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REPUBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 57
ANO DE 1954 7 DE DEZEMBRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VI LEGISLATURA
SESSÃO N.º 57, EM 6 DE DEZEMBRO
Presidente: Ex.mo Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior
Secretários: Exmos Srs.
Gastão Carlos de Deus Figueira
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues
SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 20 minutos.
Antes da ordem do dia. - foram aprovados os n.os 55 e 56 do Diário dos Sessões, com uma rectificação do Sr. Deputado Cariou Moreira quanto ao n.º 55.
Para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º- da Constituição, o Sr. Presidente anunciou estarem na Afeia os n.º 364, 265 0 367 do Diário do Governo, inserindo diversos decretos-leis.
O Sr. Presidente informou achar-se na Mesa a resolução do Sr. Presidente da República sobre a promulgação do decreto da Assembleia Nacional relativo à indústria hoteleira, resolução que se publica no Diário das Sessões.
O Sr. Deputado Pinto Barriga usou da palavra para um requerimento.
O Sr. Deputado Santos Bessa referiu-se a alguns problemas que interessam à cidade de Coimbra.
O Sr. Presidente anunciou que ia nomear uma comissão para alterar o Regimento da Câmara, designando para a constituir os Sn. Deputados Mário de Figueiredo, João das Neves, Dinis da Fonseca, Augusto Cancella de Abreu e Carlos Moreira.
O Sr. Presidente comunicou que o Sr. Presidente do Conselho faria uma exposição à Assembleia sobre o Tratado de Amizade e Consulta Luso-Brasileiro.
Seguidamente foi a sessão interrompida.
Reaberta a sessão, o Sr. Presidente do Conselho fez a tua, exposição à Câmara, finda a qual a sessão foi de novo interrompida.
Uma vez reaberta, passou-se à
Ordem do dia. - usaram da palavra acerca da ratificação do Tratado de Amizade e Consulta Luso-Brasileiro os Srs. Deputados Alberto de Araújo e Manuel Lopes de Almeida.
O Sr. Presidente declarou encerrada a sessão às 18 horas e 30 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada. Eram 16 liaras e 10 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Abel Maria Castro de Lacerda.
Adriano Duarte Silva.
Alberto Henriques de Araújo.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Alexandre Aranha Furtado de Mendonça.
Alfredo Amélia Pereira da Conceição.
Amândio Rebelo de Figueiredo.
Américo Cortês Pinto.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Abrantes Tavares.
António de Almeida.
António Augusto Esteves Mendes Correia.
António Bartolomeu Gromicho.
António Camacho Teixeira de Sousa.
António Carlos Borges.
António Cortês Lobão
António Júdice Bustorff da Silva.
António Pinto de Meireles Barriga.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
António Raul Galiano Tavares.
António Rodrigues.
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António Russell de Sousa.
António dos Santos Carreto.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Proença Duarte.
Augusto Cancella de Abreu.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Baltasar Leite Rebelo de Sousa.
Caetano Maria de Abreu Beirão.
Camilo António de Almeida Gama Lemos Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Mantero Belard.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Carlos Vasco Michon de Oliveira Mourão.
Daniel Maria Vieira Barbosa.
Eduardo Pereira Viana.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Gaspar Inácio Ferreira.
Gastão Carlos de Deus Figueira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Herculano Amorim Ferreira.
Jerónimo Salvador Constantino Sócrates da Costa.
João Afonso Cid dos Santos.
João Alpoim Borges do Canto.
João Ameal.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Luís Augusto das Neves.
João Mendes da Costa Amaral.
João de Paiva de Faria Leite Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim de Moura Relvas.
Jorge Botelho Moniz.
José Dias de Araújo Correia.
José Garcia Nunes Mexia.
José Maria Pereira Leite de Magalhães e Couto.
José dos Santos Bessa.
José Sarmento Vasconcelos e Castro.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís de Azeredo Pereira.
Luís Maria Lopes da Fonseca.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel de Magalhães Pessoa.
Manuel Maria Múrias Júnior.
Manuel Maria Vaz.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Trigueiros Sampaio.
D. Maria Leonor Correia Botelho.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Correia Teles de Araújo e Albuquerque.
Mário de Figueiredo.
Miguel Rodrigues Bastos.
Paulo Cancella de Abreu.
Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa.
Pedro Joaquim da Cunha Meneses Pinto Cardoso.
Ricardo Malhou Durão.
Ricardo Vaz Monteiro.
Rui de Andrade.
Sebastião Garcia Ramires.
Teófilo Duarte.
Urgel Abílio Horta.
Venâncio Augusto Deslandes.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 89 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 20 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: -Estão em reclamação os n.os 55 e 56 do Diário das Sessões.
O Sr. Carlos Moreira: - Sr. Presidente: desejo fazer as seguintes rectificações ao Diário das Sessões n.° 55: a p. 40, col. 2.ª, 1. 48.ª, onde se lá: «interesse», deve ler-se: «desinteresse»; a p. 47, col. 1.ª, 1. 32.ª, deve ler-se: «Gange», e não «Ganges». Eu disse «Gange», de harmonia com a pronúncia e a grafia da época.
Quanto ao emprego de letras minúsculas, no que se refere à citação de el-rei D. João III e el-rei D. Manuel I, a responsabilidade não é minha.
O Sr. Presidente: -Considero aprovados os referidos números do Diário, com as rectificações apresentadas.
Para cumprimento do disposto no § 3.° do artigo 109.° da Constituição, encontram-se na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, os n.os 264, 265 e 267 do Diário do Governo, que inserem os Decretos-Leis n.os 39 934, 39 935, 39 936, 39 940, 34 941, 39 943, 39 944, 39 945, 39 947, 39 948 e 39 949.
Está na Mesa, e vai ser publicada no Diário das Sessões, a resolução do Sr. Presidente da República sobre a promulgação do decreto da Assembleia Nacional relativo à indústria hoteleira.
É a seguinte:
«O decreto da Assembleia Nacional que veio para promulgação afasta-se, no artigo 14.°, da nossa tradição legal quanto ao problema da conciliação possível entre os interesses das indústrias estabelecidas e o interesse do estabelecimento de novas indústrias.
Com a redacção do referido artigo altera-se a doutrina que vem sendo seguida sem interrupção desde as Leis n.os 2002 e 2005, respectivamente de 1944 e 1945, e do Decreto regulamentar n.° 36 030, de 12 de Dezembro de 1946, doutrina depois substancialmente adoptada nos Decretos especiais n.os 38 246, 39 188 e 39 173. Nestes termos, desejando que a Assembleia Nacional possa considerar se ó ou não de manter a aludida tradição legal, recuso a promulgação, para os efeitos do artigo 98.° da Constituição.
20 de Maio de 1954. - Francisco Higino Craveiro Lopes-António de Oliveira Salazar».
O Sr. Presidente: -Tem a palavra o Sr. Deputado Pinto Barriga.
O Sr. Pinto Barriga: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a Mesa o seguinte
Requerimento
«Nos termos regimentais, roqueiro, pelo Ministério das Finanças, as seguintes informações:
l.º Cópia dos despachos interpretativos, se os houver, destinados a ajustar, em matéria de aposentação, sobretudo em relação ás forças armadas, a legislação posterior, mas não definitória de categorias, ao próprio Decreto-Lei básico n.° 26 115, de modo a integralmente respeitar estas categorias, estabelecidas por esse diploma legal ou outros decretos complementares, e também de forma a assegurar que a funcionários de idêntica categoria e com igual tempo de serviço, para efeito de aposentação, não possam ser concedidas pensões de quantitativos diferentes.
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2.° Indicação dos fundamentos legais apresentados pêlos organismos responsáveis pura aposentarem praças e graduados da Guarda Nacional Republicana de idêntica categoria e mesmo tempo de serviço porá reforma com pensões diversas.
3.° Nota circunstanciada dos despachos ministeriais que se refiram a contagem de tempo dos oficiais na situação de reserva para efeitos de reforma ou aposentação quando ainda naquela situação tenham também prestado serviço. Outrossim, requeiro, pelo mesmo departamento do Estado, informação discriminada acerca das contribuições e impostos pagos no ano de 1953 em relação u cada nina das companhias concessionárias do Estado».
O Sr. Santos Bessa: - Sr. Presidente: pedi a palavra a V. Ex.a para tratar de alguns problemas de Coimbra que reclamam solução urgente, tantos dos quais se arrastam desde há anos, sem que se vislumbre possibilidade de os resolver.
Antes, porém, quero dizer a esta Cornara da satisfação e do reconhecimento, não só da cidade de Coimbra, mas de todo o circulo que aqui represento, pela maneira como foi resolvido o problema crucial das ligações entre o Norte e o Sul, através da nova ponte sobre o Mondego.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -Sem distinção de classes ou de condições, desde os mais humildes trabalhadores até às mais altas posições sociais, todo o distrito vestiu as suas melhores galas para trazer, no dia festivo da inauguração da formosa e majestosa ponte, o seu reconhecimento aos representantes do Governo que ali se deslocaram para, com toda a solenidade, a entregar ao serviço público. Traduziram-no bem expressivamente os Srs. Governador Civil do distrito e Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, que vincaram o alto significado da obra e a gratidão das populações mais directamente beneficiadas.
Mas entendo de meu dever, neste momento e neste lagar, em nome dos povos que aqui represento, dirigir a S. Ex.a o Presidente do Conselho, criador e orientador supremo de uma política que nos honramos de servir, que tantos títulos de glória tem conquistado pura Portugal e que tornou possível mais esta grande realização, os protestos do mais elevado reconhecimento pelo carinho com que, desde a primeira hora, acompanhou e protegeu esta grande realização, que tantos benefícios trouxe, não só à cidade de Coimbra, mas a todo o Centro do Pais...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: -... e envolver no mesmo agradecimento os ilustres Ministros das Obras Públicas que tornaram realidade este grande sonho da cidade do Mondego. Sinto de meu dever destacar aqui os nomes dos Srs. Engenheiros Frederico Ulrich e Abrantes e Oliveira, que a população de Coimbra tanta vez viu acompanhar com desvelado interesse a marcha dos trabalhos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Coimbra sentiu verdadeiramente o carinho do Governo por esta obra e viu que ela foi concebida com larga visão e realizada com particular cuidado, num ritmo de trabalho a que não estávamos habituados. Se não fora a oposição tenaz da modéstia do actual titular da pasta das Obras Públicas, bem mais expressiva seria ainda a manifestação de reconhecimento de toda a população por esta obra que tanto embelezou a cidade.
Em nome dela, daqui dirijo ao ilustre Ministro das Obras Públicas as nossas mais sinceras felicitações e os nossos melhores agradecimentos. E envolvo no mesmo agradecimento, e sem reservas, todos os serviços, todos os técnicos e trabalhadores que, de qualquer forma, concorreram para a realização daquela majestosa e formosa obra.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -Mas Coimbra espera ainda do Governo da Nação a solução de problemas sérios e urgentes, fundamentais para a sua vida, decisivos para a sua expansão, indispensáveis à protecção e defesa da sua população. Eles transcendem as possibilidades do erário municipal, e não se atina como é que, com os recursos da Camará, por mais inteligentes e dedicados que sejam os homens que a servem, se lhes possa dar solução.
Coimbra ouviu com o maior interesse e registou bem o sentido das palavras preteridas pelo ilustre Ministro das Obras Públicas quando se referiu aos problemas de urbanização que daquela obra nasciam, à necessidade de encontrar sempre «soluções ajustadas e sãos critérios de enriquecimento do património arquitectónico de uma cidade cuja tradição e cuja personalidade a tornam particularmente sensível a desmandos, infelizmente frequentes nos surtos de renovação das velhas urbes».
Anotou a promessa da assistência técnica e apoio muito interessado do seu Ministério para a intensa actividade renovadora da cidade de Coimbra e para que «esta gloriosa cidade, criadora da gratidão nacional a tantos títulos, atinja tão rapidamente quanto possível a posição de engrandecimento o do progresso que merecem em alto grau o seu valor e o seu prestígio».
Estou certo de que a Camará de Coimbra há-de ter sempre como estimulo da sua actividade, além do seu entranhado bairrismo, estas palavras de incitamento e de conforto proferidas por S. Ex.a o Ministro numa hora alta da vida da cidade.
Muitos são já os trabalhos e estudos realizados ou em curso, e outros novos seguramente se lhes virão juntar, para ordenação da renovação urbanística do existente e para disciplina da expansão da cidade em novas zonas.
Estão já concluídos os projectos dos esgotos das águas pluviais e residuais e do novo matadouro municipal, duas obras do mais alto interesse e da mais premente urgência, mas que a Câmara não pode resolver com os seus magros recursos.
São dois problemas sanitários da mais alta importância, e só por motivos que todos bem compreendem me dispenso de apontar os perigos a que as actuais condições constantemente sujeitam a população e de descrever as deploráveis condições da sua existência.
O problema dos esgotos arrasta-se desde há muitos anos; mas nos últimos catorze tem sido preocupação constante dos homens que se tem sucedido na gerência do Município. Já em 1941 o engenheiro Ressano Garcia apresentou a «solução geral do problema», que, em 1949, mereceu do Conselho Superior de Obras Públicas o seguinte parecer:
A realização da obra é indispensável e o estudo apresentado constitui uma base para definir a solução mais conveniente do problema, depois de atendidas certas questões de pormenor.
Em 1952 foi assinado um contrato, entre a Câmara, o engenheiro Ressano Garcia e o engenheiro Soares Branco,
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para a elaboração do projecto, o qual foi entregue poucos meses depois. A despesa total prevista é de 50 000 contos, assim distribuída:
Na 1.ª fase 16000 contos; na 2.ª 14 000 contos e na 3.ª 20 000 contos.
Esta a obra que tem de ser realizada por um município que tem um orçamento de cerca do 10 000 contos (6000 dos quais são absorvidos por pessoal, subsídios às juntas de freguesia e encargos de empréstimos) e que não dispõe de mais de 4000 para a satisfação das despesas facultativas!
Não vemos como sem um subsidio substancial do Estado e uma comparticipação que ultrapasse o até hoje permitido, ou sem um empréstimo em condições especiais, se possa fazer face a esta obra, que envolve uma acuidade extrema.
Sr. Presidente: o problema do matadouro não é menos grave do que o dos esgotos. É preciso visitar aquela casa «a desfazer-se», de pavimentos permeáveis e com fendas, assistir a baldeação das matérias fecais para os pátios, ver a pobreza de todo aquele material, para poder avaliar da necessidade urgente da sua substituição. O terreno está escolhido e o projecto concluído e aprovado pelo Conselho Superior de Obras Públicas e homologado por S. Ex.a o Ministro.
O custo da obra foi previsto para cerca de 8000 contos e a Câmara julga poder arcar com essa responsabilidade desde que lhe seja autorizada a realização de um empréstimo e garantida uma sobretaxa de £31 por quilograma de carne, para amortização. Pêlos cálculos feitos, resultaria, durante a amortização, um preço de mais £85 para a carne de bovino e de mais 571(5) para a de ovino, ambas, aliás, inferiores à de £90 para qualquer tipo de corne que parece existir no Porto e em Braga.
Embora a nova ponte, como muito bem disse S. Ex.a o Ministro, «não permita considerar resolvido em termos definitivos o problema das suas comunicações», deu solução às necessidades mais imperiosas.
A cidade espera que o necessário desafogo do Tesouro dê possibilidades de realização «às obras de grande vulto já delineadas» e que hão-de completar, no sistema das comunicações, as agora efectivadas. Não as conhecemos, mas confiamos abertamente nestas palavras do ilustre membro do Governo, certos de que, logo que possível, se completarão os trabalhos da circulação rodoviária para alam das quatro entradas da cidade - no sentido do Porto, no de Lisboa, no da Figueira da Foz e no da estrada da fieira. Todos eles são insuficientes, especialmente os três últimos.
E não só os da circulação rodoviária, mas também os do caminho de ferro, reclamam transformação que não permita delongas. A cidade baixa é cortada por um caminho de ferro que compromete a circulação e põe constantemente em risco a vida dos transeuntes e possui uma estação de que já não carece e que compromete e tolhe seriamente a sua expansão urbanística.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -Não discutimos as razões que levaram à construção da estação nova de Coimbra. Afirmamos que as actuais condições da cidade reclamam a sua remoção e a sua fusão com a estação velha numa única, ampla e moderna estação. Sabemos que estão adiantados os estudos que dizem respeito à mudança da parte inicial do ramal da Lousã e à fusão das estações e esperamos dever mais esta grande obra ao Governo da Revolução Nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -A continuação da urbanização da margem direita, permitindo a abertura de uma ampla avenida marginal que seja o prolongamento do Parque da Cidade e da Avenida de Navarro até ao Choupal, e a urbanização da margem esquerda, permitindo a criação de duas modernas zonas citadinas, separadas - ou, melhor, ligadas - pelo Mondego, hão-de ser obra do nosso tempo. A cidade assim o espera.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -Sabemos que a urbanização da margem esquerda, a poente da Avenida de João das Regras, vai começar dentro em breve com a construção da sede duma simpática organização desportiva e do edifício do Grémio da Lavoura. Esperamos que a sua arquitectura seja digna do local onde vão implantar-se.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Seja-me também permitido lembrar aqui a necessidade urgente de concluir o estádio municipal e de acudir à Igreja de Santo António dos Olivais, deixando para outra ocasião outras obras de que Coimbra igualmente carece.
O estádio municipal, em boa hora começado, ficou na cauda do cortejo de estádios que o Governo subsidiou - que se iniciaram e completaram, em Portugal, nos últimos anos. Coimbra tem necessidade da sua conclusão e espera que o ilustre Ministro das Obras Públicas ajude a Camará a levar a bom termo as indispensáveis obras para o seu aproveitamento integral.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A Igreja de Santo António dos Olivais, situada num dos locais mais belos de Coimbra e dos mais visitados pêlos turistas nacionais e estrangeiros, carece de obras urgentes, que permitam salvar os preciosidades artísticas que possui e que impeçam a sua completa ruína. Erigida no lugar onde professou Santo António, antes da sua partida para a Itália, é zona turística preferida e dói-nos a alma contemplar o abandono a que estão votadas as suas capelas laterais, a inutilização da sua valiosa estatuária de barro policromado da escola coimbrã, as telas e os frescos de Pascual Parente e os próprios azulejos do século XVIII que revestem as paredes da Igreja. Custa-nos que o lugar sagrado onde viveu o santo português possa ser, como tem sido, motivo de censura e desgosto por parte de tantos estrangeiros que por ali passam.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Nós, que reivindicamos com orgulho a honra da pátria de Santo António e que o sabemos tão venerado pelo nosso povo, não devíamos votar ao abandono a Igreja construída no local onde ele professou.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Se não houvesse outras razoes, esta bastaria para nos levar a solicitar ao Governo a sua protecção para aquele santuário.
As verbas gerais da diocese não chegam para todas as suas necessidades. Aquela Igreja, embora não seja monumento nacional, reclama um tratamento à parte, dadas as suas especiais características. A sua conservação interessa não só a ela própria, mas à cidade e ao turismo nacional, e por isso se justifica que as verbas para a soa conservação não saiam das obras gerais da
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diocese e passem a constituir encargo dos serviços de turismo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: ao apontar este conjunto de problemas que Coimbra carece de ver resolvidos quero reafirmar a V. Ex.a a minha confiança no Governo da Noção e no ilustre titular das Obras Públicas e a minha esperança de que eles terão a melhor e a mais rápida solução.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Sabe a Câmara que o Regimento actualmente em vigor data de 1946 e que posteriormente foi alterada a Constituição Política de 1933.
Se outros motivos não houvesse para se proceder à revisão do Regimento, esse bastaria. Nestas condições, vou nomear numa comissão para rever o Regimento da Câmara, tendo em atenção as modificações introduzidas no estatuto fundamental do Pais e as lições da experiência da aplicação do mesmo Regimento.
Essa comissão será constituída pêlos seguintes Srs. Deputados: Mário de Figueiredo, João das Neves, Dinis da Fonseca, Augusto Cancella de Abreu e Carlos Moreira.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Fora a ordem do dia de hoje está designada a apreciação do Tratado de Amizade e Consulta Luso-Brasileiro.
O Sr. Presidente do Conselho comunicou-me que, em virtude do interesse excepcional do assunto, viria a esta Câmara fazer uma exposição sobre esse tratado, pelo que vou interromper os trabalhos da Assembleia por cinco minutos, a fim de introduzir S. Ex.a nesta sala.
Está interrompida a sessão.
Eram 16 horas e 45 minutos.
Entra na sala o Sr. Presidente do Conselho, acompanhado do Sr. Presidente e Srs. Secretários da Assembleia. A assistência recebeu o Sr. Presidente do Conselho com uma salva de palmas. S. Ex.a tomou lugar à direita do Sr. Presidente da Assembleia.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Eram 16 horas e 50 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai usar da palavra, como é do seu direito, o Sr. Presidente do Conselho.
O Sr. Presidente do Conselho: - Sr. Presidente da Assembleia Nacional: a Câmara vai discutir, e seguramente aprovar para ratificação, o tratado luso-brasileiro, assinado há um ano no Rio. Dispõe para formar um juízo, além dos conhecimentos próprios, do parecer da Câmara Corporativa, da discussão nas Câmaras brasileiras (que gentilmente nos precederam nesta apreciação) e de tudo quanto em abono do tratado se escreveu - e muito foi - aquém e além-Atlântico. A minha presença não pode, pois, representar nem o esclarecimento da matéria, de que a Assembleia não precisa, nem a declaração de um voto, de que não disponho. Justifica-a apenas o empenho de marcar, por parte do Governo, o excepcional interesse que pôs nas negociações, põe agora na rápida entrada em vigor do instrumento diplomático e promete pôr no desdobramento e futuro execução dos suas disposições.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não é segredo para ninguém nem novidade dizer-se que o ti l to grau de afectividade das relações luso-brasileiras não tem tido repercussão equivalente na condução dos problemas comuns aos dois países. Dificilmente se encontrarão laços mais apertados e mais estreita irmandade que a resultante do sangue, da língua, da religião, da cultura e da rida em comum de Portugal e Brasil. Mas sobre tais alicerces não se tinha ainda erguido a construção que temos agora esboçada diante de nós: o tratado pode genericamente definir-se como a tradução em política internacional da comunidade luso-brasileira - os dois estados um em face do outro, as duas nações em relação ao Mundo.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Refere-se o tratado a essa comunidade. Na verdade, ela não tinha de ser acordada nem definida: existe; é o facto que a história gerou. Mas do seu ostensivo reconhecimento advém a mesma erguer-se convencionalmente a fonte de direitos e deveres recíprocos, talvez pela primeira vez transitados das aspirações e anseios comuns para o comércio jurídico.
Recebe neste tratado solução afirmativa o problema que mais podia interessar a Nação Portuguesa: o problema que chamarei da fidelidade às raízes, de onde ainda hoje, e esperamos que sempre, se alimentará o Brasil, como magnífica expressão de lusitanidade no continente americano. Que da situação geográfica lhe provenham relações específicas com outras nações e interesses e solidariedades continentais ninguém poderá estranhá-lo. Que através dos tempos a alma brasileira queira permanecer fiel à que lhe veio do berço, embalado por mãos portuguesas, é para nós título de orgulho e preito do Brasil, a que haveremos de mostra-nos sensíveis. Mas, a ter de ser assim, e para que o Brasil pudesse vincar mais e mau a sua personalidade própria entre as nações, sempre me pareceu que as coisas não haviam de ser abandonadas nem às manifestações afectivas nem aos acasos dos movimentos demográficos e das relações económicas ou culturais, no geral restritas a mais esporádicas ou incidentais que sistematizadas, e que uma política se impunha em todos esses domínios para se garantir aquela finalidade.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Este o significado das disposições mais numerosas do tratado, cujo alcance sob este aspecto é escusado encarecer e que no respeitante a interesses que se destina a proteger ou permite criar é já suficientemente conhecido e dispensa o meu comentário.
O aspecto, porém, mais importante e de mais vasta repercussão política é deduzir-se da existência da comunidade luso-brasileira o princípio da consulta em todos os problemas internacionais de manifesto interesse comum, em ordem à possível coordenação de atitudes e de esforços. Da nossa banda pode dizer-se que o Brasil tem entrado, ao lado da aliança britânica e da estreita amizade peninsular, como uma constante subentendida da política externa portuguesa. E certo que abusivamente, vista a inexistência de textos que a tanto nos autorizassem; com apoio bastante, porém, na história comum e nos laços de família, que sentimos prenderem-
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-nos indissoluvelmente. Do lado brasileiro a questão pode ser vista à luz das considerações seguintes:
É sabido que as Nações Unidas representam uma tentativa ou princípio de organização da sociedade internacional em bases de universalidade e de igualdade. A universalidade tendente à admissão de todos os estados com condições mínimas para garantirem uma útil convivência internacional está longe ainda de realizar-se. A igualdade jurídica dos estados teve de, na prática, aceitar as conhecidas excepções que se representam na competência exclusiva de alguns órgãos restritos e na hierarquia e diferenciação dos estados. A estas deficiências - se é que em todos os casos o são - acrescem os perigos, esses reais e verificados, duma perturbante competência omnímoda - tanto na aplicação territorial como relativamente aos problemas debatidos -, sem correspondência com meios efectivos de acção. Mantém-se assim a organização como tribuna livre das nações membros, sendo, porém, certo que não atingiu, e creio não atingirá nunca, o grau de eficiência quê alvoroçadamente se lhe atribuíra.
E de considerar se um dos meios mais expressivos de corrigir ou aperfeiçoar a instituição não será completá-la com suborganizações de grandes zonas, em que a afinidade de interesses, a similitude de problemas, mais preciso conhecimento das condições tornassem as intervenções mais razoáveis e eficientes. Nem custa reconhecer a estas mais possibilidades de êxito nos problemas que respeitam às nações e são particulares dessas zonas que ao actual universalismo das Nações Unidas.
Na ordem dos factos é tão flagrante e sentido este estado de coisas que o continente americano possui, à margem e sem prejuízo das Nações Unidas, uma organização própria, com suas conferências periódicas e seu alinhamento de orientações gerais em certos problemas - alinhamento em que a solidariedade interamericana joga o seu papel.
Ora bem! O Brasil tem o seu lugar nas Nações Unidas e tem-no na organização dos, estados americanos, mas, enquanto nas primeiras a actividade tem de confinar-se quase só no academismo da instituição, entre estes últimos n sua acção e influência desenvolvem-se preferentemente num plano de continentalidade, que, se corresponde à sua situação geográfica, e predominantes interesses económicos, pode bem não corresponder às origens e à parte de interesses universais em que comunga connosco. O caso da índia é absolutamente típico e revelador desta concepção, pois que o Governo e o povo brasileiros vibraram tão intensamente com os agravos da União Indiana como nós próprios e desveladamente se têm preocupado com a segurança de Goa.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Reconhecer e proclamar esse extraordinário movimento de solidariedade e do mais decidido apoio é dever que me é particularmente grato cumprir neste momento;...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... mas, quando busco a razão do facto, vejo não poder ser outra senão que o sentimento geral brasileiro é estar ali parte da história e património moral do Brasil. Quer dizer: à margem de tratado que nos vinculasse uns aos outros, a reacção brasileira produziu-se e manifestou-se espontaneamente na linha dos interesses políticos e morais comuns, como a de Portugal, por certo, se manifestaria em casos análogos em que o Brasil se visse tão injustamente envolvido.
Vozes: - Muito bem; muito bem!
O Orador: - À luz dos factos pode, pois, perguntar-se se a separação dos dois países não foi no princípio longe de mais sob este preciso aspecto, ficando uma e outra nação desprovidas de apoio recíproco e submetidas a linhas de orientação ou de força que, felizmente, nunca foram contrárias, mas, pelas circunstância» de ocasião, bem podiam ser largamente divergentes. De certo modo se pode dizer que, embora a título experimental, se refaz ou corrige agora a história em benefício comum, fazendo da comunidade luso-brasileira um instrumento de política internacional de Portugal e Brasil.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Espero estar ainda dentro dos cinco minutos que me propunha falar. Preciso dos últimos segundos para dizer o seguinte: o Brasil é uma grande e esperançosíssima nação, a quarta ou quinta do Mundo em extensão territorial, com possibilidades e riquezas praticamente ilimitadas, dentro de décadas com um valor demográfico considerável entre as maiores nações, e implantada num dos lados do quadrilátero atlântico em que se localizam muitos dos nossos mais importantes interesses. Nós somos a velha árvore reverdecida de que o Brasil se desprendeu e que pela sua pujança continua a formar novas ramagens e troncos, estuantes de força e de viço. Nestas circunstâncias, o tratado não pode considerar-se como afirmação gratuita de princípios e atitudes e devemos ter a consciência de que impõe a ambos os estados enormes responsabilidades. Para além daqueles aspectos sentimentais a que -filhos, do mesmo sangue, dotados do mesmo coração- não podemos fugir a render preito, está aí uma fonte inesgotável de inspiração e acção política. Ratificando-o, nós fazemos um voto ao mesmo tempo de confiança recíproca e de optimismo quanto ao futuro das duas pátrias.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
A Assembleia e todos os presentes, de pé, aplaudiram S. Ex.a o Presidente do Conselho.
O Sr. Presidente: - Está interrompida a sessão.
Eram 17 horas e 10 minutos.
Neste momento o Sr. Presidente do Conselho saiu da sala das sessões, acompanhado pelo Sr. Presidente da Mesa e dos secretários da mesma.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Eram 17 horas e 20 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Está em apreciação o Tratado de Amizade e Consulta Luso-Brasileiro. Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto de Araújo.
O Sr. Alberto de Araújo: - Sr. Presidente: na história das relações entre Portugal e o Brasil abre-se um novo capítulo com a assinatura do Tratado de Amizade e Consulta negociado pêlos Governos dos dois países e agora sujeito à aprovação desta Câmara.
Os acontecimentos fundamentais da política e da história não são, em regra, produto do acaso e antes, quase sempre, culminam períodos longos de evolução. ' A tendência expansionista do génio português, favorecida pela nossa posição atlântica e por uma volun-
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tariosa adesão ao cristianismo, fez da pequena nação lusitana a grande pioneira, no Mundo, de todas aquelas verdades e de todos aqueles princípios, sentimentos c anseios que suo a mais perfeita expressão da civilização e da própria fé.
Contornámos a costa africana, derrubamos os mitos e as lendas que alimentavam as imaginações e povoavam os mares, chegámos à índia e ao Brasil, demos ao Mundo uma nova concepção planetária da sua grandeza e ao Ocidente e à cristandade a consciência da sua missão.
No panorama vasto dos nossos cometimentos, em que se assinalam glórias e sacrifícios, vitórias e decepções, o descobrimento do Brasil havia de constituir uma pedra angular para o futuro e para os destinos da Nação Portuguesa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A extensão do território descoberto, a pujança e a exuberância da terra, o valor dos recursos por explorar, a inexistência de qualquer raça ou civilização locais que verdadeiramente pudessem competir connosco na obra gigantesca a empreender, abriam a Portugal as maiores possibilidades de colonização de toda a sua história. Se a índia era a maior glória de uma epopeia, o Brasil era o rumo natural da nossa expansão.
Para ali levámos as nossas melhores possibilidades e recursos: em gente, em vontade, em espírito criador, para que a fé e as virtudes da nossa pátria florescessem, de novo, na terra imensa que a mão de Deus havia confiado à nossa guarda. É marinheiros e soldados, colonos e missionários, homens de tino e de vontade, começaram o povoamento e a colonização, dando às terras os nomes das nossas evocações, às casas e às ermidas as linhas da nossa arquitectura, à administração a estrutura das nossas instituições, e nunca mais foi possível, através dos anos e dos séculos, apagar do coração e da face do Brasil nem a alma nem a imagem da. nação que tão fortemente contribuíra para a sua formação e tão decisiva influência havia de ter na sua fisionomia e nos seus próprios caracteres.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Lá deixámos o nosso sangue, na defesa da nossa soberania e na formação de novas gerações; é o mesmo Deus e são os mesmos os santos que lá se veneram; costumes velhos de séculos adaptaram-se ao novo clima social, e quando, mais tarde, uma após outra, ondas sucessivas de emigrantes de origem estrangeira povoaram o litoral e o interior, a beira-mar e os planaltos, já não puderam suplantar, nem vencer, nem diminuir a língua portuguesa, que, com o sangue e a história, são os marcos eternos a perpetuar a presença de Portugal no Brasil.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O Brasil, descoberto pêlos portugueses e tendo assimilado os caracteres dominantes da sua maternidade, tornou-se, no século XIX, uma nação independente. Anseios incontidos de liberdade sacudiram todos esses países nascentes, «a América para os americanos» tornou-se o dogma fundamental de ama doutrina, e as grandes regiões da colonização europeia, no Norte e no Sul daquele vasto continente, deram lugar, no mapa do Mundo, a novas unidades políticas independentes e diferenciadas. Se aos anglo-saxões coube o orgulho de terem criado, no Norte da América, esse bloco de estados de língua inglesa que são os Estados Unidos da América, hoje a maior potência económica e militar do Mundo, Portugal teve a glória de ter descoberto, povoado e conservado sob a sua bandeira aqueles territórios que haviam de constituir a maior nação da América do Sul, mantendo íntegra a sua unidade política, para que depois viesse a ser a mais radiosa e fulgurante projecção do génio latino no outro lado do Atlântico.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: as nações são como os indivíduos. Quando atingem a maioridade quase não têm tempo para relembrar os seus laços ancestrais, na ansiedade de proclamarem os seus direitos e viverem plenamente todas as suas prerrogativas. Mas é volvido mais de um século sobre a data em que o Brasil se separou da Coroa Portuguesa e desde então evoluíram profundamente os conceitos de independência e de liberdade e os povos, e mesmo os continentes, sentiram a existência entre eles de laços fortes de interdependência e solidariedade. A afinidade da raça ou da cultura, da língua ou da história, reuniu e agrupou nações que, conservando a sua independência política e as suas instituições próprias, procuram encontrar esferas comuns de acção e de entendimento. Na Ásia formam-se poderosos blocos raciais e geográficos de estados, a Liga Árabe é também uma nova aliança de povos, acentua-se uma mais forte solidariedade interamericana e a Comunidade das Nações Britânicas continua a ser a mais típica associação de nações de todos os tempos.
A própria evolução da vida internacional deu, assim, maior projecção à solidariedade luso-brasileira e abriu novas perspectivas à formação de uma comunidade abrangendo as duas nações de língua portuguesa.
Não há entre elas nem divergências de interesses, nem rivalidade de pretensões, nem oposição de objectivos. Pelo contrário, existe um património comum de interesses a acautelar e a defender e a consciência de que os esforços que se pretendem conjugar visam aproximar ainda mais Portugal e o Brasil, igualar, tanto quanto possível, os direitos e prerrogativas dos cidadãos de ambos os países e, simultaneamente, tornar cada vez mais concordes as atitudes das duas pátrias irmãs, dispostas hoje, como sempre, a servir as causas grandes e generosas do mais alto idealismo humano.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: pelo Tratado de Amizade e Consulta Portugal e o Brasil concordam em que, de futuro, se consultarão sempre sobre os problemas internacionais do seu manifesto interesse comum.
Ë também disposição fundamental do mesmo tratado aquela em que cada uma das altas partes contratantes acorda em conceder aos nacionais da outra tratamento especial, quer na ordem jurídica, quer nas esferas comercial, económica, financeira e cultural, que os equipare aos respectivos nacionais em tudo que, de outro modo, não estiver directamente regulado na Constituição.
E permita-se-me também sublinhar, a par das disposições relativas às facilidades a conceder em matéria comercial e financeira, à livre entrada e saída em Portugal e no Brasil dos nacionais da outra parte e a automática concessão a estes de benefícios concedidos a quaisquer estrangeiros, a importância da cláusula pela qual as nações contratantes se comprometem a estudar, sempre que oportuno e necessário, os meios de desenvolver o progresso, a harmonia e o prestígio da comunidade luso-brasileira no Mundo.
A primeira cláusula do acordo traduz e exprime todos os perigos e ansiedades da nossa época em ma-
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téria de política internacional. Está em perigo a liberdade dos povos e a própria sobrevivência das nações. E, mais do que isso, esta ameaçada a civilização ocidental e cristã e o conjunto dos seus valores espirituais. Ë natural que, perante perigos que ameaçam a existência e a estrutura de princípios e instituições comuns, Portugal e o Brasil procurem, cada vez mais, consultar-se e entender-se. A atitude brasileira perante a injustificada agressão à nossa soberania da índia -e que tão grata foi ao espírito e ao coração de todos os portugueses - é bem uni índice da íntima e profunda solidariedade que hoje une as duas pátrias e que se procura precisamente consagrar através do instrumento diplomático em discussão.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Considero como a disposição de maior projecção do tratado aquela pela qual, e salvo as limitações constitucionais, Portugal e o Brasil se obrigam a conceder aos nacionais da outra parte o mesmo tratamento que dão aos seus próprios nacionais, quer na ordem jurídica, quer nas esferas económica e cultural. Não podendo, uma vez o tratado em vigor, conforme afirmou o Prof. Doutor Paulo Cunha, actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, a quem daqui presto as minhas homenagens pêlos altos serviços que vem prestando ao País,...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - ... ser considerados estrangeiros os Portugueses no Brasil e os Brasileiros em Portugal, adopta-se uma fórmula que se aproxima da dupla nacionalidade.
Este problema da dupla nacionalidade tem sido objecto de larga discussão, em face das leis e da doutrina, e oferece aspectos especiais no tratado presente à aprovação da Assembleia Nacional.
Já se definiu a nacionalidade como a relação de direito que une um indivíduo a uma colectividade humana chamada estado, relação que impõe a ambas as partes um certo número de obrigações, nomeadamente ao indivíduo a da fidelidade e ao estado a da protecção.
Os deveres do súbdito, nacional ou cidadão de um país, para com o estado são definidos na constituição ou na lei e comportam, em regra, o serviço militar, o pagamento de impostos, a abstenção da prática de certos actos e, numa palavra, uma atitude fiel e leal para com a pátria.
Em compensação, como diz Dufour, o estado concede aos seus nacionais uma determinada protecção no seu território e, na medida do possível, fora dele.
Em regra, cada pessoa só tem uma nacionalidade, mas, no mundo actual, são numerosos e frequentes os casos de indivíduos que têm duas e, por vezes, múltiplas nacionalidades.
De uma maneira geral são circunstâncias independentes da vontade do indivíduo que o vinculam a dois estados. Estes são soberanos e, quando duas soberanias se encontram em presença, não ha razão para que uma ceda à outra. E daí, em grande parte, as duplas nacionalidades.
Na Europa, geralmente, a nacionalidade transmite-se por hereditariedade de pai para filho. Na América, ao contrário, o lugar de nascimento prefere à paternidade.
O problema que se põe mesta matéria é o de saber se, ao lado da dupla nacionalidade, de natureza individual e consequência de um conflito de leis internas, há a possibilidade de uma dupla nacionalidade de carácter colectivo e resultante, não de um antagonismo de legislações, mas, pelo contrário, de um acordo de estados.
A corrente tradicional da doutrina que considera a soberania do estado como um poder total e exclusivo sobre o cidadão manifestava-se absolutamente pela negativa.
Cícero havia já dito: «pelo nosso direito a ninguém é permitido ter duas cidadanias»; e Proudhon, muitos séculos mais tarde, mas fiel à mesma ideia, havia de afirmar que, se nada podia ter uma dupla maternidade, ninguém podia também ter duas nacionalidades.
Apesar desta intransigência doutrinal, a história oferece exemplos de comunidades, mais ou menos extensas, em que os nacionais ou cidadãos de determinadas nações ou cidades gozam, embora, por vezes, com restrições, de duplos direitos de cidadania ou nacionalidade.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O exemplo mais antigo desta espécie de comunidade é nos dado pelas cidades da antiga Grécia. Como já se escreveu, nada existe no mundo moderno que possa comparar-se ao hermetismo e à coesão das antigas cidades gregas, baseados em vínculos religiosos e numa concepção superindividual da cidade. Havia o culto dos deuses e o amor das armas, e cada cidade, como já se escreveu também, era defendida por muralhas jurídicas e políticas mais difíceis de transpor que as muralhas de pedra que as protegiam. Apesar disso, as cidades gregas conferiam, por vezes, o direito de cidadania aos membros de outras cidades, em consequência de negociações recíprocas ou por virtude de alianças políticas. Mas é incontestável que, admitindo a co-existência de cidadanias, efectivavam, sob certo aspecto, o princípio da dupla nacionalidade.
Tem-se apontado o direito romano como adverso à teoria da dupla nacionalidade, mas há quem afirme que, a partir de uma certa altura, parece indiscutível que os estrangeiros que adquiriam a cidadania romana conservavam a sua cidadania primitiva, de modo que, entre as melhores famílias gregas das cidades e os maiores proprietários de terras, poucos eram os que não possuíam, além da própria, a cidadania romana.
A Idade Média teve as suas características próprias. Pode dizer-se que este período da história foi dominado por uma outra espécie de comunidade: a comunidade de religião e de cultura de que faziam parte todas as nações cristãs.
Os países muçulmanos oferecem também um exemplo de comunidade, baseado em vínculos religiosos. Cada muçulmano é súbdito de determinado soberano, mas, simultaneamente, é membro da comunidade islâmica.
Nos tempos modernos o caso mais típico de dupla nacionalidade é o que oferece o Império Britânico. Já em 1911, na Conferência Imperial Britânica, se declarou que a nacionalidade imperial devia ser geral e uniforme, embora cada colónia ficasse livre para conferir uma nacionalidade de carácter puramente local. Esta ideia evoluiu depois e, actualmente, um súbdito britânico, quer da Austrália, do Canadá ou da Nova Zelândia, pode ter duas nacionalidades diferentes, cada uma com o seu conjunto de direitos e deveres e cada uma se adquirindo e perdendo de maneira diversa.
Estas exemplificações demonstram que, através da história dos povos, têm existido comunidades de raça e de cultura mais extensas que os estados. Apesar disso, continuam a existir correntes doutrinárias que negam ou contrariam, quando não podem negar, a dupla nacionalidade e outras que a defendem e demonstram até
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a sua vantagem, e ü qual pertencem, entre curros, certos autores alemães, que entendem que, se os grandes grupos emigratórios originários daquele país devem, por razões de ordem económica, adquirir a nacionalidade do país onde se fixam, razões de ordem política aconselham que conservem a sua nacionalidade de origem, na defesa dos mais altos interesses da comunidade germânica.
Entre estas posições extremas há autores e tratadistas de direito que procuram ver o problema à luz da realidade e dos factos. O prof. de Direito da Universidade de Madrid, Doutor Frederico de Castro e Bravo, num estudo deveras interessante, publicado na Revista Espanhola de Direito Internacional, e no qual colhi os elementos de ordem histórica que acabo de referir, coloca esta questão da dupla nacionalidade, com grande verdade e realismo, em face de uma outra comunidade: a comunidade hispânica de nações. Para aquele jurista e professor - cujo pensamento só muito sucintamente me limito a reproduzir - a questão da dupla nacionalidade tende a confundir-se com a situação jurídica do emigrante. Ora a questão que se põe é muito ampla: é a da valorização jurídica das grandes comunidades, que compreendem dentro de si vários estados.
Há, fora de dúvida, uma comunidade de nações hispânicas, ligadas por fortes vínculos de origem, cultura e crença. Ora essa realidade, que é a comunidade hispânica, deve ter, como todo o facto social operante, a sua respectiva regulamentação jurídica. Isso é indiscutível. As dúvidas e as divergências podem surgir apenas quando se trata de designar a fórmula jurídica concreta mais exacta e de escolher o momento oportuno para adoptá-la; uma será tarefa dos juristas, outra dos homens de estado.
Conviria talvez, no seu entender, prescindir dos termos «dupla nacionalidade» ou «dupla cidadania», dado o significado que geralmente se lhes atribui, e empregar outra expressão que melhor traduza a realidade.
Segundo aquele eminente professor, o conceito de nacionalidade é próprio do vínculo que une o indivíduo u nação e o de cidadão o que designa a condição de elemento activo no estado. Falar, pois, de dupla nacionalidade ou de dupla cidadania, sem mais explicação, pode levar ao erro de supor que se pretende equiparar estas duas figuras distintas: a relação do súbdito com o estado a que pertence politicamente e a relação com a comunidade, ou seja com todos e cada um dos estados que a formam. A nacionalidade cria uma dependência imediata, concreta e directa, constituindo um status bem definido; a condição de membro da comunidade - e para nos servirmos das suas próprias palavras - manifesta-se, praticamente, em conferir uma titularidade eventual em cada um dos estados que a compõem e que se tornará efectiva ao transitar ou residir nos seus territórios, de acordo com o direito interno de cada estado.
Os conceitos que acabamos de reproduzir parecem adaptar-se a realidade da vida internacional e estuo, segundo cremos, de acordo com os princípios informadores do tratado recentemente celebrado entre os Governos de Portugal e do Brasil.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Se se pode falar de uma comunidade anglo-saxónica ou de uma comunidade hispânica, é fora de dúvida também a existência de uma comunidade luso-brasileira.
Pela letra e pelo espírito desse tratado os nacionais do Brasil continuam a ser cidadãos brasileiros, os nacionais de Portugal cidadãos portugueses, mas uns e outros membros da comunidade luso-brasileira. Uma vez o tratado executado e regulamentado, os Portugueses, ressalvadas as limitações constitucionais, desfrutarão no Brasil dos direitos civis e administrativos que usufruem os cidadãos brasileiros. Os Brasileiros gozarão em Portugal desses mesmos direitos atribuídos aos cidadãos portugueses. Ficam excluídos os direitos políticos, que continuam a ser privativos dos nacionais de cada um dos respectivos países.
Assim definido o conteúdo e o alcance do tratado, pode falar-se duma dupla nacionalidade, quase nacionalidade ou cidadania comum. Os termos pouco interessam. O que interessa é o alcance prático dum instrumento diplomático que reconhece a Portugueses e Brasileiros a qualidade de elementos vivos de uma forte e real comunidade de povos.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: pelo Tratado de Amizade e Consulta as altas partes contratantes comprometem-se também a estudar, sempre que oportuno e necessário, os meios de desenvolver o progresso, a harmonia e o prestígio da comunidade luso-brasileira no Mundo.
O prestígio das nações vem sobretudo dos serviços que prestam u civilização e à cultura e à forma como se mostram dignas do seu passado e das suas tradições. A Nação Portuguesa, que prossegue hoje, como há' séculos, uma acção ultramarina animada daquele idealismo que lhe permitiu escrever algumas das páginas mais gloriosas da história dos povos, difundindo a civilização, alargando a fé, dando ao Mundo essa outra e grande nação que é o Brasil, com o conjunto admirável das suas esperanças e promessas, a Nação Portuguesa tem a consciência de que, dia a dia, contribui, com o seu trabalho, o seu esforço e o seu sacrifício, para elevar o prestígio de uma civilização comum e preservá-la, ao mesmo tempo, dos perigos que ameaçam a sua essência.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Oxalá que deste tratado resulte uma colaboração mais íntima e frutuosa entre Portugal e o Brasil. E, falando da harmonia e do prestígio da comunidade luso-brasileira, formulemos o voto pela unidade e integridade da língua em que se exprimem, se ouvem e se entendem as duas nações irmãs.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Deixámos no Brasil tesouros preciosos: vidas sem conta, sacrifícios sem número, dedicações que eram heroísmo e operaram, tantas vezes, milagres. Mas, entre todos essas riquezas que constituem património moral e histórico da Nação Portuguesa, nenhuma excede a glória de termos deixado no Brasil, com a nossa alma, a nossa língua. Foi nela que a velha nação lusitana embalou as suas primeiras esperanças de liberdade, foi nela que o Condestável deu em Aljubarrota as suas vozes de comando, foi nela que celebrámos os passos decisivos da nossa história, foi nela que marinheiros e colonizadores elevaram a Deus, em terras de Vera Cruz, as suas primeiras orações e é, ainda hoje, nela que os nossos emigrantes quotidianamente exprimem, no Brasil, toda a ternura, toda a lembrança e toda a saudade que para sempre os prendem à terra onde nasceram.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Língua forte e simultaneamente doce ela adapta-se a todas as modalidades do sentimento hu-
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mano, traduz as razões da inteligência e os impulsos do coração, exprime com igual beleza o lirismo simples e bucólico da nossa gente e os feitos mais gloriosos a grei. Nas fórmulas vernáculas dos nossos clássicos, nas estrofes de Camões, na eloquência admirável de Vieira, a língua portuguesa ganhou a altura que lhe permitiu transpor, com o génio do povo que a criou, os umbrais da imortalidade!
Depois deles, poetas e prosadores de Portugal e rio Brasil, uns cultivando as ideias, outros as modalidades surpreendentes da forma, uns traduzindo a realidade e a crueza da vida, outros ouvindo apenas as vozes da inspiração e do sentimento, enriqueceram o património da língua portuguesa e acrescentaram o tesouro inesgotável dos seus encantos e dos seus segredos.
Ainda hoje esta Câmara se honrou de ouvir, enlevada, um dos mais luminosos espíritos da nossa época, que é, simultaneamente, um dos mais perfeitos e ilustres cultores da língua portuguesa de todos os tempos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: não precisam Portugueses e Brasileiros nem de servir-se de intérpretes para se entenderem, nem de recorrer a idiomas estrangeiros para firmarem os seus acordos e tratados, pois têm a ventura de ser a mesma a língua que se fala em ambos os lados do Atlântico.
Tenhamos esperança de que o Tratado de Amizade e Consulta seja um instrumento fecundo no sentido de preservar e manter a unidade da língua portuguesa, contribuindo assim, verdadeiramente, como é seu objectivo fundamental, para a harmonia e para o prestígio da comunidade luso-brasileira no Mundo.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Lopes de Almeida: - Sr. Presidente: ao subir à tribuna desejo, em primeiro lugar, renovar a V. Ex.a as minhas saudações muito cordiais, e nelas quero envolver a alta magistratura que V. Ex.a desempenha com elegante e sóbria autoridade, sem todavia esquecer o homem ricamente dotado de afectuosa compreensão, impecável na convivência e na distinção parlamentar. Um defeito creio que não tenho: usar de palavras vãs de adulador. Digo o que penso e o que me vem do coração à boca neste grato cumprimento que faço a V. Ex.a
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: se alguma vez me senti acanhado ao tomar a palavra nesta Câmara, esse dia é certamente o de hoje. O meu quase constrangimento não é resultado da matéria que a Câmara tem de examinar, porque ela, por invulgar em nossos anais, tem uma significação que sobrepassa imediatamente as nossas pessoas.
Sinto-me acanhado porque a formação do meu espírito, tão alheia às disciplinas jurídicas, pode ser que não me ajude a alcançar todo o âmago do notável instrumento diplomático que à Câmara foi presente. Desejo, porém, quanto em mim caiba, fazer um esforço para compreender o alto sentido que presidiu às negociações que remataram, fez há pouco um ano, com a assinatura do Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e Brasil.
Sr. Presidente: numa hora tão dramática como a que estamos vivendo, sem arrogância nem temor deu esta Câmara ao País a segurança de que compartilha todas as suas ansiedades e todas as suas preocupações; deu
esta Câmara ao País a certeza de que tanto ela como o Governo, ambos, não descuram nem olvidam os interesses superiores - ia a dizer sagrados - que a nossa alma e o nosso sangue obrigam irremissivelmente a preservar e defender, custe, lá e cá, o que custar.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A vida dos povos, como a dos cidadãos, só verdadeiramente se perde quando se perde a honra. Se a moderação tem limites, estes se ajustam quase sempre com o denodo e a coragem. «A portugueses com o elmo na cabeça - dizia Afonso de Albuquerque - não levam assim a fortaleza».
Pois nesta hora fortemente emotiva, quando num dos lugares onde há quatro séculos e meio, com superior constância, o nome de Portugal se afirma como matriz de civilização, pois nesta mesma hora guardemos a palavra lucidíssima do Presidente do Conselho, e, carregados de paciência, desviemos os olhos dos grandes males do tempo presente para lançar o pensamento, com a antiga firmeza de nosso ânimo, aos caminhos onde se reafirma e consolida a dignidade e a honra, a paz e a amizade internacionais. Exultemos, exulte o povo e a Câmara, exulte o Governo e a Nação, pois este país, a que chamaram de «parente pobre na Europa», tem em si a maior riqueza que pode oferecer ao Mundo: a persistência de afirmar os valores absolutos que deram à mesma Europa consciência da sua missão universal. A sem os quais as nações não são grandes, as ideias não são generosas, o sangue não tem poder genesíaco, a justiça é uma palavra vã e a verdade, de verdade só usa o nome.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Perdoai-me se ponho certa vivacidade onde queria que não houvesse senão alguma daquelas qualidades que o velho Cícero recomendava para as agruras da vida: prudentia, fortitudo. Mas não me sofre o ânimo calar aos ecos desta Cosa a minha emoção grandíssima e lançar ao longe, lá para os reinos da aurora, o meu pensamento e a minha palavra débil para quantos, nobres e fiéis, de coração limpo e puro, guardam a terra nossa e zelam a honra de todos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: há coisas que no seu valor transcendente chegam a nós sem se revestirem de grandes palavras nem de expressões sonorosas, e por isso não chamam nem pedem os aplausos fáceis. Valem por si mesmas, na sua ampla estrutura moral ou jurídica, na disciplina dos justificados interesses que põem em guarda, na inteligência com que acodem aos imperativos de uma real tradição histórica.
O povo nem de todo as compreende, mal suspeita que é pela sua dignificação, pela sua honradez, pela sua demonstrada capacidade de sacrifício e voluntariosa doação do sangue, pelo respeito das suas virtudes que o pensamento se moldou explicitamente em norma jurídica excepcional.
O Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e Brasil afigura-se-me uma destas construções jurídicas de natureza excepcional, de profundo significado político e moral, que só é possível executar quando entre os povos há laços estreitos de fraternidade e tal comunhão de pensamento que nenhuma falsa razão pode embaciar ou perverter.
O povo, o nosso povo - rio de sangue generoso que há muitos séculos e sem intermitências se deitou a
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correr pêlos caminhos do Mundo -, tem neste tratado a consagração da sua longa vida de semeador de terras virgens, de abridor de caminhos ínvios, de iniciador dos cristãos atrevimentos. E essa consagração radica no reconhecimento de uma herança indesmentível, floresce numa afinidade de cultura e de interesses, projecta-se com relevo acentuado no quadro da vida internacional, como exemplo de capuz entendimento e de amizade subsistente no respeito das soberanias e no amor da verdadeira paz.
A Câmara há-de permitir-me que declare e fundamente, a meu modo, o sentido positivo deste importante instrumento de direito internacional, que insere rasgadamente na esfera do Mundo a comunidade luso-brasileira. Eis a realidade autêntica por testemunho solene e a resultante duma expressão histórica inconfundível. Portugal e Brasil asselaram-na desde a hora que em Porto Seguro fundearam as naus do capitão-mor Pedro Alvares Cabral, e o escrivão da armada, coutando o «achamento da terra nova», dizia estar ali a promissora «pousada para essa navegação de Calecute...».
Assim, na expressão daquela idade, os nossos velhos, cheios de experiência e dotados duma sensibilidade muito aguda, tinham já consciência clara do enlace da sua missão histórica com o destino da terra novamente achada.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Três séculos de vida comum foram o estímulo promitente do Tratado de Amizade e Consulta, mas não esqueço que desde o reconhecimento da independência do Brasil nenhuma causa ou motivo tem havido para que não contemos esse quase século e meio como de fecunda compreensão, inalterável respeito e lealíssima amizade, como é de razão entre pessoas da mesma família.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quando pensamos nesse facto singular de nenhum brasileiro ou português se sentir estranho neste ou no outro lado do Atlântico, à razão nos acode a causa profunda de tal singularidade. Qual há sido a nação que tenha entregado o dom total de si mesma a quase meio mundo ocupado por outra nação irmã da sua? Quem se arrojou a tamanhos pensamentos, quem contribuiu mais para a civilização do globo, quem com maior desvanecimento dividiu a sua herança espiritual? Que povo, que nação P Quatro séculos e meio de bom sangue que se permeia, e nas raízes novas se opulenta, fala na gente onde quer que a gente fala, e, por isso, nem a terra é dessemelhante, nem a língua diferente, nem a crença diversa, nem a gente estrangeira.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A Câmara certamente está pensando na significação mais extensa do tratado que foi presente à sua consideração, isto é, como dos princípios contidos nas suas disposições se pode extrair uma consequência de maior amplitude na ordem universal.
É bem sabido como no Mundo actual as nações cujo nascimento e formação se fez à sombra do cristianismo persistem em afirmar os princípios morais que tradicionalmente regiam o convívio dos povos, e formam blocos poderosos para sopesar o poderio material e a força daquelas que ideologicamente abandonaram todas as preocupações morais na sua vida interna e na ordem internacional, para consecução dos seus fins de domínio e sujeição dos povos. Uma das maiores violências dos nossos dias é esta que leva as nações a reforçarem-se na sua carcaça de aço e a experimentarem
Aquelas invenções, feras e novas
De instrumentos mortais
de que falava o Poeta. Foi tempo em que a consciência universal se erguia numa protestação violenta contra aqueles que, acesos em ódio e vingança, adoptavam os métodos de divisão da república cristã, buscavam alianças onde a fé o proibia e as convicções políticas o não determinavam.
O nosso tempo reincidiu gravosamente nessa linha de conduta política e moral, ganhou em força e potência material menos e bem menos do que perdeu em valores espirituais. Já a razão não tem comedimento, a ambição não tem limite, a palavra dada não merece respeito - só a força toma o lugar da espada na balança do que ousam proclamar justiça internacional. Quanto esqueceram os que reinam e os que legislam no concerto internacional! Não é com eles a equidade nem a prudência, e vão corrompendo os caminhos com a sua boca de duas línguas. Pois o espírito que inspirou o Tratado de Amizade e Consulta desconhece essa via tortuosa e má e, desviando-se daí, proclama que laços de sangue, unidade de língua, património espiritual comum, respeitáveis e legítimos interesses económicos são o substrato vinculador duma comunidade destinada a resguardar o amplo sentido da política de solidariedade ocidental, ia a dizer cristã.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Na realidade, esta política de solidariedade ocidental é um dos imperativos dos tempos actuais e uma das poucas razões, se não a única, para acreditar e esperar que não deflagre neste pobre Mundo a causa da sua última ruína e desolação, o que Deus não permita.
Aos desprevenidos e pouco atentos poderá parecer-lhes que este acordo não representa mais do que um acontecimento feliz e altamente expressivo na vida de dois povos irmãos. Mas, se considerarem as realidades da vida internacional, as contingências e a gravidade dos problemas que estão postos no grande palco do Mundo, e principalmente, o que no futuro pode surgir do recesso das chancelarias, hão-de compreender o alcance duma política que dispõe nas duas faces do mar atlântico dos postos e garantias de sua defesa e sobrevivência.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Já no século XVII um rei de Portugal, cuia clarividência e prudente sagacidade deram à sua política atlântica o rumo exacto dos caminhos do Brasil, encontrou ao hábil jogo dos interesses espirituais e materiais de ambas as praias desse mar, tão conhecido nosso, os motivos duma segurança comum e duma perenidade fraterna.
Não desconheceram esses factos os negociadores do presente tratado, nem desaprenderam a lição do passado, tão incisiva, tão pertinente, tão digna de encontrar quem a retomasse com realismo e veracidade Como muito bem se acentua no douto parecer da Câmara Corporativa, o Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e Brasil não é «uma ficção sentimental», é um acto de criação política, uma realidade internacional, cujas consequências muito velho não será quem as possa aperceber «m toda a sua amplidão e magnitude.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Os Ministros Vicente Rao e Paulo Cunha acentuaram isto mesmo, ao dizer que uma polí-
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tica externa de interesse recíproco dava posição privilegiada a Portugal e Brasil, de «mãos dadas», no quadro internacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Aqui está em palavras claras e expressivas o conceito mais elevado que pode extrair-se tio notável instrumento diplomático que consagra a comunidade luso-brasileira, como exemplar unidade política e insofismável força moral.
Esta grande realidade política e moral ganha assim representação e consistência intemporal, sobrepuja os nossos afectos e sentimentos, mantém e perpetua uma ideia «para alguma obra heróica de virtude».
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: se possui-mos a outro plano, creio que o Tratado de Amizade e Consulta permite que se abram perspectivas novas às relações culturais entre o Brasil e Portugal, pois intencionalmente se hão-de procurar «os meios de desenvolver o progresso, a harmonia e o prestígio da comunidade luso-brasileira no Mundo».
Alguma coisa conheço do Brasil, nunca ali fui sem uma grande comoção e alvoroço, com espírito sincero posso talvez produzir um depoimento sobre o que melhor conheço. É natural que por dever de ofício me achegue mais a considerar os modos em que actualmente decorrem as nossas relações intelectuais.
O Brasil caminha com ímpeto vertiginoso para os estádios da cultura superior e universitária, com sedução extraordinária das técnicas modernas, de que a América, do Norte é expoente e paradigma, mas sem descurar o cultivo das humanidades, que cada dia mais se oferecem à inteligência do seu escol intelectual como norma do pensamento e disciplina da razão, em pleno valor formativo. Neste particular, a nossa multissecular tradição humanística pode conceder alguma d« suas vantagens u preparação espiritual dos jovens universitários brasileiros. Mas há mais do que isto: há um património moral e espiritual, uma literatura muito nossa e hoje igualmente sua, a mau rica que produziu um pequeno povo depois da Grécia antiga; há uma arte, que nas suas formas e representações se transplantou e floriu; há uma língua que lá se enriqueceu e estuda com devoto amor; há um espírito bem semelhante àquele que nos guia e conduz aqui, o mesmo espírito que vivifica e anima as nossas gentes do ultramar, onde as mesmas formas de vida, a mesma alma, a mesma língua, o mesmo ritmo do sangue estabelecem e denotam um sincronismo invulgarmente apreciável em três partes do Mundo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Tenho de dizer que é entranhável para quem percorre, com sinceridade e discreta auscultação, as Universidades do Brasil que nelas não encontre a presença de agentes da cultura portuguesa senão com irregularidade e assistência bem precária. Ali, onde tudo nos chama e concorre para que dos afectos passemos aos superiores interesses comuns, aos trabalhos paralelos para expansão da língua e da cultura que indissoluvelmente nos ligam, nós, os Portugueses, temos estado ausentes, perfeitamente alheios e, quando solicitados, correspondemos com pouca galhardia ao que de nós se espera, cedendo a reserva de nosso lugar a quem se oferece com obstinação e nele vai fazendo o seu proveito.
A cultura luso-brasileira tem nos últimos anos alcançado maior louvor e estimação nos grandes meios intelectuais da Europa e da América, e julgo que é oportuna, e talvez urgente, uma definição e patrocínio oficial que permita a execução de um plano metódica e seriamente concebido.
As Universidades cube o dever de colaborar mais acentuadamente nessa obra, de expansão da nossa cultura com todas as suas possibilidades, sua boa vontade u entusiasmo, como aliás em grande parte têm feito, e é de obrigação dotá-las dos órgãos necessários para que a sua missão nesse particular vá mais distante e seja mais efectiva.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Ás nossas academias, aos institutos e aos centros de especialização, aos nossos arquivos, bibliotecas e museus cumpre encarar com decisão essa política de expansão cultural e oferecer quanto possível as provas da nossa actualização em muitos domínios do saber e da investigação científica, da pesquisa histórica, sociológica e artística. Sei - demais o sei - que não há continuidade nem actuação metódica na representação da actividade livresca portuguesa no estrangeiro; a nossa bibliografia, em qualquer capítulo, lá fora é pobre, demasiadamente pobre, sem seriação e sem verdadeira qualidade.
Suponho que está no pensamento do Governo acudir a este mal, de sorte que marquemos uma presença actual nos grandes centros intelectuais e universitários, especialmente do Brasil.
Outros países, decerto mais favorecidos da fortuna e com maiores possibilidades de domínio das vias principais da cultura universal, guardam zelosamente os pontos alcançados e desenvolvem uma actividade sobremaneira invejável. Mas, na nossa modéstia, impõe-nos n dignidade do nosso nome e a qualidade da nossa vida que apareçamos, que mostremos o que somos, na pureza das nossas intenções e no valimento das nossas obras. Temos lá no Brasil raízes indestrutíveis, mas por elos mesmas é que estamos obrigados a remoçá-las com a linfa da nossa cultura actual, que em muitos capítulos é digna de oferecer a face à luz do Mundo, como ainda há pouco se viu.
Temos lá raízes indestrutíveis, mas também discretíssimas oposições, ou, melhor, umas tentativas - que não chamo incipientes - de enraizamento e dispersão de culturas, que, se não podem substituir a nossa, todavia a querem ensombrar. A quem a culpa? Os Portugueses não podem fazer-se desentendidos desta pergunta, possivelmente, impertinente.
Porém, quando vejo consignado no Tratado de Amizade e Consulta o princípio de que hão-de estudar-se os meios de desenvolver o progresso, a harmonia e o prestígio da comunidade luso-brasileira no Mundo, creio que há motivo para confiar e abrir o nosso espírito a risonhas esperanças.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Oxalá me seja dado saber que amigos e discípulos meus, aos quais há mais de vinte anos conduzo e lanço no amor e no estudo do Brasil, oxalá me seja dado saber que, com novos incentivos em novos caminhos, se consomem nesse fogo ardente pela perpetuação do nome português.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Um homem que no Brasil teve a sorte de pisar os lugares onde alguns da sua família deixaram o sangue, de encontrar velhos amigos e conhecidos de há quatrocentos anos, de ver e rever na sua expressão imorredoura a pura verónica da Nação Portuguesa,
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com desvanecimento e entusiasmo, ainda que débil voz deste lugar proeminente dirige ao Governo o grato bem-haja pela assinatura do memorável Tratado de Amizade e Consulta entre Portugal e Brasil.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: talvez tenha deixado correr o meu sentimento mais do que a Câmara desejara e eu queria. Mas, às vezes, não fica mal um fio de emoção, quando é caso disso.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito- cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vou encerrar a sessão.
Convoco para amanhã, às 14 horas e 30 minutos, as Comissões de Finanças e de Economia.
O debate sobre o Tratado de Amizade e Consulta Luso-Brasileiro continuará na sessão da amanhã e constituirá n sua ordem do dia.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 30 minutos.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Agnelo Orneias do Rego.
Alberto Cruz.
Alberto Pacheco Jorge.
António de Almeida Garrett.
António Calheiros Lopes.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Carlos de Azevedo Mendes.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Francisco Eusébio Fernandes Prieto.
João Carlos de Assis Pereira de Melo.
João Cerveira Pinto.
João Maria Porto.
Joaquim, de Pinho Brandão.
Joaquim de Sousa Machado.
Jorge Pereira Jardim.
José Gualberto de Sá Carneiro.
Luís Filipe da Fonseca Morais Alçada.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Monterroso Carneiro.
Tito Castelo Branco Abrantes.
O REDACTOR - Luís de Avillez.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA