso prévio possa esclarecer o Governo a este respeito - oxalá que suficientemente. Nos apontamentos aqui anexos, o Ministro das Colorações e Previdência Social toca este assunto; mas foi menos ambicioso e, ainda assim, muito ... hesitante, não se considerando apto, sequer, a formular soluções .concretas, que deixou, cépticamente, para exame e estudo.
4.º Neste mundo repleto de mil teorias de segurança social (tantas vezes precárias), o aviso prévio entende que «vai crescendo, mesmo em países sem a nossa doutrina, a torrente de tornar facultativo o seguro dos trabalhadores independentes».
Sem aquilatar da força da torrente, parecia que, no próprio aviso prévio, era em nome do princípio económicamente débeis que deveriam ou não incluir-se no
seguro obrigatório os trabalhadores de conta própria ou independentes - e, ainda assim, reservando-se a exclusão, segundo alguns, somente para o seguro doença. Foi sobretudo por sérias considerações de ordem prática, como largamente se explica nos apontamentos aqui anexos, que se julgou preferível eliminá-los de toda a Previdência Social, mesmo quando económicamente débeis.
Defende o aviso prévio que se dê igual tratamento aos membros das profissões liberais (advogados, engenheiros e médicos).
A Previdência dos advogados não foi organizada com directa intervenção do Ministério das Corporações e Previdência Social.
A Previdência, dos engenheiros não passa, ao menos por enquanto, de vacilante tentativa que nasceu de voto aprovado no II Congresso Nacional de Engenharia.
A Previdência dos médicos, que tem mais antecedentes históricos, iniciou-se sob a forma de mutualidade e, depois de vicissitudes vários, foi organizada nos moldes do seguro social obrigatório (com as características especiais da profissão) pelo Decreto-Lei n.º 33513, de 27 de Fevereiro de 1946.
Deve permanecer nestes moldes, embora com outra regulamentação? Porque a Ordem dos Médicos sabe não se estar perante uma classe económicamente débil ou

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por qualquer outra razão atinente, deve preferir-se que a instituição desapareça, sabido que se não manterá como caixa de seguro livre?
É problema que tem dado origem a vários estudos e sugestões sem que no Ministério haja a antecipada orientação de resolver contra os desejos do aviso prévio.
c) Quanto a prestações da Previdência Social, o aviso prévio entende que os beneficiários «gozam» devem continuar a gozar de «assistência na doença, pensões de invalidez e de sobrevivência e abono de família». Advoga, ao mesmo tempo, que o «seguro de desemprego» fique em administração comum com os outros «seguros sociais» e que se inverta «o sentimento do plano assistencial», não atendendo «as doenças de curto prazo» e cuidando das o doenças de longo curso» (a tuberculose, todas as outras doenças infecto-contagiosas, o cancro, as doenças mentais). Ora:

1.º É inexacto que as contribuições para desemprego tenham sido calculadas e sejam administradas sob a forma de seguro e que, portanto, possa verdadeiramente falar-se de «seguro de desemprego» como uma modalidade do nosso seguro social.
2.º É do mesmo modo inexacto que o abono de família esteja, organizado entre nós também sob a, forma de seguro - e não se vê necessidade de mudar de processo.
Nestas condições, diversamente do afirmado no aviso prévio, o abono de família não faz parte do esquema de ofícios da Previdência Social e não pode, portanto, ser chamado a intervir na distribuição da taxa global da mesma. Previdência, pelos diferentes ramos de seguro - sendo muito de temer as consequências práticas a que podem, levar confusões desta natureza.
Ainda diversamente do alvitrado no aviso prévio, o Ministro das Corporações, e Previdência Social entende que se devem «corrigir os escalões iniciais do abono de família» em ordem a melhores ajustamentos. E este um domínio a que ele tem (procurado dar a maior atenção. Como digo nos apontamento remetidos em anexo, já se pode melhorar o abono em alguns casos de mais injusta, inferioridade; e uma nova «disciplina administrativa (atenta vigilância na fuga da receita, critério apertado nos destinos da despesa e procura persistente de reembolsos devidos) permitiu» iniciar com êxito apreciável a reconstituição do Fundo Nacional - agora já o com algum desafogo, mas ainda sem energia para muito mais do que o alívio de anteriores inquietações ou dificuldades.
3.º Por motivos de natureza financeira, a sobrevivência não tem podido inserir-se como prestação normal dos nossos esquemas de benefícios, contra o que se depreende do aviso prévio. O que se pratica como regra é o subsídio por morte. O aviso parece confundir as duas coisas, que, não obstante, são muito diferentes.
4.º Segundo alvitre do aviso prévio, do seguro doença devem eliminar-se as doenças de curta duração.
A afirmação produzida neste sentido é expressa e categórica - embora, a seguir, venha também a afirmação de que devem tornar-se suficientes e completar-se as prestações fornecidas nas doenças ... de curta duração.
Suponha-se, porém, que o aviso prévio se não contradiz nesta matéria.
Será defensável não atender mais as doenças, de curto prazo?
Os médicos costumam ensinar que convém olhar, com atenção para a medicina preventiva, porque também nos domínios da saúde «vale mais prevenir do que remediar». Certamente com base nestes raciocínios, ao Diário das Sessões, pela pena do ilustre autor do aviso prévio, já um dia se proclamou que «é preciso primeiro lembrar à Previdência a utilidade do gastar dinheiro com a medicina preventiva»15.
Na lógica desta orientação, também os médicos costumam ensinar que, com medicina preventiva ou sem ela, é erro funesto desprezar as «pequenas doenças» - que tocam a todos e podem levar, e levam quase sempre, quando abandonadas, ao mal maior da doença longa. Como, então, eliminar da Previdência Social as doenças de curto prazo?
Minimiza-se o valor da gripe, das febres tifóide e paratifóides, das pneumonias, dos panarícios e fleimões, das otites e anginas, das fracturas susceptíveis de terapêutica ambulatória, do sarampo, escarlatina, varíola e demais doenças eruptivas, das nefrites, etc. Dicant paduani!
É bem verdade que o aviso prévio não invoca, em favor da sua tese, razões sanitárias, mas só razões financeiras (razões financeiras, claro está, da Previdência Social): «pela tentação das baixas», as doenças de curto prazo «são o pesadelo das tesourarias».
Para diminuir as ... ocasiões de tentação, o ilustre autor do aviso prévio defendia, em 1949, que o período de carência passasse, como passou, de três para seis dias Alvitrava, em 1952, que se voltasse ao anterior prazo de três dias. Sugere agora que se elimine por completo com a eliminação do próprio direito à assistência sanitária.
Como a «fraude das baixas» só é possível com a aquiescência ou a autorização do médico, vê-se até que ponto o aviso prévio considera a generalidade dos médicos portugueses capazes de cederem ... à tentação das fraudes! O Ministro das Corporações e Previdência Social, em nome da justiça e da verdade, recusa-se a pensar assim.
Sem embargo, registo com algum agrado a preocupação do aviso prévio em, por cima do próprio aspecto sanitário da doença, ter a visível preocupação do problema económico ou financeiro que todas as doenças são - mesmo quando os encargos dos tratamentos cabem ao ... «terceiro pagante», que é a Previdência Social.
Espera-se que tenha havido igual cuidado na fixação das prestações do seguro de longa doença - espera se que o tenha havido e que se faça a demonstração de o ter havido. Até lá, mesmo sem estudos minuciosos e sem cálculos exactos, o Ministro das Corporações e Previdência Social crê poder legitimamente pôr em dúvida que seja financeiramente possível (com hospitalizações, cirurgia, tratamento da tuberculose e das demais doenças infecto-contagiosas, do cancro e das doenças mentais - que, em o ilustre autor do aviso prévio dizia deverem ficar a «cargo total do seguro», bem como os «partos, normais ou distócicos») prestar assistência sanitária aos 1 300000 beneficiários actuais, acrescido do novo milhão e não sei quantos mil trabalhadores rurais!
d) O aviso prévio parece não ter distinguido nitidamente entre regimes financeiros da Previdência Social e sistemas de distribuição da taxa global arrecadada para os diferentes ramos de seguro cobertos pela mesma Previdência.
Isto explica, talvez, que defenda a manutenção da actual taxa global (fixada em ordem ao regime da capitalização) e alvitre ao mesmo tempo que se capitalize menos, sob a alegação de estarmos «em regime de capitalização excessiva».
Nos apontamentos junto enviados em anexo vão algumas das considerações que este e outros «modos de pensar» me sugerem. Aqui direi apenas, com a devida vénia:
1.º Não se compreende como pudera o aviso prévio distribuir a taxa global pelos diferentes seguros, de modo a «capitalizar menos» nos ramos de curto prazo, desde que entende simultaneamente que «o financia-

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mento do Plano de Fomento supõe (...), durante seis anos, a manutenção da capitalização actual».
2.º Se acaso o aviso prévio pretende apenas, por agora, que se vão «arranjar os dispositivos» para a execução, daqui a seis anos, do esquema de benefícios por ele proposto, não se compreende a utilidade de construir desde já, à distância de ... tão longo prazo, «um novo sistema».
c) Que dizer do modo de prestação dos serviços médicos?
As informações a este respeito fornecidas pelo presidente da direcção da Federação dos Serviços Médico-Sociais, aqui juntas em anexo, dispensar-me-iam de qualquer outro esclarecimento.
Contra o afirmado no aviso prévio: 1.º Lá está esclarecido que, se há no seguro social quebra de individualidade dos actos médicos ou lamentável desumanização da medicina, e massificação do seu exercício, não se trata de feias culpas da Previdência Social, mas de características (louváveis ou censuráveis - não se discute agora) da medicina moderna, mercê da sua forte tendência para a especialização e das novas técnicas de diagnóstico e tratamento da doença. 2.º Lá está esclarecido também como ... não é possível dar aos segurados o direito de livremente escolherem o módico da sua confiança - salvo se (socializando terrivelmente a medicina) o Estado obrigar todos os médicos a trabalharem no seguro social e a receberem as remunerações que este puder adoptar, ou se os beneficiários só tiverem confiança ... em médicos inscritos na Previdência Social.
3.º Lá está esclarecido ainda que há-de ser tão verdadeiro e tão perigoso funcionalizar (talvez preferível a «funcionalizar») o médico da Previdência com um «vencimento fixo» (que, segundo creio, o ilustre autor do aviso prévio já reputou baixo e entendeu não dever ser considerado «vencimento» para efeitos de acumulação, de abono de família e de tributo fiscal), como o é no caso de médicos privativos dos hospitais, dos sanatórios, das maternidades, das associações de socorros mútuos e, até, de muitos (que oxalá fossem muitos mais estabelecimentos fabris.
4.º Lá está esclarecido, do mesmo modo, que nem todos os médicos da Previdência Social são contratados, como nem todos recebem vencimento fixo - havendo-os remunerados por acto médico e por serviço prestado. 5.º Lá está esclarecido igualmente que é talvez mais fácil demonstrar-se a contribuição da Previdência Social para o emprego do que para o desemprego da classe médica.
6.º Lá está esclarecido finalmente quanto é inexacto afirmar-se que a Federação «quer agora impor a criação de serviços de radiologia» e que sobre os analistas pesa a injusta «ameaça» de serviços privativos destas especialidades.
Não obstante todo o exposto, a alusão aos médicos privativos e aos serviços privativos de análises e radiologia obriga a um apontamento especial do Ministro a estes pontos do aviso prévio.
A Previdência Social, como já ficou salientado, não trabalha apenas com médicos contratados e a remuneração destes nem sempre tem a forma de vencimento fixo e até, fora de Lisboa e Porto, pode dizer-se que a não tem.
Como várias vezes referi ao ilustre autor do aviso prévio, tenho toda a preferência por soluções em que se alargue, nu maior medida possível, a faculdade de os médicos trabalharem para o seguro social. Neste sentido se fizeram estudos e se vêm fazendo experiências.
O problema é difícil. Sofre vivas discussões, mesmo entre médicos.- O próprio autor do aviso prévio já escreveu que «universalmente se arriscam passos, tentam soluções e em nenhuma parte, se encontrou ainda a fórmula feliz» 1G.
Ouço citar com frequência o exemplo da França 17 - o da França, neste caso, e não o da Espanha, citada para a conveniência de outras soluções, porque a Espanha tem médicos privativos (desmentindo assim a «verdadeira excepção» que o aviso prévio diz ser a «posição dos médicos portugueses em relação ao seguro social»). Mas o exemplo, que desta vez no aviso prévio não chegou a ser referido expressamente, não convence por si só. Pode até convencer do contrário, desde que se saiba que nem por isso lá deixaram de surgir autênticas ondas de protestos e reclamações dos médicos e também ... da Previdência Social, já colocada à beira da ruína financeira, de que o Estado tem de a salvar à mista do ... erário público, visto o seguro social se ter ali estruturado «mais fortemente no sentido socialista», como diria o aviso prévio.
A nossa experiência há-de fazer-se partindo de dois pressupostos indiscutíveis: o Estado não é contribuinte da Previdência Social, mesmo para sanar deficit a Previdência Social só pode gastar até onde tiver. À luz deste critério havemos de fixar o esquema de benefícios e velar pela sua execução. A luz dele, portanto, havemos de olhar pelas prestações do seguro doença, incluindo as médicas ou ... a começar por elas. Na doença, torno a dizê-lo, não há só o problema sanitário, mas também o problema económico, mesmo quando este se transfere para o seguro social.
O Ministério das Corporações e Previdência Social conhece alguma coisa da experiência portuguesa, constituída não só pelos muitos «casos pequenos», que, somados, representam peso considerável, mas também por alguns casos agudos ou de certo vulto (raros, em todo o caso - digo-o gostosamente, em homenagem devida ao mérito profissional do nosso corpo médico e aos seus altos valores morais. Conhece ao mesmo tempo o, falta de apoio que tem encontrado na Ordem dos Médicos para que se inicie uma política corporativa, de disciplina profissional. (Nem valeria dizer-se que faltam ao organismo corporativo da classe médica instrumentos legais adequados para agir que, de resto, podiam ter sido estudados. Também os não há para proibir a aceitação de tabelas do seguro social ou para apoiar resistências a essas tabelas, e, todavia, parece que ambos os factos se têm verificado. Também os não havia, até há pouco, para disciplinar as especialidades, e, não obstante, vinham sendo ... disciplinadas à margem da lei).
Assim, como lançarmo-nos, abruptamente e sem temor, na prática geral da clínica chamada «livre» em medicina social?
O próprio autor do aviso prévio, aceitando publicamente, como já o fez e atrás deixei referido, que da escassez de recursos financeiros resulta plena justificação prática do médico privativo, reconheceu claramente que este tem, sem dúvida, de ser considerado menos caro do que o da «clínica aberta». E um apontamento a registar.
Mesmo no aviso prévio, ao considerar (indubitavelmente com exagero imerecido a generalidade da sua classe) que a «fraude das baixas» é de molde a aconselhar a eliminação da curta doença no nosso esquema de benefícios, não obstante tratar-se de médicos privativos, pareço evidente que terá de concluir pela negação do clínico dito livre, se persistirmos em tratar as doenças de curta duração. Na verdade, a que inumeráveis abusos levariam então, dentro da lógica do aviso, a fraqueza ou a «política» de ceder à solicitação das baixas - das baixas e dos tratamentos e dos remédios.

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Não são mais encorajadores os casos dos elementos auxiliares de diagnósticos indicados no aviso prévio. Assim:

1.º O Ministro e a actual direcção da Federação encontraram quase apto a funcionar, em Lisboa, um laboratório privativo de análises clínicas. Em obediência a um princípio orientador, extinguiu-se o laboratório - com sacrifício de capitais investidos e de indemnizações contratuais anteriormente estipuladas. Os médicos analistas de Lisboa, aos quais é entregue todo o trabalho de análises da Federação, não ofereceram dificuldades em aceitar, por sua vez, a tabela de preços que lhes foi proposta - e desta forma se está a proceder. Não tendo havido apelos para a Ordem, esta mio interveio na questão e, portanto, não apoiou nem desapoiou o procedimento havido (ainda que se conheçam casos de intervenções suas «espontânea»» - até para protestar contra tabelas já plenamente acordadas com médicos e, às vexes, em comissões de que fazia parte um representante da Ordem dos Médicos).
Pois, não obstante a singela clareza do facto que deixo apontado sobre análises dos beneficiários da Federação, o aviso prévio pôde erguer a acusação de que existe a «ameaça dos serviços privativos (...) analíticos»!
2.º Para a radiologia, o Ministro e a actual direcção da Federação encontraram criado um serviço no Porto, embora ainda sem funcionar - mas tenho já prestes a ser instalado um aparelho e estando à espera da chegada de outro, então recentemente adquirido. Encontraram também entregue aos Hospitais da Universidade de Coimbra e a outros hospitais da província o monopólio dos trabalhos radiológicos da Federação - nem sempre em condições... .medicamente aceitáveis.
Extinguiram-se estes monopólios e regressou-se ao regime de procurar a iniciativa privada, distribuindo-se o serviço por todos os radiologistas das aludidas localidades e procurando-se mesmo (como, de resto, em Lisboa ou no Porto) fomentar o estabelecimento de novos consultórios particulares de radiologia. Por sua vez o aparelho existente no Porto não chegou a ser desencaixotado e a compra do outro foi anulada, com o natural prejuízo da indemnização costumada.
Será isto uma «ameaça», como se diz no aviso prévio, de «serviços privativos radiológicos»?
Entretanto, porém, verificou-se que, não obstante todos os esforços empregados para diminuir ... o «pesadelo» da, tesouraria com exames radiológicos, estes estavam ainda a custar à Federação, só em Lisboa e Porto, cerca de 8 500 contos. Para acudir à gravidade do problema a Federação procurou, dentro da indiscutível seriedade dos seus processos, organizar também aqui uma tabela, de preços, que propôs aos radiologistas de todo o País. E em todo o País se está a praticar a tabela, salvo em Lisboa, e Porto - onde os radiologistas, unidos por uma espécie de juramento de Hipócrates (um fechado «compromisso de honra»), se recusam, conforme expressão do u viso prévio, a «baratear os (seus) actos médicos».
Procuraram-se todos os meios de evitar esta falta, de colaboração de ... iniciativa, privada. O próprio Ministro fez, talvez dezenas de vezes, de assistente social da Ordem dos Médicos e da sua secção de radiologia. Tudo em vão!
Houve radiologista que chegou a alvitrar, para se vencer o «pesadelo» da tesouraria da Federação, que se deixassem passar dois anos sem tirar radiografias - solução que, do mesmo passo, seria incompreensível para os beneficiários, negaria o próprio valor deste elemento auxiliar do diagnóstico e causaria, talvez, a morto dos radiologistas ... economicamente débeis (alguns dos quais se abalançaram à compra de aparelhagem, confiados no serviço da Federação).
Houve consultório que dizia poder provar, com a escrita à vista «(confiada a um guarda-livros privativo), os graves prejuízos que sofreria se recebesse um centavo a menos de 800 contos anuais, como estava a receber pelo mesmo serviço até ali habitualmente executado. Parece, no entanto, que só o exame das contas ... na Federação levou a apurar que o guarda-livros (Deus lhe fale na alma!) viciava a escrita.
Houve quem julgasse perfeitamente defensável que estabelecimentos oficiais ou quase oficiais entregassem a seu abundante serviço de radiologia, em regime de monopólio, a um ou dois radiologistas, mas considerasse perigosamente socializante que a Federação procedesse de idêntico modo (para vencer as dificuldades que lho estavam a ser criadas), entregando, eventualmente o seu serviço de radiologia a três ou quatro radiologistas procurados na província.
Porque instituições particulares, com consultores privativos de radiologia, se mostraram dispostas a trabalhar para a Federação pelos preços da tabela proposta, houve quem actuasse em ordem e tornar impossível esta solução (de resto, naturalmente precária).
Porque, passados longos meses de luta inglória, se fez anunciar que não haveria mais ... remédio do que montar serviços próprios ou montar serviços para serem entregues, em regime de amortização, a radiologistas da província dispostos a virem para Lisboa nestas condições e se fizeram publicar anúncios de concurso para a compra de aparelhagem, houve quem se sentisse coagido - a concorrer encobertamente, por ... interposta firma.
Não vale a pena carregar mais o quadro, que já tão carregado se mostrava lios esclarecimentos fornecidos pela Federação e aqui juntos em anexo - onde se fala em autênticos «subsídios de greve» aos radiologistas «cuja situação se ia tornando cada vez mais embaraçosa e que, por isso, recalcitravam è com razão».
Acrescentarei apenas que, fatigado da inutilidade das minhas intervenções -pessoais, procurei que a direcção da Ordem dos Médicas tratasse do assunto, sem intermediários, com & direcção da Federação. Mas também isto foi impossível de se conseguir. A direcção da Ordem preferiu, designar para p efeito a sua comissão de radiologia, e esta, naturalmente, buscou todos os processos dilatórios para, tal como antes, se não obter uma solução.
Vai passado «mais de ano e meio na roda do mar» encapelado da radiologia, em Lisboa e Porto. Contudo, por amor doutrinário a outras soluções, por deferência pessoal para com o Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos e por teimosamente querer esperar na vinda de melhores dias, a ameaça dos serviços privativos nunca se executou. Não se comprou qualquer aparelho de radiologia e o existente no Porto continua fechado na tranquilidade inútil dos caixotes.
Ao fim e ao cabo o aviso prévio pôde lançar a acusação de que a Federação, que «já intentou erguer hospitais próprios» (qual ... federação?), «quer agora impor a criação de serviços de radiologia ». simplesmente «em defesa da sua burocracia»!
A direcção da Ordem dos Médicos, apoiando e encorajando, como o tem feito até agora, o movimento colectivo dos radiolistas de Lisboa e Porto contra a Previdência Social, está na linha habitual do seu procedimento. Mas transforma aquele organismo corporativo de «areópago sereno que devia ser» (a cuidar, sobretudo, dos interesses culturais e morais da profissão - das mais altas e mais nobres) em «braço secular» ao serviço de doutrinas peremptas do mundo liberal e contra os «progressos da protecção social».

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Creio, sinceramente, que o Governo e, com ele, a Previdência Social já têm a este respeito, como diz o final do aviso prévio, «luzes bastantes para vencer a indecisão actual e de momento (relativamente aos serviços radiológicos da Federação, em Lisboa e no Porto) construir um novo sistema».

Apresento a V. Ex.ª, com respeitosos cumprimentos, os protestos da minha alta admiração.
A bem da Nação.

José Soares da Fonseca.

Anexos

Apontamentos do Ministro das Corporações e Providência Social sobre alguns aspectos fundamentais da Previdência Social; e
Breve comentário ao requerimento do aviso prévio sobre a Previdência Social, apresentado à Assembleia Nacional pelo Doutor Cerqueira Gomes, dirigido ao Ministro da» Corporações a Previdência Social pelo presidente da direcção dos Serviços Médico-Sociais - Federação das Caixa» de Previdência.

Notas

1 Assistência e Saúde Pública (Porto, 1949), p. 14. e Sobre a Organização Social da Medicina (Lisboa, 1949), pp. 3 e 6.
2 Assistência e Saúde Pública, p. 22.
3 Sobre a Organização Social da Medicina, p. 18.
4 Assistência e Saúde Pública, p. 22.
5 Sobre a Organizarão Social da Medicina, pp. 33. 36, 39, 40 e 45.
6 Ibidem, p. 33, e Assistência e Saúde Pública, pp. 16 e 17.
7 Ibidem, pp. 3 a 5 e 31.
8 Ibidem, p. 40.
9 Boletim da Ordem dos Médicos (ano XI, 1949), p. 13.
10 Ibidem, p. 14.
11 Ibidem, pp. 12 e 15.
12 Sobre a Organização Social da Medicina, p. 32, e Assistência e Saúde Pública, pp. 17 e 20.
13 Diário das Sessões de 9 de Abril do 1949, p. 522-(7).
14 Sobre a Organização Social da Medicina, p. 24.
15 Diário das Sessões, número e página citados.
16 Sobre a Organização Social da Medicina, p. 32.
17 Assistência e Saúde Pública, p. 16.

Anexo I

Apontamentos sobre alguns aspectos fundamentais da Previdência Social

I) Explicação prévia

Meus Senhores: há mais de um ano que nos encontrámos aqui, alguns de aios, para. uma primeira troca de impressões sobre alguns aspectos fundamentais da Previdência Social.
Constituiu-se então, com carácter particular (adiante se dirá porquê), uma comissão destinada a examinar esses aspectos, tendo ficado uma subcomissão incumbida do estudo pormenorizado de todas as questões postas - que depois seriam arrumadas em esquema ordenado e submetidas à apreciação da comissão plena.
Foi isto na primeira quinzena de Setembro de 1951.
Não tomei depois até agora a iniciativa de qualquer outra convocação e creio que também nenhuma reunião se fez a convite dos próprios membros, da comissão. Limitei-me a procurar, de vez em quando, que em alguns se não apagasse o «fogo sagrado» e que outros não deixassem de prosseguir nos trabalhos especiais, de natureza técnica, a eles especialmente cometidos - trabalhos indispensáveis ao próprio estudo da subcomissão e que, por terem chegado a ser concluídos, estão em condições de plena utilização.
Entretanto, porém, entendeu-se que não devia sofrer mais delongas o problema da estruturação dos serviços administrativos das actuais instituições de previdência e o do estabelecimento de categorias e fixação dos quadros do seu pessoal, acompanhado da indispensável revisão di1 ordenados i? de. outras normas de regulamentação do trabalho nas mesmas instituições - importantes matarias carecidas até aqui de normas disciplinadoras.
Para tal fim, que se enquadra nos propósitos revisionistas da Previdência Social, se tinha determinado, há mais de dois anos, a proibição de novas nomeações ou promoções de empregados, salvo casos especiais devidamente justificados. Para o mesmo fim se procedeu ao indispensável trabalho preparatório da organização do cadastro de todo o pessoal (cujos elementos «falam» com eloquência da urgente necessidade de normas gerais de disciplina) e se nomeou depois, em Agosto próximo passado, outra comissão (esta de carácter oficial), que me apresentou há dias a primeira parte do seu estudo, sobre o qual brevemente proferirei despacho.
Entendi que era útil juntarem-se agora aos componentes da subcomissão designada em Setembro de 1951 alguns vogais da comissão de Agosto de 1952 e cometer a todos eles a tarefa que temos tido suspensa há mais de um ano.
Todos VV. Exas. conhecem o motivo de tal suspensão, que pode indicar-se em breves palavras:
Como se sabe e foi salientado na troca de impressões de Setembro de 1951, a definição de um regime financeiro da Previdência Social era e é pedra angular do nosso estudo; mas não dei nessa altura qualquer directriz definitiva a este respeito e, ao invés, pretendi que se discutisse amplamente o problema na omissão. Enumerando as principais vantagens e os principais inconvenientes que costumam apontar-se ao regime da capitalização (adoptado entre aios) e ao seu oposto (o da repartição), mostrei, quando muito, algum interesse em ver examinada a possibilidade de se instaurar um regime misto, a que chamei «de capitalização ateimada».
Porquê tal atitude?
Parece-me que, atonta a delicadeza desta e de muitas próprio ficar em melhores condições deve esquecer-se que a Previdência Social é uma instituição nova, cá dentro e lá fora, desprovida das luzes claras de uma longa experiência ou das raízes profundas de uma tradição forte, e obrigando em tais condições a maiores cuidados de exame reflectido.
Talvez por tocar na «carne viva» das actividades económicas, toda a gente fala da Previdência Social com a mesma desenvoltura com que trata de outros graves problemas da vida social; mas poucos são ainda os que se debruçam atentamente sobre ela para poderem equacionar-lhe os problemas ou lhe conhecerem, a sério, algo mais do que o nome.
Estes afirmam que se distribui pouco e mal, sendo necessário passar a distribuir mais e melhor. Q unindo se lhes pergunta o «porque» e o «como», ficam, silenciosos. Aquilo era simplesmente fácil slogan, como agora se diz, nascido de factos mal averiguados ou de factos verdadeiros mas desarticulados do conjunto.
Aqueles entendem que se cobra muito e se há pouco, sendo preciso arrecadar menos e beneficiar mais. Quando se procura sabei- a razão da queixa e o processo de resolução, ficam igualmente silenciosos ou tentam uma vaga explicação. Aquilo era também apenas fácil slogan de crítico ligeiro.
Aqueloutros, atribuindo talvez inconscientemente) feição socialista às contribuições da Previdência, equiparam-nas aos impostos fiscais e consideram-nas, por isso, incluídas no volume da carga tributária do País, em vez de as equipararem aos salários, e portanto as

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adicionarem a estes na determinação do custo da mão-de-obra, como salários diferidos. Deste jeito, arvoram contra a Previdência as habituais queixas... capitalistas contra o fisco, e vêm propugnar que se reduzam os encargos daquela ao nível dos encargos deste. Aquilo, porém, é apenas mais um estribilho, que não traz contributo útil a qualquer solução. Só o Ministério das Finanças pode tirar dele algum partido, porque, como já disse noutra oportunidade, vê-se assim comodamente transformado em «quase defensor» do contribuinte, que transferiu agora para a Previdência Social as suas velhas quesílias com o fisco.
Aqui diz-se ser irrepreensível a estrutura legal da nossa Previdência, estando apenas viciadas as suas aplicações. Se, porém, se acode a alguns desvios de funcionamento, sem desde logo se tocar na referida estrutura, cuidam estar excessivamente demorada uma profunda reforma que é ... imperioso introduzir nas linhas essenciais do próprio sistema.
Além afirma-se que se tem andado demasiado depressa, com um movimento perigosamente acelerado. Mas, se vêem deter-se a marcha e fazer «alto», temem a «pausa», que supõem inacção.
Acolá brama-se fortemente contra socializações temíveis da medicina. Mas, se vai inquirir-se dos alvitres para tal se evitar ou atenuar, trazem-nos fórmulas gravemente socializantes da Previdência Social.
Tudo isto revela, afinal de contas, não só a instabilidade ou inquietação dos espíritos que caracteriza a nossa época, mas também, e sobretudo, na incertezas ou hesitações naturais em face de uma instituição que, embora tenha sua nascente de ténue fio no fundo dos tempos, é verdadeiramente nova e profundamente inovadora, estando a abrir caminho à custa de sacrifícios e não podendo deixar de fazer a sua própria experiência à custa dos erros e dos ... trambolhões da sua exuberante juventude. Acresce que entre nós não abundam zelosos cultores ou estudiosos dedicados da Previdência Social.
Razões sérias me parecem estas para, em vez de traçar propriamente directrizes, preferir expor, com algum desenvolvimento, corta massa de questões sobro as quais pretendia colher juízos opinativos, para depois concertar com o Chefe do Governo a orientação a dar-lhes em definitivo. Por isso mesmo não foi atribuído carácter oficial àquela referida comissão.
Sucedeu, porém, que se anunciou entretanto o propósito d.e elaboração de um vasto plano de fomento, com eventual larga participação dos capitais da Previdência Social, e assim a definição do regime financeiro a que esta deveria obedecer ficou naturalmente dependente da organização e aprovação do referido plano. Havia, na verdade, que esperar pela determinação da medida em que, para a execução desse plano, se considerava indispensável o concurso efectivo destes capitais.
O Plano de Fomento, que inicialmente se supôs poder estar elaborado em Fevereiro ou Março de 1952, e depois até Maio ou Junho do mesmo ano, só em Setembro seguinte veio a ser submetido à Câmara Corporativa, de onde transitou para a Assembleia Nacional, se o discutiu e aprovou em Dezembro. Tornado lei do País, a ele se tem de obedecer e dentro do caudal das fontes financeiras nele previstas se hão-de mover as deliberações do Conselho Económico.
Daí que só agora, passados tantos meses, possamos reatar os nossos mal esboçado» trabalhos. Mas nem por isso perdemos o nosso tempo.
Como se tinha notado, nos domínios da Previdência Social, o que um dia chamei «crise de crescimento», aconselhando razoável «paragem», continuou a aproveitar-se esta para o que também um dia chamei «exame introspectivo» ou «autocrítica» da vasta obra até hoje realizada.
Assim, activaram-se as inspecções as instituições de previdência (algumas nunca visitadas), para melhor se conhecerem a sua vida interna e os seus métodos de actuação. Tanto a propósito de cada processo vindo a despacho como a pretexto de cada, entrevista com os funcionários ou com os representantes dos interesses postos em presença do Ministro, explanaram-se princípios doutrinários e mostrou-se o «sentido natural que deles devia decorrer para a acção deliberativa ou executória. Não vou expor aqui, evidentemente, a longa teoria dos casos concretos que deste modo se puderam arrumar com melhor ordem e os eventuais resultados do bom espírito que. deste modo se procurou criar ou fazer reviver. Aponto ao de leve o facto, simplesmente para lhes anotar que suponho ter-se prestado com isto um serviço útil, embora ignorado, à Previdência Social e no País.
Retomando agora os nossos suspendidos trabalhos, retomá-los-emos ainda sem intuitos publicitários, quase em família, despreocupados de tornar já oficial a nossa comissão. Embora definitivamente resolvido que tem de se manter o actual regime financeiro da Previdência Social, ao menos enquanto durar o sexénio do Plano do Fomento, e afastadas, por isso, as maiores dificuldades que se nos tinham deparado (e que eram as de se definir com prudência outro regime), ficam ainda muitas questões para as quais entendo não dever emitir já directrizes governamentais. Hoje, como em fins de Í9Õ1, julgo que também estas devem ser primeiramente amadurecidas com a dedicada colaboração de todos os presentes - que desta forma darão ao Ministro a ajuda das suas valiosas reflexões e o habilitarão a poder concertar melhor algumas das directrizes governamentais a formular depois (esperemos que sem grandes demoras).
Alguns de VV. Exas., porque são novas no investimento desta missão, desconhecem as impressões trocadas em Setembro de 1901, a que de início me referi. Procurarei, por isso, reproduzir-lhes o que então expus, segundo os apontamentos que nessa altura redigi.

II) Encargos sociais

A) Seu valor

Nessa, troca de impressões comecei por fazer referência aos encargos sociais que incidem sobre a nossa economia, para vincar bem a importância do problema da previdência social.
Excluiu-se da noção destes encargos sociais, como parece mais acertado, tudo o que diz respeito a quotas ou contribuições dos organismos corporativos, não se o não considerado, portanto, os gastos despendidos por alguns deles em reféns de assistência - designadamente as Casas do Povo e as Casas dos Pescadores.
Dela se excluíram também, visto serem instituições de previdência livre, as associações de socorros mútuos.
Excluída ficou, igualmente, a matéria de acidentes de trabalho, não só porque seria impossível determinar-lhes o valor, mesmo aproximado, mas também porque, sem embargo da obrigatoriedade das pensões ou indemnizações pecuniárias a que tais acidentes dão lugar, o público não sente este peso como encargo social. E, de resto, compreensível que seja assim - quer por se estar mais habituado a esta forniu de seguro, que tem já alguma tradição, quer por se poder continuar a efectuá-lo de conta própria, ou através de uma empresa privada, que o explora em regime de indústria específica de seguros. Acrescentarei que, respeitando, embora, os bem intencionados propósitos de algumas vozes discordantes, não vejo motivos sérios para se mudar funda-

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mentalmente de sistema - importando, no entanto, reconhecer a conveniência de se melhorar a legislação regulamentar desta matéria (no domínio da qual o nosso Ministério fez publicar há meses, com a antecipada adesão das companhias seguradoras, diploma legal que representa um benefício de cerca, de 10 000 contos anuais para as classes operárias) e a necessidade de se apertarem as malhas da inspecção, de modo a conseguir-se um grau óptimo de confiança na robustez financeira de todas as empresas seguradoras e no recto sentido da função social que lhes incumbe desempenhar.

Ao invés, inclui-se na apontada noção de encargos sociais o abono de família, dada a forma por que normalmente é cobrado e distribuído. Mas não se esqueceu e não se deve esquecer que, em boa verdade, o abono de família não representa, no nosso sistema, qualquer modalidade de previdência social, e, antes, é simples complemento imediato mi quase imediato do próprio salário- não tendo, deste modo, que estar necessariamente integrado nas caixas de previdência e não podendo confundir-se com ela no jogo ou distribuição das respectivas taxas de benefícios, contra, o que, por vezes, parece, erradamente, pensar-se.

Na referida noção se abrangeram também as contribuições para o Fundo de Desemprego. Criado antes de existir o Subsecretariado das Corporações e Previdência Social e sob modalidade diversa da de um seguro propriamente dito, é administrado livremente por outro departamento do Estado, sem qualquer intervenção, mesmo sob a simples forma de parecer, do nosso Ministério. Mas nem por isso deixa do constituir verdadeiro encargo social e de assim ser sentido pelo público. A garantia de emprego de mão-de-obra, a que ele em última análise se destina, é, de resto, a primeira e mais eficiente manifestação de previdência social. Não podia, portanto, ficar alheio nestas considerações iniciais.

Finalmente, e ... principalmente, incluíram-se as contribuições para as diferentes modalidades de seguro que as instituições de previdência social obrigatória têm por função garantir (doença, invalidez, velhice e morte).

As receitas para a cobertura destes encargos sociais provêm da aplicação de taxas sobre o quantitativo dos salários (pagas pelas entidades patronais e pelos empregados ou assalariados), taxas que somam, em regra, 23 por cento (sendo 7 por cento para o abono de família, 3 por cento para o desemprego e 13 por cento para a Previdência propriamente dita). Digo «em regra» porque em certos casos se cobra um pouco menos ou um pouco mais.

O produto anual destas referidas taxas deve orçar hoje por 1 300 000 contos, e é este número, portanto, que traduz o valor dos encargos sociais do comércio e da indústria. No dia em que a construção civil puder integrar-se na organização da Previdência Social, esta cifra subirá, talvez, mais 200 ou 300 000 contos.

B) Suas fontes

Eu disse, e repito, que estes encargos são encargos sociais do comércio e da indústria. Não ousarei generalizar demasiado, chamando-lhes encargos sociais da Nação, porque deles está, e tem ainda de continuar a estar, excluída, ao menos em grande parte, a agricultura (sobre a qual não deixam de pesar, legitimamente, outros encargos também sociais), sendo certo que deles estão ainda excluídos, por agora, alguns ramos do próprio comércio e indústria, designadamente a construção civil. Poderá um dia chamar-se-lhes, ou mesmo já (se tal se preferir), encargos sociais da economia nacional. Mas suponho de boa prudência não os apelidar de encargos sociais da Nação. Temo que este modo de dizer, até pela própria força de atracção por vezes existente nas palavras, leve facilmente a outro muito errado e, sobretudo, muito perigoso (por se poder resvalar, quase insensivelmente, da palavra para o acto): ao de encargos sociais do Estado.
Quando leio ou ouço exageradas acusações de socialização trazidas pela Previdência Social e, ao mesmo tempo, vejo que certos arautos dessas acusações preconizam que o sistema ou os escalões de benefícios de assistência médica e medicamentosa da Previdência Social devem nivelar-se pelos da assistência pública, como se fosse lícito estabelecer-se equiparação entre as receitas do Estado distraídas para fins de assistência social e visando indiscriminadamente todos os pobres ou indigentes e as receitas cobradas directamente das actividades económicas para beneficiários determinados, com direitos de antemão neles personificados; ou
Quando os mesmos e outros anatematizadores de excessivos socialismos, supostamente existentes na nossa Previdência Social, andam a preconizar a completa fusão dos encargos da Previdência Social com os da assistência pública, como se fossem ambos da mesma natureza e devessem amalgamar-se inorganicamente para a mesma finalidade;
Chega a ficar-me a impressão de que nestas, como noutras idênticas confusões de espírito, está mais uma prova ... da redondeza da Terra! Na verdade, elas demonstram, como creio ter lido algures, que, se dermos ao mundo das ideias a representação gráfica de um círculo, logo notaremos que os mais próximos vizinhos dos extremismo esquerdistas têm de ser necessariamente os extremismos direitistas. Os extremos tocam-se.
Pondo esta nota viva na minha exposição pretendo, como com outras já atrás apontadas, dar mais uma ajuda para o que tantas vezes costumo chamar o «lastro comum» da nossa formação político-social. Também há, em pura verdade, uma filosofia da Previdência Social.
Só um regime político conduzido por princípios socialistas ou socializantes pode admitir que o Estado se considere financeiramente obrigado a realizar, de modo normal ou a simples título supletivo, os fins específicos a que se destinam os encargos sociais aqui referidos. Nós, que nos governamos por princípios e devemos logicamente governar-nos pelos nossos próprios, entendemos que a missão do Estado neste domínio é assegurar que se não frustre a realização de tais fins, pelos meios a eles naturalmente adequados.
Assim, portanto, os encargos sociais de que nos ocupamos têm de continuar a incidir, como até agora, sobre as entidades patronais (caso dos acidentes de trabalho, onde é admissível e fácil de prescrever a responsabilidade exclusiva do empresário) ou sobre estas e os trabalhadores (caso de desemprego, abono de família e previdência social propriamente dita).
Por generosa condescendência, algumas vezes, e por vícios de conceito ou faltas de firmeza, outras vezes, há entidades patronais que se substituem aos trabalhadores na satisfação dos encargos por estes devidos - em regra, de resto, só com benefício aparente para eles, visto as entidades patronais procurarem frequentemente ressarcir-se do ónus fazendo incidir as taxas apenas sobre os salários mínimos (quando os há fixados) ou sobre outros inferiores aos salários reais. De qualquer modo, porém, a lei não pode reconhecer tais situações de facto. Não só é conforme à moral e ao direito, mas é também claro imperativo das realidades económicas e psicológicas a obrigação legal das quotizações directas dos trabalhadores.

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Neste aspecto, portanto, nada ha a reformar, como creio nau o haver relativamente ao grau de incidência dos encargos sociais sobre cada um dos dois grupos contribuintes.

C) Possibilidades de alteração

Mas será possível, ao menos, modificarem-se as taxas no sentido da sua redução? (Refiro-me aqui apenas no abono de família e à previdência social, não chegando sequer a pôr a hipótese de um agravamento, que todos, decerto, consideramos visivelmente inaceitável).

Já em Setembro de 1901 se reconheceu como impossível qualquer redução no abono de família. Além de provocar um injusto cerceamento desta regalia, corria-se o possível risco de sobrecarregar a economia nacional com um aumento de salários superior à redução que viesse a obter-se nas contribuições do abono. Disse-se então que o facto de se manter o statu que não excluía, no entanto, a revisão das actuais tabulas do abono de família, em ordem a simplificar o processo administrativo e a eliminar as possibilidades de fraude e, sobretudo, em ordem a promover a gradual reconstituição do Fundo Nacional do Abono de Família. A essa revisão procederão agora VV. Ex.ªs, sem embargo das correcções já feitas nesta matéria e que permitiram, por um lado, melhorar sensivelmente os escalões do abono nos Caminhos de Ferro e nos Açores, onde eles eram mais gravemente injustos, e, por outro lado, mercê de nova disciplina administrativa (atenta vigilância na fuga da receita, critério apertado nos destinos das desposas e procura persistente de reembolsos devidos), iniciar com êxito apreciável a reconstituição do Fundo Nacional, agora já com algum desafogo, mas ainda sem energia para muito mais do que o alívio de anteriores pesadas inquietações.

Quanto à Previdência Social, o ângulo por onde temos de examinar o panorama é agora diferente do de Setembro de 1951. Então admitia-se a possibilidade do examinarmos a capacidade normal Ia economia para suportar as taxas cobradas para este fim e a de, com certas alterações no regime financeiro da mesma Previdência, se obter alguma redução nas referidas taxas. Mereço, porém, do Plano de Fomento Nacional, o problema deixou de ter interesse durante os próximos seis anos.

Em homenagem à verdade, há-de, no entanto, dizer-se que, seja qual for a incidência exacta do peso da Previdência Social, ao lado do abono de família, nos preços de consumo, a nenhum destes encargos sociais pode atribuir-se a causa directa dos embaraços financeiros- ou dificuldades económicas de que, por vezes, se queixam certas empresas em estado de crise. Tá mandei proceder a alguns inquéritos a este respeito, quando a Previdência Social, em casos concretos, era apontada como principal responsável, e sempre se foi verificar que estava noutro lado a causa do mal - por via de regra ... dentro da própria casa.

III) Regime financeiro

A nossa Presidência Social vive em regime de acentuada capitalização.

Todos conhecemos os argumentos invocados em seu favor, e a eles me referi também em Setembro de 1951. Um grande amigo, que Deus já tem, compendiava-os assim:

a) A Previdência Social não pode realizar-se sem dinheiro e se, porventura, lhe for reduzida a acção, dificilmente o Estado se poderá furtar ao aumento das suas despesas de assistência - o que é pior;

b) Mesmo boa parte do dinheiro cobrado é logo devolvida, mês a mês, em pagamento de benefícios, e serviços, sendo também certo que tal devolução é portadora de algum aumento do poder de compra, com vantagem para a economia comum;

c) Mesmo em relação aos fundos capitalizados, é incontestável a parcela de vantagem obtida pela colectividade, dada a manifesta utilidade social dos investimentos ;

d) As receitas da Previdência Social não devem encarar-se sómente pelo lado do encargo que representam, pois em contrapartida constituem economia que forçadamente impede desperdícios, dada a probabilidade de que em desperdícios seria gasta parte do dinheiro destinado a atenuar infortúnios dos mais fracos.
Por sua vez, as razões que militam pelo método da repartição eram figuradas deste modo:

a) A capitalização não tem em conta a evolução incessante do Mundo e representa demasiada ousadia no campo das previsões., mesmo entre aqueles que têm por dever profissional prever;

b) E inteiramente plausível a contínua desvalorização monetária e a capitalização mal se poderá defender contra, ela, porque as organizações, sobretudo quando movimentam milhões, não têm facilidade nem talvez possibilidade de adaptar o plano dos investimentos às variáveis oportunidades do mercado e de tomar providências rápidas e eficazes contra a depreciação;

c) A acumulação de reservas técnicas (mesmo que venham sempre a ser aplicadas em fins exclusivamente de utilidade social) postula graves dificuldades paro, a sua administração, tanto pelo enorme volume dos capitais como pela imprescindível necessidade da sua aplicação com a máxima segurança e com um mínimo de rendimento técnico;

d) No momento em que as reservas somarem muitos milhões, hão-de pôr-se ao Estado melindrosos problemas, inclusive de ordem financeira.

Poderiam alinhar-se ainda outras razões pró e contra cada, um dos indicados regimes. Mas não vale a pena. A legislação comparada mostra que ambos os regimes se praticam; e a experiência (nossa e alheia) não tem duração bastante para se poder afirmar, de um modo absoluto, que faliu o primeiro e que é indiscutivelmente melhor o segundo daqueles regimes.

Tudo ponderado, hesitou-se muito em Setembro de 1951. Pensou-se, em todo o caso, num regime intermédio - mais próximo da capitalização, não obstante algumas preferências teóricas pelo da repartição. Pareceu, por um lado, que o nosso regime de forte capitalização quase pretenderia desafiar a eternidade (dizia eu então, como um observador aten-to deste problema). Pareceu, por outro lado, que convinha evitar-se a surpresa de saltos bruscos no desconhecido, com mudança radical de regime, e que era de considerar a necessidade de os capitais da Previdência Social continuarem a ajudar ao fomento económico do País.

Preconizou-se, assim, que, entre a gama de soluções intermédias possíveis, se estudasse a admissibilidade de uma capitalização ligeiramente mais atenuada, a qual, buscando algumas das vantagens da repartição e diminuindo alguns dos inconvenientes da capitalização, aliviasse um pouco os encargos sociais da geração presente.

Era esta a mais penosa tarefa incumbida à comissão - pelas graves dúvidas na determinação da taxa global a aplicar de futuro, para fins de previdência social, e pelas sérias dificuldades de se estabelecer criteriosamente um novo esquema de benefícios. (Talvez não seja demais acentuar, entre parênteses, que é vã a ilusão e erro grave supor-se defensável, como já tenho ouvido sugerir, a passagem do regime de capitalização para o de distribuição com permanência do actual nível de contribuições, fixadas em ordem ao primeiro destes regimes. Por maior preponderância que pretenda

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dar-se à Previdência Social como forma de redistribuir o rendimento nacional, não pode consentir-se que ela se transforme em processo socialista de expropriação ou espoliação).

Como de início referi, o Plano de Fomento, que vale bem a permanência dos actuais encargos sociais, libertou-nos deste pesadelo e transferiu para ulterior oportunidade o reexame do problema - então mais fácil de resolver, porque o volume das reservas nessa altura acumuladas andará por 6 milhões e pode dar maior confiança na mutação do regime financeiro. De momento, o problema está resolvido: deve manter-se a capitalização nos moldes até agora vigentes.

IV) Esquema de benefícios .

Definido o regime financeiro da Previdência Social e fixadas as taxas das respectivas contribuições., pode-se agora, em sequência natural, estudar o esquema de benefícios a conceder, dentro do condicionalismo criado pelo regime preferido e pelas taxas adoptadas.

Este problema, como se acaba de ver, está hoje muito simplificado. Já não temos de preocupar-nos, ao invés de Setembro de 1951, com o esquema que deveria escolher-se, mas apenas com as alterações ou melhoramentos que poderão introduzir-se "no actual esquema ou, dizendo melhor, nos- actuais esquemas.

Aponto, em rápido escorço, as principais questões que se suscitam neste domínio:

a) Na aninha exposição de Setembro de 1951 não tive repugnância em aceitar como procedente a crítica de que o nosso esquema de benefícios é desequilibrado. Na verdade, enquanto garantimos 80 por cento (teóricos) do salário (quarenta amos de inscrição), não garantimos pensões de sobrevivência (salvo muito raras excepções) e não protegemos a doença de longa duração.

Por isso alvitrei, nessa altura, que se estudasse a possibilidade de, conforme as eventuais modificações a admitir no regime financeiro da Previdência Social, se melhorarem os ramos de seguro mais desprotegidas, especialmente as doenças longas e, em particular, a tuberculose - o que importa articulação do subsídio na doença com a pensão de invalidez.

Foram modestas, ainda assim, as ambições formuladas como objectivo imediato? Talvez. Por isso mesmo não quis impedir que se averiguasse da viabilidade de maior extensão ou alargamento do seguro doença, de modo a considerar o tratamento do cancro, a grande cirurgia, os internamentos hospitalares, etc.

Sabia-se e sabe-se que é impossível realizar um esquema completo nesta matéria. Nem todo o dinheiro ida Previdência (Social, não já com desequilíbrio, mas até com eliminação das outras formas de seguro, seria talvez bastante para obviar aos gastos de esquema tão rico. Mas, ainda que tal se não verificasse, parecia-me e parece-me evidente que o País carece de apetrechamento material e de potencial Inumano para obra imediata de tal vastidão, parecendo-me outrossim pura quimera e grave dano social prometer benefícios antecipadamente reconhecidos inviáveis. Acresce que suponho dever ter-se como absurdo ou insensato sacrificar duramente a economia nacional a prol ide um esquema de seguro tão perfeito que os beneficiários possam supor-se com direito a total imprevidência, graças nos direitos de unia completa previdência social. Mal de todos, se pudesse vir a suceder assim. E triste destino o das eternamente sacrificadas classes médias que, depois de assistirem ao aparecimento dos «novos ricos» da guerra de 1914, se veriam agora, depois da guerra de 1939, reduzidas à mísera condição de «.novos pobres», em busca de melhor sorte na... proletarização.

Quer dizer: eu tinha, em Setembro de 1951, razões mais do que bastantes para recomendar, como recomendei, prudência nos cálculos, objectividade na visão das coisas e realismo no conhecimento da alma humana, com vista a não se ir para além da legítima preocupação de simplesmente se remediarem as deficiências julgadas mais salientes ou anais gravosas do actual esquema de benefícios. A perfeição dizia eu nessa altura e repito hoje não é deste (Mundo. O melhor caminho é sempre a escolha do bom que se pode ter, de preferência ao óptimo que se não pode alcançar.
Esta visão prudente tem, agora, de ser ainda mais limitada, graças às restrições naturalmente derivadas da poupança forçada que o nosso regime de capitalização impõe. Ser-nos-á possível, apesar de tudo, alcançar algumas melhorias, designadamente no tocante à assistência aos tuberculosos: E em que medida? Dar-se-á assistência, por exemplo, desde o primeiro dia e com duração ilimitada, mesmo nos internamentos sanatoriais? Até que ponto, sem prejuízo das necessidades gerais de assistência nacional aos tuberculosos, será capaz de nos acudir a rede dos serviços, montados no País para a luta antituberculosa?
Eis, talvez, a mais grave questão posta à consideração de VV. Ex.ªs - para a qual se dispõe já de estudos adequados, feitos no decorrer de 1952 por alguns dos membros, aqui presentes, da comissão designada em Setembro de 1951. Deverá aproveitar-se também a experiência que, desde há algum tempo e a mero título provisório, a Federação tem procurado realizar com assistência a tuberculosos em Lisboa e Porto e a experiência no mesmo domínio adquirida por algumas caixas, que têm utilizado para isso os seus fundos especiais de assistência (criados, como tantas vezes tenho exposto e agora repetirei de passagem, para a resolução de casos especiais ou clamorosos, mas não para complemento quase habitual do esquema normal da assistência módica e farmacêutica ou para a concessão do favor de pensões permanentes, como abusivamente se tem praticado).
b) Embora de menos monta, mas, em todo o caso, dignas de cuidado exame, outras críticas só levantam ao seguro .doença nos moldes actualmente observados. Especifico as seguintes:
1.º Diz-se que é excessivo o período de carência, alterado (em Fevereiro de 1950) de três para seis dias.
Será assim? Deverá proceder a consideração «lê que por este processo se impõe um castigo demasiado ao doente sério, por causa de quem o não é? Deverá antes considerar-se, em atenção aos abusos verificados, que o somatório dos períodos de carência, pelo seu elevado montante, torna financeira e socialmente preferível a manutenção do statu quo ou a adopção de limite intermédio entre os dois até agora experimentados?
2.ª Diz-se também que são insuficientes os meios auxiliaras de diagnóstico.
Admite-se sem dificuldade esta crítica, dentro da moderna tendência que vai fazendo desaparecer a autonomia ou suficiência do médico de clínica, geral - cada vez mais habituado ao apoio científico daqueles meios auxiliares.
Mas é também verdade que não faltam exemplos de beneficiários da Previdência. Social com tal riqueza de informação laboratorial, e sobretudo radiográfica, que me parece, às vezes, «superior à dos doentes das classes mais abastadas com iguais enfermidades e até talvez à do ... «rei» de qualquer indústria lá de fora.
Como obviar simultaneamente a estes dois males: o da carência e o de superabundância?
3.ª Diz-se outrossim que há deficiências na parte medicamentosa.

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O Decreto n.º 37 762, que instituiu pela primeira vez um regime legal da assistência médica e farmacêutica (até então cada caixa possuía o seu esquema), prevê a concessão de medicamentos para além dos injectáveis. A lei não está ainda a .executar-se plenamente, mas há instituições que vêm concedendo remédios per os. Que nos ensina a sua experiência a tal respeito?

4.ª Diz-se igualmente que não há serviços de urgência e que não satisfaz a assistência médica domiciliária.

Será aconselhável, por exemplo, haver um posto permanentemente aberto nos grandes centros (com piquete constituído por médico, enfermeiro e parteira), para aqueles serviços de urgência? Poderá preferir-se, para o mesmo fim, acordo com algum estabelecimento de assistência?

E, quanto à assistência médica domiciliária, que modificações de sistema, serão de introduzir?

5.ª Diz-se ainda que merece reparos o facto de, na mesma região ,e até na mesma localidade, haver tratamento desigual do seguro doença para com os beneficiários da Previdência Social.

O facto, perfeitamente verdadeiro, resulta de uma causa que em si mesmo é defensável e até louvável, a saber:

Contra o que por vezes se afirma em críticas superficiais, a nossa Previdência Social não nasceu sob o signo de uma ideia planificadora ou socializante. As instituições foram surgindo em clima de bastante liberdade e de harmonia com as conveniências de cada momento. Deste modo, em nome da solidariedade de interesses entre patrões ,e trabalhadores da mesma empresa, fundaram-se as caixas de empresa; em nome da solidariedade de interesses entre patrões e trabalhadores da mesma profissão, fundaram-se as caixas de profissão, etc.

Como cada caixa é dotada de autonomia financeira e administrativa, também para cada uma se estabeleceu o esquema de benefícios proporcional aos seus recursos, incluindo a parte do seguro doença. As que tinham mais davam naturalmente mais, e as que tinham menos davam necessariamente menos. A Federação foi, sob este aspecto, a erecção prática de um princípio nivelador de benefícios (e aqui está uma das razões por que o seu esquema pode ser mais caro do que o de determinada caixa federada, se esta, sendo rica, houver de ceder da sua abundância em favor de algum ou algumas financeiramente débeis).

Dever-se-á ir agora mais longe e adoptar um esquema uniforme para todas as instituições, respeitando somente particularidades que não são do acervo de doenças comuns a todas as pessoas e profissões? E, dentro de um vasto princípio de solidariedade do mundo do trabalho, não poderá alargar-se a todos os beneficiários esta espécie de princípio de casos comunicantes a que obedeceu a Federação, de sorte que todos tenham, por deste modo a poderem ter, igualdade de benefícios?

Parece-me que o próprio problema, uma vez posto, indica a solução naturalmente aconselhável.

6.ª Diz-se, finalmente, que são de rever, por falta de uniformidade entre os esquemas das diferentes instituições, os quantitativos do subsídio por morte (dois, três e seis meses) e os limites de idade para a pensão de reforma (60, 65 e 70 anos). Acrescenta-se que é lamentável não haver, como- direito normal, pensões de sobrevivência.

A crítica procede.

Direi, quanto ao limite de idade, que me parece social e económicamente útil (salvo casos especiais de certas profissões) fixar este limite uniformemente nos 70 anos, devendo a aposentação continuar a não ser obrigatória. (A justificação todos certamente a vêem de olhos vista). Quanto, porém, à sobrevivência, o problema oferece dificuldades que me parecem, em regra, insuperáveis.
Os aspectos acabados de focar e outros que porventura me não ocorreram devem ser rigorosamente examinados à luz objectiva das realidades financeiras e com prudentes critérios de equidade social. A Previdência Social (sujeita, como tudo neste mundo, a limitações necessárias) não pode ter como regra normal a de proporcionar aos seus beneficiários reparações integrais dos riscos que ela se destina a cobrir, cabendo apenas discutir-se qual o processo mais conveniente para a determinação do grau de cobertura. As linhas balizadoras da sua actuação podem marcar-se nestes limites: o máximo de protecção eficaz dentro dos meios financeiros possíveis, ficando aquela condicionada a estes.
Isto significa, ao mesmo tempo, que os beneficiários da Previdência Social estão, para além destes limites, nas condições gerais das pessoas não abrangidas pelo seguro doença - inclusive perante os serviços sanitários da assistência social, contra o que, por vezes, em alguns deles parece pensar-se.. Casos tem havido, na verdade, de os beneficiários, relativamente a doenças não incluídas no seu esquema de benefícios ou à prolongação de cuidados superior ao mesmo esquema, não encontrarem guarida em certos destes serviços, sob a alegação de que se trata de doentes a cargo da Previdência Social. Também ali se raciocina erradamente, como se a Previdência Social houvesse de cobrir todos os riscos de doença e de os cobrir integralmente. Ora a Previdência Social deve importar, por si mesma e pela sua necessária colaboração com os outros serviços sanitários, um alívio de encargos nas despesas públicas de assistência, e é indispensável que este objectivo se não desvirtue; mas é mister evitar-se também o falso conceito de que à Previdência Social compete fundamentalmente assistir ... à assistência social.

V) Estrutura administrativa

A definição do esquema de benefícios está dependente, como ficou dito, da fixação do regime financeiro. A estrutura administrativa, por sua vez, só poderá razoavelmente modificar-se, ao menos, se formos para uma profunda remodelação da actual, depois de adoptados esquemas-tipo ou um esquema uniformizado. Direi mais: a reforma da estrutura administrativa, além de posterior à definição do esquema, não poderá realizar-se integralmente de um jacto e, ao invés, terá de operar-se gradualmente, para se evitarem perturbações graves na vida das instituições e na comodidade dos beneficiários. A experiência das chamadas «integrações de abono de família nas caixas de previdência e a das transferências maciças de beneficiários entre caixas» dão-nos, a este respeito, algumas lições que seria estultícia esquecer.
Posto isto, que haveremos de pensar da actual estrutura administrativa da Previdência Social?
Repetirei, também aqui, o que tive ensejo de dizer em Setembro de 1951.
Hoje as instituições de previdência social realizam, cada uma na sua área própria, todos os ramos de seguro (doença, invalidez, velhice e morte, salvo, quanto a doença, a situação especial das caixas integradas, nos Serviços Médicos-Sociais) e dividem-se por quatro categorias de caixas, a saber: de empresa, de (profissão, de actividade e regionais.
As caixas de empresa e as de profissão são decerto as mais ligadas a princípios de natureza corporativa.
As caixas de profissão não se têm revelado viáveis, achando-se limitadas à dos barbeiros dos distritos de

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Lisboa e Porto (bastante modesta), à dos empregados das companhias de seguros e à dos empregados de escritório - se bem que esta última, por consentir mistura com pessoal operário ao serviço das empresas suas contribuintes, não seja rigorosamente profissional.

As caixas de actividade, quase todas de âmbito nacional, também não revestem rigorosas características profissionais, visto que, abrangendo todo o pessoal das empresas que constituem as actividades enquadradas, aglutinam variadas profissões. Assim, por exemplo, como pitorescamente me dizia o nosso saudoso Dr. Rebelo de Andrade, quando se fala na Caixa dos Metalúrgicos não quer dizer que na instituição não existam carpinteiros, condutores de automóvel, caixeiros do comércio e até alfaiates. Por seu turno, a Caixa dos Profissionais, do Comércio pode conter outros carpinteiros, outros condutores, de automóvel ou outros alfaiates e até profissionais de metalurgia não incorporados na caixa que deles, recebe a denominação. Acresce, nestas duas caixas, que, por serem grandes concentrações, se perdeu muito do sentimento dos laços profissionais.

As caixas regionais, até agora tratadas com desfavor, mas de que temos duas experiências satisfatórias, passam uma completa esponja sobre a profissão e destinam-se, em princípio, a, todo o pessoal da sua área enquadrável na Previdência Social.

Ora será defeito desviarmo-nos dó princípio da profissionalidade?

Por mais simpatias que, em teoria, este princípio possa merecer-nos, seria impraticável uma organização exclusivamente ou mesmo essencialmente nele baseada.

Pulverizaria em grau desmedido as instituições, com gastos enormes de administração e sérios embaraços de recrutamento de dirigentes.

Além disso, teríamos uma complicada rede burocrática a atormentar as empresas, especialmente as grandes empresas - que, por darem trabalho a muitas e diversas profissões, se veriam, e ... vêem, a braços com montanhas de papéis e de problemas jurídicos de enquadramento e de outras regulamentações.

Acresce que dificilmente se deixará de compreender ou se poderá contrariar a, tendência para a uniformização das prestações, embora as quantidades variem na proporção do salário que lhes serve de base. Em matéria de seguro doença, como ficou já dito, o esquema de benefícios deve mesmo evitar desigualdades, sob pena de se criarem naturais rivalidades, fáceis emulações, humanos sentimentos de revolta (sobretudo nas empresas em que o pessoal estivesse distribuído por instituições diversas, umas com esquemas generosos e outras com esquemas modestos).

Uma organização paralela à das futuras corporações talvez evitasse algumas destas dificuldades, mas não as eliminaria todas e não se sabe ainda quando poderia vir a verificar-se. Além disso, é mais do que duvidosa a procedência obrigatória deste paralelismo. Ele daria, de resto, origem só a caixas de âmbito nacional, algumas com larga concentração de beneficiários ... realmente muito dispersos e que, portanto, contariam para os serviços como simples números ou meras fichas, e não como nomes ou pessoas.

Será impossível ou inaceitável outra solução?

Como em Setembro de 1951, sugiro de preferência uma aios moldes seguintes: tendo de subsistir o regime financeiro de capitalização, parece aconselhável separar e seguro a longo prazo (reforma em idade fixa e sobrevivência ou subsídio de morte) do seguro a curto prazo (doença temporária, com prolongamento na invalidez), centralizando o primeiro e descentralizando o segundo.

Dou ais razões do alvitre assim formulado:

a) A concentração numa caixa única do seguro a longo prazo evitaria todas as complicações das chamadas «transferências». O trânsito dos beneficiários e .do respectivo capital de caixa para caixa é operação perturbadora do sossego das instituições e incómoda para os interessados. Para remediar esta dificuldade, criou-se a caixa auxiliar; mas ela é apenas um recurso, e não lima rigorosa solução, além de que representa mais lima caixa a orientar e fiscalizar e mais uma série de complicadas formalidades. A centralização do seguro a longo prazo, nos termos indicados ou outros semelhantes, eliminaria por completo a questão - nem mais transferencias, nem mais necessidade de caixa auxiliar.
E ainda de considerar que deste modo as caixas de doença (chamemos-lhe assim, por agora) ficariam automaticamente aliviadas das muitas responsabilidades e dos muitos problemas técnicos do seguro a longo prazo, ao mesmo tempo que, com provável economia de gastos, se resolveria melhor o grave problema da falta de dirigentes capazes, pois mais facilmente se encontrariam um ou dois técnicos competentes para a caixa única do que tantos técnicos quantas as caixas ora existentes.
Facilitada ficaria também, como é evidente, a colocação dos capitais acumulados (através das reservas técnicas) e a burocracia necessária a essa colocação, além de que os referidos capitais passariam com vantagem a garantir, no seu conjunto, toda a Previdência Social.
Os beneficiários permaneceriam, é certo, muito longe da instituição; mas isto, no caso vertente, não é problema, porque o interesse dos beneficiários reduz-se, aqui, a receber uma pensão monetária, mês a mês, remetida em vulgar vale do correio e nada mais.
b) Ao invés, a descentralização do seguro a curto prazo deverá fazer-se de modo a abranger populações quanto possível concentradas e a tornar-se quanto possível familiar.
Neste ramo de seguro é que de verdade se mostra inconveniente que as instituições não tenham possibilidade de conhecer os beneficiários, nem estes os dirigentes daquelas. Tornado número ou ficha, o beneficiário desconfia mais facilmente da instituição, não tem meio eficiente de lhe pôr os seus problemas ou de os ver prontamente atendidos, está impossibilitado de tratar os seus casos, que são a sua vida, num ambiente de alguma compreensão e carinho. Como me dizia alguém: o beneficiário escreve, se porventura sabe escrever ou encontra quem o faça a seu rogo. A caixa, por seu lado, responde, se entende a linguagem do pedido, quando houver oportunidade. O beneficiário, porém, nem sempre compreende a resposta ou, se a compreende, não a sente. A caixa é para ele, mas psicologicamente mão é sua.
Com caixas de seguro a curto prazo assim descentralizadas poderão mais facilmente evitar-se e fiscalizar-se abusos de beneficiários e de servidores da Previdência Social - hoje muito distantes.
Evitar-se-ão ao mesmo tempo os actuais conflitos de âmbito e assegurar-se-á mais fácil e perfeita a identificação de beneficiários.
Também aqui, finalmente, será talvez possível recrutar com menos dificuldades dirigentes que sintam e sirvam a instituição: quer por serem mais diminutas do que actualmente as suas responsabilidades, quer por se poderem recrutar em muitos centros populacionais, quer por se precisar em menor número do que ao presente, quer por terem de «dar mais nas vistas» se procederem com desinteresse.
Em resumo, portanto, teríamos:
1.º Caixas para o seguro a curto prazo, caixas regionais.
Nelas se praticariam os serviços administrativos referentes à cobrança, folhas de férias, contribuintes, beneficiários, informação externa, etc. Nelas se prestariam também os serviços do subsídio na doença e da acção médico-social;

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2.º Caixa única para o seguro a longo prazo, caixa nacional.

Nela se praticariam as modalidades deste seguro - cujos serviços poderiam então vir a ser mecanizados, sem os entusiasmos apressados e o insucesso flagrante dos actuais serviços mecanográficos - que não estou arrependido, por isso mesmo, de fazer reduzir a débil tentativa de aprendizagem. Nela se efectuaria também toda a administração central da Previdência Social, incluindo a superintendência orientadora e fiscalizadora dos Serviços Médico-Sociais e a direcção e execução dos problemas de investimentos (títulos do Estado ou de empresa e prédios).

Esta estrutura, assim proposta à consideração de VV. Ex.ªs e em cuja direcção superior (tanto da caixa única como das caixas regionais) superintenderão os organismos corporativos, à semelhança de hoje, através de formas adequadas de representação, não será fechada, quer dizer, não revestirá as características de um sistema monolítico. Antes dela, sempre que viável (mas em moldes de mais estreita colaboração com os serviços oficiais), preferiremos a caixa de empresa - que pessoa autorizada chamou, um dia, unidade providencial por excelência, no que toca ao ambiente de família, ao espírito de solidariedade entre beneficiários e entre estes e os dirigentes da organização do trabalho, e até no tocante à economia da administração e à economia das prestações pecuniárias. Ao lado dela, admitiremos também caixas de actividade, quando características especiais de certa profissão ou de população concentrada ou de mais vivo sentido de comunidade profissional assim o aconselhem. Na própria estruturação das caixas regionais é indispensável examinar soluções adequadas às particularidades dos dois grandes centros urbanos de Lisboa e Porto.

VI) Outras questões

A) Pessoas a proteger

Com o acervo de problemas acabados de analisar, outras questões se puseram em Setembro de 1951 é importa referir também aqui.

Uma delas, por toda, a parte muito debatida e das mais agitadas entre nós, diz respeito ao campo de aplicação da Previdência Social, isto é, à determinação das classes de pessoas que ela deve proteger.

Segundo certos doutrinários, a Previdência Social só existe verdadeiramente quando, informada do conceito, muito amplo, de autêntico seguro nacional - abrangendo toda a população do País, sem a menor atenção pela natureza da sua actividade económica e pela importância dos seus recursos financeiros.

Para outros a concepção da Previdência Social há-de ser mais atenuada, limitando-se aos «trabalhadores», mas abrangendo-os a todos, sejam de conta própria ou alheia e independentemente dos seus ganhos ou das suas remunerações.

Para outros ainda a Previdência Social deve destinar-se exclusivamente aos trabalhadores de conta alheia, só a estes, mas a todos estes, sem restrições de nenhuma espécie.

Os partidários do que se poderá chamar o «seguro popular» entendem, por seu lado, que os legítimos beneficiários da Previdência Social são apenas as camadas sociais económicamente débeis, qualquer que seja o género de trabalho em que empregam a sua actividade.

Também não faltam teorias compósitas ou intermédias das acabadas de apontar, como não faltam defensores e opositores que, em todas elas, procuram visar sobretudo o ramo de seguro doença, que é o de mais sensíveis reflexos sociais.

E nós que havemos de pensar?

A resposta está implícita na linha geral das considerações que tenho vindo a fazer. Homens de princípios, torno a dizê-lo, é com os nossos próprios princípios que temos de nos reger. Defensores da propriedade privada e do desenvolvimento da iniciativa particular, consideramos que é económica e socialmente nocivo extinguir ou desfavorecer os hábitos de poupança, das classes abastadas, quer sob a forma do clássico pé de meia, quer sob a modalidade de investimentos «em terras ou casas ou papéis», quer sob o processo de seguro livre. Entendemos também que só a habitual imprevidência das classes menos afortunadas, aliada à geral impossibilidade prática de economizarem, é que nos levou à adopção, para elas, da segurança social obrigatória, a qual, portanto, não deve conduzir ao fomento dos estados de espírito e das condições sociais que ela própria pretende remediar.

Por outras palavras, que me recordo ter lido algures: a Previdência Social não é apenas uma técnica; é, antes disso, uma ideologia, ao serviço da qual se há-de colocar a técnica. Para nós, o ideal não está num sistema que elimine completamente todos os riscos. Seria absurdo, por ser contra a natureza, pois a vida é risco. Demais, seria, sob certos aspectos, um ideal negativo. Não se busca o seguro social por si mesmo, mas por outros fins. A segurança para todos daria a preguiça generalizada, o absurdo da tranquilidade perpétua. O homem de iniciativa corre riscos porque procura a vida; confia noutros seguros - o dá família, o do seu esforço criador, o dos seus rasgos económicos e financeiros, o das suas reservas «muito pessoais». Temos de deixar larga zona de liberdade para homens assim, que podem correr riscos e a quem vale a pena, socialmente, deixá-los correr.

Quer isto dizer que, ao menos no respeitante aos subsídios pecuniários e à assistência médica e farmacêutica do seguro doença, inserido no esquema de prestações da Previdência Social, somos pela teoria dos económicamente débeis, daqueles que efectivamente carecem de protecção e que sem ela poderiam representar uma carga demasiada para a natural insuficiência da caridade particular e para as fatais limitações da assistência social. Não é apenas para fugir a excessivas socializações da medicina, mas para defesa de certa concepção da própria vida social, que temos por mais aconselhável a chamada «doutrina dos económicamente débeis».

Nesta doutrina cabem, em princípio, tanto os trabalhadores de conta alheia como os de couta própria ou independentes, tanto os trabalhadores do comércio e indústria como os da agricultura, tanto os beneficiários propriamente ditos como as pessoas da sua família.

Uma coisa, porém, é a doutrina, o ideal, o desejável, e outra coisa são, dentro das contingências humanas, as possibilidades práticas da sua realização em determinado lugar e momento. Com tudo ocorre assim na vida dos indivíduos e das sociedades, sem excepção, «antes pelo contrário», do complexo inundo do trabalho e, nele, das suas formas de prestação ou dos seus modos de remuneração e de protecção.

Ora até onde se poderá ir nesta matéria? E como hão-de concretamente definir-se os económicamente débeis?

Os problemas deste modo naturalmente derivados do ângulo que para nós a Previdência Social deverá ocupar foram postos, como era imprescindível, nas reuniões de Setembro de 1951. Atendendo, porém, a que os nossos trabalhos sofreram longa suspensão e alguns desses problemas eram prementes, dentro do quadro prático da nossa Previdência Social, há aspectos em que já se interveio por via de despacho ministerial,

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obedecendo-se, claro está, à orientação nessa altura preconizada. Refiro-me aos trabalhadores independentes ou de conta própria e aos patrões, nas actividades comercial e industrial (visto a agricultura, como todos sabem, não estar abrangida pela legislação portuguesa de Previdência Social).

Para ser mais claro, é talvez melhor seriarem-se as questões:

a) A partir de 1943, inversamente do que se praticava antes, as caixas de previdência inscreveram obrigatoriamente, não só os empregados e assalariados ao serviço das empresas comerciais e industriais nelas abrangidas, mas também os trabalhadores independentes- e os próprios patrões, se estes exercessem funções habitualmente confiadas a empregados.

Conforme expus em Setembro de 1931, pareceu-me que esta orientação não era de aplaudir.

Em primeiro lugar, as fórmulas regulamentares adoptadas pelas caixas não forneciam critério aceitável de distinção entre empresários ricos e empresários ... económicamente débeis, visto que há, por exemplo, comerciantes que passam o dia no estabelecimento e aí atendem clientes, vendem ao balcão, fazem lançamentos nos livros de escrituração, etc., e nem por isso são necessariamente pessoas de modestos recursos.

Por outro lado, não percebendo salário, os trabalhadores autónomos foram considerados como auferidores de um salário fictício, calculado como equivalente ao salário mais alto da categoria, não obstante muitos deles terem proventos minúsculos. Para eles, a visita do cobrador, que lhes trazia a felicidade ... à força, era um autêntico pesadelo, pois tinham de pagar, para abono de família e previdência social, os 5 por cento correspondentes ao empregado que eram ... de si próprios e mais os l5 por cento correspondentes ao patrão ... de si mesmos.

Acrescia que, como é sabido, as caixas se foram constituindo no momento em que, por efeito de contrato ou convenção colectivos ou por despacho de salários mínimos, as remunerações rios trabalhadores melhoraram, pelo menos, o suficiente para que eles pudessem pagar a sua quotização e ganhar ainda alguma coisa em percepção directa. Com os patrões, porém, era precisamente no momento em que se viam compelidos a pagar maiores salários que se lhes pedia a quotização sobre o salário mais alto. Os trabalhadores independentes, esses nem sequer tinham ou têm remuneração certa.

Era de atender também que o modesto comerciante ou o pequeno industrial não montra interesse pela aposentação. Para ele, o braço é o negócio do estabelecimento, que pode continuar e deseja ver continuar, mesmo quando velho ou inválido. Na loja ou na oficina estará um filho, um sobrinho, a mulher, um parente próximo, um empregado antigo, que vigiarão pela casa, sob o olhar interessado do «empresário» velho ou inválido. Este homem não poderia compreender e não compreendia que o obrigassem a pagar, para fins de reforma, 7 por cento do salário que artificialmente lhe era fixado - mais de metade do prémio global.

À parte casos singulares de concordância, a onda de protestas dos pequenos empresários e dos trabalhadores autónomos era geral.

Não se contesta que muitos precisam e merecem tanta protecção como a concedida aos empregados e assalariados. Mas, em boa verdade, o clima ainda não é favorável a medidas desta natureza. Demais, terá um dia de estudar-se para eles regime especial apropriado, o que demanda dificuldades (e para dificuldades bastam, por agora, as muitas que já temos).

Por todo o exposto, foram eliminados da Previdência Social os sócios, directores ou administradores e até gerentes (o que carecerá de revisão) de qualquer empresa comercial ou industrial e os chamados trabalhadores de conta própria (despachos de 29 de Abril de 1952 e 26 de Maio de 190,2, publicados no Diário ao Governo, respectivamente, de 9 de Maio de 1952 e 30 de Maio de 1952, que consagraram, como orientação geral, doutrina já antes aplicada a certos casos concretos).

b) A Previdência Social é agora, portanto, domínio reservado dos trabalhadores por conta de outrem, no comércio e na indústria, havendo, quanto a eles, uma aplicação efectiva do princípio dos económicamente débeis. Na verdade:

A importância das remunerações auferidas não é elemento que se tenha em conta para efeito de obrigatoriedade de inscrição nas caixas, pois todos são inscritos. Os descontos, porém, incidem apenas sobre a parte do vencimento não excedente a 3.000$ mensais, à mesma medida se restringindo os benefícios.

Há no entanto, como referi em Setembro de 1951, dois aspectos ainda a considerar, que são estes:

1.º Devem excluir-se da obrigatoriedade de inscrição os que vençam remuneração superior ao plafond ou devem, como até aqui, inscrever-se todos, embora as regalias pecuniárias e as quotizações se refiram a vencimento, limitado?

2.º É razoável o plafond de 3.000$ mensais ou deve ser alterado?

A legislação comparada mostra que não há tratamento idêntico para as duas apontadas questões. Nuns casos, exclui-se totalmente da Previdência Social quem vença salário superior ao limite fixado. Noutros, o montante das remunerações é irrelevante, mas só à parte do ordenado ou salário não excedente ao limite se atribuem direitos e obrigações. Noutros, ainda, estabelece-se uma espécie de sistema misto: baliza eliminatória para o seguro doença, mas só limitativa das vantagens dos outros ramos de seguro.

Talvez mereça especial simpatia esta última orientação: ainda que possam excluir-se do seguro social os empregados com recursos capazes de cobrir os seus riscos a longo prazo, não repugna que também estes se inscrevam na Previdência Social para a cobertura dos referidos riscos, atendendo a que só há interesse social em que se previnam contra o futuro incerto. Mas é diferente com o seguro doença: dado que o prazo de garantia, neste ramo, é insignificante (um ano), a todo o tempo o que decaiu de fortuna pode recorrer à protecção do referido seguro.

De qualquer modo, o problema não tem interesse prático para nós, se o plafond se mantiver em 3.000$ mensais, porque mais de 95 por cento dos actuais beneficiários percebem vencimentos inferiores a tal quantia. Mas terá algum se baixar consideràvelmente o limite de vencimentos que dê direito à assistência médico-social.

Esta redução oferece naturalmente melindres, como os oferece qualquer retrocesso na atribuição de regalias sociais. Ao mesmo tempo, no respeitante ao seguro doença, a fixação de limite inferior ao actual suscitaria dois novos problemas: por um lado, a existência de dois limites (um para o seguro doença e outro para os demais seguros) traduzir-se-ia em incomodidade para as empresas e para a administração das caixas; por outro lado, desde que a capitação para a assistência médica e medicamentosa é igual para todos os beneficiários, a diminuição do limite privaria as caixas de receitas de quotas lançadas sobre ordenados altos, com ameaça de equilíbrio financeiro.

A Ordem dos Médicos alvitrou redução para 2.000$, mas esta cifra parece-me demasiado baixa, sobretudo em atenção aos que têm família a seu cargo - a não

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ser que a referida Ordem e o Grémio Nacional das Farmácias, pela sua intervenção em matéria de honorários clínicos e preços de medicamentos, pudessem ajudar a resolver a dificuldade.

Creio, no entanto, que o Sr. Bastonário da Ordem doa Médicos, em Setembro de 1951, não mostrou repugnância em aceitar o actual limite de 3.000$.

De qualquer modo, VV. Ex.ª examinarão livremente o problema.

c) A extensão de regalias da assistência médica e farmacêutica às famílias dos beneficiários é defendida por todas as d ou trinas e praticada em todos os sistemas, como sentido social da unidade familiar e até como processo de tornar mais eficiente a protecção do próprio beneficiário.

Pode discutir-se, talvez, se não teríamos andado um pouco depressa neste domínio, antes de estar assegurada em moldes razoáveis a assistência ao trabalhador e de conhecermos bem os resultados ou as lições desta prática. Mas não se discute o princípio.

Há, todavia, algumas instituições onde tal extensão não está generalizada, aspecto que merece ser considerado pelos seus reflexos financeiros.

Merece igualmente examinar-se o grau aconselhável da aplicação deste princípio, isto é: a medida em que devem as regalias dos beneficiários abranger as pessoas da sua família.

c) Que dizer dos trabalhadores rurais, abnegada multidão que no Norte e Centro do País é, em regra, simultaneamente de cultivadores e dadores de trabalho? Há-de aceitar-se a sua inclusão no campo de aplicação da Previdência Social?

O problema apresenta-se aqui ainda mais eriçado de dificuldades do que relativamente aos trabalhadores autónomos ou independentes do comércio e da indústria. As dificuldades são mesmo de tal número e de tal vulto que é manifesta a impossibilidade prática de responder pela afirmativa.

Todavia ... sim, todavia, as nossas populações rurais constituem a classe mais desprotegida e das mais económicamente débeis. Ao mesmo tempo são elas quem representa, o maior número de consumidores dos produtos que a indústria fabrica e o comércio transacciona, sendo certo também que, no preço de cada enxada comprada pelo cavador ou no de cada peça de pano cru adquirida pela sua mulher, incidiram as taxas cobradas para os beneficiários da Previdência Social do comércio e da indústria. Acresce que este novo desfavor de tratamento para com o mundo rural, ao lado de outros preexistentes, pode agravar a crise do urbanismo e aumentar assim, com o despovoamento dos campos, o desequilíbrio entre as diversas forças da economia nacional.

Haverá meios de obviar, pelo menos, às arestas mais agudas desta situação, melhorando a assistência médico-social dos trabalhadores rurais?

Todos sabemos, na verdade, como ainda são deficientes, neste domínio, os serviços públicos sanitários e como é rudimentar a acção das Casas do Povo.

Poderá esta ser enriquecida com aumento de contribuições directas da lavoura? Deverão assegurar-se formas eficientes de maior e melhor comparticipação dos organismos de coordenação económica da agricultura para o fundo comum? Será caso de fazer apelo, em nome de um vasto princípio de solidariedade, à comparticipação da própria Previdência Social do comércio e da indústria, cuja prosperidade anda necessariamente ligada ao desafogo da agricultura e à capacidade de consumo dos trabalhadores rurais?

Ao invés, continuaremos, sobretudo, a dar largo crédito à capacidade sofredora da nossa gente do campo, ao seu engenho instintivo e ao seu arreigado sentimento de cristã irmandade, que a leva a descobrir recursos inimagináveis e a encontrar processos de actuação só possíveis de impor ... pela generosidade da sua iniciativa privada? Para além disto, terá de manter-se como principal acção supletiva a da assistência pública e estará esta em condições de desviar para os campos parte dos recursos que a Previdência (Social lhe deixará libertos com o seu esquema de benefícios nas actividades industriais e comerciais ?

O problema é muito melindroso. (Mas vale, talvez, a pena que VV. Ex.ªs se debrucem sobre ele com alguma atenção.

B) Integração do abono de família

Como vimos de início, o abono de família não foi organizado entre nós sob a forma de seguro e não se vêem razões que nos aconselhem a mudar de orientação. Está, portanto, fora do esquema de benefícios da Previdência Social e é-lhe estranho.

Sem embargo, as caixas regionais de abono, constituídas para a realização exclusiva do mesmo abono, foram sendo esvaziadas de beneficiários. Algumas delas, com esta orientação sistemática, ficaram tão reduzidas na sua actividade que pouco anais lhes restou do que o direito de morrerem. Outras consequências derivaram deste critério, mas não há interesse em as referir agora.

Para o fim aqui em vista, basta salientar a seguinte nota: «as integrações do abono de família em caixas de previdência não foram nem podiam ser integração do abono ... na previdência». Só, portanto, preocupações de ordem prática e, designadamente, de natureza administrativa justificam o encontro do abono e da previdência na mesma instituição, encontro que tanto se admite tenha sido feito nas actuais caixas de previdência como se admite venha de futuro a sê-lo, por hipótese, nas actuais caixas de abono.

Dever-se-á prosseguir nesta política ou será mais aconselhável, na nova estrutura, manter completa separação das duas instituições?

Não forneço, desde já, qualquer directriz. Limito-me a deixar o problema à consideração de VV. Ex.ªs Acrescentarei, no entanto, atento o temor à influência das palavras, que, a manter-se a junção do abono e da previdência na mesma instituição, prefiro que nem um nem a outra se considerem ... integrados, isto é, as caixas deverão então chamar-se pelo nome próprio de caixas de abono de família e previdência social.

C) Disciplina administrativa

O bom funcionamento das instituições depende muito das qualidades dos seus dirigentes e do nível e dedicação do seu pessoal. Mas depende também fundamentalmente do sistema ao serviço do qual está colocado o factor humano, e por isso ficaram já preconizadas reformas na estrutura administrativa da Previdência Social.
Essas reformas têm de completar-se com normas disciplinadoras da administração e dos seus empregados, aspecto que mereceu especiais considerações em Setembro de 1951. O problema era então muito importante, mais importante do que a generalidade das pessoas, mesmo das interessadas por estas questões, poderá pensar. Agora, porém, perdeu acuidade e não tem perfeito cabimento aqui.
Na verdade, como de início foi referido, a urgência do assunto exigiu que se nomeasse uma comissão especial para este efeito, devendo brevemente, decidir-se sobre a matéria mais carecida de regulamentação, em despacho precedido de relatório explicativo da necessi-

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dade da intervenção e justificativo das soluções adoptadas. O trabalho dessa comissão, como também já anotei, enquadrar-se-á facilmente no conjunto dos problemas postos ao exame de VV. Ex.ªs

D) Aspectos especiais do seguro doença

No seguro doença, há aspectos especiais a considerar quanto à forma e às condições da sua prestação, aspectos que se põem independentemente dos problemas, atrás examinados, de regimes financeiros, esquemas de benefícios e estruturas administrativas, isto é, que nos aparecem dentro de qualquer sistema de previdência social.

Alguns deles envolvem questões graves e delicadas, quer pelos seus inevitáveis reflexos na vida financeira das instituições, quer pelas suas vivas repercussões de natureza social (a que necessariamente levaria também, e piores, um eventual desequilíbrio financeiro). À sua roda, precisamente por isso, se tem levantado apaixonadas e intermináveis discussões, sem que se tenha podido encontrar até agora, neste mundo novo, inquieto e inexperiente da Previdência Social, uma plataforma de transigência ou uma solução ideal.

Diz a sabedoria popular que só se aprende bem a própria custa. A nossa aprendizagem (que, portanto, há-de ser a mais instrutiva) é ainda, incipiente. A aprendizagem dos estranhos (que, em iodo o caso, sempre nos será útil conhecer) também não tem a acreditá-la o saber de longos anos vividos. Estamos, torno a afirmá-lo em autêntica terra de experiência.

Como, porém, é indispensável continuar a abrir caminho e fazer o nosso próprio treino, não podemos deixar de tomar posição perante esses problemas, embora, sem o ar satisfeito de quem adquiriu certezas definitivas. A orientação, norteada naturalmente pelas nossas concepções doutrinárias, e pelas lições das realidades já conhecidas, está marcada nos princípios informadores do Decreto n.º 07 762, de 24 de Fevereiro de 19-30, ainda em vias de execução integral, e a ela havemos de encostar-nos.

Salientarei, a este propósito, os três seguintes pontos:

a) A Previdência Social não pode ter a preocupação de se independentizar com uma espécie de auto-suficiência de serviços para a realização do seu esquema de seguro doença e deve, em especial, através de acordos convenientes, procurar a colaboração dos serviços sanitários da assistência pública e privada normalmente destinados à generalidade da população.

Assim, por exemplo, os hospitais e os sanatórios erguidos pela iniciativa oficial ou particular para a satisfação das necessidades assistenciais do País e que, por isso, se destinam a receber todos os doentes!, pobres ou ricos, devem ser os estabelecimentos destinados também aos económicamente débeis da Previdência Social;

b) Temos como defensável que o beneficiário há-de intervir, em princípio, no custeio directo das prestações médicas e farmacêuticas. O beneficiário, sem ter a consciência disso, pode ser um dos maiores inimigos da Previdência Social se lhe falta a noção como falta muitas vezes- ide que tem de chegar a todos o que é de todos e de que se perde para uns o que os outros desperdiçam.

Seria psicologicamente desacertado, financeiramente perigoso e socialmente nocivo organizar a prestação do seguro doença com desconhecimento ou com menosprezo desta viva realidade.

O mais difícil aqui-e em tudo, afinal- é encontrar o meio termo adequado - a justa medida.

Dever-se-á levar sempre à couta do segurado uma percentagem do custo ida prestação? Na hipótese de resposta negativa, que casos deverão exceptuar-se? Para os demais casos a percentagem haverá de ser uniforme ou variável? E qual a taxa ou as taxas a estabelecer para este fim?
O problema, como se vê, desenvolve-se numa série de problemas, que é indispensável examinar com atenção e prudência;
c) Não são menos de ponderar os aspectos médico e farmacêutico da Previdência Social.
Para as soluções a buscar ou a rectificar em ambos estes aspectos, não obstante o que já se conhece das vozes reclamantes das interessadas, devem ser ouvidos os competentes organismos profissionais.
O acervo de questões postas neste domínio é muito delicado. Nós havemos de encará-las dentro de dois grandes princípios orientadores, a saber:
1.º A Previdência Social não quer suprimir a farmácia nem (passe o estrangeirismo) «asservir» a medicina; mas
2.º Não pode querer também que farmacêuticos e médicos partam do pressuposto de que a organização do seguro social de saúde, para os economicamente, débeis, é a descoberta feliz de saúde processo adequado para numerosa clientela modesta passar a ser considerada como algente de posses abastadas» e que nem sequer vê a conta, porque ... paga a Previdência Social.
Isto quer dizer que, dentro da liberdade possível, tem de haver disciplina e fiscalização. Também aqui somos pela concorrência, mas por uma concorrência disciplinada, e não pela livre concorrência.
Como se há-de ela estabelecer melhor? Esta é a grande questão.
O problema é sobretudo eriçado de dificuldades no aspecto médico, sobre o qual está já feito um estudo onde VV. Ex.ªs encontrarão elementos de grande proveito. As dificuldades resultam de particularidades próprias da medicina e também da formação e das naturais deformações profissionais ido médico. Como acertadamente observou alguém, o peso de tradições seculares e até certas exigências da profissão conduzem os médico», em geral, para um quase inconsciente individualismo sem nuances. Temos de contar com isto. Mas também aqui, apesar de tudo, havemos de ter confiança em que nos não faltará a boa vontade de muitos espíritos esclarecidos, a força que irá sendo dada pelo próprio uso ... de usos novos e a formação do sentido social, que à Ordem dos Médicos compete ajudar a fortalecer ou a criar.

VII) Nota final

Termino, que já não é sem tempo. E termino pondo mais uma nota, a nota final, para o «lastro comum» da nossa formação mental.
Nós somos todos pela Previdência Social. Mas não fazemos dela uma «(religião», do mesmo moído que, dentro dela, não aderimos à «seita» da saúde. Nem a Previdência Social é panaceia para adormecer todo o receio do risco (de si mesmo criador) nem a saúde é ídolo para fomentar «a sede de cuidados».
Antes dos benefícios proporcionados pela Previdência Social, interessa que os trabalhadores possam desfrutar da tranquilidade da ordem e, nesta, da fecundidade do trabalho, que dá o salário, e, com ele, além do pão (que é o mais necessário), a possibilidade da própria previdência social.
Nesta hierarquia de valoreis assim enunciada (o político, o económico e o social) se há-de enquadrar o nosso pensamento e realizar a nossa acção.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 1953. - José Soares da Fonseca.

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Anexo II

«Sr. Ministro das Corporações e Previdência Social - Excelência:

Assunto. - Breve comentário ao requerimento do aviso prévio sobre a Previdência Social apresentado à Assembleia Nacional pelo Dr. Cerqueira Gomes.

Lemos agora, no Diário das Sessões n.º 200, de 11 do corrente, o texto integral do requerimento do aviso prévio sobre a Previdência Social apresentado pelo Deputado Sr. Dr. Cerqueira Gomes à Assembleia Nacional.

A leitura corrente e despreocupada de tão extenso documento deixou-nos, numa primeira impressão, a ideia de um verdadeiro programa sobre Previdência Social. Em problema tão debatido em todo o Mundo, pela sua complexidade, nos aspectos técnico, económico, político e social, pelas indecisões na fixação de ideias definitivas, pela variabilidade das concepções que vão desde a cobertura de alguns riscos até aos complexos programas de segurança social, etc., espantou-nos que houvesse em Portugal quem tivesse sobre ele ideias assentes, definitivas. Por isso fizemos nova leitura, alenta e meditada, a fim de podermos extrair algumas conclusões.

Proclama-se no requerimento: «Deve inverter-se o sentido do plano assistencial; não atender às doenças de curto prazo, que pela tentação das baixas são o pesadelo das tesourarias, e cuidar das de longo curso?.

A gripe, a pneumonia, a febre tifóide, etc., são doenças de curto prazo ou de longo curso?

Supomos não errar considerando-as de curto prazo.

E então, as concepção de prestação de serviços médicos do seguro doença defendida no aviso, aqueles pobres doentes ficarão privados de cuidados médicos e entregues ao destino, para livrar de pesadelos as tesourarias.

Preconiza-se no aviso prévio: «A entrada imediata do segurado no risco invalidez, desde que tenha sido julgado medicamente incapaz e seja. qual for o período de garantia, das suas quotizações»; «o abono de família pode bem ficar dentro do nosso seguro social; é hoje um verdadeiro seguro familiar obrigatório».

A primeira afirmação, se não vier a ser esclarecida, prova-nos que não se faz ideia exacta do que seja um sistema de seguro. A segunda demonstra-nos que se desconhece que o abono de família, o nosso, claramente, funciona como complemento de salário por encargos familiares e. portanto, não é seguro.

Ao tratar do regime financeiro diz o autor: «Está doutrinariamente certo o nosso sistema financeiro dos seguros sociais».

Mas logo adiante refere-se ao regime de capitalização excessiva.

Se bem entendemos, o que parece estar certo, no nosso seguro, para o autor, não é o regime financeiro, mas sim as entidades que nele comparticipam: o patrão e o operário.

O autor já defendeu na nossa presença o sistema de repartição pura e simples; agora considera «é excessivo o sistema de capitalização, embora declare doutrinariamente certo o nosso - o actual- sistema financeiro dos seguros sociais, que é o da capitalização colectiva. Mas logo adiante parece rejeitar o regime de capitalização, excessiva ou não, quando postula como um grave mal que é preciso evitar: «As nossas caixas de previdência, que nasceram para corrigir o desamparo da economia capitalista, vão tornar-se, em alguns anos, as mais fortes instituições capitalistas».

Este desamparo da economia capitalista deve referir-se ao trabalhador. Mas atrás, ao fazer alusão à capitalização excessiva do regime de previdência e às necessidades de financiamento do Plano de Fomento, o aviso parece referir-se à economia nacional.

E agora se compreende como o autor do aviso prévio, partidário acérrimo do regime de repartição, veio a concordar com um regime de capitalização atenuada: foram as necessidades de financiamento do Plano de Fomento que o levaram a mudar de opinião, plano que sem os capitais da Previdência, teria de ser substancialmente reduzido.

O autor do aviso prévio não é, porém, técnico de seguros; antes lhe interessa, como ilustre médico que é, a cobertura de riscos imediatos, como se depreende quando preconiza uma nova distribuição das taxas, por esta forma um tanto ou quanto imprecisa:

«O mesmo para o abono de família, menos para o subsídio de morte e para a reforma, mais para o agregado doenca-invalidez. Ganho nos seguros imediatos e redução nos seguros a longo prazo».

Passemos então à parte do aviso prévio onde o autor mais deve sentir-se <à p='p' tag0:_='vontade:_' xmlns:tag0='urn:x-prefix:vontade'>

«As prestações médica e farmacêutica são quase sempre insuficientes, marcadamente as da Federação; devem completar-se, garantindo os meios de diagnóstico, assistência nocturna, pagando cirurgia e o tratamento dos tuberculosos e os outros doentes infecto-contagiosos. dos cancerosos e dos mentais e ampliando os medicamentos para além dos injectáveis».

O autor deve querer exprimir o desejo de que a assistência médica do seguro doença garanta ao beneficiário uma assistência médica e cirúrgica, geral e especializada, completa. Neste sentido julgamos não haver duas opiniões em contrário. Mas falta saber se o seguro doença foi estudado para suportar tal encargo ou se o foi para âmbito mais restrito de benefícios, de acordo com as possibilidades económicas das entidades comparticipantes: patrão e operário.

Realmente o caso parece esclarecer-se pelo disposto no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 37 762, de 24 de Fevereiro de 1950:

«1. A assistência médica deverá assegurar os serviços de medicina geral, compreendendo consultas, visitas domiciliárias, cirurgia ambulatória, partos e tratamentos.

2. Nas zonas ou áreas de reconhecida importância industrial ou comercial, e à medida que as circunstâncias o forem permitindo, a assistência médica abrangerá, além da clínica médica, outros serviços especializados considerados convenientes, designadamente a estomatologia, a ginecologia e obstetrícia, a pediatria e a enfermagem, de harmonia com a orientação aprovada pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.

3. Fora dos casos previstos no número anterior, 0-5 médicos que prestem assistência aos beneficiários das caixas deverão assegurar os serviços a que se refere o n.º 1 deste artigo».

Não foi só a impossibilidade material de satisfazer o encargo com uma assistência médica e cirúrgica completa, só possível com um aumento substancial das quotizações, o único motivo que levou o legislador a fixar previamente, com todas as cautelas, as prestações a que o seguro se obrigava.
Foi também a escassez de meios técnicos, em pessoal, instalações e equipamento.
E como o óptimo é inimigo do bom, ao menos que se concedesse o absolutamente indispensável, de que alguns milhões de portugueses ainda hoje estão privados, já que anteriormente à organização da Previdência nada tinham. A execução do esquema, embora incom-

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pleto e insuficiente, deu já lugar ao slogan que tantas vezes temos ouvido a quem não é beneficiário da Previdência: Só podem estar doentes os milionários e os beneficiários da Previdência.

Piara se fazer uma ideia das razões da exiguidade do esquema de assistência médica da Previdência basta apontar que, ao passo que na Espanha e na Grécia, na Itália e no Luxemburgo as compartições para assistência médica sobem a valores compreendidos entre 5 por cento e 9 por cento sobre o salário, em Portugal não vão além de 3 por cento.

Nem por isso, naqueles países, com esquemas mais completos, com maiores benefícios, as críticas deixam de ser as mesmas e em todo o Mundo assim acontece.

Mas o autor do aviso prévio, que, certamente, curou de saber se as contribuições da Previdência destinadas a cobrir o risco doença podem ou não suportar o encargo de unia assistência médica completa, não indica os meios de obter receita para lhe fazer face. É talvez processo cómodo apresentar problemas. As soluções ficam à conta da burocracia.

Na verdade, sendo o problema fácil de equacionar, é difícil de resolver. A equação é muito complicada e só tem solução dentro de certo condicionalismo, difícil de aceitar de boa mente, por não se acreditar que o seguro não pode dar o que não tem.

Para dar uma ideia, da dificuldade do problema ampliação do esquema de assistência médica, foquemos o do tratamento dos tuberculosos, a que o aviso prévio se refere.

Quer o autor do aviso prévio referir-se, certamente, ao magno problema do tratamento da tuberculose pulmonar.

Temos na nossa frente um estudo sobre o «Seguro Tuberculose», de Setembro de 1952, subscrito por distintos fisiologistas e actuários, que mostra toda a magnitude do problema e cujas conclusões são elucidativas.

Decerto o autor do aviso prévio não conhece esse estudo, esse ou outro de natureza idêntica e de igual autoridade. Só isso explica a ligeireza com que supôs poder resolver-se o problema.

Saberá, por exemplo, qual o número ao menos aproximado, dos doentes de tuberculose pulmonar nos beneficiários da Previdência Social e seus familiares?

Avaliará, ainda que por alto, o encargo que representaria o tratamento destes doentes?

Passar-lhe-á pela imaginação (já dizemos só pela imaginação) a ideia de que o seguro social, para tratar estes doentes, teria de gastar tudo o que despende actualmente e ainda muitas dezenas de milhares de contos mais?

Se antes de pôr o aviso prévio tivesse querido formar juízo consciencioso sobre esta delicada questão e evitar a apresentação de soluções fáceis ... de dizer, a Federação poderia ter-lhe fornecido de bom grado os elementos indispensáveis, ou o Ministério das Corporações o Previdência Social, que mandou proceder ao estudo em referência.

Mas continuemos:

Como na tuberculose pulmonar a unidade não é o doente, mas sim a família, o combate u doença não poderá, ou não deverá, ficar confinado ao sector da população coberto pelo seguro.

Acrescenta-se ainda que a tuberculose pulmonar é uma doença de carácter social, cuja mobilidade é extraordinariamente agravada pelas condições económicas, falta de higiene e deficiências alimentares do doente. E o certo é que ainda depois do esforço colossal realizado pelo Estado, Previdência e autarquias locais na construção de milhares de habitações económicas e higiénicas, ainda há milhares de famílias, especialmente em Lisboa e aio Porto, que vivem em barracas de madeira podre e latas velhas, numa promiscuidade de idades e sexos que choca os menos moralistas e numa insuficiência económica que confrange os mais arredios a condoerem-se com a miséria alheia.
A tuberculose pulmonar já foi uma doença tipicamente urbana. Hoje encontra-se por tal forma disseminada nos meios rurais que, pode dizer-se, abrange toda a população.
Por isso o combate a doença constitui presentemente um problema nacional.
Felizmente, a evolução das técnicas de tratamento os antibióticos e a cirurgia da tuberculose pulmonar - tornou-a mais acessível à acção do médico. Se ainda hoje estivéssemos no tempo em que a sanatorização prolongada era considerada o meio mais eficaz do combate à doença, encontrávamo-nos numa situação embaraçosa.
Só poderá inadvertida mente supor o contrário quem se mão tenha dado ao esforço de avaliar do número de doentes e, com ele, do número de camas necessárias para o seu tratamento, em confronto com as de que, por enquanto, dispomos para toda a população.
Estes, porém, era preferível dizerem que não supõem coisa alguma. A ignorância, parece-nos, faz menos mal e é mais respeitável do que a falsa sabedoria.
Vêm estas sumárias considerações apenas para se dar uma ideia da complexidade do problema.
Não nos assustemos porém. A evolução das técnicas de tratamento da doença faz-nos vislumbrar algumas esperanças de melhores dias. E no desenvolvimento do aviso prévio não se esquecerá o autor de aprofundar o problema e apontar-lhe as soluções mais convenientes e mais conformes com as nossas possibilidades.
Poderia o autor do aviso prévio juntar ao tratamento da tuberculose o dos reumatismos e das doenças cardiovasculares. Especialmente o reumatismo tem na. Previdência grande importância. O número de baixas que causa é muito elevado e os consequentes prejuízos para o beneficiário, para as caixas e para a economia nacional são muito pesados. Depois, é uma doença de tratamento caro de moroso.
E o tratamento dos cardíacos?
E a cirurgia geral e especializada com o indispensável internamento ?
E a recuperação e a readaptação dos doentes ao trabalho?
E as instalações, o apetrechamento e equipamento dos serviços, o pessoal técnico necessário para executar um programa completo de assistência módica e cirúrgica?
Com tal amplitude, nem todo o dinheiro da Previdência, o apontado milhão de contos, chegaria para satisfazer as despesas com a assistência módica, tão cara está a medicina e tão dispendiosas são as instalações.
Embora há pouco iniciada a execução do plano de organização hospitalar, já muito se tem feito, especialmente na. construção de hospitais. Mas construí-los e apetrechá-los não basta. Difícil é mante-los em funcionamento normal, dotando-os dos meios financeiros para exercerem a sua função com bom rendimento e utilização. E isso fica tão caro que, embora estejamos ainda longe de atingirmos o número de camas julgadas necessárias para a população, já as vamos tendo sem doentes, por falta de verba para os internar e tratar.
Todavia não sejamos pessimistas. Lá fora, em muitos países, a situação é idêntica. E o problema por cá há-de resolver-se com trabalho, persistência, canseiras e algumas arrelias, como têm sido estudados e resolvidos outros grandes problemas nacionais. A impaciência de- certos ansiosos, que têm sempre as melhores e mais eficazes soluções para todos os problemas, ainda os mais complicados, terá de se acalmar perante as dificuldades e esperar pelas soluções ditadas pelo bom senso.

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Demos este ligeiro apontamento sómente no intuito de fazer notar, embora imprecisamente, as dificuldades do problema.

Mas no requerimento do aviso prévio, em vez de se focarem essas dificuldades objectivamente e se sugerirem as soluções mais conformes com as nossas possibilidades económicas para as ultrapassar, preferiu-se pôr em relevo os erros de concepção, os defeitos, de funcionamento da nosso Previdência em geral e, certamente por deformação profissional desculpável, os defeitos dos seus serviços médicos, marcadamente os da Federação.

Só assim se compreende que de vez em quando, no desenvolvimento do requerimento, a Federação nos surja como principal responsável pelos malefícios da Previdência: o as. prestações médicas e farmacêuticas são quase sempre insuficientes, marcadamente as da Federação; a nossa Previdência, especialmente a Federação de Caixas, cumpre o encargo das prestações sanitárias com médicos privativos».

Sempre que isso é possível, marcadamente, especialmente, as objurgatórias do requerimento visam os serviços, médicos da Federação. Porquê?

Por serem estes os de maior extensão da Previdência? Parece que não. O autor do aviso prévio sabe muito bem que a Federação presta assistência médica a menos de metade dos beneficiários inscritos nas caixas de previdência e que «as Casas dos Pescadores, têm 50 000 sócios a quem prestam assistência médica»; «as Casas do Povo têm mais de meio milhão de sócios, a quem prestam assistência, médica»; «as associações de socorros mútuos agrupam um inúmero de segurados, superior a meio milhão, a quem prestam assistência médica». Isto é: 1 050 000 beneficiários não inscritos nas caixas- de previdência. Temos, ainda de contar com as caixas privativas de empresas, como a da C. U. F., que prestam assistência médica fora do âmbito da Federação, e com os serviços médicos de organismos oficiais, como os dos CTT, etc.

Por serem tecnicamente os mais deficientes?

A resposta a esta pergunta envolve comentários, que melhor ficam na boca de um médico do que na nossa, que o não somos. Por isso nos abstemos de responder.

Por adoptar no recrutamento dos médicos e na forma de utilização dos serviços auxiliares processos diferentes dos outros organismos assistenciais? Ainda neste aspecto não descortinamos razão para tanto reparo.

São poucos os organismos do seguro que admitem os seus médicos, por concurso documental, a que todos se podem habilitar. É este o regime da Federação. E menos, ainda aqueles que, fora do regime de monopólio ou de serviços próprios, utilizam a colaboração de todos os radio legistas, analistas, fisioterapeutas, etc., desde que aceitem as nossas tabelas de preços. É este o regime da Federação.

O autor do aviso prévio sabe-o muito bem e por isso se não explica que os serviços médicos da Federação mereçam marcadamente, especialmente, a sua crítica. As críticas à «prestação de serviços médicos» são desenvolvidas na alínea e) do requerimento.

Já nos referimos, em exposição enviada à Assembleia Nacional para esclarecimento dos Ex.mos. Deputados, a inconsistência e injustiça das seguintes afirmações nele contidas:

«Quer agora impor a criação de serviços de radiologia. O investimento de grandes somas em serviços próprio* é uma defesa da sua burocracia.

Transcrevemos algumas passagens:

«A actual direcção da Federação tem proferido, de há dois anos a esta parte, de acordo com instruções que lhe foram superiormente transmitidas, à estabilização dos serviços médico-sociais e à compressão de despesas, por forma a que pudessem ser suportados pelas caixas

federadas - apenas trinta, «três das oitenta existentes- os encargos com a assistência médica a beneficiários e familiares, cujo esquema, bom ou mau, foi elaborado, certamente de acordo com o princípio axiomático: a Previdência não pode dar aquilo que não tem. Ora aquilo de que a Previdência dispõe para a assistência médica do seu esquema de benefícios não vai além de 3 por tento sobre o salário.
No decorrer deste trabalho - estabilização do serviço e compressão de despesas - viemos a verificar que as despesas, com raios X, em particular as referentes ao radiodiagnóstico, mero elemento auxiliar de diagnóstico, ascendiam a 10 por cento da despesa geral do serviço, ainda mesmo depois da restrição, já imposta, de só poder ser utilizado até 4 por cento das consultas do mês anterior.
Isto é: para evitar despesas exageradíssimas. com os exames, radiológicos já se tinha adoptado o critério de reduzir a um mínimo, julgado suficiente até em serviços hospitalares, a sua utilização.
A verdade é que, se por este meio se evitava que as contas individuais dos os Radiologistas de Lisboa e Porto já não atingissem os números astronómicos compreendidos entre os 400 e os 750 contos anuais, como atingiram em .1949, nem por isso a despesa baixou sensivelmente dos 10 por cento da despesa total do serviço. Por isso teve a direcção ide proceder à revisão da tabela de preços dos exames radiológicos, procedimento que adoptou também quanto às análises clínicas e serviços de fisioterapia.
Um estudo cuidadoso do problema sob todos os aspectos - os que se referiam aos legítimos interesses dos radiologistas e os que eram determinados pelo direito, o dever e a necessidade de acautelar os dinheiros da Previdência, atendendo ainda ao volume do serviço, à roda de 45 000 exames radiográficos por ano, perdido, quase na totalidade, para os radiologistas se não fosse a organização dos serviços-médicos da Previdência permitiu elaborar uma nova tabela de preços, que foi proposta a todos os radiologistas ida província, de Lisboa e do Porto, sem diferenciação dos locais onde estavam instalados os serviços e com a explicação prévia de que ela representava a vontade firme de manter o princípio de colaboração com a iniciativa privada, por forma a evitar a montagem de serviços próprios ou a concessão de monopólios.
Os radiologistas da província - Guimarães Aveiro, Coimbra, Tomar, Portalegre, Covilhã, Castelo Branco, Setúbal, Évora, etc. -, com raras excepções, aceitaram a nova tabela e continuaram a prestar os seus serviços à Federação.
Fica-lhes aqui lima palavra de agradecimento pelo seu espírito de compreensão e vontade de colaboração com tão importantes serviços, tanto mais que não consta das contas dos serviços médico-sociais que os seus proventos tivessem alguma vez atingido as somas elevadíssimas a que já fizemos referência.
Os radiologistas de Lisboa e Porto não a aceitaram e vieram declarar, por escrito, que entregavam à Ordem dos Médicos a solução do problema.
Decorreram vários meses sem que ,à direcção da Federação chegassem notícias da intervenção da Ordem no assunto, até que, finalmente, foi a direcção procurada por uma comissão composta por três distintos radiologistas de Lisboa, representantes da Ordem dos Médicos, para entabular negociações no intuito de estabelecer uma plataforma aceitável que acabasse com o conflito.
Depois de duas reuniões e da troca de alguns ofícios concluiu-se não ser possível chegar a uma solução aceitável para ambas as partes e foi-nos então comunicado em 17 de Dezembro de 1952 que ia ser pedida a inter-

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venção do presidente do conselho geral da Ordem dos Médicos na solução do problema. Há dois meses que esperamos a intervenção de Sua Excelência.

E a direcção viu-se, por isso, obrigada a reduzir para 2 por cento do número das consultas do mês anterior a percentagem das radiografias que podiam ser requisitadas em Lisboa e no Porto, enquanto o problema dos raios X não era resolvido pela montagem de serviços próprios nestas duas cidades.

E facto curioso: veio posteriormente a verificar-se que em muitos casos a percentagem reduzida era suficiente para as necessidades da clínica.

Tal redução produziu, como é compreensível, uma baixa sensível no quantitativo das facturas apresentadas pelos Ex.mos Radiologistas de Lisboa e Porto. Houve até quem, na intenção de se ressarcir da quebra dos proventos motivada por tal deliberação, tentasse elevar o número de sessões de radioterapia dos doentes que eram entregues, o que obrigou a direcção a suspender o envio de doentes a um Ex.mo Radiologista.

E quando se esperava que este reagisse provando a justeza do seu critério clínico para demonstrar a iniquidade da suspensão, preferiu reabilitar-se fazendo um desconto de 60 por cento nas suas contas da radioterapia apresentadas de Janeiro a Agosto de 1952, desconto que se elevou à importância de 78.946$80.

Deixamos ao critério esclarecido de V. Ex.ª, Sr. Presidente, e ao esclarecido critério da Câmara, a que V. Ex.ª. distintamente preside o comentário que o facto merece. Por nós, apresentamo-lo sómente em nossa defesa.

Pelo exposto, já se pode vislumbrar que a Federação não quer impor a criação de serviços de radiologia, antes foi posta em presença de uma situação que terá de resolver pelos seus próprios meias, já que não pode contar em Lisboa e no Porto, note-se bem, com a colaboração dos Ex.mo Radioloigistas.

E certo que a criação de serviços próprios está prevista e até, em certas condições, é imposta pelo disposto na alínea a) do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 37 762, de 24 de Fevereiro de 1950.

E, se assim se tivesse procedido, isto é, se tivessem sido cumpridas tais disposições, o problema da radiologia estava já muito ultrapassado e não daria agora azo a mais entendidos e especulações, que podem ser aproveitados para alvoroçar a opinião publicas a direcção da Federação, na defesa dos princípios tão de acordo com a nossa doutrina, no dizer do autor do aviso prévio, em lugar de enveredar pelo trilho da lei, montando serviços próprios, tentou a colaboração dos Radiologistas, que só veio a obter fora das cidades de Lisboa e Porto.

E ainda, de acordo com a doutrina, logo no início da sua gerência, extinguiu pura e simplesmente os serviços próprios chamados «Laboratório de Análises Clínicas de Lisboa» e «Centro Radiológico do Porto», prestes a entrar em funcionamento, com algum prejuízo para os Serviços Médico-Sociais, traduzidos nas indemnizações e outros encargos que foi necessário satisfazer.

Este passo final da demonstração que nos propusemos fazer é a prova evidente do desejo de colaboração por parte da direcção com a iniciativa privada, todas as vezes que a exagerada avidez dos colaboradores não a torna impossível ou, pelo menos, impraticável.

E diga-se em abono da verdade que a direcção da Federação, ao tomar tal atitude em defesa dos princípios, contrariou a lei e disso teve de tomar inteira responsabilidade.

E então perguntemos agora:

E a Federação que quer agora impor a criação de serviços de radiologia ou são os radiologistas de Lisboa e Porto que forçam, tal solução?

Parece-nos ficar rigorosamente demonstrada a inexactidão do passo do aviso prévio que esclarecemos.
Releve-nos V. Ex.ª a formulação de mais duas perguntas que este lastimável incidente nos sugere:
não poderia o autor do aviso prévio, na qualidade de ilustre bastomário da Ordem dos Médicos e como tal conhecedor do problema da radiologia, ter conseguido inteira liberdade para os radiologistas de Lisboa e Porto, grandes e pequenos, aceitarem ou mão, conforme quisessem, a nova tabela? Ao contrário, consentiu-se depois de vários incidentes, que todos ficassem amarrados ao compromisso de honra de não a aceitarem. Os radiologistas, e são vários em Lisboa os que montaram os seus serviços a contarem com a receita que lhes provinha dos serviços prestados a Federação, viram-na cerceada e terão de ser proximamente privados dela o que lhes criará uma situa cão embaraçosa.
Pelo contrário, consentir-se, que os grandes amarrassem os pequenos ao seu carro dourado e chegou-se ao ponto, para manter uma situação lastimável que poderia ter-se evitado, de se concederem subsídios, autênticos subsídios de greve, .àqueles cuja situação se ia tornando cada vez mais embaraçosa e que, por isso, recalcitravam, e com razão.
Porque é que o Ex.mo Deputado que agora, no seu aviso prévio, nos vem acusar de pretendermos impor a criação de serviços de radiologia não exerceu acção decisiva, na sua qualidade de ilustre bastonário da Ordem dos Médicos, na solução do conflito, se conflito se pode chamar, surgido entre esta Federação e os radiologistas de Lisboa e Porto?
Este, sim, teria sido o procedimento mais conveniente para a defesa ido*» princípios, da doutrina, e da liberdade do trabalho.
E, porque assim não aconteceu, gerou-se na própria classe dos radiologistas uma cisão entre os da província, na sua quase totalidade a prestarem serviços a esta Federação, e os de Lisboa e Porto, amarrados grandes e pequenos, os que precisam e os que muito bem podiam dispensar o serviço até em benefício dos primeiros a compromissos de honra, que hão-de acabar por asfixiar os que ainda mão têm as suas situações profissionais sólida mente a cerçadas.
Conseguisse o ilustre bastonário da Ordem dos Médicos desligar os radiologistas ide Lisboa e Porto desse tal compromisso e estamos certos de que já agora não teria necessidade de, virando o bico ao prego - desculpe V. Ex.ª a expressão-, nos vir acusar de pretendermos impor fosse o que fosse.
E, para terminar, permita-me V. Ex.ª ainda um ligeiro comentário à segunda frase a que nos referimos: «O investimento de grandes somas em serviços próprios é uma defesa da sua burocracia».
Acostumados, como estamos, à elegância, embora desassombrada, com que os assuntos de interesse nacional são postos na Assembleia a que V. Ex.ª distinta e dignamente preside, chocou-nos a incoerência e a inconveniência de semelhante afirmação.
Mas, felizmente, isentos de delírio interpretativo, que nos levaria muito longe na apreciação à letra de frase tão infeliz na sua forma e .no seu conteúdo, não lhe fazemos por agora mais comentários».
Da referida alínea e) os aspectos mais interessantes, e que merecem relevo, são os que dizem respeito aos seguintes problemas:
1. Forma de recrutamento e de remuneração do médico;
2. Crise da classe médica motivada ou agravada
pela Previdência;

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3. Livre escolha do médico;

4. Quebra de individualidade dos actos médicos, desumanização da medicina e massificacão ido seu exercício.

Tudo isto são malefícios da Previdência, agravados pela Federação.

Diz-se no requerimento que a Federação «tem um quadro du médicos contratados com vencimento fixo, para ver os doentes em horas .certas, nos postos que ela construiu, ou para visitar em «asa, durante o dia, os doentes que não podem vir aos postos».

A verdade é que nem todos os médicos são contratados, nem Iodos têm vencimento fixo. nem todos vêem os doentes a horas certas, nem todos os doentes são observados em postos por ela construídos, nem todas as visitas domiciliárias são feitas de dia.

Imprecisão de linguagem ou propósito de, marcadamente, especialmente, se criticar a Federação?

Só os médicos dos postos são contratados e recebem vencimento fixo por duas lho rãs de trabalho diário. Isto é, trabalham em regime de ocupação incompleta e, (portanto, melhor seria chamar ao ^?1en^.imeuto gratificação. São admitidos por concurso documental, a que todos os médicos podem habilitar-se.

Quanto ao .contrato, informam-nos de que o autor do aviso prévio teve, na sua elaboração e exigência, acção preponderante.

Mas já não são .contratados, nem recebem vencimento fixo;, os médicos das delegações clínicas. O trabalho é remunerado. pó]1 acto médico, de acordo com uma tabela de preços estabelecida entre um limite inferior que não minimiza o trabalho e um plafond que evita os abusos.

Os radiologistas, os analistas, os fisioterapeutas e os radioterapeuias são remunerados por serviço prestado.

.Os médicos das delegações clínicas t: os das especialidades atendem os doentes, em geral, nos seus consultórios.

Adopta, portanto, esta Federação dois. dos três processos conhecidos de remuneração do médicos: a gratificação fixa e o pagamento por acto mediei.). Já tentou experimentar o pagamento por capitação e se ainda não o adoptou em larga escala foi por verificar que. se o sistema de remuneração por capita é fácil de estabelecei para os médicos de clínica médica, já assim não acontece para os das especialidades.

N« verdade, os dados constantes, do relatório da comissão para. o estudo dos quadros, vencimento e categorias dos médicos da Federação de Caixas de Previdência, de 1950, mostram-nos que, de acordo com a frequência, das consultas, ;a cada l000 inscrições em «clínica médica correspondem:

Ginecologia e obstetrícia 4 768

Pediatria 1 390

Cirurgia 9880

Dermatovenereologia 17120

Neuropsiquiatria. 45903

Oftalmologia 18244

! Otorrinolaringologia 9272

,Urologia 14984

Estes números representam, pois, a* inscrições a que corresponde, em cada. especialidade, a mesma remuneração que há-de caber em clínica médica por 1000 pessoas, e fazem prever as dificuldades de remuneração por capitação nas especialidades.

Sobre o assunto transcrevemos a parte dos peritos da Organização Mundial de Saúde sobre a «Jíorme Minimum de Ia Sécurité Sociale», apresentada na 35.a; Sessão da Conférence Internationale du Travail,

realizada em 1902, e referente ao processo de remuneração dos médicos:
«Lê mode de rémunération dês médecins et auire^ membres du personnel médica! joue nu grand role dans Teíficacité dun programme de soins médicaux. Troi-> sy&tèmeis ,sont couramuient pratiques: Ia rétribution daprès lês services rendus, Ia rétribution daprès lê nombre de malades soignés. et lê traitement fixe (emploi à pleiii temps ou à temps partiel). Lê groupe dexpert>-couseils désire attirer 1a.ttpntion ser lês avantages et lês iuconvénients de ohacun de cês systèmes.
Lê système de 1« rétribution daprès lês servires rendus est probablement lê plus répandu et -celui qui est lê plus eu favour auprès dês médecins prives. ,11 incite lê médiicin à ne pás mánager sés soins, mais, par con-tre, une grande partie dês serviços fournis ipeuvent être inutiles. II -expose «1autre part lê médeciu à Ia tcn-twtion do soigner nu malade -qui devrait plutôt étri; adressé à un especialiste ou être -phicé dans 1111 établis-sement. íl encourage mêine a. prolonger Ia d uive de Ia maladie. Oe système laisse au corps medicai une três grande liberte, mais il entra í ne, dautre part, de noni-breuses et souvent irritantes formalités administrativos et il.risque, en definitivo. (1êt.re plus onéreux pour lê pay-s.
Lê système de Ia rétribution (1après lê nombie dês malades soignés nest facilement applicable quaux pra-ticiens de. inédecine générale et convient mal lorsquil sagit de spé(;ialiste,s. Ce système m.iintient Ia relation entre lê médeciu et Ia fa-mille et laisse une (jertaine latitude au corps medicai. II presente rinconvénient «Iri ine pás favoriser la- qual I té dês -.soins, étant douué K[ue Ia rémunération du méclec.in n?est pa,s. une fonction de 1étendue dês. soins quil dispen.se. ]Jar contre, et pour lês mêmes raison.s, lê système est f avo rabi e à 1action préventive, cai- lê médecin ]>eut, saiis craindiv :lu subir de perte fiiumcière, envoyer promptement lê-* malades cliez ún spécialiste ou «i lhôpital s.il y a lieu.
Lê système du traitement fixe se heurte à 1opposi-tion dun grand nombre de médecins, car il tend à ^accompagner dun controle de leur acfivité sous nue forme administrative quelcoii(|iie. Pour cette dernière raison, .ceipendant. il permet de anaintenir Ia qualité dês soins et de soumettre lês praticiens à Ia surveillance de .chefs qualifiés, quil sagisse d}un sen-ice gnuver-nemental ou dun service bénévole. Avec cê système, il est possible de tenir com])te de Ia formation profes-sionnelle. de lexpérience et de Ia compétence dês m.é-defrius pour fixer leur traitement et lon peut levir otfrir dês avantages spéciaux pour lês attirer dans dês zones r ura lês et dams daiitres sectc.-urs ou leu-r .nombre est particulièremeiit insufnsant. Ce .système facilite Ia car-rièi-e :des j^eunes praticiens et ipennet de tirei1 lê meil-leur parti du personnel dispouible. [l est pntpice à 1organisation méthodique de services préventiís et latsse au médecin Ia. possibilite de poursuivre lês étu-dus et de se perfectionner. Lês formalités administra-tives sont réduit-es au minimum et d*une manière générale lê système est três économique. Kn outre, il evite Ia création duu service distinct de «médecins-contrôleurs» pour 1attestation dês incapacites de trava il».
Supomos a informação suficientemente elucidativa. Outros elementos poderíamos apresentar para nos fixarmos na forma mais conveniente de remunerar o acto médico nos regimes da Previdência, o que faremos noutra oportunidade.
As visitas domiciliárias nem sempre são feitas de dia. A chamada do médico tem de ser feita pelo beneficiário até à hora do encerramento do posto, isto é, até às 21 horas, e nada impede o médico de fazer a visita depois dessa hora e pela noite adiante.

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O que não há, mas vai haver proximamente, são chamadas nocturnas desde o encerramento do posto até à sua abertura no dia seguinte.

Seria interessante que o autor do aviso prévio, ilustre médico, pudesse fazer um estudo crítico comparativo destes aspectos do seu aviso na Federação e nas restantes caixas de previdência não federadas, nas caixas de empresa, como a da Companhia União Fabril, nos CTT, na C. P. e até nos organismos de assistência, como os Hospitais Civis e as Misericórdias, etc. As conclusões teriam grande interesse, ao menos para esclarecer certos boatos a que a Federação é absolutamente estranha.

«A crise da classe médica, além do que tem de geral na hora presente, é particularmente agravada pelo sistema da nossa Previdência», lê-se no aviso prévio.

Há .mais de trinta anos que ouvimos falar .na crise da classe médica, muito antes de existir em Portugal a Previdência Social. Dizia-se então que havia médicos a más e doentes a menos.

Mas haverá hoje médicos a mais paxá as necessidades da população?

Poderão responder a esta pergunta a Ordem dos Médicos e as Faculdades de Medicina.

Ou estarão os médicos mal distribuídos, concentrados em certos meios, em prejuízo de outros, privados dos seus cuidados? .

Diz-se que dois terços do número dos médicos portugueses exercem, ou pretendem exercer, a sua actividade nos grandes meios, especialmente em Lisboa, Porto e Coimbra. Ao passo que há regiões extensas e populosas que não têm médico.

Se chegássemos à conclusão de que o número de médicos é superior às necessidades, então só haveria que preconizar o encerramento, pelo menos temporário, de uma ou duas Faculdades de Medicina ou ã adopção do critério do números clausus para ingresso nessas Faculdades, por forma a evitar que o número elevado de diplomados .anualmente venha agravar cada vez mais a crise da classe médica.

(Mas só a classe médica está em crise, agora agravada pelos serviços da Previdência?

E a dos engenheiros, dos arquitectos, dos agrónomos, dos veterinários, dos licenciados nas várias Faculdades universitárias, etc., estas não estão em crise?

Está provado que o nosso meio, pequeno como é, com algumas actividades fracamente desenvolvidas, não absorve a multidão de diplomados que anualmente saem das escolas superiores.

E corrente encontrarem-se estes diplomados, deslocados do campo de trabalho para o qual fizeram a sua preparação, empregados nos mais variados misteres, alguns muito inferiores às suas habilitações, para ganharem a vida.

E o facto característico dos tempos que correm, aqui como em toda a parte.

E, por ser um facto corrente e conhecido, até parece que a crise da classe médica só foi invocada no aviso prévio para dela culpar a Previdência.

E que, na verdade e em nossa modesta opinião, a Previdência não agravou a crise ao entregar aos médicos milhares e milhares de doentes que, ou não tinham assistência médica, ou recorriam às consultas externas dos hospitais como indigentes, para serem tratados gratuitamente. Um ou outro recorria a médico conhecido, que nada recebia e, quantas vezes, ainda tinha de-lhe dar os medicamentos.

O vencimento ou salário mensal de 83 por cento dos beneficiários das caixas de previdência não atinge ].000$. O vencimento ou salário médio anda à volta de 667$.

Como era possível, com tais salários, suportar as despesas de assistência médica e dos medicamentos sem o recurso ao seguro?
Antes da Previdência muitos dos actuais beneficiários só recorriam ao médico in articulo mortis, como ainda hoje acontece com as nossas populações rurais.
Agora vão ao médico ao mínimo achaque, abusam até da facilidade de consulta médica e chegam ao ponto de sugestionar a terapêutica, e às vezes conseguem-no, porque pagam e têm direito a ser bem tratados.
Este recurso aos cuidados médicos traduz-se, na Previdência, por uma despesa anual, em acção médico-social, superior a 150 000 contos.
Isto é, a organização da Previdência veio lançar anualmente na classe médica e actividades afins a bonita soma de 150 000 contos, que seriam, sem essa organização, desviados na sua maior percentagem para satisfação de outras exigências menos proveitosas, mas mais do agrado do contribuinte, por natureza imprevidente.
Há um facto sintomático que demonstra até que ponto é inexacta a afirmação: A Previdência agravou a crise da classe médica.
Mais de metade dos serviços de raios X instalados em Lisboa nasceram com os serviços médicos da Previdência e a contar com os doentes que estes lhes entregavam.
Há na província muitos serviços de raios X, análises clínicas, de fisioterapia, etc., que se devem à organização da Previdência, por se terem montado a contar com os doentes que esta lhes enviaria e que por outra forma não teriam. E ao fim e ao cabo o agravamento traduz-se na entrega anual de 150.000 contos, que seriam perdidos, numa grande percentagem, se não fossem os serviços médicos da Previdência.
A livre escolha do médico é um dos pontos mais debatidos no intuito de demonstrar a imperfeição do sistema.
O beneficiário deveria poder escolher livremente o seu médico. Ora tal liberdade sem condições trazia consigo a obrigatoriedade de todos os médicos prestarem serviços à Previdência.
Mas, como não estamos num país socialista e não servimos uma doutrina essencialmente comunizante, não é esta certamente a liberdade a que o autor do aviso prévio quis referir-se.
Os médicos não podem ser obrigados a prestar serviço. Só o prestarão aqueles que assim o quiserem. E o beneficiário só poderá escolher livremente de entre aqueles médicos que estiverem dispostos a prestá-lo.
Isto é, liberdade absoluta para o médico, liberdade condicionada para o beneficiário. E cá vamos a resvalar para o quadro privativo, constituído por um número limitado de médicos: aqueles que aceitam prestar serviço à Previdência.
Mas aceitemos este critério de liberdade absoluta para uma das partes e de liberdade condicionada para a outra, com todos os condicionalismos impostos pela primeira.
E qual o critério do beneficiário para exercer essa liberdade de escolha condicionada?
E a competência profissional que o decide na escolha?
Ou serão outros elementos, que nada têm com o acto médico em si, a simpatia, as relações pessoais, o convívio, a propaganda, a recomendação ou até a imposição de terceiros, que o levam a decidir-se?
A medicina foi outrora uma arte: a arte de curar. Hoje, apesar de todos os esforços dos seus cientistas, ainda é uma ciência que tem de utilizar os processos psicológicos como adjuvantes da sua acção científica.

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Há doentes, não há doenças, afirmava-se e continua a afirmar-se.

E, se assim é, ideal seria que o doente escolhesse o médico que, psicologicamente, lhe merecesse confiança, ou, melhor, que mais confiança lhe merecesse de o livrar dos seus achaques. E fácil advinha, porém, onde o sistema podia levar.

A liberdade de escolha do médico é uma espécie de liberdade com L grande, privilégio só dos que têm dinheiro para pagar a medicina sem limitações.

Que liberdade tem o doente de escolher o médico, se pode recorrer só a um, como acontece na grande maioria das nossas povoações rurais?

Que liberdade tem o doente internado num hospital de escolher o médico que o há-de tratar?

Se a medicina é hoje quase inacessível a quem não for milionário ou beneficiário du Previdência, só estes têm realmente a liberdade de escolher: os primeiros, liberdade absoluta; os segundos, liberdade condicionada, por concessão da Previdência.

Afirma mais o autor do .aviso prévio: «O seguro, entre nós, quebra a individualidade dos actos médicos, como em nenhuma parte, desumaniza a medicina, massifica o seu exercício, como se fôssemos" um país ou servíssemos uma doutrina essencialmente comunizante».

Não sabemos como possa deduzir-se contra o seguro tal acusação, sem partir da ideia simplista de que a medicina é ainda hoje a arte de curar, e o médico o a João Semana, da burra branca, do guarda-pó e chapéu de sol», .cura de mazelas físicas, .amigo e conselheiro das mazelas morais e familiares, dos saudosos tempos.

:Mas o autor do aviso prévio não pode ter partido de tal ideia, sendo, como é, professor de Medicina e, como tal, ilustre cultor da ciência médica, no conhecimento da sua evolução e tendência.

E certo que a medicina curativa perdeu aquele carácter de «colóquio singular», sacrificado em holocausto da ciência, e da especialização, que era tão do agrado do doente.

E certo," ainda, que a medicina se desumanizou; o doente, como pessoa humana, foi sacrificado ao caso clínico, exigência também da ciência. Mas difícil é dizer se o seu exercício se massificou ou não: dificuldades de interpretação do neologismo. Mas qualquer que seja o significado que lhe atribuamos, podemos sem receio responder que sim.

Mas é o seguro o culpado de tamanhos delitos?
A actividade médica evolucionou nestes últimos anos no sentido da medicina de grupo, da medicina de equipe. A complexidade das técnicas, o custo do equipamento e a especialização cada vez mais pronunciada, derem à. medicina tal impulso e orientação que já hoje entre nós é difícil a actividade médica isolada. Já não têm significado, ou, pelo menos, estão a perdê-lo velozmente, as velhas designações do médico da família, de clínico geral, e não há-de demorar muito que o médico de clínica médica, o internista, fique reduzido à função de mero orientador do doente.

O trabalho médico - a cirurgia sempre requereu instalações e apetrechamento especial- faz-se já hoje, nos países mais adiantados, em policlínicas e hospitais.

E a tendência, no nosso país é nitidamente para este caminho. Veja-se a facilidade com que os nossos clínicos propõem hoje ao doente o recurso ao internamento em casa de saúde ou em hospital, para tratamento da doença. E o doente que recorre à consulta sabe bem que terá de passar por especialistas, radiologistas, analistas, etc., para. chegar a saber o que tem. Isto é, o doente era antigamente entregue sómente ao seu médico; hoje é examinado por vários.

Resultados da especialização e das novas técnicas de diagnóstico e tratamento da doença. Está bem? Está

mal? Não discutimos o problema. Verificamos o facto.
Para bem ou para mal, a evolução da medicina nos últimos anos deve-se aos médicos, ou, melhor, aos cientistas da medicina. O doente não deu a sua opinião, por só lhe interessar a cura ou, ao menos, o alívio da sua doença.
E como é possível manter a individualidade do acto médico em tal sistema, em que o doente contacta com vários médicos?
Então, é o seguro que quebra a individualidade do acto médico ou são as novas formas da clínica que lhe fizeram perder o sentido tradicional ?
O internista, ao enviar o doente ao tisiologista, ao cardiologista, ao radiologista, ao electrocardiologista, ao analista, etc., para, depois das opiniões de tantos colegas e de tantos relatórios auxiliares, estabelecer o diagnóstico, faz perder ao acto médico toda a individualidade.
Mas o mais grave é que a evolução da medicina a tornou excessivamente cara, tão cara que constitui uma das grandes aflições para quem a ela, por desgraça, se vê obrigado a recorrer.
Aqueles que não têm o risco doença coberto pelo seguro sabem-no muito bem? e cada um terá o seu caso para contar, alguns do nosso conhecimento, bem curiosos e elucidativos.
Não se veja, neste comentário, o intuito de misturar o trigo com o joio. Seria injusto fazê-lo. A classe médica merece toda a nossa consideração e respeito e só lastimamos que, de vez em quando, por intermédio do organismo coordenador e orientador da sua actividade, não se expurgue dos que tão mal a colocam na opinião pública.
Mas o seguro não é só responsável, no entender do aviso prévio, pela quebra de individualidade do acto médico; tem também o malefício de desumanizar a medicina, isto é, de transformar a pessoa humana em mero caso clínico.
Não é a própria medicina que se desumanizou, se 6 exacta a afirmação do autor do aviso prévio, isto é, se na realidade se desumanizou. O responsável da desu-inanização é o seguro.
Mas o seguro só tem a função de garantir ao segurado a prestação de cuidados médicos, com as limitações impostas pelo maior ou menor valor da contribuição.
Não tem a menor intervenção no acto médico em si, e fora dele não apreendemos como o pode humanizar ou desumanizar.
E que a «desumnnização» vem da própria evolução da medicina e, diga-se em abono da verdade, em muitos casos, em benefício do próprio doente. E não é ao seguro, réu de muitos delitos, que se deve imputar mais este.
Quanto à expressão a massifica o seu exercício», lamentamos ter de dizer que nos não parece claramente inteligível.
Massificar é um neologismo de que passa a ficar enriquecida a nossa língua, mas de que teria sido útil saber-se, pela autoridade do próprio inventor, o significado autêntico.
Literalmente parece equivalente a «converter em massa». Que entenderá, porém, o autor do aviso prévio por ... «converter em massa o exercício da medicina»?
Depois de reflectir, arriscamos a hipótese de que terá pretendido dizer que, por virtude da instituição do seguro, acorrem às consultas médicas doentes em massa, multidões de doentes. E é verdade: o seguro teve, pelo menos, a virtude de permitir o recurso aos cuidados médicos na doença a muitos daqueles que, antes da sua instituição, se viam obrigados a estender a mão à caridade pública.
Aqui terminamos. Lastimamos não poder dizer a V. Ex.ª que no aviso prévio se contém um sistema per-

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feito nem em que é que tal sistema deve consistir. Infelizmente não temos as certezas em que o aviso prévio se alicerça. A nossa e alheia experiência ainda nos não dão bases bastantes para romper a indecisão actual e, de momento, construir o novo sistema. A bem da Nação.

O Presidente da Direcção. - Alberto Sá de Oliveira.

O Sr. Presidente: - .lá disse à Câmara que as explicações do Sr. Ministro das Corporações vão ser publicadas integralmente no Diário das Sessões.

Vou encerrar a sessão.

O Sr. Manuel Lourinho: - Requeiro a generalização do debate.

O Sr. Presidente: - Declaro generalizado o debate, que continuará na sessão de amanhã, de manhã às 10 horas e 30 minutos, e constituirá a sua ordem do dia.

Está encerrada a sessão.

Eram 20 horas.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Abel Maria Castro de Lacerda.
Afonso Eurico Ribeiro Cazaes.
Alberto Henriques de Araújo.
Alexandre Alberto de Sousa Pinto.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Calheiros Lopes.
António Jacinto Ferreira.
António Maria da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
Artur Proença Duarte.
Avelino de Sousa Campos.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Carlos de Azevedo Mendes.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Délio Nobre Santos.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Cosia.
João Alpoim Borges do Canto.
Joaquim Mendes do Amaral.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Luís da Silva Dias.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Ricardo Malhou Durão.
Salvador Nunes Teixeira.
Teófilo Duarte.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Cruz.
António Carlos Borges.
António Júdice Bustorff da Silva.
Artur Rodrigues Marques de Carvalho.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim de Moura Relvas.
Joaquim dos Santos Quelhas Lima.
José Cardoso de Matos.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel de Sousa Meneses.
D. Maria Baptista dos Santos Chiardiola.
Vasco de Campos.

O REDACTOR - Luis de Amllez.

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