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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA DA ASSEMBLEIA NACIONAL
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 19
ANO DE 1962 20 DE JANEIRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
VIII LEGISLATURA
SESSÃO N.º 19, EM 19 DE JANEIRO
Presidente: Exmo. Sr. Mário de Figueiredo
Secretários: Exmo. Srs.
Fernando Cid Oliveira Proença
Alberto Cardoso de Matos
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 56 minutos.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta ao expediente.
Foram aprovados os n.º 16 e 17 do Diário das Sessões.
O Sr. Presidente anunciou estar na Mesa o parecer da Câmara Corporativa relativo às providências destinadas a assegurar o funcionamento dos órgãos de governo do Estado Português da índia e que o mesmo ia baixar às Comissões do Ultramar e de Legislação e Redacção.
O Sr. Deputado Melo Adrião expôs algumas medidas necessárias ao desenvolvimento económico das províncias ultramarinas.
O Sr. Deputado Fernando Frade apontou diversos problemas de Moçambique, pedindo a solução deles.
Ordem do dia. - Terminou a discussão na generalidade da proposta, de lei sobre o emparcelamento da propriedade rústica.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Belchior da Costa, Nunes Barata, Ubach Chaves e Vitória Pires.
O Sr. - Presidente encerrou a sessão às 19 horas.
CÂMARA CORPORATIVA. - Parecer n.º 2/VIII, acerca da proposta de lei n.º 8 (providências destinadas a assegurar o funcionamento dos órgãos do governo do Estado Português da Índia).
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram, 15 horas e 45 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Agostinho Gonçalves Gomes.
Alberto Carlos de Figueiredo Franco Falcão.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alberto Pacheco Jorge.
Alberto dos Reis Faria.
Alberto Ribeiro da Costa Guimarães.
Alberto da Rocha Cardoso de Matos.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre Marques Lobato.
André Francisco Navarro.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
Antão Santos da Cunha.
António Augusto Gonçalves Rodrigues.
António Burity da Silva.
António Calheiros Lopes.
António de Castro e Brito Meneses Soares.
António Gonçalves de Faria.
António Júlio de Carvalho Antunes de Lemos.
António Magro Borges de Araújo.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Maria Santos da Cunha.
António Marques Fernandes.
António Martins da Cruz.
António Moreira Longo.
António da Purificação Vasconcelos Baptista Felgueiras.
Armando Cândido de Medeiros.
Armando Francisco Coelho Sampaio.
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Armando José Perdigão.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Alves Moreira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Artur Proença Duarte.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Augusto José Machado.
Belchior Cardoso da Costa.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Alves.
Carlos Coelho.
Carlos Emílio Tenreiro Teles Grilo.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
D. Custódia Lopes.
Délio de Castro Cardoso Santarém.
Domingos Rosado Vitória Pires.
Egberto Rodrigues Pedro.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Fernando António da Veiga Frade.
Fernando Cid Oliveira Proença.
Francisco António Martins.
Francisco António da Silva.
Francisco José Lopes Roseira.
Francisco José Vasques Tenreiro.
Francisco Lopes Vasques.
Francisco de Sales de Mascarenhas Loureiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Jacinto da Silva Medina.
James Pinto Bull.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Mendes da Costa Amaral.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Bocha Cardoso.
João Ubach Chaves.
Joaquim de Jesus Santos.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Sousa Birne.
Jorge Augusto Correia.
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos.
José Alberto de Carvalho.
José Augusto Brilhante de Paiva.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Luís Vaz Nunes.
José Manuel da Costa.
José Manuel Pires.
José Maria Rebelo Valente de Carvalho.
José Mendes Pires da Costa.
José de Mira Nunes Mexia.
José Monteiro da Rocha Peixoto.
José Pinheiro da Silva.
José Soares da Fonseca.
José Venâncio Pereira Paulo Rodrigues.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Júlio Dias das Neves.
Luís de Arriaga de Sá Linhares.
Luís Folhadela de Oliveira.
Luís Le Cocq de Albuquerque de Azevedo Coutinho.
Manuel Amorim de Sousa Meneses.
Manuel Augusto Engrácia Carrilho.
Manuel Colares Pereira.
Manuel Herculano Chorão de Carvalho.
Manuel João Correia.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel de Melo Adrião.
Manuel Seabra Carqueijeiro.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Manuel Tarujo de Almeida.
D. Maria Irene Leite da Costa.
D. Maria Margarida Craveiro Lopes dos Reis.
Mário Amaro Salgueiro dos Santos Galo.
Mário de Figueiredo.
Olívio da Costa Carvalho.
Paulo Cancella de Abreu.
Quirino dos Santos Mealha.
Rogério Vargas Moniz.
Sebastião Garcia Ramires.
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Tito Castelo Branco Arantes.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Virgílio David Pereira e Cruz.
Vítor Manuel Dias Barros.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 112 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 55 minutos.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Da Câmara Municipal de Poiares a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Augusto Simões no debate acerca da proposta de lei relativa ao emparcelamento da propriedade rústica.
Da comissão da União Nacional de Penamacor a apoiar a intervenção do Sr. Deputado Franco Falcão sobre a criação da comarca de Penamacor.
Do Grémio da Lavoura de Ribeira de Pena a apoiar a intervenção do Sr. Teles Grilo sobre problemas da lavoura.
Do Grémio do Comércio de Chaves no mesmo sentido.
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 16 e 17 do Diário das Sessões.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Se nenhum dos Srs. Deputados pretende fazer qualquer reclamação a estes números do Diário das Sessões, considero-os aprovados.
Está na Mesa o parecer da Câmara Corporativa relativo às providências destinadas a assegurar o funcionamento dos órgãos de governo do Estado Português da Índia.
Vai baixar às Comissões do Ultramar e de Legislação e Redacção.
Tem a palavra o Sr. Deputado Melo Adrião.
O Sr. Melo Adrião: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: posta em dúvida, por interpretações erradas e tendenciosas, a unidade da Nação Portuguesa, cumpre, imperiosamente, defini-la e afirmá-la de modo seguro e categórico.
No ponto de vista moral, as bases estão inabalàvelmente lançadas em valor histórico, a projectar-se no futuro, e a demonstrar um direito, justiça, verdade, a lógica inflexível do conceito da nacionalidade portuguesa ao integrar, vitalmente, em plano indiviso, as províncias ultramarinas.
Mas no ponto de vista de realização concreta, indispensável se torna efectivar as medidas e accionar o mecanismo correspondente que assegurem era aprovei-
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tamento completo e na maior perfeição possível os sentidos, acima e praieiro que tudo, religioso, moral e intelectual que hão-de dar fornia, acentuar e dirigir todas as outras manifestações da evolução consecutiva das realizações económicas.
O Sr. Ubach Chaves: - Muito bem!
O Orador: - E, assim, são os valores, quantitativo e qualitativo, dos homens que educam, instruem e trabalham o único penhor de desenvolvimento eficiente nas províncias do ultramar.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não se trata, pois, de simples problema de emigração; não deve ser uma população em inferioridade de condições do meio em que vive que vá procurar, em ausência temporária, possivelmente em alternativa com países estranhos, compensação que lhe permita regressar à sua parcela natal.
Não é tão-pouco uma transferência com a finalidade de subtrair uma população a influências prejudiciais em determinada região de ordem política ou económica para novos espaços onde possam ser desenvolvidas as possibilidades positivas e, eventualmente, inibidas as de carácter negativo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Deve ser, na realidade um movimento extenso, mas seleccionado, directriz histórica de actuação, em finalidade coesiva tão particular, que se pode considerar apanágio de Portugal.
Com certeza que deverá meditar-se e aproveitar as experiências realizadas na execução e princípios do povoamento, não no simples aspecto de exploração económica, de domínio ou absorção das populações aborígenes, mas, pelo contrário, em interpretação inicia], da qual as outras vantagens serão simples derivadas, de elevação e aperfeiçoamento de aspectos subdesenvolvidos, em direcção, concreta e definida, da educação e cultura, e em eficaz auxílio económico, a resultar a prazo mais ou menos largo, em diferenciação local, justa e equilibrada, merecida e meritória.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não é possível, sem cultura altamente especializada, abrir espaços novos, indicar orientações; mas é permitido antever as dificuldades, considerar a complexidade do estudo e soluções, pelas muitas e inter-relacionadas facetas que se apresentam.
É indispensável elenco de técnicos especializados enviado em escalonamento determinado pelas necessidades mais prementes e convenientemente assegurar a sua eficiência, mas impõe-se a colaboração de escolha de intelectuais que determine as exigências sobrenaturais, morais e culturais dos portugueses de além-mar.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Nem a preparação dê homens nem o condicionamento do meio onde vão viver podem estar à mercê do improviso; nada de perfeito se pode improvisar, pois mesmo. a solução de emergência, embora aparentemente espontânea, quando eficaz, é sempre resultante de laboriosa preparação remota.
E assim pode sugerir-se à criação de organismo do Governo que, por comissões a desenvolver estudos no plano conveniente, pela possibilidade de simplificar aspectos burocráticos e por dotações próprias e adequadas, fosse capaz de atingir a finalidade do povoamento em causa.
E este o pensamento que tenho u honra de apresentar ao Governo, e peço e agradeço a V. Exa., Sr. Presidente, que, no seu elevado critério, lhe imprima a orientação julgada mais conveniente.
Pedir tudo e tudo conceder não é de mais para a grandeza da causa que defende da mutilação premeditada, cruel, desumana, uma das raras nações decididas a manter e desenvolver a única, insofismável, ética capaz de salvar, hoje, toda a humanidade.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Fernando Frade: - Sr. Presidente: sendo esta a primeira vez que tomo a palavra, desejo começar por apresentar a V. Exa., muito ilustre Presidente desta Assembleia e homem público, os meus respeitosos cumprimentos e render-lhe o preito das minhas homenagens.
A todos VV. Exas., Srs. Deputados, as minhas calorosas saudações e sentimentos da mais alta consideração.
Para muitos dos presentes, direi mesmo para a quase totalidade, não sou mais do que um ilustre desconhecido; ilustre somente por força do mandato que o eleitorado de Moçambique me conferiu.
Pertenço a uma família há longa data radicada em Moçambique; em Moçambique passei a minha primeira mocidade; foi lá que iniciei praticamente a vida profissional e onde nasceram cinco dos meus nove filhos.
Com estas curtas palavras tenho unicamente por objectivo patentear a força dos meus sentimentos em relação a sua parcela do território nacional e em que grau portanto desejo vê-la prosperar em paz.
Prosperar em paz.
Eis como em três palavras se consubstancia uma ansiedade, um objectivo. Este é o meu objectivo e estou certo o de tantos os que vivem e trabalham em Moçambique, independentemente da sua cor.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Temos paz nas terras da costa do Indico e é inegável que algo temos feito pela sua prosperidade. Mós cabe formular a seguinte pergunta: como será possível manter essa paz e a nossa presença civilizadora?
Eu sei que ela depende em grande medida da iniciativa de quantos nos querem mal, mas, em igual proporção, se não maior, da força das convicções, da veemência do desejo e da fulgurância e urgência da nossa acção.
O passado recente já nos fez ver que não basta afirmar mil vezes, que queremos continuar a ser portugueses para que o Mundo entenda e aceite as nossas razões e que, portanto, nos deixe completar a nossa missão em paz.
Importa agir em todos os sectores em escala correspondente a imensidade e grandeza de uma missão e de um território. Importa planear e realizar num ritmo correspondente à época em que vivemos.
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Não podemos invocar que o óptimo é inimigo do bom para apoucar as aspirações e limitar os objectivos. Estes são-nos impostos pela realidade dos factos de hoje e não são, por isso, susceptíveis de escolha ou gradação, sob pena de se contradizer a própria realidade que os impõe. E as realidades traduzem-se em números que poderão fazer-nos tremer, mas que não nos podemos permitir temer.
São as muitas dezenas de milhares de quilómetros de vias de comunicação a abrir; são os milhares de escolas e instalações hospitalares a construir; são os milhões de casas a erguer; são os milhões de hectares de terra a cultivar ou cuja produtividade tem de ser multiplicada; são, em suma, os seis milhões de almas e de corpos que precisam de ser espiritual e culturalmente alimentados, vestidos e elevados no nível que todos nós, Sr. Presidente, reclamamos como única meta legítima.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Isto só em Moçambique.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: o ano de 1961 viu-nos, levados pela mão audaz de S. Exa. o Ministro do Ultramar, saltar barreiras que ainda há pouco pareciam intransponíveis.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - De S. Exa. ouviu a população de Moçambique, e posso testemunhar que com emoção, palavras que lhe fizeram entrever a certeza de que 1962 seria ano de realizações e que estas não desconheciam mais a escala dos problemas nem o ritmo em que devem processar-se.
A presença de uma figura de tão alto prestígio e categoria como a do Sr. Almirante Sarmento Rodrigues no chefia da administração moçambicana é garantiu segura, e primeiro exemplo, de que nos aproximamos da escala e ritmo necessários.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E seguindo esta linha de pensamento que quero pôr à consideração de VV. Exas. alguns aspectos de particular importância e especial urgência, sem prejuízo de oportunamente ir desenvolvendo as medidas que considero indispensáveis para tornar realidades as esperanças que em nós nasceram no ano transacto.
Desejo, em primeiro lugar, referir-me ao Conselho Legislativo.
A vontade que anima a população de Moçambique em participar e contribuir activamente no desenvolvimento e progresso da província, a consciência que em vários ensejos e circunstâncias tem revelado e a sua capacidade de realizar, impõem, entre outras razões, que ela se faça representar mais amplamente no seu Conselho Legislativo, com prejuízo do número de vogais natos nele actualmente existentes, caso se entenda não deverem ser aumentados os vogais eleitos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O Conselho Legislativo é constituído por 24 vogais, dos quais uma escassa maioria de vogais eleitos. Esta estrutura corresponde a uma fase ultrapassada da nossa vida ultramarina, que, vivendo hoje sob signo de uma autonomia administrativa que permite o funcionamento do esquema original que é o da nossa Administração, tem de se apoiar cada vez mais em esquemas que permitam a solução dos problemas futuros, abandonando definitivamente os restos de uma concepção colonial já morta.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Constituído e investido das funções que, afinal, não corresponderiam mais do que à ideia central da sua formação, dar-se-ia por esta forma um passo agigantado no sentido de se eliminar o divórcio que insensivelmente, mas de forma acentuada, se foi criando entre a Administração e a actividade particular. O Conselho Legislativo representaria então um órgão através do qual a população, pela voz autorizada dos seus representantes, comparticiparia activamente numa parte importante da imensa tarefa que a todos cabe e que não se compadece com o alheamento de certos sectores.
Desejo seguidamente fazer uma referência ao Plano de Fomento cuja execução está decorrendo e que abrange o período que vai até ao fim de 1964. Para a conclusão deste Plano faltam portanto ainda três anos.
Ora foi ele estudado e elaborada à luz de tempos que não eram os de hoje. Quer as suas premissas, quer os seus condicionamentos, foram ultrapassados, e os objectivos que hoje temos de atacar excedem desproporcionadamente os de então. Razões puramente económicas, já expressas em lei, implicam o desenvolvimento da província num prazo de dez ou doze anos até ao nível que permita a sua efectiva integração no conjunto económico português.
A actual taxa de crescimento do produto interno da província é manifestamente pequena em relação a este objectivo, sobretudo se tivermos em conta o ponto de partida: um produto interno bruto que não deve ultrapassar os 15 milhões de contos e se traduz numa capitação de cerca de 25 por cento da actual capitação na metrópole. E esta desproporção é ainda agravada pela desigual distribuição desse produto pelas massas populacionais.
Que outras razões não houvesse, estas bastariam para que não devêssemos esperar que a execução do II Plano de Fomento chegasse ao seu termo para rever e ampliar o seu alcance.
Tarefas como, por exemplo, as do reconhecimento científico do território ou as da criação de infra-estruturas de comunicações ou as de saneamento, que têm de anteceder uma expansão acelerada da economia, não podem compadecer-se com demoras de anos, quando temos diante de noa um prazo de apenas uma dezena de anos.
Uma brigada de reconhecimento da bacia de um rio, ou uma brigada de estudo de um problema determinado, não digam para que em pouco tempo se possa com segurança expandir a economia de uma província da grandeza de Moçambique. Atrevo-me a dizer, Sr. Presidente, que precisávamos de dentro de seis meses poder ter em mão elementos seguros de juízo que nos permitissem planear com segurança e dimensão o desenvolvimento económica rápido e violento do território. E na» é com a pequenez dos meios atribuídos no Plano de Fomento em curso que, nn prazo breve que as circunstâncias exigem, estas tarefas podem ser cumpridas.
Vozes: - Muito bem!
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O Orador. - Quando, no final do ano de 1058, tive oportunidade de apreciar e discutir o II Plano de Fomento no Conselho Legislativo da província pude observar coroo a todos nos pareceu pequeno um plano que envolvia 5 699 000 contos. Pode, pois, avaliar-se como quão pequeno é na realidade um plano que envolve afinal o investimento de apenas 3 243 000 contos.
Penso, portanto, que não podemos esperar 1964 para acertar o passo pelas realidades. Impõe-se que, num prazo curto, eu diria de meses, não muitos, se pudesse fazer uma reordenação do Plano de Fomento em curso para o ampliar e adaptar às circunstâncias de hoje. Isto não significa que eu esteja a fazer uma crítica fácil ao Plano actual, mas afirmo, sem receio de desmentido, que aquilo que há um ano podia ser proporcional às possibilidades tem de ser hoje encarado em bases completamente diferentes, mesmo que isso signifique uma verdadeira revolução na política dos nossos investimentos e até na do crédito externo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sabemos que para tal tarefa tanto como problemas de dinheiros nos afligem problemas de homens - em tudo nos sentimos pequenos perante a grandeza dos problemas; no entanto, não é reduzindo-nos u diminuta escala dos homens pequenos que possamos ser hoje que estas questões se resolvem, mas temos de encontrar a forma de aumentar os meios e a escala dos homens que os manejara para serem proporcionais a tarefa nacional, que continuo a considerar a salvação de Portugal no Mundo do hoje.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Nestes termos, o Estado, além da ampliação que eventualmente tenha de introduzir nos seus quadros, tem de contar com as potencialidades de homens, conhecimentos e experiência que as actividades privadas - podem oferecer-lhe, quer ultramarinas, quer metropolitanas, quer mesmo até estrangeiras. Se não podemos no quadro dos actividades nacionais recrutar os técnicos em número e qualidade suficientes para realizar o intenso esforço que se impõe a curto prazo, não nus fica outro caminho senão recorrer aos serviços de algumas das muitas entidades estrangeiras que a esta actividade se dedicam.
E para isto não podemos prescindir de todos os elementos de que possamos deitar mão, incluindo aqueles de que dispõe a província, mesmo considerando as suas naturais limitações.
É-me grato citar, nesta altura, o esforço das associações económicas, uma das quais, por exemplo a Associação Industrial, recentemente formada, apresentou ao governador-geral um plano de estudos que mereceu inteiro apoio e aplauso e a promessa efectiva de auxílio financeiro se puser em prática esse plano.
É na grandeza dos problemas que se põem também não posso deixar de pedir, a especial atenção da Câmara para o caracter retrógrado como são encarados os problemas de crédito da província. A isto se deve um sistema que nos leva a poder afirmar que se traduz para um empresário que a ele recorre num sacrifício indevido e para a instituição de crédito num indevido benefício.
Julgo que sejam precisas medidas revolucionárias para corrigir esta situação. Por um lado, é necessário que os disposições legais ou simplesmente regulamentares que porventura restrinjam a possível acção das instituições de crédito neste campo sejam revistas. Por outro lado, é necessário facilitar a instalação em Moçambique de novas instituições que à economia da província queiram trazer a cooperação benéfica do seu trabalho e o influxo dos seus capitais, tirando daí, estou certo, fortes proventos, que à província podiam prestar a sua colaboração.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - É evidente que tudo isto exige uma estrutura completamente nova nos serviços públicos da província e até nos do Ministério.
A «estruturação dos quadros é problema de fundo e há-de requerer estudo atento, mas que nem por isso poderá ser protelado. Na verdade, a estruturo actual tem evoluído por ajustamentos parciais e de compromisso a partir da que correspondia às necessidades de há 30 anos. No entanto, porque se trota de ajustamentos, mantém-se no fundo a estrutura inicial. E é esta que vencida pelos anos e esmagada pelo peso das responsabilidades que hoje enfrenta, urge renovar. Esta renovação tem de ser efectiva a todos os escalões e abranger as relações dos órgãos do Governo Central com os da província.
Mas se queremos de facto levar a bom termo o imenso programa de realizações, que se desenrola aos nossos olhos tomos de pensar que, para além do problema da reestruturação, só com quadros completos e bem preparados isso será possível. Isto conduz-me a afirmar que tem de ser tarefa imediata o recrutamento e preparação de pessoal para os quadros, tendo em atenção as necessidades impostas pela reorganização que há pouco citei e pelo inevitável crescimento que vamos enfrentar. Besta saber em que medida as remunerações presentes e a dedicação dos portugueses à sua obra ultramarina poderão atrair pessoal em número e qualidades suficientes.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: de tudo o que disse se infere a confiança total que de Moçambique trago, confiança que quase excede os estritos limites da razão, em que seremos capazes de descobrir os meios imediatos de vencer as actuais dificuldades.
Deus há-de permitir que os encontremos.
Caso contrário, à nossa geração - e quase diria aos homens que hoje detêm o Poder o futuro terá de pedir as responsabilidades dos destinos a que tivermos conduzido Portugal.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Vai passar-se à
Ordem do dia
O Sr. Presidente: - Continua em discussão nu generalidade a proposta de lei sobre o emparcelamento da propriedade rústica.
Tem a palavra o Sr. Deputado Belchior da Costa.
O Sr. Belchior da Costa: - Sr. Presidente: renovo a V. Exa. Sr. Presidente, agora do alto desta tribuna, as saudações e os votos que tive a honra de formular
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e lhe dirigir ao usar pela primeira vez da palavra no início desta sessão legislativa e peço a V. Exa. que me permita que torne extensiva a renovação destes sentimentos igualmente a todos os Srs. Deputados.
Sr. Presidente: nenhuns especiais atributos de competência técnica ou de cultura especializada concorrem em mini para que eu me possa atribuir o mérito o mesmo a qualidade necessários a uma intervenção proficiente ou mesmo útil neste importante debate para apreciação da proposta mi projecto de decreto-lei sobre o emparcelamento da propriedade rústica.
Por outro lado, vai já longo o debate, e no decorrer dele por certo nada ficou por dizer sobre os problemas que o emparcelamento tende a solucionar, nem tão-pouco sobre os que a sua instituição porventura vem criar.
Nestes termos, nada de novo nem de essencial poderei adiantar a tudo quanto aqui já foi dito, com tanta oportunidade como proficiência, pelos oradores que me antecederam no exame e na discussão da proposta em apreciação; e, se não fora o desejo de marcar uma posição e de trazer ao debate mais um testemunho que, por ser vivido, pode ter algum interesse, por certo teria renunciado a esta minha intervenção.
Provenho, Sr. Presidente, de uma região de um distrito, o de Aveiro, que, embora já fortemente industrializado, ainda mantém e conserva a sua predominante fisionomia de região essencialmente agrícola.
Com efeito, penso que ainda se pude ter como certo ou, pelo menos, como muito aproximado que cerca de metade da população activa do distrito se dedica aos misteres da agricultura, compreendendo-se nesta a pecuária e a silvicultura. Mas se a esta população juntarmos a que se dedica às actividades industriais directamente ligadas à agricultura, ou antes, e melhor, à pecuária e à silvicultura, como, nomeadamente, no que se reporta às indústrias de lacticínios e da celulose ou às das indústrias auxiliares da agricultura, como a do amoníaco, encontraremos um volume de população activa na agricultura muito superior a metade do total da população activa do distrito.
É evidente que só esta consideração é suficiente para se poder concluir da importância que, na economia do distrito, têm as actividades ligadas à agricultura; e tal não pode ser indiferente às preocupações ou mesmo aos deveres de quem como eu tem pela agricultura especial predilecção e à causa agrícola tem dado algum contributo de devoção e de acção.
Se bem que distrito ainda essencialmente agrícola o de Aveiro, certo é que não está na mesma proporção a riqueza da sua produção; mas isto apenas por motivo da fraca valorização com que são cotados, na origem, os cereais, o leite e mesmo o vinho.
Neste capítulo a agricultura da minha região enferma dos mesmos males comuns a outras regiões do País; e esses males podem sintetizar-se nesta verdade simples mas dramática: é de que o custo de produção absorve muitas vezes o valor do produto ou até, em certos casos, o ultrapassa, nomeadamente quando se trata de cereais pobres, como o milho e em alguns anos a batata.
Por isso e acima de tudo o que importa é estabelecerem-se preços que estimulem a lavoura ou, pelo menos, não a deixem mortificar no desalento a que chegou.
Pode, porém, objectar-se que num momento em que se caminha para um nivelamento de preços à escala internacional já não é possível estabelecerem-se padrões de preços senão a esse nível internacional, e pois sem possibilidade de melhoria para os nossos cereais.
Há-de, pois, procurar-se a melhoria da situação económica da agricultura portuguesa pelo recurso a outros meios; e estes só podem ser a diminuição do custo de produção e o aumento de produtividade. Todas as medidas, pois, que da parte do Governo tendam a beneficiar a agricultura, quer para o barateamento ou a diminuição do custo de produção, quer para o aumento de produtividade da terra, são bem-vindas e são meritórias e de imperiosa necessidade.
Muitos agricultores, por mal esclarecidos, ainda pensarão que está nas mãos do Governo o poder fixar a nível alto o preço dos produtos quando o nível internacional de preços já não comporta tal fixação. E então convirá dizer, a esses, para os chamar à realidade, embora talvez cruel, da conjuntura, que esta já não comporta tal possibilidade ou perspectiva.
Assim, e dadas tais circunstâncias, penso que o que todos devemos tentar e, na medida do possível, promover é dedicarmo-nos às tarefas que conduzam à diminuição dos custos de produção e ao aumento da produtividade, pela adopção de técnicas e pelo recurso a meios que concorram para a obtenção desses objectivos primaciais.
É tarefa que se impõe e cuja realização não comporta adiamentos. O êxodo das populações rurais e a sua fuga para as cidades, para os meios grandes e para outras actividades, com o consequente abandono da terra e das actividades ligadas a esta, transformou-se num fenómeno comum e constitui, por isso, um mal grave a que importa pôr cobro sem tibiezas e sem demora, pela adopção de convenientes medidas que proporcionem ao trabalhador da terra um nível de vida equivalente ao usufruído, ao menos, nas actividades secundárias e por forma a outorgar-lhe aquele mínimo de dignidade e de importância social que o coloque em paralelo com os seus semelhantes empregados na indústria ou nos serviços.
Gozam os trabalhadores dá indústria de regalias e de benefícios que estão longe de ser atingidos pelos trabalhadores da terra, mesmo quando estes sejam rendeiros ou pequenos proprietários agricultores; e esta acentuada diferença de tratamento, de privilégios ou de regalias coloca o trabalhador rural numa situação de inferioridade perante os seus semelhantes, muitas vezes os seus vizinhos e quantas os seus próprios parentes, criando-lhe verdadeiros complexos de ordem psicológica que o deprimem, o inferiorizam e o agastam.
Por isso, torna-se imperioso, para travar aquele êxodo, elevar o nível económico das actividades rurais e promover a melhoria do nível económico, moral e social dos trabalhadores da terra e promover sobre eles até um trabalho de recuperação psicológica, de modo a sentirem-se, como os trabalhadores de outras actividades, compensados no seu esforço e dignificados na sua função.
Não é, portanto, apenas uma tarefa de promoção económica; é também uma tarefa de promoção moral e social. Mas é evidente que esta última promoção não se operará sem o progresso da primeira.
Vamos, pois, à melhoria económica como primeiro ponto de partida para a melhoria social e até moral. Não pode haver paz de espírito nem mesmo de consciência enquanto não se usufrua um mínimo razoável de conforto económico.
Sr. Presidente: está o Governo naturalmente preocupado com estes problemas de promoção económica, moral e social dos trabalhadores da terra; e para tanto procura instituir reformas que ajudem a essa promoção ou a fomentem.
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O plano de reorganização agrária; o alargamento das medidas de assistência técnica à lavoura; os programas de defesa sanitária das plantas e dos animais; o alargamento das facilidades de crédito consentidas pela Lei dos Melhoramentos Agrícolas; e muitas outras iniciativas, como, nomeadamente, a reorganização dos próprios serviços, suo outras tantas medidas, meios e recursos postos u nossa disposição em ordem àquela desejada promoção.
De entre essas iniciativas e num plano mais vasto de reorganização agrária põe-se agora à nossa consideração o problema do emparcelamento da propriedade rústica e sua solução legal.
Pouso que estamos todos de acordo em que a propriedade rústica é defeituosa quando excessivamente dispersa e fragmentada. Mas, em abono da verdade, creio que não constitui defeito menos grave a excessiva concentração.
Estamos, assim, em presença de dois males que, ambos, carecem de remédio, e urgente.
No aspecto da dispersão e da fragmentação da propriedade rústica o panorama no meu distrito é mais ou menos idêntico ao de todo o nosso Noroeste.
Assim é que, segundo o inquérito às explorações agrícolas do continente publicado pelo Instituto Nacional de Estatística em 1953, o número de explorações agrícolas no distrito de Aveiro era de 62 138, das quais 60 770 de cultura arvense e 1358 sem cultura arvense.
Destas explorações, apenas 20 498, ou seja pouco mais de um terço das explorações por classes de cultura arvense, ultrapassavam a área de 1 ha sem excederem os 3 ha; e 31 650, ou seja mais de metade do número total de explorações por classes de cultura arvense, não ultrapassavam 1 ha. E explorações que comportavam áreas entre os 3 ha e os 10 ha só havia 8277, sendo que apenas 2648 é que se confinavam entre os 5 ha e os 10 ha.
Por aqui se vê quão exígua é no distrito a média da extensão das explorações agrícolas por classes de extensão da cultura arvense.
Por outro lado, e segundo os dados do mesmo inquérito, dessas 62 138 explorações agrícolas, apenas 10 345, ou seja sensivelmente um sexto, é que constituíam explorações formando um todo contínuo.
Todas as mais, ou seja, pois, os restantes cinco sextos daquele total, eram constituídas por parcelas dispersas, se bom que os maiores números estatísticos a tal respeito se reportem a conjuntos formados por cinco e seis parcelas. Este panorama rural logo inculca a possibilidade da adopção do sistema de emparcelamento à minha região onde as circunstâncias o aconselhem.
Sr. Presidente: são sobejamente conhecidos os argumentos com que se expressam os inconvenientes da excessiva dispersão e fragmentação da propriedade rústica; e o notável parecer da Câmara Corporativa de que foi ilustre relator o actual Secretário de Estado da Agricultura, a quem daqui respeitosamente cumprimento e saúdo por aquele seu exaustivo trabalho e pelo impulso que vem imprimindo à causa da agricultura nacional, fez deles completa resenha e perfeito alinhamento, por forma a dispensar-nos de qualquer nova análise a tal respeito.
Aliás, esses males e esses inconvenientes foram prospectados e diagnosticados já desde há muito precisamente por quem tem as máximas responsabilidades na condução dos negócios da Administração.
Com efeito, o sem se remontar mais além para nos confinarmos apenas dentro da «era de Salazar», aquando da reforma tributária instituída pelo Decreto n.º 16 731, de 13 de Abril de 1929, inseriu-se nesse diploma importante diploma ainda em vigor a disposição, constante do artigo 107.º, a proibir o fraccionamento de prédios rústicos de superfície inferior a 1 ha ou de que proviessem novos prédios de menos de 0,5 ha - isto sob pena de nulidade.
E a respeito desta disposição e das situações criadas no domínio da sua vigência, embora em ordem a iludir a sua autoridade, permita-se-me, Sr. Presidente, que abra aqui um parêntese para uma breve explanação:
A proibição de fraccionamento de prédios rústicos estabelecida por aquele artigo 107.º do Decreto n.º 16 731 comportava algumas excepções, nomeadamente quando a divisão de prédios de área inferior a l ha era condicionada à construção ou à rectificação de estremas.
Mercê das possibilidades que estas excepções, opostas à rigidez do preceito, comportavam, a proibição estabelecida no corpo do artigo passou a ser frequentemente iludida; e isto tanto mais quanto é certo que a lei só estabelecia como sanção, a pena da nulidade, de que ninguém se socorria, nem mesmo a própria Administração, nomeadamente' quando, ao liquidar-se a sisa e ao fazer-se a escritura de transmissão, se declarava que a alienação de parte do prédio era condicionada à construção ou ao arredondamento ou à rectificação de estremas de propriedades contíguas.
Deste modo, o imperativo daquele preceito do artigo 107.º do Decreto n.º 16 731 passou u ser continuamente falseado e a constituir, por assim dizer, letra morta, por falta de sanção capaz; e o fraccionamento de prédios rústicos em parcelas de menos de 0,5 ha passou u operar-se, embora um tanto à margem da lei, com tanta frequência como quando não existia aquele preceito.
Assim se criaram, por esse País fora, inúmeras situações de .facto de divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 ha e em parcelas inferiores a 5 ha, procedendo depois os interessados a divisões e demarcações, à margem da lei, desses mesmos prédios e dessas fracções, de modo a formarem-se novas unidades de facto, ainda que não de direito.
Esta situação perdurou e manteve-se, por assim dizer sem remissão, desde a publicação daquele Decreto n.º 16 731, até à entrada em vigor do actual Código da Sisa, ou seja, portanto, durante o longo período de 30 anos, tempo suficiente para se formar um emaranhado de situações irregulares, embora mesmo feridas da nulidade expressa naquele artigo 107.º do Decreto n.º 16 731, nas que já agora se torna impossível deixar de ter em conta como flagrante realidade do nosso tempo, porquanto, no dia em que se fosse proclamar a nulidade dos actos notariais, ou mesmo judiciais, que conduziram ao estabelecimento daquelas situações de facto, isso implicava com tantos casos e com tantos interesses que provocaria verdadeiro mal-estar geral e atingiria largas camadas da população.
Demais, tais situações estuo em manifesto contraste com idênticas situações criadas em zonas em que já se operou o cadastro predial, pois ao elaborar-se o cadastro nessas zonas teve-se em conta a existência das divisões de prédios derivadas daquelas situações irregulares estabelecidas à margem da lei.
De forma que, enquanto nestas zonas onde existe cadastro predial a situação, ou melhor, aquelas situações de facto estão já legalizadas, nas outras zonas onde ainda se não operou o cadastro predial estão as mesmas situações ainda por legalizar; e assim se criou uma conjuntura de injustiça relativa
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que importa remover e remediar por uma providência legal adequada, espécie de bill de indemnidade quanto às divisões de prédios rústicos em parcelas de menos de 0,5 ha operadas desde a publicação do Decreto n.º 16 731 até à entrada em vigor do novo Código da Sisa, em cujo articulado, neste sim, se prescreveram sanções severas contra o parcelamento de prédios rústicos de área inferior a 1 ha.
E essa providência legislativa bem podia constituir preceito a inserir no diploma que viesse a regulamentar a lei do emparcelamento, se for aprovada.
Para este importante problema, que só domina bem quem na província exerce profissão em sectores onde ele aflora com frequência, me permito chamar daqui a atenção do Governo.
Fecho este parêntesis e regresso agora verdadeiramente ao emparcelamento.
Sr. Presidente: a imperfeita estrutura agrária do País é uma realidade que está à vista de todos e, por paradoxal, tanto mais chocante quanto é certo que aos inconvenientes da demasiada dispersão a norte correspondem inconvenientes não menos graves da excessiva concentração a sul.
São sobejamente conhecidos e prementes os inconvenientes e os males resultantes desta imperfeita estrutura, e por isso penso poder afirmar que todos nós estamos de acordo em que é imperioso e mesmo urgente proceder às tarefas da remodelação da estrutura agrária do solo pátrio de forma a remediarem-se aqueles males e a fazer diminuir aqueles inconvenientes.
E todos devemos ter presente que se deve actuar com rapidez e com decisão nesta matéria, fazendo-se a reorganização agrária para se evitar que venha a fazer-se um dia, por mal dos nossos pecados, o pior de tudo, que seria a revolução agrária.
Bem avisado anda, pois, o Governo em promover essa reorganização de estruturas por meio de planos e providências adequadas, uma das quais é, sem dúvida, este projecto sobre o emparcelamento da propriedade rústica.
Creio, Sr. Presidente, que também todos estamos de acordo em reconhecer ao sistema do emparcelamento da propriedade rústica apreciáveis vantagens de ordem económica em tudo quanto tende à formação e criarão de unidades agrícolas economicamente viáveis e, se possível, de sentido e de dimensão familiar e ao reagrupamento de propriedades dispersas.
Está demonstrado exuberantemente que a demasiada dispersão e o excessivo fraccionamento das parcelas da propriedade rural tornam a gestão da empresa difícil e trabalhosa, aumentam os gastos de produção e não permitem comummente obras e melhoramentos e o emprego de técnicas que façam aumentar e melhorar a sua produtividade.
Por consequência, o emparcelamento impõe-se, de certo modo, como medida de alta conveniência, se não mesmo como obra de imperiosa necessidade. No entanto, penso que a sua adopção não pode ser feita indiscriminadamente e terá de o ser com cautela e com prudência, de forma a ser voluntariamente aceite de preferência a ser imposto, a fim de se evitarem naturais reacções dos populações a que se destina.
Por isso preconizo que antes de se lançar o plano ou se instaurar o processo de emparcelamento de determinada zona se proceda a delicado e aturado trabalho de prospecção fia opinião pública e de propaganda das vantagens do sistema e suas finalidades, interessando nesses inquéritos de trabalhos preliminares todas as
entidades ou pessoas com projecção nas respectivas localidades, e muito especialmente os grémios da lavoura.
Mas, Sr. Presidente, enquanto do emparcelamento estão à vista os convenientes de ordem económica, já o mesmo se não poderá dizer, pelo menos com tanto à vontade, acerca dos convenientes de ordem social derivados da sua adopção. E este é um ponto que não pude deixar de chamar a nossa especial atenção.
Se por um lado há conveniência económica em caminhar-se afoitamente para a formação de unidades agrícolas que comportem uma constituição e uma dimensão que as torne economicamente viáveis e, pois, para uma certa concentração, por outro lado não há menor conveniência, aliás até recomendada na magistral encíclica do Papa João XXIII, em fomentar e proporcionar o acesso à terra de mais densas camadas da população.
Ora a formação de unidades agrícolas de certa dimensão e, sobretudo, a proibição, para o futuro, da sua divisão ou fraccionamento constituem, sem dúvida, sério obstáculo ao progresso daquele movimento de acesso u propriedade.
Por outro lado, a estabilização das unidades agrícolas resultantes do emparcelamento, em contraste com o progressivo aumento da população (já não falando na economia de mão-de-obra a que o emparcelamento conduz), vai libertar da terra cada vez maior número de braços e até de utentes dela - o que se me
afigura delicado.
Vai-se assim criar uma população desenraizada, vivendo a fatalidade de um destino que o impede, na ordem prática, de aceder à propriedade da terra. E é escusado encarecer os graves inconvenientes de ordem política e social quê para a estabilidade da nossa ordem e até da nossa civilização hão-de fatalmente resultar de tão dramática situação.
Penso, por isso, Sr. Presidente, que se torna urgente criar; quando se puser em prática o sistema do emparcelamento, novas actividades nas zonas que forem por ele contempladas, em ordem a ocupar a mão-de-obra sobrante, e fora dessas zonas criar possibilidades de acesso à propriedade das populações excedentárias. Afigura-se-me assim que ao lado do emparcelamento deve caminhar-se resolutamente, como complemento necessário da reorganização agrária, para o parcelamento da propriedade demasiadamente concentrada, de forma u abrirem-se possibilidades de acesso u propriedade de mais densas camadas da população, e do mesmo passo deve-se proceder à reorganização industrial, e muito especialmente à sua descentralização, para se criarem possibilidades de acesso ao trabalho às camadas de população que forem sendo sucessivamente libertadas os trabalhos agrícolas nas zonas em que se proceda a operações de emparcelamento, estabelecendo-se deste modo o necessário equilíbrio entre as vantagens económicas do sistema e as suas possíveis implicações políticas e sociais.
O Sr. André Navarro: - V. Exa. dá-me licença?
O Orador: - Tem a bondade.
O Sr. André Navarro: - É só para um ligeiro apontamento. Estou plenamente de acordo com a doutrina que V. Exa. está a defender, mas gostaria que V. Exa. fizesse qualquer nota sobre a hipótese de esse excesso de mão-de-obra não caber no sector industrial, e assim poder constituir fértil alfobre para o povoamento de
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extensas áreas das províncias do ultramar, e que sito essencialmente' aptas paru culturas do alto interesse industrial.
O Orador: - Agradeço a intervenção de V. Exa., aliás de toda a oportunidade. Penso que as considerações de V. Exa. estão exactamente dentro da mesma linha de orientação das minhas considerações. Apenas localizei a minha observação no plano da metrópole e, assim, limitados esses movimentos migratórios no acesso às parcelas da terra desconcentrada na metrópole.
Mas é evidente que se a corrente se estabelecer no sentido do ultramar, onde há muito mais possibilidades de colocação, tanto melhor.
O Sr. André Navarro: - A terra é lá muito mais fértil e não necessita de um empate de capital tão largo.
O Orador: - Só peço a Deus que possamos por muitos anos ter a possibilidade desse acesso ao ultramar.
Mas à parte este senão, tenho para mim que da adopção do sistema de emparcelamento da propriedade rústica nas zonas em que a propriedade se apresenta demasiado fragmentada, quando precedido de prévia preparação psicológica das populações a que se dirige, é um importante posso no caminho do progresso da nossa reorganização agrária; mas desejaria, repito, que, a par da reorganização pelo emparcelamento, se processasse também o sistema do parcelamento nas zonas de propriedade concentrada e onde tal operação se apresentar economicamente viável e socialmente útil ou mesmo necessária.
A nossa reorganização agrária há-de fazer-se, fundamentalmente, pelos sistemas do emparcelamento e do parcelamento da propriedade rústica.
Pois bem: comecemos pelo emparcelamento, mas volvamos já as nossas atenções para as tarefas do parcelamento da propriedade rústica nas zonas onde a adopção do sistema for aconselhável.
E, Sr. Presidente, porque reputo o emparcelamento um progresso quando bem ordenado e orientado, darei o num voto nu generalidade ao projecto de decreto-lei em apreciação, a esse em quê fie transformou a proposta de lei submetida à apreciação da Câmara Corporativa pelo antigo e ilustre Secretário de Estudo da Agricultura, engenheiro agrónomo Quartin Graça, a cujas altas qualidades de técnico e de homem de Estado daqui presto as minhas respeitosas homenagens.
E porque tenho fé no sistema e plena confiança na competência técnica e administrativa da Junta de Colonização Interna, cuja notável obra, projectada também largamente no meu distrito, nomeadamente através da Colónia da Gafanha, a todos nós merece rasgados encómios e elogios, não tenho mesmo dúvidas em adoptar em casos especiais o sistema do emparcelamento coercivo a título excepcional e quando destinado a eliminar graves inconvenientes de ordem económica e social, como se diz na proposta de alteração do Governo u proposta de lei em apreciação.
Penso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que desde que a imposição do emparcelamento fica dependente da resolução do Conselho de Ministros, tal nos dá garantia bastante para ter como certo que tal imposição só se fará quando, na verdade, especialíssimas circunstâncias tendentes à melhor realização do bem comum o aconselhem e o comandem.
Ninguém terá dúvidas de que em matéria de tanta delicadeza o Governo proceda de acordo com as melhores directivas da realização do bem comum. Por isso, repito, darei também o meu voto à proposta de alteração do Governo à base XXVI do projecto.
Sr. Presidente: porque já cansei demasiadamente a generosa atenção da Câmara, não levarei mais longe estas despretensiosas considerações produzidas a propósito da discussão na generalidade do projecto de decreto-lei em apreciação, nesse em que se transformou a proposta de lei sobre o emparcelamento da propriedade rústica.
Mas, em todo o caso, não queria dar por findo este meu arrazoado sem focar, embora a traços rápidos, um pormenor do projecto de decreto-lei em apreciação que me merece particular atenção e aplauso - qual seja o do papel reservado aos grémios da lavoura no desenvolvimento do processo de emparcelamento.
Teve-os em conta o projecto (como já os havia tido á proposta) ao mencioná-los nos artigos 15.º e 17.º, quer para a constituição das comissões locais de recomposição predial, quer para u formação dos elencos dos tribunais arbitrais. E muito bem. Efectivamente, pela sua constituição e finalidades, os grémios da lavoura suo os órgãos mais naturalmente indicados pura intervir, com idoneidade e com eficiência, nas diversas fases do processo de emparcelamento e para além dos seus aspectos meramente técnico-agrários; e, por isso, não faria sentido que a sua acção e intervenção fosse omitida ou dispensada em trabalhos de tal natureza.
No entretanto, pensa-se que o projecto de decreto-lei é demasiado parco na chamada ou no recurso aos grémios da lavoura, e que assim, e por isso, se deveria possibilitar maior intervenção directa desses organismos nas diversas fases do processo de emparcelamento, nomeadamente nos trabalhos iniciais de prospecção e de inquérito e, muito especialmente, na constituição das comissões locais de recomposição predial, das quais, em meu parecer, deveriam fazer sempre parte o presidente ou um delegado do grémio da lavoura da área a emparcelar, se não também o presidente da Casa do Povo respectiva.
Bem sei que, segundo o artigo 15.º do projecto, fazem parte das comissões locais dois dos proprietários, a designar pelo grémio ou grémios da lavoura respectivos; mas tal não é equivalente à representação do próprio grémio ou grémios, até porque os proprietários a designar hão-de ser donos de terrenos incluídos na recomposição a efectuar; e pode acontecer que não haja coincidência quanto a tais qualidades entre o presidente do grémio da lavoura ou a sua direcção e os proprietários a designar.
Parece-me, portanto, que havia toda a conveniência em decretar-se expressamente a inclusão de um director do grémio da lavoura respectivo nus comissões de recomposição. E, neste sentido, tenho a honra de apresentar uma proposta de alteração a primeira proposição do artigo 15.º
Sr. Presidente: tudo o que se faça em benefício da nossa desalentada e deprimida agricultura é meritório e benfazejo; mas não se deve esperar que o Governo faça tudo, nem muito menos devem atribuir-se-lhe as responsabilidade» ou as culpas de tudo o que se não fez ou se fez mal.
O que se deve é aproveitar as oportunidades e os benefícios que o Governo põe à disposição da lavoura com mira ao progresso do bem-estar rural, adoptando-os e valorizando-os pelo nosso esforço e pela nossa fé para tirarmos deles os melhores resultados e o mais largo proveito. Oferece-nos agora o Governo esta nova oportunidade de valorização agrária e agrícola pelo
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princípio da reorganização da propriedade rústica, a começar pelo emparcelamento. Pois bem: aproveitemos a oportunidade, adoptemos e agradeçamos as medidas e façamos da nossa parte tudo quanto é possível para que ti Nação colha delas os benefícios que se esperam.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Nunes Barata: - Sr. Presidente, Srs, Deputados: permita-me, Sr. Presidente, que as minhas primeiras palavras sejam de saudação para V. Exa. Com elas vai o testemunho da respeitosa estima e profunda admiração que dedico à rica personalidade de V. Exa.
A presença de V. Exa. na Presidência da Assembleia Nacional é um penhor seguro do bom êxito do trabalho que nos incumbirá realizar nesta VIII Legislatura.
A todos os Srs. Deputados dirijo igualmente os melhores cumprimentos, com a expressão de leal camaradagem.
Sr. Presidente: em Outubro de 1958, quando se discutiu, em reunião extraordinária da Assembleia Nacional, a proposta de lei, de autorização do II Plano de Fomento, advoguei uma revisão das nossas estruturas agrárias. No desenvolvimento de tal ideia referi-me mesmo, com relativo pormenor, ao emparcelamento da propriedade rústica e à necessidade de uma lei do arrendamento agrícola.
Ora, se outras razões não tivesse, a simples circunstância desta tomada de posição, confirmada, aliás, noutras intervenções que fiz no decorrer da VII Legislatura, justificaria a minha presença neste debate.
Sr. Presidente: tornou-se quase lugar-comum afirmar que a nossa agricultura revela insuficiências essenciais. Na verdade, embora as condições meteorológicas menos favoráveis dos últimos anos tenham ferido profundamente a lavoura portuguesa, o certo é que causas bem mais permanentes estão na base das nossas dificuldades.
De facto, uma análise da situação, no panorama económico-social da realidade metropolitana, permite-nos salientar:
1.º Que a evolução do produto bruto agrícola não tem acusado sensíveis melhorias nos últimos anos, constituindo mesmo obstáculo a um crescimento mais notável do produto nacional bruto.
Eis o que se pode apreender dos números que a seguir se transcrevem (preços de 1954, em milhares de contos):
[Ver tabela na imagem]
2.º Que, não obstante esta desvantajosa posição relativa do sector primário, este sector alberga grande percentagem da população activa portuguesa, donde uma bem diminuta capitação individual no que respeita a produtividade.
De facto, os censos de 1940 e de 1950 davam a seguinte repartição na população activa:
[Ver tabela na imagem]
3.º Ora esta debilidade sai ainda mais agravada se atendermos a certos desequilíbrios regionais.
Na verdade;
a) A densidade da população é muito diferente nas várias zonas do continente. A uma densidade geral do País, em 1950, de 88,8 hab./Km2, correspondiam valores regionais que iam de 198,2 hab./km2, no distrito de Braga, e de 176,2 hab./Km2, no distrito de Aveiro, até à densidade média dos distritos do Alentejo (Évora, Beja o Portalegre), que era de 29,5 hab./km2.
b) Por sua vez, a análise da distribuição da população activa pelos diversos sectores permite considerar, no continente, tipos de regiões, que vão das nitidamente agrícolas às industriais, ou mesmo ao caso de Lisboa, onde a percentagem acusada no sector dos serviços poderia induzir à suposição de estarmos perante um distrito de tipo evoluído.
Eis o que se apreende do seguinte quadro:
[Ver tabela na imagem]
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c) Mas esta má distribuição da população e das actividades tem correspondência igualmente deficiente nas estruturas agrárias: o minifúndio das regiões do Norte e o latifúndio das zonas do Sul quase permitem dividir o País em duas partes de situações extremas, servindo o Tejo, em certa medida, de fronteira natural.
Acontece mesmo que a propriedade se tem parcelado ainda mais nas últimas décadas, o que criou em várias zonas do País todo um condicionalismo que afecta profundamente a viabilidade de uma exploração económica da terra.
Mas dos inconvenientes da propriedade micro fundiária e dispersa cura, em pormenor, o parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de lei em discussão, o que nos dispensa de comentários mais extensos.
Permitimo-nos, contudo, transcrever o seguinte quadro, que é elucidativo quanto aos desequilíbrios da propriedade e à evolução do parcelamento:
[Ver tabela na imagem]
Observação - Como se sabe, o distrito de Setúbal foi criado posteriormente a 1877.
Os elementos respeitantes a este distrito, que foram omitidos no quadro, relativamente a 1954, traduzem-se assim: número do prédios rústicos inscritos na matriz - 28 188; área média por prédio - 18,11 ha. Deste modo, com o distrito de Setúbal, a área média dos distritos do Sul sobe para 4,22 ha.
Convém ainda salientar o seguinte:
A ausência de eficácia económica e as deficiências nos esquemas institucionais da nossa agricultura conjugam-se, mormente no Sul, com os seguintes aspectos: a existência de grandes massas assalariadas, tantas vezes vítimas de uma proletarização moral e material; a manutenção de formas de exploração da terra à sombra de tipos de convenções arcaicas ou leoninas para aqueles que directamente a cultivam.
Por vezes a parte dominante nestas situações injustas é mais do que absentista. Trata-se de cultores de um capitalismo agrário que nem as leis da economia nem as doutrinas sociais recomendam.
Poderemos, em suma, sintetizar algumas notas da situação rural portuguesa que lhe conferem características de subdesenvolvimento:
1) Grande percentagem de população activa no sector primário, com uma notável presença de desemprego oculto e baixa produtividade no trabalho;
2) Deficiências nas estruturas demográficas naturais, mormente com altas percentagens de mortalidade infantil;
3) Insuficiente aproveitamento das potencialidades produtivas, com diminuta capitação do rendimento, agravada pela má repartição do mesmo;
4) Predomínio, nas regiões de latifúndio, de uma classe dominante, pouco numerosa, e acentuada proletarização de massas, sem mesmo existirem esquemas de segurança social;
5) Ausência de preparação técnica das populações, com notórios inconvenientes para uma fácil adopção de novos métodos de cultivo ou possível reconversão de mão-de-obra;
6) Percentagem ainda acentuada de analfabetos;
7) Ausência de elementos do sector terciário que proporcionem às populações comodidades e serviços compatíveis com um mínimo de existência;
8) Carência de infra-estruturas essenciais à circulação de pessoas e produtos, à valorização da riqueza, às facilidades na própria correcção dos esquemas institucionais existentes.
O problema da melhoria das nossas regiões rurais ultrapassa assim o simples domínio da agricultura, impondo todo um programa de desenvolvimento económico-social, cuja eficácia se deverá tornar efectiva nos mais variados sectores. São estes, aliás, os propósitos dos Planos de Fomento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas mesmo restritos aos domínios da agricultura, poderemos constatar como no II Plano de Fomento se esboçaram investimentos-base relacionados com a hidráulica agrícola, o povoamento florestal e a reorganização agrária, e investimentos complementares conexionados com a assistência técnica à lavoura, a fertilização e correcção do solo, a electrificação rural, a
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defesa sanitária de plantas e animais, os melhoramentos agrícolas, a armazenagem de produtos e a viação rural.
Este diploma sobre o emparcelamento, agora em discussão, não pode ser dissociado da imperiosa necessidade de actuar com urgência e intensidade em todos estes sectores, como, de resto, no âmbito da estrutura agrária portuguesa, é apenas um capítulo de toda uma reforma em cujo espírito e eficiência necessariamente se deve integrar.
Vários oradores têm assinalado nesta tribuna a exigência de elementos complementares externos, como condição de êxito para a reforma agrária. A consciência desta necessidade foi igualmente patenteada na recente exposição do Secretário de Estado da Agricultura, na sessão do Conselho Superior de Agricultura.
Ainda no ano findo, a própria igreja católica, pela voz de João XXIII, na encíclica Mater et Magistra, dedicava no assunto particulares atenções, referindo-se, nomeadamente, ao regime fiscal, aos capitais a juro conveniente, nos seguros e segurança social, à defesa dos preços e ao complemento dos rendimentos agrícolas.
Apenas nestes aspectos lhes tomarei algum tempo, referindo-me à reorganização através do reflorestamento, à generalização dos esquemas corporativos e ao sentido a dar aos movimentos artificiais da população.
Fará aqueles que, como eu, têm obrigação de defender nesta Assembleia os interesses das regiões montanhosas do interior, ganha sentido de utilidade o destruir a ilusão daquilo que já se chamou o erro essencialmente agrícola.
Ainda aqui se me afiguram oportunas as recentes afirmações do Secretário de Estado da Agricultura:
Hoje admite-se, sem discrepância, que o grande tentáculo do Mediterrâneo, ao modelar o clima de grandes manchas do território nacional, nos fadou para culturas arbustivas e arbóreas, nas quais tem de apoiar-se, fundamentalmente, o ordenamento, cultural reclamado pela reestruturação da nossa, agricultura.
Aceita-se, por isso, que a taxa de arborização, que hoje já excede 30 por cento da área aproveitável do continente, deverá ser elevada a mais de 60 por cento.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:
O mesmo é dizer que a cobertura florestal, visando simultaneamente o aproveitamento e a defesa do solo, e favorecida por uma conjuntura económica que se crê não poderá ser grandemente afectada no futuro, terá um lugar fundamental no novo ordenamento cultural a introduzir, nas regiões tradicionais da depredadora cultura cerealífera.
O próprio emparcelamento não pode, pois, abstrair desta realidade. Ouvi, por isso, com redobrada atenção as considerações feitas nesta tribuna pelo nosso ilustre colega engenheiro Egberto Pedro.
Não sei com que intuitos, tem-se procurado, por vezes, lançar confusão relativamente à viabilidade jurídica das cooperativas entre nós opondo-as ao regime corporativo.
Quais as possibilidades das cooperativas no sistema corporativo português?
Conviria, a tal propósito, distinguir as relações entre o sistema corporativo e o cooperativismo das relações entre as cooperativas e o sistema corporativo.
Se entendermos o cooperativismo "como instrumento ao serviço de uma subversão das instituições existentes, como movimento impregnado de ideologia revolucionária" por certo que a coexistência não é possível. Se aceitarmos as cooperativas, "consideradas estas como método inteiramente desligado desse conteúdo ideológico", já a coexistência é viável.
A prática demonstra, aliás, o recurso a cooperativas em sistemas corporativos. Acontece, apenas, que no nosso sistema corporativo os organismos primários rea-, lizam por si mesmos funções que no liberalismo económico costumavam pertencer às cooperativas. Daí a menor expansão destas. Ainda assim, o sector que tem conhecido maior número de experiências cooperativas é a agricultura.
O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - V. Exa. dá-me licença?
O Orador: - Com todo o gosto.
O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Na legislação associativa de 1919 e anterior, estava previsto no regime dos sindicatos agrários exactamente o impulso para uma certa orientação criadora das cooperativas.
O Orador: - Agradeço a intervenção de V. Exa., que é uma achega bastante útil. Adiante farei referência ao que se passa actualmente.
Qual a posição, por exemplo, das cooperativas perante os grémios da lavoura?
A resposta encontra-se na base IV da Lei n.º 1957:
Os grémios da lavoura podem promover a criação de caixas de crédito agrícola, cooperativas de produção e de consumo, ou qualquer outra forma de cooperação permitida por lei, incluindo as mútuas de gado, em benefício exclusivo dos seus agremiados e dos trabalhadores agrícolas.
O Sr. Simeão Pinto de Mesquita: - Exactamente, isso já vinha na lei dos sindicatos agrícolas, como referi.
O Orador:- Só temos que nos louvar pela persistência.
As cooperativas referem ainda o artigo 16.º do Decreto n.º 29 494, o artigo 3.º do Decreto n.º 31 551 e o artigo 3.º do Decreto n.º 32 467.
Toda a orientação nesta matéria de cooperativas resulta, aliás, de um princípio mais geral, consignado ao artigo 41.º da Constituição Política:
O Estado promove e favorece as instituições de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade.
A localização deste artigo 41.º tem permitido afirmar que as fórmulas cooperativas desempenham entre nós aquela função instrumental atrás assinalada.
A reorganização agrária, fazendo um maior apelo às soluções cooperativas, justifica que se encare desde já uma adequada regulamentação desta matéria.
O Sr. Alberto de Meireles: - V. Exa. dá-me licença?
O Orador: - Com todo o gosto.
O Sr. Alberto de Meireles: - Tenho estado a seguir com muito interesse as considerações de V. Exa., até
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porque há dias nessa mesma tribuna ouvi uma referência precisamente negativa ao movimento cooperativo agrícola.
Não intervim nesse momento, colhido de surpresa, mas aproveito o ensejo, com a permissão de V. Exa., para lembrar que em 31 de Dezembro de 1960 havia em Portugal estabelecidas 321 cooperativas, das quais 111 de lacticínios, 82 de vinhos e 56 de lagares de azeite, além de todas as outras que vão desde as de abelhas até cooperativas de toda a espécie, não falando já nas mútuas de gado, que foram referidas pelo Sr. Deputado André Navarro e que têm grande importância e grande disseminação.
Ora quero referir a circunstância de, num sector que conheço melhor e que me está afecto -está realmente a realizar-se com grande entusiasmo e êxito o sector das adegas cooperativas na região demarcada dos vinhos verdes-, ele estar a realizar-se à volta do Grémio da Lavoura. Isso significa que a iniciativa do movimento é acompanhada pelo Grémio da Lavoura.
Nos estatutos de cada sociedade cooperativa prevê-se a intervenção de um representante do Grémio da Lavoura na direcção da sociedade cooperativa. E tem procurado o organismo a que foi dado o poder de orientar o movimento cooperativo na região demarcada articular decididamente as iniciativas cooperativas com os grémios da lavoura, não digo a V. Exa. que com êxito total, porque a própria ingerência do Grémio da Lavoura na direcção cooperativa, mercê da ineficácia dos homens, não tem sido brilhante.
Parece, em alguns casos pelo menos, que se desinteressa da acção cooperativa das adegas. Mas há possibilidade, que está dada nos estatutos e em que fizemos finca-pé, de articular os dois movimentos, porque, como já aqui foi dito pelo Sr. Deputado João Cardoso, não podemos compreender, sem traição aos princípios e estrutura, corporativa, que as cooperativas se arvorem contra a nossa organização gremial. Não pode ser. No entanto, reconheço que, dentro do movimento cooperativo que se está a desenvolver no sector do vinho brilhantemente, a articulação não tem sido fácil nem eficaz. Reconheço-o, mas não por falta de previsão no sistema regulamentar das cooperativas, não porque no sector pelo qual respondo se não tenham chamado veementemente os grémios à colaboração com as adegas. Simplesmente, nem todas as pessoas que estão à frente das adegas estão isentas daquele preconceito, de ideologia estritamente cooperativo a que V. Exa. se referiu, portanto, de raiz socialista...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Alberto de Meireles: - ... que está muitas vezes na base da mística cooperativa que não podemos negar que exista, mesmo nas cooperativas de transformação agrária. Mas penso, de acordo com posições anteriormente tomadas, que é de toda a instância que o problema seja revisto, de maneira que a orgânica cooperativa rural não venha a ser, como já em determinado momento sucedeu em Espanha, atingida gravemente pelas virtualidades e pelo interesse imediato que o movimento cooperativo dá, sem dúvida, aos lavradores e à produção especializada da nossa agricultura.
O Sr. Rocha Cardoso: - Há no Algarve três cooperativas dessas. A de Lagoa é uma coisa que honra a organização cooperativa. Chamamos-lhe, no Algarve, a nossa Federação dos Trigos, pois está organizada como deve ser, porque o presidente do Grémio da Lavoura de Lagoa é também o presidente da adega cooperativa.
Quando os grémios têm um representante na adega cooperativa a coisa corre admiravelmente. Quando não há esse elo, vem a dar-se a tal cooperativa socialzante, como é a Adega Cooperativa de Tavira, cujo presidente estava ligado aos elementos de Beja e está detido pela Polícia.
O Sr. Alberto de Meireles: - O elemento pessoal é, afinal, o elemento útil na organização corporativa e na organização cooperativa, mas não nos podemos fiar em elementos pessoais, que nem sempre actuam ou não conseguem fazer-se prevalecer nas eleições das cooperativas. Portanto, mau é que tudo esteja dependente da boa vontade ou da situação pessoal de um dirigente cooperativo, embora possuído de compreensão e amor cooperativo, e que esteja ao mesmo tempo no sector corporativo do mesmo concelho.
O Orador: -Agradeço a achega de V. Exa., incluindo a referência à cooperativa apícola.
Realmente, ponho aqui a posição das cooperativas dentro do regime corporativo. Por outro lado, as cooperativas integram-se na doutrina social da Igreja.
Ainda na recente encíclica Mater et Magistra, João XXIII insistia nu solução cooperativa.
Há aqui dois problemas: um é a existência de um instrumento jurídico que permita uma actuação perfeita; outro é a formação de homens no sentido de poderem ser eficientes.
Quanto à circunstância de haver indivíduos com mentalidade socializante nas cooperativas, estes têm-se defendido com o argumento de que há muitos indivíduos com a mesma mentalidade no corporativismo. E uma das grandes dificuldades do nosso sistema corporativo é precisamente a traição desses socializantes. Mas isso é um problema de homens, e não um problema de princípios.
Sr. Presidente: afirma-se no parecer da Câmara Corporativa que o emparcelamento da propriedade rústica nem aumenta a terra disponível nem diminui a população que vive sobre ela.
Creio, porém, que se torna necessário, com uma reorganização agrária, aliviar algumas regiões da excessiva pressão demográfica.
Situamo-nos, assim, numa matéria que reputo de importância primordial, mas que nesta oportunidade só referirei por memória.
A taxa do crescimento natural excede na metrópole os 13 por cento, o que corresponde a um saldo anual de vidas superior a 100 000 almas.
Este saldo significa um aumento anual nos efectivos das classes etárias reputadas como activas, que, não obstante as correntes normais de emigração, atingem dezenas de milhares de braços.
Se, por outro lado, atendermos à estrutura dos vários sectores da população activa e a compararmos com as dos países mais evoluídos (por exemplo: a França e os Estados Unidos), concluiremos quão grandes seriam os reajustamentos a realizar, devendo operar-se notáveis transferências de população.
Ocorre-me o modelo que o Prof. Castro Caldas apresentou no II Congresso dos Economistas Portugueses.
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A agricultura poderia comportar uma transferência de população que atingiria mesmo 1 milhão de trabalhadores.
Em trabalho recente (Dr. Nuno Morgado, Perspectivas Demo-Económicas do Povoamento) faz-se uma síntese de vários modelos de estudo, considerando os excedentes disponíveis que necessariamente haveria que deslocar do continente.
Permito-me mesmo transcrever aqui um quadro onde se compendiam várias hipóteses de modelos:
[Ver tabela na imagem]
(a) Estimaram-se os efectivos totais em três vezes os números dos activos.
(b) transformação em vinte anos.
Eis como as realidades da metrópole se conjugam com as necessidades de ocupação dos vastos territórios das províncias ultramarinas. Esta tarefa de deslocação de massas para o ultramar é, a meu ver, um dos grandes objectivos postos à nossa capacidade nesta segunda metade do século XX.
Mas desta questão de povoamento tenciono tratar noutra oportunidade, na Assembleia Nacional, se Deus me der vida e saúde.
Por hoje apenas pretendo acentuar que, de quatro portugueses que anualmente deixam a metrópole, três destinam-se ao estrangeiro (Brasil, Venezuela, França, etc.) e apenas um ao ultramar.
Nos últimos dez anos saíram para o ultramar, em média anualmente, 10 000 portugueses metropolitanos.
O Sr. Quirino Mealha: - Decerto que no número dos que V. Exa. primeiramente citou não estão incluídos os clandestinos?
O Orador: - Não!
O Sr. Manuel João Correia: - São emigrantes novos aqueles a que se referiu como deslocando-se para o ultramar?
O Orador: - O Instituto Nacional de Estatística contabiliza os elementos assim: número de entradas e saídas em cada ano o que dá, em média, um saldo de 10 000. E devo dizer a V. Exa. que terei todo o gosto em lhe fornecer os elementos que desejar.
O Sr. António Santos da Cunha: - Proponho-me tratar deste assunto em grande, uma vez que, de maneira deplorável, os que emigram clandestinamente para o estrangeiro são abandonados à sua sorte.
O Orador: - Há massas de emigrantes que estão absolutamente perdidos para a Mãe-Pátria, como acontece, por exemplo, em relação aos que emigram para algumas regiões de cultura bem distinta da nossa.
Penso que o Estado deve procurar atender a todos, não descurando os residentes nas nações anglo-saxónicas.
Nas ilhas de Hawai, para onde foram cerca de 60 000 portugueses, oriundos, na sua maioria, das nossas ilhas do Atlântico, estão os nossos emigrantes completamente desligados da Mãe-Pátria. Quem visite os Estados Unidos verificará os esforços que as nossas comunidades realizam para se ligarem a Portugal, não encontrando muitas vezes o necessário auxílio da nossa parte.
O Sr. José Pinheiro da Silva: - Apenas uma palavra, para continuar que são realmente em número de 10 000 os metropolitanos que vão para o nosso ultramar. O que há ali é tendência para se julgar menor esse número, por não se considerar o problema em conjunto.
Em cada região apenas se contam os que para lá vão, sem se ter em conta o número total dos que se dirigem a cada província.
O Orador: - Sr. Presidente: já no discurso que proferi em 1958 salientei o melindre de algumas questões ligadas ao emparcelamento.
A psicologia do português, no seu individualismo e na entranhada ligação à terra, poderá ser fonte de dificuldades e atritos.
Acontece que a circunstância de valorizarem excessivamente as suas pequenas propriedades leva os nossos rurais a distanciarem-se daquilo que por terceiros pode ser considerado o valor objectivo de tais courelas.
Por outro lado, quem convive com as gentes dos campos não desconhece como as mesmas, e por vezes bem fundadamente, olham com desconfiança para a colaboração ou intervenção dos serviços públicos.
Tudo isto se projecta nas próprias questões de processo. Basta ter seguido com atenção o desenrolar do presente debate para formular umas tantas interrogações:
Quem decide o emparcelamento? Qual a medida do acordo exigido? Qual o sentido e o poder das maiorias? Qual o valor da intervenção da autoridade pública?
Condicionalismos como os que resultam da dispersão ou da concentração no povoamento, a diferente local das parcelas no que respeita às cotas, a inexistência de caminhos, a variedade na constituição dos solos, os microclimas, os sistemas de afolhamentos, eis todo um mundo de embaraços.
No fundo, e sobretudo para quem começa, o emparcelamento é uma obra de propaganda e de convicção. Tudo o que se fizer poderá vir a ser lançado a crédito
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para o êxito de novas realizações ou pesar demolidoramente nos propósitos mais generosos e construtivos da própria autoridade pública.
Chegamos bem atrasados, relativamente aos outros países da Europa, nesta cruzada de emparcelamento. E se a experiência dos outros nos pode servir de proveito, o certo é que tantos anos de inacção pesam desoladoramente quando se considera a magnitude da tarefa a realizar.
Mas não terá existido uma tradição, entre nós, nas práticas que se opõem à excessiva fragmentação da propriedade?
Negar absolutamente tal facto seria contrário à verdade. Senão, vejamos:
1.º O casal de família, a que Oliveira Martins já se referia, foi posteriormente objecto de consagração legislativa.
É o caso do Decreto n.º 18 551, de 3 de Julho de 1930. Uma modalidade característica foi mesmo a da Lei n.º 2014.
2.º As isenções ou privilégios fiscais, que já Elvino de Brito advogava, encontraram eco, por exemplo, em certas reduções da sisa.
3.º Menos afortunada embora, até por carecer de base justa, foi a expropriação por utilidade particular, a que a legislação pombalina, efemeramente, deu guarida.
4.º O próprio direito de preferência, consagrado no Código Civil, tem um sentido e alcance que o parecer da Câmara Corporativa lhe reconhece.
5.º Finalmente, a fixação de um limite legal de divisibilidade está patente no artigo 107.º do Decreto n.º 16 731, embora a insuficiência de processos tome o preceito menos eficaz e a fixação de uma área idêntica para todo o País lhe dê pouca flexibilidade.
Será, porém, justo confessar que todos estes expedientes pouco têm contado no activo da experiência portuguesa.
O próprio Decreto n.º 5705, de 10 de Maio de 1919, encarando de frente o emparcelamento, nunca deu lugar a realizações práticas que pusessem à prova a sua execução. Pior do que isso: nem sequer foi regulamentado.
Sr. Presidente: assente a discussão sobre o texto da Câmara Corporativa, verifica-se que o ponto que tem dado origem a maior controvérsia é o da base XXVI, no que respeita à coercividade ou voluntariedade do emparcelamento.
Penso que, seja qual for a atitude a tomar quanto a esta questão, ela não tem quaisquer afinidades com os problemas que possivelmente virão a ser considerados nesta Assembleia relativamente ao parcelamento.
Apoiados.
Por outro lado, convirá repetir aqui, para evitar equívocos, alguns princípios da doutrina social da Igreja quanto ao problema do direito de propriedade privada.
O direito de propriedade privada não é absoluto, no sentido que lhe emprestam certas correntes do liberalismo; é antes um meio.
Permito-me transcrever, a tal propósito, o seguinte passo da encíclica Quadragésimo Anno, de Pio XI, onde se expõe a dupla função individual e social da propriedade privada:
Tenha-se por certo que nem Leão XIII nem os teólogos, que ensinaram guiados pelo magistério e autoridade da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida o duplo carácter da propriedade, individual e social, segundo respeita aos particulares ou ao bem comum; pelo contrário, foram unânimes em afirmar que a natureza, ou seja o próprio Criador, dera ao homem o direito da propriedade particular, não só para ele prover às necessidades próprias e da família, mas para que sirvam verdadeiramente ao seu fim os bens destinados pelo Criador a toda a família humana; ora, nada disto se pode obter se não se observa uma ordem certa e bem determinada.
Deve, portanto, evitar-se cuidadosamente um duplo erro em que se pode cair, pois assim como negar ou cercear o carácter social e público do direito de propriedade precipita no chamado "individualismo", ou dele muito aproxima, assim também rejeitar ou atenuar o direito de propriedade privada ou individual leva rapidamente ao " colectivismo" ou pelo menos à necessidade de admitir-Ihe os princípios.
Na radiomensagem de l de Setembro de 1944, Pio XII, por seu turno, ensinava:
A consciência cristã não pode acomodar-se com sistemas que, reconhecendo o direito de propriedade privada, segundo conceitos absolutamente falsos, entram em contradição com uma ordem social verdadeira e sã. É por isso que onde, por exemplo, o capitalismo se funda em tais concepções erradas e se lhe arroga um direito ilimitado sobre a propriedade, à margem de toda a subordinação ao bem comum, a Igreja reprovou-o sempre como contrário ao direito natural.
São ainda de Pio XII as seguintes palavras:
A política social e económica do futuro e a actividade organizadora do Estado, dos municípios e dos organismos profissionais só poderão prosseguir regularmente o seu elevado objectivo, que é a verdadeira fecundidade da vida social e o rendimento normal da economia nacional, respeitando e protegendo a função vital da propriedade privada no seu aspecto pessoal e social. Quando a distribuição da propriedade é um obstáculo a este fim - o que não resulta necessariamente nem sempre da extensão do património privado -, o Estado pode, no interesse comum, intervir para regular a sua utilização, ou mesmo na falta de outra solução equitativa para decretar a expropriação mediante um justo ressarcimento (cf. a Alocução aos beneficiários da reforma agrária de 25 de Junho de 1956).
No que respeita ao emparcelamento, há ainda a ter em conta que o mesmo visa a constituição de unidades de cultura, as quais, numa solução ideal, deveriam favorecer a propriedade familiar. Ora, esta propriedade familiar é defendida como tipo ideal na doutrina da Igreja.
Ensina João XXIII, a tal propósito, na encíclica Mater et Magistra:
Não é possível estabelecer a priori qual seja a estrutura mais conveniente à empresa agrícola, dada a variedade dos meios rurais no interior de cada país e mais ainda entre os diversos países do Mundo. Contudo, quando se tem do homem e da família um conceito humano e cristão, não se pode deixar de considerar ideal a empresa cuja configuração e funcionamento se assemelha à de uma comu-
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nidade de pessoas, nas relações internas e nas estruturas correspondentes nos critérios da justiça e ao espírito já indicado e, mais ainda, a empresa de dimensões familiares; nem é possível deixar de trabalhar para que uma e outra cheguem a ser realidade de acordo com as condições do ambiente.
É oportuno, no entanto, chamar a atenção para o facto de que a empresa de dimensões familiares só será viável com a condição de que dela se possa obter um rendimento suficiente para um nível de vida digno da respectiva família. Para tal fim é indispensável que os agricultores sejam instruídos, continuamente actualizados e tecnicamente assistidos na sua profissão. É também indispensável que eles criem uma ampla rede de iniciativas cooperativistas e que se organizem profissionalmente e intervenham eficazmente na vida pública, quer nos organismos administrativos, quer nos movimentos políticos.
Em conclusão: a intervenção do Estado quanto ao emparcelamento não traz qualquer marca de colectivismo, visando antes a constituição de unidades de cultura que se podem aproximar das unidades familiares. Ora a propriedade familiar, como salientámos, é vista com toda a simpatia pela doutrina social da Igreja.
A discussão sobre a coercividade ou voluntariedade do emparcelamento não afecta, assim, princípios doutrinários de ordem geral, mas antes se situa numa desejável eficiência dos propósitos de reestruturação agrária ou no interesse político de estar atento à defesa dos hábitos ou dos interesses das populações.
Tenho procurado descobrir as razões de algumas atitudes tomadas no decorrer do debate e, se não me engano, parece-me descortinar, além do mais, três posições:
1.º Os que defendem a coercividade, convencidos de que é necessário dar eficácia ao diploma, uma vez votado;
2.º Os que se pronunciam pela voluntariedade, sempre desejosos de defender os povos de intromissões e de evitar reacções sociais com projecção política;
3.º Os que, convencidos da brandura, dos nossos costumes e do que se tem passado em questões como a do arranque das vinhas de produção directa, perguntam a si próprios se valerá a pena desautorizar a lei, votando por uma coercividade que será letra morta.
De resto, no decorrer das discussões, interessaria libertarmo-nos de certas limitações ao preceito da coercividade, embora afirmando-o, ou de certa argumentação na sua defesa, que o anula, as quais, em última análise, o tornariam ineficaz ou reduziriam as posições assumidas a um mero torneio de oratória verbal, quase nos termos de uma guerra de alecrim e manjerona...
Creio que depois de toda a discussão subsistem, como argumentos ponderosos a favor da coercividade:
a) O interesse público do emparcelamento;
b) O momento em que surge no diploma a intervenção coerciva e a forma como a mesma se processa;
c) A seriedade da intervenção do Conselho de Ministros;
d) A influência exercida pela letra da lei, ou seja, os efeitos psicológicos que se podem tirar da simples existência do princípio;
e) A experiência espanhola.
Mas nada disto está em contradição com a necessidade de dar a maior participação aos directos interessados nas decisões e nas comissões; de libertar as propriedades de certas vinculações, que só serviriam para criar atritos ou empobrecimentos, quando não se está seguro da rapidez das diligências que levem a bom termo o emparcelamento; de evitar conluios entre funcionários que pecam por excesso de zelo e certos proprietários "espertalhões" sempre dispostos a jogar a sua sorte prejudicando os vizinhos.
No fundo, o grande problema é o que referi acima e tem sido inúmeras vezes enaltecido nesta Assembleia:
O planeamento, o ordenamento, a propaganda e a convicção serão os melhores factores do sucesso deste diploma, a que me permito, Sr. Presidente, dar o meu voto de aprovação na generalidade.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. João Ubach Chaves: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: a alteração da estrutura agrária de um país não encontra similar, pela sua transcendência e repercussões, com qualquer outra iniciativa do Poder. As razões são de todos os estudiosos destes problemas suficientemente conhecidas para que delas nos devamos ocupar. O cerne da Nação, o que detém a alma do povo e se desdobra em potencial de acção criadora, sofre um estremecimento profundo ao ver afectados princípios ou situações considerados estáveis ao longo dos séculos. A evolução na exploração da terra é lenta e quase se poderia dizer não ser viável uma transformação duradoura sem recurso aos meios indirectos. No entanto, as crescentes exigências do bem comum vão, por toda a parte, impondo reformas de estrutura que visam o melhor aproveitamento da terra, para na produtividade se buscar a elevação do nível de vida das famílias rurais. E um fenómeno característico do nosso tempo não recuar perante as dificuldades de realização quando se tende para um nivelamento das condições de vida. Todas as reacções são esmagadas ao sopro de uma renovação tanto mais desejável quanto mais se operar por meios pacíficos, no quadro de instituições abertas às grandes realidades.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sempre que os indivíduos ou as instituições excedem o justo limite de uma acção retardadora na implantação de processos ou de soluções, cuja bondade está suficientemente demonstrada, a consciência nacional desenvolve movimentos intimidativos para vencer o imobilismo, o conservantismo e o conformismo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Tenho para mim que nós estamos perante a Revolução Soviética em situação perfeitamente paralela à dos nossos avós em presença da Revolução Francesa.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Então, o liberalismo, imbuído de um sentimento de igualdade política, em vez de ser combatido na afirmação permanente da superioridade das regalias municipais e corporativas, foi-o pela negação das ideias que eram, na verdade, falsas e perigosas, e pela força, enquanto os seus detentores se não deixaram possuir desse mesmo sentimento de igualdade pó-
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lítica. Logo que para sobreviver houve necessidade de transigir, iniciou-se um processo de desagregação colectiva de que saíram derrotados os homens e as instituições, em ondas de ódio e de sangue. A paz só veio a ser restabelecida decorrido um século!
Iniciou-se, por fim, uma era de recuperação em todos os domínios, e nós sabemos quantos sacrifícios temos feito e estamos fazendo para vencer o atraso do tempo perdido na balbúrdia das paixões políticas.
Esta era de restauração nacional desenvolveu-se ao clarão da Revolução Soviética, também imbuída de um sentimento ainda mais poderoso: o da igualdade social. Tomamos perante ela uma posição bem diferente daquela que adoptaram os nossos avós com a Revolução Francesa. Firmámos o movimento de Maio de 1926 e, intransigente e corajosamente, levantámos um edifício social conforme à realidade contemporânea. Demos vigor ao pensamento cristão e, à luz da doutrina das encíclicas, declarámos por actos e factos guerra aberta ao comunismo. O primeiro decénio da nossa Revolução é, para mim, o período áureo do Regime. A juventude de Salazar, conjugada com a vontade de ferro que, por graça de Deus, nunca o abandonou, inteiramente devotada à reforma das instituições, operou milagres de consciencialização das responsabilidades ainda em plena floração. Depois sobreveio a guerra civil de Espanha, seguida da guerra mundial e da ofensiva comunista em todas as frentes.
Salazar viu-se absorvido pela política externa. Passou a vivê-la como a primeira das suas preocupações de governante, e compreensivelmente, pois à defesa da paz, da independência e da integridade da Nação havia de sacrificar-se tudo o mais. A vida nacional continuou a beneficiar da sua sábia orientação, mas os executores da política só por excepção se revelaram possuídos do pensamento renovador e criador do chefe da Revolução Nacional.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Decaiu-se na acção, e o espírito de missão e o sentido heróico da vida revelam-se profundamente afectados. Desenvolveu-se um sentimento de segurança inteiramente adulterado pela confiança na ordem que a lei e as armas proporcionaram aos indivíduos e às instituições. Parece esquecer-se que uma e outra não são mais que garantes da ordem. Não a criam, defendem-na. Quem a cria somos todos, no comportamento individual e colectivo. Recai, porém, sobre os dirigentes e os chefes naturais do corpo social o maior e mais difícil dos encargos, o de concorrerem por todas as formas para o afastamento ou eliminação de males susceptíveis de gerar a desordem e estimular a subversão. Ter-se excessiva confiança nas forças de defesa da vida e dos bens, além de um erro, é atitude de inadvertência de trágicos efeitos. Temos dentro das fronteiras inimigos implacáveis que pretendem substituir a lei pelo crime, para arrancarem ao caos a ditadura e com ela eliminarem todas as liberdades.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Temos, por conseguinte, de sustentar a luta que nos oferecem, mas de acordo com os nossos princípios, dentro da legalidade. Há, porém, que ir mais além. Não basta uma atitude de defesa. É imperioso combater o erro e a mentira, a sua propaganda e expansão, através de uma reestruturação da economia e de uma reforma da educação que alicercem uma vida colectiva inteiramente divorciada de princípios e soluções de raiz marxista.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A nossa força será a das realizações instauradoras da segurança económica. A força das armas serve a lei, a razão e a verdade, mas, para tanto, todos e cada um terão de ser apóstolos de tão nobres valores.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Comecemos por nós, se queremos ser dignos defensores da vida e do futuro de todos os portugueses.
Hemos de ter sempre presente o erro dos nossos avós!
A política defensiva conduz irremediavelmente à derrota!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: perdoe V. Exa. e perdoem-me VV. Exas., Srs. Deputados, as considerações produzidas, mas julguei-as essenciais à apresentação das que se seguem sobre o emparcelamento da propriedade rústica.
A F. A. O. acaba de publicar o seu relatório sobre a situação mundial da alimentação e da agricultura em 1960. No seu primeiro capítulo, subordinado ao título "Reforma Agrária e Transformação Institucional", enuncia os progressos realizados nas diferentes regiões para emparcelar e dimensionar as explorações, melhorar as condições de vida da população rural, promover o máximo de produtividade, melhorar a paridade dos rendimentos na agricultura e na indústria, lutar contra a má utilização da terra e o desperdício de recursos potenciais, além da colectivização, expropriação e redistribuição de terras. Para bem nos situarmos no exame da matéria em discussão, se VV. Exas. o permitissem, eu leria do capítulo referido uma passagem relativa aos aspectos fundamentais da reforma agrária, não só para se conhecer a objectividade da análise, como para nos apercebermos da actualidade dos problemas já focados por alguns dos Srs. Deputados:
A reforma agrária remata por deferir a responsabilidade do seu desenvolvimento aos próprios cultivadores, que, como obstáculo inicial, deparam logo com falta de capitais. É que os pequenos agricultores não oferecem aos estabelecimentos bancários as precisas garantias, sobretudo depois que a reforma agrária limita as possibilidades de alienação de parcelas. E não podendo recorrer ao crédito institucional, ou têm que dispensar quaisquer meios de financiamento ou que se entregar nas mãos do usurário.
O crédito institucional aparece, pois, como corolário importante da reforma agrária. Porém, as possibilidades que este oferece para o desenvolvimento económico ficam de antemão diminuídas se não for estabelecida uma política coerente de preços e se não forem criados os organismos necessários à transformação e comercialização dos produtos.
A eficácia da reforma agrária para o progresso da agricultura depende, também e de certo modo, de reajustamentos sociais. Para o seu êxito, reeducação cívica e social dos rurais é factor de primordial importância. Ainda, esta dupla acção de
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preparação e acção educativa tem de ser a base da nova comunidade que da reforma agrária há-de surgir.
A divisão, a partilha, traz graves problemas nos países em que a terra não é homogénea em qualidade e aproveitamento. Por outro lado, a experiência ensina-nos que se um fundo comum de terra e de recursos exerce acção estabilizadora, o emparcelamento, como prólogo indispensável a uma reforma agrária em grande escala, acabará por ser compreendido e aceite pelos pequenos lavradores. Não resta dúvida de que é fundamental numa reforma agrária o emparcelamento, mas este tem de ser desde logo acompanhado da distribuição das parcelas agrupadas, para imediato aproveitamento dos recursos da técnica agrícola moderna. Outros aspectos relevantes da colonização agrária são o da organização dos próprios serviços e o da escolha das regiões a reformar. Também a experiência tem mostrado ser difícil manter plenamente activa uma colónia puramente agrícola, pelo que é indispensável cuidar simultaneamente dos aspectos industriais complementares da exploração.
Como VV. Exas. observam, a vida agrária está sendo objecto de atenções que, até ao presente, pareciam exclusivamente reservadas à indústria. Não é que os problemas se apresentem com originalidade, pois há muito os estudiosos, por um lado, e os governos, por outro, vinham procurando encontrar soluções convenientes para os aspectos mais vivos da utilização racional da terra. Sucede, porém, que, entre nós, as questões continuam postos com a mesma agudeza. Vejam VV. Exas. a actualidade das considerações do Dr. Léon Poinsard, grande amigo do esclarecido e cada vez mais admirado rei D. Carlos, quando, em 1909, veio a Portugal para fazer análise minuciosa da nossa situação social. A leitura do seu livro Portugal Ignorado tem interesse primordial sob todos os aspectos, mas especialmente o capítulo II, que trata de "A agricultura e a vida rural".
Quando escreve sobre "A grande cultura do Alentejo" fá-lo com uma clarividência impressionante, mas, para não molestar VV. Exas., limitar-me-ei a ler alguns períodos isolados, onde o seu pensamento melhor se concretiza.
Dizia ele:
O trigo, que nasce mal e do qual o preço é aliás pequeno, devia ser substituído vantajosamente por outras culturas mais bem adaptadas ao clima e mais proveitosas também. A produção de raízes e outras forragens artificiais permitiria a criação de mais gado, fabricar manteiga e carne. A criação de aves domésticas, a produção frutífera, a dos legumes secos e outras ainda permitiriam, sem dúvida, a obra de desenvolvimento agrícola no centro, mas para isso seria preciso traçar caminhos, melhorar os terras, fazer construções rurais, captar e distribuir a água, abrir talvez poços artesianos, enfim colonizar as duas províncias.
Depois de afirmar que "as lavouras imensas de hoje são apenas acidentes, fruto de circunstâncias transitórias e artificiais", continua:
A eles (os proprietários) compete, pois, instruírem-se e bem compreenderem o sentido real das coisas e olharem pela exploração normal do solo com inteligência e proficiência. Quando não, a sua expropriação é certa. Essa expropriação virá, ou progressivamente, pela acção natural das forças socais que tendem incessantemente a eliminar os elementos retardatários ou parasitas, ou bruscamente, por um movimento revolucionário. Somente é possível ignorar como ela virá, mas o resultado final é tão certo e fatal que até já se esboça a evolução.
Mais dois bocadinhos de ouro que não resisto à tentação de ler:
O sistema privilegiado estabelecido para os cereais não é a única manifestação do espírito monopolista em Portugal.
Depois, ao comentar o artificialismo da comercialização da carne de vaca, conclui:
É preciso saber até que ponto Portugal é dominado pela burocracia e influências políticas para compreender neste país a persistência de ideias e processos tão profundamente contrários à experiência adquirida em matéria económica e também às necessidades da sociedade moderna.
Tudo isto, escrito há 50 anos, tem flagrante actualidade. Mas eu não me proponho tratar da produção agrícola nem do regime de subsídios e garantia de preços ao trigo, centeio, aveia, cevada, milho, azeite, carne bovina e porcina, lã, manteiga, batata e vinho, e que, segundo sei, originou um encargo de algumas centenas de milhares de contos ao Fundo de Abastecimento no último ano. Só quero pôr em relevo que estão equacionados muitos problemas que aguardam soluções drásticas há dezenas de anos. O Sr. Secretário de Estado da Agricultura expôs há dias o pensamento do Governo nesse sector, e se, como espero e desejo, a sua decisão vier a corresponder à sua inteligência e juventude, teremos, por fim, instaurada na agricultura a Revolução Nacional. Deus o permita! Terá de socorrer-se do escol para vencer a resistência das forças estáticas, económicas e políticas, mas com o escol e com ele estará a opinião esclarecida e a própria opinião anónima dos que produzem e consomem.
Sr. Presidente: quis pôr em evidência a necessidade de urgentes realizações no domínio social e económico, actualizar conceitos de reforma agrária e esboçar um certo pensamento sobre as realidades da nossa vida agrícola. Já me considero em situação de entrar no problema político suscitado pela lei de emparcelamento.
Tenho para mim que estão postas três questões.
A primeira resulta do facto de nos serem propostas para aprovação as leis de emparcelamento e do arrendamento rústico sem que, concomitantemente, se pusesse o do parcelamento. Se quanto ao emparcelamento, tenho ideias precisas, quanto ao parcelamento confesso que não sei como o problema se desenha à luz de uma reconversão da exploração agrícola, do Alentejo. Na verdade, se a produção do trigo tem de ser abandonada, excepto em certas zonas especialmente adequadas para essa cultura, por antieconómica e anti-social, tem de saber-se o género de exploração de substituição, pura, em ordem a ela, se decidir sobre as unidades de cultura e a melhor forma de garantir a produtividade com vantagem para a vida e bem-estar das famílias rurais. Sabe-se onde se impõe o parcela-
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mento para fixar população e evitar o desperdício de riquezas potenciais, mas desconhece-se um planeamento geral de novas culturas.
Mas, como ia dizendo, se não tenho um pensamento preciso sobre o parcelamento, julgo-me, no entanto, no direito de perguntar e de querer saber como foi possível ordenar soluções para as regiões onde a terra está totalmente explorada e não se ter feito o mesmo para aquelas onde é mais gritante o inaproveitamento e deficitária a exploração. Lembro, a este propósito, os seguintes parágrafos do Relatório Final Preparatório do II Plano de Fomento, a p. 225, que vou ler:
Os defeitos de estrutura que impõem o parcelamento da propriedade nas zonas onde se encontra excessivamente concentrada apresentam-se, portanto, como determinantes não só de uma nova situação social para as populações rurais, como também do fortalecimento da posição técnica e económica dos empresários agrícolas.
Daqui a importância fundamental que lhes deve ser atribuída na estruturação do novo Plano de Fomento.
Conforme se verificou ao analisar-se a estrutura demográfica e agrária do nosso país, parece que muito haverá a corrigir. Não só o número de trabalhadores assalariados se apresenta excessivo, como parece ser muito forte o grupo da população rural que se apresenta desprovido de terra em virtude da forte proporção de rendeiros. Os índices do povoamento são muito diversos e mostram que numas zonas parece ter-se alcançado o limite das possibilidades regionais, enquanto noutras tudo indica a existência de um estádio de sub povoamento, que vai dando origem a um quadro de deficiente exploração dos recursos presentes.
A possibilidade que se oferece desde já para promover investimentos em iniciativas de carácter técnico que facultam a expansão da actividade agrícola, tais como as da hidráulica agrícola, não deverá deixar de oferecer a oportunidade para desencadear uma reorganização agrária, pelo menos nas áreas beneficiadas e zonas circundantes, que modifique o quadro demográfico e económico característico do tipo de agricultura actual que se deseja ver ultrapassado no mais curto espaço de tempo possível.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:
Fora das áreas dominadas pelas obras de fomento hidroagrícola haverá que tomar medidas no decurso do novo Plano de Fomento que tendam a adaptar as propriedades e explorações de extensão excessiva no desempenho adequado da função social e às crescentes exigências da técnica e da economia da produção agrícola em face. da industrialização e do crescimento económico.
A previsão dos investimentos neste importante sector do fomento da agricultura para os próximos seis anos deverá subordinar-se ao propósito de instalar 10 000 famílias de novos proprietários, propósito modesto que respeitará ao destino de 40 000 beneficiários, mas que não poderá neste espaço de tempo ser mais amplo, tendo em atenção os recursos actuais dos serviços e os estudos já realizados e outros que terão de ser empreendidos.
Coloco-me acima de todos os interesses, porque busco exclusivamente o bem comum. Não acuso ninguém, todos somos vítimas da inadvertência e quase diria da traição de alguns, por se confinarem à defesa do interesse próprio, esquecendo-se de que, para além deles, estão muitos portugueses para quem temos de encontrar outros padrões de vida dentro dos limitados recursos da economia metropolitana.
Vozes: - Muito bem l
O Orador: - Estou com aqueles que, desassombradamente, sustentam a luta contra o conservantismo em problemas de organização agrária.
Não nos foi presente a proposta de lei do parcelamento conducente a uma reforma agrária, de fundo, mas isso não impede que me pronuncie sobre a lei do emparcelamento, embora razões de inteligência e de sentimento me levassem a aderir ao pensamento de que não deveríamos votar esta, para que, em conjunto, discutíssemos o melhor aproveitamento de todo o agro nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - A segunda questão respeita ao emparcelamento de exploração. Tenho para mim que o princípio admitido no n.º 7 da base VIII da proposta de lei deverá ser autonomizado em base específica, para sobre ele fazer recair a maior atenção dos técnicos e dos proprietários, por me parecer que, salvo casos especiais, o emparcelamento físico só terá a adesão dos agricultoras quando verificarem melhorias de rendimento e a correspondência de valores de permuta.
Devemos ter presente que, mesmo nos países dotados de espírito gregário, o emparcelamento encontrou obstáculos irremovíveis. Já em 1930, W. Wigoozinski-A. Skalweit escreviam no seu livro Economia e Política Agrária, tradução da Labor, a p. 91:
A oposição dos lavradores à concentração de parcelas é muito viva, dado o seu afecto à terra, e pela dificuldade de demonstrar-lhes de um modo sensível as vantagens do sistema. E, assim, observamos que este se realiza concentricamente em redor daqueles lugares onde se conseguiu vencer aquelas dificuldades e se evidenciou o êxito da concentração. Há casos, porém, em que a concentração é impossível de realizar, como é nos lugares de pequenos cultivos, como a horta e as frutas, e de propriedade mínima. Por isto, as províncias da Alemanha Meridional se contentam em regular os caminhos, ordenando-os, de novo, de modo a assegurar o acesso a todas as parcelas, procedimento este mais fácil para remediar os males do fraccionamento da propriedade.
Trouxe este depoimento ao debate, não para dar relevo a dificuldades, bem conhecidas de todos, mas para salientar o poder polarizador da experiência, e é neste aspecto que importa ser hábil. No meu entendimento, os maiores esforços da Junta de Colonização Interna deveriam incidir na participação dos lavradores em arranjos tendentes a uma produção mais económica e à mais-valia na comercialização. Tudo o mais viria por acréscimo. O emparcelamento físico surgiria como consequência lógica de interesses conjugados para uma finalidade comum.
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Não quero de nenhuma maneira pôr em causa o princípio do emparcelamento por permuta, concentração e distribuição. Este dependerá, fundamentalmente, do acolhimento dos mais qualificados detentores das terras, pois os pequenos lavradores serão atraídos ao acerto de unidades de cultura sempre que verifiquem não se estar em presença de soluções unilaterais. Se isto alguma vez pudesse acontecer, estou certo de que o alto sentido de conservação e defesa, característico da nossa gente, sofreria tal choque que por nenhum meio seria removível a oposição ao emparcelamento. Tudo dependerá do exemplo e da adesão das autoridades sociais das zonas a emparcelar.
A voluntariedade destas acarretará a concordância quase geral, disso não temos dúvida, pois o povo português é altamente sensível a soluções de interesse comum. Duvida e desconfia, mas compreensivelmente, pois tem, para tanto, fortíssimas razões. Lembra-se, e eu também, com quanta amargura, do sucedido com o arranque das vinhas e dos híbridos produtores directos, plantados em contravenção à lei. Embora o arranque se não tenha totalmente executado; a verdade é que, decorridos poucos anos, se veio a autorizar o plantio livre.
Contra alguns milhares de videiras arrancadas ao norte do Mondego, num vendaval de infinita dor, veio a possibilitar-se a plantação de centos de milhares ao sul, com prejuízo de toda a economia do vinho e da lavoura pobre. Esta, uma das muitas lições que jamais se esquecem!
Compreendo e sinto a desconfiança dos lavradores que no Norte se podem ver ameaçados na posse de terras regadas com suor e, quantas vezes, com sangue. Mas também se há-de compreender que quem dirige se não possa demitir, por sentimento, de uma acção orientadora e tutelar do interesse geral.
O que me recuso a aceitar, embora a respeite sem constrangimento, é a opinião daqueles que, não podendo viver os problemas do emparcelamento, nem no corpo nem na alma, se manifestam por ele na medida da inoperância da lei.
Suporão eles que opondo-se ao emparcelamento obrigatório encontrarão no futuro fundamento moral e jurídico para impedirem o parcelamento? Se o admitem devem lavrar em erro, ditado mais pelo sentimento do que pela razão. Nunca, em parte alguma do Mundo, houve parcelamento que não fosse coercivo. Permitiu-se o Xá da Pérsia dividir e distribuir as terras da Coroa, muito recentemente. Tal liberalidade, só de rei amante do seu povo, mas, infelizmente, há poucos reis, e só alguns estariam em situação de fazê-la. Poderá não haver parcelamento forçado, mas o que com certeza haverá, hoje ou amanhã, é parcelamento compulsivo.
Recuso-me ainda a aceitar a opinião dos que se rebelam, como eu, contra o imerecido viver das famílias rurais, e, no entanto, supõem possíveis realizações
sociais sem forte sacrifício de hábitos e de tendências para uma reestruturação da vida agrária.
A esses, se o não conhecem, permito-me recomendar a leitura do recente livro do Prof. Castro Caldas, Modernização da Agricultura, para saberem porque e como a produtividade é uma das condições de resgate da família rural.
E ainda para explicar certos fenómenos, lerei a VV. Exas. um período do livro do mesmo professor Inquérito à Habitação Rural, a p. 209:
... Porém isto é raro nas regiões de arrendamento familiar e mais raro se vai tornando, à medida que as grandes propriedades se desmembram (não tanto que possam constituir explorações familiares por conta própria, o que já era vantagem) e caem nas mãos de proprietários novos, comerciantes gananciosos e sem escrúpulos, sem tradições ligadas à terra, que, de pequenas unidades, pretendem, através do arrendamento familiar, colher sem esforço, sem risco, sem "mexer um dedo", larguíssimos proveitos.
Lerei também duas passagens do primeiro dos livros citados, para melhor se ajuizar do verdadeiro alcance do problema em discussão:
Por toda a parte, mas com variantes regionais, se pode considerar a agricultura portuguesa como o ambiente propício à sobrevivência de dois grupos sociais: o dos senhorios e o dos rendeiros. Não posso provar, como aliás ninguém pode desmentir, a afirmação de que, exceptuando a quase totalidade das vinhas e olivais, mais de metade do solo agrícola português está entregue a rendeiros. A existência de numerosos rurais dotados de forte capacidade para o cumprimento, pontual e honesto, da primeira e essencial das cláusulas do contrato de arrendamento - a do pagamento da renda - é que justifica a existência paralela de senhorios. Claro que a terra sofre as consequências: não progride e vai dando sempre mais do que lhe entregam em trabalho, iniciativa e matéria orgânica.
Fiz esta leitura só para poder emitir o juízo de que os aspectos psicológicos do emparcelamento são solúveis, se os senhorios tiverem a consciência de que a propriedade privada, para ter justificação, há-de desempenhar uma função social. Leia-se o que o Santo Padre reinante escreveu na sua última carta encíclica sobre a "Adequação das estruturas da empresa agrícola", para bem se atentar na relação existente entre a dimensão da empresa agrícola e o nível de vida da família rural. Depois, reflicta-se sobre o nosso dever de católicos, para reconhecer que não basta pedir reformas sociais. Há que torná-las possíveis. Aqui, direi como o Papa:
Estamos, porém, convencidos de que os protagonistas do desenvolvimento económico, do progresso social e da elevação dos ambientes agrícolo-rurais devem ser os próprios interessados, isto é, os trabalhadores da terra.
Mas então, a que vem o princípio do emparcelamento coercivo?
Eis a terceira questão que me proponho tratar.
Nem no pensamento do Governo nem no domínio dos factos se poderá admitir um emparcelamento unanimemente rejeitado pelos interessados. Quando os interessados o não querem, há que aceitar a sua decisão. Não estará certamente em causa a eliminação de graves inconvenientes de ordem social ou económica. A estes inconvenientes poucos proprietários poderão ser insensíveis. Deverá estar em causa, sim, a forma de execução encontrada para o emparcelamento. Seria o caso de, por exagero de planificação, infelizmente tão do agrado dos tecnocratas, se alterar a fertilidade do solo, a localização dos terrenos em relação aos mercados e a intensidade da exploração. Aqui não pode entrar em movimento a compulsão legal. A oposição é legítima e o Governo, árbitro de todos os interesses, o reconheceria primeiro que ninguém.
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A compulsão entra em jogo quando o Governo pode concluir que a pertinácia de um proprietário, confiado no poder do dinheiro ou no virtuosismo da política, se decida a impedir a existência da maioria qualificada, arrastando consigo outros menos esclarecidos das virtudes da intervenção ou igualmente pertinazes. Em tais circunstâncias seria mais que legítima, indispensável, acção tutelar do Governo. Os poderes atribuídos funcionarão como meio para atingir um objectivo. A eficiência desses poderes revela-se no início do estudo de uma operação de emparcelamento e não no final, como é lógico. Atente-se bem no pensamento do Governo, se queremos afastar distorções e erros de interpretação.
A compulsão, se alguma vez tivesse de existir, dirigia-se a um ou a alguns que, pelo seu comportamento numa questão de interesse económico e social, exibiam a sua rebeldia ao bem comum. Para esses todo o rigor da lei está justificado. Este não se dirige ao conjunto, objectivo inteiramente inviável, mas só aos que puserem em acção o dispositivo legal. Tudo isto é claro, iniludível e conforme aos princípios que condicionam a realização do interesse geral.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Tem, assim, o Governo fortes motivos para se assegurar de poderes especiais em matéria de emparcelamento. A Assembleia, conferindo-lhos, limita-se a partilhar responsabilidades na condução da política agrária e, dando o seu voto, a apoiar processos e execução dessa política por forma expedita e decisiva. Quem alguma vez serviu o interesse público tem a consciência plena das resistências de toda a natureza que se suscitam ao passar-se do plano dos princípios ao da execução. E sabe, também, como é benéfica a simples existência de um poder legal para concretizar objectivos de saneamento económico. Desde que o poder exista, só por excepção se torna necessário usá-lo. A legalidade, como força intimidativa e executiva de transcendente alcance, supera movimentos contrários à melhor defesa do interesse nacional, definido por quem, na posição, tem a difícil missão de o impor. Confiemos, portanto, no Governo. Os poderes conferidos não se estendem aos serviços de orientação e execução: cabem ao Conselho de Ministros, e este velará, com ciência e consciência, pela melhor realização do bem comum, acima de todos os interesses particulares e no perfeito conhecimento das circunstâncias políticas, económicas e sociais que condicionam uma decisão.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Em minha modesta opinião, nem sequer há que delimitar poderes quando os mesmos, de sua própria natureza, têm alcance geral. Não se põe em causa um interesse individual merecedor de salvaguarda, mas o daqueles que possam minimizar a prevalência de interesses superiores da grei. Devo, no entanto, declarar que estou de acordo com qualquer proposta que, nesta matéria, melhor possa concretizar os poderes do Governo. Será bom, porém, ter presente que o Governo tem poderes mais latos para a reorganização industrial, sem que, até hoje, os tenha utilizado.
Revelemos a nossa confiança na lei, facilitando a sua execução. Quem realiza menos bem poderá realizar melhor, apoiado na experiência. Quem não realiza não dá a medida de si nem sequer da política que serve. Colhamos os frutos da experiência estrangeira e não retardemos, por carência de poder legal, a realização de uma obra directamente dirigida à elevação do nível de vida das famílias rurais. Se, apoiados nesse poder legal, vierem, a verificar-se desvios, não os calaremos em homenagem a menos avisados conceitos políticos, como, infelizmente, tem sucedido em relação a outros sectores da administração pública. Mais vale ter de julgar e castigar esses desvios do que ter a consciência da invalidade de uma lei por carência de poder executório.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Eis o que, em meu entender, o País espera de nós. Esta lei é necessária, mas todos temos a convicção da inutilidade das leis, se não nos lançarmos, aberta e decididamente, na realização de princípios cuja bondade é puramente doutrinária.
Sr. Presidente: o Mercado Comum Europeu desenvolve-se e enraíza-se. Se não tivermos a percepção do perigo nesta hora, a mais trágica da história da nacionalidade, a nossa geração merecerá o maior desprezo dos vindouros, por não ter sabido cumprir o seu dever.
Chegou o momento de iniciar uma obra actualização e reconversão da agricultura. Como primeiro passo, quando aprovada esta e as demais leis, há que arrancar aos trabalhos de gabinete os engenheiros agrónomos e enviá-los, devidamente compensados, ao campo, onde são tão indispensáveis para ensinar e executar, portadores de ciência e de amor à gente humilde, sem dirigentes nem amparo.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - A hora é de luta e não há mais lugar para o oportunismo político, origem de erros e de males de que tem de fazer-se penitência.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Estamos aqui para discutir problemas políticos, de fundo, e há-os vivíssimos. O País tem o direito de saber como nos comportamos no seu estudo - e nós o dever de prestar contas do mandato recebido. Dentro desta orientação, e porque não aceito nem reconheço outro poder, voto as alterações propostas por Salazar ao texto da Câmara Corporativa. Não levantemos obstáculos ao Governo.
Ele quer prosseguir a sua cruzada de restauração e nós, se temos fé, doutrina e ideias, devemos querer obras, acção e factos.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Vitória Pires: - Sr. Presidente: foi já amplamente apreciado na generalidade o projecto de lei sobre emparcelamento da propriedade rústica que o Governo enviou à Assembleia Nacional, tomando-se como base o douto parecer da Câmara Corporativa.
Julgo que as pertinentes considerações produzidas nesta Câmara pelos Srs. Deputados que me antecederam no uso da palavra contribuíram poderosamente para esclarecer os espíritos e formar opiniões seguras.
Não haverá, assim, que acrescentar matéria nova ao assunto, mas, porque também tenho algumas responsabilidades no problema, desejo fazer umas breves considerações a seu respeito.
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Houve nos discursos aqui pronunciados unanimidade de opinião quanto à necessidade premente de tomar medidas que promovam a realização do emparcelamento das propriedades nas zonas de excessivo e disperso minimifúndio.
Todos estamos de acordo com esse ponto de vista, que, aliás, vem sendo afirmado desde o século passado pelos mais notáveis economistas.
Tem, portanto, de se dar início ao emparcelamento da propriedade rústica, formando unidades que permitam tornar as explorações agrícolas rentáveis, em vez de constituírem fontes de ruína ou simples logradouros mantidos por luxo ou por sentimentalismo.
Será também indispensável - a par do emparcelamento - tomar medidas para evitar a partilha obrigatória da propriedade rústica, impedindo assim "a miséria das populações e a ruína dos lavradores pela impossibilidade de uma cultura proveitosa", a que se referia Elvino de Brito.
Em muitos países não se permite a divisão das propriedades cuja área é necessário manter para garantir a sua exploração económica.
E não se julgue que esse critério se aplica unicamente à pequena propriedade. Por vezes ele abrange também as de maior área. Tudo depende das condições e dos fins que se tem em vista atingir.
Na Suécia, por exemplo, e trata-se de um país socialista, vamos encontrar nas províncias do Sul grandes propriedades com os seus castelos, cuja manutenção seria impossível, e já hoje estariam abandonados, se em cada geração se partilhasse a terra pelos herdeiros.
A propriedade é atribuída assim a um só herdeiro, que indemniza os outros dos valores ou dos rendimentos que lhes pertencem.
E anula o que se passa em Espanha, na província de Barcelona, onde o critério é idêntico.
só um herdeiro fica com a propriedade e os outros recebem as indemnizações correspondentes.
Refiro-me a este aspecto, Sr. Presidente, porque considero muito importante evitar que depois de se ter concluído o emparcelamento numa dada região, certamente levado a efeito com grande trabalho e elevados dispêndios, se volte, passadas umas dezenas de anos, à situação inicial de uma série de minúsculas propriedades, onde renascerá a impraticabilidade de uma exploração técnica, e economicamente viável.
Considero que o País tem maior urgência em promover o emparcelamento do que o parcelamento, embora este seja por vezes necessário como complemento do primeiro.
Nós não podemos, por melhor técnica que se adopte e por mais favoráveis que sejam as condições ecológicas, tornar rentáveis parcelas de uns centos de metros quadrados, mas é absolutamente viável explorar em razoáveis condições económicas áreas de alguns centos de hectares em cultura de sequeiro.
É possível que em certas zonas o emparcelamento venha, no futuro, a reclamar transferências de proprietários para outras regiões onde seja aconselhável proceder ao parcelamento. Nesse caso, Sr. Presidente entendo que tudo deve ser preparado no sentido de se encontrarem criados nessa altura as condições favoráveis à fixação de famílias nas nossas províncias ultramarinas, sem prejuízo, evidentemente, do caso de a Junta de Colonização Interna dispor de propriedades que tenha adquirido e sejam parceladas para absorver alguns desses proprietários.
Julgo que as medidas de emparcelamento deviam ser conjugadas com as de fixação em África do nosso excedente demográfico. E não quero deixar aqui de me referir também à necessidade de não reduzir demasiadamente a área dessas propriedades, para que os empresários e os técnicos que as orientam. Não se encontrem, por vezes, em situações verdadeiramente embaraçosas.
É preferível diminuir o número de proprietários, dando aos que ficarem boas conduções de exploração, a tornar a vida quase impossível a todos só pelo desejo de incluir no parcelamento mais mm diminuto número de famílias.
Sei, no entanto, Sr. Presidente, que poderemos ter tranquilidade a esse respeito, pois a Junta de Colonização Interna possui hoje uma larga experiência, colhida nas suas colónias agrícolas, e certamente proporá ao Governo a orientação que mais aconselharem os ensinamentos já adquiridos.
Quero aqui deixar uma palavra do mais justo apreço pela excelente obra que esse organismo tem realizado, quer no campo da colonização interna, quer através da Lei dos Melhoramentos Agrícolas, quer ainda na preparação de técnicos para as novas tarefas que lhe vem trazer o projecto de lei em discussão.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - A circunstância de, neste momento, a Junta, dispor de pessoal técnico conhecedor do problema do em par ceiam e7i to em todos os pormenores vem tornar possível a sua rápida e eficiente actuação.
Nós aqui na Câmara temos sentido a grande ateu-
fïo que o problema mereceu à Junta de Colonização nterna, através da profusa e valiosa documentação por ela distribuída, no louvável intuito de nos elucidar sobre os vários aspectos de tão importante assunto.
Vozes: -Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: vai ser árduo o trabalho dos que forem encarregados de levar a efeito o emparcelamento da propriedade rústica.
A sua acção terá de desenvolver-se intensivamente no campo da persuasão, evitando violências.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Terá de ser uma actuação educativa e, como tal, de persistência, de paciência, de demonstração de factos.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - A experiência noutros campos diz-nos que é esse o caminho mais indicado, e citaremos apenas dois exemplos de sentidos diferentes. A arborização das serras e dos baldios quantas dificuldades encontra devido à incompreensão por parte das populações e quantas vezes tem havido necessidade de suspender os trabalhos para não ocasionar levantamento dos povos, a que teriam de corresponder medidas de consequências imprevisíveis. E, todavia, a notável e eficientíssima obra gigantesca dos serviços florestais, ...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... a que me apraz prestar as mais rendidas homenagens, não tem deixado de singrar.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
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O Orador: - Muito habilmente, com prudência e firme persistência, a arborização dos perímetros vai-se fazendo e a compreensão dos povos acaba por aparecer.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Tem-se procurado sempre evitar violência, mas nem por isso se deixa de realizar obra fecunda da mais alta importância para a nossa economia.
Outro exemplo, e este de maior acuidade, porque abrange número mais elevado de interessados, é o das vinhas. A volumosa legislação que se tem acumulado sobre o plantio da vinha e a obrigatoriedade do arranque dos indesejáveis produtores directos ainda não conseguiu dar solução definitiva ao problema. Não vale a pena fazer maiores referências ao caso.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Todos sabemos o que se tem passado e as influências que se movem no momento em que se decide agir.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - O caminho para o emparcelamento terá de ser, pois, segundo julgo, o da persuasão.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não haverá nenhum proprietário que, cabalmente convencido da realidade dos factos, embora tenha fortes razões sentimentais que o apeguem ao seu torrão, se mantenha numa atitude de intransigência, em prejuízo da sua própria economia.
E tenho fortes razões para não crer que a velha rotina seria capaz de obcecar os espíritos a ponto de conseguir impedi-los de raciocinar com clareza e de evoluírem só porque julgam ser mais fácil trilhar o caminho aberto pelos antepassados do que promover alterações, por vezes profundas, dos métodos e sistemas tradicionalmente seguidos.
Na minha já longa vida profissional, durante a qual passei bastantes anos a prestar assistência técnica aos agricultores, devo dizer em abono da verdade que nunca encontrei espírito de rotina por teimosia.
O lavrador não é rotineiro por capricho; o que ele tem, como qualquer de nós, é receio de adoptar processos que lhe não tragam quaisquer benefícios, porque, afinal, todas as modificações custam dinheiro, e é ele que tem de arranjá-lo, a fim de satisfazer as despesas.
O Sr. Amaral Neto: - Creio que esse problema do tão discutido espírito de rotina dos lavradores fica bem expresso na afirmação feita pelo Sr. Norris Dodd, um dos primeiros directores-gerais da F. A. O., organização para a alimentação e agricultura das Nações Unidas, no fim de uma viagem de muitos meses, não sei mesmo se de anos, por todas as áreas onde a F. A. O. estende a sua orientação: «não encontrei em parte alguma um agricultor, fosso branco ou de cor, cristão ou gentio, que receasse experimentar métodos de cultura que julgasse capazes de lhe acrescentarem, um alqueire à tulha do grão».
O Orador: - Com certeza.
O Sr. Martins da Cruz: - A respeito do que V. Exa. acabou de afirmar com referência no espírito aberto de todos os agricultores, desejo informar V. Exa. de que tive ontem o prazer de assistir a uma reunião de lavradores da Beira Baixa, na qual me foi dado ouvir que datam de 1868 as primeiras providências no sentido de ser levado a efeito o repovoamento florestal.
Há, pois, quase um século que se trabalha, portanto, no repovoamento florestal, e, no entanto, estão ainda por repovoar na Beira Baixa mais de 50 por cento dos hectares que deveriam ser repovoados.
O Sr. Soares da Fonseca: - O que se pergunta é se foi por culpa da rotina, da inércia, ou de outros motivos, que isso aconteceu. Isso é que V. Exa. não disse.
O Sr. Martins da Cruz: - Eu esclareço.
O Sr. Soares da Fonseca: - Mas fora do elenco.
O Sr. Martins da Cruz: - Não, dentro do elenco. É que o distinto orador expôs os méritos da persuasão na acção dos serviços florestais. Ora parece poder concluir-se que a persuasão ao longo de um século não foi suficiente para convencer os proprietários das vantagens do repovoamento florestal.
O Sr. Soares da Fonseca: - O que é preciso saber é se isso é assim por falta de dinheiro, ou de técnica ou por outras razões. É isso que V. Exa. Não diz.
O Sr. Martins da Cruz: - Não é por falta de meios, conforme ontem ouvi referir na reunião, com o Sr. Secretário de Estado da Agricultura, da lavoura da Beira Baixa.
O Sr. Quirino Mealha: - V. Exa. dá-me licença?
O Sr. Amaral Neto: - V. Exa. dá-me licença?
O Sr. Presidente: - Todos ao mesmo tempo, não.
O Sr. Quirino Mealha: - A propósito de persuasão posso citar a V. Exa. um caso que não se passou na Beira Baixa, mas no Alentejo. Houve uma reunião de lavradores, tudo se passou dentro da melhor compreensão; simplesmente, o Estado não tinha as árvores suficientes para fornecer. O serviço não estava de maneira a corresponder.
O Sr. Amaral Neto: - Tenho ouvido V. Exa. com toda a atenção, com a mesma atenção com que li hoje nos jornais o relato da reunião de ontem com o Sr. Dr. Mota Campos, de quem muito aprecio a inteligência, a decisão e a frescura de pontos de vista com que se dedica aos problemas agrícolas, só esperando que o nosso novo Secretário de Estado, com o seu entusiasmo, encontre auxílio em bons informadores para a falta de conhecimentos que por força tem de certos problemas.
Posso, pois, recordar o que, certamente, o Sr. Deputado Martins da Cruz também ouviu, se foi exacto o relato do jornal: em Castelo Branco, ontem, foi expressamente mencionado entre os processos de arborização voluntária o sistema previsto na Lei n.º 2069, de arrendamento das terras pelo Estado, por prazo de vinte anos, para florestar de conta dos proprietários; simplesmente, acrescentou-se que nada pudera ser feito por falta de verbas.
E o facto é que, de qualquer modo, a arborização a longo prazo requer um certo sacrifício da parte do proprietário, que durante um período de anos tem de ter os terrenos presos com a plantação de árvores, que tem
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de acarinhar até chegarem a adultas. Quanto aos efeitos da arborização compulsiva, o Sr. Deputado Martins da Cruz poderá encontrar na colecção do Diário das Sessões relativa à legislatura de 1949 a 1953 um discurso do então Deputado Dr. Manuel Maria Vaz, advogado e presidente da Câmara Municipal de Chaves, no debate sobre o relatório do Governo acerca da execução da Lei n.º 1914, onde em termos impressionantes se relatam os sofrimentos, as contrariedades e até os prejuízos que os povos daquela região sofreram por efeitos da arborização de baldios contra a sua vontade e usos.
Não posso tomar nenhuma posição crítica a respeito das palavras do Dr. Manuel Vaz. Mas o que posso é pedir ao Sr. Deputado Martins da Cruz que complete a sua elucidação.
O Sr. Martins da Cruz: - Quanto à necessidade de fazer uma arborização progressiva para permitir a transmutação de uma lavoura cerealífera ou de outro género numa lavoura florestal, na verdade o Sr. Deputado Amaral Neto tem razão quando diz ser necessário certo tempo. Mas eu respondo com uma pergunta: é se para tanto um século chega ou sobra.
O Orador: - V. Exa. está a lavrar num erro inicial, e eu não lhe respondi imediatamente porque desejei que os nossos colegas se manifestassem e apresentassem os seus argumentos. V. Exa. diz: um século de persuasão. Mas aí é que V. Exa. se engana, porque os serviços florestais até há muito pouco tempo não desenvolviam trabalho de persuasão junto dos proprietários, porque a sua atenção se dirigia principalmente para a arborização dos baldios e dunas, e obras de correcção torrencial. Há relativamente pouco tempo é que intensificaram os serviços de assistência técnica junto dos proprietários para arborizarem as suas propriedades, embora já viessem fornecendo árvores gratuitamente aos que lhas solicitavam.
Isto é que V. Exa. certamente desconhecia, dadas as considerações que produziu.
Desde que os serviços florestais começaram a sua obra de persuasão posso dizer a V. Exa. que ela tem sido verdadeiramente notável, porque o interesse que os proprietários manifestaram pela arborização, das suas propriedades - o que não quer dizer na totalidade - foi de tal natureza que os serviços se viram obrigados a aumentar extraordinariamente os seus viveiros, e, mesmo assim, ainda têm de adquirir aos particulares milhares de árvores para depois as distribuírem gratuitamente.
Não sei também se V. Exa. conhecia este facto. Os serviços florestais distribuem anualmente um número de árvores que, por vezes, é superior a 2 000 000, além da semente de pinheiro e de outras essências.
Em face destes números, parece-me que não se pode concluir pelo desinteresse da lavoura no campo da arborização florestal.
Há que ver outro caso. O proprietário tem sempre de fazer as suas contas, e, como V. Exa. sabe, a valorização das madeiras deu-se há relativamente pouco tempo, porque até então eram para lenha e nada mais. Tudo isto são factores que incentivam determinadas medidas.
A acção suasória dos serviços florestais a que me referi é aquela que eles têm exercido com a maior eficiência, embora lentamente, como não pode deixar de ser, junto dos povos que se utilizam dos baldios para apascentamento dos seus gados.
O Sr. Martins da Cruz: - Julgo que não estou assim tão enganado quanto à persuasão como V. Exa. acaba de referir.
Reconheço o meu relativo desconhecimento neste assunto, visto que os meus conhecimentos nesta matéria são poucos. Mas assisti ontem em Castelo Branco, a numa reunião da lavoura da Beira Baixa, a que presidiu o Sr. Secretário de Estado da Agricultura, a brilhantes exposições de colegas de V. Exa., em cuja ciência me louvo. E foi ali que pude escutar que data de 1868 o esforço nacional no sentido de obter o repovoamento florestal. Esforço exercido inicialmente pela persuasão que resulta do ensinamento dos mestres, da formação de uma opinião pública especializada e até da discussão política da necessidade de incrementar o florestamento e, mais recentemente, de providências legislativas destinadas a sistematizar os meios daquela persuasão. Apesar disso, os efeitos práticos do processo adoptado quanto ao repovoamento florestal têm sido parcos.
O Sr. Soares da Fonseca: - Se bem entendi o Sr: Deputado Martins da Cruz, ele quer dizer o seguinte: em matéria de arborização, a população da Beira Baixa está convencida, mas ainda não foi atendida; em matéria de emparcelamento, é preciso que o Governo o faça executar, mesmo que a população não esteja convencida.
Risos.
O Sr. Martins da Cruz: - O Sr. Dr. Soares da Fonseca, com a brilhante inteligência que todos lhe reconhecemos, critica aquilo que diz que eu disse, mas não aquilo que eu disse.
O Orador: - Compreende-se, por isso, a sua natural hesitação, quando se lhe propõem inovações.
Mas, se as coisas lhe forem apresentadas com argumentos acessíveis ao seu entendimento, com números e demonstrações que resistam à sua controvérsia e o façam entrar no campo da confiança, ele é o primeiro a criar entusiasmo pela nova ideia e a procurar o melhor caminho de a levar a efeito.
No fundo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, todos gostamos de inovações, mas a prudência - e mal do agricultor que não é prudente - leva, por vezes, a não ir mais longe.
Haja uma forte máquina educativa e veremos resolvidos, sem grande trabalho, a maior parte dos nossos problemas. De resto, tenho para mim que o primeiro problema nacional é o da educação do seu povo.
Nesta questão do emparcelamento da propriedade rústica o trabalho educativo deverá ser, a meu ver, e de longe, o mais importante; tudo o mais virá por acréscimo e será depois relativamente fácil.
Afigura-se-me que, para já, deveremos realizar uma experiência-piloto e depois de colhermos os ensinamentos que ela nos proporcionar procurarmos ajustar-lhe a legislação respectiva, tanto mais que o emparcelamento dos 6000 ha previsto no II Plano de Fomento não deve encarar-se senão como um ensaio que, no decorrer da sua execução, nos fornecerá valiosos e imprescindíveis ensinamentos para projectos de maior envergadura.
Acresce que por falta de tempo não se conseguirá provavelmente efectuar o emparcelamento na área de 6 000 ha até ao final do II Plano de Fomento, conquanto a Junta de Colonização interna disponha já de inquéritos em numerosas zonas do país e tenha os es-
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tudos muito adiantados em relação a duas dessas zonas, cujos projectos poderão ser rapidamente concluídos, logo que se publiquem as disposições legislativas competentes.
Sr. Presidente: reservo-se para fazer mais algumas considerações quando, na especialidade, se discutir a base XXVI do projecto de lei e termino declarando que aprovo na generalidade a notável proposta da Câmara Corporativa, certo de que ela permite dar um grande passo para a resolução de um problema que de há longos anos vem prejudicando a economia nacional.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Não há mais nenhum orador inscrito para a generalidade e também não foi apresentada qualquer questão prévia que haja necessidade de submeter à votação. Considero por isso encerrada a discussão na generalidade.
Na próxima terça-feira o debate continuará na especialidade.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas.
Srs. Deputados que faltaram, à sessão:
Agnelo Ornelas do Rego.
Alfredo Maria de Mesquita Guimarães Brito.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Tomás Prisónio Furtado.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jorge Manuel Vítor Moita.
José Pinto Carneiro.
José dos Santos Bessa.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Nunes Fernandes.
Purxotoma Ramanata Quenin.
Rui de Moura Ramos.
Urgel Abílio Horta.
Voicunta Srinivassa Sinai Dempó.
O REDACTOR - António Manuel Pereira.
Rectificação
Na proposta de aditamento e alteração apresentada, pelo Sr. Deputado Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães e publicada no Diário das Sessões n.º 17, de 18 de Janeiro de 1962 , a p. 425, 2.ª col., onde se lê: «2.º Acrestar no artigo 7.º um n.º 7, com a seguinte redacção:», deve ler-se: «2.º Acrescentar na base VI com a seguinte redacção um n.º 7:».
Propostas enviadas para a Mesa no decorrer da sessão:
Proposta de aditamento
Proponho que ao texto sugerido pela Câmara Corporativa relativamente à proposta de lei sobre o emparcelamento da propriedade rústica se façam os seguintes aditamentos:
Art. 8.º ........
8. Quando por qualquer motivo algum proprietário não quiser sujeitar-se ao emparcelamento aprovado, poderá exigir da Junta de Colonização Interna a compra dos «eus prédios pelo preço que for acordado e, na falta de acordo, pelo que vier a ser fixado pela comissão local de recomposição predial, com recurso para o tribunal arbitrai previsto no artigo 17.º
Estes prédios acrescerão à reserva de terras previstas no artigo 12.º
Art. 17.º ..................
3. ................
No caso especial do arbitramento previsto no n.º 8 do artigo 8.º, além dos engenheiros agrónomos, apenas intervirá o delegado do grémio da lavoura designado pelo juiz presidente, sendo o outro substituído por um árbitro escolhido pelo proprietário recorrente.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - O Deputado, António Manuel Gonçalves Rapazote.
Proposta de alteração
Afigurando-se da maior conveniência que os grémios da lavoura tenham assento e façam parte das comissões locais de recomposição predial, tenho a honra de propor que, em alteração ou aditamento à proposição 1.ª do artigo ou base 15.ª do projecto, entre as palavras que dizem: «além de- qualquer outra pessoa que o Governo designe», e as que dizem: «o conservador do registo predial», se intercalem ou acrescentem estas outras palavras: «os presidentes dos grémios da lavoura da área respectiva ou seus delegados».
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - O Deputado, Belchior Cardoso Costa.
Proposta de emenda
BASE IV
Propomos que ao n.º 1 da base IV seja dada a seguinte redacção:
1. A troca de terrenos aptos para cultura só é admissível nos casos seguintes:
a) Quando as parcelas a permutar tenham áreas superiores às unidades de cultura que houverem sido fixadas para as respectivas condições;
b) A alínea a) do texto da Câmara Corporativa;
c) A alínea b) do texto da Câmara Corporativa.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados:
Ulisses Cruz de Aguiar Cortes
Sebastião Garcia Ramires
Domingos Rosado Vitória Pires
Rogério Vargas Moniz
Carlos Monteiro do Amaral Neto
Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Virgílio David Pereira e Cruz.
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Proposta de emenda
BASE VIII
Propomos que ao n.º 1 da base VIII seja dada a seguinte redacção:
1. O emparcelamento consiste numa operação de recomposição predial que tem por finalidade a concentração da área de vários terrenos dispersos, integrantes da mesma propriedade, no menor número aconselhável de prédios, acompanhada da realização de obras de valorização económica e social da zona respectiva, nomeadamente de melhoramentos rurais e fundiários de carácter colectivo.
Sala das Sessões da Assembleia. Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados: Sebastião Garcia Ramires - Domingos Rosado Vitória Pires - Rogério Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - Virgílio David Pereira e Cruz - Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Proposta de eliminação
BASE VIII
Propomos a eliminação do n.º 7 da base VIII.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados: Sebastião Garcia. Ramires - Domingos Rosado Vitória Pires - Rogério Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - Virgílio David Pereira e Cruz - Ulisses Cruz de Aguiar Cortes - João N uno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Proposta de aditamento
Propomos o aditamento de uma nova base a seguir à base VIII, com a seguinte redacção:
BASE VIII-A
O emparcelamento visará ainda, sem prejuízo do objectivo de concentração da propriedade, o rea-grupameuto de parcelas que, pertencendo embora a diversos proprietário», sejam exploradas em conjunto.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados: Ulisses Cruz de Aguiar Cortês - Sebastião Garcia Ramires - Domingps Rosado Vitória Pires - Rogério Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - Virgílio David Pereira e Cruz - João N uno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Proposta de emenda
BASE X
Propomos a seguinte emenda à base x:
Que no n.º 2 a palavra requerida seja substituída pela palavra «rejeitada».
Sala das sessões  da Assembleia Nacional 19 de Janeiro de 1962.-  Os Deputados:  Sebastião Garcia ramires-  Domingos Rosado Vitória Pires- Rogério
Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira - Virgílio Dàvid Pereira e Cruz - Ulisses Cruz de Aguiar Cor-
Proposta de emenda
BASE XII
Propomos que ao n.º 1 da base XII seja dada a seguinte redacção:
1. O Estado promoverá a constituição de uma j reserva de terras na área onde se situe a zona a emparcelar, de que a Junta de Colonização Interna poderá dispor para aumentar a extensão dos terrenos com área inferior à unidade de cultura e melhorar as condições técnicas e económicas das explorações agrícolas de dimensões insuficientes, quando os proprietários respectivos assim o desejarem.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 ide Janeiro de 1962. - Os Deputados: Ulisses Cruz de Aguiar Cortês - Sebastião Garcia Ramires - Domingos Rosado Vit-ória Pires - Rogério Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira - Virgílio David Pereira e Cruz.
Proposta de emenda
BASE XXIII
Propomos que aos n.ºS 2 e 3 da base XXIII seja dada a seguinte redacção:
2. A notificação pode ser feita pessoalmente ou  por meio de postal registado com aviso de recepção,  incorrendo na multa de 100$ a 500$, a aplicar  pelo juiz de direito da comarca da sua residência,  o proprietário que não acatar a notificação que lhe  houver sido regularmente feita.
3. Quando o proprietário não residir na zona a  emparcelar, poderá ser notificado, do modo e sob  a sanção previstos no número anterior, para com parecer perante o presidente da câmara do concelho da sua residência.	
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados: Sebastião Garcia Ramires - Domingos Rosado Vitória Pires - Rogério Vargas Moniz-Carlos Monteiro do Amaral Neto- Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira - Virgílio David Pereira e Cruz - Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Proposta de emenda
BASE XXIV
Propomos que ao n.º 2 da base XXIV seja dada a seguinte redacção:
2. Cada proprietário será notificado, por meio de postal registado com aviso de recepção, do local, dias e horas em que poderá examinar o anteprojecto e advertido de que lhe é facultado apresentar por escrito, no prazo de 30 dias, contados sobre a data da recepção da notificação, as reclamações que entender. .
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Os proprietários domiciliados fora da zona a emparcelar serão avisados por carta-postal registada, também com aviso de recepção. Serão igualmente avisados por carta registada com aviso de recepção, expedida por via aérea, os proprietários residentes nas ilhas, nas províncias ultramarinas ou no estrangeiro, os quais poderão reclamar no prazo de 40 dias, contados sobre a data da recepção da carta. Os proprietários cuja residência não for conhecida poderão igualmente reclamar, dentro do prazo de 45 dias, a partir da publicação de um aviso a fazer em todos os jornais locais.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados: Sebastião Garcia Ramires - Domingos Rosado Vitória Pires - Rogério Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães-João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira - Virgílio David Pereira e Cruz - Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Proposta de emenda
BASE XXX
Propomos que à base XXX seja dada a seguinte redacção:
BASE XXX
As unidades resultantes das operações de emparcelamento ficam isentas de contribuição predial durante os primeiros seis anos, contados da data em que for lavrado o auto a que se refere a base XXVI ou do começo da exploração prevista na base VIII-A.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 19 de Janeiro de 1962. - Os Deputados: Sebastião Garcia Ramires - Domingos Rosado Vitória Pires - Rogério Vargas Moniz - Carlos Monteiro do Amaral Neto - Simeão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães - João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira - Virgílio David Pereira e Cruz - Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
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CÂMARA CORPORATIVA
VIII LEGISLATURA
PARECER N.º 2/VIII
Proposta de lei n.º 8
Providências destinadas a assegurar o funcionamento dos Órgãos de governo
do Estado Português da Índia.
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da proposta de lei n.º 8, sobre as providências destinadas a assegurar o funcionamento dos órgãos de Governo do Estado da Índia, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e de Política e administração ultramarinas), com os Dignos Procuradores agregados Carlos Krus Abecasis, Guilherme Braga da Cruz, Manuel António Fernandes e Paulo Arsénio Viríssimo Cunha, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
I
Apreciação na generalidade
1. A Câmara Corporativa é chamada a dar parecer sobre uma proposta de lei de que constam providências destinadas a assegurar o funcionamento dos órgãos de Governo do Estado da Índia, nas circunstâncias anómalas criadas pela invasão do território desta província por tropas da União Indiana e consequente ocupação.
Antes de proceder à apreciação técnica desta proposta, a Câmara Corporativa considera de seu dever associar-se, nesta primeira oportunidade que se lhe oferece após a consumação de tal ofensa à nossa soberania, aos sentimentos de indignação de toda a Nação Portuguesa, perante a criminosa conduta do Governo da União Indiana, condenada aliás pela opinião pública de todo o mundo livre.
2. A ocupação ilícita do território da província do Estado da Índia pelo exército da União Indiana não determinou a cessação, nem mesmo a suspensão, da soberania portuguesa sobre esse território e respectiva população.
Para o afirmarmos não invocaremos apenas o direito constitucional interno português, perante o qual essa conquista não pode deixar de considerar-se irrelevante. Na verdade, nos termos do artigo 2.º da Constituição, «nenhuma parcela do território nacional (definido no artigo 1.º) pode ser adquirida por governo ou entidade de direito público de país estrangeiro», seja qual for o título da aquisição. Isto porque, ainda nos termos do mesmo preceito, e o Estado não aliena por nenhum modo qualquer parte do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce».
Invocaremos também o vigente direito internacional, uma vez que esse preceito da Constituição bem poderia ser contrariado por esse ordenamento jurídico, por tal forma que, se é certo que a conquista da Índia Portuguesa pela União Indiana é irrelevante perante o direito português, poderia ser relevante e produzir efeitos perante a ordem jurídica internacional.
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Mas não. Não se ignora que o direito internacional consuetudinário geral admitiu a anexação, não apenas da totalidade do território de um estado inimigo vencido por debellatio ou «subjugação», mas também de uma parte apenas desse território, sem consentimento do Estado vencido, uma vez cessadas as hostilidades e após ter-se o Estado vencedor estabelecido efectiva e firmemente na parcela conquistada, com a intenção de o incorporar u título permanente.
Simplesmente, este direito internacional comum tradicional está hoje derrogado para a generalidade dos países que fazem parte da Organização das Nações Unidas e que são, portanto, partes na convenção multilateral que é a Carta das Nações Unidas.
Segundo este tratado (artigo 2.º, n.º 4), todos os membros da Organização renunciaram, não só ,ao direito de fazer a guerra (salvo, é claro, nos casos de legitima defesa individual ou colectiva, conforme o artigo 51.º), mas também, em geral, ao recurso à força nas suas relações internacionais. Transcreve-se aquele preceito num dos textos autênticos, o inglês: «All Members shall refrain in their international relations from the threat or the use of force against the territorial integrity or political independence of any State, or in any other manner inconsistent with the purposes of the United Nations». Isto significa que o recurso à guerra está hoje, pela Carta (como já antes pelo Pacto Briand-Kellog), posto fora da lei. E não só a guerra como, de um modo geral, o recurso à força. A guerra e a força não são hoje mais, pelo menos para os membros das Nações Unidas, meios legais de conseguir mutações de soberania. A anexação, sem consentimento, de todo ou de parte do território de um Estado por parte de outro que recorreu à força contra as obrigações que para ele resultam da Carta das Nações Unidas é um acto inválido do ponto de vista do direito internacional convencional multilateral a que nos estamos referindo.
Compete, por isso, aos membros das Nações Unidas não reconhecerem alterações ao statu quo territorial, conseguidas pelo recurso abusivo e criminoso à força armada, e não atribuírem, ao menos de jure, efeitos a esse acto ilegal. No melhor entendimento, a Carta consagra, na verdade, a chamada «Doutrina de Stimson do não reconhecimento» (vulgarmente conhecida por «Doutrina de Stimson»), aliás já consagrada antes, no artigo 10.º do Pacto da Sociedade das Nações e no Pacto Briand-Kellog.
Neste sentido é a generalidade dos autores, entre os quais se destacam dois dos maiores nomes da ciência do direito internacional contemporânea: Lauterpacht, na edição do tratado de Oppenheim International Law, I, pp. 524 e segs., e Schwarzenberger, A Manual of International Law, 3.ª ed., pp. 34 e 54 e segs. Contudo, certa corrente minoritária parece admitir que uma acção ilegal, de guerra ou de força, pode legitimar uma aquisição territorial logo em seguida a derrota do Estado espoliado, desde que qualquer resistência tenha deixado de ser possível e o vencedor tenha estabelecido o seu domínio no território conquistado. Trata-se, porém, segundo cremos, de uma homenagem demasiado pressurosa ao chamado e princípio da efectividade».
A que se pode considerar communis oppinio nesta matéria é antes a tese de que só um longo período, consequente à anexação ilegal, de posse não perturbada por reivindicações do Estado espoliado e por protestos da generalidade da família das nações pode acabar por transformar as anexações de facto em anexações de direito. Torna-se aqui da maior importância, para evitar a produção de um tal efeito, que os membros das Nações Unidas cumpram com a sua obrigação de não reconhecerem nunca a situação criada pela usurpação, de modo a não poder formar-se um costume internacional sobre a alteração do campo ou âmbito territorial e pessoal da soberania do Estudo espoliado e do Estado vencedor.
Seja como for, o território e a população do Estado da Índia continuam e continuarão de direito a ser portugueses, cumprindo-nos tirar deste facto o maior número possível de consequências.
3. Sendo, continuando a ser português, e esperando-se que a família das nações, na sua generalidade, concorra para que ele continue a ser português, não é menos certo, infelizmente, que o território da província do Estado da Índia se encontra ocupado por uma potência estrangeira. É difícil saber se, de momento, essa ocupação se confina nos limites que o direito internacional fixa para a occupatio bellica e se, portanto, os indianos ainda consideram esse território como território português. Parece que estes limites já foram transcendidos. De qualquer modo, é bem conhecido o propósito da União Indiana de proceder em breve à anexação formal desta parcela do território português, que é como quem diz, à extensão da sua soberania sobre Goa, Damão e Diu.
Cumpre, por isso, ao legislador português, editar as normas necessárias para disciplinar esta situação transitória e anómala e as consequências que dela decorrem, que as leis constitucionais e ordinárias vigentes naturalmente não previram. Não estamos, na verdade, providos de legislação adequada a regular a vida político-administrativa de uma província transitoriamente ocupada por um Estado estrangeiro, que, evidentemente, não deixa funcionar nesse território os órgãos legítimos do seu governo e administração. Não temos, por outro lado, disciplina legislativa disponível que nos permita regular todas as consequências que esse facto acarretou já e acarretará consigo no futuro.
É este o objectivo fundamental da presente proposta de lei, que, por isso mesmo, tem toda a oportunidade e perfeitamente se legitima.
4. É, designadamente, oportuno e, mais do que oportuno, necessário, em primeiro lugar, determinar e regular a transferência para outro ponto do território nacional do Governo da província do Estado da Índia. Se o Estado da Índia continua a ser português e a existir para o direito português (aliás, como vimos, com fundamento no direito internacional), é imperioso que ele venha para outro lugar do território português exercer todas as atribuições que a lei lhe confere e as circunstâncias lhe reservem. A continuidade da administração provincial tem de ser assegurada em toda a medida do possível.
Os problemas que esta transferência pode suscitar não suo da mesma ordem que os levantados, durante a última grande guerra, pela instalação na Inglaterra de uma série de governos de países ocupados pela Alemanha. Os «governos no exílio» só puderam estabelecer-se fora dos seus respectivos territórios mediante autorização de um país estrangeiro e a sua actuação dependeu do reconhecimento dos Estados aliados e neutrais. Por outro lado ainda, estes governos transferiram-se para poderem actuar, não só, naturalmente, em relação aos seus respectivos territórios e súbditos, como também e sobretudo no campo dos relações internas
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cionais. O estatuto destes «governos no exílio» foi, portanto, uni estatuto internacional, sem o que seriam governos inteiramente fictícios.
Nada disto sucede com o estabelecimento do Governo do Estado da Índia em Lisboa ou em qualquer outro ponto do território nacional. O Governo do Estado da Índia terá um estatuto de puro direito interno. Para se instalar em Lisboa não precisa da autorização de qualquer país; e não se destina a ter. relações internacionais, visto que não representa um sujeito de direito internacional, antes uma simples pessoa colectiva de direito público interno português.
É lícito, pois, regular-se este assunto, que é de direito interno internacionalmente irrelevante, com toda a liberdade e pela forma julgada mais conveniente.
5. E igualmente oportuno disciplinarem-se as outras matérias consideradas na proposta de lei, e porventura deverá mesmo ir-se um pouco mais além, nos termos que a seguir se expõem.
No exercício da «supremacia territorial» ou supremacia de facto em que a si própria, pela força, ilicitamente, se investiu, por certo que a União Indiana há-de querer comportar-se como se tivesse sobre o nosso território verdadeira soberania, considerando os habitantes como seus súbditos, o património da província ou do Estado Português aí situado como património seu: irá, em suma, comportar-se como se, de direito, sucedesse aí ao Estado Português, exercendo todas as funções que só a este, na forma da administração directa ou indirecta, competem e arrogando-se todos os direitos que só a este pertencem. Também é de presumir, por outro lado, que procurará o mais possível isentar-se do cumprimento dos correspondentes deveres, deixando-os para serem respeitados e cumpridos pelo Estado Português.
A proposta contém uma base - a base IV, n.º 1, primeira parte - que, de acordo com o. direito internacional aplicável nas circunstâncias, justamente reafirma os direitos do Estado Português sobre o património público e privado que lhe pertenciam à data da ocupação. Trata-se de uma consequência da permanência da soberania territorial portuguesa em Goa, Damão e Diu. Mas nada se propõe no que concerne a continuação da soberania portuguesa sobre a população da província. Ora como, de acordo com o direito internacional, a União Indiana não sucedeu a Portugal nos seus direitos de soberania pessoal, considera-se, se não necessário, pelo menos útil reafirmar-se na nova lei a soberania pessoal do Estudo Português sobre, toda a população da Índia Portuguesa, estipulando que, de acordo com as normas e princípios em vigor entre nós em matéria de nacionalidade, a população em causa, residente ou não no Estado da Índia, mantém a nacionalidade portuguesa e os direitos e deveres daí emergentes. É aliás oportuno fazer cientes os goeses que continuam radicados na sua terra, e em especial os membros das comunidades goesas espalhados pelo Mundo, que Portugal continua a considerá-los seus nacionais, esperando deles, em toda a medida do possível, obediência, dedicação e fidelidade. Nesta base hão-de os goeses residentes no estrangeiro gozar da nossa protecção consular e diplomática, bem como de direitos políticos, quer em relação a constituição da Assembleia Nacional, quer em relação à constituição do Conselho Legislativo da sua província, que passará a funcionar noutro lugar do território nacional, quer, através da sua participação na constituição desses órgãos, na eleição do Chefe do Estado.
Pouco importa que a União Indiana tire, por sua vez, as consequências do esbulho que cometeu e, pretensamente investida da soberania pessoal no Estado da Índia, ipso facto ou por disposição especial, outorgue a nacionalidade indiana à população goesa, residente dentro ou fora de Goa. Essa extensão de sua soberania a uma população que não está por nenhum elemento relevante em conexão com tal país (dada a nulidade da anexação) deverão as potências ignorá-la, não lhe reconhecendo efeitos. Não deverá o Mundo livre afrouxar o seu permanente protesto contra a ilegalidade monstruosa, contra o verdadeiro delito internacional, do- estilo dos cometidos nas últimas décadas por outros potentados da Terra (alguns deles já punidos e outros aguardando punição), ao ver porventura o invasor tentar atenuar ardilosamente a sua responsabilidade concedendo à população o beneficium emigrandi ou o direito de opção de nacionalidade. Ë que o benefício em causa não pode ser general fundamente utilizado e o direito de opção sempre haveria de ser condicionado pela obrigação de abandono do território em curto prazo para os que desejassem conservar a nacionalidade de origem.
Outra consequência que na nossa lei se deve expressamente tirar da reafirmação da soberania nacional no Estudo da Índia é, no parecer desta Câmara, a de que Portugal não perdeu nem renuncia aos direitos emergentes dos tratados, convenções e acordos de toda a espécie em que seja parte e estejam em conexão exclusivamente com esse território, ou com todo o território nacional e tenham, portanto, também aplicação em relação ao Estado da Índia. Na medida, porém, em que a execução desses tratados, convenções ou acordos subentenda a presença neste território das autoridades portuguesas, consideram-se simplesmente suspensos ou em estado de pendência.
6. Não deve ocultar-se que alguns dos preceitos da proposta de lei submetida à apreciação da Câmara suscitam o problema da sua conformidade com a Constituição. Antes de todos, logo o da base I. É, na verdade, inquestionável que no artigo 143.º da Constituição e seu § único se pressupõe que a capital (isto é, o local onde têm a sua sede os órgãos políticos e administrativos centrais) se situe na respectiva província.
Parece-nos evidente que o legislador constitucional considerou aqui tão-só as situações normais e de nenhum modo os casos de crise, de força maior ou de estado de necessidade. A Constituição é omissa quanto à solução em hipóteses deste género, não sendo de modo nenhum admissível supor que o seu texto foi adoptado com o sentido de excluir solução diferente em hipóteses como essas.
Perante uma lacuna da lei constitucional, cumpre ao intérprete integrá-la conformemente aos cânones geralmente admitidos paru o preenchimento das lacunas da lei. Ora a própria Constituição prevê a solução para uma hipótese análoga, no artigo 177.º-A, ao conferir ao legislador ordinário competência para determinar como hão-de ser substituídos os órgãos da soberania e quais as condições da sua actividade, quando, em estado de necessidade e para salvaguarda do livre exercício do poder ante o inimigo externo, não possam funcionar ou actuar livremente. Por paridade de razão, deve competir ao legislador comum determinar, em abstracto para hipóteses futuras e eventuais, ou em concreto para uma hipótese em curso de verificação, como há-de manter-se ou assegurar-se a continuidade da vida político-administrativa de uma província ultra-
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marina quando o seu território seja ocupado pelo inimigo externo.
Se um tal preceito não existisse (e ele só existe depois da Lei n.º 2100, de 29 de Agosto de 1959), cumpria ao intérprete, na ausência de analogia dentro do texto da Constituição, procurai- a solução na norma que ele próprio formularia, inspirando-se no quadro de valores prevalecentes na comunidade jurídica em que está integrado e não nos valores pessoalmente perfilhados por ele. Outra coisa não são, no melhor entendimento hoje dominante, os «princípios de direito natural» a que alude, como se sabe, para serem utilizados em casos destes, o artigo 16.º do Código Civil. Ora estes valores ou estes princípios de direito natural ditam-nos a norma de que é absolutamente indispensável admitir para além do ou mesmo contra o direito constitucional legislado (extra legem, ou contra legem), um «direito constitucional de necessidade», também ele, afinal, direito positivo, destinado 11 ter aplicação em circunstâncias de crise, em períodos excepcionais. Ainda mesmo naqueles países - e são poucos - em que a Constituição escrita considera ilícita a possibilidade de serem suspensos determinados preceitos constitucionais, formaram-se costumes constitucionais que ab-rogaram essas proibições do direito constitucional escrito.
A doutrina não tem, em todo o caso, sido surda aos clamores do positivismo jurídico, que professa um verdadeiro horror júris necessitatis, considerando o «direito de necessidade» para aparência de direito, não direito, simples direito natural, não direito positivo - e esforça-se por estabelecer limites tão precisos quanto possível ao recurso a esta fonte de direito. Não pode a Câmara demorar-se na exposição e análise do estudo actual da ciência do direito público quanto a este ponto, limitando-se a remeter para o excelente estudo e Stephan Verosta intitulado «Das Saatsnotrecht», publicado na Österreichische Zeitschrift für öffentliches Recht, vol. IX (nova série), 1958-1959, pp. 463 e segs. Dele decorre que as soluções do «direito de necessidade» podem ser utilizadas pelos órgãos da soberania, e designadamente pelo legislador ordinário, em ou para situações de crise, e não de simples utilidade ou oportunidade, entendendo-se por situações de crise aquela em que não haja outra maneira de salvar a continuidade da vida do Estado, de preservar a ordem pública, de assegurar o bonnum comune, de garantir a segurança do Estado. No exercício deste jus eminens de salvação pública o legislador poderá suspender e, eventualmente, alterar preceitos singulares da Constituição (não a Constituição no seu conjunto, porque em tal caso cai-se no domínio de uma outra fonte revogatória da Constituição, que é a revolução). O controle da observância destes limites subjectivos e objectivos do direito de necessidade estará confiado aos órgãos que, segundo a Constituição considerada, tiverem o encargo normal de velar pelo respeito dela.
Que uma tal orientação doutrinal está de acordo com os princípios ou valores jurídicos dominantes entre nós no próprio campo do direito constitucional resulta hoje de que ela se encontra perfilhada e acolhida pela própria Constituição, não só no artigo 177.º-A, já citado, como ainda em outros preceitos (artigos 72.º, § 1.º, 80.º-A, 84.º, alínea a), 85.º e 91.º, n.º 8.).
E tanto ela se impõe que, ainda antes de ser incluído na Constituição o artigo 177.º-A., o legislador comum editara normas destinadas a assegurar a continuidade da vida política da Nação em caso de guerra e de estado de necessidade (Lei n.º 2084, de 16 de Agosto de 1956), sendo curioso notar que aí se previa e prevê a possibilidade de nessas circunstâncias excepcionais a capital política poder ser mudada para qualquer ponto do território nacional (base XXX).
Por toda a parte circunstâncias de crise justificam um direito de necessidade, ainda que a Constituição o não preveja. Recorde-se, a propósito, o que sucedeu elucidativamente com o Governo Holandês no exílio, em Londres, durante a última guerra. O texto da Constituição dos Países Baixos - não previa que o Executivo emanasse legislação de urgência. Simplesmente, o Parlamento não podia reunir-se, porque os seus membros haviam ficado na Holanda. Pois entendeu-se, e muito bem, que nestas circunstâncias era manifesto que não era do interesse do povo, que a Constituição visa satisfazer, não poder o Governo legislar para a defesa do país só porque o legislativo ficara sob controle do inimigo, e este, invadindo o país, não deixara tempo suficiente para emendar a Constituição de fornia a permitir ao Governo que legislasse no estrangeiro sem a sua sanção. Não era de presumir - alegaram os consultores da rainha - que se os pais da Constituição tivessem, imaginado uma situação daquela ordem, ou, se o povo tivesse então possibilidade de expressar a sua opinião, recusassem ao Governo poderes legislativos para o período de emergência nos limites do estado de necessidade. A solução estava, assim, encontrada, dentro das normas a observar em geral na integração das lacunas da lei (Y. Oppenheimer, «Governments and Authorities in Exile», in American Journal of International Law, 1942, p. 582).
Em conclusão: não nos parece que possa ser fundadamente impugnada a legitimidade constitucional da lei em que virá a converter-se a presente proposta, de lei, quer enquanto prevê que o Governo do Estado da Índia passe a funcionar noutro ponto do território nacional, fora de Goa, quer enquanto disponha, noutras matérias aí reguladas ou a regular, em termos divergentes do texto da Constituição.
7. A proposta de lei encara apenas a transferência para Lisboa do órgão político-administrativo supremo e do órgão legislativo da província, nada prevendo quanto aos tribunais do Estado da Índia. Parece a esta Câmara necessário dispor que os tribunais de comarca e da Relação de Lisboa serão, para todos os efeitos, considerados como tribunais do Estado da Índia enquanto a situação de ocupação estrangeira se mantiver.
Em matéria de tribunais administrativos, dado que o Conselho Ultramarino e o Tribunal de Contas funcionam na metrópole,, apenas interessa dispor quanto ao Tribunal Administrativo da província. Não parece necessário instituí-lo em Lisboa ou considerá-lo para aqui transferido. A sua competência pode passar transitoriamente para a 1.ª subsecção da secção do contencioso do Conselho Ultramarino, funcionando a secção do contencioso, em reunião conjunta das- suas subsecções, como instância de recurso, isto é, com a competência que ora em geral pertence justamente à 1.ª subsecção.
II
Exame na especialidade
BASE I
8. Discutida já a questão da legitimidade constitucional desta base, apenas se farão agora alguns reparos quanto nos pormenores do seu conteúdo e quanto à sua redacção.
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Ponderou a Câmara se, em vez de se falar no Governo do Estado da Índia, não deveria antes aludir-se nesta base aos órgãos e serviços da administração' provincial do Estado da Índia, fórmula que mais inequivocamente abrangeria quanto deve passar a funcionar em Lisboa: Governo-Geral, Conselho Legislativo, Conselho de Governo e serviços públicos da administração provincial. Concluiu, porém, que expressão «Governo» da província ultramarina em causa é por vezes e pode realmente ser usada num sentido amplo, que abrange os órgãos político-administrativos provinciais, e que, entendida com certa dose de boa vontade, não deixa dúvidas sobre que os serviços públicos provinciais funcionarão onde aqueles órgãos se instalarem. Não se bulirá, portanto, na terminologia da proposta, ficando bem entendido que a expressão abrange todos os órgãos e serviços da administração provincial do Estado da Índia que subsistirem nas circunstâncias transitórias presentes.
A Câmara Corporativa prefere, entretanto, que, no primeiro período desta base, em vez de se falar da ocupação da província do Estado da Índia (que é uma pessoa colectiva de direito público, uma entidade jurídica portanto), se fale no seu território, que é verdadeiramente o que em rigor se encontra ocupado. Por outro lado, crê a Câmara que a situação transitória que se deve regular é a da ocupação por uma potência estrangeira, e não a da ocupação por tropas estrangeiras, que podem mesmo deixar em certo momento o nosso território e  serem- inteiramente substituídas por simples forças policiais - e é evidente que isso só por si não importará o regresso ou a possibilidade prática do regresso das autoridades legítimas. Tocando-se, assim, na redacção da base I, aproveitar-se-á o ensejo para a tornar tecnicamente mais perfeita.
Quanto à última parte do preceito em análise, não tem a Câmara reparos a formular. Convém, realmente, prever a possibilidade da transferência do Governo do Estado da Índia para outro qualquer ponto do território nacional.
BASE II
9. Sem necessidade de grande boa vontade, pode talvez entender-se que o artigo 152.º da Constituição (que prevê que em cada província ultramarina haja um conselho que intervenha no exercício das funções legislativas do respectivo Governo, conselho em que «haverá representação adequada às condições do meio social») não impede a consagração legislativa da composição ora proposta para o Conselho Legislativo do Estado da Índia. Admitindo que a letra deste preceito constitucional a não consente, será mais uma vez ocasião de fazer legitimamente apelo ao «direito constitucional de necessidade», de que na apreciação da proposta na generalidade se falou. Nas condições reinantes na província do Estado da Índia não há dúvida de que será impossível dar à sua população a representação que tinha nos termos da base XXV, n.º III, da Lei Orgânica do Ultramar Português ou em outros diferentes, mas igualmente adequados, e corresponder assim fielmente à imposição do artigo 152.º da Constituição. Assim, deverá considerar-se transitoriamente suspensa, no que respeita ao Estado da Índia, a aplicação deste preceito.
E adequada às circunstâncias e perfeitamente razoável dentro delas a ideia de atribuir aos goeses que vivem fora do Estado da Índia competência para designar a parte electiva dos membros do seu Conselho Legislativo. Esses goeses representam, indubitavelmente, as aspirações de todo o povo da sua terra cativa e oprimida e serão, com certeza, na liberdade os procuradores daqueles que em Goa, Damão e Diu estão privados pelo ocupante de exprimir a sua vontade e de exercer os seus direitos políticos como portugueses que são.
Talvez não seja desaconselhável dizer-se na lei que será no estatuto político-administrativo da província (o qual terá naturalmente, neste ponto e em vários outros, de ser modificado e adaptado às circunstâncias transitórias imperantes) que se fixará o número de vogais, eleitos e nomeados, do Conselho Legislativo e se regulará a eleição. Reconhece-se, porém, que à mesma solução se deverá chegar, em qualquer caso, com fundamento na base XXV, n.º III, da Lei Orgânica do Ultramar Português.
Sugere a Câmara que se consigne na lei não prejudicar a composição prevista do Conselho Legislativo os direitos daqueles dos seus membros actuais que, tendo deixado o território ocupado, se apresentem a ocupar o seu lugar neste órgão.
Pelo que diz respeito à última parte da base proposta, não há objecções a fazer-lhe, nas circunstâncias de excepção em que a lei se destina a ser aplicada.
Poderia pensar-se em introduzir na lei em elaboração, e justamente nesta base, um preceito que contemplasse a intervenção dos representantes municipais do Estado da Índia na eleição do Chefe do Estado (Constituição, artigo, 72.º). Algo se deveria dispor neste sentido, por forma a encontrar sucedâneos para estes representantes, se não houvesse forma de conseguir que a província do Estado da Índia esteja presente nessa eleição. Mas a verdade é que ela intervirá sempre neste acto com os seus Deputados e com os representantes do seu Conselho Legislativo. Não estarão transitoriamente presentes, é certo, os seus representantes municipais, mas não se vê grande maneira de, com presunção suficiente de autenticidade do mandato, se confiar a representação dos conselhos seja a quem for.
BASE III
10. Não parece necessário vir dizer-se na lei que junto do governador-geral funcionará um Conselho de Governo, com atribuições consultivas. Isso resulta, afectivamente, quer da Constituição (artigo 155.º), quer da vigente Lei Orgânica do Ultramar Português (base XXVIII). O que parece necessário dizer-se é que a composição deste Conselho será provisoriamente a que lhe for fixada no estatuto político-administrativo do Estado da Índia, estatuto que, como se disse já, terá naturalmente de ser remodelado para aplicação nas circunstâncias transitórias presentes, não deve, com efeito, manter-se-lhe a composição prevista na referida base XXVIII, uma vez que alguns dos cargos e órgãos a que aí se alude podem ter de sor suprimidos ou suspensos.
BASE IV
11. Se a anexação do território do Estado da Índia fosse válida ante a ordem jurídica internacional, a União Indiana «sucederia» ipso facto ao Estado português no domínio público que este detinha nessa parcela do seu território, assim tornada território do Estado «sucessor».
Como essa anexação é nula, o legislador português tem todo o direito de proclamar, como proclama no primeiro número desta base IV, que o domínio público
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continua a pertencer ao Estado Português. A União Indiana é seu detentor ilegítimo, e como tal deve ser considerada e tratada.
A proposta do Governo sobre este ponto faz-se apenas o reparo de que parece dar a entender que o domínio público pertence ao Estado da Índia, quando, em rigor, pertence ao Está-lo, conforme resulta do artigo 167.º da Constituição, e, mais claramente ainda, da base LIII, n.º i, da Lei Orgânica do Ultramar Português, embora o Governo e os serviços autónomos ou personalizados da província possam exercer sobre ele os poderes que a lei lhes atribuir.
Quanto aos bens que constituem o património privado ou fiscal do Estado da Índia, se a anexação fosse válida, a União Indiana «sucederia» na propriedade da parte imobiliária situada na província, mas já não «sucederia» na propriedade da parte imobiliária situada fora da província nem na da porção mobiliária, onde quer que se situasse (Guggenheim, Traité de Droit International Public, I, pp. 468 e segs.).
Como a anexação não é válida, está o legislador português perfeitamente à vontade para declarar na lei que esses bens privados da província do Estado da Índia, sem distinção entre os situados no seu território, os situados em qualquer outra parte do território nacional e os situados em território de terceiros Estados, continuam a pertencer no Estado da Índia, representado pelo seu Governo. Rejeita-se a fórmula cie que pertençam à Nação, visto que esta não é sujeito de direitos, ao menos de direitos privados. A opção só pode conceber-se, quanto à titularidade destes direitos, entre o Estado Português no seu conjunto e a província do Estado da Índia. Em bom rigor, quem tem sido e continuará a ser proprietário dos bens do património privado em causa é o Estado da Índia.
12. A segunda parte do n.º I da base IV da proposta deverá destacar-se deste número, porque não versa a mesma matéria a que se refere a primeira parte.
Diz-se, em substância, neste preceito que o Estado Português não é civilmente responsável pelos «danos de guerra» que foram provocados no território do Estado da Índia, quer pelo exército da União Indiana, quer mesmo pelo exército português, na preparação da defesa ou no decurso desta.
Não há dúvida de que os particulares não têm nem devem ter qualquer direito a indemnização perante o Estado Português pelo facto dos danos cansados pelo invasor, até porque este infringiu a lei internacional, não obstante o resultado da luta.
Mas pode justamente pôr-se o problema de saber se o Estado Português deve considerar-se responsável, de lege lata, pelos danos que o seu Exército causou aos particulares, na iminência da luta ou no decurso desta.
Entende-se geralmente que não, invocando-se em apoio desta solução quer o facto de a actividade de legítima defesa bélica ser uma actividade lícita e ser excepcional, no nosso direito, a responsabilidade civil por actos lícitos, só se reconhecendo, portanto, nos casos especiais previstos na lei, entre os quais se não conta aquele a que nos estamos referindo, quer a circunstância de os chamados «factos de guerra» serem, como «actos de governo», insusceptíveis de apreciação, mesmo no plano do contencioso de plena jurisdição, quer, finalmente, a razão de que esses factos de guerra foram causados em circunstâncias de força maior, que isentam o lesante de responsabilidade, nos termos gerais do direito comum da responsabilidade civil.
Aliás, para justificar a solução da irresponsabilidade do Estado Português, pode ainda invocar-se que não são controláveis os pressupostos de facto da indemnização, visto serem inverificáveis, por forma digna de confiança, os danos praticados.
Não sendo, pois, responsável de lege lata, também, se não impõe responsabilizar o Estado Português nesta lei ou em outra qualquer lei especial.
13. No n.º II da base IV, em apreciação, dispõe-se sobre o respeito que hão-de merecer as concessões que venham a ser feitas pelo estado ocupante, quer se trate de concessões do domínio público, quer se trate de concessões de serviços públicos - e diz-se que essas concessões se considerarão, uma vez reocupado o território, juridicamente inexistentes.
Se bem que certa orientação da prática e da jurisprudência dos estados contradiga esta orientação, a verdade é que a orientação clássica é no sentido de que o Estado «sucessor» (e para o caso a restauração da «supremacia territorial» portuguesa no Estado da Índia deve ser tratada como se se tratasse de «sucessão») pode revogar as concessões feitas anteriormente, sem indemnização. Isto vem a dar no mesmo ou sensivelmente no mesmo que dizer-se, como se diz na proposta, que elas serão tratadas como juridicamente inexistentes. O carácter ilícito da anexação do nosso território confere toda a. razoabilidade a esta solução. Os candidatos a concessões a outorgar pelo ocupante não ignoram as condições ilícitas e criminosas em que a anexação se operou e, de qualquer modo, ficam a saber desde já que se não respeitarão quaisquer pretensos direitos adquiridos na hora em que se operar a restauração do exercício dos nossos direitos no território da província.
Entende a Câmara que, para além dos casos especiais das concessões, convém que na nova lei fique consignada, se não a sanção da inexistência para todas as situações ou «direitos» emergentes de actos de direito público, ao menos a reserva do seu não reconhecimento pelo Estado ou pelo Governo da província uma vez restaurado o exercício pleno e efectivo da soberania portuguesa.
BASE V
14. Diz-se 110 n.º I desta base que são juridicamente ineficazes, e a sua validade só poderá ser apreciada após o restabelecimento do exercício da soberania portuguesa, os compromissos de ordem financeira ou económica anteriores à ocupação do território do Estado da Índia pelo invasor e assumidos por ou em nome daquele.
Para se avaliar do alcance desta norma e julgar da sua oportunidade será conveniente tentar-se uma discriminação das hipóteses que são susceptíveis de verificar-se em matéria de compromissos do Estado da Índia ou do Estado Português em referência ao Estado da Índia.
De lado deve ficar, por inverificável, o caso de compromissos de ordem financeira (empréstimos e outras operações de crédito) contraídos pelo Estado da Índia, antes da ocupação, em praças estrangeiras: as províncias ultramarinas não podem contrair empréstimos em países estrangeiros (artigo 173.º da Constituição e base LXI, n.º IV, da Lei Orgânica do Ultramar Português.
a) Mas já se deve fazer alusão aos compromissos da mesma ordem contraídos pela metrópole em praças externas, em nome e no interesse exclusivo do Estado da
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Índia (quer dizer: visando obter capitais destinados ao governo da província). Trata-se de dívidas públicas «regionais» ou «hipotecadas no território» da província do Estado da Índia. Em rigor, estas dívidas grèvent le territoire de la région, subentendem a possibilidade de serem pagas com os rendimentos tributários, patrimoniais ou outros da «região» personalizada e com autonomia financeira e activo e passivo próprios. Quando, no termo da primeira grande guerra, a Alemanha foi privada da soberania sobre os seus territórios ultramarinos, que tinham um orçamento e um fisco próprios, não se considerou obrigada a cumprir com os compromissos financeiros que havia contraído para cada um desses seus territórios (cf. Ernst H. Feilchenfeld, Public Debts and State Succession, pp. 548 e segs.). Portugal, que não perdeu a soberania territorial sobre o Estado da Índia, mus que está despojado da sua o supremacia territorial ou supremacia de facto sobre esse território, não enjeita os seus compromissos, mas, dado que é pressuposto manifesto do seu dever de cumprir com semelhantes obrigações a posse do território e o exercício da sua soberania tributária, não pode deixar de considerar, pelo que lhe diz respeito, suspenso o dever de cumprir, suspensa a eficácia ou a execução dos contratos em causa. Não pode o Estado Português, no entanto, como é evidente, obstar a que os interessados solicitem ou exijam o cumprimento deles à União Indiana, tanto mais que esta não deixará de se proclamar «sucessora» do nosso país na soberania sobre o território do Estado da Índia. Isto, é claro, supondo que tais compromissos existam, facto de que a Câmara não está informada.
b) Não podem, por outro lado, esquecer-se aqui os compromissos da mesma ordem dos anteriormente referidos, contraídos pela metrópole em praças externas, no interesse exclusivo do Estudo da Índia, mas não em nome deste. Trata-se do que por vezes se chama a dívidas especiais» do Estado. Seria duvidoso que devêssemos considerar-nos desonerados delas, mesmo na hipótese de a União Indiana ter de direito «sucedido» ao Estado Português na soberania sobre o Estudo da Índia. Certos autores (indicados em A. N. Sack, «Succession aux dettes publiques d'Etat», in Recueil des Cours da Academia de Direito Internacional, 1928, III, pp. 291 e segs.) entendem que, em tal caso, estas dívidas, tais como as anteriores, grèvent le territoire de la région et non le territoire entier de l'Etat, substancialmente pela mesma razão que justificou que estas fiquem a cargo do Estado sucessor. A doutrina mais autorizada é, no entanto, no sentido de que estes direitos grèvent le territoire entier de L'Etat. Esta solução, se é válida para a hipótese de «sucessão», mais deve-se de seguir em relação ao nosso caso,- em que, juridicamente, não pode falar-se numa transferência de soberania de Portugal para a União Indiana. É certo que é uma solução injustamente gravosa para o Estado Português, que afectou (se dívidas desta ordem existem, facto que a Câmara desconhece) os capitais obtidos desta forma em empreendimentos produtivos no território do Estado da Índia, e não pode ressarcir-se com os rendimentos desta província, que passaram a estar nos mãos do ocupante. Mas também é certo que solução diferente prejudicaria ou poderia prejudicar injustificavelmente os credores que contrataram exclusivamente com o Estado Português, intervindo este em nome próprio e sem reservas de responsabilidade na celebração de tais compromissos. Considere-se por último que a suspensão do cumprimento destes compromissos afectaria com toda a certeza o crédito externo do Estado Português, que interessa a todo o custo preservar.
c) Hipótese de ainda maior melindre será a dos compromissos daquela mesma ordem, contraídos pelo Estado da Índia ou pela metrópole, em nome e no interesse desta província, em praças internas. Em rigor jurídico, impõe-se aqui uma solução idêntica à já preconizada para a hipótese de compromissos contraídos nas mesmas condições em praças externas. Há, no entanto, certa diferença. É que enquanto os credores externos não terão relutância em se dirigirem ao Governo da União Indiana, alegando a sua «sucessão» nos direitos «regionais» ou «hipotecados» do Estado da Índia, perfilhando para o efeito a própria tese desse puís, já o mesmo se não poderá esperar de credores portugueses. Esta circunstância ponderosa leva a Câmara a recomendar a solução de que semelhantes compromissos, a existirem, não deverão ver o seu cumprimento retardado para além dos prazos contratualmente estabelecidos.
d) Por maioria de razão, idêntica solução se preconiza quanto aos compromissos da mesma ordem, contraídos pelo Estado Português no interesse, mas não em nome, do Estado da Índia, em praças internas.
e) Compromissos emergentes de outros contratos, celebrados pelo Estado da Índia ou pelo Estado Português em nome dele, antes da ocupação do território pelo invasor, e ainda pendentes ou em curso de execução por qualquer dos contratantes: crê-se que as mesmas soluções já formuladas atrás para os chamados «débitos públicos« se devem seguir aqui, distinguindo-se, portanto, entre o caso em que o co-contratante seja português e aquele em que seja estrangeiro. O problema, porém, pode complicar-se em certas hipóteses. Assim, e em primeiro lugar, é possível que haja contratos celebrados pela província ou pelo Governo Português em nome dela com empresas portuguesas do Estado da Índia, ainda em curso de execução nesse território. Por exemplo: empreitadas de obras públicas ou contratos de fornecimento. Pelo regime acima proposto, esses contratos não seriam suspensos e, portanto, a província deveria cumpri-los, não obstante a sua execução reverter em inteiro benefício do ocupante e o facto importar entrega de divisas à União Indiana. Não pode, neste caso, seguir-se a solução de princípio acima sugerida. Impõe-se aqui considerarem-se os contratos suspensos, só podendo o seu cumprimento ser exigido ao Governo do Estado da Índia removida que seja a ocupação do território.
Outra hipótese que merece consideração destacada é a de contratos, designadamente de fornecimentos celebrados pela província ou pela metrópole em seu nome, com firmas estrangeiras. Pelo regime de princípio, atrás esboçado, os autoridades portuguesas não seriam obrigadas, por sua parte, a cumpri-los. Simplesmente, pode dar-se que esses contratos ainda não tenham sido executados pelo co-contratante e que este tenha mesmo recebido já, do Estado ou da província, adiantamentos do preço. Se se seguisse a orientação atrás enunciada, parece que essas firmas estrangeiras poderiam, encontrando-se os contratos suspensos por decisão do legislador português, cumprir com aquilo a que estavam obrigadas, entregando as suas prestações a União Indiana. Tal solução implicaria a perda dos adiantamentos de preço feitos pela metrópole ou pela província. Parece, em face disto, aconselhável que, em tais casos,
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a metrópole ou o Governo do Estudo da Índia mantenham a eficácia dos contratos, são considerarem conveniente.
f) Paralelismo com as soluções de princípio atras expostas também se deve admitir na hipótese de essas outras dívidas serem emergentes de contratos celebrados pelo Estado Português, não em nome, mas no interesse do Estado da Índia. Não deve verificar-se aqui qualquer caso em que o co-contratante seja pessoa residente no Estado da Índia. Quando o contrato tenha sido celebrado com entidade estrangeira, o cumprimento por parte desta não poder, como é óbvio, fazer-se no Estado, da Índia, mas onde o Governo o determinar.
g) Obrigações do Estado da Índia, emergentes de leis ou de regulamentos, em relação a cidadãos portugueses: temos em vista em especial as pensões de aposentação ou reforma de funcionários e outros agentes públicos, designadamente goeses. Em princípio, stricto jure o cumprimento dessas obrigações deveria ser imediatamente suspenso. A este principio de direito estrito contrapõe-se um princípio de equidade. Pode, efectivamente, dizer-se que a equidade manda que o Estado da Índia, através do seu Governo instalado em território nacional, continue, na medida em que isso seja praticável, a cumpri-las, em relação, pelo menos, aos que, se isso lhes for facultado pela lei indiana, decidirem conservar a nacionalidade portuguesa perante as próprias autoridades indianas. Os que (embora, perante nós, irrelevantemente) decidirem, podendo não o fazer, considerar-se súbditos da União Indiana, esses deveriam sofrer as consequências naturais da sua infidelidade. Esta discriminação não viola qualquer princípio ou norma de direito internacional comum, pois trata-se de assunto que se situa. dentro do campo da jurisdição interna. Ainda que se tivesse, de jure, operado uma «sucessão» de Estados, mesmo assim a discriminação continuaria a ser legítima, visto que semelhante género de obrigações se transmitiria, segundo o direito internacional comum, para o Estado e sucessor, devendo onerar as suas finanças.
A estas considerações de equidade opõem-se, porém, por sua vez, considerações de uma outra ordem: é, na verdade, difícil de admitir que se enviem para Goa, Damão e Diu divisas portuguesas, a aproveitar pela União Indiana.
Este antagonismo de razões leva a Câmara a considerar o problema como um problema de política governamental a ponderar pelo Ministro do Ultramar; que, aliás, já parcialmente o encarou no Decreto n.º 44 142, de 30 de Dezembro de 1961.
h) Aludamos, finalmente, aos compromissos do Estado resultantes da emissão de notas, em relação aos portadores delas e em relação ao instituto emissor.
As notas emitidas para circularem no Estado da Índia não podem, de facto, circular como expressão da soberania monetária portuguesa nesse território. Não pode o legislador alhear-se desta situação para tirar dela, ou para autorizar o Governo a tirar dela, as consequências necessárias ou convenientes.
Uma das consequências será a suspensão ou eventual cancelamento do curso legal das notas emitidas, uma vez que a União Indiana não permite a sua circulação no território como notas portuguesas.
Medidas desta ordem provocarão naturalmente a necessidade de o Governo definir os efeitos delas decorrentes, quer em relação ao instituto emissor, quer em relação aos particulares. A lei deverá habilitá-lo a proceder a essa definição.
Esta matéria não se deve considerar omitida nu proposta de lei em análise: ela encobria-se, segundo se crê, na fórmula «compromissos de ordem financeira ou económica, a que o n.º I da base V, mais ou menos vaga e imprecisamente, se refere.
Considerando tudo o que vem de ser exposto, a Câmara Corporativa sugere para este n.º I da base V uma redacção nova, que se encontrará nas conclusões deste parecer. A fórmula que se propõe não discrimina as várias soluções sugeridas, deixando ao Governo a faculdade de adoptar, em relação a cada caso ou a cada tipo de casos, a solução que lhe for ditada pelo interesse público e pelas exigências da equidade.
15. Nos termos do artigo 148.º da Constituição e das bases IV e LIV da Lei Orgânica do Ultramar Português, as províncias ultramarinas têm a autonomia financeira compatível com a Constituição, com o seu estado de desenvolvimento e recursos próprios. Mas, nos termos do artigo 175.º da mesma Constituição e da base LIV da Lei Orgânica citada, essa autonomia fica sujeita às restrições ocasionais que sejam indispensáveis para situações graves da sua Fazenda, ou pelos perigos que estas possam envolver paru a metrópole. Acrescenta, esta base LIV, no seu n.º III , que ao Ministro do Ultramar pertence restringir, nas circunstâncias indicadas no número anterior, n autonomia financeira de qualquer das províncias.
Perante o que se dispõe nestes preceitos, e ainda porque, de toda a maneira, as províncias ultramarinas estão, mesmo normalmente, no que respeita à sua autonomia financeira, sujeitas à superintendência e fiscalização do Governo (base citada, n.º I, da Lei Orgânica), julga a Câmara dispensável a inclusão do preceito analisado na nova lei.
BASE VI
16. Nesta base prevê-se que a execução da lei em que a proposta se transformará venha a fazer-se por meio de despachos e portarias do Ministro do Ultramar.
O preceito seria supérfluo se com ele se quisesse dizer que os actos de conteúdo individual e concreto por meio dos quais se há-de proceder à execução da lei revestirão a forma de despacho ou de portaria.
Mas no preceito proposto não se deve querer dizer semelhante coisa. Quererá dizer-se que as normas regulamentares respectivas revestirão a forma desembaraçada de portarias e de despachos.
Crê-se não haver objecção constitucional a uma tal solução, isto é: crê-se que o n.º 3.º do artigo 109.º da Constituição não veda que os regulamentos executivos ou ordinários assumam a forma simplificada de portaria (como já é corrente entender-se) e de despachos (despachos genéricos). Em todo o caso, entender-se-ão ressalvadas as matérias próprias do estatuto político-administrativo da província, que assumirão mesmo forma legislativa [Lei Orgânica, base X, n.º I, alínea e)].
Compreende-se que o Ministro do Ultramar, nas circunstâncias anormais em que a lei tem de executar-se, deva poder actuar expeditamente, e até sem publicidade, para o que se tornará necessário que os seus texto» regulamentares não sejam promulgados pelo Chefe do Estado e referendados pelo Presidente do Conselho. Compreende-se - embora se exprima relutância em aprovar a solução ...
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III
Conclusões
17. A Câmara Corporativa dá a sua concordância, na generalidade, à proposta de lei n.º 8/VIII. No seguimento da análise que fez deste documento, entende, no entanto, dever sugerir algumas adições e alterações. Assim, recomenda a aprovação do texto seguinte:
BASE I
Enquanto o território português do Estado da Índia estiver subtraído ao exercício pleno e efectivo da soberania portuguesa, o Governo da província funcionará em Lisboa. O Ministro do Ultramar poderá transferi-lo para qualquer outro ponto do território nacional se as circunstâncias o aconselharem.
BASE II
I) Igual à proposta do Governo.
II) O estatuto político-administrativo da província fixará o número de vogais, eleitos e nomeados, do seu Conselho Legislativo e regulará a eleição.
III) O que nesta lei se dispõe sobre a composição do Conselho Legislativo não prejudica o mandato daqueles dos seus actuais membros que se apresentem a desempenhá-lo no local onde passa a funcionar.
IV) Aos colégios dos eleitores a que se refere a alínea a) do n.º I) desta base competirá também, directa ou indirectamente, eleger os Deputados pelo círculo eleitoral do Estado da Índia.
BASE III
O Conselho do Governo terá a composição que for fixada no estatuto político-administrativo da província do Estado da Índia.
BASE IV
I) Os tribunais de comarca e da Relação de Lisboa funcionarão, para todos os efeitos, como tribunais do Estado da Índia.
II) A 1.ª subsecção da secção do contencioso do Conselho Ultramarino exercerá a competência do Tribunal Administrativo do Estado da Índia, funcionando como instância de recurso a própria secção, em reunião conjunta das suas subsecções.
BASE V
A legislação portuguesa sobre nacionalidade continua a aplicar-se com relação ao Estado da Índia, considerando-se irrelevantes quaisquer disposições legais ou de outra natureza que sobre o mesmo assunto tenham sido ou venham a ser adoptadas enquanto se não restabelecer o exercício da soberania portuguesa.
BASE VI
I) Os bens do domínio público do Estado existentes na província do Estado da Índia mantêm, para todos os efeitos, essa qualidade e pertinência.
II) São juridicamente inexistentes as concessões do domínio público, de serviços públicos e de obras públicas feitas pelo ocupante. Poderão igualmente considerar-se irrelevantes quaisquer situações emergentes de actos de direito público praticados enquanto se não restabelecer o exercício pleno e efectivo da soberania portuguesa.
III) Os bens que constituem o património do Estado da Índia, nos termos da Lei Orgânica do Ultramar Português, continuam para todos os efeitos a pertencer-lhe.
BASE VII
Todas as depredações, incluindo as destruições realizadas ou ordenadas pelas autoridades portuguesas na preparação ou no exercício de legítima defesa contra o invasor, são da responsabilidade deste.
BASE VIII
I) Fica suspensa, até ao restabelecimento do exercício pleno e efectivo da soberania portuguesa, a eficácia dos compromissos de ordem financeira ou económica, celebrados pelo Estado da Índia ou pela metrópole em sen nome ou no seu interesse exclusivo, anteriores à ocupação do território dessa província. O Governo poderá, porém, conservar a eficácia desses compromissos em casos especiais de interesse público ou por motivo de equidade.
II) O Governo resolverá relativamente ao curso legal das notas emitidas para circular no Estado da Índia, definindo as responsabilidades decorrentes das medidas que tomar.
BASE IX
Consideram-se era vigor todos os tratados e acordos de qualquer espécie referentes em geral a todo o território português ou em especial ao Estado da Índia, mantendo Portugal todos os direitos e cumprindo todos os deveres deles emergentes. Aqueles tratados ou acordos cuja execução dependa da presença das autoridades legítimas no. Estado da Índia consideram-se suspensos.
BASE X
O Ministro do Ultramar regulamentará a presente lei por meio de decretos, portarias e despachos.
Palácio de S. Bento, 16 de Janeiro de 1962.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
António Armando Gonçalves Pereira.
Armando Manuel de Almeida Marques Guedes.
Fernando Andrade Pires de Lima.
Francisco de Paula Leite Pinto.
Francisco Pereira Neto de Carvalho.
Joaquim Trigo de Negreiros.
Albano Rodrigues do Oliveira.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
Francisco José Vieira Machado (Na minha maneira de ver o preceito proposto relativamente ao curso legal das notas é inconveniente.
Em primeiro lugar, o Governo na sua proposta não aludiu de forma expressa u esse problema, certamente pelo seu melindre e dificuldade.
Em segundo lugar, a nota é uma expressão da soberania. Desde que Portugal, como não podia deixar de ser, proclama manter os seus direitos soberanos em relação ao Estado da Índia, não se compreende que seja ele próprio a anular um símbolo e instrumento dessa mesma sua soberania.
A União Indiana é que tem interesse em não reconhecer o curso legal das notas portuguesas e, por isso, consta que já retirou no Estado da Índia esse curso legal. Mas que sejamos nós
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portugueses a concordar neste ponto com a União Indiana parece-me, salvo o devido respeito, absurdo.
Finalmente, o preceito vai violar, não só inútil, mas inconvenientemente, o contrato celebrado entre o Estado e o banco emissor.
A circunstância de os notas não poderem de facto circular no Estado da Índia não pode nem deve levar à conclusão- de que o Governo lhe retire o curso legal.
Nem se diga que a União Indiana poderia remeter por vias indirectas para Lisboa notas do banco emissor para serem aqui trocadas, porquanto a cláusula 31.º, § 3.º, do contrato entre o Estado e o banco previne esse risco.
A redacção cominatória da disposição, em vez da concessão de uma faculdade, torna-a ainda mais inconveniente).
Joaquim Moreira da Silva Cunha.
Vasco Lopes Alves.
Carlos Krus Abecasis.
Manuel António Fernandes.
Paulo Arsénio Viríssimo Cunha.
Afonso Rodrigues Queira, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA