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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 162

ANO DE 1960 2 DE ABRIL

ASSEMBLEIA NACIONAL

VII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 162, EM 1 DE ABRIL

Presidente: Ex.mo Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Ex.mos Srs. Fernando Cid Oliveira Proença
António José Rodrigues Prata

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 25 minutos.

Antes da ordem do dia. - O Sr. Deputado Sarmento Rodrigues falou sobre as inundações no Brasil.
No mesmo sentido usou da palavra o Sr. Presidente, que interpretou o sentimento da Assembleia enviando um telegrama de solidariedade ao Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil.
O Sr. Deputado Melo e Castro solicitou do Governo a construção urgente do porto de Sinex.
O Sr. Deputado Rocha Peixoto chamou a atenção do Governo para a estação arqueológica de Panoias (Vila Real).
O Sr. Deputado Tarujo de Almeida pediu o interesse do Governo para a situação dos presidentes de municípios de 2.ª e 3.ª classes.

Ordem do dia. - Iniciou-se a discussão na generalidade do projecto de lei do Sr. Deputado Camilo de Mendonça sobre as remunerações dos corpos gerentes de certas empresas.
Falou o Sr. Deputado Camilo de Mendonça.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 15 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Augusto Pinto.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior.
André Francisco Navarro.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calapez Gomes Garcia.
António Calheiros Lopes.
António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António Jorge Ferreira.
António José Rodrigues Prata.
António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
António Pereira de Meireles Rocha Lacerda.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Artur Proença Duarte.
Avelino Teixeira da Mota.
Camilo António de A. Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Coelho.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando António Muñoz de Oliveira.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Frederico Bagorro de Sequeira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Augusto Marchante.

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João de Brito e Cunha.
João Carlos de Sá Alves.
João Mendes da Costa Amaral.
Joaquim Mendes do Amaral.
Joaquim Pais de Azevedo.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Pereira Jardim.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Guilherme de Melo e Castro
José Hermano Saraiva.
José Manuel da Costa.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Rodrigo Carvalho.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Laurénio Cota Morais dos Reis.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colares Pereira.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Angelo Morais de Oliveira.
Mário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Purxotoina Rantanata Quenin.
Ramiro Machado Valadão.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Urgel Abílio Horta.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 84 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 25 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sarmento Rodrigues.

O Sr. Sarmento Rodrigues: - Sr. Presidente: temos acompanhado, todos neste país têm acompanhado, com interesse e emoção, o desenrolar dos trágicos acontecimentos que têm semeado a dor e a desgraça na pátria irmã do Brasil. Campos inundados, aldeias, vilas, cidades submergidas pelas torrentes caudalosas de rios indomados, cuja grandeza, neste momento de destruição, nos dá bem uma ideia das tremendas forças de que a natureza dotou a terra brasileira.
Toca-nos profundamente o bem e o mal do Brasil. O Brasil é o nosso irmão, é o nosso orgulho, faz parte, na lei e aos sentimentos, da indissolúvel comunidade
luso-brasileira. Os seus triunfos são nossas alegrias, as suas desventuras são nossas tristezas.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Nunca discutimos, nem apreciamos sequer, a sua política interna, tal é a isenção, a pureza dos nossos sentimentos fraternais. Toda a nossa imprensa tem fielmente traduzido essa geral isenção do povo português. O que apenas nos interessa, perante o Brasil, é a sua prosperidade, a sua grandeza.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Por isso agrada-nos imenso saber como se elevam, fábricas e barragens, se criam indústrias, se constróem cidades, se rasgam os matagais, revendo em tudo isso - seja-nos permitido essa vaidade - esse espírito pioneiro e audaz que, com a cruz de Cristo, transportámos para o continente americano.
Apresta-se o Brasil, sob a orientação activa e patriótica dos seus ilustres governantes, para o grande cometimento da Brasília, a nova capital, numa ideia generosa, ideia bandeirante, que penetra cada vez mais fundo no coração da terra de Santa Cruz. Empenham-se recursos, correm-se riscos, gastam-se energias. E é neste momento que noutros estados da grande República irmã surgem problemas tão prementes que parece quererem ofuscar o brilho de uma hora de triunfo.
Ë justamente nesse Nordeste tradicionalmente batido pela tragédia das secas, onde anualmente, como se de anátema se tratasse, a natureza vai determinando êxodos, tornando cada vez mais áridas as terras, o que por sua vez facilita a formação de torrentes impetuosas, que a pobre e raquítica vegetação não pode deter; Nordeste, palavra que hoje, segundo o testemunho autorizado de Gilberto Freyre, «quase não sugere senão as secas. Os sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés. Os sertões de paisagens duras doendo nos olhos. Os bois e os cavalos angulosos. As sombras leves como umas almas do outro mundo com medo do sol. Homens e bichos se alongando quase em figuras de El Greco». É esse calcinado Nordeste de gente sofredora e martirizada pelas estiagens que, por uma trágica ironia do destino, sofre também as devastações das cheias. A mesma água que se torna obcecação e ansiedade, permanente do povo cearense transformou-se agora no mais perigoso agente de destruição. A fonte tão desejada da vida tornada em fonte de desolação e morte.
E os mesmos lúgubres cortejos à busca de sustento, abandonando as terras calcinadas, formam-se neste momento, fugindo à fúria devastadora das águas, que tudo submergem e destroem.
As notícias dizem-nos que, com a rotura do grande açude de Orós, ainda incompleto, mas que já represava cerca de 700 milhões de metros cúbicos de água, foram completamente inundadas as cidades de Jaguaribe, Limoeiro, Castanhão e Jaguaribara, estando ameaçadas do mesmo perigo, com o caminhar da torrente avassaladora, as cidades de Aracati, Jaguareana e Itaicaba. Corpos humanos e de animais boiavam na corrente. Numerosas famílias esperavam resignadamente, nas ilhas formadas sobre as planícies inundadas, que as fossem retirar de tão dramática situação.
O estoicismo do povo cearense é neste momento mais uma vez posto à dura prova. Mas não é apenas neste estado que as chuvas diluvianas fizeram destruição de homens, animais e plantas. Foram flagelados também o Rio Grande do Norte, o Piauí e outros, estados. Os açudes, tão esperançadamente construídos para reter as preciosas águas, estão neste momente gravemente ameaçados.

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Tudo isto, Sr. Presidente, nos diz respeito, pois que diz respeito à nossa comunidade: uniu comunidade que não é de interesses, pois nela sobrelevam outros sentimentos mais nobres.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - «Carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, vibrando connosco no influxo das mesmas emoções, nas horas de júbilo e pesar».
Repito assim, mais uma vez, as palavras inspiradas que o insigne Presidente Kubitcheck de Oliveira dirigiu a Portugal. Repito-as e devolvo-as, porque elas traduzem magistralmente os sentimentos que todos nós dedicamos ao seu grande Brasil.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - É esta uma hora de pesar para o Brasil; é, portanto, uma hora de pesar para a Nação Portuguesa. Quero, pois, desta Casa, que representa o povo- português, dirigir uma expressão de viva e fraterna solidariedade ao povo irmão do Brasil, neste dia de tristeza e dor para a comunidade luso-brasileira.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: a Câmara ouviu com verdadeira emoção as palavras do Sr. Deputado Sarmento Rodrigues. É natural. Se há acontecimentos externos que tenham dentro de Portugal repercussão profunda, esses são os acontecimentos que se produzem no Brasil. Vibramos de alvoroço com as suas alegrias. Mas, sobretudo, sofremos com as suas desgraças, como se recaíssem sobre membros da nossa comunidade.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Assim, a catástrofe que atingiu centenas de milhares de lares brasileiros tocou a nossa sensibilidade. O País tem acompanhado com verdadeira angústia a marcha inexorável da imensa tragédia, que deixou tantos irmãos nossos sem lar, sem tecto e sem recursos.
Creio, assim, que a Câmara, intérprete dos sentimentos da Nação, quererá afirmar ao Brasil a sua solidariedade.
E, em nome da Assembleia, enviarei ao Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil a expressão da nossa solidariedade.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Melo e Castro: - Sr. Presidente: desejava solicitar a atenção do Governo para a necessidade, que se torna cada vez mais instante, de ser resolvido o problema, que há muito se arrasta, da construção do porto de Sines.
Os dados do problema são conhecidíssimos das instâncias competentes, tantas e tantas vezes tem sido feitas tentativas para a sua resolução. Posso dispensar-me do os desenvolver.
Trata-se de um concelho com 80 por cento da sua actividade dependente da pesca, que, por não ter ainda conseguido o seu molhe de abrigo, todos os anos vê a maioria da população durante a invernia caída na miséria e no desânimo.
Trata-se de uma obra que a técnica aponta como simples e pouco onerosa, porque as condições naturais da baía são excepcionais. É só completar a obra da natureza.
Trata-se de uma necessidade evidente da segurança geral da navegação, porque na longa extensão de 200 km de costa, de Setúbal a Lagos, não há qualquer abrigo.
Trata-se de um empreendimento que, par acréscimo, rasgaria horizontes a necessária vitalização, que todos sentem, do Baixo Alentejo.
Trata-se de salvar da imerecida miséria generalizada - volto à primeira razão - uma terra que já foi próspera. Já teve consideráveis valores de indústria corticeira, que, pouco a pouco, se vêm concentrando deploràvelmente à roda de Lisboa.
Dispõe ainda de consideráveis valores de indústria de pesca - mais de 400 barcos registados -, mais, na inclemência das condições em que, sem o porto, os pescadores labutam, com muita dificuldade se mantêm.
O porto de Sines foi incluído, em 1944, no chamado plano portuário e foi previsto que estaria construído em 1952.
Foi uma grande tristeza não ter sido incluído no II Plano de Fomento, como tanto se pediu.
O ilustre Ministro das Obras Públicas mandou recentemente apressar a conclusão do projecto.
O distinto director-geral dos Serviços Hidráulicos, há meses, em discurso público, aludiu, no termos muito expressivos, à necessidade e à facilidade desta obra.
Os Sinienses não perderam, nem querem perder, as esperanças de que esta necessidade há-de ser satisfeita por um Governo que já satisfez outras semelhantes de outros pontos do País. Esta é, agora, verdadeiramente clamorosa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Peço para ela a boa vontade do Governo.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Rocha Peixoto: - Sr. Presidente: se o assunto que hoje pretendo abordar tem para a sede do meu distrito, Vila Real, um interesso turístico, além de outros, não menos interessa o mesmo assunto ao País. ao seu património cultural, à sua herança histórica, cujo valor e expressão é grato e imperativo salvaguardar e amorosamente atender.
E quando se trata de documentação, que preenche e esclarece lacunas e obscuridades de um passado remoto; quando ela revela, exemplifica e ilustra aspectos da vida material e espiritual da nossa milenária, ascendência, constituindo lição rara, e por vezes única, de uma vivência extinta, então é crime de lesa-cultura, é roubo ao património nacional, é degradação de nós próprios, não legar aos vindouros intactas, se não valorizadas, as fontes onde mergulham as raízes da nossa formação histórica.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Se não é menos grato o dever de salvar da ruína ou perda as florações de uma cultura que, no decurso de séculos, dia a dia vem sendo elaborada, cuja feição e pendor essas florações definem e atestam, só no estado e conhecimento daquelas fontes assenta a explicação da sua génese, do seu conteúdo e do seu peculiar desenvolvimento através das idades.

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Vem este breve e despretensioso preâmbulo a propósito de uma notícia que entendo dever trazer a esta Assembleia e do apelo que, por mor dela, hei-de formular no final destas ligeiras considerações.
Sr. Presidente: não longe de Vila Real, a uns escassos 8 km, na estrada que dali sai para Sabrosa, numa placa camarária se inscreve uma designação toponímica que, para a grande maioria dos transeuntes, nada representa, nada evoca.
Todavia, o lugar assinalado foi durante a ocupação romana da Península talvez importante povoação, mas certamente um recinto sagrado, onde se exerceu o culto de várias divindades, algumas destas orientais, as quais Roma, sem escrúpulo e avisadamente, incorporava no seu Olimpo, à medida que as legiões vencedoras lhe acrescentavam as terras dos seus adoradores. Não foi Roma, como se sabe, exigente em matéria religiosa.
Panóias, ou Panoias, se chama esse lugar, nome que correspondeu a uma região ou distrito da antiga divisão administrativa romana da Península, com a categoria de município, pela primeira vez enumerada como tal nos relatos do Concílio de Lugo, realizado no tempo do Reino Suevo, com o qual confinava pelos montes Narvázios, maciço montanhoso formado pelas actuais serras do Marão, Meia Via, Mesio e Alvão. Hoje o que se chama Panoias pertence à actual freguesia de Vale de Nogueiras, do concelho de Vila Real.
Mercê de informações que um erudito pároco daquela freguesia e a Câmara de Vila Real enviaram à Academia Real da História, publicou em 1762 o padre e académico daquela agremiação D. Jerónimo Contador de Argote ...

O Sr. Carlos Moreira: - Muito bem!

O Orador: -... no livro da sua autoria Memórias para a História Eclesiástica, da Arcebispado de Braga, a primeira notícia e interpretação daquela estação arqueológica.
Segundo o mencionado Contador de Argote, ali se viam vestígios de povoação romana, e não raro os lavradores, ao arrotear as terras, arrancavam pedras lavradas, frisos de diferentes feitios, telhas, tijolos, «tudo de barro muito fino e encarnado que não há por aquelas partes», como ele diz.
Além disso, nas paredes da igreja e de algumas casas viam-se capitéis, bases, pedaços de colunas, frisos e outras muitas obras e até pedras com inscrições naquelas paredes incorporadas, como delas fazendo parte.
As principais, porém, e mais curiosas antiguidades são enormes fragões, cujas inscrições e pormenores denotam a remota existência naquele lugar de um santuário luso-romano de data indeterminada, mas seguramente anterior a Constantino e depois de Augusto.
Argote considera-o dedicado aos deuses infernais; o sábio Leite de Vasconcelos diz que era um templum onde, ao lado da principal divindade, Serápis, se adoravam várias outras. Este preclaro e arguto investigador, a quem Panoias deve aturado estudo, diz que ali «a religião dos nossos maiores deixou vestígios valiosíssimos».
Já o conselheiro Hintze Ribeiro, como Ministro das Obras Públicas, havia, mandado copiar as inscrições que existiam em Panoias, donde se infere o interesse que elas mereciam à investigação histórica, e ainda prestimoso trabalho fora publicado há poucos anos, nos Anais do Instituto do Vinho do Porto, pelo Dig.mo Sr. Dr. Russel Cortês.
Leite de Vasconcelos ainda viu Panoias quase tal qual a descreveu Contador de Argote, mas já um dos monumentos epigráficos de alto valor havia desaparecido «sob o camartelo de um pedreiro analfabeto».

O Sr. Carlos Moreira: - Isso até os alfabetos fazem, quanto mais os analfabetos.

O Orador: - Sr. Presidente: não é meu intuito, nem os ilustres colegas mo tolerariam, vir aqui repetir as lições dos mencionados investigadores acerca de Panoias e das antiguidades e vestígios que permanecem dela. As referências feitas têm outro objectivo: assinalar a importância daquela estação arqueológica.
E, assim, posto em relevo o interesse que o seu estudo mereceu àqueles investigadores, mormente ao infatigável mestre Leite de Vasconcelos, e ainda a Hintze Ribeiro, ao cuidado do qual se deve a leitura e interpretação do citado monumento epigráfico desaparecido, impende sobre mim o dever, já que trouxe o assunto ao conhecimento desta Assembleia, de narrar o estado actual do santuário de Panoias e pedir a intervenção que ele inadiàvelmente reclama.
Já Argote, na minuciosa notícia por si publicada, descreve a imprópria e criminosa utilização do objectos e materiais que, dispersos e truncados, ele vira nas paredes das casas, na igreja, na casa do reitor. Alude até à tradição, segundo a qual as muralhas da Real Vila de D. Dinis, hoje Vila Real, teriam sido levantadas com as pedras da antiga Panoias. Mas ainda viu muita coisa.
Dá a nota e descrição de onze grandes rochedos onde, a julgar pelas tinas abertas no granito e outros curiosos pormenores, e ainda pelas inscrições, já a custo lidas, se deduz que ali se faziam sacrifícios de vítimas e se entrevê, segundo Leite de Vasconcelos, a existência de mistérios serápicos ou cerimónias secretas de iniciação. Viu ainda uma inscrição, hoje desaparecida, mas talvez não perdida, em caracteres que o mesmo Argote diz serem da escrita do algum povo da península pré-romana, dos Túrdulos, talvez, pois que não são latinos, nem gregos, púnicos ou hebraicos, nem de outras línguas orientais, monumento de especial valia.
Leite de Vasconcelos, quando visitou Panoias, já a documentação noticiada por Argote estava diminuída.
Ora, a partir deste momento, a acção corrosiva do tempo e a ignorância e a irreverência dos homens continuaram a fatal ou criminosa destruição daquele recinto sagrado. O tempo tornara quase ilegíveis as inscrições, algumas das quais felizmente reproduzidas, e soterrara vestígios talvez ainda recuperáveis. Os rochedos trabalhados servem de eiras ou de alicerces de tugúrios e palheiros. Os musgos e construções escondem, decerto, muitas das coisas a que alude Contador de Argote, e mais paredes têm sido feitas à custa de amputações naqueles rochedos.
Escavações bem dirigidas, expropriações de humildes casebres e buscas pormenorizadas e bem orientadas poderão juntar ao que ainda existe valioso contributo.
E perguntar-se-á: mas nenhuma autoridade, nenhum estudioso, um curioso sequer, tentou entravar essa iconoclastia tenebrosa?
Às juntas de freguesia e às câmaras municipais, que eu saiba, nada se deve: têm sido indiferentes às falas do passado ou alérgicas à poeira das idades. É, porém, de justiça aqui mencionar o nome do um estudioso, que tudo tem tentado para salvar da perda total tão importante monumento: o médico vila-realense Dr. Júlio Teixeira. Depois de escrever a história de Panoias, ali levou entidades qualificadas, entre as quais o saudoso Ministro Duarte Pacheco. Este, comovido e indignado, porque encostado a um dos fragões referidos se construíra um palheiro, mandou que se expropriasse

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e derruísse imediatamente, ainda que ele próprio pagasse do seu bolso os encargos disto resultantes, e prometeu que, regressando a Lisboa, trataria desde logo de salvar Panoias.
Parece que os deuses infernais, ali reverenciados, se apostaram em vingar-se daquele que os exporia à luz dos deuses do Céu, arrancados que fossem às trevas onde permanecem: Duarte Pacheco, volvido muito pouco tempo, desaparecia brutalmente do número dos vivos.
Mas, Sr. Presidente, ainda não morreram todas as esperanças. Presentemente alguém se interessa, em continuação de outros esforços abaixo referidos, em salvar da ruína completa o recinto sagrado de Panoias: é a comissão regional de turismo da serra do Marão, impulsionada pelo seu inteligente e dinâmico presidente, engenheiro agrónomo Pedro Manuel Alvelos. As fragas de Panoias, na sua rudeza e agreste apresentação, reclamam necessária e justíssima protecção. Assim diz, e muito bem, aquele ilustre engenheiro.
O santuário luso-romano de Panoias foi considerado monumento nacional por portaria de 13 de Julho de 1951, publicada no Diário do Governo n.º 189, 2.ª série, de 16 de Agosto do mesmo ano, na qual é fixada a sua zona de protecção.
Na Direcção de Finanças do concelho de Vila Real existe um processo pendente, desde que a Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes levantou a questão, em 2 de Fevereiro de 1949. Vários ofícios se trocaram entre aquela Direcção de Finanças, a Repartição do Património da Direcção-Geral da Fazenda Pública e a Secção de Finanças de Vila Real. Foi até lavrado um auto de avaliação, em 2 de Março de 1954, tendente a realizar-se a expropriação amigável das casas e casebres incluídos na zona de protecção do referido santuário.
Porque a comissão de turismo se interessou pelo assunto, a esta comissão foi comunicado, pela 2.ª Secção da Direcção-Geral da Fazenda Pública, em Novembro de 1958, que S. Exa. o Ministro das Finanças mandara promover à abertura do crédito de 149 contos para proceder à referida aquisição, por venda amigável ou expropriação, dos prédios que interessam à defesa e desafogo do santuário de Panoias.

O Sr. Carlos Moreira: - Como V. Exa. sabe, e creio que já disse, não há a menor responsabilidade por parte do Ministério da Educação Nacional. Quanto ao mais, não sei se é uma questão de verba, e V. Exa. conhece quanta importância ela tem nestes problemas.

O Orador: - Evidentemente, e, por isso, apenas faço um apelo ao Ministério da Finanças, visto que a Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes é que levantou o problema ùltimamente.

O Sr. Carlos Moreira: - Que cumpriu o seu dever!

O Orador: - A insistências posteriores sobre o mesmo assunto, foi respondido àquela mesma comissão que S. Exa. o Ministro das Finanças, por seu despacho de 3 de Julho de 1959, mandava aguardar.
Sr. Presidente: longe de mim o intuito de fazer o mais leve comentário à decisão última de S. Exa. o Ministro das Finanças, muito ilustre membro do Governo. Pretendo apenas chamar mais uma vez a atenção dos Poderes Públicos para aquele precioso monumento arqueológico e afirmar que cada mês que decorre sem intervenção apropriada é mais um passo para a ruína ou desaparecimento de valioso elemento de estudo de uma época histórica de que poucos vestígios
restam no distrito de Vila Real e que é, além disso, interessante para o conhecimento geral das antiguidades da Nação.
Para finalizar, não me eximo à obrigação de aqui reproduzir o que acerca do abandono a que se votou o santuário luso-romano de Panoias disse Leite de Vasconcelos.
Depois de classificar de «preciosos» os monumentos arqueológicos daquele recinto e prever a sua perda completa se a Câmara Municipal não cuidasse de os adquirir e resguardar, o que para ela constituía dever cívico, anota a perda já então verificada de valiosa inscrição e clama: «Quem toma a responsabilidade desta perda científica ?»
E continua apostrofando:
«Não se pode alegar ignorância do valor da inscrição, porque em Maio e Junho de 1894, num artigo publicado em dois periódicos de Vila Real, chamei a atenção da Exma. Câmara para a importância da estação arqueológica de Panoias, quando ainda estava em pé o referido monumento, mas mesmo independentemente do meu despretensioso artigo, toda a gente ilustrada de Vila Real sabe quanto valem os fraguedos romanos de Panoias.
Portanto, ninguém se admire se no futuro, em épocas em que os estudos arqueológicos, inspirados por nobres sentimentos de patriotismo e de verdadeiro e desinteressado amor da ciência, florescerem mais que no presente, alguma voz severa e rude se levante, e, evocando a memória dos que vivem agora, e que, podendo salvar um importante documento histórico, o não salvam, fulminar contra eles uma dessas acusações formidáveis, que o historiador, na sua tremenda severidade impassível, não poupa jamais a quem uma vez prevaricou».
Sr. Presidente: não queiramos merecer tão severa e justa reprimenda. Rogo daqui ao preclaro Ministro das Finanças, em nome dos superiores interesses do património e cultura nacionais, tão respeitados e servidos pelo seu alto espírito, que salve sem demora o que ainda pode salvar-se daquela curiosa e importante estação arqueológica.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Tarujo de Almeida: - Sr. Presidente: o nosso ilustre colega e distinto administrativista Sr. Deputado Nunes Barata, em brilhante intervenção, chamou a atenção desta Assembleia para a promessa contida no relatório do Decreto-Lei n.º 42 536, de actualização e nova publicação integral do Código Administrativo. Vivendo com real preocupação os problemas políticos dos nossos municípios, julgo de meu dever trazer ao conhecimento desta Assembleia, chamando para ela a atenção do Governo, a situação chocante de alguns presidentes de câmaras municipais.
Com a redacção dada ao artigo 72.º do Código Administrativo pela Lei n.º 2102, tornou-se, por assim dizer, imperiosa a renovação frequente nos cargos de presidentes de câmaras municipais.
Mas a situação de tão abnegados servidores do bem comum nos municípios de 3.ª ordem e nos rurais de 2.ª ordem, quando se trate de funcionários administrativos - médicos e veterinários municipais ou funcionários dos serviços municipalizados -, dada a impossibilidade legal de acumulação de funções, é clamorosamente injusta e imoral.
É injusta e imoral não só porque a lei os não considera em comissão extraordinária de serviço público,

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como em outros casos, mas também porque - embora o facto pareça incrível - os obriga pràticamente a pagar ... para servir!
De alguns casos sei eu, de médicos, veterinários municipais ou directores de serviços municipalizados, que, chamados no desempenho de tão absorventes e espinhosas missões, estão a pagar, com permanentes sacrifícios materiais, a disciplinada e coerente atitude de uma verdadeira consciência das suas responsabilidade pessoais e políticas. E para alguns esse sacrifício é quase incomportável.
Na vida política dos municípios de 3.ª ordem e dos rurais de 2.ª ordem, dada a pequenez do campo de recrutamento das pessoas aptas para o desempenho do cargo de presidente de câmara, é frequente ter de se lançar mão quer de médicos e veterinários municipais, quer de funcionários dos respectivos serviços municipalizados, como pessoas que melhor conhecem e sentem os problemas do município. Impõe-se, a meu ver, urgente e imediata revisão dos preceitos do Código Administrativo no que concerne a estes funcionários administrativos, considerando-os, quando investidos em tais cargos, em comissão extraordinária de serviço público e com o direito a optar pelo seu ordenado de funcionários ou polo subsídio de representação que, como presidentes de câmara, lhes é atribuído.
Fazer justiça a tais servidores é não só alargar o campo de recrutamento da administração local como estimular os que já servem com sacrifício a fazer mais e melhor.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa o parecer da Comissão de Contas desta Assembleia sobre as coutas da Junta do Crédito Público. Vai ser publicado no Diário das Sessões.
Vai passar-se à

Ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em discussão na generalidade o projecto de lei sobre a remuneração dos corpos gerentes de certas empresas.
Tem a palavra o Sr. Deputado Camilo de Mendonça.

O Sr. Camilo de Mendonça: - Sr. Presidente: subo a esta tribuna consciente, a uma voz, da importância, da, gravidade e do melindre - para usar uma expressão muito empregada a propósito desta questão - dos problemas políticos, económicos e morais que o projecto do lei em discussão suscita.
Todavia, deve ser claro a qualquer inteligência que não utilizei a faculdade constitucional sem ter meditado, longamente, na justeza das medidas propostas, medido, com frieza, as suas vantagens e inconvenientes, e ponderado, reflectidamente, conselhos amigos de que não me dispensei.
Foi depois de cumprido este ritual que apresentei o projecto de lei que alguns dos nossos mais ilustres colegas se dignaram subscrever, honrando-me e emprestando-me o seu prestígio e a sua autoridade.
Permito-me recordar, neste momento, que dois deles se não encontram entre nós: um, o Dr. João Dias Rosas, entretanto chamado a funções governativas; outro, o general Venâncio Deslandes, ùltimamente nomeado embaixador em Madrid.
Sr. Presidente: estas medidas constituem para mim uma espécie de «lei mental». Efectivamente, desde que me conheço ou, pelo menos, desde que conheço de perto certos aspectos da nossa vida social e política e me apercebi do sentir da nossa gente, não tenho deixado de defender a promulgação de medidas que limitem abusos e saneiem o ambiente.
Se bem me recordo, em afirmações que me foi dado produzir em 1942, preconizei-as; em 1947, em discurso que proferi por ocasião da adesão pública à União Nacional de algumas centenas de jovens, então jovens, da minha idade, reclamei-as; em 1949, durante a campanha eleitoral, de novo, ao sabor das exigências do debate político, fui levado a retomar o tema; em 1953, ao falar pela primeira vez nesta Câmara, referi-me - por sinal com visível carinho e marcado apoio dos ilustres Deputados - a estas questões, criticando procedimentos, apontando manifestações condenáveis e insistindo pela necessidade de intervir com medidas moralizadoras; em 1957, durante a campanha eleitoral, tive, uma vez mais, de vir a terreiro e posso dizer que quase me comprometi a tomar a iniciativa de legislar sobre a matéria se entretanto medidas eficazes não houvessem sido adoptadas; e, por fim, ao tomar parte no debate sobre a lei que aprovou o II Plano de Fomento, retomei ainda o tema, abordando-o com certa crueza e sem reticências.
Dezoito longos anos - anos intensamente vividos - não bastaram, assim, para me convencer da desnecessidade dessas medidas, antes me demonstraram a sua indispensabilidade; nem chegaram para me obscurecer o espírito, nem, especialmente, para me entorpecer a sede de justiça e a crença num ideal.
Sei bem que não era o único - felizmente - a pensar assim. Por toda a parte, de norte a sul do País, especialmente pelas províncias portuguesas de aquém e de além-mar, muitos e muitos destacados dirigentes proclamavam as mesmas preocupações, requeriam as mesmas medidas, defendiam as mesmas soluções.
Nesta Câmara, vezes sem conta, sob os mais diversos pretextos e nas mais variadas circunstâncias, estas questões foram abordadas com clareza e até incisivamente.
Ùltimamente, devo destacar quer a intervenção do nosso decano, o ilustre e intemerato parlamentar Dr. Paulo Cancella de Abreu, a cuja coragem moral, integridade de carácter e firmeza de convicções desejo render sincera homenagem ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... quer um dos artigos do projecto de lei de alteração constitucional apresentado pelos Drs. Carlos Moreira, Pinto de Mesquita, Cid Proença e outros Srs. Deputados, quer ainda as intervenções dos Drs. Homem Ferreira e Homem de Melo acerca da ratificação do decreto-lei que alterou os mandatos dos presidentes das câmaras municipais.
Cuido, de resto, Sr. Presidente, ser esta uma matéria sobre a, qual há, no País, uma impressionante unanimidade de vistas, unanimidade que se estabelece por sobre quaisquer divergências de convicções religiosas, de doutrinas políticas, de concepções económicas, de condições sociais, e a que talvez adiram mesmo alguns dos que desfrutam dessas situações ...
Sem ignorar que essa unanimidade de vistas tem sentidos diversos - para a grande maioria, quando pretende eliminar essas situações, e para uma minoria, quando, criticando-as, mais deseja a sua continuação, como arma de combate contra o Regime -, sem deixar de fazer esta distinção, extraio dela mais um pesado

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argumento para a urgência de agir pronta e decididamente neste campo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: não obstante a linha doutrinária do Regime ser definida, a consciência nacional ser clara, a posição de vários Deputados ser persistente, firme, e a nossa consciência política ser nítida a este respeito, dizem-me ter a apresentação do projecto de lei suscitado certas interpretações e, também, ter-se prestado a consequentes especulações.
Não fugirei a umas nem a outras.
As interpretações, que certamente não provieram de alguns bem instalados, perdão, bem intencionados, foram especialmente as de que o projecto de lei aparentava ou teria mesmo intenções reservadas, se inspirava em sentimentos mesquinhos de inveja, tinha a marca de socialismo, era inoportuno, estava ferido de propósitos demagógicos e, também, ou até, exprimia um idealismo fora de tempo.
Como quem mal não usa mal não cuida, quase me ia surpreendendo, apesar dos cabelos brancos e da forte vivência de já perto de duas décadas. Depressa reflecti. Como poderia uma medida que tão clara se mostrava e em tudo deveria aparecer como concreta, precisa e objectiva esconder fosse o que fosse? Mistério indecifrável. Como seria possível deixar de entender, sem sombra de dúvida, aquilo que directamente se visava? Não atinjo.
Ter-se-á pensado que poderia servir de pretexto para referir situações, casos, pessoas? E porquê e para quê se havia de descer a essa inferioridade de processos?
Aqui interessam tanto os objectivos como desinteressam os casos e, ainda mais, as pessoas.
Julgava eu que o País havia de entender claramente do que se tratava e que fins se visavam.
Ter-me-ei enganado? Pelo que diz respeito ao País, cuido que não.
Ensinam os estudos sobre os grupos de pressão - ou sindicatos de interesses, como talvez devesse dizer-se à portuguesa -, que hoje constituem abundante e elucidativa literatura, revestirem-se as manobras que estes grupos executam um defesa das suas conveniências dos mais esquisitos e polifórmicos processos. Será este um deles?
Bem vistas as coisas, talvez se trate, mais simplesmente, da expressão de uma mentalidade sectária que para aí vagueia e sempre se caracterizou por atribuir invariavelmente às atitudes, por mais claras que sejam, segundas intenções.
Esse procedimento é, afinal, consequência lógica de tais mentalidades, que, com serem incapazes de proceder de outro modo, também não podem deixar de julgar por si próprios os outros ...
Teriam as medidas sido ditadas por um sentimento de inveja?
Admito que haja no conjunto de sentimentos de revolta contra certas situações inveja à mistura com as mais diversas expressões de reacção.
Por mim, apercebendo-me, embora, de graves defeitos pessoais que não tenho podido ou sabido vencer, nunca a minha consciência me acusou do feio pecado da inveja.
Se devo a Deus o dom de não ter nascido rico, não lhe devo a graça de ter nascido pobre. Estou colocado, assim, numa situação média, que devo ao esforço e temperança de sucessivas gerações que amaram a terra e da terra e com a terra viveram, situação que sempre me permitiu apreciar os ricos sem inveja nem rancor e os pobres sem desdém nem soberba.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - É inveja porquê e de quê? Porque pode resistir às mais variadas solicitações o insistências, porque defendi a modéstia da rainha condição, porque renunciei a comodidades para ser livre e independente?
Inveja de quê? De não ter aceitado situações para, com inteira autoridade moral e sem quaisquer sentimentos mesquinhos, poder - e dever - criticar e combater? Inveja minha ou rancor alheio?
Mas terão as medidas propostas cunho socialista?
É costume velho e constitui habilidade primária rotular com estranhos e sonantes palavrões, capazes do amedrontarem o burguês pacífico, quanto nos não agrade ou convenha, mesmo que se não tenha percebido precisamente em que consiste.
Estou em crer que quem assim fala com tanta facilidade deve ter uma, ideia muito simplista das doutrinas e dos sistemas. Talvez contraponha, em pura dicotomia, socialismo e capitalismo, esquerda e direita, esquecendo que até entre o Céu e o Inferno há o Purgatório ...
E claro que quem defenda o capitalismo em toda a sua grandeza económica e miséria social e nunca se tenha apercebido de quanto se tem passado pelo Mundo nos últimos 00 anos, nem do facto de havermos entrado numa segunda revolução industrial - da automatização e da energia nuclear -, pode ter razão, alguma razão, pois para os saudosos liberais a intervenção do Estado constituía um verdadeiro sacrilégio.
Quem, precipitadamente, tomar as medidas de liberalização adoptadas dentro de alguns países e entre os diferentes países como regresso a uma concepção liberal pode julgar-se com razão, embora não tenha nenhuma.
O liberalismo económico morreu - proclamava o Sr. Presidente do Conselho há menos de dois anos. Afirmações idênticas podem ser encontradas nas diferentes Semanas Sociais católicas, na generalidade dos sociólogos e dos economistas. Morreu porque se destruiu, morreu porque a complexidade dos problemas impôs o recurso a soluções intervencionistas, morreu porque as exigências sociais obrigaram a intervenções sucessivas, etc. O capitalismo liberal não é de hoje, pertence ao passado.
E, num país em vias de desenvolvimento, aquilo que cada dia mais evidente se há-de tornar é a constante necessidade de intervenções do Estado para regular a vida económica em ordem ao bem comum, em vez de a deixar correr ao sabor de alguns bens particulares ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Também certas medidas liberalizadoras recentemente tomadas, em certos países, não podem deixar de ser vistas à luz das realidades desses mesmos países - economias industriais maduras, com rendimentos elevados dos operários, que, social e culturalmente, venceram o complexo de inferioridade que durante dezenas de anos lhes foi peculiar, para o que muito deve ter contribuído a prática da co-gestão.
Que nesses países já seja possível abrandar a intensidade de intervenção é atitude que se vê com satisfação, mas que nenhuma conclusão consente extrair para aqueles em que a industrialização está longe de se ter completado. Em qualquer caso, carece de ser referida ao

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grau de intervenção ali atingido e relacionada com a persistência de uma estreita regulam cuia cão das sociedades, a vigilância dos monopólios e das concentrações de poder económico, a representação directa do Estado nas empresas, decidindo, conselhos pântanos, etc.
E o socialismo será a mesma coisa que intervenção reguladora do Estado, por mera lei, que fica aquém, pelo menos em extensão, de quanto geralmente se estabelece nos vários países em matéria de regulamentação das sociedade anónimas?
Sinceramente só compreendo uma interpretação dessas por parte de quem esquematize os sistemas, sem mais preocupações nem dificuldades, em socialismo e capitalismo.
De resto, a Câmara Corporativa aprovou o alargamento das sociedades referidas no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, praticamente, para os limites propostos, e as limitações pretendidas são precisamente as que aquele artigo e os sucessivos despachos interpretativos do Conselho de Ministros, desde há 25 anos, estabeleceram. Onde está o socialismo, a tendência socializante da medida proposta?
Na limitação de remunerações dos corpos gerentes de curtas empresas dependentes do Estado ou dos seus favores, em grau diverso, ou na própria situação dessas empresas, situação preexistente?
Ou pretenderá defender-se, nas actuais condições, um capitalismo tout court? Ou colocá-lo em contraposição, de única alternativa, a socialismo?
A ser assim, por mim, contrariado embora, optaria pelo socialismo, já que o outro termo da alternativa, a prazo mais curto do que pode julgar-se, nem sequer seria o capitalismo, porque seria, inevitavelmente, o comunismo ...
Será então o projecto-lei inoportuno?
Inoportuno em razão, de matéria ou em razão de momento?
Por mim, não sei se seria mais oportuno em razão da matéria do que do momento, de tal forma e com tal violência uma e outro o requeriam clamorosamente.
Já se referiu responder o projecto de lei a um imperativo da nossa consciência política e da opinião pública traduzidos em sucessivas manifestações.
Deve agora acrescentar-se que a Câmara Corporativa já em 18 de Abril de 1955 -há, portanto, cinco anos - reconheceu poder haver vantagem em rever o artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, e ainda que a mesma Câmara não o considerou agora inoportuno.
Disso não o acusou!
E porque havia de ser inoportuno?
Mão acontecerá que o surto de desenvolvimento económico, com o estar a intensificar-se, está a acentuar a tendência para a criação de concentrações de poder económico, a reduzir ou anular as formas de concorrência e a procurar modos de predomínio político?
Não estará a acontecer que as tensões sociais tendem a agravar-se, em consequência daqueles factos e de frequentes exemplos de ostentação evidente cie que o extraordinário e desproporcionado comércio de antiguidades e a generalização de sumptuosas festas de novos-ricos são manifestações conhecidas e apontadas?
Inoportuno porque pretende sanear um procedimento e moralizar um aspecto da nossa vida? Só poderá legitimamente apodar-se de inoportuno por ser tardio, por já dever ter sido apresentado há mais tempo.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Ou acontecerá que se tem por inoportuno por se ver com propósitos demagógicos?
Demagógico quer dizer que agrada ao povo.
Neste sentido cuido, sem grande perigo de erro, que o projecto é demagógico. Agrada ao povo.
Mas quem é, neste caso, o povo? O País, com excepção de alguns centos, poucos centos de portugueses.
E demagógico porque lisonjeia sentimentos inferiores ou porque pode concitar adesões generalizadas?
Cuido que seria bem pior permitir que se continuasse a murmurar por toda a parte, falar em todo o lugar, a verberar por todas as formas, a especular por todos os processos com esta questão, só porque legislar sobre ela poderia parecer demagogia!

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Salvo o devido respeito, tal modo de ver é uma teoria parecida com a prática do avestruz que esconde a cabeça para não ver o perigo. Mas, bem vistas as coisas, há gente capaz de tudo!

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Devo pela minha parte declarar que, pesadas as vantagens e os inconvenientes da apresentação, apenas sob o ponto de vista, da conveniência pessoal, não leria apresentado o projecto de lei.
Não ignorava valer mais o rancor de alguns do que a simpatia fortuita de muitos ... quando, para mais, não tenho qualquer ambição pessoal a satisfazer: nem política, nem, muito menos, de riqueza. Deixo-lhes o cuidado de o verificarem.
E no fim, fica-me a dúvida - tratar-se-á de um idealismo fora de tempo? É possível.
Não me custa acreditar que numa sociedade em que o estreito materialismo cada vez mais impera se considerem manifestações de um idealismo quiçá romântico, quiçá cândido, atitudes que não visem benefícios materiais.
Triste sinal dos tempos ... Mas, daí talvez não. Por muito materialismo que viceje, precisamente onde devia imperar espírito cristão, pertenço ao número dos que acreditam na boa fé, na isenção, na capacidade de dúvida, no espírito de sacrifício de muitos e muitos portugueses, de tantos que, se quiserem, podem varrer o mercantilismo e o seu clima da nossa terra.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Por mim acredito. E porque acredito dispus-me a agir. Ao fim, verei se me enganei.
Sr. Presidente: as questões que se pretendo visar com o projecto de lei constituem um problema moral, um problema político e, também, um problema social.
Constituem um problema moral sob o tríplice aspecto da acumulação de funções, da utilização de situações e da disposição do supérfluo.
Constituem um problema político na medida em que tais situações ferem a consciência e a opinião públicas, contrariam os princípios políticos do Regime, afectam quantos devotada e desinteressadamente o servem e traduzem processos de tentativa de subordinação ou, pelo menos, de conformação do poder político pelos interesses económicos, pela concentração do poder económico.
Constituem, por fim, e principalmente, um problema social grave enquanto revelam contrastes chocantes, desequilíbrios que afectam a estabilidade e podem originar a intranquilidade e, até, a revolta social.
Cuido que não será necessário, nem sequer útil, desenvolver muito estes vários aspectos, tão óbvios aparecem ao espírito e à consciência de cada um.

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Pelo que respeita à ordem moral lembrarei o esforço que os católicos dos vários países têm feito com vista a dilucidar estas questões, nomeadamente para definhas relações da moral e da economia, na sequência das encíclicas e mensagens pontifícias.
A Semana Social dos Católicos da Itália, realizada em Bérgamo, em 1956, ocupou-se especialmente destes problemas sob o título genérico «Vida Económica e Ordem Moral», em que avultam as lições do Prof. Francisco Vito e Mons. Pietro Pavan.
O espírito agudíssimo de Sua Santidade Pio XII constante e insistentemente se debruçou sobre estas actualíssimas questões. Na carta a Charles Flory, quando da 39.ª Semana Social de França, havida em Dijon, em 1952, sob o tema «Riqueza e miséria», expressou-se nos termos seguintes:

Nós próprios temos em diversas circunstâncias recentes (discurso de 2 de Novembro de 1950 e de 8 de Março de 1952) deplorado o crescimento intolerável das despesas de luxo, das despesas supérfluas e desrazoáveis que contrastam duramente com a miséria de um grande número, seja do proletariado, das cidades e dos campos, seja entre a multidão dos pobres que se qualificam de economicamente débeis.

Na carta dirigida ao presidente das Semanas Sociais de Espanha, em 8 de Maio de 1956, a Secretaria de Estado de Sua Santidade, abençoando os trabalhos da XVI Semana, realizada em Sevilha, naquele ano, sob a rubrica «O sentido social», fez as seguintes considerações:

A abundância de comodidades e prazeres que a técnica moderna oferece ao homem é origem de gastos luxuosos «que crescem de maneira intolerável e tanto contrastam com as aflições e a miséria da maioria», verdadeiras «consequências de uma ideologia e de uma vida infeccionada pelo materialismo». «Tudo isto produziu um desmedido afã de dinheiro, uma crescente ambição de fazer girar as coisas em torno de si mesmo, o não saber distinguir as autênticas necessidades das fictícias. E não é porventura a cobiça de bens terrenos que o poeta pagão chamava já com justo desdém auri sacra fames; não é acaso o sórdido egoísmo que com demasiada frequência preside às mútuas relações individuais e sociais ..., o que tem arrastado o Mundo ao extremo que todos vemos e deploramos»?
Em situação semelhante o homem, não encontra nada que lhe seja supérfluo; tudo lhe parece pouco e não pensa no bem comum; crê que corresponde ao Estado esta atitude e que a de lhe não cabem senão aquelas coisas que as leis civis impõem como obrigatórias.

As acumulações de cargos, mesmo nas empresas privadas, são, entre nós, constitucionalmente, definidas «como contrárias à economia e moral públicas» e ainda quando, às vezes, correspondem a exercício efectivo de funções são inconvenientes, quer pela concentração de poder que ocasionam, quer por transmudarem a actividade de um meio num fim, quer por limitar o acesso das sucessivas gerações.
A utilização das funções com a finalidade de influir ou intervir nas decisões que o bem comum requer, ora pretendendo confundi-lo, ora tentando conformá-lo. com os bens particulares, de obter vantagens pessoais ou de grupos para adquirir prestígio ou benefício de carreira política em favor de quem, no dizer do Prof. Francisco Vito, as funções passam a ser exercícios, de submeter o poder político às conveniências ou exigências de certos interesses económicos ou camadas sociais, fere gravemente a moralidade tanto pública como privada..
E que dizer quanto à utilização, do supérfluo?
Apenas repetir o que o Sr. Presidente do Conselho escreveu no relatório do Decreto-Lei n.º 26 115 - já lá vão 25 anos: «É doloroso que alguns se vejam constrangidos a perder o supérfluo; mais doloroso é, porém, que muitos não tenham o necessário». E, talvez, acrescentar que socialmente tem o valor de axioma, como acentua o Prof. Frederico Rodrigues, dever dar-se a todos o necessário, antes de a algum consentir o supérfluo, qualquer que suja o seu mérito.
Na esfera política e no domínio social as consequências de um tal estado de coisas são as mais graves e preocupantes. Criam estados agudos de opinião, problemas nítidos de consciência, propiciam a intranquilidade social, promovem uma deseducação e preparam um clima de facilidades que contrasta com a modéstia das possibilidades.
Como observa o Prof. L. Paul-Reynaud, na esteira de outros mestres da psicologia e da sociologia económicas, o pauperismo é um fenómeno subjectivo tal como o descontentamento. Referem-se mais a «situação» do que à «condição», isto é, mais à posição relativa na sociedade do que à sorte que tocou a cada um. Podendo intervir na formação destes sentimentos a inveja, temos, porém, de estimar como estimulantes e criadores os seus reflexos, a menos que um estado de desequilíbrio e forte injustiça social os possa conduzir para a revolta e subversão.
Enquanto o homem se atém a um mínimo, definido pelas mais peremptórias necessidades, a satisfação destes parece - no dizer do Prof. J. Marias - um logro suficiente. Quer dizer: enquanto o homem considera a sua «infelicidade» económica como unida inexoràvelmente à sua condição, indubitavelmente infortunada, desgraçada, desventurada, não se gera o descontentamento. Foi assim durante séculos.
Não é assim hoje, nem para as mais recônditas aldeias rurais. Surgiu, pois, o descontentamento económico, a aspiração social de melhoria que contempla com crescente insatisfação o procedimento das chamadas classes dirigentes, que se choca, revolta e toma como afronta os esbanjamentos, o luxo e a falta de comedimento, dos chamados economicamente fortes.
É este um problema, universal, como geral é também o da fortíssima reacção contra a confusão de poderes político e económico, a concentração de poderio económico e as suspeitas manobras dos grupos de pressão, dos interesses económicos.
Sabido como é serem as desigualdades económicas - e também sociais - muito menores nos países ditos desenvolvidos do que nos de estrutura semifeudal ou semicapitalista, claramente se compreende a acuidade de que, nestes países, se revestem estes problemas e a extraordinária relevância política que podem atingir, quando deixados natural e livremente desenvolver-se.
Atente-se nas palavras de Milovan Djilas:

Em resumo: o comunismo moderno tem tomado corpo como ideia distinta pelo «contágio» da indústria moderna. Está moribundo ou em via de extinção nos países onde o desenvolvimento industrial realizou os seus fins fundamentais. Está virulento naqueles em que esta finalidade se não cumpriu.
O destino do comunismo nos países subdesenvolvidos tem sido determinado pelo curso e pelo carácter da revolução que deve historicamente assumir.

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No último número de Economia e Humanismo, referente a Janeiro-Fevereiro deste ano, inserem-se dois trabalhos sobre estas questões da, ordem do dia em todo o Mundo. Um, do Prof. Ebrmann, da Universidade do Colorado, acerca do comportamento dos grupos de pressão frente à Administração, em França, outro, de C. Pellegrini, sobre a concentração do poder económico na Itália.
Donde vêm e por quem vêm, afinal, todas estas questões?
Sem sombra do dúvida, do processamento da industrialização e das consequentes transformações do capitalismo financeiro e dos reflexos morais e sociais de um e de outro fenómeno. Particular acuidade assumem, porém, estes aspectos nos países que não puderam ou souberam desenvolver-se quando os demais.
São conhecidas as transformações do capitalismo, que pari passa - que a liberdade destruiu a liberdade - se consumam na constituição de estruturas rígidas e esclerosadas no monopolismo de direito e de facto, como regra nas combinações de empresas económicas e financeiras, desaparecendo para grandes zonas da vida económica qualquer vestígio da concorrência indispensável.
A respeito dos Estados Unidos observa o sociólogo Prof. C. Mills:

As grandes fortunas norte-americanas são aspectos de um tipo especial de industrialização, que teve lugar num país determinado. Esse tipo de industrialização, que compreende empresas absolutamente privadas, permitiu aos indivíduos ocupar posições estratégicas donde podem dominar os fabulosos meios de produção de que o homem dispõe; une a força da ciência e do trabalho, controla a relação do homem com a natureza e tira dela milhões e milhões. E não é que estejamos seguros disto depois de ter visto que as coisas correm assim: podemos predizê-lo facilmente para nações ainda não industrializadas e poderemos confirmá-lo observando outros modos de industrialização.

E acrescenta:

A acumulação de vantagens no cume é paralela ao círculo vicioso da pobreza no fundo. Porque o círculo das vantagens inclui a disposição psicológica s as oportunidades objectivas: exactamente como as limitações das classes baixas e a sua posição social produzem uma falta de interesse e de confiança em si mesmo, assim as oportunidades objectivas do classe e posição social produzem interesse por melhorar e confiança em si mesmo.

Feita esta apreciação de um tipo de industrialização que fez a sua época, se processou em período em que a dormência das massas e o alargamento das zonas de acção a novas áreas e diferentes aspectos consentiram, deve analisar-se o problema relativamente aos países que só agora ou há pouco se determinaram no sentido da industrialização. Aí dois factores novos impuseram empiricamente a necessidade de o Estado intervir: a falta de estímulo e de espírito de empresa, por um lado, e as crescentes ansiedades de sucessivas camadas populacionais, por outro.
Se deixarmos de lado a vaga de nacionalizações que varreu um pouco por toda a parte os países europeus no fim da última guerra, atitude que só filia directamente num sentimento político forjado nos sofrimentos da guerra, encontramos uma crescente interferência do Estado na vida económica. Assim, o Estado multiplica os contrôles, as medidas sociais, as intervenções e «conformes» e «disconformes», financia e estimula actividades, torna-se empresário de outras, procura fórmulas para combater a concentração da riqueza e promover uma mais equilibrada distribuição dos bens produzidos.
A golpes de audácia e de perseverança, da dormência secular dos empresários começa a despertar uma energia nova e uma vontade renovada de progredir.
Todavia, tem de reconhecer-se que se os resultados, em termos de rendimento nacional, são evidentes, se os fenómenos de concentração de poder económico não atingiram as proporções assustadoras verificadas na livre América, à escala dos países revestem-se do mesmo aspecto, e, além disso, as intervenções do Estado criaram novos problemas: a confusão do poder político e económico, as pressões dos interesses económicos e os Inevitáveis reflexos na moralidade pública.
Logo se viu não poder o sistema parlamentar resolver estes novos aspectos, não ser a democracia pluripartidária capaz de enfrentar estas questões, soçobrando ainda quando o progresso do país era evidente.
Os poderes de facto, as novas feudalidades, quer se proponham transformar o Poder, quer se limitem a conformá-lo com as suas conveniências próprias, pela sua multiplicidade e grande poderio converteram, como acentua o Prof. Greorges Burdeau, a democracia partidária num regime sem autoridade, sem prestígio, sem significado e reduziram-na a um estádio provisório.
Foi por isso ou, melhor, foi também por isso que a IV República sucumbiu em França, é ainda por isso que o regime italiano atravessa grave crise e, confessadamente, políticos responsáveis vão aludindo à corrupção em certos países.
Do caso francês já se ocupara - poder político e poder económico - a revista Esprit, em Junho de 1953; do italiano, ocupa-se agora Pellegrini.
Uma vez os dirigentes - escreve Pellegrini - largamente remunerados, a parte mais importante dos lucros societários dos grupos em questão é utilizada em novos investimentos. O reinvestimento de uma parte notável dos lucros é muitas vezes tornado evidente por um alargamento dos interesses do grupo a uma gama sempre mais vasta de produtos.
E a concentração, acrescento, continua ...
Vistas as coisas pelo ângulo social ou político-social à medida que a liberdade económica se restringe, seja pela pressão das forças económicos ou sociais, seja pela intervenção do Estado, as possibilidades efectivas de acesso à riqueza, parafraseando J. Marias, repartem-se mais desigualmente, segundo não as capacidades ou méritos, mas as localizações concretas dos indivíduos em relação a esses poderes, e cria-se uma nova forma de privilégio, quase sempre dissimulado e que não «consta», que não é do conhecimento público.
Vem tudo isto a propósito da universalidade destes
problemas, da repetição das formas de que se revestem, a generalização das situações, não fosse qualquer filósofo apressado concluir ou julgar tratar-se de questões específicas ou características da nossa terra, onde, bem vistas as coisas, estamos, felizmente, longe, muito longe, de atingir a extensão, a acuidade e a frequência com que se descrevem e verificam nus demais. Mas vem também a propósito dos problemas que teremos de enfrentar, já que o processo de industrialização se desencadeou, os seus efeitos começam a ser evidentes e, como se não bastassem as «fatalidades» de que parece ter de se fazer acompanhar, se procuram deliberadamente caminhos cujos cruzamentos se conhecem e as desembocaduras justamente se temem.
Cuido que há corajosamente necessidade de tomar opções claras em matérias de política económica e social, mas também de política geral. Para tanto requer-

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-se, certamente, que os nossos economistas - e já temos felizmente alguns a quem cabe, sem favor, a designação - deixem o hermetismo de linguagem e esclareçam sem rodeios o País a respeito destas questões.
Sem prejuízo de voltar a ocupar-me do tema, em oportunidade conveniente, não desejava encerrar estas considerações sem chamar a atenção para os problemas
que o nosso desenvolvimento põe em relação ao tipo e industrialização adoptado e à atitude do Estado a esse respeito.
Se VV. Exas. me consentem, darei a palavra a Javier Gorasquieta, S. J., reproduzindo as considerações transcritas no Fomento Social de Outubro/Dezembro de 1957. Escreveu J. Gorasquieta:

Um país subdesenvolvido não pode racionalmente planear uma extensão de tipo imperialista; nem pode pensar, tão-pouco, numa planificação ao serviço do bem-estar económico imediato da geração presente. Não lhe cabe outra planificação racional senão a, que conduz a um incremento da taxa de aforro nacional. Provavelmente procurar-se-á aumentar a participação relativa das grandes fortunas na renda nacional, desde que são estas rendas elevadas as que ordinariamente possuem uma maior propensão ao aforro.
É por isso que é tão difícil uma planificação de «clima capitalista», de um sistema subdesenvolvido, cumprir as exigências essenciais da justiça distributiva. Esta justiça pede que o sacrifício da industrialização se distribua de maneira equitativa sobre os distintos grupos que participam na distribuição funcional da renda. Será necessário moderar os padrões de consumo. E, claro está, que se isto se faz de maneira imperativa, com generalidade e de modo mais ou menos permanente, ter-se-ão acabado os estímulos individuais a inverter e abriremos o caminho ao socialismo.
De maneira que se não se conta com a intervenção do trabalho na elaboração de um programa de desenvolvimento, ou este será compatível com uma grande liberalidade de consumo do grupo de empresários e capitalistas, e então é pràticamente impossível o cumprimento dos postulados da justiça distributiva e o desenvolvimento tara de fazer-se com um sacrifício desproporcionado de classe trabalhadora, ou terá de se restringir, de maneira permanente aquela liberalidade de consumo, e então teremos acabado com a eficácia da iniciativa privada e daremos um passo para uma franca socialização da economia.

E a concluir:

É curioso, certamente, que a co-gestão operária, que frequentemente se considerou como guarda avançada do socialismo, apareça no plano macro-económico talvez como a única escapatória ao socialismo e como uma necessária garantia de moralidade de um sistema de empresa livre.

Sr. Presidente: as considerações que venho fazendo podem bem ter servido para dar a noção das raízes destes problemas que são criados ou provocados pelo desenvolvimento económico e cuja solução não é nem simples nem cómoda, mas, em qualquer caso, necessária.
Terei de concluir que as intervenções do Estado na vida económica são indispensáveis, que as limitações são inevitáveis, se quisermos assegurar uma margem suficiente - quanto maior melhor - de liberdade económica e evitar na medida do possível o recurso a intervencionismo de pormenor, que atinge tudo e todos, é impertinente e não é liem eficaz nem concludente.
Cuido haver neste campo urgente necessidade de cumprir os desejos já repetidamente manifestados pelo Sr. Presidente do Conselho de acabar com regulamentações de pormenor que a economia da guerra impôs, mas hoje nada justifica e estão servindo de instrumento de defesa inconsciente de interesses esclerosados, de limitação a iniciativas, pelo menos até que novos equilíbrios se estabeleçam no entrechoque dos vários interesses em jogo.
É necessário, indispensável, intervir onde se deve e não onde é fácil, cómodo e não levanta nem reacções nem dificuldades de maior.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Penso, de resto, que a intervenção necessária, por muito que pese a certos interesses e managers, acaba por se fazer no sentido das suas próprias conveniências, uma vez que protelar, hesitar, diferir essas intervenções só poderá ter como resultado virem um dia mais tarde a ter de ser - bem ou mal económica e socialmente -, mas, politicamente, virem a ter de ser radicais.
Sr. Presidente: Tenho para mim ser indispensável um regime de autoridade em Portugal e a Portugal, nas presentes e previsíveis condições futuras.
Só um regime de autoridade pode assegurar a realização das tarefas do desenvolvimento económico adentro de um rotativo equilíbrio social e político; só um regime de autoridade pode resolver os problemas suscitados pelas crescentes ansiedades das massas frente à manifesta incompreensão da generalidade das empresas e às limitadas possibilidades de as satisfazer a ritmo paralelo ao desenvolvimento das novas necessidades; só um regime de autoridade pode garantir o cumprimento da tarefa ultramarina e a persistência da indispensável unidade entre todas as parcelas do território português dispersas pelo Mundo; só um regime de autoridade, enfim, pode assegurar a defesa dos interesses do País no concerto internacional, que, por serem, além de materiais, espirituais e históricos, são muitas vezes maiores do que o potencial, económico, em nome do qual os nossos representantes têm de falar.
Afigura-se-me ser esta conclusão evidente e vou até ao ponto de supor que ela será óbvia para muitos dos que, sendo embora adversários confessos do Regime, fora da paixão da luta política fria e maduramente reflictam na situação e problemas do seu e nosso país.
Pois bem, sendo assim, é também verdade que - ao contrário do que muita gente parece pensar ou, melhor, dizer - um regime de autoridade carece de maior apoio, compreensão e confiança dos concidadãos do que qualquer outro entregue ao automatismo dos jogos e processos parlamentares. Carece de maior apoio e tira a maior força do seu poder da autoridade moral independência e isenção dos seus dirigentes.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Pretender-se-á maior demonstração e mais clara verificação do que o exemplo do Salazar o do nosso regime? Cuido não ser fácil e, ainda que o fosse, desnecessário.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Tenho encontrado constantemente essa extraordinária força moral e energia espiritual como fulcro, como base do prestígio do regime e, também, como razão da sua durabilidade.

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É até por isso que pode sustentar-se que, com ser a, autoridade um facto natural ou, se preferem, um facto social primário e imediato, há para a consciência nacional uma legitimidade de governar que é independente, anterior e distinta da que resulta do consentimento expresso por qualquer dos processos ou técnicas utilizáveis.
Nilo sou apenas eu próprio quem assim pensa.
Com frequência vejo esta verdade reconhecida, ou, pelo menos, aceite. Ainda recentemente, a propósito da situação francesa, pensadores e políticos das mais diversas cores e dos mais diferentes quadrantes concediam ter De Gaulle uma legitimidade própria para governar, legitimidade que mesmo os adversários - como observa o Prof. Maurice Duverger - reconhecem.
Não serão frequentes estes casos, mas existem. Conhece-os a consciência nacional e reconhece-os o espírito de justiça e a inteligência reflectida dos homens qualificados.
O Prof. Marcel Prelot, precisamente na 50.º Semana Social de França, em 1954, na cidade de Rennes, havida sob o tema geral «Crise do poder e crise do civismo», discutindo o problema da obediência civil, reconhecia a insuficiência da forca material para a explicar o fundamentava-a no exercício de um ascendente moral, de uma autoridade resultante de uma superioridade inegável e, principalmente, de uma convicção interior. A autoridade recorre de os cidadãos reconhecerem a sua subordinação frente a ela e, consequentemente, depende mais da consciência dos que a aceitam do que da vontade do quem domina.
Os regimes de autoridade, se encontram a sua razão de ser na grandeza e complexidade dos problemas a resolver, na magnitude e delicadeza das tarefas a empreender, porque carecem de maior compreensão e apoio dos povos, exigem uma exemplaridade, sobriedade o temperança dos seus dirigentes de que os regimes ditos liberais nem suspeitam.
É preciso ainda que, quando um regime de autoridade tem a felicidade de dispor de alguém - figuras ímpares na história dos povos -, de alguém que tem legitimidade própria para governar, as diferentes esferas dirigentes não comprometam, por atitudes desrazoáveis ou procedimentos descomedidos, nem aquela autoridade, nem aquela legitimidade. É necessário que sigam o seu exemplo, em vez de se cobrirem com a sombra.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É, ainda, indispensável que variem e acompanhem das sucessivas épocas «os canais humanos por onde se exercem as influências de qualquer ordem».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É, principalmente, forçoso que a independência do poder não seja comprometida, nem sequer na aparência, pela confusão entre dirigentes políticos o económicos - os managers, na consagrada expressão de J. Burnham -; é forçoso que haja uma separação nítida, absoluta e inequívoca entre poder político e poder económico.
Chegados aqui, creio desnecessário acentuar que atingimos outro ponto central do problema, a que urge ocorrer com diligência e firmeza.
Sr. Presidente: tenho reflectido alguma coisa sobre os problemas políticos e meditado nas características essenciais de que se revestem. Sou levado a concluir existirem sempre, através dos tempos, duas filosofias de organização que esquematicamente podem enunciar-se como filosofia da autoridade e da liberdade, aquela organizando o poder de cima para baixo e esta inversamente. Naturalmente, conforme as épocas, reveste-se qualquer delas de formas muito distintas, tão distintas que, pela aparência, nem sempre será fácil reconhecer serem comuns os seus traços característicos. Basta referir que a filosofia da autoridade se concretiza em formas que vão desde o absolutismo, ao encontro com estatamentos, até ao consentimento de tipo plebiscitário.
Mas, para além destes dois traços característicos que coexistem através dos tempos e das idades - diga-se com franco predomínio, em número de casos e sua duração, dos tipos de organizarão de autoridade -, verifica-se serem os regimes, independentemente do seu tipo de organização, destruídos frequentemente pela formação consentida de oligarquias quando lhes é possível atingir posição dominante. É talvez, por isso, que Aristóteles (Policia, capítulo XIX) observou, como já tive ocasião de referir nesta Câmara:

É um erro, que até estas constituições aristocráticas não ocultam, dar indefinidamente mais aos ricos e demasiado pouco ao povo.
No decorrer do tempo necessariamente resulta um estado de coisas mau e que de bem não tem senão a aparência: o Estado é, assim, destruído mais pela cupidez dos ricos do que pela dos pobres.

Como quer que seja, sempre que uma oligarquia económica se constitui e consegue atingir posição predominante num país as consequências são as mesmas, quer a filosofia de organização do poder seja de autoridade ou de liberdade. Quer dizer: quando uma oligarquia alcança uma posição de predomínio, passa a ser este o traço característico, o factor dominante, tornando-se recessivo, secundário o tipo de organização do regime vigente.
Por bem que J. Leclerc previna que todos os regimes tendam, com o tempo, a devir oligárquicos, consistindo a sabedoria em conseguir que as oligarquias não deixem de ser verdadeiras aristocracias, pelo menos quando as oligarquias são económicas, o facto de passarem a constituir o factor principal, característico, creio ser incontroversamente decisivo para qualquer regime.
Para só citar exemplos recentes, factos bem conhecidos, recordemos a dissolução da IV República francesa e a crítica de Milovan Djilas ao regime comunista, no momento em que, no dizer de Maulnier, da fase das revoluções pré-marxistas passamos à época das pós-marxistas com a sublevação húngara.
Acerca do exemplo francês, de um regime baseado, estruturado numa filosofia de liberdade, organizado realmente de baixo para cima segundo os cânones mais ortodoxos da democracia partidária, recordemos as críticas de Michel Debrée, hoje Presidente do Conselho, no seu livro, cujo título diz tudo. Estes Príncipes que nos Governam, e do Prof. André Philip, socialista militante e doutrinário, nos termos seguintes:

O Parlamento, enfim, convertera-se num clube de profissionais, num «corpo oligárquico» separado do país, com ritos e regras de acção particular. Os seus membros estavam submetidos, qualquer que fosse a sua cor política, a uma série de grupos de pressão. O papel essencial do Parlamento era fazer diligências nas diferentes administrações ...

A coincidência dos modos de ver de dois homens situados em pontos tão separados do quadrante político não pode deixar de impressionar, assim como o facto de o traído característico dessa crítica ser também o mesmo: esclerose oligárquica.

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Pelo que diz respeito a Djilas, citarei: «Todos os sistemas sociais em vigor têm os seus políticos profissionais, de quem se pode pensar bem ou mal, mas cuja existência é inevitável; porque a sociedade actual não pode passar nem sem Estado nem sem Governo, nem, por conseguinte, sem as gentes que disputam entre si a direcção. Existem, porém, diferenças fundamentais entre os políticos comuns e os dos regimes comunistas.
Os primeiros, no pior dos casos, abusam das suas funções em benefício da, sua clientela ou para favorecer os interesses de uma dada camada social; enquanto no caso dos comunistas o exercício do Poder e a participação no Governo são idênticos ao uso, à fruição e à livre disposição de quase todos os bens da Nação, a propriedade está ligada ao próprio Poder, que se atribui, por esta pertença, a fruição das coisas. Resulta daqui que, num regime comunista, o exercício do Poder político é a vocação ideal de todos os que querem viver como parasitas a expensas de outros». E, mais adiante: «Inimiga do pensamento em nome da ciência, inimiga da liberdade em nome da democracia, a oligarquia comunista não pode conduzir o espírito senão à sua completa corrupção».

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - A revolta de Pozna tem, no fundo, o mesmo sentido da ocorrida em França Lá pouco menos de dois anos, embora as causas próximas e as pedras de toque fossem bem diversas. Sempre acontece assim, mais dia menos dia, quando uma classe oligárquica se estrutura, se confunde com o poder económico e se torna a usufrutuária dos bens da nação ou, pelo menos, beneficiária de privilégios evidentes.
Não podemos, por isso, consentir que sob qualquer forma, debaixo de qualquer disfarce ou em nome de qualquer direito a nossa classe dirigente se confunda com os interesses, se caracterize pelo benefício de privilégios ou se mostre menos zelosa do espírito social e da força moral da Revolução Nacional.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Não estamos dispostos a que o futuro do Regime, as exigências imperativas do interesse nacional possam ser postas em causa pela cobiça de alguns e pela intemperança de outros.
É ainda este outro aspecto que me trouxe ao combate e à acção.
O exemplo de serenidade, modéstia, austeridade, independência e isenção inteira de Salazar tem de ser seguido, doa a quem doer, por quantos são chamados às funções políticas directivas ou activas. Tem de ser seguido sem subterfúgios nem falsas aparências, como exige uma política de verdade que proclamamos e temos de praticar.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Se nem todos os homens podem atingir a perfeição, que não é deste mundo, se nem todos os homens podem elevar-se até ao nível a que alguns raros valores ascendem, a todos se pode exigir dignidade, modéstia e temperança, que é quanto basta para prestigiar o Regime e assegurar a confiança do País.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: creio sermos o país do Mundo em que a Administração é mais séria, embora talvez não seja a mais eficaz, em que o nível da moralidade política é mais elevado, em que, não obstante as três décadas de vigência ininterrupta do mesmo regime, se poderiam ainda apontar pelos dedos os casos de procedimento reprovável ou comportamento menos digno.
Todavia, há, como não podia deixar de ser, arestas, pontos de convergência da crítica, atitudes geralmente apontadas, procedimentos frequentemente referidos.
Entre esses aponta-se, com crescente intensidade e generalização, o das remunerações e acumulações em dadas empresas, muitas das quais vivem sob regime especial do Estado, no seu influxo ou na sua dependência. Os casos gritantes não são muitos, mas são alguns.

O Sr. Carlos Moreira: - Bastantes!

O Orador: - A importância de que se revestem não tem proporções comparáveis, de perto ou de longe, com aquela que a lenda popular foi criando e avolumando. Há, assim, uma verdade política a este respeito, que muito pouco tem a ver com a verdade objectiva, com a realidade dos factos.
Não vou agora procurar averiguar os porquês desta lenda negra, que neste caso é de ouro. São muitas e complexas as razões por que se chegou a esta verdade
política, que nem por ser geralmente falsa e inexacta deixa de constituir uma verdade política.
Não podemos, com verdade e em consciência, deixar de reconhecer que há abusos, excessos e desregramentos, que nem por serem poucos podem ser contestados. Em tal situação cumpre-nos honradamente repor a verdade política de acordo com a verdade real.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - Impõe-no o prestígio do regime, exige-o o seu espírito, prescreve-o a nossa consciência e ordena-o a austeridade de Salazar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - São poucos os casos apontados e discutidos. São infinitamente mais aqueles que sempre deram, e continuam a dar, um exemplo de sobriedade e independência e constituem o imenso património moral da Revolução Nacional. Mas, sejam poucos ou fossem muitos, não nos resta outro caminho do que cortar cerco as situações reprováveis, quaisquer que sejam, para que se possam, realçar os exemplos daqueles que só souberam servir, esquecidos de si, indiferentes aos outros, e não podem, nem devem, no interesse do próprio Regime, ser medidos pela mesma rasoura.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - Foi por isso e para isso que me decidi a apresentar o projecto de lei agora em discussão.

O Sr. Carlos Moreira: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Com todo o gosto.

O Sr. Carlos Moreira: - Queria lembrar apenas o seguinte: serão realmente as disposições do projecto meio bastante, e, sobretudo, meio mais próprio, para pôr termo a todas essas situações que V. Exa. diz poucos e creio serem bastantes?

O Orador: - São poucas em relação à grande maioria ...

O Sr. Carlos Moreira: - Mas eu queria pôr este problema: está V. Exa. convencido, repito, de que seja

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o projecto de V. Exa. meio suficiente para pôr termo a essas situações? Entende V. Exa. que será o suficiente para resolver o problema das acumulações e das incompatibilidades? Entende, ainda, que será o meio mais próprio para fazer uma justa e equitativa distribuição dos rendimentos das empresas? Entendo V. Exa. que não continuarão certos dirigentes a receber a parte do leão e os outros a parte do cordeiro?

O Sr. José Saraiva: - Mas esses problemas estão em discussão?

O Sr. Carlos Moreira: - Eu digo que deveriam estar, de preferência a outros que estão a ser postos, e V. Exa., Sr. Deputado José Saraiva, sabe que o projecto toca, embora incidentalmeute, esses problemas.
O meu ponto de vista é este: é que as considerações que V. Exa., Sr. Deputado Camilo de Mendonça, acaba de produzir no seu magnifico discurso implicam necessariamente que as disposições propostas atinjam mais fundamente os males que vêem sendo apontados por V. Exa.

O Orador: - Comecei por dizer que não tratava dos problemas postos pelos artigos 36.º e 40.º da Constituição, embora tivesse ideias a esse respeito, porque não era este o momento para me ocupar do assunto, o que não quer dizer que não o trate noutra ocasião. Considero este problema mais urgente.

O Sr. Carlos Moreira: - V. Exa. considera-o mais urgente. Eu considero, salvo o devido respeito, que não é o mais urgente.
Para mim é mais importante do que o estabelecimento de um limite de remuneração a solução dos problemas da acumulação e da incompatibilidade de cargos. Uma coisa é considerar-se que há quem ganhe muito e outra é permitir-se que haja por aí quem tenha tantos cargos que, segundo se afirma, não tem sequer tempo para se desempenhar deles ... A acumulação, a incompatibilidade, volto a dizê-lo, é mais grave do que o exagero do vencimento de alguns.

O Orador: - Não sei como se resolvia este problema para as empresas de que me ocupo senão com a limitação de vencimentos. Tem sido este o processo que se tem usado, e a mim não me cumpria procurar outro padrão de vencimento senão o que foi estabelecido há 25 anos.

O Sr. Carlos Moreira: - As condições do vida mudaram e, assim, é implícito que haja necessidade de se modificarem as competentes providências.
Seja como for, ao meu espírito resulta claro que esta é um dos problemas mais agudos do momento presente.

O Orador: - Salazar afirmara em 6 de Dezembro de 1958, ao dar posse à nova comissão executiva da União Nacional, o seguinte: «É possível que a generosidade das almas moças se deixe seduzir por alguns aspectos sociais que o comunismo lhe oferece, sobretudo em contraposição a aspectos de injustiça, de esbanjamentos desrazoáveis, de misérias imerecidas. Chocante, sem dúvida, injusto muitas vezes, mas é essencial não perder de vista que um movimento austero, implacável, ousado, pode ser caminho mais seguro e preço mais módico das transformações desejáveis».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Foi por isso e para isso, dizia, que me decidi a apresentar o projecto de lei, mas também fiado nestas palavras.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Camilo de Mendonça concluirá as suas considerações na próxima sessão.
Vou encerrar a sessão, sendo a próxima na terça-feira, dia 5 do corrente.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Agnelo Ornelas do Rego.
Alberto Cruz.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Américo Cortês Pinto.
Américo da Costa Ramalho.
Antão Santos da Cunha.
António Barbosa Abranches de Soveral.
Armando Cândido de Medeiros.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Belchior Cardoso da Costa.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Francisco José Vasques Tenreiro.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Cerveira Pinto.
João Maria Porto.
João Pedro Neves Clara.
José António Ferreira Barbosa.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José dos Santos Bessa.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
D. Maria Irene Leite da Costa.
Rogério Noel Peres Claro.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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