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Diário das Sessões
2.° SUPLEMENTO AO N.° 100
ANO DE 1971
3 DE JUNHO
ASSEMBLEIA NACIONAL
X LEGISLATURA
Proposta de lei n.° 15/X
Liberdade religiosa
O princípio da liberdade religiosa foi introduzido em Portugal pela Lei da Separação do Estado das Igrejas, aprovada pelo Decreto de 20 de Abril de 1911, embora a Constituição de 1822 (artigo 25.°) e a Carta Constitucional . (artigo 6.°) já permitissem aos estrangeiros o culto particular ou doméstico de religiões diferentes da católica e tanto a Carta (artigo 145.°, § 4.°) como a Constituição de 1838 (artigo 11.°) fixassem a regra de que ninguém podia ser perseguido por motivos de religião, contanto que respeitasse a do Estado. Repetido depois pela Constituição de 1911 (artigo 3.°, n.°s 4.° ,a 10.°) e recebido pela Constituição vigente (artigos 8.°, n.° 3.°, 45.°, 46.° e 139.°), o princípio pode considerar-se hoje aquisição definitiva do património jurídico e cultural do País.
O Decreto de 20 de Abril de 1911, porém, ao mesmo tempo que separava o Estado da igreja católica e reconhecia a liberdade de consciência, submetia as confissões religiosas a um regime que dificultava a sua acção. Em princípio, o exercício dos vários direitos em que a liberdade religiosa se desdobra ficaria submetido às normas comuns. Mas em diversos pontos estas eram derrogadas por preceitos que atribuíam à prática religiosa um tratamento de desfavor. Assim, do mesmo passo que se confiscava grande parte dos bens da igreja católica e que se estabeleciam disposições lesivas da natural autonomia interna das confissões religiosas e da igreja católica em particular, não se reconhecia personalidade jurídica às confissões e proibiam-se as associações puramente religiosas, restringiam-se os direitos patrimoniais das corporações encarregadas do culto, limitava-se a liberdade de culto e de práticas religiosas . . .
Vários diplomas posteriores, designadamente o Decreto n.° 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, e o Decreto n.° 11 887, de 6 de Julho de 1926, foram afastando as disposições mais gravosas da Lei da Separação e procuraram remediar as consequências da sua aplicação. E com a Concordata a igreja católica acabou por ver satisfeitas as suas aspirações.
Todavia, não voltou a tentar-se, depois daquela Lei, uma reformulação sistemática das normas fundamentais relativas à liberdade religiosa, que & variedade dos diplomas que actualmente regulam a matéria torna conveniente. Por outro lado, o próprio regime fixado para a igreja católica, justificando-se pela posição peculiar da religião católica, fez avultar as deficiências do tratamento conferido às outras confissões.
Na prática, estas deficiências fazem-se sentir, sobretudo no domínio do direito de associação. As confissões religiosas não católicas têm vivido uma situação de mero facto, com prejuízo para elas e para o próprio Estado. E, se é certo que o Código Administrativo, nos seus artigos 449.° e 450.°, reconhece personalidade jurídica às associações cujo fim principal seja a sustentação do culto, mediante o simples registo da participação escrita da sua constituição, entendeu-se que este regime pressupõe o prévio reconhecimento da confissão, de maneira que tais preceitos não têm funcionado quanto às associações religiosas não católicas.
Na proposta de lei que o Governo agora tem a honra de apresentar à Assembleia Nacional procurou-se definir e sistematizar as normas fundamentais relativas à liber-

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dade religiosa. Deixaram-se, no entanto, de fora os aspectos penais da matéria, por se considerar que a revisão das disposições actualmente vigentes nesse domínio deveria enquadrar-se no sistema e no espírito da reforma genérica do direito penal. Apenas se consignaram, por isso, as disposições criminais imediata e absolutamente indispensáveis.
Quanto ao exercício dos vários direitos em que a liberdade religiosa se traduz, manteve-se a regra de que, em princípio, são aplicáveis as normas gerais relativas aos mesmos. Admitiram-se, todavia, importantes desvios a tal regra. Com efeito, o carácter particular do objecto dos diversos direitos que se inserem na liberdade religiosa não pode deixar de reflectir-se no seu tratamento jurídico. A profundidade e a intimidade das opções e dos comportamentos religiosos exigem um respeito especial da parte da lei e do Estado e impõem que se reconheça uma autonomia particular às organizações correspondentes às confissões religiosas. Por isso se mantiveram os regimes especiais já vigentes quanto à liberdade de reunião para fins de culto e à liberdade de associações religiosas. Por igual razão se propõem normas novas, também especiais, quanto ao reconhecimento, personalidade jurídica e funcionamento das confissões religiosas e liberdade para ensino e formação religiosas.
Salvaguardaram-se, evidentemente, as normas particulares que vigoram para a igreja católica.
Por fim, aponte-se que, de acordo com o disposto na Constituição, se submete à apreciação da Assembleia apenas a disciplina do exercício da liberdade religiosa na metrópole. Mas o regime que vier a ser aprovado haverá naturalmente de ser estendido, nos termos constitucionais, ao ultramar.
Nestes termos, o Governo, ouvida a Câmara Corporativa, apresenta a seguinte
Proposta de lei
I
Princípios fundamentais
Base I
O Estado reconhece e garante a liberdade religiosa das pessoas e assegura às confissões religiosas a protecção jurídica adequada.
Base II
1. 0 Estado não professa qualquer religião e as suas relações com as confissões religiosas assentam no regime de separação.
2. As confissões religiosas têm direito a igual tratamento, ressalvadas as diferenças impostas pela sua diversa representatividade.
II
Conteúdo e extensão da liberdade religiosa
Base III
E lícito às pessoas, em matéria de crenças e de culto religioso:
a) Ter ou não ter religião, mudar de confissão ou abandonar a que tinham, agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que pertençam; •
b) Exprimir as suas convicções pessoais de acordo com a lei geral;
c) Difundir pela palavra, por escrito ou outros
meios de comunicação a doutrina da religião que professam;
d) Praticar os actos de culto, particular ou público, próprios da religião professada.
Base IV
1. Ninguém será obrigado a declarar se tem ou não religião, nem qual a religião que professa, a não ser, com carácter confidencial, em inquérito estatístico ordenado por lei.
2. Ninguém pode ser perseguido, nem privado de um direito ou isento de um dever, por causa das suas convicções religiosas; e nenhuma discriminação se fará, por motivo delas, no acesso aos cargos públicos ou na atribuição de quaisquer honras ou dignidades oficiais.
Base V
1. É lícita a reunião das pessoas para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos da vida religiosa.
2. O culto público das confissões religiosas reconhecidas que tenha lugar dentro dos templos ou lugares a ele especialmente destinados, bem como a celebração dos ritos próprios dos actos fúnebres dentro dos cemitérios, não depende de autorização oficial nem de participação às autoridades civis.
Base VI
1. A assistência a actos de culto religioso, ainda que celebrados em unidades militares ou em estabelecimentos públicos, é facultativa.
2. Podem, todavia, os actos de culto religioso ser prescritos em estabelecimentos educativos ou de formação, ou em instituições penitenciárias ou de reeducação, com carácter obrigatório para os menores cujos pais ou tutores não hajam pedido isenção.
Base VII
1. O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País.
2. 0 ensino da religião e moral nos estabelecimentos de ensino será ministrado aos alunos cujos pais ou quem suas vezes fizer não tiverem feito pedido de isenção.
3. Os alunos maiores de 18 anos poderão fazer eles próprios o pedido de isenção.
4. Para o efeito, no acto de inscrição em qualquer estabelecimento em que se ministre o ensino de religião e moral aquele a quem competir declarará se o quer ou não.
5. A inscrição em estabelecimentos de ensino mantidos por entidades religiosas implica a presunção da 'aceitação do ensino da religião e moral da respectiva confissão, salvo declaração pública em contrário dos respectivos dirigentes.
Base VIII
1. A ninguém será lícito invocar a liberdade religiosa para a prática de actos que sejam incompatíveis com a vida, a integridade física ou a dignidade das

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pessoas, os bons costumes, os princípios fundamentais da ordem constitucional ou os interesse da soberania portuguesa.
2. Não são consideradas religiosas as actividades relacionadas com os fenómenos metapsíquicos ou parapsíquicos.
III
Do regime das confissões religiosas
A) Das confissões religiosas em geral
Base IX
1. As confissões religiosas podem obter reconhecimento que envolverá a atribuição de personalidade jurídica à organização correspondente ao conjunto dos respectivos fiéis.
2. O reconhecimento será pedido ao Governo, em requerimento subscrito por um número não inferior a 500 fiéis, maiores e domiciliados em território português.
3. Do requerimento devem constar os documentos necessários à prova da existência da confissão em território nacional, incluindo os princípios essenciais da sua doutrina, o nome da confissão, a descrição geral dos actos de culto, as regras de disciplina e hierarquia da organização, a identidade dos dirigentes e a duração da sua prática no País; na falta de indicações suficientes, a entidade competente fixará o prazo dentro do qual o requerimento haja de ser completado.
4. Se a organização tiver estatuto estrangeiro ou depender de outra com estatuto estrangeiro, poderá o Governo exigir não só os meios de prova necessários ao pleno conhecimento do regime a que ela fica sujeita, como a subscrição do requerimento por parte das entidades responsáveis.
5. O Governo pode ordenar os inquéritos que julgue indispensáveis à prova, tanto da existência da confissão, como da prática efectiva do seu culto em território nacional, e pode dispensar a prova de qualquer destes requisitos quanto às confissões há mais tempo radicadas em território português.
6. O reconhecimento será recusado:
a) Se a doutrina, as normas ou o culto da confissão contrariarem o. disposto na base VIII;
b) Se o requerimento não obedecer aos requisitos exigidos nesta base ou as suas indicações não forem verdadeiras.
Base X
1. O reconhecimento pode ser revogado pelo Governo quando se mostre que a organização é responsável pela violação do disposto na base viu, actua por meios ilícitos ou se dedica a actividades estranhas aos fins próprios das confissões religiosas.
2. Notificada a revogação do reconhecimento, cessarão imediatamente as actividades da organização, incorrendo em crime de desobediência todos os que nela prosseguirem.
Base XI
1. As confissões religiosas legalmente reconhecidas podem organizar-se de harmonia com as suas normas internas.
2. Às confissões religiosas reconhecidas ó permitido formar associações ou institutos destinados a assegurar o exercício do culto.
Base XII
1. São consideradas religiosas as associações ou institutos constituídos ou fundados com o fim principal da sustentação do culto de uma confissão religiosa já reconhecida, de harmonia com as normas e disciplina dessa confissão.
2. As associações ou institutos religiosos adquirem personalidade jurídica mediante o acto de registo da participação escrita da sua constituição pelo órgão competente da confissão religiosa reconhecida; a participação será apresentada e o registo efectuado nos termos que em regulamento forem fixados.
3. Em caso de modificação ou extinção da associação ou instituto, far-se-á participação e registo nos termos estabelecidos para a sua constituição.
Base XIII
A revogação do reconhecimento de uma confissão religiosa determina a extinção das respectivas associações ou institutos religiosos, e bem assim das outras pessoas colectivas que dela dependam.
Base XIV
1. As organizações correspondentes às confissões religiosas e as associações e institutos religiosos administram-se livremente, dentro dos limites da lei, sem prejuízo do regime vigente para as associações religiosas que se proponham também fins de assistência ou de beneficência e para os institutos de assistência ou de beneficência fundados, dirigidos ou sustentados por associações religiosas.
2. As organizações correspondentes às confissões religiosas e as associações ou institutos religiosos não podem ser submetidos ao regime de tutela.
Base XV
1. As pessoas colectivas religiosas não carecem de autorização para a aquisição dos bens necessários à realização dos seus fins, mesmo que se trate de bens imóveis e a aquisição se faça a título oneroso, nem para a alienação ou oneração dos bens imóveis a qualquer título.
2. Os bens destinados a proporcionar rendimento não são considerados necessários à prossecução dos fins das pessoas colectivas religiosas e a sua aquisição está sujeita ao disposto na lei geral.
Base XVI
1. As confissões religiosas reconhecidas têm o direito de assegurar a formação dos ministros do respectivo culto, podendo criar e gerir os estabelecimentos adequados a esse fim.
2. Os estabelecimentos referidos no número anterior estão sujeitos h fiscalização do Estado, mas apenas para o efeito de ser garantido o respeito das leis e dos limites impostos pelo n.° 1 da base VIII.
3. Os estabelecimentos que não se restrinjam a ministrar a formação e ensino religiosos ficam submetidos, nessa medida, ao regime previsto para os estabelecimentos de ensino particular.
Base XVII
A construção ou instalação de templos ou lugares destinados à prática do culto só é permitida quando este seja de confissões religiosas reconhecidas, mas não depende de autorização especial, estando apenas sujeita às disposições administrativas de carácter geral.

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B) Do regime especial da igreja católica
Base XVIII
1. Ficam salvaguardadas todas as disposições da legislação vigente, nomeadamente as contidas na Concordata de 7 de Maio de 1940, que respeitam à religião e à igreja católica.
2. São aplicáveis às pessoas colectivas católicas as disposições desta lei que não contrariem os preceitos concordatàriamente estabelecidos.
IV
Do sigilo religioso Base XIX
1. Os ministros de qualquer religião ou confissão religiosa devem guardar segredo sobre todos os factos que lhes tenham sido confiados ou de que tenham
tomado conhecimento em razão e no exercício das suas funções, não podendo ser inquiridos sobre eles por nenhuma autoridade.
2. A obrigação do sigilo persiste, mesmo quando o ministro tenha deixado de exercer o seu múnus.
3. Consideram-se ministros da religião ou da confissão religiosa aqueles que, de harmonia com a organização dela, exerçam sobre os fiéis qualquer espécie de jurisdição ou cura de almas.
Base XX
A violação do sigilo religioso é punida com a pena de prisão maior de dois a oito anos, quando consista na revelação de factos confidenciados segundo as práticas da religião ou confissão religiosa, e com a pena de prisão até seis meses, nos outros casos.
Presidência do Conselho, 1 de Junho de 1971. — O Presidente do Conselho, Marcello Caetano.
Imprensa Nacional
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