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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 177

ANO DE 1960 2 DE MAIO

ASSEMBLEIA NACIONAL

VII LEGISLATURA

SESSÃO N.º 177, EM 30 DE ABRIL.

Presidente: Exmo. Sr. Albino Soares Pinto dos Reis Júnior

Secretários: Exmos. Srs.
Fernando Cid Oliveira Proença
António José Rodrigues Prata

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 10 horas e 30 minutos.

Ordem do dia. - Comemorou-se o 5º centenário da morte do infante D. Henrique.
Falaram os Srs. Deputados Alberto de Araújo, Teixeira da Mota, Martinho da Mota, Martinho da Costa Lopes, José Saraiva e o Sr. Presidente.
O Sr. Presidente encerrou sessão às 18 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 16 horas e 20 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Adriano Duarte Silva.
Afonso Augusto Pinto.
Agnelo Orneias do Rego.
Aires Fernandes Martins.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Cruz.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto da Bocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Américo Cortês Pinto.
António Bartolomeu Gromicho.
António Calapez Gomes Garcia.
António Calheiros Lopes.
António Carlos dos Santos Fernandes Lima.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Cortês Lobão.
António Jorge Ferreira.
António José Rodrigues Prata.
António Maria Vasconcelos de Morais Sarmento.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Avelino Teixeira da Mota.
Belchior Cardoso da Costa.
Camilo António de A. Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Alberto Lopes Moreira.
Carlos Coelho.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Castilho Serpa do Rosário Noronha.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco Cardoso de Melo Machado.
Francisco José Tasques Tenreiro.
Frederico Bagorro de Sequeira.
João da Assunção da Cunha Valença.
João Augusto Marchante.
João de Brito e Cunha.
João Cerveira Pinto.
Joaquim Pais de Azevedo.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Pereira Jardim.
José Dias de Araújo Correia.
José de Freitas Soares.
José Garcia Nunes Mexia.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José Hermano Saraiva.
José Manuel da Costa.
José Rodrigo Carvalho.

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José dos Santos Bessa.
José Sarmento de Vasconcelos e Castro.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Laurénio Cota Morais dos Reis.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Tavares Neto Sequeira de Medeiros.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel José Archer Homem de Melo.
Manuel Maria de Lacerda de Sousa Aroso.
Manuel Nunes Fernandes.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Angelo Morais de Oliveira.
Mário de Figueiredo.
Martinho da Costa Lopes.
Paulo Cancella de Abreu.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Rogério Noel Peres Claro.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Amaro Salgueiro dos Santos Galo.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 72 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Como ontem disse a VV. Ex.ªs, a sessão do hoje é destinada à homenagem prestada pela Assembleia Nacional ao infante D. Henrique.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Araújo.

O Sr. Alberto de Araújo: - Sr. Presidente: tem sempre eco e reflexo nesta Câmara todos os factos e acontecimentos que a alma da Nação regista como tocando a sua própria vida e os seus mais íntimos sentimentos.
Aqui estamos pois, neste ano de comemorações henriquinas e no fecho normal dos nossos trabalhos, a evocar o infante das Descobertas, que morreu há precisamente cinco séculos, mas que está bem vivo na nossa memória pela estatura da sua personalidade e pela projecção da obra que legou a nós e legou ao Mundo.
Talhámos, com tenacidade e firmeza, as mais antigas fronteiras da Pátria; tivemos, para isso, de regar com sangue, palmo a palmo, a terra que conquistámos; impregnámos de espírito heróico as páginas da nossa história; vencemos exércitos e batalhas; mesmo nos momentos mais graves e difíceis, nunca nos abandonou nem a crença em Deus, nem o ideal e a fé de sermos uma nação livre.
Quando se firmavam tréguas ou amainava o perigo da guerra, cultivávamos a terra, ao mesmo tempo que n pesca p o comércio nos atraíam irresistivelmente para o mar.
Sempre tiveram os Portugueses a paixão da terra, desde as regiões altas e acidentadas do Norte e do Centro até às planuras vastas do Sul. Abrir os campos, ver crescer as árvores e as searas, que todos os unos se renovam e renascem, com suas tonalidades em cada estação, com seus mistérios em cada dia com seus encantos em cada hora, sempre amaram profundamente os Portugueses a natureza e a terra, e mesmo quando estas lhes negavam o pão, logo na manhã seguinte recomeçavam a sua faina habitual, esperançados e confiantes em que seria farta e abundante a colheita no ano próximo.
Mas, ao mesmo tempo que se consolidava a independência da nacionalidade, acorriam e fixavam-se no litoral núcleos apreciáveis de população, e o próprio mar, entrando pelos rios, estabelecia a comunicabilidade que fez da agricultura, da pesca e das trocas as actividades primárias desta nação do Ocidente ibérico, que tão profundamente haviam de influenciar depois o sulco fundamental da sua história nos empreendimentos oceânicos, nu povoamento das terras descobertas, no estabelecimento das novas rotas do comércio do Mundo.
No pleno vigor da sua juventude e da sua força, orgulhoso dos seus feitos e das suas vitórias, certo do sentido universal da sua fé, Portugal, e com ele os seus reis, as suas classes dirigentes, o seu povo, sentiam que. a alma colectiva começava a mover-se sob a ânsia, de mais vastas e arrojadas empresas. Os nossos mercadores vão aos países do Norte, aos portos do Mediterrâneo e do Levante, são do reinado de D. Fernando a Lei das Sesmarias e as providencias de incitamento à construção naval - velhas hoje de séculos, mas verdadeiramente sábias e actuais.
Aljubarrota fecha o ciclo formativo de unia nação. O infante D. Henrique ia abrir-lhe os novos horizontes da sua história.
Eram fortes e idealistas os homens daquele tempo. Haviam vencido as ambições do povos e de príncipes que quiseram dominar esse sentimento de nacionalidade, irrompendo, irresistível, no peito dos portugueses de antanho; tinham varrido da nossa terra o infiel intruso, moldado com o seu sangue, o seu heroísmo, a sua vontade, os contornos e os caracteres de uma pátria. Isso dava-lhes ânimo e consciência para tentarem novos empreendimentos, pois a Nação era já pequena para conter a alma que dentro dela se criara e fortalecera.
Eram também de fé ardente os portugueses daquela era e bem se compreende que essa chama viva aquecesse os seus corações, porque, não raras vezes, e em face da desproporção de forças e de exércitos, a sorte das batalhas mais pareceu milagre de Deus do que mérito dos homens.
Todos estes sentimentos - o ânimo forte e voluntarioso da nação que se acabara, de formar, as suas tendências puni se expandir, a sua vocação para o mar e para o comércio, o ideal de dilatai1 a Fé como condição essencial à própria redenção humana, propósitos civilizadores caldeados com os de garantir materialmente a efectivação de todo este conjunto de fins a atingir - eram comuns à geração dos Descobrimentos, cujas ansiedades o infante D. Henrique galvanizava e exprimia como condutor, orientador e guia de uma empresa em que o espírito de missão se confundia com o objectivo de abrir a Portugal e à cristandade os caminhos da expansão e da grandeza.
O empreendimento era também grato ao nosso temperamento imaginativo e emocional. Para além dos reinos com quem mantínhamos relações, das terras aonde chegaram os Cruzados, da pequena faixa conhecida, da costa africana e dos países do Norte, havia todo um vasto mundo aberto à curiosidade humana, com seus oceanos povoados de mistérios e de lendas e continentes longínquos e cujas maravilhas, fabulas, opulências, riquezas, almas sem número esquecidas de Deus, eram motivos fascinantes de encantamento para a imaginação criadora, da nossa gente.
O infante de Sagres aproveitou os preparativos que de longe vinham', fez-se intérprete e guia de um forte sentido colectivo, rodeou-se de homens afeitos à vida do mar e a ciência da navegação, introduziu aperfeiçoamentos nesta, debruçou-se sobre as cartas e portula-

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nos, estudou as rotas, as correntes, os ventos, as estrelas, o céu, e depois da empresa de Ceuta, da crista do Algarve, olhando o oceano infinito, decidiu que havia chegado a hora de os Portugueses desvendarem os seus horizontes e quebravam os seus segredos.
Mas o infante D. Henrique não foi apenas um homem de ideal e de fé. Foi também o organizador, o condutor de um empreendimento grandioso que exigia navios, capitães, tripulações adestradas, apetrechamento náutico, mantimentos, largas fontes de receita para assegurar o seu êxito e a sua continuidade.
As terras que primeiro se abriram à expansão portuguesa no Atlântico foram as ilhas que compõem o arquipélago da Madeira, dádiva de Deus ao infante, que delas veio a ter, depois, seu senhor.
A Madeira era terra virgem como nos recuados tempos em que, após as grandes convulsões geológicas, extintos o ruído e o fragor dos vulcões, ali ficou, com suas montanhas e crateras, firme e majestosa, bela e altaneira, para vir a ser, milénios depois, na vastidão do oceano, um dos grandes marcos na história, da verdadeira descoberta do Mundo.
Cobria-a, quando ali chegaram, nos fins do primeiro quartel do século XV, os navegadores do infante, um intuito espesso de verdura. Tudo era beleza, paz, quietude.
Pelas suas encostas desviam correntes de água cantante e cristalina, único murmúrio que ali st; ouvia e que ao reflexo do Sol criador pareciam fios de prata a embelezar aquele cenário de maravilha. Não existia alma viva nem vestígios ou passos de gente, os pássaros não fugiam do homem, na o se conhecia a maldade, dir-se-ia que era ali o paraíso terreno. E todas as lendas que se tinham criado à volta das belezas e dos encantos das ilhas que existiam no oceano ficaram muito aquém daquela realidade viva e pujante que emergia das águas aos olhos pasmados dos navegadores portugueses.
E o próprio mar era diáfano o transparente, calmo e tranquilo, cingindo amorosamente a terra nessas históricas manhas de revelação e de esplendor.
E o mar era assim e se nas suas rotas o cruzeiros não se deparavam os perigos que foram durante séculos o receio e o medo dos navegantes e, pelo contrário, as espumas das suas águas contornavam terras que eram riquezas e tesouros desconhecidos, porque não continuar o empreendimento para o sul e para o ocidente, aumentando o património da coroa e da fé de Portugal.
A descoberta, ou melhor, talvez, em rigor histórico, a redescoberta do arquipélago da Madeira, constituiu, assim, o primeiro prémio para. o infante de Sagres, cuja alma de lutador conhecera, grandes reveses e cujo espírito precisava de ânimo e do incitamento para, prosseguir um empreendimento que. sendo seu, era também e sobretudo, a própria tarefa da Nação.
Grande orgulho e glória para as nossas ilhas atlânticas poderem recordar agora que, há mais do cinco séculos, antes de contornada a costa africana, antes de encontrado o caminho da índia, muito antes do descobrimento do Brasil, animaram o espírito e o coração do infante, a quem se deveu o início e a concepção da nossa epopeia marítima.
Veio depois o povoamento e a colonização. E o infante, D. Henrique, preocupado com as campanhas do África, com a empresa dos Descobrimentos, com o aperfeiçoamento dos métodos de navegar, com os meios financeiros indispensáveis à efectivação dos seus objectivos, com a definição dos princípios a pôr em prática pura assegurar o convívio pacífico com as populações nativas da costa africana, abrindo, assim, vias estáveis de penetração à nossa influência comercial e espiritual, o infante de Sagres seguiu do perto o orientou a colonização da Madeira, para que esta fosse padrão imorredouro do nosso esforço e demonstração viva para todo o sempre das nossas qualidades reais de povoadores das terras descobertas.
Chegam os primeiros colonos, gente do Minho e do Algarve, incendeiam-se e desbastam-se arvoredos, aproveitam-se madeiras, constroem-se serras de água, as primeiras sementes à terra. O infante é informado dos prodígios da natureza, da benignidade do clima - Cadamosto havia de dizer poucos anos depois que ali não faz frio que se note, como na Sicília ou em Chipre-, e ali introduz a vinha, além da cana-de-açúcar. Já Zurara falava dos «vales todos cheios de açúcar, de que espargiam muito pelo mundo», e ainda em vida do infante o melaço e o açúcar da Madeira chegam nas nossas naus a portos do Norte da Europa. Anos depois o açúcar constituía objecto de um importante comércio que se estendia desde a a Flandres a Génova, a Veneza, até Constantinopla.
Algumas das culturas principais da Madeira, o seu comércio, o aproveitamento das águas, o sistema da colonização das terras, que vieram a desenvolver-se e a aperfeiçoar-se pelos séculos fora, deveram ao infante D. Henrique o seu impulso inicial. Ele que, como disse Oliveira Martins, restaurou da antiguidade fenícia e grega os resgates com os indígenas mas costas africanas, que restaurou, por igual, dos antigos o tipo das colónias feitorias, com a de Arguim, defendidas por uma fortaleza, que estabeleceu o tipo das companhias de navegação e comércio, como foram as de Lançarote - tipo que contribuiu para o início da fortuna colonial da Inglaterra e para a formação de uma nação viva, a Holanda -, criou na Madeira o primeiro tipo das colónias de emigração.
É o próprio infante que entrega a João Gonçalves Zarco um regimento para que na Madeira houvesse paz e justiça, que manda fazer o primeiro foral para esta ilha, que cria, depois, as capitanias, dando aos capitães donatários atribuições para superintenderem na administração pública local, que doa o poder espiritual à Ordem de Cristo, que institui no arquipélago o culto de Santa Maria, revelando, assim, as suas múltiplas preocupações de administrador, colonizador e servidor intemerato de Deus.
A empresa dos Descobrimentos foi maduramente ponderada e pensada pelo infante D. Henrique, e, entre as suas consequências, revestiram-se de grande importância as negociações que houve que entabular, nomeadamente com o Papa e com a cúria romana, para reivindicar direitos de prioridade relativamente às terras e mares descobertos. Era necessário barrar o caminho dos oceanos à ambição de nações estranhas, e por isso considerou de importância fundamental possuir no Atlântico determinadas posições que servissem de base e apoio à sua obra de expansão marítima. Isso explica as suas tentativas para se apossar das ilhas Canárias e a importância que desde logo se atribuiu aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, situados precisamente nas grandes rotas do Sul e do Ocidente.
Deram, efectivamente, aquelas ilhas atlânticas apoio importante às expedições que demandavam novos mares, contornando a África ou procurando terras ocidentais. A Madeira e os Açores haviam sido descobertos por navegadores do infante, possuidores do seu espírito, absolutamente integrados na mística da época. Ali se fixaram colonos portugueses, para ali se transplantaram instituições, hábitos e tendências da pátria comum, ali se estabeleceram os Franciscanos, difundindo o culto da natureza, a dignidade e a beleza

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do trabalho, o gosto pelas viagens, o ideal da salvação das almas dos infiéis.
A distância, o oceano, as notícias rios feitos heróicos, tudo fortalecia os sentimentos patrióticos de donatários, fidalgos, sesmeiros e colonos - sentimentos esses que. ao contacto de novas terras e das duras tarefas u cumprir, adquiriam maior altura e virtualidade.
O segundo donatário da Madeira, João Gonçalves, estando longe, foi o primeiro fidalgo a chegar ao Algarve para ajudar o rei de Portugal no descerco de Fez, e o seu filho Simão Gonçalves da Câmara, o Magnífico, foi protector de todas as praças do África, onde esteve nove vezes, organizando importantes e dispendiosas expedições à sua custa. Foi na colonização dos Açores, como já se escreveu, que os Portugueses aprenderam a navegação de alto mar e longo curso, e foi um escudeiro do infante, Diogo de Teive, descobridor do grupo ocidental daquele arquipélago, quem primeiro teria, possivelmente, atingido as águas do banco da Terra Nova. Da Madeira e dos Açores saíram navegadores, marinheiros, guerreiros, missionários dos que mais se notabilizaram na grande obra da expansão portuguesa no Mundo.
Aquelas ilhas atlânticas corresponderam ao pensamento do infante. Por um lado, pela sua situação geográfica, foram pontos de apoio valiosíssimos para as campanhas africanas e para a navegação das Descobertas; por outro lado, pelas qualidades reais dos colonizadores, a demonstração viva da nossa capacidade para o povoamento.
E volto ainda à Madeira. Era despovoaria e terra virgem quando foi descoberta pelos navegadores do instante. Está hoje toda aproveitada, no prosseguimento da sua lição e dos seus ensinamentos, desde a orla do mar até ao cume das montanhas. E um grande marco das Descobertas. E é, simultaneamente, um padrão admirável do trabalho humano.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A Madeira, os Açores, Cabo Verde, as terras de África, foram as primeiras parcelas de um grande império que o infante concebeu já, separado no espaço, mas unido pela comunhão das almas, independentemente das raças e das cores dos povos que o viriam a constituir.
Em pleno século XV os arquipélagos da Madeira e dos Açores eram considerados pontos vitais de apoio na defesa e expansão dos ideais civilizadores daquela época. Decorreram mais de cinco séculos e aquelas ilhas são consideradas hoje elementos fundamentais na defesa do Ocidente e daquela mesma civilização que os Portugueses tanto contribuíram para espalhar e difundir no Mundo.
Muitas das concepções fundamentais do infante D. Henrique têm a perenidade da sua própria alma.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No próximo dia 13 de Novembro completam-se 500 anos sobre a sua morte. O infante, que, pelo seu génio, foi verdadeiramente grande na concepção e na acção, inexcedível no patriotismo e na fé, que consagrou inteiramente a sua vida ao serviço da grei, pediu no testamento que fossem pagas as dívidas que contraíra, para descarregamento da sua consciência. Depois de tanto pensar, meditar, trabalhar, lutar morreu endividado, este homem - ele, que era o grande credor da Nação, e credor também da humanidade, pois no desenvolvimento dos seus planos e empreendimentos foi possível revelar e conhecer o Mundo em toda a sua grandeza, acordando-o do silêncio e do esquecimento a que o tinham votado os séculos e as idades.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bom!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Martinho da Costa Lopes: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: ao distinguir-me com o honroso convite de usar da palavra nesta sessão, que, por ser a última dos nossos trabalhos parlamentares, se reveste de singular brilho e particular solenidade, quis decerto esta Câmara que um membro seu representando povos do ultramar português, nado e criado em terras intangivelmente portuguesas, devassadas outrora pela cruz de Cristo, que arvoravam as caravelas henriquinas quando singravam «mares nunca dantes navegados», erguesse sem temor nem receio a sua modesta voz no seio desta magna Assembleia Política, a fundir-se no coro ingente e clamoroso da voz da Pátria, que se faz ouvir de toda a parte neste ano centenário do nascimento e morte do infante de Sagres em todas as latitudes e longitudes onde pulse e vibre de entusiasmo e júbilo o coração da família portuguesa, em apoteótica homenagem de gratidão nacional ao ilustre marinheiro e navegador que foi o infante D. Henrique, cuja figura de há muito se projectou para além das fronteiras pátrias, ocupando com justiça um lugar de relevo na história universal dos povos.
Perante a grandeza do tema altamente sugestivo das comemorações henriquinas, tão vasto e fecundo como grandioso e aliciante, eu quereria. Sr. residente, ao tentar esboçar a figura austera, mas ao mesmo tempo simpática, do infante de Sagres, ter as habilidades de um consumado artista que soubesse pintar um quadro primoroso, sóbrio de tintas e de cores, de sombra e de luz, donde pudesse destacar-se com nitidez a vigorosa personalidade do maior navegador português da época quinhentista.
Infelizmente, porém, quanto mais sobressai a figura do retratado tanto mais se evidencia a escassez de arte do retratista, e, por isso, de bom grado aceito por outros em meu lugar o fariam com maior brilho e erudição.
Todavia, não obstante reconhecer a evidência do contraste, subo confiadamente a esta tribuna, levado não por méritos pessoais, que não possuo, mas sim, pelo forte imperativo nacional de que, como portugueses que somos, temos todos de contribuir, na medida do possível, para enaltecer a vida e os feitos gloriosos de um dos maiores expoentes da história pátria, porque tenho para mini que a evocação da memória do infante de Sagres e a projecção universal da grandeza da obra henriquina através do espado e do tempo, além de constituírem razões históricas de largo alcance político, que nos impõem ao respeito dos outros, nos proporcionarão a todos neste período conturbado da história que atravessa a humanidade lições preciosas de patriotismo e estímulos de fé e de confiança nos destinos da Pátria comum.
Sr. Presidente: quando se debruça sobre a história dos Descobrimentos portugueses fixada em brônzeas oitavas pelo épico português, fiel intérprete da alma nacional, quando se assiste ao desenrolar dos feitos heróicos desta pequena mas atrevida casa lusitana, praticados por tantos varões ilustres, «que se vão da lei da morte libertando», no dizer de Camões, quando se contempla o adejar de lenços brancos a acenarem às naus e caravelas que partiam, barra em fora, em demanda do desconhecido, parece que não há portu-

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guês algum, por menos patriota que seja, que não sinta vibrar-lhe o peito de emocionado orgulho nacional ao recordar no seu espírito essas figuras ilustres e venerandas de antanho que nos legaram, a par das suas conquistas de espírito, um vasto e precioso património - o património sagrado do ultramar- que vem pesando de há séculos sobre os ombros de Portugal e que importa acima de tudo, na hora que passa, defender a todo o transe das ameaças que rondam de Iodos os lados.

Ora entre essas figuras de antanho, que se sublimaram na história pelos seus brilhantes cometimentos, que os tornaram credores da admiração e orgulho nacionais, destaca-se, como astro' de primeira grandeza, o infante D. Henrique, a quem a tradição distinguiu com o epíteto de Navegador, não porque muito navegasse, porquanto as maiores excursões marítimas que lhe conhecemos não passaram além de Marrocos, mas sim porque, de facto, se reconheceu que à acção heróica e persistente do infante se deve a existência do património ultramarino, que, não obstante as vicissitudes por que passou através dos séculos. Portugal ainda possui nas cinco partes do Mundo e que constitui a sua maior glória.
Todos sabemos quem foi o infante de Sagres. Filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, D. Henrique nasceu no Porto a 4 de Março de 1394.
Dotado de uma vasta erudição e cultura, honesto, estudioso, vivendo o idealismo do intelectual, aliado admiravelmente à energia persistente e activa do realizador intimorato, que não recua nunca perante as maiores dificuldades, empreendedor e audacioso marinheiro, afeito às tempestades do mar, alma nobre, corajosa e generosa, coração magnânimo e generoso de sentimentos, adornado de virtudes cristãs que aprendera a cultivar logo no regaço materno dessa nobre figura de mulher e de mãe que foi D. Filipa de Lencastre, o infante D. Henrique possuía, em admirável equilíbrio, um conjunto de qualidades e dotes invulgares que o colocavam acima do vulgar dos príncipes do seu tempo.
Homem de estudos e ávido de saber, para mais facilmente se dedicar aos seus trabalhos e à contemplação do cosmos, que lhe intrigava o espírito, espicaçando-lhe sem cessar a curiosidade, renunciou voluntariamente ao convívio da corte e às alegrias legítimas do coração humano, porquanto o sonho grandioso que lhe embalava a alma, traduzindo-se para elo na certeza da existência de terras desconhecidas e povos ignaros que importava libertar do jugo islamita e trazer à fé cristã, não se compadecia facilmente com os cuidados da vida familiar.
Na verdade, D. Henrique, forte e casto até à morte, não deixou geração, mas, em contrapartida, legou à Pátria e à humanidade os mais belos e preciosos frutos da sua geração intelectual, que se consubstancia nos descobrimentos portugueses e na descoberta de novos mundos, até então vedados ao conhecimento humano, os quais constituem, por isso mesmo, a posteridade gloriosa,, os filhos legítimos do infante de Sagres.
Metódico e persistente, com uma rapacidade invulgar de notável organizador, de carácter decidido e voluntarioso, próprio de quem sabe' perfeitamente o que quer e paru onde vai, D. Henrique reuniu à sua volta, junto de Sagres, onde se refugiava, a par de ilustres mareantes, cientistas e sábios, eminentes cartógrafos, cosmógrafos e astrólogos, com os quais estudou problemas náuticos e tornou possível abalançar-se à conquista dos oceanos, devotando-se com ardor à expansão ultramarina, que veio a constituir a maior grandeza de Portugal.
Com efeito - escreve Damião Peres - D. Henrique não foi realmente um geógrafo, mas tudo mostra que a sua inteligência se abria à curiosidade geográfica; não foi cartógrafo, mas soube compreender e ulilizar os merecimentos dos que o eram; não foi um missionário, mas promoveu o proselitismo cristão; não fui um cruzado, mas combateu contra os Muçulmanos na conquista de Ceuta e na tentativa de Tânger; não foi um descobridor, mas estimulou as navegações de descobrimento; não foi um mercador, mas impulsionou a exploração mercantil do ultramar português; não foi um economista, mas soube criar o intercâmbio do produções, tão característico da expansão ultramarina do Portugal. Sem ser enorme em um só aspecto -conclui o mesmo autor- foi muito graúdo no conjunto deles.
Embora D. Henrique cedo revelasse uma propensão natural para a ciência náutica e para as coisas do mar, todavia foi após a primeira excursão militar em terras de África, onde recebera a consagração ritual da cavalaria, que no sou espírito teria desabrochado a ideia grandiosa de uma expansão em larga escala, visando não só a destruir o crescente poderio muçulmano, que lhe parecia estender-se sobre toda a Ásia e toda a África, mas. sobretudo, implantar a cruz de Cristo e atrair, como escreve o autor das Décadas, as bárbaras nações ao jugo da religião cristã.
Curioso investigador que era, teria aproveitado os poucos meses de permanência em Ceuta, aonde voltara em 1418 em socorro h cidade, sitiada pelo rei mouro de Granada, acompanhado de seu irmão o príncipe D. João, para tomar contacto com os Mouros e Árabes, colhendo deles elementos preciosos de informação acerca do interior de Marrocos e de Fez. da existência de tribos berberes, que habitavam o continente africano, da vastidão incomensurável do Saara, dos grandes rios africanos, dos grandes mercados do deserto, do ouro de Tiniboctu e do precioso marfim proveniente das terras de Guiné.
Profundamente versado em astronomia e nas ciências exactas, procurando actualizar dia a dia os seus conhecimentos na observação directa da natureza para dela colher informes seguros que o habilitassem a realizar os seus intentos, ao mesmo tempo despido de vaidades e sem ambições pessoais, retirou-se para o seu rochedo de Terçanabal, onde deu início à famosa Escola de Sagres, verdadeiro alfobre de grandes mareantes, ([lie, seguindo a rota por ele traçada, haviam de cruzar mais tarde os oceanos em todas as direcções, desvendando novos mundos ao Mundo.
De facto, foi da escola prática de Sagres, aonde acorriam pressurosos de vários pontos da Europa todos aqueles que quisessem aprender a arte de navegar, que saiu essa plêiade ilustre de marinheiros da envergadura de um Gil Eanes, de um Bartolomeu Dias, do um Vasco da Gama, de um Pedro Alvares Cabral, de um Afonso de Albuquerque, de um Fernão de Magalhães e de tantos e tantos outros.
Foi nessa mesma escola que se formaram os verdadeiros técnicos e peritos da arte de navegar - os pilotos portugueses -, que foram os mestres de toda a Europa durante os séculos XV e XVI na ciência do mar. Porquanto foram eles que depois dos Fenícios se atreveram confiadamente a navegar para o alto mar conhecendo perfeitamente o curso dos ventos dominantes, capazes de determinar a latitude pelo Sol e a posição dos barcos quando estes se encontravam a muitas milhas de distância da terra.
Recolhido no promontório de Sagres, longe rio bulício da cidade e do tumultuar das gentes, passava longos dias e noites de vigília, já debruçando-se sobre os mapas e cartas, já mergulhando o seu olhar inquieto no estendal imenso desse mar profundo, cujas ondas

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vinham desfazer-se em espuma contra os rochedos, como a querer descobrir-lhe os segredos e animá-lo a devassar as terras, que a intuição fulgurante do seu génio virá aflorar à tona das águas do oceano.
Com uma preparação sólida, adquirida no estudo, na meditação, no silêncio o, na paciente investigação das coisas, das terras e das gentes que nelas habitavam, foi possível ao infante apontar decididamente aos seus marinheiros o rumo a seguir, dando assim início à tarefa ingente e gloriosa, dos descobrimentos portugueses.
Assim surgiram à tona da existência, fazendo parte da órbita da Nação Portuguesa, as ilhas do Porto Santo e Madeira e o arquipélago dos Açores; assim foi ultrapassado pela primeira vez na história o cabo Bojador, que era onde terminava o mundo medieval e que constituía o limite máximo para além do qual não era permitido a ninguém navegar: assim se desvaneceram, uma a uma, as lendas do Mar Tenebroso, cujas ondas reinaram, abrindo passagem às quilhas audaciosas dos marinheiros portugueses.
De facto, Gil Eanes, dobrando e passando além do cabo Bojador, como jurara ao infante antes de embarcar, vibrou o golpe mortal à geografia da Idade Média, mostrando com as rosas de Santa Maria, colhidas no litoral africano, que o mundo era mais vasto do que se supunha naquela época.
Estava lançado o passo decisivo, porventura o mais difícil, na história dos Descobrimentos.
Continuando no rumo encetado, sob a vigilância atenta do infante, os pioneiros que se lhe seguiram descobriram o rio do Ouro, em 1436, o cabo Verde, em 1444, as ilhas do mesmo em 1456, e praticamente toda a costa ocidental de África.
Mas o período áureo com que culminou a história dos empreendimentos marítimos iniciados pelo infante. D. Henrique foi sem duvida alguma, o descobrimento do caminho marítimo para a índia, em 1498, por Vasco da Gama, e o Brasil, em 1500, por Pedro Alvares Cabral.
Se, por um lado descobrindo o Brasil, Pedro Alvares desvendou ao conhecimento humano a existência do novo continente, por outro, a viagem de Vasco da Gama à Índia uniu o Ocidente ao Oriente.
Com estes dois descobrimentos sensacionais, que por si sós imortalizariam a nação Portuguesa, dir-se-ia que a Europa, expurgada do paganismo e transfigurada pelo cristianismo, acabava de estender, generosa, as suas mãos para envolver num mesmo amplexo o Mundo inteiro, pelos braços de Portugal.
E se considerarmos que a descoberta de novos mundos ao Mundo, levada a efeito pelos navegadores portugueses, veio modificar profundam ente a civilização humana; se atendermos em que durante séculos em que nasceram o pereceram as civilizações mais antigas o se desmoronaram os maiores impérios passaram tantas e tantas gerações sem o verdadeiro conhecimento da maior parte da. Terra, que habitavam, impõe-se reconhecer que Portugal contribuiu como ninguém para o progresso da humanidade, para a maior transformação que se tem operado no Mundo inteiro.
E tudo isto, que constitui a grandeza e o orgulho legítimo de Portugal, deve-se à iniciativa e à acção persistente, firme e heróica de um homem - o infante D. Henrique. Ditosa pátria que tal filho tem na sua história !...
Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Teixeira da Mota: - Sr. Presidente: ao homenagear hoje aqui o infante D. Henrique e os homens da sua geração, entre o muito que haveria a comentar, limitar-me-ei a realçar os aspectos náuticos da revolução que então foi operada, pelos Portugueses.
Para compreender o que foi esta revolução torna-se necessário referir brevemente o estado tia ciência e cartografia náutica autos do infante e falar também do estágio que atingiu em consequência da acção dos seus homens do mar. Na realidade, a expansão dos Portugueses e, 'depois, dos outros europeus foi uma consequência directa da criação - de uma nova arte de navegar, oceânica e astronómica, que permitiu verdadeiramente a unificação da humanidade, se assim se pode chamar ao conhecimento mútuo e intercâmbio de todas os seus elementos.
Ao iniciarem-se, os Descobrimentos Portugal encontrava-se entre duas zonas em que as práticas de navegação apresentava certos aspectos distintos. Nos uivares do Norte, com vastíssima plataforma continental submersa a pequena profundidade e com elevadas marés, o marinheiro navegava sem bússola e som cartas, por conhecenças costeiras, quando à vista de terra, e pelo exame das profundidades e das natureza do fundo, quando afastado dela. Com tal técnica de navegação, e com a ajuda do avistamento das ilhas montanhosas ao longo do trajecto, os ousados Vikings haviam assim ido da Noruega à Gronelândia, praticando já de certo modo uma navegação oceânica, em que recobriam também às indicações do voo das aves e a certas formas muito empíricas e primitivas de utilizar os astros.
Para leste de Portugal, na bacia mediterrânea, originara-se um outro tipo mais evoluído de ciência náutica, resultante sobretudo do aparecimento da agulha magnética, a da sua fixação sob uma rosa-dos-ventos com 32 rumos. Em consequência nascia, talvez no século XII ainda, o que se podia já chamar uma verdadeira carta náutica, caracterizada pela teia das linhas de rumo, sobre que se baseava o traçado das linhas costeiras. A navegação do Mediterrâneo, assim estruturada e por imposição das condições geográficas, não passava ainda de uma mera navegação costeira.
Portugal, pela sua situação entre estas duas zonas, a do Norte e a do Mediterrâneo, cedo recebeu o influxo destas duas artes de navegar e ambas assimilou. Na primeira metade do século XIV, com a ajuda técnica dos genoveses trazidos pelo almirante Pessagno, expedições portuguesas aventuravam-se já para o sul e oeste e descobriam os arquipélagos da Madeira e Canárias, e talvez mesmo, fugidiamente, os Açores.
Esta primeira, expansão marítima detém-se porém, e é preciso esperar pela geração do infante D. Henrique para que ela recomece do forma já a não mais se interromper. Um condicionalismo geográfico estreito impunha, porém, obstáculos que teriam de ser vencidos sucessivamente. Em primeiro lugar, o regime de ventos para o sul, com o predomínio dos alisados, tornava difícil ou impossível o regresso de navios de vela ao longo da cosia de África. Para além do cabo Bojador, as costas desoladas e áridas do Sara não ofereciam condições favoráveis ao aprovisionamento frequente das chusmas de remadores, caso se utilizassem as galés. Eram os primeiros obstáculos, e venceram-se desenvolvendo, por um lado, um tipo especial de caravela, com boas condições de bolina, permitindo bordejar avançando contra o vento; e, pelo outro lado, praticando a volta do mar largo, com os alisados pelo travos a ganhar a latitude dos Açores e a região dos ventos variáveis e do oeste, com os quais se podia já regressar directamente à Península.
Alargava-se assim para o sul a descoberta da costa africana, e, em consequência, aumentava progressiva-

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mente a duração das viagens em pleno oceano, longe da costa. A simples estima das distâncias percorridas aos rumos indicados pela bússola revela-se insuficiente para conhecer com um mínimo de precisão a posição do navio. Nasce, então, em condições ignoradas, mas ainda em tempos do infante, a primeira fase da navegação astronómica no Atlântico; pela observação dos astros passa a corrigir-se a estima do caminho norte-sul andado pelos navios. Ficava firmemente estabelecida a navegarão oceânica, apoiada por uma embrionária navegação astronómica susceptível de rápido desenvolvimento. Já possuidores de navios adequados, senhores de um conhecimento progressivo dos agentes físicos no Atlântico e mestres de uma técnica de navegação oceânica em que não havia o perigo de se perderem nas imensidões do mar, os Portugueses, ao morrer D. Henrique, tinham em sen poder a chave para a descoberta de todo o Mundo. Bastava audácia e fé, e estas não lhes faltavam. Uns dez anos depois do passamento do ilustre infante já estavam na Costa da Mina, e logo após ultrapassavam o equador.
Entrava-se no Atlântico Sul, desaparecia do firmamento a fiel Estrela Polar, surgiam novos sistemas de ventos e correntes. Aparecia o genial continuador do infante, o Príncipe Perfeito, e as novas dificuldades cedo são vencidas. Progride a ciência náutica, criam-se os primeiros regimentos de determinação da latitude a bordo, e com eles e com o primeiro embrião do almanaque náutico parte, em 1482, Diogo Cão com rumo ao Congo. Afamados cosmógrafos e grandes pilotos, como mestre José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira, efectuam febrilmente o primeiro levantamento moderno, por latitudes, da costa africana, legando-nos uma obra primorosa, que se pode ver no planisfério do Cantino e no Esmeraldo de situ orbis, e proclamando a nova verdade de que «a experiência é a madre de todas as coisas», Bartolomeu Dias, com caravelas, descobre o cabo e a zona dos ventos do oeste, verificando a simetria do regime das correntes de ar nos dois hemisférios, que permitirá traçar u genial rota paira os navios de pano redondo seguida por Vasco da Gama alguns anos mais tarde.
É a época áurea. Os navios portugueses cruzam o Atlântico em todas as direcções, Cabral vai ao Brasil e os Cortes Reais à Terra Nova dos Bacalhaus. Isola-se no firmamento austral o Cruzeiro do Sul e, dentro de poucos anos, Pêro Anes e João de Lisboa regimentavam-no para determinar as horas e alcear a latitude durante a noite. Fechava-se o ciclo da criação dos regimentos náuticos fundamentais e da carta graduada em latitudes, e com esses instrumentos os marinheiros europeus, portugueses e outros, iriam devassar, dentro em pouco, todos os oceanos do globo.
Em 1498, ao chegar a Melinde, Vasco da Gama encontrava-se com um piloto árabe que o conduziria, ao Malabar - e a quem os nossos cronistas denominaram de Mal em a Cana, sendo identificado pelos modernos historiadores como Ahmad Ibn-Madjid, o mais famoso piloto árabe do Indico em todos os tempos, dele se conservando nos arquivos europeus dezenas de tratados náuticos e roteiros, alguns dos quais, os de Leninegrado, recentemente editados pelo russo Chumovsky. Quis assim o destino que, ao fechar-se o século XV, se encontrassem precisamente, em circunstâncias únicas, num porto da África Oriental os dois mais categorizados representantes da ciência náutica do Ocidente e da ciência náutica do Oriente. Este encontro reveste-se de aspectos que lhe conferem o valor de um símbolo.
Os Árabes praticavam no Indico, e faziam-no desde há séculos, a navegação oceânica e utilizavam processos de navegação astronómica que oferecem notável paralelo com os que os Portugueses criaram nos tempos do infante D. Henrique. A sua ciência náutica, nesse aspecto, estagnara havia muito, e os portugueses de Vasco da Gama já lhes levavam larga dianteira nesses conhecimentos. É sintomático que num dos roteiros recentemente publicados, relativo à África Oriental e escrito já alguns anos após a chegada dos Portugueses ao Índico, Ibn-Madjid utilize, como claramente indica, elementos obtidos dos Lusitanos e exclame mesmo a certa altura, «agora a ciência e arte vêm dos Francos».
Isto é, o mais destacado elemento da ciência náutica oriental era o próprio a reconhecer a superioridade, nesse domínio, dos Portugueses recém-chegados. Creio que não pode haver mais claro testemunho do significado, na história da humanidade, da criação original de uma nova ciência náutica pelos Portugueses do que estas afirmações do Ibn-Madjid, o Leão dos Mares. Foi essa ciência náutica, símbolo do maior dinamismo da cultura ocidental, que levou os Europeus a penetrarem no Indico antes de os Asiáticos descobrirem os meios de chegarem ao Atlântico e colonizarem as suas margens.
Tal criação constitui o mais importante contributo científico de Portugal na história da humanidade. Alguns anos depois de o Leão dos Mares escrever o seu roteiro, que hoje se encontra em Leninegrado, Pedro Nunes, o mais afamado sábio português de todos os tempos, e que só universalizou precisamente pelas suas obras sobre ciência náutica, escrevia estas palavras: «Não há dúvida que as navegações deste reino de cem anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente do Mundo. Os Portugueses ousaram cometer o grande mar oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e novas estrelas... E fizeram o mar tão chão que não há quem hoje ouse dizer que adiasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos ou sequer algum penedo quo por nossas navegações não seja já descoberto».
Nesta passagem de Pedro Nunes ficou bem vincada a consciência nacional e o orgulho de ter criado o instrumento por excelência da expansão marítima e ultramarina portuguesa e depois da de outros povos europeus. Os regimentos náuticos Lusitanos foram integralmente adoptados pelas outras nações marítimas do Ocidente, em primeiro lugar pela Espanha. Quer através de traduções directas, quer indirectamente, através dos tratados de navegação espanhóis quer ainda pela prática e ensino conferido por numerosos pilotos portugueses ao serviço de outros países, é fácil verificar que até fins do século XVI os regimentos náuticos portugueses foram o guia dos marinheiros europeus que se lançaram nas aventuras da expansão marítima. O mesmo se verifica com os roteiros, pois também neste domínio os Portugueses foram grandes pioneiros e redigiram as mais antigas descrições das costas que descobriram ou foram os primeiros, entre os Europeus, a navegar. Passando ao domínio da cartografia náutica, tornaram-se os mestres consagrados durante largo período, levantando pela primeira vez algumas dezenas de milhares de quilómetros de costas descobertas. A colecção de cartas náuticas portuguesas, que hoje ainda existe, e quo não passa, aliás, de uma ínfima parte da assombrosa produção nacional dos séculos XV e XVI, não tem equivalente em qualquer outro país de grandes tradições marítimas e constitui um dos mais altos valores do património científico de Portugal. Nessas cartas, em que à perfeição técnica se alia um elevado sentido artístico, espelha-se, como em nenhum outro documento, o transcendente significado da criação de uma nova arte de navegar, que levou as caravelas a todos os oceanos e a tantos litorais e universalizou a pequena casa lusitana.

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Tudo isto começou a desabrochar nos tempos do infante D. Henrique e em grande, parte por sua acção. Pode dizer-se que Portugal, que já havia nascido, só então encontrou as suas reais dimensões e, transbordando através dos mares, se constituiu na, sua expressão autêntica de nação transcontinental e plurirracial.
Tenho, dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. José Saraiva: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: velando por todo o arco da noite, rodeado de gentes de nações diversas, aí onde «se combatem ambos os mares, o grande mar Oceano com o mar Mediterrâneo», erecto na rocha gótica que se doira no primeiro amanhecer da Renascença, assim entrou na história aquele infante português, que mereceu ser celebrado por cavaleiro do mar, apóstolo da Fé, obrador de muita cristandade, coluna desta Europa civilizada e civilizadora e emblema da própria ideia de civilização.
Neste dobrar do cabo para a segunda metade do milénio após a sua morte, não está sozinha a Nação Portuguesa a venerar-lhe a ínclita lembrança. Com ela vem também, erguendo ao alto ramos e pendões, a gente das terras novamente descobertas. Vem o Mundo, onde a chama do espírito permanece viva e os valores da cultura ainda se veneram. Vem, na grandeza do seu corpo místico, toda a cidade de Deus a orar sobre a pedra do seu túmulo.
A cada qual sua razão para a homenagem.
Foi por seu talante que a grei, juntos corpos, almas e fazendas, se abraçou na cruz deste destino, que desde então se tornou para sempre a mesma razão do nosso viver. Por seu mandado, se lavraram barcas e se abalou na demanda dos remotos berços onde nasce o dia. Na argila dos marítimos mistérios plasmou as certezas do saber moderno, e é o seu gesto que cerra na história os portais do tempo antigo e faz dealbar nos céus do Mundo, tempo novo e atlântico. E a própria cruz, que a força dos apóstolos não pudera levar mais longe que onde acabam as veredas da terra, a própria cruz pôde então vencer os abismos do mar e o Salmo se fez verdade: «O Espírito do Senhor encheu a terra inteira».

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Há tantas razões para louvar que a vontade se enleia e a razão se perturba na eleição do louvor. Com vigor igual ao que pôs no amor da sua pátria, exíguo lar de que fez forja de impérios, ele serviu a causa da inteligência e a do evangelho. O fechar de cinco séculos não desterra do número das coisas vivas o pensamento de que ele foi o iniciador e é o símbolo. E julgo que a efeméride que passa, sob o signo de preito àquele que fez «a Terra inteira, de repente, surgir redonda do azul profundo», é uma afirmação da perenidade do génio português, o apontar de um mandamento que, vindo do passado, se projecta no futuro.

O Sr. Paulo Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - A lição viva do infante: eis, Sr. Presidente, o escopo das palavras que escolhi para hoje dizer nesta tribuna. E talvez nem outras houvesse de maior louvor, porque este viver além do tempo, esta libertação da lei da morte, desde Camões os reputamos por mais lídimos sinais da glória verdadeira.
Não apenas em Portugal, mas ainda em todo o mundo culto, evocar D. Henrique é evocar toda a gesta das Navegações e dos Descobrimentos.
Não representa o dizê-lo que se lhe haja de atribuir toda a glória e autoria da expansão portuguesa pelo Mundo: obra nacional, colectiva e comum, ela pôde verdadeiramente ser grande, porque incorporou o esforço da Nação inteira, desde os príncipes ungidos aos pedintes dos caminhos, desde os capitães-mores da armada que el-rei trazia no mar até aos pescadores sem nome, que vieram ao retábulo trajando por melhor gala a rede do seu labor constante. Todos - cavaleiros de Ceuta ou soldados de Aljubarrota, altos prelados, clérigos segrais, frades de roto burel, que esmolaram nas aldeias os resgates dos cativos, os edis das vilas, os sesmeiros das herdades, homens de duros misteres, oficiais dos feitos da justiça ou da Fazenda-, todos estiveram presentes, em seu semblante grave e perspectiva de políptico, tais como os vemos unidos à volta do navegador, na tábua célebre - mera apologia da unidade da Nação, retraio de Portugal que ajoelha diante do seu primeiro mártir, daquele que, nascido em alto estado de infante, aceitara morrer na vilíssima enxerga dos escravos, para dar seu testemunho, ante Deus e ante os homens, de que a terra sagrada da Pátria não há-de servir de moeda, nem que seja para comprar o sangue e a vida dos seus príncipes.
Não, não seria temente da verdade atribuir a um só a glória que entre todos se reparte. Mas assim como os largos rios se tecem no fio de muitos arroios, assim também no histórico fluir há princípio e nascente. E o infante de Sagres é a fonte de que promana o caudal das epopeias, de que, por isso, ele se tornou o símbolo maior.
Ele foi a origem do longo e não concluso cantar que se derrama desde os montes de Timor aos palácios de Brasília. Longo cantar feito de audácias, de pelejas, de saudades e soluços reprimidos, de misericórdias e caridades esparsas por todas as lonjuras que pisámos; cantar espiritual composto em frases que perduram no imo da alma portuguesa; em que se recorda a bruma das manhãs ansiosas da largada e o corpo de Deus dado na praia aos que partiam: «Senhor, eu não sou digno!», em que há olhos, marejados, de mulheres procurando na linha azul do horizonte a notícia dos que nunca mais hão-de tornar e se adivinha o murmúrio de orações doridas, ao pé das lareiras apagadas ou junto ao Santo Cristo, esguido no calvário das arcas, onde, em vez do pão dos filhos, já se guardam só as saudades dos ausentes. Mas onde ressoa também o bradar triunfal dos gajeiros, do alto dos mastros grandes, a anunciar que, para além da cerração das ondas, se avizinham já da terra, os bons sinais; e o som do ferro a fazer sorrir na pedra a face dos padrões que ficavam a atestar cada nova passada no caminho; e o fervor das missas novas nos últimos confins da terra conhecida, e a imagem dos nativos a receber a graça do baptismo à beira dos rios, na espessura das florestas. Onde flui, na doce ladainha do doce falar de Portugal, a voz dos catequistas ensinando a amar a Deus e abrindo os primeiros rasgões na treva de usanças rudes, bestiais. Onde salta, em cascatas de luz, a algaraviada da juventude de todas as raças da Ásia, vinda aos colégios de Goa aprender, por palavras portuguesas, a lição dos mandamentos; onde refulge, em modos de cruzeiro que alumia a solidão do mar, o sacrifício dos 40 mártires do Brasil, e onde domina a voz do apóstolo de Moçambique: é cafres, de negros que sois, espero em Deus quão brancas serão as vossas almas! Onde desfilam os catecúmenos dos primeiros seminários de missões que houve no Mundo e os primeiros diáconos e presbíteros de raça negra que subiram os degraus do altar e onde

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deslumbra a prelatícia veste de D. Henrique, nativo de sangue, filho de soba, e nos alvores de Quinhentos sagrado bispo de Útica em África, por grande rogo que el-rei D. Manuel de Portugal fez ao Papa Leão X. São esses alguns dos inumeráveis exemplos com que começámos há cinco séculos a ensinar o tutano da doutrina, a que hoje, nas assembleias internacionais, se usa chamar dever sagrado.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Era um ensinamento novo, uma lição sem intróito na história pregressa dos povos. Por isso alvoroçou os contemporâneos desse tempo inicial, que lhe entenderam lucidamente o sentido: foi no gesto redentor de guindar um negro desde a treva à claridade que Miguel Angelo pintou Portugal nos tectos do Vaticano.
Nem na história antiga nem na medieva se vira nunca essa eleição de conceitos espirituais como marcas dominantes de algum movimento de expansão. Os sulcos que os bárbaros marinheiros de Creta ou da Fenícia haviam deixado nos mares procediam todos do único propósito do comprar e do vender. Os sangrentos impérios do Oriente foram amassados em despojos, cativeiros, opressões. E até as claridades que, vindas dos montes da Ática, irradiaram pela concha mediterrânea e nela fecundaram a harmoniosa beleza do mundo clássico - até essa expansão foi conduzida na brutal cegueira dos direitos dos povos nativos, e visava não abraçá-los no perímetro nacional, mas tão-somente ocupar-lhes o espaço ou tornar-lhes os recursos; e se o caso grego difere do romano em alguns dos efeitos produzidos, em nada se dissemelha na cúpida intenção que o motivou.
Dir-se-ia que dessa raiz antiga, mais que do próximo exemplo português, brotaram, em tardias vergônteas, os movimentos coloniais europeus dos séculos XVII e XVIII, todos marcados pelo mercantilismo rebuscador do negócio, pela ausência de respeito pelos direitos pessoais e interesses espirituais dos indígenas, e até, em alguns casos, pela destruição das populações nativas, consideradas como vegetação maninha, de que era forçoso limpar a terra, para depois meter nela as sementes da raça branca.
Durante aquelas mesmas centúrias avançavam os Portugueses pelo trilho da sua vocação inicial. Nos recessos íntimos da África ou entre o tumulto das babilónias do Oriente, continuávamos a ensinar a religião dos nossos maiores, única regra nossa conhecida que podia conduzir à igualdade plena entre os homens; carregávamos em nossos navios os primeiros prelos que a Ásia viu funcionar, imprimíamos catecismos, estudávamos os idiomas, publicávamos as primeiras gramáticas de bárbaras falas, disseminávamos a técnica da lavoura e os rudimentos de vário artesanato, ensinando nas senzalas «todo o género de artífices que se vêem em uma república»; construíamos os primeiros hospitais e fundávamos por toda. a parte Misericórdias, mandávamos servir neles os físicos da nossa corte e nunca distinguimos em tanta caridade os filhos dos brancos dos filhos dos negros.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Respeitávamos propriedades e instituições gentílicas, condescendíamos com a autoridade das tribos, mandávamos aos potentados missivas dos nossos reis, onde, em vez de intimações ameaçadoras, se continham mensagens, de paz e de amizade. E sempre afirmámos pelas palavras ditas do alto dos púlpitos, pelo pregão firme das nossas leis e por factos manifestos a unidade carnal do mundo português e a condição de iguais perante a lei de quantos, sem distinção de sangue ou nascimento, nasceram na terra de Portugal. Nós podemos dizer que honrámos nativos com o foro ilustre de cavaleiro fidalgo da casa real; que sempre os aceitámos a aprender e a ensinar nas nossas escolas; que lhes entregámos governos de províncias e chaves de fortalezas. Nós temos documentos que já eram velhos quando o anticolonialismo ainda não tinha nascido ...

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: -... e nos quais se manda pôr a ferros, debaixo de chave na cadeia pública, qualquer pessoa de qualquer estado ou condição que desprezar no trato ou na civilidade os naturais da índia, seus filhos ou descendentes, chamando-lhes negros ou mestiços ou aplicando-lhes outras semelhantes antonomásias odiosas.
Foi essa a maneira de que os Portugueses usaram para merecerem colher agora o prémio da grande paz do mundo lusíada.
Resultado que, por ser único, a alguns aparece como estranho, e que certos se obstinam em não querer compreender, quiçá porque aceitar a Conclusão obrigaria a reconhecer a verdade das premissas, isto é, a legitimidade dos métodos da acção portuguesa no além-mar.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - São esses mesmos os que não alcançam entender também o sentido desta fraterna amizade do Brasil, da grande nação portentosa e orgulhosa, que nas suas horas maiores ajoelha e reza diante da cruz da descoberta ...
Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - ... e que na defesa dos direitos de Portugal aparece a erguer ao céu os seus braços de gigante, que foi sempre livre, para que o Mundo veja que em seus pulsos não ficaram os estigmas de grilhões que nunca usou.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - É esta a experiência, cinco vezes secular, título de que só nós podemos retirar dos livros da história a certidão. Através dela enriquecemos o património moral da humanidade com algumas ideias novas, que se podem cindir na concepção de que colonizar é um dever antes de ser um direito; de que o fundamento moral de tal dever não é o interesse do povo mais adiantado, mas o do povo mais atrasado, e de que se trata efectivamente de um dever sagrado, no sentido de que a responsabilidade pelo seu cumprimento é a mais séria de todas as responsabilidades- nacionais, porque decorre da própria, substância da Nação e da aceitação dos supremos deveres que a obediência da lei de Deus impõe aos povos crentes. Ou, na versão laica desta mesma essencial realidade: porque resulta dos princípios do- direito natural, anterior e subjacente a toda a convenção nascida do engenho humano.
Não têm ainda 100 anos os mais- antigos textos em que nações, só muito depois de nós despertas para a vocação do ultramar, começaram a inscrever, em solenes declarações, alguns dos princípios ínsitos na nossa ética espiritualista, que então a uns apareciam como novidades generosas, a outros como idea-

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lismos simpáticos a que a prudência mandava aderir; tinha-se já, na verdade, perdido muito tempo, e da sementeira dos ventos começava a recear-se a colheita das tempestades.
O reconhecer que foi tarde não apaga em nós o júbilo de ver como, enfim, a flor do nosso exemplo se fez fruto que todos apetecem e como a semente do- génio português concentrava em «i ainda a força para desterrar do Mundo a concepção pagã do colonialismo, substituindo-lhe a ideia mais alta da solidariedade cristã entre os povos.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Do dever sagrado que no Mundo agora se proclama tivemos nós a evidente prioridade; e onde houver justiça não se recusará, a quem colheu as palmas de tantos martírios, o direito a cingir também os louros dessa alegria.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Só é para desejar que a ideia se mantenha *alta e pura, como é, e não venha a servir de ferramenta para a prática de insídias cobiçosas; e que nunca se degrade daquela veracidade abnegada e missionária que nós sempre lhe imprimimos, e à qual por nossa parte saberemos sempre continuar fiéis.
Parece uma visão profética essa página do cronista que descreve o príncipe velando na noite rodeado das gentes das nações. 500 anos volvidos, eis que a obra feita permanece como lição patente à reflexão dos homens responsáveis das nações do Mundo.
E se a experiência, que nós coroámos Madre de toda-las cousas, continua ainda a conferir alguma autoridade, hão-de os estranhos reconhecer aos Portugueses o foro não de discípulo, mas de mestria consumada e diuturna, coisa que sempre há-de valer mais que o ligeiro discorrer, com base só nos conceitos que o engenho descobre e por vezes o interesse passageiro inspira.
E, transmudado ao terreiro da sociologia histórica, o conflito revelado pelos sábios portugueses dos tempos das viagens sobre se há-de pertencer a primazia às «fábulas sonhadas» de que falou Camões, se às «puras verdades já por nós passadas» - o testemunho da observação vivida, do que foi claramente visto e longamente experimentado.
Os caminhos da encruzilhada que em nosso tempo se abrem são, de um lado, a ambição de edificar o futuro dos povos jovens na base de conceitos que, por nunca terem sido provados, só do futuro poderão esperar a confirmação da sua robustez; do outro, a convicção portuguesa de que a marcha para a civilização é um processo lento e natural, em que é arriscado impor fórmulas, em vez de aguardar que os povos as descubram.

Vozes: - Muito bem, muito bem !

O Orador: - Estão frente a frente o método, que consiste em propor como ponto de partida estatutos cuja única provisão de crédito é a de terem sido as metas de chegada na evolução de povos cuja raça, terra, cultura, economia, índole e história eram completamente diferentes das daqueles outros povos para os quais se pretende operar a transferência.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - E o processo de não antecipar o que nem sequer temos séria razão para crer que alguma vez seja verdadeiro e de não incorrer no risco de falsear o curso da história, quer pela adopção de programas que contrariam os próprios fundamentos da nossa acção civilizadora, quer pela imposição de soluções que não se provou ainda coadunarem-se com a vocação de povos de cujo futuro somos, por direito próprio, os únicos responsáveis.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - É esta uma encruzilhada sem precedentes em toda a história da civilização. A sedução inebriante das inovações e a busca interessada de um prestígio fácil podem a outros calar a repugnância que naturalmente inspira o jogar aos dados o destino dos povos; mas aos Portugueses, a quem só «a experiência ensina radicalmente a verdade», não fica aberto esse caminho de arriscar em aventuras a paz vindoura de comunidades de quem temos não formais títulos de mandato ou de tutela, mas obrigação grave de legítima primogenitura.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Em suas aventuras seculares os homens da nossa raça souberam muita vez morrer para que outros se salvassem; mas o que nunca aceitaram foi expor os outros a azos de perdição para poderem salvar-se a si próprios.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Eis, pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, em teor de nua conclusão, qual me parece, pois, ser o providencial significado deste jubileu lusíada e do nosso fervor ao celebrá-lo: na noite dos erros dos homens, na angústia das decisões sem regresso, o gesto do navegador continua, do alto da falésia mística, a apontar ao Mundo a certeza do caminho experimentado, aos Portugueses a responsabilidade e a glória desse destino.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi muito cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Duas palavras para felicitar os oradores desta sessão pelo brilho que deram à homenagem prestada pela Assembleia Nacional à memória do infante D. Henrique. A evocação e a meditação sobre o espírito, vida e obra do grande príncipe da dinastia de Avis, porventura o mais eminente representante da ínclita geração de altos infantes, pode ser ainda hoje uma preciosa e nova inspiração para a geração do nosso tempo. Escolher um ideal superior de vida ao serviço da Pátria; consagrar-se à sua realização ao longo da existência, sem tergiversações nem desanimes; arriscar para essa realização aquilo que o homem tem de mais precioso - a própria existência; sacrificar-lhe ainda os prazeres mais legítimos, sem desviar, por um momento, os olhos da linha de acção que adoptara; que altíssima lição, meus senhores, que nobilíssima- lição, meus senhores ! Lição de ontem, lição de hoje, lição de sempre !
Já não há, meus senhores, a lenda dos mares tenebrosos a afrontar e a destecer. Já não há o gigante Adamastor debruçado no promontório do Cabo, a profetizar catástrofes para os que tentassem ultrapassá-lo. O planeta está desvendado de lês a lês. Mas há ainda outros mistérios mais perigosos, talvez a pesarem sobre o espírito do homem e a perturbarem o progresso e a paz do espírito dos povos.

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2 DE MAIO DE 1960 877

Há ainda lugar no Mundo para grandes aventuras humanas. Pelo nevoeiro confuso dos sistemas, dos falsos evangelhos que envolvem e perturbam e solicitam a adesão das inteligências, pela floresta cerrada dos egoísmos e dos apetites implacáveis, é ainda uma grande aventura humana a abrir caminhos para uma clareira de luz vinda do alto das cumeadas luminosas do espírito, das quais só através dos tempos tem irradiado a civilização, a verdadeira civilização cristã, a civilização moral da espécie humana.
Meus senhores: o mundo geográfico está descoberto. Já não tem a sedução dos mistérios a desvendar; mas no mundo moral, no mundo da edificação espiritual dos povos, da realização da justiça, no domínio interno e no domínio internacional das nações, há ainda vastíssimas e gloriosas empresas a realizar.
Sim, meus senhores, o mundo moderno carece de homens com o espírito de empresa do infante. A lição dele é perfeitamente actual.
Que das comemorações resulte uma renovação de idealismo, de espírito de boa aventura humana pela grandeza da Pátria na justiça e na liberdade e valerá a pena ter despertado D. Henrique do sonho de cinco séculos em que o grande príncipe dorme e descansa das suas jornadas gloriosas pelo Mundo. Que o vulto austero do infante D. Henrique, aureolado dos transportes da fé e da confiança no futuro, seja para o País e, aqui dentro, para a Assembleia. Nacional, modelo a que compúnhamos as nossas atitudes, fonte de inspiração para os nossos pensamentos e acções.
É com estes votos que me despeço do VV. Ex.ªs, afirmando-lhes que a estima e a camaradagem que nos uniu durante estes quatro meses de trabalhos não se quebra, antes se aviva e se forma com a separação.
Tenho dito.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 20 minutos.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Agostinho Gonçalves Gomes.
Américo da Costa Ramalho.
André Francisco Navarro.
Antão Santos da Cunha.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Pereira de Meireles Rocha Lacerda.
Artur Máximo Saraiva de Aguilar.
Artur Proença Duarte.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando António Munoz de Oliveira.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Carlos de Sá Alves.
João Maria Porto.
João Mendes da Costa Amaral.
João Pedro Neves Clara.
Joaquim Mendes do Amaral.
José António Ferreira Barbosa.
José Fernando Nunes Barata.
José Guilherme de Melo e Castro
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Rodrigues da Silva Mendes.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Luís Maria da Silva Lima Faleiro.
Manuel Cerqueira Gomes.
Manuel Lopes de Almeida.
Manuel Maria Sarmento Rodrigues.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
Ramiro Machado Valadão.
Tito Castelo Branco Arantes.
Urgel Abílio Horta.

O REDACTOR - Leopoldo Nunes.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

Página 878

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