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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 43

ANO DE 1966 28 DE NOVEMBRO

IX LEGISLATURA

SESSÃO N.º 43 DA ASSEMBLEIA NACIONAL

EM 26 DE NOVEMBRO

Presidente: Exmo. Sr. Mário de Figueiredo

Secretários: Ex.mos Srs. Fernando Cid de Oliveira Proença e
Mário Bento Martins Soares

SUMARIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às l0 horas e 55 minutos.
Ordem do dia. - Usou da palavra, nos termos do artigo 113.º, § único, da Constituição Política, o Sr. Ministro da Justiça, Prof. Doutor João de Matos Antunes Varela, que fez uma comunicação sobre o novo Código Civil Português.
Seguidamente, o Sr. Presidente referiu-se à convocação das Comissões de Economia e Finanças para estudarem a proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1967 e aludiu à data provável em que será recebido na Assembleia o parecer da Câmara Corporativa sobre aquela proposta de lei.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 45 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai fazer-se a chamada. Eram 15 horas e 40 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Albano Carlos Pereira Dias de Magalhães.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
André Francisco Navarro.
André da Silva Campos Neves.
Aníbal Rodrigues Dias Correia.
Antão Santos da Cunha.
António Calapez Gomes Garcia.
António Dias Ferrão Castelo Branco
António Furtado dos Santos.
António Magro Borges de Araújo.
António Maria Santos da Cunha.
António Moreira Longo.
António dos Santos Martins Lima.
Arlindo Gonçalves Soares.
Armando Acácio de Sousa Magalhães.
Armando Cândido de Medeiros.
Artur Águedo de Oliveira.
Artur Correia Barbosa.
Artur Proença Duarte.
Augusto Duarte Henriques Simões.
Augusto Salazar Leite.
Avelino Barbieri Figueiredo Batista Cardoso.
Carlos Monteiro do Amaral Neto.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Elísio de Oliveira Alves Pimenta.
Fernando Alberto de Oliveira.
Fernando Cid de Oliveira Proença.
Fernando de Matos.
Francisco Elmano Martinez da Cruz Alves.
Francisco José Boseta Fino.
Gabriel Maurício Teixeira.
Gonçalo Castel-Branco da Costa de Sousa Macedo Mesquitela.

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Gustavo Neto de Miranda.
Henrique Ernesto Serra dos Santos Tenreiro.
Horácio Brás da Silva.
James Finto Bull.
Jerónimo Henriques Jorge.
João Mendes da Costa Amaral.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Ubach Chaves.
Joaquim de Jesus Santos.
Joaquim .José Nunes de Oliveira.
Jorge Barros Duarte.
José Gonçalves de Araújo Novo.
José Guilherme Bato de Melo e Castro.
José Henriques Mouta.
José Janeiro Neves.
José Manuel da Costa.
José Maria de Castro Salazar.
José Pais Ribeiro
José dos Santos Bessa.
José Soares da Fonseca.
José Vicente de Abreu.
Leonardo Augusto Coimbra.
Luís Arriaga de Sá Linhares.
Manuel Colares Pereira.
Manuel João Cutileiro Ferreira.
Manuel José de Almeida Braamcamp Sobral.
Manuel Marques Teixeira.
Manuel de Sousa Rosal Júnior.
Maria Ester Guerne Garcia de Lemos.
Maria de Lurdes Filomema Figueiredo de Albuquerque.
Mário Amarl Salgueiro dos Santos Galo.
Mário Bento Martins Soares.
Mário de Figueiredo.
Martinho Cindido Vaz Pires.
Miguel Augusto Pinto de Meneses.
Paulo Cancella de Abreu.
Rogério Noel Peres Claro.
Sebastião Aves.
Sebastião Garcia Ramirez.
Sérgio Lecercle Sirvoicar.
Simão Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães.
Teófilo Lopes Frazão.
Tito de Castelo Branco Arantes.
Tito Lívio Maria Feijó.
Virgílio David Pereira e Cruz.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 55 minutos.
O Sr. Presidente: - Como VV. Ex.ªs sabem, a ordem do dia de 1 hoje é preenchida com uma comunicação do Sr. Ministro da Justiça sobre o novo Código Civil Português.
Interrompo a sessão por uns momentos para introduzir na sala S. Ex.ª o Sr. Ministro da Justiça.
O Sr. Presidente abandonou por momentos a mesa da Presidência para introduzir na sala das sessões o ,Sr. Ministro da Justiça.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.
Vai usar da palavra, nos termos do artigo 113.º, § único, da Constituição, o Sr. Ministro da Justiça, Prof. Doutor João de Matos Antunes Varela.
O Sr. Ministro da Justiça: -Sr. Presidente da Assembleia Nacional, Srs. Deputados: autorizado pelo Sr. Presidente do Conselho nos termos do § único do artigo 113.º da Constituição, tenho a honra de comparecer perante a Assembleia Nacional, com o pesado, mas grato, encargo de expor algumas ideias acerca do Código Civil que o Governo acaba de publicar.
Ao cumprir o honroso mandato que superiormente me foi confiado, não está ,no meu ânimo o propósito de sumariar as soluções mais importantes da nova legislação civil, nem definir sequer os princípios essenciais em que a reforma se inspira. O código mantém a traça geral do projecto, e a estrutura filosófico-jurídica em que o projecto assenta foi já objecto de demorada análise em exposição pública anterior.
O que neste- momento mais pode interessar aos Srs. Deputados é saber qual seja a posição firmada pelo Governo naqueles pontos que provocaram mais agitada controvérsia em determinados sectores de opinião, ou nos preceitos que foram contraditados por pessoas de maior autoridade, e conhecer ao mesmo tempo as principais razões justificativas da orientação que veio a prevalecer.
Para satisfazer esta natural expectativa do público, que algum eco há-de encontrar no ambiente da própria Assembleia, em lugar de uma exposição logicamente ordenada, submetida a um plano unitário de pensamento, as circunstâncias impõem um simples aglomerado de respostas às observações mais ou menos desconexas feitas a propósito de matérias que o leitor encontra dispersas pelos vários livros do diploma. A comunicação perderá forçosamente em rigor lógico e em pureza de construção formal o que pode, todavia, lucrar em interesse político e compensar de algum modo através da profundidade com que os temas necessitam de ser tratados.
Apesar dos defeitos formais impostos pelo esquema da dissertação, procurarei ser claro na linguagem, e hei-de ser preciso nas ideias, não fugindo com ardis de mau político às dificuldades dos problemas, nem ocultando com subterfúgios de mau jurista a verdadeira face das coisas. Só não prometo ser breve, porque, embora não sejam em grande número as questões debatidas, algumas delas revestem aspectos de tal complexidade que obrigam a um exame bastante atento e necessariamente demorado.
Não quer isto significar que tenhamos a ingénua ilusão de esgotar os assuntos tratados. Temas como o divórcio, para não ir mais longe, oferecem à reflexão do estudioso, só no plano ético-sociológico, matéria abundante para largos compêndios de doutrina. Por isso a. exposição terá de cingir-se apenas às dúvidas que foram levantadas pela crítica, analisando a sua consistência à luz dos princípios teóricos que regem os diferentes institutos e medindo a sua força em contacto com o mundo das realidades que interessam à política legislativa do País, sem a menor ideia de revolver o terreno estéril das puras discussões académicas. Quanto às objecções cuja legitimidade não pode ser contestada no âmbito da reforma, algumas vezes nos haveremos mesmo de contentar com o simples enunciado, muito esquemático, dos raciocínios conducentes às soluções adoptadas.
A primeira crítica que algumas vozes qualificadas ergueram à volta do projecto referia-se ao prazo que o Ministério da Justiça fixou para a recolha de todas as sugestões destinadas a contribuir para o aperfeiçoamento do diploma.
Houve quem logo considerasse demasiado curto o período de quatro meses, salientando o contraste entre esse

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breve terço de um ano e os largos anos de actividade quase contínua que consumiram os trabalhos preparatórios.
E assim seria, na verdade, se da parte do Governo houvesse na altura o intuito de pedir uma revisão integral do projecto a cada um dos organismos interessados na formulação teórica dos preceitos ou na aplicação prática da nova lei, como fossem as Faculdades de Direito, o Conselho Superior Judiciário, a Procuradoria-Geral da República os institutos da Conferência da Ordem dos Advogados, as associações jurídicas e as revistas científicas da especialidade.
Para a conclusão de semelhante empreitada, e para o exame consciencioso dos resultados divergentes a que as várias revisões decerto seriam conduzidas, o lapso de quatro meses seria não só pequeno, mas insignificante, como exíguos seriam ainda os doze meses, os dois anos, três, ou até quatro, que viessem a caber na prorrogação do prazo inicial.
Simplesmente, não era esse o objectivo do apelo lançado aos peritos do direito, como logo se poderia concluir, quer do período de tempo fixado para a consulta do País, quer da própria evolução dos trabalhos preparatórios, há muito caída no domínio público.
Por um lado, não é de boa prudência solicitar das pessoas, muito menos das instituições, a execução de tarefas que, por uma ou outra razão, se sabe de antemão serem superiores às forças de que dispõem.
Por outro, era geralmente sabido que os organismos mais ligados à interpretação e à aplicação das leis haviam já colaborado, através de alguns dos seus membros mais representativos, na preparação dos textos submetidos à apreciação pública ou nas várias revisões a que eles foram sujeitos.
Quase todo o articulado do projecto nasceu, como se sabe, de uma numerosa série de estudos doutrinários realizados por professores de Direito, que à séria preparação científica exigida pelo magistério superior aliavam em geral uma sólida experiência prática, proveniente, nalguns casos, do exercício directo da advocacia, noutros, de uma intensa actividade consultiva. Estes trabalhos legislativos, à medida que os autores davam a investigação por concluída, iam sendo trazidos ao conhecimento dos juristas, e assim estiveram, durante anos sucessivos, graças à ampla divulgação que o Ministério lhes concedeu, expostos à apreciação crítica dos interessados na reforma.
Além disso, ainda na fase dos simples anteprojectos parcelares, as questões de maior delicadeza social e política, sobretudo no domínio das sucessões e no capítulo das relações familiares, foram largamente estudadas e debatidas em comissões revisoras, nas quais, ao lado dos membros da comissão do código, estiveram representadas as profissões mais experimentadas na aplicação concreta dos textos legais, desde a judicatura, a magistratura do Ministério Público e a advocacia até aos técnicos dos registos e do notariado.
Chegados à última fase dos estudos preliminares, os vários disjecta membra do projecto, depois de ajustados e coordenados entre si, e de integrados em conjunto nos livros respectivos, foram ainda objecto de sucessivas e aturadas revisões em nível ministerial. Da primeira, inserta no Boletim do Ministério da Justiça, fez o Gabinete uma larga tiragem, que foi profusamente distribuída por todo o País; das restantes, apenas dactilografadas, mas passadas em seguida ao copiador, foram facultadas algumas dezenas de exemplares, não só aos membros do corpo docente das escolas de direito, como a muitos práticos da jurisprudência, para que uns e outros se pronunciassem sobre o mérito das soluções propostas.
Desta sorte, no momento oportuno e presumo que nos termos mais apropriados, se fez tudo quanto seria humanamente recomendável, num meio de escassos recursos como o nosso, para obter das revisões gerais dos textos o precioso auxílio que toda a colaboração alheia é capaz de emprestar à preparação das grandes reformas jurídicas.
Uma nova revisão geral haveria por certo de propor muitas directrizes diferentes das que foram aprovadas no código; porém, muito dificilmente, a não ser em questões secundárias de mera regulamentação, ela traria ao conhecimento dos responsáveis, nos problemas capitais do direito civil, um aspecto que ainda não tivesse sido considerado ou um argumento cuja força não tivesse sido devidamente ponderada.
Perante a explicação dada, não faltará, no entanto, quem se interrogue sobre quais seriam então os verdadeiros desígnios do Ministro quando, ao fazer a apresentação solene do projecto, a todos pediu sugestões para o aperfeiçoamento da lei.
À interrogação respondo que duas eram, em síntese, as finalidades específicas do apelo.
Segundo a prática das revisões ministeriais revelara uma vez mais, por mais sábios que sejam os autores da lei, por mais atento que seja o exame dos textos, há sempre faltas, erros e contradições que escapam à observação dos censores, fenómeno que não surpreende num diploma com a extensão do Código Civil e em matérias tão complexas como as que o direito privado é chamado a regular. E os factos mostraram ainda, reforçando a lição de humildade que é possível beber na fonte pura, mas cáustica, da realidade, que as imperfeições da legislação, sejam elas de fundo ou de mera forma, tão depressa são notadas pelo mais graduado dos teóricos como descobertas e apontadas pelo mais modesto dos práticos.
Ora, levando o novo estudo legislativo ao conhecimento do País, solicitando a colaboração de todos os entendidos, o Ministério pretendia dirigir-se aos milhares de pessoas ligadas ao sector da justiça, exortando-as a que lessem atentamente a publicação para, com base na sua reflexão e nos seus conhecimentos pessoais, apontarem ao Governo todas as lacunas, obscuridades ou contradições que encontrassem nos novos textos.
Para este género de cooperação, puramente individual, mais ligada à experiência casuística adquirida nas lides do foro que ao debate público dos grandes princípios do direito privado, mais presa à simples ponderação de cada um que à demorada consulta dos tratadistas, o período de quatro meses não era demasiado curto, como as próprias realidades vieram demonstrar. E o facto de quase metade do prazo estabelecido recair em férias, escolares e judiciais, longe de representar uma coincidência perturbadora, só veio favorecer os desígnios daqueles que, ocupados por um ano de trabalho absorvente, se mostravam realmente empenhados, na proporção das suas forças, em colaborar na revisão.
Em segundo lugar, interessava ao Governo saber como seriam acolhidas pela opinião pública certas inovações mais audaciosas que o projecto consagrava, em matérias onde pontifica menos o rigor técnico do cientista do que releva o tacto do político, o bom senso e a ponderação do governante.
Quanto a esta sondagem de opinião, era bem de prever que divergissem bastante, por motivos fáceis de descortinar, os pareceres dos opinantes acerca da suficiência do prazo a que ela foi submetida. Algumas pessoas, menos

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interessadas em ajudar o Ministro a corrigir deficiências legislativas do que empenhadas, por intuitos políticos mal disfarçados, em demolir os alicerces pró-jurídicos de certas instituições, achariam pouco, como é natural, os quatro meses de propaganda demagógica que a discussão pública da futura lei civil gratuitamente oferecia aos seus mais largos intuitos de reforma social.
Outras, no pólo ideológico oposto, habituadas a sentir cobertas pela cortina tutelar do silêncio as ideias básicas que uma revisão integral do direito civil obriga a expor corajosamente à luz crua das realidades actuais e ao vento forte das modernas correntes do pensamento, terão, por seu turno, reputado excessivo o prazo que o Ministro ingenuamente marcou.
Quem, no entanto, se elevar acima das paixões, que tantas vezes ofuscam a razão dos mais dotados, para julgar com imparcialidade o mérito dos acontecimentos, a breve trecho concluirá que também sob este aspecto o termo estimulado nem foi excessivamente curto, como alguns protestam, nem foi demasiado largo, como outros conjecturam.
Não foi tão curto que os adversários mais encarniçados do empreendimento governativo se não vissem coagidos a pisar e a recalcar tediosamente as mesmas censuras em torno do quatro ou cinco soluções apenas, entre as largas centenas que figuram em livro tão extenso como o que trata o direito da família. Não faltou mesmo quem, à míngua de melhores argumentos, procurasse sub-repticia-mente deslizar do plano geral, onde a razão se deve livremente mover, para o terreiro impróprio dos sentimentos exacerbados, que é sempre fácil atiçar, com o triste sudário das realidades individuais, contra a disciplina imposta pelo exame frio e sereno dos problemas.
E também os quatro meses não foram afinal tão longos que muitos dos observadores mais tradicionalistas e conservadores não necessitassem de os esgotar até ao último instante para se refazerem da emoção de certas críticas, ou para darem à própria reflexão a possibilidade de reconstruir, com a ajuda preciosa do tempo, uma ou outra conclusão que a ignorância alheia, com a simples vantagem da surpresa, lograra destruir no seu espírito.
Muito acima, porém, das pequenas discordâncias que vieram à superfície da discussão durante o breve interregno dos trabalhos preparatórios, e que mais adiante teremos oportunidade de examinar, algumas grandes e consoladoras realidades é possível extrair dos factos, a que seria imperdoável não atribuir o devido relevo perante um organismo político como é a Assembleia Nacional.
Em época nenhuma da vida do País, que eu me recorde, nem no período em que o cartismo ergueu mais alto a bandeira do liberalismo, nem nos tempos em que a propaganda republicana pôs mais ao rubro a febre da democracia, um texto legislativo preparado por peritos e pelo Governo, com real interesse para a colectividade, esteve sujeito a um verdadeiro plebiscito da Nação durante tanto tempo como o Código Civil, cuja publicação ontem foi oficialmente anunciada.
E suponho que em nenhum país do Mundo as autoridades responsáveis conseguiram até hoje facultar aos estudiosos um conjunto tão extenso de publicações e uma colecção tão rica de elementos interpretativos como os milhares de páginas que, enriquecendo a literatura jurídica portuguesa, formam a massa imponente dos trabalhos preparatórios do código.
Pois, apesar de tudo, não vos haveis de admirar se continuardes a ouvir queixumes e a ler reclamações, seja contra a insuficiência da consulta feita aos sentimentos do País, seja contra a escassez dos subsídios que o Ministério proporcionou aos executores da nova lei.
E pecha nacional muito antiga, contra a qual a razão pouco pode e os factos pouco ou nada contam também.
Contudo, não são os dois aspectos realçados os únicos valores de sinal positivo que importa registar no balanço da actividade destinada a actualizar o direito civil português.
O resultado mais saliente, quer do plebiscito levado a cabo pelo Ministério, quer do diálogo que durante vários anos o Governo manteve com os melhores civilistas portugueses, é que a nova legislação, nas suas linhas fundamentais, corresponde ao sentimento geral da Nação.
Essa é a afirmação explícita contida nas centenas de mensagens que, a pretexto de se congratularem com o termo dos trabalhos preparatórios ou no intuito de sugerirem algumas ligeiras correcções na forma do articulado, serviram para manifestar o assentimento dos autores à orientação geral seguida nos vários capítulos da reforma.
E outra não é também a ilação que as próprias críticas vindas a público facultam a quem souber discernir entre os excessos verbais, em que é fértil a literatura polémica, ou as conclusões precipitadas de um que outro jurista amador, e o alvo de dimensões bastante reduzidas em que realmente procuram acertar as setas dos mais acerbos comentários disparados contra a doutrina do projecto.
Entre as directrizes fundamentais, que parece terem merecido o aplauso geral, convém pôr em relevo as seguintes:
1.a A acentuação social, ainda que moderada, do direito privado moderno, a qual se traduz no criterioso cerceamento dos princípios da liberdade negocial e da autonomia da vontade, no apreciável engrossamento das regras imperativas destinadas a esconjurar os perigos da desigualdade económica ou social entre os sujeitos da relação jurídica, no maior relevo concedido aos ditames da boa fé e aos postulados da justiça comutativa, e ainda no apelo mais frequente que a lei faz aos juízos de equidade do julgador;
2.a A reacção contra o positivismo jurídico, expressa na confissão aberta, franca, da insuficiência da lei perante os problemas sujeitos ao império do direito, na relevância jurídica de outros complexos normativos e no reconhecimento da existência de outras ordens disciplinadoras da conduta humana dentro do espaço normalmente reservado à legítima soberania do Estado;
3.a A elevação do direito internacional privado acima dos quadros restritos oferecidos pela paisagem do direito interno material, em homenagem às soluções que melhor sirvam o fim capital da harmonia jurídica entre as diversas legislações;
4.a O apego à segurança jurídica e à certeza do direito, que levou à conversão de muitos prazos de prescrição em prazos de caducidade e ao encurtamento sensível dos termos de uma e outra espécie;
5.a A função social da propriedade, com alguns vestígios no regime de certos direitos reais, e com acentuada expressão, quer na forma por que a lei define o conteúdo do domínio, quer na noção legal do abuso do direito;
6.a O alargamento dos poderes conferidos à mulher casada, como tradução prática do movimento de emancipação da mulher, mas sem quebra do princípio da unidade familiar;
7.º O reconhecimento da adopção como fonte das relações familiares;
8.a A substituição do regime da comunhão geral de bens, como regime supletivo no casamento, pela simples comunhão de adquiridos;

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9.º A imposição do regime de separação absoluta no caso de os cônjuges serem pessoas de idade relativamente avançada ou de um deles ter já filhos legítimos;
10.a A concepção do poder paternal como dever funcional inerente à direcção da família, e não como direito de suserania pessoal fundado na organização patriarcal da parentela;
11. A determinação oficiosa dos vínculos da filiação ilegítima, com ampla derrogação dos limites ditados, à sombra dos cânones jurídico-liberais, pela simples vontade dos progenitores;
12.º A deslocação do prazo relativo às acções de investigação de paternidade ou maternidade para o período em que o poder paternal tem perfeito cabimento, de modo que a investigação não pareça um simples instrumento jurídico de caça à herança paterna;
13.a A manutenção dos princípios tradicionais da vocação hereditária, inspirados na hierarquização das várias classes de sucessíveis e no respeito pela maior proximidade do grau de parentesco dentro de cada classe sucessória.
Além da identidade de pontos de vista registada em torno das peças fundamentais do novo sistema, há ainda dois aspectos de incontestável interesse em que todos os comentadores isentos rendem expressiva homenagem aos méritos da codificação: um refere-se à sistematização das matérias; o outro, à técnica legislativa e à forma do articulado.
Relativamente ao primeiro ponto, cuja importância teórica e prática se torna supérfluo encarecer numa compilação científica como é o código, os autores são mesmo unânimes em reconhecer a flagrante superioridade do projecto sobre a planificação sistemática da lei vigente.
No que respeita ao aspecto formal, era bem pesada, como todos sabem, a responsabilidade que onerava a tarefa do legislador, visto a perfeição literária dos textos ser justamente exaltada como uma das principais virtudes do Código 67, em cuja redacção, além do visconde de Seabra, que era um talentoso homem de letras, colaborara o próprio Herculano, um dos grandes mestres da língua. Pois o melhor elogio que é possível fazer da nova lei consistirá em afirmar que, na opinião pública, ela não desmereceu do honrosíssimo conceito em que ainda hoje é tida a legislação civil codificada. Podem os seus preceitos, no geral extremamente concisos, não possuir a elegância literária que distingue muitos artigos do código em vigor; porém, não sendo menos claros no sentido, nem menos correctos na arquitectura gramatical, eles obedecem a um estilo de maior sobriedade no recorte da frase e são mais perfeitos do ponto de vista da técnica jurídica. E, como não é de beleza linguística ou formosura literária, mas de clareza, precisão e segurança, que as leis necessitam para preencher o seu fim, de acordo com os padrões estéticos dos tempos que vão correndo, os juristas só terão motivos para se regozijarem com o louvor que nem gregos nem troianos souberam regatear ao novo estatuto do direito privado português.
É altura de transitarmos, no entanto, do círculo dos juízos laudatórios para a zona dos reparos que o projecto suscitou, a principiar pelos dois primeiros capítulos, que tratam, respectivamente, das fontes do direito e da vigência, interpretação e aplicação das leis.
As disposições introdutórias do código tiveram por fonte o articulado que o Doutor Manuel Andrade redigiu sobre a matéria, mas que infelizmente já não chegou a rever, como era sua expressa intenção, por a morte o ter entretanto arrebatado, quando a escola e o País tanto poderiam esperar ainda do seu poderoso talento de investigador.
As pessoas que tiveram o ensejo de privar como saudoso civilista sabem que duas eram as facetas mais salientes da sua excepcional personalidade científica.
Era um jurisconsulto nato, um jurista por temperamento, talvez a mais decidida vocação para os temas árduos do direito, que o País conheceu no decurso de todo o século. Ele tinha a intuição pronta da solução exacta, não só nas disciplinas que professava dentro do direito civil, mas nos próprios ramos da jurisprudência, mais afastados da sua actividade docente. Duas ou três horas de aturada reflexão nesse espírito privilegiado equivaliam a meses de estudo e de fermentação de ideias no cérebro do comum dos investigadores. E muitas foram as horas de meditação que consagrou aos problemas mais importantes da parte inicial do código em anos sucessivos de ensino, entremeado com o labor da investigação científica.
Era, porém, como muitos dos melhores espíritos na ciência e na própria literatura, um permanente insatisfeito quanto à forma dos seus escritos.
Embora gostasse, para uso pessoal, de registar em notas muito concentradas os produtos da sua reflexão ou os frutos da sua leitura, na ideia de aproveitar todos os benefícios da tensão intelectual a que a escrita submete o raciocínio do investigador, com grande dificuldade se decidia a trazer a público, quer as suas prelecções, quer o texto dos seus pareceres doutrinários. E quando se lograva vencer a sua injustificada, mas obstinada, resistência, a custo se lhe arrancavam as últimas provas tipográficas, depois das sucessivas emendas que introduzira nas primeiras e das múltiplas correcções com que antes fora já castigada a prosa do original manuscrito.
Neste ligeiro apontamento biográfico que a memória, saudosa do grato convívio com o mestre, traz ao bico da minha pena se encontra a explicação lógica para a confiança com que foram perfilhadas pelo código as soluções nascidas no anteprojecto do egrégio professor e para as ligeiras alterações formais a que o articulado foi sujeito.
A primeira dúvida relativa ao acerto da decisão é a de saber qual seja o local mais apropriado para a implantação das matérias reguladas.
E útil, porém, lembrar que o Código Civil constitui não só o repositório específico de toda a legislação civil, mas a matriz natural de todo o direito privado disperso por variadíssimos diplomas, desde o Código Comercial, as leis do trabalho e dos direitos de autor até aos Códigos do Registo Civil, Predial e do Notariado; e que, nesses termos, mal se poderia conceber que nele se não fizesse alusão às fontes do direito privado, ou se não definissem as regras que dentro deste amplo e qualificado sector presidem à interpretação e aplicação das leis.
A ideia de transferir tais preceitos para a chamada lei de introdução não se afigura solução recomendável, pois a lei de introdução deve ser essencialmente destinada a resolver as dificuldades de transição do antigo para o novo direito, e não a solucionar as questões de caracter permanente que levantam o entendimento e a aplicação prática das normas jurídicas, tanto dentro como fora do Código Civil.
Já repugnaria bastante menos que se deslocasse para o texto constitucional a teoria geral das fontes de direito; porém, abstraindo dos obstáculos especiais com que se defronta a revisão das constituições, mal se compreenderia a inserção da técnica relativa à interpretação e aplicação das leis num texto onde apenas se definem, per natureza, os princípios básicos da vida política da Nação.

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A orientação escolhida pelo projecto, além de não ser original, pois conta com bons precedentes a abonar os seus créditos, corresponde perfeitamente à importância especial que a tradição legislativa, quer em Portugal, quer nos países estrangeiros, atribui à codificação do ius civile. Assim se explica, de resto, que as regras formuladas nos dois primeiras capítulos do código, tendo directamente em vista o direito privado, se estendam em princípio a todos os outros ramos de direito. Embora sujeitos a algumas acomodações (quer na aplicação do Código Civil às províncias ultramarinas, quer na sua extensão a outros sectores jurídicos, como o direito penal e o direito internacional público), os princípios assentes valem sem alteração apreciável para a generalidade das normas legais, e marcam inclusivamente o sentido da evolução futura das compilações perante as quais sofram, no presente, qualquer derrogação mais aberta.
A inclusão das normas corporativas entre as fontes do direito, que tantas reservas parece ter suscitado à prevenção ideológica de certos meios, apesar da marca autorizada e insuspeita da sua origem que é o anteprojecto do Doutor Andrade, não tem o mínimo ressaibo de totalitarismo político. Bem pode asseverar-se, pelo contrário, que só a concepção das associações corporativas como entidades dotadas de autonomia, situadas fora da órbita dos organismos oficiais e desintegradas da estrutura política do Estado, permite explicar a consideração das regras corporativas como realidades normativas distintas da lei, na ampla acepção em que esta é tomada.
Os receios de que esta doutrina possa violar o princípio da unidade da ordem jurídica, tal como vem proclamado no artigo 6.º da Constituição, têm de considerar-se manifestamente infundados em face da subordinação a que as normas corporativas ficam sujeitas perante as disposições legais de carácter imperativo (artigo 1.º, 3).
A enumeração das fontes do direito, quer se trate do direito privado, quer se raciocine para o direito público, ficaria incompleta sem a menção dos assentos que, embora tenham raiz processual, revestem carácter substantivo, pela força genérica do preceito que coroa a decisão do caso concreto.
A maiores dúvidas dará possivelmente lugar a menção da equidade visto a expressão concreta dos juízos equitativos ser a negação, pelo menos aparente, da natureza abstracta que os melhores autores reivindicam para as fontes do direito.
Duas razões justificam, no entanto, a orientação seguida.
A primeira reside na necessidade de especificar os casos em que o legislador pode afastar a aplicação da fonte normal, comum, do direito, que é ainda a lei.
A segunde advém de a equidade poder em certos casos funcionar como fonte, não apenas de juízos concretos ou decisões individuais, mas de verdadeiras regras jurídicas, de preceitos com real substância normativa, embora com um raio de acção forçosamente mais limitado que os princípios inseridos na lei. Nesse sentido se dirá, com inteira propriedade, que a equidade é uma fonte de justiça.
Das questões reguladas no capítulo II, a mais difícil é, sem dúvida, a interpretação das leis.
Importa naturalmente conhecer os traços essenciais da posição definida acerca de matérias que pertencem ainda hoje ao número dos temas mais debatidos entre os autores. Antes, porém, de sumariar a doutrina do código, será conveniente que eu exponha, em síntese, a minha posição pessoal, como mestre e aprendiz do direito, acerca dos pontos capitais da interpretação. Não para luzir conhecimentos, que são bastante minguados e não poderiam deslumbrar ninguém, mas para facilitar a compreensão de certas proposições desgarradas que a lei insere, e também para mostrar a discrição com que o legislador se houve em toda a matéria, não obstante o apreciável avanço que as disposições traduzem, seja em relação ao código vigente, seja no confronto com as disposições paralelas das legislações estrangeiras.
Q problema da interpretação, que tanto atormenta os juristas, nasce de a lei ser composta de palavras, e de as palavras (tanto as proferidas oralmente como as gravadas por escrito) constituírem um meio falível de exprimir o pensamento do homem. Quando o texto legal, tomado isoladamente ou analisado juntamente com outros do mesmo sistema, comporta mais de um entendimento, como tantas vezes sucede, não apenas com as leis, mas com os trechos verbais de qualquer outra índole, qual é o sentido com que ele deve ser aplicado?
O sentido correspondente à vontade de quem fez a lei, respondem uns; o melhor sentido que caiba objectivamente na armadura verbal da lei, sustentam outros.
A verdade, porém, é que repugna aceitar como ponto de partida a tese objectivista, a posição doutrinária dos escritores que mal pegam na lei a desprendem imediatamente da sua origem natural para logo a projectarem, como entidade a se, sobre o plano das realidades externas que mais convêm à aplicação do direito em geral.
O legislador, quer se trate do Governo, quer estejam em causa as assembleias legislativas, não pode comparar-se, no exercício da função que lhe é cometida, ao escultor a quem o Estado encomenda e paga uma obra de arte, para que, uma vez exposta a peça ao público, cada um de nós a interprete e a sinta a seu modo; nem a lei deve rebaixar-se à categoria de simples artigo pronto a ser digerido segundo as variáveis necessidades fisiológicas do organismo social.
Os códigos não são meras exposições académicas de princípios, em que o autor se limite a proclamar a boa doutrina, sem a pretensão de impor a sua observância a quem quer que seja. Muito pelo contrário, a lei é um instrumento prático de acção, posto ao serviço de uma ou mais vontades a que os preceitos constitucionais outorgam foros de soberania. É o meio normal de expressão de um pensamento, mas de um pensamento real, concreto, histórico, nascido na inteligência de quem compõe, assina ou vota o texto legal, e não a pura representação gráfica de uma vontade ficta, abstracta, insuflada de fora para dentro nas entranhas mortas da lei. Sem a força e a musculatura que lhe dá a vontade real do autor, a lei assemelhar-se-ia a um peso morto, a um simples esqueleto de regras, não séria o corpo vivo, actuante, de que o organismo social carece para assegurar a disciplina do seu desenvolvimento.
Procurar inicialmente na lei, tal como na simples declaração de vontade, outra entidade psicológica que não seja a vontade real do autor tem toda a aparência de uma viciosa e flagrante usurpação do poder de soberania conferido ao legislador, no plano teleológico das realidades constitucionais.
Simplesmente, a vontade real do legislador - caput et fundamentum de toda a actividade interpretativa - está condicionada, na sua eficácia, pela propriedade dos meios por que ela se exprime. É através da lei que a autoridade constituída exterioriza a sua vontade; é a lei que há-de reflectir a sua vontade.
Desta dupla ordem de considerações, na aparência singelas, se não mesmo banais, é possível derivar já duas conclusões de inegável interesse prático.
Assim, se, em si mesma considerada, a lei é equívoca ou ambígua, porque comporta dois ou mais sentidos, mas não faltam nos estudos preliminares do respectivo pró-

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jecto ou no próprio relatório do diploma indicações seguras sobre qual deles exprime o pensamento do legislador, é de harmonia com esse entendimento que a norma deve ser aplicada.
Pouco importa, quando assim for, que a significação preferida traduza ou não, no conceito do intérprete, a disciplina mais justa da relação ou o sentido mais razoável de quantos cabem no arranjo literal do texto legislativo.
Porém, se a vontade denunciada pelo legislador não couber de modo nenhum no quadro gramatical da lei, se exceder o núcleo de todas as suas significações possíveis (por virtude de alguma alteração da última hora na composição do texto, por conflito insanável com outro preceito que não deva ser sacrificado, por gralha tipográfica que não seja notória, ou por qualquer outra razão), essa vontade terá de ceder perante o sentido que os destinatários podem tirar da lei.
Eis aqui a primeira limitação, de carácter objectivo, imposta pelo invólucro verbal da lei à soberania temporal da vontade real do legislador.
Mas não é este o único ingrediente de natureza objectiva que tempera a teoria da interpretação das leis (l).
As mais das vezes, quando a lei é em si mesma equívoca, falecem os elementos exteriores que permitam ao intérprete afirmar, com a necessária segurança, qual tenha sido o sentido que o legislador lhe deu. Nalguns casos, como de ordinário acontece, faltam quaisquer outros subsídios além do texto ambíguo da norma; noutros casos, menos frequentes, existem indicações estranhas ao corpo da lei, mas também esses elementos são vagos, imprecisos, acaso contraditórios entre si; noutras hipóteses, mais raras, mas sempre possíveis nesta fonte permanente de singularidades que é a vida, haverá razões para presumir ou afirmar que algumas pessoas subscreveram a lei dando-lhe um sentido, enquanto outras a aprovaram com diferente significado.
Em semelhantes situações, que no seu conjunto abarcam o maior sector das realidades a considerar, como há-de o intérprete agir?
Não pode apoiar-se na vontade leal do legislador, visto que, por fás ou por nefas, ela se lhe escapa das mãos.
Terá, por isso, de tomar como ponto de referência um legislador ideal, cujo retrato jurídico é necessariamente composto com traços de índole objectiva. Para esboçar as linhas essenciais do perfil que mais convém a essa figura central, sobre o cavalete das grandes teorias de interpretação, seria necessário entrar em numerosas indagações doutrinárias, que de modo algum se compadecem com a índole da presente exposição. É preferível, dentro da finalidade a que obedece a comunicação, procurar os contornos mais salientes da sua projecção sobre o terreno firme das realidades práticas.
Ora, quando se diz que determinada disposição legal tem mais que um sentido possível, não se quer por via de regra afirmar que todos eles se movam com igual à vontade dentro do texto da lei. Quase sempre, pelo contrário.
(1) Na Alemanha, onde a ciência jurídica tem escavado a fundo as entranhas lógicas, políticas e sociológicas do terreno em que assentam os problemas da interpretação das leis e da criação do direito, também Lehmann (Allgemeiner Teil des Bür-gerliohen Geactzbuches, 14.a edição, Berlim, 1963, p. 52 e seguintes), depois de afirmar que nenhuma das teorias (objectiva ou subjectiva) merece ser aceita no rigor dos seus termos, porque qualquer delas tem de fazer concessões ao pensamento fundamental da outra, reconhece que o ajustamento necessário se pode mais facilmente efectuar sobre a base da teoria subjectivista, pois ela pode conciliar no mais alto grau os dois fins superiores da ordem jurídica: a maior segurança e melhor flexibilidade (cf. especialmente p. 54).
um deles corresponde ao alcance mais natural das palavras usadas, à mensagem que por aquela forma pretenderia transmitir uma pessoa que redija com suficiente correcção, enquanto os outros representam uma interpretação mais arrevesada, um sentido mais forçado dos mesmos termos, assente, por conseguinte, num estilo de redacção menos corrente ou numa tradução menos feliz de certo pensamento.
Por outro lado, pode também suceder - e frequentes vezes acontece - que entre os dois ou mais sentidos captados pelos vocábulos da lei, nem todos sejam igualmente justos, razoáveis ou criteriosos. Há casos mesmo em que a diferença de valor entre as várias soluções possíveis na interpretação de certa norma - examinada a pendência na instância superior da justiça que brota dos comandos legais - é notória, flagrante, sensível.
E, posto assim a claro o verdadeiro esquema da dificuldade que a aplicação das leis é forçada a remover, não será empresa difícil, nem temerária, a de fixar as directrizes básicas a que nestes pontos deve subordinar-se a actividade interpretativa.
O intérprete deve, em primeiro lugar, partir do pressuposto de que o legislador, não sendo um .literato ou um purista da língua, e nem sempre conseguindo (como nenhum dos pobres mortais) evitar o uso das expressões ambíguas, é pessoa capaz de exprimir convenientemente o seu pensamento, por saber redigir um texto com a necessária correcção.
Por conseguinte, se a lei admitir várias interpretações, mas uma delas corresponder ao sentido natural dos seus termos, ao passo que as outras assentam sobre um entendimento bastante mais forçado, é a primeira que o jurista deve como regra preferir, por ser a que com maior probabilidade de acerto exprime a vontade do legislador.
Se verificar que a acepção mais natural do texto tem ainda a virtude de conferir à lei o sentido mais justo, razoável ou criterioso, mais substancial será o saldo a favor dela, pois que uma segunda directiva deve ser assinada à actividade do intérprete: a ideia de que o legislador consagra, em princípio, as soluções mais acertadas que cabem dentro da lei.
Mais difíceis de solucionar são os casos em que o crivo da razão e o metro da hermenêutica conduzam a resultados díspares, por a solução mais acertada não corresponder ao significado mais natural das expressões usadas na redacção da lei.
A resolução desses problemas, na prática, depende essencialmente da argúcia com que o intérprete souber procurar a vontade mais provável do legislador, descobrindo e valorizando as razões que como tal a imponham ao critério do julgador. No plano da teoria, dir-se-á que o jurista deve procurar então a solução que melhor congrace os dois critérios em oposição, preferindo a interpretação que no conjunto menos se afaste do padrão de correcção formal e da bitola do rigor substancial que definem o legislador presuntivo ou ideal.
Todos estes critérios, conforme transparece nos próprios termos da sua formulação, funcionam apenas como simples directivas de ordem geral, como puras máximas legais destinadas a ceder, logo que no caso particular, por força de circunstâncias especiais, se demonstre ser outra a solução preferível. Os trabalhos preparatórios da lei, os fins a que a norma se acha adstrita, o confronto com outras regras do sistema, o recurso aos lugares paralelos podem, com efeito, provar à saciedade que a vontade mais provável do legislador não é afinal a que serve de base à solução mais acertada, nem aquela que representa o sentido mais natural dos termos legais, mas uma outra, mais ou menos distanciada de qualquer dos para-

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metros adoptados: e desde que ela caiba ainda no texto legislativo, nenhum impedimento se deve levantar contra a sua validade.
Estes são os rasgos essenciais da posição doutrinária que julgamos mais defensável: considerando a vontade real do legislador como escopo fundamental da actividade interpretativa-, ela faz ao longo da penosa caminhada imposta ao intérprete um largo apelo a subsídios de natureza puramente objectiva.
Porém, o código, na esteira do caminho aberto pelo projecto, foi bastante mais prudente e comedido, como convinha a um diploma desta natureza. Colocando-se deliberadamente acima da velha querela entre subjectivistas e obiectivistas, a nova lei limitou-se a recolher uns tantos princípios que considerou aquisições definitivas da ciência jurídica, sem curar grandemente da sua origem doutri-nária. Em tudo o mais, no dizer do Doutor Andrade, ouve o propósito de deixar o campo livre para a actividade da doutrina, em problema de tanta complexidade e transcendência que perigoso seria tentar solucioná-la de uma vez para sempre.
Assim, muito de caso pensado, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 9.º. evitou-se falar na vontade do legislador ou na vontade da lei, para discretamente se referir apenas «o pensamento legislativo». Com o mesmo espírito de prudência se utilizou no n.º 1 desse artigo uma expressão bastante vaga, o menos vinculativa possível «tendo sobretudo em conta», para designar o valor que assumem na labor do intérprete as circunstâncias vigentes à data da elaboração da lei e as condições verificáveis ao tempo da sua aplicação, sendo certo ainda que nenhum significado especial possui a ordem por que são indicados esses dois factores.
Quanto às tais recomendações válidas para a grande generalidade dos casos, o código não deixa de consagradas, mas fá-lo com grande discrição (em termos mais moderados que o anteprojecto), nada dizendo sobre a forma de resolver o conflito entre os resultados práticos a que eles conduzam, e afirmando de modo claro que se trata de simples critérios ou directrizes de ordem geral. Dentre do mesmo contexto de ideias se explica, por fim, a eliminação do preceito que no projecto se referia ao valor dos trabalhos preparatórios, por se terem suscitado dúvidas sérias, que não era fácil esclarecer no texto de lei, acerca da forma como seriam fixados os limites da sua atendibilidade.
A doutrina do código relativa à integração das lacunas da lei, afora ligeiras diferenças de pormenor, representa a consagração explícita, em termos adequados, das soluções já propugnadas pelo Doutor Andrade em face da, imperfeita legislação vigente.
É reconhecida a existência de casos omissos e aceita-se o recurso à analogia como o primeiro processo de integração das lacunas.
A noção de analogia dada no projecto e mantida no código procura impedir que a integração se venha a transviar nos perigosos labirintos da pura lógica conceitual, orientando-a directamente para os trilhos mais seguros da justiça relativa ou da analogia substancial. Em lugar de se prender no puro desenho formal das situações recortadas na lei, ou de atender à mera semelhança exterior, isionómica, entre o caso regulado e o caso omisso, o jurista deve procurar as verdadeiras razões justificativas do regime fixado para a hipótese legalmente prevista e averiguar, em seguida, se as razões apuradas colhem ou não para a questão imprevista.
Outro não era, no essencial, o alcance da fórmula já usada no anteprojecto - «consideram-se análogos os casos que. razoavelmente, devam ter o mesmo tratamento jurídico» -, cujo acento tónico está menos no advérbio de modo (razoavelmente) do que no derradeiro juízo referente à identidade de tratamento exigida pelas duas espécies de casos.
É evidente que na base da exigência de um tratamento idêntico está a verdadeira semelhança, a analogia real e não estritamente formal, entre a situação regulada e a hipótese omissa.
Prevendo em seguida a falta de casos análogos, a lei adopta o célebre critério formulado no código suíço, que entrega a resolução do problema à cogitação do próprio intérprete ou à actividade integradora do julgador.
Não remete, no entanto, para os juízos de equidade, para a justiça do caso concreto, compelindo antes o julgador a criar previamente uma norma geral e abstracta, na estrutura da qual a realidade concreta se despirá das suas roupagens acessórias e a disciplina da situação se libertará dos sentimentos e das paixões que tantas vezes perturbam o bom julgamento dos casos individuais.
A simples descrição lógica deste processo mostra como erraria abertamente a pontaria a crítica que pretendesse atingir a solução com os dardos que é uso jogar contra o alvo da equidade: nem a lei consagra neste caso o recurso à equidade, nem a solução diverge do ensinamento que era já a boa doutrina em face da legislação vigente (artigo 16.º do Código Civil).
Também é líquido que o código não remete o intérprete para os princípios contidos no sistema.
Uma coisa é legislar dentro do espirito do sistema, sem violar por conseguinte os postulados fundamentais da ordem jurídica estabelecida, e outra bastante diferente é legislar segundo os princípios exarados nesse sistema.
Na prática, a diferença está na possibilidade de o jurista, ao integrar as lacunas da lei, criar novos princípios, traçar à legislação e à jurisprudência rumos até então desconhecidos, desde que não ofenda o espírito do direito vigente.
Isto significa que o código não refere quais sejam as regras em que deve basear-se o preenchimento das lacunas, nem sequer apontando para os princípios do direito natural, como fazia o Código de 67, de harmonia com a concepção jusracionalista da época. A explicação do facto reside ainda no mesmo espírito de prudência legislativa que dominou toda a disciplina destas matérias.
Sem prejuízo de ter assumido em outros pontos uma posição de acentuada reacção contra o positivismo legal, a lei quis deixar neste capítulo da criação do direito o campo suficientemente aberto a todos os progressos da jurisprudência e a todas as conquistas da doutrina.
Só as normas excepcionais continuam a ser insusceptíveis de aplicação analógica.
O projecto admitia, no entanto, a aplicação por analogia dos preceitos dessa natureza, desde que as normas gerais correlativas não contivessem princípios essenciais de ordem pública.
Era um sinal do protesto, generalizado na melhor doutrina, contra as injustiças a que frequentes vezes dá lugar a aplicação rígida das regras gerais. E a mesma insatisfação exprimia por forma bastante nítida o próprio anteprojecto, embora o fizesse em termos de tal modo vagos e imprecisos que tornavam a nova doutrina dificilmente exequível na jurisprudência.
O Doutor Andrade parecia insurgir-se sobretudo contra a aplicação sistemática daquelas normas gerais que, não estando directamente formuladas na lei, apenas se alcançam por ampliação indutiva das soluções isoladas em que elas afloram. Mas a esses poderá o jurista aditar

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ainda os casos em que a mesma formulação da regra geral, embora por uma nota meramente acidental, revele que o manto da previsão legislativa não cobriu todas as situações do tipo genérico que a norma abrange.
Foi precisamente o intuito de permitir ao julgador a abolição de certas injustiças resultantes da aplicação absoluta das normas gerais que levou o projecto a quebrar a rigidez do princípio estabelecido na actual legislação, mediante um critério sem dúvida mais preciso que a expressão constante do anteprojecto.
A verdade, porém, é que, não obstante a sua maior precisão, a fórmula sugerida deu lugar a tantas dúvidas sobre a possibilidade de, aplicação analógica de certos textos, durante os quatros meses de apreciação pública do projecto, que a breve trecho se reconheceu a necessidade de não alterar a doutrina estabelecida no direito vigente, por se mostrar a menos inconveniente de todas as soluções possíveis.
Como diria Manuel Andrade, houve que sacrificar uma possível maior justiça nas aras da certeza jurídica.
Nem o preceito que fixa a anulabilidade dos negócios usurários (artigo 282.º) nem a norma que define o chamado abuso do direito (artigo 334.º) deram margem até agora a dúvidas sérias de interpretação. Mas ambas as disposições serviram de pretexto a uma crítica bastante viva contra os poderes arbitrários que através de semelhantes soluções a lei colocaria nas mãos dos juizes.
E como intervenções análogas do julgador são admitidas em alguns dos problemas regulados no livro das obrigações, não faltou quem no facto visse retratada uma coordenada geral do sistema e a reputasse francamente condenável.
E conveniente analisar com toda a atenção a dúvida formulada, mas na parte das obrigações em geral, visto ser nesse extenso capítulo que o leitor pode encontrar, de facto, mais frequentes vestígios da orientação legal.
São em número apreciável os casos em que, nas obrigações em geral e nos contratos em particular, a lei remete de modo directo para os juízos de equidade do julgador ou confere ao tribunal, através de conceitos bastante maleáveis, uma ampla margem de apreciação das coisas na resolução de determinados problemas.
Nos comentários ao projecto, foram apenas referidas, além das hipóteses há pouco destacadas na parte geral, a resolução ou modificação do contrato fundada na alteração das circunstâncias (artigo 437.º), a revisão da renda no arrendamento rural (artigo 1070.º) e a decretação da separação entre os cônjuges quando o queixoso tenha requerido o divórcio (artigo 1794.º), mas várias outras disposições poderiam ser adicionadas ao rol para confirmar que se trata, com efeito, de uma orientação intencional da lei, embora em nenhum ponto ela tenha sido arvorada em regra geral.
Como se justifica a nova tendência da lei? Em que termos vem aceita no código?
Quanto à primeira interrogação, já o Doutor Manuel Andrade começara de pôr o dedo na ferida que se pretende sarar quando, a propósito dos poderes conferidos ao julgador na interpretação e aplicação das leis, escreveu as seguintes palavras: «Dir-se-á contra isto... que assim se vai confiar aos nossos tribunais um poder de apreciação para cujo exercício em termos aceitáveis eles não estão capacitados. Mas responde-se: o esforço da nossa política legislativa deve incidir antes no melhoramento da judicatura, em vista de a tornar comparável à das outras nações civilizadas, do que no da mecanização dos textos
legais, pelo receio de nos faltarem juizes competentes para uma satisfatória aplicação de textos diversamente estruturados.»
A opção aberta ao critério do legislador está posta com toda a clareza; resta explicar as razões da preferência seguida pelos reformadores da lei.
Ora, a experiência de séculos ensina que as relações entre os homens, mercê sobretudo do avanço prodigioso da técnica, se modificam a cada passo e mostra ainda como lenta mas continuamente se alteram também as concepções políticas, económicas, morais e sociais em que assenta toda a estrutura da ordem jurídica. E à proporção que o ritmo da vida moderna se acelera, mediante a facilidade e rapidez cada vez maiores com que o homem, as mercadorias, a palavra e a imagem se deslocam no espaço, mais frequentes hão-de ser as mutações das realidades que ao direito incumbe disciplinar, mais bruscas e radicais as alterações a que estão sujeitos os critérios normativos do jurista.
Criar para novos tempos, carregados com tais presságios de instabilidade nos horizontes do futuro, um código assente em fórmulas rígidas, ou pretender mecanizar os textos legais, equivalia a hipotecar todo o esforço da reforma a um crédito insustentável, sujeitando a nova lei ao risco iminente de uma execução ruinosa a curto prazo.
Se, ao invés, a lei for dotada com fórmulas suficientemente flexíveis nos pontos estratégicos do sistema, se dispuser de cláusulas gerais que permitam ao julgador adaptar o direito às naturais evoluções da sociedade civil, o código adquirirá maiores garantias de sobrevivência, com todos os benefícios que promanam da estabilidade da ordem jurídica contra as flutuações inevitáveis da legislação extravagante ou contra o arbítrio descontrolado do julgador sem apoio legal. Só assim o edifício legislativo disporá das janelas por onde possam circular as lufadas de ar fresco com que a filosofia, a religião e a moral renovam de tempos a tempos o ambiente pesado da vida social.
Este o objectivo essencial que a orientação adoptada deliberadamente se propôs atingir, com o conhecimento exacto dos meios de que o sistema dispõe e com a perfeita consciência das limitações que a prudência aconselha.
Com efeito, a preparação teórica dos diplomados em Direito, entre os quais os juizes são recrutados, é hoje muito superior à que possuíam os bacharéis dos fins do século passado, e bastante diferente mesmo da que as Faculdades ministravam no primeiro quartel do presente. A um ensino de estilo dogmático, de feição bastante escolástica, de limitados contornos institucionais, em grande parte tributário da pura análise exegética dos textos, sucedeu um trabalho de rasgada formação doutrinária, dotado de verdadeiro cunho científico. E entre as vantagens imputáveis a esta fecunda evolução de métodos no ensino da ciência jurídica figura, sem dúvida, a da maior aptidão dos alunos para lidar com fórmulas maleáveis, de conteúdo variável com os tempos, como aquelas que a nova legislação não desdenha de utilizar nos casos de necessidade.
Por outro lado, com todas as virtudes e defeitos inerentes às instituições humanas, a magistratura portuguesa foi sempre justamente apontada como um corpo de homens prudentes, criteriosos, dotados de bom senso, ressalvadas as raras excepções que pouco representam no quadro geral da profissão. Se algum reparo merece pelo uso dos poderes que a lei já agora lhe confere, pode asseverar-se que peca mais por defeito que por excesso, no desempenho

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do papel que a ordem jurídica pretende confiar à jurisprudência. Para documentar a asserção com um exemplo bastante elucidativo, basta reflectir na forma como o Supremo, não obstante os reiterados esforços que a lei processual tem feito, se obstina em cerrar as portas do Pleno, através das quais o tribunal é alçado ao plano dos órgãos criados do direito.
Por essa razão, se os meus colegas do foro me não lavassem a mal, eu diria que os critérios flexíveis do novo direito civil fazem recear mais os excessos da má advocacia que temer os abusos da má judicatura. Advogados e juizes hão-de, no entanto, contar sempre com o precioso auxílio da doutrina que se esforçará, como lhe cumpre, não só por interpretar as fórmulas consagradas no sistema, mas por adaptá-las também às novas realidades práticas, que os tempos vierem a forjar.
E há um aspecto, não menos importante que os anteriores, que falta ainda focar.
E que o legislador não ignorou nem subestimou os perigos do livre arbítrio dos tribunais, e por isso mesmo procurou limitar com todo o cuidado a intervenção do julgador sem prejudicar a necessária maleabilidade da lei.
Em primeiro lugar, fora da convenção das partes, o recurso aos juízos de equidade só é permitido nos casos taxativamente fixados na lei, e esses casos, apesar de serem mais números os que no direito em vigor, não deixam de ser bastante limitados.
As próprias cláusulas gerais, que apelam com especial intensidade para os critérios de apreciação do tribunal, foram criteriosamente implantadas nas zonas onde o uso delas é menos perigoso (como sucede no domínio dos contratos em particular) ou nos pontos estratégicos do sistema, onde a sua colocação, pareceu indispensável (abuso do direito; alteração anormal das circunstâncias vigentes à data do contrato; negócios usurários; dissolução do casamento, etc.).
Em segundo lugar, houve a preocupação de introduzir em todas, ou quase todas, as disposições do género alguns requisitos de carácter objectivo, mais aperfeiçoados pelo esforço construtivo da doutrina, com uma dupla função: servem de critério auxiliar na apreciação valorativa que a lei impõe ao intérprete; e funcionam, além disso, como limites ao puro arbítrio do julgador.
Assim, notante à resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, não basta para afectar a estabilidade da trama negocial a modificação de quaisquer elementos que impressionem a sensibilidade do julgador: é necessário que estejam em crise as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Não chega mesmo, para o efeito, qualquer alteração; há-de tratar-se de uma alteração anormal.
E não fluam por aqui as limitações da lei.
Por um lado, faz-se mister que, em face do novo condicionalismo criado à relação contratual, a exigência das obrigações assumidas pelo lesado afecte os princípios da boa fé, não bastando aliás qualquer espécie de ofensa, uma vez que o preceito fala intencionalmente em ofensa grave.
Por outro lado, prescreve-se quê a resolução não terá lugar, se o cumprimento das obrigações impostas ao lesado for coberto pelos riscos próprios do contrato.
Quanto aos negócios usurários (artigo 282.º), a lei começa por discriminar os vícios que servem de fundamento à anulação (a situação de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica). e acaba por restringir o núcleo dos casos relevantes, exigindo que através do negócio se tenham ilicitamente obtido alguns benefícios à custa do lesado e que estes benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados.
Menos apertado é o círculo de limitações traçado em volta da figura do abuso do direito (artigo 334.º), mas algumas nela se encontram também.
Primeiro, não pode taxar-se de ilegítimo qualquer uso do direito que colida com o sentimento de justiça do julgador, mas apenas o que exceda os limites impostos objectivamente ao exercício do respectivo titular.
Depois, nem todas as considerações de ordem ética interessam à legitimidade do exercício do direito, mas apenas as ditadas pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito. E como esta restrição pudesse não bastar para prevenir uma excessiva intervenção do tribunal na vida de certas relações, a lei exige ainda que haja um excesso manifesto - como quem diz indiscutível, franco, claro - dos tais limites impostos ao exercício do direito.
Com todas estas restrições, não se contesta que um vasto campo fica ainda franqueado à apreciação do julgador na esfera de actuação do titular do direito. Mas este é precisamente, como adiante se- mostrará pela função .social da propriedade, um dos pontos nevrálgicos do sistema, onde mais amplos horizontes a lei tem de rasgar aos deveres de vigilância dos tribunais.
Todas as reflexões precedentes se podem traduzir, em síntese, nas duas conclusões seguintes:
1.a O legislador procurou dar aos tribunais, como órgãos permanentes de aplicação do direito, os meios necessários para assegurarmos a vitalidade da nova ordem jurídica contra todas as incertezas do futuro.
2.a Não há motivos sérios para recear o mau uso que os juizes possam fazer dos instrumentos de renovação que a legislação civil coloca nas suas mãos.
No título dos contratos em especial, foi a locação, como era fácil de prever, o negócio de cuja apreciação nasceram observações mais divergentes entre os círculos de pessoas interessadas.
Das críticas movidas ao projecto, no meio de muitas inexactidões que não vale a pena rectificar, há uma que parte de um facto realmente exacto: muito poucas alterações de fundo foram introduzidas quer no regime do inquilinato, quer na disciplina do arrendamento rural. O legislador procurou menos reformar o instituto que concentrar num texto único toda a regulamentação do arrendamento dispersa por vários diplomas legislativos, sistematizar em termos hábeis os diferentes capítulos da locação, eliminar as contradições e sanar as deficiências da legislação vigente, e expurgar a nova lei de todos os preceitos de carácter transitório e de todas as disposições de puro direito local. Tarefa que não foi fácil, nem parece de pouca monta.
Desde que os autores não confondam a questão social da habitação, como problema de carácter político entregue nos seus complexos aspectos a múltiplos departamentos do Estado, com a regulamentação jurídica da locação, que é um simples instrumento do comércio privado, nenhum prejuízo advirá de o regime do arrendamento se manter no Código Civil, e algum proveito se poderá lucrar.
Como figuras do direito privado, é no Código Civil que o aluguer e o arrendamento têm a sede própria. E, porque a codificação imprime maior estabilidade ao direito, a inclusão do arrendamento no código representa um meio mais seguro de defesa da boa disciplina das relações entre senhorios e arrendatários contra a interferência perturbadora dos factores políticos, que a todo o momento tendem a insinuar-se no tema do inquilinato; ao mesmo tempo, esse critério acautela melhor o próprio Estado contra a tentação das providências precipitadas e contra, as frequentes arremetidas dos grupos de pres-

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são, sempre de recear em matérias de tão profunda repercussão económica e social como são as que tocam na habitação das pessoas ou na sede dos estabelecimentos comerciais ou industriais.
(Condição essencial para a conveniente execução da orientação fixada é que os peritos saibam distinguir entre as regras que a experiência e a reflexão mandam inserir no código, pelas provas de validade que já deram ou pelo manifesto acerto dos critérios que exprimem, e os preceitos que a boa prudência, por falta de garantias idênticas de permanência, aconselha a remeter para o domínio da legislação especial.
À luz deste pensamento, é fácil compreender a razão por que, mantendo o instituto do arrendamento dentro das suas portas, o código remeteu para outros diplomas a regulamentação do despejo por motivo de obras destinadas a aumentar a capacidade locativa do prédio, e o motivo por que guardou completo silêncio acerca do tratamento excepcional que as cidades de Lisboa e do Porto usufruem no capítulo da actualização das rendas quanto aos arrendamentos para habitação.
A lei de introdução mantém este último desvio, mas a título meramente transitório, porque a revisão do problema se impõe, a meu ver, com a maior urgência possível.
Todos hão-de certamente reconhecer que em país tão pequeno, onde os proventos do próprio funcionalismo não diferem de terra para terra, se não justifica de modo nenhum esta aberração de haver um regime para o arrendamento destinado à habitação nas duas capitais e outro muito diferente, num ponto essencial como é o da fixação das rendas, para todo o restante território.
Se as respostas dadas em 1948 pela Assembleia Nacional ao problema da revisão das rendas constituem, de facto, as soluções mais equilibradas que os juristas puderam conceber, nenhuma razão convincente impedirá, no terreno da estrita justiça, que os mesmos princípios se apliquem a todo o País. Tanto mais quanto ao lado da justiça, em favor da tese da uniformidade de regime, militam outras circunstâncias ponderosas, como a de o benefício concedido aos antigos inquilinos de Lisboa e do Porto estar no fundo a ser pago, com larga soma de juros, pelos novos arrendatários, de quem os proprietários exigem (até certo ponto justificadamente, dada a estagnação forçada do contrato) rendas que são excessivas para o padrão médio das remunerações do trabalho.
Da inalterabilidade das rendas, num mercado em permanente evolução, há-de resultar por força a progressiva deterioração de uma parcela não despicienda do património imobiliário nacional, fenómeno a que os Poderes Públicos não devem assistir impassíveis.
A este argumento hão-de alguns redarguir que o Estado também não pode ser indiferente à situação difícil em que a grande massa dos inquilinos será lançada pela ameaça do agravamento periódico de um factor que pesa de modo sensível nos pratos do seu débil orçamento.
A observação é exacta, mas como está deslocada no plano do contrato de locação, não é difícil refutá-la com as seguintes razões:
1.a Nada explica, fora do âmbito das considerações puramente demagógicas, que sejam os senhorios, por uma anómala singularidade do contrato de arrendamento, a classe dos proprietários condenada a suportar o peso da protecção social que o Estado deva a todos os inquilinos ou a parte deles;
2.º Ainda que, por absurdo, se entendesse serem os senhorios as únicas vítimas expiatórias que o Estado devia imolar no altar das legítimas reivindicações proletárias, mal se compreenderia então que o sacrifício, em lugar de abranger a todos, recaísse apenas sobre os senhorios de Lisboa e do Porto;
3.a Nem sequer se concebe, analisada a questão sob o prisma unilateral da protecção social devida às classes mais desfavorecidas, que entre os próprios inquilinos de Lisboa e do Porto haja em cada momento beneficiários a par de vitimas das desigualdades fomentadas pelo regime de excepção que a lei consentiu: uns, aproveitando da imutabilidade de rendas antigas, cujo montante fere o mais elementar sentimento de justiça; outros, onerados com rendas elevadíssimas, que, pela mesma razão, deferiam ser reduzidas em função da modesta bitola com que se mede o nível de vida alcançado pelo comum da população.
Eis, por conseguinte, um problema que o código deixa intencionalmente em aberto, mas que precisa de ser resolvido sem grandes delongas, se as entidades responsáveis quiserem apagar a tempo uma nódoa de injustiça que só mancha o prestígio do sistema.
Será muito breve, porque mais as circunstâncias não pedem, o exame do livro que trata dos direitos reais.
Há certas zonas da matéria que, apesar de bastante extensas, nem uma só objecção suscitaram. Das observações que foram feitas, algumas são de tal sorte infundadas que replicar-lhes seria malbaratar aos olhos de todos o tempo que o escasso para coisas bastante mais sérias; outras eram pertinentes, e por isso mesmo foram atendidas na revisão final, mas, além de serem em número bastante reduzido, dá-se o caso de tocarem aspectos de mero pormenor, que não justificam a sua apreciação numa comunicação por natureza cingida às linhas fundamentais das soluções de maior projecção.
Exceptuar-se-á apenas um reparo que, num organismo político como a Assembleia Nacional, convém que não passe em julgado.
Afirmou-se que a função social da propriedade não teria ficado expressa com a necessária nitidez nos vários lugares do projecto, pois que este, contra todas as aparências, nada teria acrescentado de novo nesse capítulo às prescrições da legislação vigente.
Ora, a verdade é que os novos textos reflectem, em vários pontos sintomáticos, como não poderia deixar de ser, uma concepção da propriedade muito diferente da que transpira, por todos os poros, do Código de 1867.
Já em outro lugar, reproduzindo a lição de um categorizado civilista brasileiro, foi por nós explicado que as limitações ao (poder absoluto do proprietário, através das quais se nota a crescente subordinação dos fins individuais aos interesses superiores da colectividade, têm o seu campo natural de implantação no canteiro do direito administrativo, e não nos domínios gerais do direito civil.
A despeito disso, um estudioso atento, conhecedor dos problemas, sabedor do seu ofício, não experimentará dificuldades de maior para desencantar, principalmente no regime do inquilinato, no arrendamento rural, nas servidões, da propriedade horizontal, no próprio regime das nulidades, até na multiplicação dos casos de caducidade dos direitos e no encurtamento geral dos prazos, tanto da caducidade como da prescrição, uma série numerosa de limitações, em aberta oposição à concepção individualista da propriedade, que na economia do estatuto de 67 se comunicava à titularidade dos outros direitos.
Algumas das restrições provêm da legislação posterior à época liberal, outras é no projecto que aparecem formuladas pela primeira vez, e é nas colunas do novo código que recebem o baptismo legal.

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Muito significativo também é o facto de o código, ao descrever o conteúdo que tem o direito de propriedade, haver incluído na definição, como elemento normal, e não a título de excepção encravada no poder absoluto do dominus, os limites resultantes da lei para o gozo do proprietário.
Dir-se-á que na essência se trata de um aspecto demasiado subtil arrancado a uma pura noção geral, mas à observação é fácil retorquir que tal subtileza chega para revelar já um espírito muito diferente do que anima os clássicos postulados do individualismo, traduzindo uma outra concepção da propriedade, que é, como a experiência mostrará, susceptível de desentranhar-se em muitas soluções práticas.
Mas a consagração mais expressiva da função social da propriedade, feita em tese geral, é a que resulta da noção do abuso do direito (artigo 334.º).
Não deixa de ser interessante observar como alguns comentadores se mostraram receosos dos poderes que semelhante noção colocava de futuro mas mãos dos nossos juizes; enquanto outros, com o maior desembaraço, não hesitavam em invectivar os autores da reforma, porque o preceito, no seu aspecto mais avançado, nada aditaria de novo à doutrina já proclamada em alguns textos vigentes, como a Constituição, o Estatuto do Trabalho Nacional e ... até o artigo 2167.º do Código Civil em vigor.
Assim se chegou, através de sucessivos deslizes no plano inclinado das realidades legislativas, ao extremo de equipar ai a pura referência à finalidade egoísta da propriedade, feita ;a título puramente acidental e descritivo, sem o menor intuito restritivo, por diploma de marcada feição liberal, à condenação directa, terminante, categórica, do exercício do direito contra a sua finalidade económica ou social, proferida por sentença legal em período de franco intervencionismo do Estado na organização da vida civil.
E da mesma forma se não mediu a distância considerável que medeia entre as simples proposições, de carácter programático, contidas em textos de índole essencialmente política, como sejam a Constituição ou o Estatuto de Trabalho, e a consagração efectiva dos corolários práticos que brotam dos mesmos princípios feita por uma norma jurídica que se destina à aplicação corrente dos tribunais comuns.
Não será por certo de boa prudência o acto de amedrontar as pessoas com a exibição das armas de que a lei dispõe, mesmo quando se trata de prevenir todas as hipóteses da batalha entre as ideias e os factos do futuro; mas também ninguém levará a mal que o sistema se defenda das injustas afrontas que lhe façam, mostrando o arsenal dos instrumentos que legitimamente lhe pertencem.
Na sua aparente simplicidade, o artigo 334.º do novo código - o tal que define o abuso do direito - constitui, na verdade, um manancial inesgotável de soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos, harmonizando os poderes do proprietário com as concepções actuais e futuras acerca da propriedade.
Cada um dos limites assinados genericamente ao exercício do direito., para salvaguarda da sua legitimidade, constitui um filão precioso de restrições, cujo conhecimento abre largas perspectivas à prudente exploração, tanto dos tribunais como da escola sobretudo. No seu conjunto, servindo como instrumento de contínua renovação da ordem jurídica quanto ao exercício e tutela dos direitos, o artigo 334.º constitui uma arma de gume tão afiado que só a mãos prudentes ela poderia ser entregue sem risco de o preceito ferir gravemente a segurança do comércio jurídico.
Ir mais longe do que foi o legislador, para desferir golpe mais profundo no livre exercício dos direitos, além de ser imprudente, não parece necessário aos fins próprios da legislação civil.
Foi sobre o direito da família que desabou quase todo o peso da crítica feita ao projecto, podendo, no entanto, acrescentar-se que se reduzem a muito poucas as soluções combatidas pelo sector de opinião que nesse capítulo se manifestou com maior exuberância.
A origem de alguns comentários, em especial o modo como foram formulados, hão-de ter provocado certa estranheza entre as pessoas menos prevenidas, visto ser o livro da família exactamente a parte mais ousada e inovadora de todo o diploma, e por dentro dele se ter construído um sistema bastante equilibrado, no qual, se foram respeitadas as estruturas familiares existentes como células essenciais do organismo social, muitos preconceitos foram também abolidos, e muitas soluções rotineiras condenadas em nome do progresso moral da colectividade que ao Estado cabe defender e cumpre mesmo estimular.
Mas o facto não causará excessiva surpresa a quem, procurando compreender as pessoas e dar o justo valor às coisas, tiver presente no seu espírito uma série ponderosa de circunstâncias, que vão desde a notória desorientação que grassa em muitas inteligências, indisciplina que reina em determinados meios, os profundos reflexos que têm no instituto da família as diferentes concepções morais, religiosas e políticas espalhadas pelo mundo, até à diminuta percentagem das soluções mais alvejadas pela crítica relativamente às numerosíssimas inovações consagradas no novo direito civil.
Essencial, no meio de tudo, é que nem o coro dos louvores recebidos, nem a sanha das invectivas mais acintosas, tenham roubado a quem meditou nos problemas, seja a serenidade necessária para procurar entre juízos tão desencontrados todas as contribuições aproveitáveis para o aperfeiçoamento da lei, seja a humildade indispensável para rectificar os erros e as imperfeições que porventura haja descoberto.
Essa foi, de facto, a intenção que animou os trabalhos de revisão final do projecto.
Sacrificando qualquer ponta de amor-próprio nascido na contemplação da obra realizada, colocando o interesse nacional em posição sobranceira a todas as correntes de opinião, tentando elevar o seu pensamento acima das paixões sectárias que apenas servem para obliterar o entendimento das pessoas, os responsáveis pela revisão forcejaram por descobrir em todos os pontos controvertidos da nova legislação os princípios que, servindo os fins superiores da criatura humana, melhor se adaptassem às exigências específicas da comunidade social, em que os Portugueses há mais de oito séculos se integram.
E outra atitude não mereceria, aliás, o beneplácito do Governo.
A primeira inovação de grande vulto no âmbito do direito da família consistiu no reconhecimento da adopção como fonte das relações familiares.
O interesse invulgar que o novo instituto despertou em várias camadas do público há-de naturalmente afrouxar, logo que os interessados vejam legalizadas muitas situações de facto, que os anos acumularam, e que a lei vigente não podia sancionar, por carência do meio adequado. Mas não restarão dúvidas de que a medida corresponde a uma necessidade social, e que esta merece a vários títulos o favor da tutela legal, embora por forma que a adopção se não desvie dos fins altruístas que a legitimam.

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Houve, no entanto, quem levantasse o problema da inconstitucionalidade da inovação, estribado no facto de a Constituição não mencionar a adopção entre as fontes das relações familiares.
Para quem conteste a necessidade do preceito segundo o qual a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, este entendimento dado ao artigo 13.º da Constituição representa um verdadeiro achado na ilustração da doutrina prescrita pelo código.
Perante a simples letra da Constituição, que nenhuma referência faz à adopção, a conclusão a tirar pelo intérprete talvez não pudesse ser outra, de facto, senão a da inconstitucionalidade do novo instituto.
Se, porém, nos socorrermos do espírito da lei, como recomendam os princípios mais elementares da boa hermenêutica, a conclusão será precisamente a oposta.
Como nenhuns indícios se levantam na história do preceito, nem no contexto da lei, que de longe ou de perto mostrem que o legislador cogitou no problema da adopção, o intérprete é forçado a aceitar, em nome da lógica, do bom senso, e até das simples máximas da experiência, as duas conclusões seguintes:
1.a No corpo do artigo 13.º, a Constituição limita-se a falar na filiação legítima, omitindo a própria filiação ilegítima, por pretender apenas assinalar as bases em que assenta, regular ou usualmente, a constituição da família merecedora da tutela do Estado;
2.a Se não cita os filhos adoptivos no parágrafo em que alude à situação dos filhos ilegítimos, é porque a adopção não era conhecida no sistema jurídico-português à data em que o texto foi redigido, nunca porque a Constituição, depois de haver ponderado as vantagens e os inconvenientes do instituto, haja querido impedir o seu reconhecimento na lei civil.
Quando, por conseguinte, a legislação ordinária cria a nova figura jurídica, não comete a mais leve inconstitucionalidade, pela simples razão de que não encontra pela sua frente, a tolher o passo do legislador, nenhuma regra que perceptivelmente interdite a adopção, mas um simples vazio que, como é evidente, nenhum obstáculo constitui à inovação.
Dentro da adopção, o código distingue, na sequência do projecto e um pouco à semelhança dos direitos inglês e francês, entre a adopção plena e a adopção restrita (*).
Houve o intuito de limitar bastante o domínio da adopção plena, por duas razões. A primeira é que, sendo a adopção plena equiparada em regra à filiação legítima, com plena supressão dos laços que prendem o adoptado à família natural, a constituição dela só se justifica quando, por ser a família natural prática ou legalmente desconhecida, não haja probabilidade de competição desta com a família adoptiva. A segunda é que a adopção restrita serve capazmente os interesses fundamentais, do adoptado, ao mesmo tempo que permite ao adoptante conceder-lhe toda a protecção que não lese as legítimas expectativas da descendência legítima.
Apesar disto, e não obstante a prudência que se requer com um instituto novo, de características tão melindrosas como este da filiação fora dos vínculos do sangue, alargou-se o âmbito da adopção plena, de modo a incluir nele, ao lado dos filhos de pais incógnitos, os filhos de pais falecidos.
1) O direito inglês distingue, do facto, entre a adoption e a simples guardianship: P. M. Bromlev, Family Law, 3.a edição, 1966, p. l, 369 e seguinte, 401 e seguinte.
Quanto ao regime desta modalidade da adopção, reconheceu-se a necessidade de corrigir a equiparação dela à filiação legítima, num caso especial.
Quando são chamados à herança paterna filhos legítimos em concorrência com filhos ilegítimos, estes recebem, como de todos é sabido, uma quota inferior à dos primeiros.
Se, porém, a competição se estabelecer entre filhos adoptivos e filhos ilegítimos do falecido, já se não afigura justo que o mesmo critério de preferência reverta em prejuízo dos descendentes de sangue, ainda que os outros hajam sido integrados na família por meio da adopção plena. A diferenciação dos quinhões atribuídos aos filhos representa uma forma de tutela da família legítima em face da prole ilegítima, que carece inteiramente de sentido em relação à prole adoptiva.
Por isso, concorrendo à sucessão filhos adoptivos e filhos ilegítimos, ou descendentes com direito de representação, a lei prescreve que sejam iguais as quotas de uns e outros. Quando a concorrência abranja simultaneamente filhos legítimos, adoptivos e ilegítimos, entendeu-se, porém, que a igualação entre os dois primeiros grupos deve prevalecer sobre a ideia de igualar a prole ilegítima com os filhos adoptivos.
Seguindo a ordem do próprio articulado, vamos entrar agora na apreciação dos temas mais delicados de toda a exposição, começando pela matéria dos impedimentos matrimoniais, na qual cabem tanto os que respeitam ao casamento concordatário como os que obstam à celebração do casamento civil.
As observações mais importantes que no capítulo dos impedimentos cumpre examinar resumem-se a duas: uma delas, relativa ao casamento católico, condena o facto de se manterem as exigências da lei civil quanto à capacidade matrimonial dos nubentes, nos casos em que o acto é celebrado com dispensa legal do processo preliminar; a outra parte dos que com maior ou menor veemência se insurgiram contra a inclusão das ordens maiores ou dos votos solenes entre os impedimentos do casamento civil.
Em lugar, porém, de encetarmos a análise pelos dois pontos atingidos, nenhum inconveniente haverá em envolvermos o seu exame na resposta a uma insinuação que a coberto da última crítica se deixou cair sobre a nova codificação, alargando assim os horizontes da exposição e facilitando a exacta compreensão das posições que a lei perfilhou.
Falou-se, com efeito, a propósito do livro da famlia, em cesarismo e clericalismo, como atitudes condenáveis em toda a actividade legislativa, em termos de o público ser induzido a crer que por uma ou outra via o projecto se afastara da linha divisória que assinala as fronteiras da jurisdição da Igreja, por um lado, e da legítima soberania do Estado, por outro.
Convém, naturalmente, saber se a insinuação tem algum fundamento.
Não valerá decerto a pena lembrar que, contra a doutrina do direito canónico, o código reconhece a validade do casamento civil, permite a livre celebração dele a todos os católicos, sem necessidade de prévia abjuração da sua fé (como sucede noutras legislações estrangeiras) e admite a dissolução desse casamento por meio do divórcio, ao contrário do que ocorre nos países que maiores afinidades têm connosco, onde, como adiante se verá, o divórcio não é admitido em caso algum.
Podemos, sem grande inconveniente, pôr de parte todos esses argumentos e limitar o campo da apreciação crítica do novo direito ao casamento católico e ao impedimento das ordens e dos votos, por serem as matérias mais postas

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em relevo no capítulo das relações entre o direito canónico e a lei civil portuguesa quanto ao instituto da família.
No que respeita ao casamento católico, a parte fundamental da sua disciplina foi o código buscá-la às disposições da Concordata de 1940. E, quanto à Concordata, já por algumas vozes, autorizadas pelo saber e insuspeitas pela formação, foi reconhecido que esse instrumento diplomático representa uma solução equilibrada de compromisso entre o Estado Português e a Santa Sé, que fizeram concessões recíprocas na resolução dos problemas, que mutuamente transigiram em vários pontos para acautelar o melhor possível os altos interesses morais e espirituais que a cada uma das potências contratantes incumbe defender.
O Estado Português transigiu, quando, de acordo, aliás, com o sentimento geral da Nação, reconheceu a eficácia civil do casamento católico e quando, por força da lógica e em nome dos bons princípios, aceitou a competência dos tribunais eclesiásticos nas questões relativas à nulidade do casamento canónico e à dispensa do casamento rato e não consumado.
A Santa Sé cedeu, por seu turno, em dois aspectos importantes: na exigência da capacidade matrimonial dos nubentes em face da lei civil, certificada pelas repartições do registo; e na remessa obrigatória do duplicado dos assentos a estas repartições, como processo de garantir o monopólio do Estado em matéria de informação sobre o estado civil dos cidadãos portugueses.
A necessidade do certificado de capacidade matrimonial dos nubentes visa garantir a observância, não só dos impedimentos dirimentes consagrados na lei civil, mas dos próprios impedimentos impedientes, através dos quais o Estado procura defender certos valores que interessam ao governo temporal da comunidade portuguesa, mas que pouco ou nada contam para o espírito universalista e a vocação ecuménica do direito canónico.
Os casos mais delicados que a Concordata teve de encarar foram aqueles em que circunstâncias ponderosas exigem a celebração imediata do casamento, sem possibilidade de o celebrante aguardar a conclusão do processo preliminar nas conservatórias do registo civil.
Nessas hipóteses excepcionais, depois de rigorosamente circunscritas no acordo, o Estado Português anuiu à celebração imediata do casamento, como não deveria deixar de o fizer; mas não prescindiu da instrução subsequente do processo destinado, a averiguar da capacidade matrimonial dos consortes em face da lei civil, e, a despeito de o matrimónio já nessa altura constituir em regra facto consultado, a sua transcrição no registo civil não se fará quando o processo revele a existência de qualquer dos dois impedimentos dirimentes em que há maior divergência de doutrina entre as prescrições do direito canónico e o sistema da lei portuguesa.

Não direi que o engenho dos canonistas e o talento dos civilistas fossem incapazes de encontrar, nesta complexa matéria do casamento, outras fórmulas de recta composição entre os diversos interesses em jogo; do que duvido é da possibilidade de encontrarem soluções mais equilibradas, critérios mais justos, princípios mais acertados, na alteração de um regime que, afrontando os direitos da Igreja, violentava a consciência da maior parte da população.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - Não será um membro do Governo a pessoa mais qualificada para emitir o juízo que acaba de ser proferido?
Mas, entre vencer o pejo do louvor em boca própria para desnudar a verdade e consentir por incúria no triunfo dos erros alheios, ainda que encobertos sob o disfarce da insinuação sem compromisso, a moral não consente hesitações.
Mas passemos entretanto da. Concordata de 1940 para o projecto do Código Civil.
As inovações mais salientes deste diploma, no confronto com os textos concordatários, são duas. A primeira, importada do Código do Registo Civil de 1958, mas concebida no círculo dos trabalhos preparatórios do novo direito civil, refere-se aos casamentos católicos celebrados no estrangeiro entre dois portugueses ou entre português e estrangeiro; a segunda, que certas apreciações críticas estranhamente passam em claro, mantém expressis verbis todas as exigências da lei civil quanto à capacidade matrimonial dos nubentes, nos casamentos celebrados com dispensa do processo preliminar de publicações.
Quanto aos casamentos católicos celebrados em país estrangeiro, que não cabem de facto no âmbito da Concordata, uma solução deveria ser imediatamente posta de lado: a de subordinar a transcrição no registo civil ao facto de o casamento católico ser reconhecido como válido no Estado onde foi celebrado. A intervenção da lex loci, além das prescrições do direito canónico, pode convir à defesa dos fins especialmente tutelados pelo Estado estrangeiro, mas nada importa à protecção jurídica dos interesses próprios do Estado Português.
Nestes termos, o legislador teria apenas de optar entre a tese da irrelevância sistemática do casamento e o princípio do seu reconhecimento subordinado a certos requisitos, fosse qual fosse a posição ditada pela lex loci.
Ora, se o contrato é precedido do processo das publicações, como em regra deve ser, nenhuma razão se vislumbra para não considerarmos válido o casamento, nem qualquer argumento sério impedirá que lhe seja aplicável o regime próprio dos casamentos católicos celebrados em Portugal, sobretudo quando sejam portugueses ambos os nubentes. Convém lembrar, a propósito, que à forma legal da declaração negocial manda o código aplicar, em princípio, a lei reguladora da substância do negócio, e que a substância do negócio matrimonial, expressa de modo especial nas relações entre os cônjuges, é regulada em primeira linha pela lei nacional comum.
Se não tiver havido processo preliminar, nada impede que as publicações corram posteriormente. O processo posterior pode revelar a existência de fundamentos que devam obstar à transcrição; porém, se o casamento vier a ser transcrito, nenhuma razão séria existe para que ele não seja havido como católico.
O traço essencial do regime próprio do casamento católico é, como todos sabem, a sua indissolubilidade. E qualquer cidadão português, seja qual for o Estado onde se case, deve saber, e normalmente não ignora, que a indissolubilidade não é apenas uma característica do casamento concordatário celebrado em Portugal, mas um dos caracteres desde há séculos reconhecido pelo direito canónico quanto ao sacramento matrimonial.
Vejamos o que, em contrapartida, se passou quanto aos casamentos católicos celebrados com dispensa do processo preliminar.
Publicada a Concordata, posto em vigor o decreto-lei que lhe deu execução no foro do direito interno, começou pouco a pouco a generalizar-se nos meios eclesiásticos a convicção de que nos casamentos in articulo mortis, na iminência de parto, ou cuja celebração imediata fosse autorizada pelo ordinário próprio por grave motivo de ordem moral, abstraindo dos impedimentos próprios do

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direito canónico, ao Estado apenas interessava a observância dos dois impedimentos da lei civil capazes de fundamentarem a recusa da transcrição.
E, além do entendimento erróneo dado ao preceito, alguns abusos se cometeram à sombra dele, que só mais tarde vieram a ser devidamente sanados.
O problema foi seriamente ponderado na redacção definitiva do projecto, o qual acabou por consignar de modo explícito a doutrina de que a dispensa legal do processo preliminar, se autoriza a celebração imediata do casamento e reduz os fundamentos de recusa da transcrição, não afasta nenhum dos impedimentos da lei civil, nem isenta os infractores das sanções correspondentes à ilicitude cometida. Além de não haver nenhuma razão para eximir os cônjuges das medidas, sobretudo de natureza civil, decretadas contra a inobservância dos impedimentos, a solução impõe-se ainda por ser a que melhor se coaduna com o espírito de mútua transigência que caracteriza o próprio texto concordatário.
E parece tanto mais defensável quanto é certo ter a lei civil eliminado entretanto o obstáculo que mais intolerável tornava, em certos casos, o acatamento dessa orientação. A autorização exigida aos pais dos nubentes menores, que funcionou como impedimento dirimente relativo até 1958 e que tão mal utilizada era, de facto, por muitos progenitores, converteu-a o Código do Registo Civil em mero fundamento de oposição, sujeito a apreciação jurisdicional.
Feito deste modo o balanço sumário da situação, é possível concluir que das duas inovações mais significativas do projecto em face do regime concordatário, ambas perfeitamente justificáveis à luz dos bons princípios, uma delas estende, na verdade, o reconhecimento da eficácia civil aos casamentos católicos celebrados em país estrangeiro, que não são abrangidos pelo acordo celebrado entre Portugal e a Santa Sé, ao passo que a outra afirma de modo explícito a inteira subordinação do casamento concordatário às exigências da lei civil, numa série importante de casos em que a doutrina é vivamente contestada por uns e seriamente posta em dúvida por outros.
E, perante este quadro singelo, adicionado às considerações que foram expostas a propósito do acordo de 1940, é-se naturalmente tentado a perguntar: Onde está o cesarismo ou o clericalismo da Concordata?
E, se a censura não pretende atingir as disposições já importadas da Concordata, onde o clericalismo ou o cesarismo do projecto do Código Civil?
A não ser que a vaga acusação lançada sobre o projecto se funde naquela simples alínea de um dos seus dois mil trezentos e tantos artigos, onde se consagra o impedimento do casamento civil fundado nas ordens maiores ou nos votos solenes ou equiparados.
A matéria, conquanto não tenha grande importância prática, é de sua natureza extremamente melindrosa, sendo eu o primeiro a recear que o teor da comunicação possa neste ponto ferir algumas legítimas susceptibilidades; a verdade, porém, é que não encontrei outra forma de mostrar, especialmente aos leigos do direito, os termos exactos em que a questão é posta à consideração do legislador.
O impedimento que se discute não foi inventado à última hora pelos juristas nacionais.
Vigora desde há muitos séculos, e ainda agora persiste, no direito canónico, por força do princípio chamado do celibato eclesiástico, quanto ao casamento católico; e proclama-o para «ambas as espécies de casamento», embora como impedimento impediente, o Código Civil de 1867 (artigo 1058.º, n.º 5.º), não obstante todo o liberalismo de que o diploma vinha impregnado.
As denominadas leis da família. pertencentes ao corpo da legislação laicista que marca o advento da República, é que eliminaram o impedimento. A partir de 1910, a doutrina aplicável passou a ser a seguinte: se um membro do clero, seja secular ou regular, ou uma religiosa prestar na repartição do registo civil a declaração de casamento, nenhum obstáculo se levanta à realização do contrato, nem que o sacerdote e a religiosa pretendam casar entre si. Nada impedirá sequer que eles, se quiserem, apareçam com as respectivas vestes na celebração solene do acto.
Nem a formação moral, nem o sentimento natural de pudor, nem o simples bom senso das pessoas, consentiram que alguma vez as coisas assumissem os foros de maior escândalo público a que o indiferentismo religioso da lei abre libérrimo as portas do registo civil. Mas o problema tinha naturalmente de ser examinado em todas as suas consequências, com a nova luz e com as novas sombras dos tempos que correm, numa reforma como a do Código Civil, em que o legislador é forçado a passar pelo crivo da razão todas as soluções da legislação vigente.
O autor do anteprojecto não teve a mais leve hesitação em propor a restauração do impedimento, cujo regime aperfeiçoou, por ser a doutrina que, observando o juramento formulado em plena liberdade pelas pessoas atingidas, menos feria os sentimentos religiosos das populações.
O projecto perfilhou a ideia, com uma ligeira modificação, que consistia em não admitir a convalidação imediata do casamento pelo facto de as autoridades eclesiásticas levantarem posteriormente a causa do impedimento, pois não se julgou conveniente que à Igreja fosse concedida, nestes casos, a possibilidade de decidir livremente, embora por via indirecta, acerca da validade ou nulidade do casamento civil.
Contudo, no seio da própria Igreja, enquanto uns aplaudiam sem reservas a medida, algumas vozes se levantaram contra a limitação do casamento civil, pugnando pela manutenção do regime vigente, que já sabeis qual seja.
Com que fundamentos?
Abstraindo de algumas afirmações inteiramente gratuitas, sustentou-se que o impedimento é condenável: por ser inconstitucional, pois ofende o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei; por destruir o celibato eclesiástico como acto livre e consciente; e por constituir uma abusiva intromissão do Estado na esfera dos actos religiosos.
Nenhuma das razões se mostra convincente.
O princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei tem por fim evitar as discriminações de capacidade jurídica entre os cidadãos portugueses, fundadas em qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo ou condição social, e visa ainda a garantir o direito de provimento nos cargos públicos, conforme a capacidade revelada ou os serviços prestados.
Por isso mesmo, muito avisadamente a Constituição ressalva logo do princípio igualitário, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família e, enquanto aos encargos ou vantagens dos cidadãos, as diferenças impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas.
Ora, a razão explicativa do impedimento matrimonial não está na qualidade de crente que têm as pessoas atingidas, nem tão pouco na sua condição de padres ou de religiosas; está no juramento que livremente prestaram, e no escândalo que provoca na consciência dos crentes o rompimento ostensivo dele, sobretudo através do casa-

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incuto civil. É uma restrição que ofende tanto a Constituição como as regalias que as leis ordinárias concedam aos sacerdotes ou às religiosas em atenção à natureza especial do seu múnus, ou como a disposição concordatária que estabelece, em matéria de divórcio por exemplo, uma diferem a essencial de tratamento entre os casados civilmente e os que optaram pelo casamento católico.
Não reveste maior consistência o argumento extraído da natureza do celibato, muito ao sabor de certa mentalidade neoliberal da época pós-conciliar.
O facto do o direito chamar a si a tutela de certos valores, punindo quem os ofende, não priva de sentido, nem sequer lê beleza moral, a conduta das pessoas que os acatam espontaneamente e não pelo mero temor das sanções legais. Á maior parte dos indivíduos respeita a vida, a honra, a fazenda, o bom nome do próximo, sem perder um momento a cogitar no castigo que a lei comina para a violação dos bens colocados sob o manto protector da ordem jurídica; nem por isso as sanções deixam de ser necessárias, imprescindíveis ao convívio social, para aqueles que prevaricam... ou podem prevaricar!
De contrario, se toda a coacção exterior roubasse a beleza e sacrificasse a liberdade essencial do celibato, teríamos de começar por pedir ao direito canónico que eliminasse também as graves sanções com que a Igreja pune o casamento civil dos sacerdotes ou das religiosas.
Só resta acrescentar que mediante a proibição do casamento civil Aos sacerdotes ou às religiosas, enquanto não fossem reduzidos ao estado laical, o Estado não pretendia do modo nenhum dirigir ou impedir a prática de quaisquer actos religiosos. Queria simplesmente abster-se de colaborar num acto que, sendo reprovado pela Igreja, repugna à sensibilidade da generalidade das pessoas bem formadas, por se lhe afigurar que a atitude contrária, de completa indiferença pelos valores religiosos, não seria a mais consentâneo com o próprio espírito da concordata, que, sendo uma concordata de separação, como se tem afirmado, não é todavia uma concordata de hostilidade, nem sequer de indiferença reciproca pelos valores que na vida dos povos à Igreja e ao Estado incumbe zelar.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - A resposta às razões contraditadas conduziria, portanto, à manutenção do impedimento.
Porém, ao ser o problema de novo analisado, reconheceu-se que a eventualidade, prevista no projecto, da dispensa concedida pela autoridade eclesiástica competente será, quanto ao casamento civil, praticamente rara, se não impossível de verificar. O que as autoridades excepcionalmente permitem, nos últimos tempos com mais frequência que no passado, é o casamento católico. E o próprio casamento católico celebrado em análogas circunstâncias levanta dificuldades ponderosas quanto à publicidade e quanto ao registo, que não puderam ser ainda convenientemente estudadas pelas entidades interessadas.
Impôs-se nestes termos ao Governo, como solução mais aconselhável, a ideia de eliminar do código o impedimento que tanta celeuma levantou e de reservar o novo exame da matéria para momento mais oportuno, quando esteja concluída a revisão do direito canónico, que em tempos se anunciou, e quando se dissipem as dúvidas mais carregadas que no espírito dos fiéis suscitaram algumas das declarações conciliares relativas à liberdade religiosa.
Cumpre agora examinar o problema relativo à capacidade da mulher casada, não tanto porque as soluções propostas tenham sido directamente impugnadas e careçam de justificação, mas por se ter gerado em torno do tema uma grande confusão de ideias que convém esclarecer nas vésperas da entrada em vigor dos novos textos.
Fica assim posta de parte a matéria das nulidades matrimoniais.
É que os exemplos através dos quais se pretendeu combater a excessiva largueza dos critérios anulatórios fixados na lei nada provam em desabono do sistema, visto todos eles serem retidos, como sujidades que conspurcariam a boa doutrina, pelo filtro purificador da essencialidade do erro ou pelas malhas apertadas do conceito da coacção moral.
Quanto à situação jurídica da mulher casada, é já de todos sabido que o projecto deu um passo importante em frente, suprimindo as limitações que constituíam um injustificado ferrete de incapacidade, e mantendo apenas, no geral como casos de simples indisponibilidade, as restrições impostas pela necessária unidade do agregado familiar.
Ás disposições relativas à residência dos cônjuges, ao exercício de certas actividades fora do lar, à administração dos bens do casal, às providências administrativas que marido e mulher podem requerer, aos depósitos bancários da mulher, à alienação de bens próprios ou comuns, ao exercício do comércio por parte da mulher e à possibilidade de contrair dívidas, a elevação da comunhão de adquiridos à categoria de regime supletivo, a consagração da separação absoluta de bens como regime de completa separação entre os patrimónios dos casados, além de outros preceitos que seria fastidioso enumerar, trazem consigo umas vezes a ampliação directa, outras um acréscimo potencial, das faculdades outorgadas pelo direito civil à mulher casada.
As pessoas mais circunspectas e prevenidas, tal foi a modificação operada na matéria, mostraram as suas apreensões quanto a algumas das alterações previstas, em especial no que toca aos poderes de administração que à mulher é lícito reservar na convenção antenupcial, por admitirem que a liberalidade da lei seja capaz de incentivar a desagregação familiar que já hoje se começa a sentir em grau apreciável nos grandes meios citadinos.
Em compensação, também logo houve quem, desfraldando açodadamente e com grande desenvoltura o pendão do igualitarismo, considerasse insuficiente o progresso da legislação, censurando de algum modo o facto de se ter reputado um absurdo a tese da igualdade de direitos e deveres entre marido e mulher.
As palavras, mais que as ideias, desfrutam hoje de uma grande força no mundo; e a gente pasma a cada momento com a subserviência que manifestam perante o poder emotivo de palavras ocas, de abstracções sem conteúdo definido, de simples estandartes que se desfraldam ao vento das paixões, os próprios espíritos mais rebeldes à sã disciplina das ideias!
Vamos, pois, abstrair quanto possível do puro invólucro verbal das coisas e procurar as ideias que estão por detrás do problema concernente à posição jurídica da mulher casada, que surge agora em Portugal com uma acuidade semelhante à que já atingiu noutros países da Europa (*).
(1) Pode referir-se concretamente, a título de exemplo, do caso típico da Alemanha Ocidental, onde a questão da igualdade jurídica entre os cônjuges deu lugar a uma confusão análoga de ideias. Haja, .de facto, em vista as controvérsias, as dúvidas e as contradições que aí provocou, embora em plano mais elevado que entre nós, a interpretação e execução prática do preceito que na Constituição de 1949 proclamou a tese da igual consideração (die Gleichberechtigung) do homem e da mulher: Hans Dõlle, Familienrecht, i, 1964, pp. 26 e seguintes.

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A primeira nota que importa tocar, para prevenir comentários despropositados, é que não está posta em equação neste caso a questão da igualdade jurídica entre o homem e a mulher. Fora da sociedade conjugal, não se encontra em princípio, dentro, do Código Civil, nenhuma limitação de direitos fundada no sexo.
As tais diferenças resultantes da natureza da mulher, a que avisadamente se refere o texto constitucional, têm o seu lugar próprio mais no direito público que no comércio privado (*).
Dentro da própria sociedade familiar, se o marido falta, está impedido ou se encontra ausente, a mulher ocupa imediatamente o lugar de chefia; investida nos direitos que ele usufruía e sujeita aos deveres que sobre ele recaíam.
O que está por conseguinte em causa, para os civilistas, é a posição relativa da mulher e do marido na estrutura e funcionamento da comunidade familiar.
A segunda advertência prévia que importa fazer é que o problema se não situa no domínio ético da moral, nem é posto no campo religioso da teologia, mas apenas no terreno prático da realidade jurídica.
Já hoje ninguém contesta nas sociedades civilizadas o princípio da igual dignidade do homem e da mulher à luz dos preceitos morais, nem discute a sua igual responsabilidade no plano da criação divina. O que os autores podem, no entanto, perguntar, sem infringir nenhum desses conceitos, é se dentro da família as leis devem atribuir aos cônjuges posições idênticas, ou antes posições complementares, embora igualmente dignas no plano do direito ou da moral, visto serem complementares, e não idênticas, as funções que a natureza assina a marido e mulher na comunhão de vidas que é a essência da sociedade conjugal.
Tendo presente a distinção que acaba de ser assinalada, fácil se torna verificar que os textos sagrados e os documentos pontifícios referentes à situação da mulher dentro do lar, ou não tratam da questão jurídica, ou, quando dela curam directamente, em lugar de negarem, só confirmam o princípio da chefia natural do marido e a tese da diversidade da posição legal pertencente a cada um dos cônjuges.
Ora, uma vez posta a questão nos seus termos exactos, nada custa reconhecer que o código poderia, em determinados pontos, adoptar soluções diversas das que perfilhou, ser mais avançado que já foi na senda do pensamento igualitário, modificando, ou ampliando de modo directo, a esfera dos direitos conferidos à mulher casada.
Em lugar, por exemplo, de prescrever que a mulher deve adoptar a residência do marido, com todas as ressalvas que a imposição comporta, poderia admitir como regra que cada um dos cônjuges mantivesse o direito a uma residência própria; em vez de conceder ao marido a administração geral dos bens, poderia confiá-la, em princípio, à mulher.
E, se o legislador quisesse evadir-se mais ainda do círculo das realidades sociológicas nacionais, assim como poderia investir o marido no governo doméstico do lar, nada impediria que fosse este a tomar o nome da mulher, e não ela, como agora, embora só facultativamente, quem adopta os apelidos do varão (a).
Todavia, quando o código entrega ao marido a chefia da família, em termos, aliás, muito mais comedidos que o código italiano vigente (a) ou que o nosso Código de 67, ele não cura tanto das questões dessa índole, como cuida dos assuntos de interesse comum da família, os quais respeitam por via de regra à pessoa ou ao património dos filhos e aos bens comuns do casal.
Admitamos - para ilustrar a doutrina com alguns exemplos práticos - que o marido quer que o filho siga o ensino liceal, enquanto a mulher vota pelo ensino técnico; o marido, que é protestante, pretende internar a filha num colégio evangélico, ao passo que a mulher, católica convicta, prefere a educação em estabelecimento diferente. O marido decide levar os filhos para a praia; a mulher opta pelos ares da serra. O marido dispõe-se a arrendar certos bens comuns a A; a mulher está de acordo com o arrendamento, mas insiste em que o arrendatário seja B.
É para casos desta natureza, e para muitos outros facilmente imagináveis, que na teoria e na prática se levanta com toda a acuidade a questão da chefia familiar.
Quem decide em tais hipóteses: o marido ou a mulher? Quem pontifica nos assuntos de interesse comum: a autoridade do varão ou o sentimento da sua consorte?
Os moralistas que esgrimem contra o princípio tradicional da chefia do marido com o florete demagógico da igualdade jurídica dos cônjuges só encontram uma escapatória, coerente com a crítica de que arrancam, para a resolução da dificuldade: a do recurso ao Estado, através dos tribunais, sempre que haja discordância entre os cônjuges (3).
Simplesmente, essa orientação teria os mais perniciosos efeitos na harmonia da vida conjugal e poria em grave risco a estabilidade do agregado familiar.
Sentimental e impulsiva como é o comum da gente meridional, os cônjuges haveriam de recorrer a cada passo aos tribunais, por simples amor-próprio, desperdiçando tempo, gastando dinheiro e desbaratando energias em demandas inglórias, por questões de mera lana-caprina. Arrepender-se-iam possivelmente de o ter feito, mas demasiado tarde muitas vezes, por terem as devassas das testemunhas, a luta dos advogados e a inquirição dos juizes contribuído involuntária, mas seriamente, para desatar os laços que uniam os desavindos e para exacerbar as paixões que o orgulho ferido é capaz de alimentar.
E escusado será realçar ainda a ameaça de paralisação da vida familiar que lançaria sobre pais e filhos o es-
(*) Há matérias, como o serviço militar, a protecção da maternidade, os crimes sexuais e outras, em que as diferenças biológicas e funcionais dos dois sexos impõem uma diversidade de regime. Outras vezes, são os interesses do Estado que legitimam a diversidade, interditando o acesso da mulher a certas funções públicas, não por uma razão genérica de incapacidade, mas por virtude da normal inaptidão das características femininas para as exigências específicas do cargo.
1) A legislação soviética (Decreto de 19 de Novembro de 1926), por exemplo, concede aos cônjuges a faculdade de adoptarem como nome de família o de qualquer dos cônjuges, se não E referirem manter o nome de solteiros. Vide a colectânea de iis intitulada Familiengesetze Sozialistischer Lander, Berlim, 1959, p. 39.
(2) «O marido», diz o artigo 145.º do código italiano, numa linguagem já muito distanciada do projecto português, «tem o dever de proteger a mulher, de tê-la junto de si e de lhe proporcionar, na medida das suas possibilidades, tudo quanto for essencial à satisfação das necessidades da vida.»
O artigo 1185.º do nosso Código de 1867 também se exprimia em termos muito semelhantes, quando afirmava que «ao marido incumbe, especialmente, a obrigação de proteger e defender a pessoa e os bens da mulher; e a esta, a de prestar obediência ao marido».
(3) E a solução abertamente consagrada, na Checoslováquia, pelo § 16, n.º l, da Lei n.º 265, de 7 de Dezembro de 1949, sobre o direito de família. Cf. Colectânea, cit., p. 171.

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pectro do recurso frequente aos tribunais para dirimir as contendas entre os cônjuges 1).
E que o princípio da chefia do marido não se impõe só porque corresponde a uma das tradições sociais milenárias que a necessária estabilidade e fortaleza das instituições familiares manda salvaguardar; ele exprime ainda uma regra salutar de boa psicologia, assente no perfeito conhecimento da natureza humana, e ditada pelo bem da família, no dizer feliz da Constituição, ou seja pelo interesse superior da paz conjugal e da boa educação dos filhos (2).
Não esqueçamos nunca que o Estado, seja ele representado pelo:5 juizes, seja pelo curador de menores, é sempre um terceiro, e que a intervenção regular ou sistemática de um terceiro, estranho à sociedade matrimonial, incumbido de solucionar os dissídios entre marido e mulher, destrói o que a família tem de mais precioso, que é a intimidade do lar, ao mesmo tempo que lança dentro da sociedade familiar um factor grave de perturbação conjugal.
Vozes: - !Muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - Para evitar a intromissão perturbadora de terceiros na vida familiar, nenhum outro princípio se oferece à inteligência do jurista que não seja a regra da chefia: a chefia do marido, nos países de tradição cristã; a chefia da mulher, nos povos ou nas tribos primitivas sujeitas ao regime matriarcal.
Para concluir a análise deste ponto, resta só acrescentar, em obediência à verdade dos factos, que a revisão final dos textos alguma coisa lucrou ainda com a livre discussão da matéria. Foram eliminados do código os anacrónicos aberrantes institutos do depósito e da entrega judicial da mulher casada, que quase só por mera inadvertência escaparam na redacção do projecto.
Outro tema muito debatido em determinados círculos de opinião, com um calor nem sempre isento de alguma virulência, foi o da dissolução do casamento pelo divórcio.
Como o projecto tentasse reprimir os excessos manifestos da legislação vigente, logo acudiram os comentadores a proclamar com todas as letras, ou a insinuar veladamente por meias palavras, que as novas disposições marcavam um franco retrocesso na regulamentação da matéria, só explicável pelo espírito reaccionário com que foi apreciado o carácter liberal do sistema em vigor.
O mais curioso de tudo é que, passando por Lisboa na altura era que a discussão ia mais acesa entre os contendores, um jurisconsulto estrangeiro insuspeito não hesitou em tecer os maiores louvores aos aspectos progressivos do projecto que estava em discussão pública. Regressado ao seu país, em comentário pitoresco feito a
(1) No mesmo sentido: F. Scardulla, La Separazíone Personale dei Conjugi, Milão, 1066, pp. 18-19.
(2) A propila educação da prole, escreve Scardulla (ob. e loc. cits.), tem necessidade da autoridade predominante de um dos pais e sofreria gravemente com as disputas entre os cônjuges, que decerto se viam frequentes quando a lei afirmasse o princípio da direcção conjunta, ou quando a decisão do marido, sujeita a apreciação jurisdicional, tivesse carácter provisório.
Cf. ainda, no mesmo sentido, as certeiras e veementes reflexões de Henri Mazeaud. no artigo intitulado Une famille sans chef, Recueil Dalloz, 1951, pp. 141 e segs., onde se refere a importância que o princípio da autoridade (marital) tem na coesão e unidade da família e se levanta um pouco do véu que cobre a estranha simpatia dos países comunistas, partidários da autoridade absoluta do Estado, pela regra da igualdade jurídica entre os cônjuges, que é causa e fonte de fraqueza da sociedade familiar.
instâncias dos jornalistas, ele teria depois afirmado que os Portugueses, depois de haverem dado ao mundo uma lição ... nos domínios da competição física, se aprontavam agora para lhe dar uma outra no campo superior da actividade legislativa.
É fácil compreender o sentido da declaração, e não parece difícil medir o seu alcance com o compasso nas próprias reivindicações políticas.
Mesmo sem os excessos com que tenha sido emoldurado, o projecto português trazido à luz pública, na largueza com que admite o divórcio para o casamento civil, ao mesmo tempo que a todos faculta a opção por esta espécie de casamento, constituiria para várias legislações estrangeiras a mais preciosa das conquistas a que certas correntes extremistas poderiam aspirar (]).
Se não há razão plausível para extrair do facto qualquer motivo de . orgulho especial, nem qualquer causa justificada de desapontamento, o que nele pode alicerçar-se decerto é a confiança bastante para se deixar cair sem resposta a acusação político-jurídica lançada em rosto do projecto e para, com toda a serenidade, ensaiarmos algumas reflexões em torno do momentoso problema.
O direito comparado fornece, de facto, ao estudioso interessado na análise da questão uma lista suculenta de orientações possíveis, com soluções para todos os gostos e com variantes para todos os paladares. Desde os sistemas que admitem o repúdio unilateral da mulher, como sucede em larga medida nos países muçulmanos, até às legislações que, por inspiração do direito canónico, só admitem a dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges, encontra-se no direito constituído das várias nações a maior variedade que é possível conceber no enxerto da dissolução por meio de divórcio com a mera separação de pessoas e bens, que não destrói o vínculo conjugal (a).
Se, porém, o termo de comparação da legislação portuguesa se circunscrever às leis dos países que têm maiores afinidades históricas e culturais com -Portugal como sejam a Espanha, o Brasil, a França e a Itália -, forçoso é reconhecer que nenhuma delas é tão pródiga como o direito português vigente em admitir a dissolução do casamento civil. A Espanha, o Brasil e a Itália (3) não conhecem mesmo o instituto do divórcio, e a legislação espanhola nem sequer permite a separação por mútuo consentimento. A França (tal como a Alemanha, aliás) afasta o divórcio por mútuo consenso, e também repudia a separação amigável.
(1) A afirmação procede quanto ao próprio projecto do Deputado socialista Fortuna, que tanta agitação desencadeou na opinião pública italiana, pois, se é certo que as suas disposições visam também o casamento concordatário, menos certo não é que os fundamentos nele propostos para a dissolução se podem, de um modo geral, considerar bastante menos amplos que os admitidos no nosso projecto, relativamente ao casamento civil. Cf. Fortuna, Jorio e Pandini, Rapporto sul divorzio in Itália, Milão, 1966, p. 131.
(2) Há países que admitem tanto o divórcio litigioso como o divorcio por mútuo consentimento, enquanto outros só aceitam a primeira modalidade. Entre estes últimos, há ainda que distinguir entre os que restringem a dissolução às causas culposas e aqueles que, ao lado delas, incluem as causas que são independentes da culpa de qualquer dos cônjuges. Cf. as sínteses de direito comparado feitas por Fortuna, Jorio, Pandini, ob. c t í., p. 152; Hans Dõllej 06. ctí., pp. 480 e seguintes; e, para maia ampla informação, o Juris-classeur de droit compare, dirigido por 8. Goldman, Paris.
(3) Em Itália, entre 1873 e 1965, foram já apresentados doze projectos de lei tendentes a instituir o divórcio, sem que até agora nenhum deles tenha conseguido alcançar o seu objectivo. Cf. Fortuna, Jorio, Pandini, op. ctí., p. 10, nota 7.

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Conhecidos estes elementos informativos, e sabido como os próprios países socialistas procuraram a partir de determinada época restringir as causas de dissolução do casamento (*), nenhuma estranheza causará por certo no público o saber que no seio da comissão do código, constituída por pessoas de diversa formação política e religiosa, se deliberou por unanimidade:
1.º Restringir os fundamentos do divórcio litigioso;
2.º Reforçar as sanções aplicáveis ao cônjuge culpado do divórcio.
De acordo com esse pensamento, o projecto reduziu os fundamentos do divórcio aos casos em que há culpa de um dos cônjuges, eliminando aqueles em que a cessação do vínculo matrimonial apenas se explica como meio (remédio ) de um dos cônjuges se libertar do fardo em que, vista a situação à luz de uma concepção puramente hedonista da sociedade conjugal (a), o casamento se converteu.
Ao mesmo tempo adoptaram-se sanções sérias contra o cônjuge culpado do divórcio, por forma que a dissolução do matrimónio se não possa converter, para ele, numa fonte de benefícios patrimoniais.
O anteprojecto do direito da família levou ainda um pouco mais longe a sua reacção contra a excessiva latitude da legislação em vigor, ao eliminar o divórcio por mútuo consentimento, e ao exigir, quanto ao próprio divórcio litigioso, que os cônjuges estivessem judicialmente separados de pessoas e bens há três anos, pelo menos.
As alterações propostas pareceram demasiado drásticas (3), visto o divórcio por mútuo consentimento, não obstante os graves inconvenientes que a justo título lhe são assacados, evitar muitas fraudes dos cônjuges interessados na dissolução do casamento e prevenir em outros casos o escândalo público a que frequentes vezes dá lugar o processo do divórcio litigioso (*). E por essa razão
(1) Aos excessos do código soviético de 22 de Outubro de 1918 procurou pôr cobro o Decreto de 8 de Julho de 1944, segundo o qual o divórcio passou a ser necessariamente decretado por decisão judicial e os juizes só o devem admitir quando haja uma causa séria e grave de desentendimento entre os cônjuges, que torne a continuação do casamento praticamente impossível e contrária aos princípios da moral comunista (neste sentido a orientação definida pelo pleno do Supremo Tribunal das Repúblicas Soviéticas em 16 de Setembro de 1949). Cf. Colectânea cit. das Familiengesetze, p. 63.
Na Checoslováquia (Lei n.º 265, de 7 de Dezembro de 1949,
L30, 2) dá-se ao tribunal o poder de denegar o divórcio, quando já filhos menores e a dissolução do casamento lese os seus interesses.
(2) Só na sequência lógica de semelhante orientação será lícito afirmar, com alguns autores, que a dissolução do casamento se impõe, em tais casos, pela necrose fatal do próprio vínculo matrimonial.
(3) Importa advertir que o divórcio é sempre um mal, e a dissolução do casamento em vida dos cônjuges uma solução eticamente condenável, visto o casamento assentar, em princípio, na promessa recíproca de uma comunhão perpétua de vidas. Em certos casos, porém, no âmbito ar.- casamento civil, o divórcio compreende-se, no próprio plano da moral, como um meio de evitar perturbações ainda mais graves da ordem ética que, sem a dissolução, seriam mais que prováveis, porque são certas. (Cf. sent. do Trib. Ádm. de Berlim, apud H. Dõlle, ob. cit., p. 477, nota 4).
(*) Deve, todavia, reconhecer-se que algumas das legislações mais qualificadas, que admitem o divórcio, afastam a possibilidade do divórcio por mútuo consentimento.
Além de não se impressionarem grandemente com os argumentos invocados no texto, os sequazes dessa orientação apontam à dissolução fundada na vontade dos cônjuges o grave defeito de, sendo o casamento não só uma relação pessoal, assente na vontade individual dos nubentes, mas ainda uma instituição de carácter social, que serve de base à família, ela olhar demasiado ao primeiro aspecto, desprezando bastante o segundo.
o projecto, aproveitando embora a ideia fundamental do articulado precedente, adoptou uma solução menos rígida.
O regime escolhido consistiu, por uma parte, em manter a separação por mútuo consentimento, e em permitir, por outra, a conversão da separação (tanto litigiosa, como amigável) em divórcio, a requerimento de qualquer dos cônjuges, passado que fosse certo período de tempo sem os separados se reconciliarem.
Nem assim, com semelhante amplitude, o texto logrou conquistar as boas graças dos divorcistas, que logo o taxaram de demasiado estreito, enquanto os partidários do anteprojecto hão-de por certo insurgir-se contra a excessiva -largueza dos critérios utilizados na revisão.
Qual é, porém, a ideia fundamental em que assenta o esquema fixado na nova lei?
Todos sabem que não faltam na vida quotidiana da generalidade dos casais, sem exceptuar os de melhor formação moral e religiosa, arrufos entre os cônjuges ou com os familiares de um e outro, quezílias, desavenças, incompreensões, que, por serem de sua natureza passageiras, o tempo acaba por sanar. Chegam os desavindos em muitos casos à separação de facto; mas vem mais tarde a reflexão, coadjuvada pela intervenção amigável de terceiros, as paixões serenam e as coisas recompõem-se, a vida prossegue, muitas vezes sem quaisquer novos incidentes do mesmo género.
Não raro sucede ainda que, algum tempo após o casamento, um dos cônjuges ou ambos eles se sentem como saturados da vida em comum; mas também na maior parte dos casos se trata de estados transitórios, que os meses e os anos ajudam a debelar, semelhantes em certo aspecto às crises que os filhos, após a puberdade, atravessam em relação à autoridade paterna.
Se, porém, as leis facilitarem a obtenção do divórcio, muitas destas situações mórbidas, que de outro modo seriam remediáveis com a acção terapêutica do tempo, acabam por conduzir à dissolução do casamento, criando posições irreversíveis.
A simples possibilidade do divórcio, diz-se com razão, gera o divórcio.
Além disso, se o divórcio por mútuo consentimento for rodeado de excessivas facilidades, a lei pode converter-se num estímulo ao casamento sem a necessária ponderação. As pessoas podem ser tentadas a casar, não com a consciência de quem contrai uma união perpétua ou presuntivamente perpétua, mas na ideia aligeirada de quem vai experimentar a vida em comum para, no caso de os temperamentos se não harmonizarem, ambas regressarem ao estado de liberdade anterior.
E os inconvenientes sociais das experiências matrimoniais são de tal modo graves e evidentes que supérfluo seria enumerá-los.
Ora, o sistema gizado de novo pretende exactamente dar aos cônjuges a margem de reflexão necessária para o tempo os auxiliar a distinguir entre as crises passageiras, as perturbações acidentais da sociedade conjugal e as situações de rompimento definitivo, de desentendimento irremediável; e quer eliminar, por outro lado, a tentação das experiências matrimoniais, sem renunciar às vantagens justamente reconhecidas ao divórcio por mútuo consentimento.
Não se faculta a obtenção directa do divórcio por mútuo consentimento, mas, como é viável a separação amigável, e a separação se pode converter ao cabo de algum tempo em cessação do vínculo, os cônjuges que pretendam divorciar-se não são tentados a defraudar a lei. forjando os fundamentos necessários para o divórcio litigioso; se estes existirem, podem ocultá-los, sujeitando-se apenas a

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uma caminhada mais lenta para o divórcio, em lugar de divulgá-los, com todo o cortejo de escândalos ligados à publicidade de caso, para alcançarem a mais rápida dissolução do casamento.
E como, além disso, entre o requerimento da separação, por onde os cônjuges são forçados a principiar, e a decretação do divórcio definitivo, que põe termo ao vínculo conjugal, medeiam necessariamente vários anos, não há grande perigo das experiências matrimoniais, e a lei garante o lapso de tempo suficiente para que a ponderação própria e a intervenção alheia curem as mazelas conjugais que sejam na verdade sanáveis.
O projecto fixava em cinco anos o período mínimo de duração de casamento para aos cônjuges ser lícito requerer a separação por mútuo consentimento, e em outros cinco o tempo necessário para que a separação seja conversível em divórcio.
O código reduziu ambos os prazos para três anos, por se ter entendido que a redução permite acudir com maior brevidade a algumas situações irreversíveis, sem quebra sensível dos essenciais a que aponta o dispositivo legal.
Outra alteração importante consistiu em identificar os fundamentos do divórcio e da separação litigiosa, mediante o alargamento dos primeiros e a redução dos segundos. O primeiro termo da composição não colide com a ideia essencial da lei, que é a de não estender o divórcio aos casos em que não haja procedimento culposo de algum dos cônjuges; a redução das causas da separação pouco ou nenhum interesse prático reveste, perante a amplitude a cláusula geral de separação que foi mantida no código [artigo 1778.º, g)].
Em contrapartida, a equiparação dos fundamentos do divórcio e da separação torna mais compreensível a faculdade excepcional que a lei confere ao juiz de decretar apenas a separação quando o cônjuge ofendido tenha requerido o divórcio e feito prova dos respectivos fundamentos, mas o tribunal disponha de razões especiais para considerar seriamente desaconselhada a dissolução do casamento.
A matéria em que o código pôde consagrar inovações mais significativas é, sem dúvida, a filiação ilegítima.
Dentro do vasto capítulo da filiação que não se prende com os laços do matrimónio, dois aspectos importantes convém destinguir: um refere-se ao reconhecimento da filiação; o outro, aos efeitos do reconhecimento, à posição jurídica do filho ilegítimo.
Quanto ao primeiro aspecto, como o Prof. Gomes da Silva salientou, a legislação vigente mostra-se ainda muito embaraçada com as peias que o liberalismo individualista foi buscar às restrições impostas pela vontade do progenitor. O projecto reagiu francamente contra semelhantes limitações, não se contentando com admitir a indagação oficiosa da maternidade e paternidade ilegítimas, mas impondo a averiguação oficiosa de uma e outra como regra.
O anúncio das medidas propostas mereceu o aplauso geral do País pois elas devem contribuir de forma eficaz para o saneamento moral de muitas situações que até aqui se deterioravam sem salvação possível, perante a inércia agnóstica da lei.
A revisão final dos textos acabou por consagrar ainda uma outra em ovação, cujos efeitos práticos correm parelhas com as providências já contidas no projecto.
Trata-se de perfilhação dos filhos adulterinos.
São em grande número, infelizmente, os filhos nascidos da infidelidade de um dos cônjuges, não só em Portugal, mas também nos restantes países (1). E uma chaga moral no corpo da colectividade que aos políticos e moralistas cumprirá combater nas suas causas, mas que o legislador não pode ignorar nos seus efeitos, como realidade social carecida de tutela jurídica.
Segundo a legislação vigente, os filhos nascidos em tais condições não podem ser perfilhados publicamente pelos seus progenitores. Se o cônjuge adúltero é a mãe, e a maternidade é declarada no registo, consideram-se como filhos legítimos do casal, enquanto a paternidade legítima não for eficazmente impugnada. Sendo o cônjuge adúltero o pai, este só pode perfilhar secretamente, a menos que o outro cônjuge consinta na perfilhação - assentimento que, como é de supor, poucas vezes se manifesta. O resultado prático do sistema não é brilhante. Grande parte dos filhos adulterinos, porque nem os progenitores verdadeiros, nem o pai presuntivo, se importem grandemente com a fixação exacta da filiação, nascem, vivem e morrem como se filhos legítimos fossem, só porque a lei se divorcia por completo das realidades ia vida.
Noutro grande contingente de casos, como a mãe adúltera sinta algum pejo de atribuir o filho ao marido que o casamento lhe deu e a lei não permita que no registo figure o nome do verdadeiro pai, a criança aparece registada como filha de pais incógnitos.
Num último núcleo de situações, quando o cônjuge adúltero é o pai, e a mãe não é inábil, a perfilhação paterna ou não se faz, ou apenas se faz secretamente, porque o cônjuge do perfilhante se recusa por via de regra a dar o consentimento necessário à perfilhação pública; e como a perfilhação, enquanto se não levanta o carácter secreto que a rodeia, nenhuns efeitos produz na vida prática, aí tem a sociedade um contingente mais, bastante numeroso, de filhos cuja situação real não encontra expressão adequada nas tábuas do sistema jurídico.
Eis em traços muito breves, mas creio que bastante expressivos, a descrição de um panorama que, não sendo porventura muito agradável à vista do observador, é todavia um quadro da vida real, que carece de revisão, para prestígio da verdade e autoridade da lei, e ainda para protecção dos que, sendo as principais vítimas da situação, nenhuma culpa têm na sua origem.
O projecto dera já alguns passos, importantes sem dúvida, na resolução do problema, quando admitiu a impugnação da paternidade legítima em acção proposta pelo Ministério Público, a requerimento de quem se considera o verdadeiro progenitor, e quando deixou de considerar a inabilidade do pretenso pai como obstáculo decisivo à investigação da paternidade ilegítima.
O código leva agora mais longe a incursão efectuada em terrenos considerados defesos pela actual legislação, ao permitir a perfilhação por parte do pai adúltero, sem necessidade do consentimento do outro cônjuge. Os inconvenientes que a solução possa ter, mais teóricos que reais, são em larga proporção excedidos pelas vantagens que permite alcançar, não só no plano da verdade dos factos ou da autenticidade das soluções, mas também quanto à oportunidade da protecção que todos os pais devem aos filhos.
Não pareceu conveniente ir mais longe, especialmente no que se refere à impugnação da paternidade legítima, porque a solução de admiti-la sem dependência de requerimento do pai presuntivo ou daquele que se arroga a verdadeira paternidade, ou seus herdeiros, além de se
1) No opúsculo da Fortuna, Jorio, Pandini, p. 34, calcula-se em 30 000 o número de filhos adulterinos nascidos por ano em Itália.

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não harmonizar com a doutrina de alguns preceitos salutares do sistema, poderia causar as mais graves perturbações no seio das famílias.
Relativamente à posição jurídica dos filhos ilegítimos, a orientação do projecto mereceu algumas críticas; porém, falhas de razão.
Houve quem advogasse uma plena equiparação dos filhos ilegítimos à posteridade legítima, esquecendo que a doutrina nem é razoável, nem corresponde à tutela especial que as leis devem à família legalmente constituída.
O legislador foi tão longe quanto poderia ir, sem quebra dos bons princípios.
Assim, relativamente ao poder paternal, a lei atribui aos pais ilegítimos que hajam reconhecido voluntariamente o filho os mesmos direitos e deveres que têm os pais legítimos, à excepção do usufruto legal dos bens do filho menor.
Se à herança paterna forem apenas chamados filhos ou outros descendentes ilegítimos, as regras aplicáveis tanto à sucessão legítima como à sucessão legitimaria são as mesmas que vigoram para a posteridade legítima.
Só quando à herança concorram simultaneamente descendentes legítimos e ilegítimos a lei, como não deveria deixar de o fazer, concede aos primeiros um tratamento de superioridade, mediante a atribuição de uma quota sucessória maior. Pondo de lado a especiosa distinção que o direito vigente estabelece entre filhos perfilhados antes e filhos perfilhados depois do casamento, o novo código equipara todos os filhos ilegítimos, para a cada um deles atribuir uma quota igual (a metade do quinhão que toca a cada um dos legítimos.
É uma solução equilibrada, mas que marca, com a nitidez suficiente, a primazia de que desfruta a família regularmente constituída em face da que nasce dos frágeis liames das situações irregulares ou se prende nos laços condenáveis do adultério.
No largo capítulo das sucessões, uma única solução foi necessário sujeitar a novo exame: a relativa à posição sucessória do cônjuge sobrevivo.
O projecto apresentava no capítulo da família uma solução engenhosa para a partilha do casal, a qual permitia, sem risco aparente, pôr termo ao usufruto que a legislação vigente concede ao cônjuge sobrevivo, quando os herdeiros legítimos chamados a recolher a herança são os irmãos ou sobrinhos do falecido.
Foram, no entanto, especialmente sopesados os dois principais inconvenientes da solução proposta: por um lado, passaria à titularidade do cônjuge sobrevivo o domínio dos bens, que a convenção de um regime de separação tem por fim manter na família do finado e impedir se comunique, em detrimento dela, à família do outro consorte; por outro lado, o cônjuge supérstite seria forçado, no exercício da opção que lhe era imposta, a renunciar ao uso de bens que, constituindo a base económica ou material do lar, não é justo, nem razoável, que transitem para & posse imediata de outras pessoas.
Confrontando estes inconvenientes com os aspectos negativos, que são justamente imputados ao direito de usufruto em geral, julgou-se preferível manter neste ponto o regime fixado pela legislação em vigor, abandonando a curiosa sugestão do projecto.
Desta sorte, Sr. Presidente e Srs. Deputados, somos chegados ao ponto que a um tempo marca o termo da nossa longa exposição e assinala o encerramento oficial da mais árdua e da mais espinhosa entre todas as tarefas a que pudemos meter ombros em doze anos de intensa actividade governativa.
Apesar de muito, se ter falado já no longo período de trabalho que foi necessário para erguer no solo das instituições pátrias o verdadeiro padrão jurídico que é o novo Código Civil, muito poucos poderão imaginar a soma de canseiras, as resistências que foi necessário vencer, as vigílias, as apreensões, as ilusões desfeitas, os sacrifícios de toda a ordem, os desgostos até, que ficam como enterrados no sopé do monumento, por nem de longe transluzirem nos dois mil e tantos artigos de lei que são o pedestal e o remate escultórico de toda a obra.
A Providência, que tão generosa foi com este modesto servidor do direito ao conceder-lhe o honroso privilégio de participar no empreendimento, do mesmo passo lhe impõe o grato encargo de exprimir aos diferentes colaboradores do Governo o reconhecimento público de que são incontestáveis credores, já pelo penoso esforço que muitos despenderam, já pelo mérito excepcional da reforma que todos ajudaram a executar.
No agradecimento que a sociedade deve aos obreiros da nova lei, é justo colocar em plano bem elevado os professores e os assistentes das duas Faculdades de Direito, visto a substância essencial do código ser o produto do labor científico em que, de mãos dadas, colaboraram os civilistas das duas escolas. Mas não deve ser esquecido, nem o prestimoso e devotado auxílio que magistrados, advogados e técnicos dos registos e notariado prestaram nas sucessivas revisões do textos, nem as valiosas sugestões fornecidas por quem discretamente se dirigiu ao Ministério, ou por quem veio a público discutir .o projecto através da imprensa, quer pelas correcções e aperfeiçoamentos que muitos proporcionaram, quer pela maior autenticidade representativa que com as suas críticas e objecções imprimiram à missão legislativa do Governo.
O Ministério da Justiça contraiu ainda uma dívida especial de gratidão, que gostosamente me cumpre saldar, junto dos Ministérios da Educação Nacional e das Finanças: o primeiro, pelas facilidades que nunca regateou quanto à inestimável participação dos professores universitários nos estudos da codificação; o segundo, pelo apoio material que ao longo de vinte e dois anos concedeu à execução da reforma.
Penso que ninguém dará por malbaratado o tempo gasto, nem lamentará os sacrifícios que porventura haja feito.
Se a consagração nas formas lapidares da lei representa já a mais nobre coroação a que podem aspirar as conquistas do pensamento jurídico, seja no exercício da investigação científica, seja no desempenho da função docente, nenhuma outra empresa, mais que a reforma do direito civil, permitirá ao jurista conciliar os deveres cívicos que a comunidade lhe impõe com o culto da ciência a que a devoção profissional o obriga.
Pela extensão das matérias que abarca, pela profundidade dos conceitos que reflecte, pelos sectores da vida que abrange e é chamado a disciplinar, o Código Civil ficará sempre, na história do direito constituído, como uma das mensagens culturais mais expressivas da época a que pertence.
Se os acontecimentos políticos de 1834, no dizer de Oliveira .Martins, assinalam a passagem das fórmulas históricas e absolutistas para as fórmulas revolucionárias e individualistas; se a codificação levada a bom termo pelos homens de 1867 representa, no plano jurídico, a definitiva transição de uma sociedade feudal, de feição acentuadamente monástica e senhorial, para uma economia burguesa de vincada expressão liberal; com igual fundamento se pode asseverar que o novo diploma legislativo marca, no vasto sector do direito privado, a vira-

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guem decide do liberalismo individualista e do raciona-lismo naturalista para uma concepção orgânica da sociedade civil, que, respeitando os direitos inumeráveis da pessoa humana, afirma deliberadamente a supremacia do bem comum sobre os puros interesses dos indivíduos ou sobre as meras conveniências dos grupos. O antigo esplendor de postulados como a autonomia da vontade e a liberdade (negociai, em grande parte artificialmente criado pela filosofia do individualismo, esbate-se agora perante a luz forte dos princípios morais de uma ordem jurídica que. não confiando já no equilíbrio espontâneo das forças da natureza em plena liberdade, se funda nos vínculos de solidariedade que unem os homens entre si e na justiça que fortalece a coesão das sociedades humanas.
E a réplica dada pelo direito, com todas as exigências da boa fé, da justiça e da própria equidade, apoiadas na autoridade superior do Estado, a uma economia que foi sucessivamente evoluindo do livre-cambismo para o domínio dos sistemas intervencionistas; é a resposta da legislação civil a uma sociedade na qual os vínculos paternalistas dos pequenos meios rurais se desagregam, pouco a pouco, à proporção que as novas estruturas industriais engrossam cada vez mais as grandes concentrações urbanas.
Tanto, porém, como símbolo representativo de uma época, nas coordenadas temporais do espírito, o código pode ser considerado, nas dimensões espaciais da humanidade, a imagem fiel de um povo.
Haverá, sem dúvida, em múltiplos lugares do sistema, especialmente na parte geral das obrigações, numerosos ensinamento; que os autores foram beber nas fontes da doutrina estrangeira, a par de muitas soluções que a lei importou directamente da legislação de outras nações.
Mas acima de toda a contribuição recebida através da ciência pelo influxo do direito comparado, numa assimilação que reflecte já a formação específica do nosso meio, o que avulta dentro do código, na disciplina dos contratos, na organização da propriedade, na constituição e defesa da família, na repartição das heranças, nas próprias relações com os cidadãos estrangeiros, são as estruturas nacionais, os usos das nossas terras, os critérios de justiça, e até a sabedoria e a intuição prática da nossa gente, a nossa terminologia jurídica, as tradições ancestrais da comunidade lusitana numa palavra, a imagem típica que a história foi modelando com a mão segura do tempo sobre o carácter do povo português.
O Código Civil será assim o espelho intelectual de uma geração na literatura jurídica nacional; mas a nova ordem jurídica, no retrato moral que as próprias leis nos transmitem das pátrias suas destinatárias, é acima de tudo como um pedaço do corpo e da alma de Portugal, no depoimento que lega aos vindouros sobre a inteligência e a sensibilidade dos Portugueses espalhados pelo Mundo.
Obra de grandes proporções, estudada e laboriosamente preparada, com excepcional afinco, por um escol qualificado cê investigadores, os Portugueses não teriam possibilidades de concluí-la, muito menos de vê-la frutificar no campo das realidades jurídicas, senão num período de paz interna e numa época de estabilidade política como aquela que vimos usufruindo há boas dezenas de anos.
Erro grave seria não reconhecer esta verdade elementar, e feia ingratidão seria a dos juristas que, no termo da empreitada que adjudicaram, não tivessem nos lábios uma palavra de simpatia como tributo de reconhecimento ao governante a quem todos devemos a tranquilidade de espírito essencial a tarefas desta natureza e a empreendimentos de tamanha extensão.
Vozes: -Muito bem, muito bem l
O Sr. Ministro da Justiça: - Não são, aliás, as condições de trabalho proporcionadas aos colaboradores do código, no ambiente calmo das instituições nacionais, o único vínculo espiritual que liga o nascimento do diploma à obra governativa do Doutor Salazar.
O código representa um marco miliário no movimento de reacção que dentro do direito privado se foi paulatinamente processando contra o primado filosófico do liberalismo individualista. Pois cumpre lembrar que o Doutor Salazar foi, tanto no pensamento como na acção, o pioneiro doutrinário mais lúcido e o dirigente mais operoso na luta contra a influência ruinosa que o individualismo, desde o período agitado das lutas liberais, exerceu na vida política da comunidade nacional.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - O País ficou a dever-lhe, ninguém ousará contestá-lo, a iniciativa e a própria direcção de um combate sério, persistente, sem tréguas nem quartel, contra processos, ideias e hábitos que, a despeito de se terem enraizado no terreno das instituições, não floresciam, nem frutificavam, em termos de satisfazer os superiores interesses da colectividade. Mas, no comando activo desta profunda transformação social, o Chefe do Governo, como político e como pensador, tornou-se ainda credor do nosso reconhecimento por um outro serviço, complementar do primeiro, mas não menos grato do que este ao espírito dos homens de pensamento e ao coração das pessoas de recta consciência. É que a reacção contra os malefícios do individualismo, graças à sua intervenção firme e à sua sólida formação doutrinária, nunca arrastou às nossas instituições políticas, económicas ou sociais para os excessos totalitários de que outros povos acabaram por ser vítimas.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - A moderação cristã do colectivismo nacionalista português, verdadeiro título de glória do sistema, permitiu que a consciência pública se não transviasse, no mar revolto dos acontecimentos, durante o período de maior desorientação ideológica que a Europa viveu, antes de nela grassar a febre do anticolo-nialismo; mas valeu ainda aos próprios adversários e detractores do Regime, a muitos dos quais salvou a vida durante os anos sombrios da guerra, e continuou depois a garantir a segurança e a prosperidade de que desfrutaram.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Ministro da Justiça: - Também desse personalismo cristão muitos vestígios podereis encontrar nas in-junções normativas do novo código.
Perante os textos constitucionais em vigor, nenhum obstáculo se levantaria à publicação do Código Civil fora do período de funcionamento efectivo da Assembleia, subtraindo desse modo o diploma à expectativa de uma apreciação parlamentar; entendeu, porém, o Governo que por óbvias razões o não deveria fazer.
Se a Assembleia ratificar o decreto-lei que o aprova, o Código Civil converter-se-á em direito vigente no próximo dia 1 de Junho e, ingressando desde já no corpo de leis da Nação, passará a constituir parte integrante do património legislativo do Estado. Será então caso de

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dizer: Preparámos e discutimos até aqui o projecto; vamos agora estudar e aplicar o novo código.
Posto isto, apenas me restará agradecer a atenção com que a Assembleia me ouviu e concluir por onde as regras da boa lógica e as veneráveis praxes desta Casa ordenariam que o orador começasse as suas considerações - e por onde certamente o expositor teria principiado, se o peso da responsabilidade que as circunstâncias abateram sobre os seus frágeis ombros o não impedisse de desviar os sentidos do solene documento que aqui veio tentar esclarecer com as fracas luzes da sua sabedoria.
Nada mais grato, porém, ao meu espírito de jurista e ao meu coração de patriota convicto do que saudar respeitosamente os membros ilustres da representação nacional, evocando com o recolhimento devido, entre as paredes augustas desta sala, a memória respeitável dos grandes vultos que a iluminaram com o fulgor da sua inteligência, a prestigiaram com o verbo eloquente da sua imaginação e a dignificaram com o zelo do seu acendrado patriotismo.
E permitam os Srs. Deputados que, na saudação dirigida à Assembleia, eu distinga a pessoa a tantos títulos ilustre do vosso digno presidente.
Figura cimeira do pensamento nacional, doutrinado esclarecido, jurisconsulto distinto e professor eminente, com uma folha brilhante de serviços prestados ao País, entre os quais justo e oportuno é realçar a negociação da Concordata com a Santa Sé, homem de rija têmpera, senhor de convicções firmes como a rocha granítica da região em que nasceu e onde talhou a sua forte personalidade, o Doutor Mário de Figueiredo há muito se impôs ao respeito e à consideração dos seus concidadãos como homem de carácter, daqueles sobre cuja vida parece assentar como uma luva a expressão lapidar do grande clássico: «Homem de um só parecer, de um só rosto e de uma fé».
Nestas razões do apreço geral que lhe é devido, nos laços de fraternidade espiritual que nos prendem à escola que ambos nos honramos de servir, encontrará V. Ex.ª, Sr. Presidente, o fundamento real da respeitosa admiração que publicamente me apraz testemunhar e da profunda emoção com que afectuosamente o saúdo, ao dar por finda, perante a Assembleia Nacional, a maior obra legislativa que, no decurso deste século, os juristas portugueses puderam oferecer ao País.
Terminado o discurso, a Assembleia e a assistência dispensaram ao Sr. Ministro da Justiça uma prolongada salva de palmas.
O Sr. Presidente: - Interrompo a sessão por uns momentos, para acompanhar o Sr. Ministro da Justiça à saída da sala das sessões.
O Sr. Presidente acompanhou o Sr. Ministro das Justiça.
O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão. Reaberta, para ser encerrada.
Convoquei as Comissões de Economia e Finanças para se reunirem na próxima terça-feira e dias seguintes, a fim de estudarem a proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1967.
Neste momento ainda não posso marcar o dia da próxima sessão plenária. Inclino-me a crer que essa sessão não poderá ser antes do dia 7 de Dezembro, mas não posso ainda dizer com segurança quando será. VV. Ex.ªs serão informados, através do Diário das Sessões ou dos
serviços da Assembleia, da data dessa sessão e da ordem do dia, que, aliás, já calculam qual seja: precisamente a discussão da proposta de lei de autorização das receitas e despesas, que, como não ignoram, tem de constitucio-nalmente estar votada até ao dia 15 de Dezembro.
V. Ex.ªs têm já elementos para fazer o estudo dessa proposta de lei. Ainda não têm o parecer da Câmara Corporativa, mas vão tê-lo, suponho eu, por volta do dia 5, pelo menos em provas. Tenho a informação de que no dia 7 estará entregue oficialmente na Assembleia o referido parecer.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 45 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António Augusto Ferreira da Cruz.
António José Braz Regueiro.
Augusto César Cerqueira Gomes.
Filomeno da Silva Cartaxo.
Francisco António da Silva.
Francisco José Cortes Simões.
Hirondino da Paixão Fernandes.
João Duarte de Oliveira.
José Alberto de Carvalho.
José Coelho Jordão.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José de Mira Nunes Mexia.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Júlio Dias das Neves.
Manuel Nunes Fernandes.
Rui Pontífice de Sousa.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto Henriques de Araújo.
Alberto Pacheco Jorge.
Álvaro Santa Rita Vaz.
António Barbosa Abranches de Soveral.
António Calheiros Lopes.
António Júlio de Castro Fernandes.
António Manuel Gonçalves Bapazoto.
Armando José Perdigão.
Artur Alves Moreira.
Aulácio Rodrigues de Almeida.
Custódia Lopes.
Ernesto de Araújo Lacerda e Costa.
Fernando Afonso de Melo Giraldes.
Francisco Cabral Moncada de Carvalho (Cazal Ribeiro).
Henrique Veiga de Macedo.
Jaime Guerreiro Rua.
José Pinheiro da Silva.
José Rocha Calhorda.
Luciano Machado Soares.
Luís Folhadela Carneiro de Oliveira.
Manuel A morim de Sousa Meneses
Manuel Henriques Nazaré.
Manuel João Correia.
Manuel Lopes de Almeida.
Rafael Valadão dos Santos.
Raul Satúrio Pires.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Rui Manuel da Silva Vieira.
Sinclética Soares Santos Torres.
O REDACTOR - António Manuel Pereira.

IMPRENSA NACIONAL DB LISBOA

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