Página 2287
REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETÁRIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
ANO DE 1971 30 DE JUNHO
X LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.º 114 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 29 DE JUNHO
Presidente: Ex.mo Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto
Secretários: Ex.mos Srs.João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.01 109 e no do Diário das Sessões, com rectificações dos Srs. Deputados Casal Ribeiro, David Laima e Maximiliano Fernandes.
Deu-se conta do expediente.
Remetido pela Presidência do Conselho, para cumprimento do disposto no § S.º do artigo 109.º da Constituição, foi recebido na Mesa o Diário do Governo, n.º 148, incluindo o Decreto-Lei n.º 283/71.
Usou da palavra o Sr. Deputado Duarte do Amaral para se referir à vida e obra do cardeal-patriarca resignatário D. Manuel Gonçalves Cerejeira.
Ordem do dia. - Conclusão do debate na generalidade da proposta e dos projectos de lei de alterações à Constituição Política.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Cotia Dias, Sá Carneiro, Almeida Cotta e Albino dos Reis.
Passou-se seguidamente ao debate na especialidade, fazendo-se a discussão e votação sobre o texto sugerido pela comissão eventual em resultado de um requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Trigo Pereira e subscrito por este e outros Srs. Deputados, que, submetido à votação, foi aprovado por maioria.
Foram discutidas, votadas e aprovadas as alterações propostas quanto à parte 1.º, titulo 1.º, artigo 2.º, § 2.º, e título 1.º, artigo 4.º e seus parágrafos.
Usaram da palavra, no decorrer do debate, os Srs. Deputados Trigo Pereira, Duarte do Amaral, Sá Carneiro, Ulisses Cortês, Veiga de Macedo, Cunha Araújo e João Duarte de Oliveira.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos.
Fez-se a, chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Albano Vaz Pinto Alves.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Lopes Quadrado.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando David Laima.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco António da Silva.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Página 2288
2288 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Gabriel da Gosta Gonçalves.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Coelho Jordão.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José Maria de Castro Salazar.
José de Mira Nunes Mexia.
José dos Santos Bessa.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Júlio Dias das Neves.
Luís António de Cliveira Ramos.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Artur Cotia Agostinho Dias.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Marques da Silva Soares.
Manuel Martins da Crua.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
Manuel Valente Sanches.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Ricardo Horta Júnior.
Teodoro de Sousa Pedro.
Teófilo Lopes Frazão.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 73 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.08 109 e no do Diário das Sessões. Acerca do n.º no do Diário das Sessões o Sr. Deputado Correia da Cunha enviou-me uma nota de rectificações, que são relativamente numerosas, e, por consequência, parece preferível transmitir, na sua forma escrita, para os serviços do Diário das Sessões.
O Sr. Casal-Ribeiro: - Peço imensa desculpa a V. Ex.ª e à Câmara, mas, numa primeira leitura do n.º 108 do Diário das Sessões, cuja redacção já está aprovada, não me apercebi do erro que vem na p. 2178, col. 2.ª, 1. 80, que diz o seguinte: emas também nunca hesitei em suborná-las aos superiores interesses da terra onde nasci», quando deve ser, é evidente: «mas também .nunca hesitei em subordiná-las aos superiores da terra onde nasci».
O Sr. David Laima: - Sr. Presidente: No n.º no do Diário das Sessões, p. 2222, col. 2.ª, 1. 5, onde se lê: «podemos», deve ler-se: «pudemos»; na p. 2223, col. 2.ª, 1. 14, onde se lê: «não surgem nem protegidas», deve ler-se: «não surgem protegidas»; na mesma página, 1. 80, onde se lê: «à sociedade», deve ler-se: «à saciedade»; na p. 2224, col. 11.ª, 1. 18, onde se lê: «a felicidade dos que a colonizam», deve ler-se: «a felicidade dos que colonizam».
O Sr. Maximiliano Fernandes: - Sr. Presidente: No n.º no do Diário das Sessões, p. 2229, col. 2.ª, 1. 80, onde se lê: «da província possam», deve ler-se: «da província na província possam»; na p. 2230, col. 2.ª 1. 37, onde se lê: «acalme», deve ler-se: «aclame».
O Sr. Presidente: - Se mais nenhum de VV. Ex.ªs tem reclamações a apresentar relativamente aos n.ºs 109 e no do Diário das Sessões, considerá-los-ei aprovados.
Pausa.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegrama da Comissão Concelhia da Mueda da Acção Nacional Popular aplaudindo a intervenção do Sr. Deputado Miguel Bastos;
Telegrama do Sr. Cabral Sacadura apoiando a intervenção do Sr. Deputado Castro Salazar;
Telegrama do Município de Chinguar de apoio às palavras do Sr. Deputado Nogueira Rodrigues;
Telegrama da Câmara de Quilingue aplaudindo o discurso do Sr. Deputado Sá Viana Rebelo;
Telegrama da junta local de Memba de aplauso às palavras do Sr. Deputado Ribeiro Veloso;
Telegrama da Acção Nacional Popular de Chinguar aderindo às afirmações produzidas pelos Srs. Deputados Sinclética Torres, David Laima e Nogueira Rodrigues;
Telegrama da Companhia de Pozolana de Cabo Verde aplaudindo a revisão constitucional;
Telegrama do presidente da Acção Nacional Popular de Porto Novo no mesmo sentido;
Telegrama do presidente da Acção Nacional Popular da Praia no mesmo sentido;
Telegrama dá Comissão Municipal de Chivia na mesma ordem de ideias;
Telegrama de António Faria Martins e outros aplaudindo as intervenções dos Deputados ultramarinos;
Telegrama da Associação Comercial de Nova Sintra, no mesmo sentido.
Telegrama do presidente da Câmara da Brava na mesma ordem de ideias;
Telegrama do Sporting Clube do Porto Novo no mesmo sentido;
Telegramas da Câmara ide Porto Novo mo mesmo sentido;
Telegrama ria Associação Comercial de Barlavento no mesmo sentido;
Telegrama dos trabalhadores da Hufla no mesmo sentido;
Telegrama da Junta Distrital do Niassa apoiando intervenções dos Deputados por Moçambique;
Telegrama da Administração da Circunscrição de Movinga no mesmo sentido;
Carta do Sr. Manuel da Silva Leite sobre o problema das liberdades individuais;
Página 2289
30 DE JUNHO DE 1971 2289
Oficio do Ministério do ultramar transcrevendo telegrama da Junta Distrital do Cuanza Sul em apoio às intervenções dos Deputados ultramarinos.
O Sr. Presidente: - Enviado pela Presidência do Conselho, encontra-se ma Mesa, para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Diário do Governo, n.º 148, de 25 de Junho de 1971, que insere o Decreto-Lei n.º 283/71, que introduz alterações nos quadros constantes dos mapas anexos ao Decreto-Lei n.º 44 287, que promulga a reforma dos serviços tutelares de menores.
Tem a palavra o Sr. Deputado Duarte Amaral.
Em virtude dia matéria da que vai ocupar-se, e dó que me deu antecipado conhecimento, convido o Sr. Deputado Duarte Amaral a falar da tribuna.
O Sr. Duarte do Amaral: - Sr. Presidente: Por força da resignação que. a seu pedido, lhe foi concedida, deixa hoje oficialmente o governo da Diocese de Lisboa o Sor. Cardeal-Patoriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira.
Tem o acontecimento naturalmente grande projecção e já provocou numerosas manifestações públicas de sincera dedicação e respeito, que esta tarde culminam, no Pavilhão dos Desportos, com uma imponente cerimónia litúrgica a que assistirá certamente uma multidão de fiéis.
É a hora da despedida de um grande prelado. Hora, portanto, de tristeza e de saudade. Mas também, da nossa parte, como não pode deixar de ser, hora clara de homenagem e de gratidão.
Quarenta e dois amos de apostolado mia Diocese de Lisboa e no Piais fizeram do cardeal Cerejeira uma dias mais altas, se mão a mais alta figura da história dia Igreja em Portugal. Ele foi sempre o chefe justo e bondoso, intrépido e compreensivo, atento e sacrificado, de uma grande porção d» grei cristã portuguesa a que deu toda a sua inteligência e todo o seu coração de pastor.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas a sua acção extraordinária não se limitou ao plano religioso. Foi também, sempre e em toda a parte, uma afirmação indesmentível e eloquente de lusitanismo. Já nos tempos de Coimbra o seu magistério se fez glória da cultura nacional. Ensinando as letras humanas aos alunos, com a competência e o zelo de um catedrático insigne entre os mais ilustres da Universidade, não descurava a formação moral daqueles que, anos mais tarde, ocupariam postos de relevo na vida social e política da Nação. Por mais amor que a ciência lhe merecesse, bem sabia que ela não era tudo na criação e desenvolvimento dos valores humanos e que estes, para serem autênticos, necessitavam, então, como necessitam hoje, do auxilio de outras forças, precisamente as mais misteriosas e transcendentes.
A Igreja e o Pensamento Contemporâneo foi um dos seus livros de mais profunda influência na formação integral das novas e das já velhas gerações. E o que fez a sua presença numa associação de estudantes de Coimbra, como testemunho de fé e exemplo de dignidade, ainda hoje se pode verificar em tantas almas que lhe ficaram a devei-as mais puras alegrias da vida.
O Sr. Ganha Araújo: - Muito bem!
O Orador: - Muito perdeu, decerto, a Coimbra académica, quando perdeu este mestre. Mas muito mais havia de ganhar Portugal com a ascensão dele ao episcopado e ao posto cimeiro da Igreja no nosso país.
O Sr. Casal-Ribeiro: - Muito bem!
O Orador: - É que S. Ex.ª sem nunca abdicar da posição hierárquica que Lhe competia; mias também sem jamais se imiscuir dos problemas concretos das políticas do momento, que não eram da sua alçada, por pertencerem a outras esferas, esforçou-se constantemente por colaborar na promoção do bem comum, sentindo que, ao fazê-lo, só cumpria1 um dever que lhe impunha a própria doutina que professava e a que desejava ser heróicamente fiel.
As suas obras pastorais são um paradigma de independência e de isenção, de coragem na proclamação da verdade, de intrepidez na crítica aos erros mais trágicos da nossa época, de angustiado anseio pela promoção dos humildes, de -veemência na defesa, dos direitos fundamentais da pessoa humana. Na sua pregação de todos os dias teve sempre a preocupação de tornar Portugal melhor.
Mas outras benemerências tem a Pátria de lhe agradecer. Andou S. E. a peregrinar por longes terras: foi à América do Norte e à América do Sul, e a ambas levou, com o Evangelho de Cristo, a alma de Portugal.. Sobretudo no Brasil, a sua passagem foi um clarão, quer diante das autoridades e dos expoentes da cultura, quer no meio da nossa gente. Milhares de portugueses lhe cobriram de flores a púrpura cardinalícia, porque ela lhes anunciava também um enviado espiritual da sua terra.
Em 1944 percorreu o venerando cardeal, como legado a latere de Pio XII à sagração da Catedral de Lourenço Marques, várias zonas de Angola e Moçambique, além de ter visitado a Madeira, S. Tomé e Cabo Verde. Em ocasiões solenes evocou as grandes figuras dos Descobrimentos, da evangelização e da cultura lusíadas. Mas onde a sua figura então mais se impôs foi no meio das populações locais e nas visitas aos hospitais, às escolas, às creches, aos dispensários, às maternidades, aos bairros da gente mais pobre.
Foi todo o Portugal que esteve, assim, naquelas terras portuguesíssimas, onde imensas multidões pacíficas, sem distinção de cor, na mais edificante mistura de credos e etnias, em plena liberdade, aclamaram nele, com o maior entusiasmo, tanto o representante do Papa, como um símbolo autêntico da Pátria que todos amavam.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Foi também a Goa, para exaltar o missionarismo de S. Francisco Xavier, quando Goa não era ainda o roubo escandaloso do imperialismo indiano e podia receber, como parcela de Portugal, o merecido título de Roma do Oriente.
O Sr. Casal-Ribeiro: - Muito bem!
O Orador: - E em várias nações da Europa, desde a Espanha à Itália e à França, se ouviu, com respeito e alta consideração, a voz de Sua Eminência.
Mas ouviu-se, sobretudo, de um extremo ao outro da metrópole, em numerosos congressos, sessões solenes, reuniões internacionais e nas mais altas evocações históricas do nosso passado.
Em 2 de Junho de 1940 foi o patriarca de Lisboa escolhido para inaugurar, com uma alocução proferida na Sé
Página 2290
2290 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
de Lisboa, o duplo centenário da Pátria. E, dias depois, afirmava nos Jerónimos, falando sobre Portugal e a civilização moderna:
Depois da Grécia, no mundo espiritual da razão e da arte (e não falo da Judeia no mundo moral, porque a história aqui já não é do homem, mas de Deus): depois da Grécia, nenhum outro povo trouxe
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Parte Sua Eminência com o direito que todos os grandes soldados têm de repousar depois das batalhas travadas e vencidas. Mas fica a sua obra e com ela uma luz que há-de continuar a guiar-nos nos caminhos da vida.
Disse.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: Queria simplesmente dizer a V. Ex.ª que tenho muito gosto em me associar, a título pessoal, à homenagem por V. Ex.ª prestada a quem, tendo sido uma altíssima figura da Igreja, continua, felizmente, a ser uma grande figura da vida social portuguesa.
O Sr. Ulisses Cortês: - Permita-me V. Ex.ª, Sr. Presidente, que me associe às homenagens de veneração, respeito e admiração prestadas pelo Deputado Duarte do Amaral e por V. Ex.ª à alta personalidade do eminente Cardeal-Patriarca resignatário de Lisboa.
Exprimo o meu pensamento e julgo interpretar os sentimentos unânimes da Assembleia Nacional, rendendo, em nome de todos os Deputados, o tributo do nosso carinho, do nosso elevado apreço e da nossa enternecida saudade, pelos relevantes méritos e inexcedíveis virtudes de S. E. o Cardeal Cerejeira.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr Presidente: - Não havendo mais nenhum orador inscrito para usar da palavra no período de antes da ordem do dia, vamos passar à
Ordem do dia
Continuação da discussão na generalidade da proposta e projectos de lei de alterações à Constituição Política. Tem a palavra o Sr. Deputado Cotta Dias.
O Sr. Cotta Dias: - Sr. Presidente: Deve o debate na generalidade incidir primeiro que tudo sobre a oportunidade de legislar nas matérias que à Assembleia Nacional são submetidas. E, no que toca à revisão de textos constitucionais, a questão da oportunidade reveste acuidade particularíssima à luz de duas ordens de considerações que, por se contraporem e serem ambas delicadas, convém ponderar devidamente. E, de um lado, a necessidade de tornar estável a lei fundamental, sedimentando práticas e doutrinas; é, do outro lado e com relevância não menor, a necessidade de adaptação das instituições às realidades, sem a qual se fossilizariam os textos.
O relatório do projecto submetido em 1932 ao povo português refere já como ideal da Constituição o «ser profundamente cingida às realidades do País e esclarecida pela lição dos factos», confirmando, aliás, pensamento expresso pelo seu autor, que, pouco antes, em 1930, por entender não serem as constituições fórmulas definitivas e imutáveis de cristalização de um direito público natural, tinha por imperioso considerar as «realidades do presente» com vista a ajustar os textos «às nossas necessidades». E o imperativo da actualização permanente, que, como é óbvio, não poderia haver-se esquecido em 1933.
No entanto, a Constituição então votada, preocupando-se, como também não podia deixar de ser, com o problema da estabilidade, sujeitou a todo um apertado condicionalismo as suas revisões.
Neste enquadramento não se me oferecem dúvidas sobre a conveniência de aproveitar, em todos os casos, as revisões normais para esclarecer ou ajustar, onde se imponha, princípios, conceitos e esquemas.
A estabilidade social é uma noção dinâmica: o equilíbrio da vida em comum
obtém-se à custa de movimento. O imobilismo só tem dessa estabilidade as aparências cómodas e enganadoras. As normas destinam-se à vida; evoluindo esta a ritmo galopante, serão frustradas as normas ou as disciplinas que, ignorando-o, aspirem à permanência.
No domínio da lei fundamental, surgida que foi a oportunidade natural, procuraram-se, «sem espírito de demolição nem frenesi de mudança», as melhorias possíveis, em perfeita identificação com as grandes linhas do interesse nacional.
Não pode o País deixar de compreender e aplaudir o espírito reformador que, sem deixar de ser esclarecido e prudente, não hesita em extrair da própria evolução das realidades todos os seus corolários, nem pedem perturbar a «pacífica quietude», a «beatífica serenidade» dos que, colocados perante os problemas, rápida e engenhosamente constróem argumentos que os iludem, julgando ultrapassar assim a, dificuldade de ter de os resolver. Governar com seriedade é isso precisamente: sobrepor o interesse de todos ao aplauso equívoco de alguns e as conveniências reais do País a atitudes fáceis e incontestáveis de popularidade garantida.
2. Outro ponto a acentuar preliminarmente, na sequência do que venho a expor, é o de que, ao debruçar-se sobre os textos constitucionalidade, o Governo mão pretende, manifestamente, modificado a estrutura básica do sistema político, social e económico português, mas sim e tão-só introduzir-lhe os ajustamentos que as circunstâncias nacionais aconselham ou impõem.
Com efeito, a maus ligeira análise da proposta logo demonstra que a Constituição de 1933 não é afectada, em nenhuma das suas linhas essenciais, continuando intactos os grandes principios que a inspiravam.
De modo nenhum se altera o regime político vigente, integrando-se a organização do Estado na mesma doutrina corporativa e continuando o poder político «supremo e independente» a ser exercido sobre todo o território
Página 2291
30 DE JUNHO DE 1971 2291
e da mesma forma unitária, que a descontinuidade geográfica não prejudica e as indispensáveis autonomias funcionais não afectam. A soberania una e indivisível continua a afirmar-se em todo o território nacional.
A estrutura essencial do Estado e a distribuição orgânica dos poderes políticos, correspondente a soluções cuja eficácia a experiência já evidenciou, não sofrem qualquer modificação.
O sistema económico continua, como até aqui, a reconduzir-se aos grandes princípios da propriedade privada e da economia de mercado, sem prejuízo da possibilidade de intervenção do Estado nos domínios do económico e do social, com o objectivo expresso da criação de maior riqueza e da sua mais justa distribuição.
O Estado corporativo revitaliza-se como Estado social, e as diversas aflorações dessa revitalização apenas sublinham grandes linhas de orientação que já informavam os textos de 1933.
3. A estabilidade assim conferida às pedras angulares de uma política, a deliberada continuidade no essencial, não diminui em nada o alcance, o significado e o valor da reforma constitucional. Muito pelo contrário, identifica-se o génio do governante ao verificar como, na linha da tradição e do respeito pelo passado, é possível enxertar modificações ditadas por um exacto «sentido da situação» do momento presente, que armem o Governo e o País com fórmulas capazes de responder a desafios do futuro. Longe de uma simples e pura revisão técnica, não deixa ela de ir ao encontro de problemas políticos de actualidade flagrante. Também aqui ressaltam as necessidades de início sentidas e apontadas expressamente pelo legislador de 1933 ao afirmar que a Constituição procuraria ser «profundamente cingida às realidades e esclareccida pelas lições dos factos»
Não se reforma por reformar. Mantêm-se os princípios fundamentais, mas
procuram-se as fórmulas mais adequadas às circunstâncias do nosso tempo.
4. Em apreciação de generalidade, virada essencialmente aos aspectos políticos da proposta do Governo, interessará menos considerar desenvolvidamente os problemas que se situam num plano exclusiva ou predominantemente técnico e que foram, aliás, objecto de intenso debate no decurso do trabalho da comissão eventual. Assim sucede com a posição assumida relativamente à recepção no direito interno das normas de direito internacional, e com as soluções preconizadas em matéria tão delicada como a fiscalização da constitucionalidade das leis - aspectos ambos da maior relevância na construção clara e segura da ordem jurídica portuguesa, mas que, pelas suas características, hão-de ser resolvidos com base em considerações de natureza sobretudo técnica.
Reveste-se já de grande interesse político o que respeita ao estatuto dos brasileiros em Portugal. Latente desde há muito, foi com a visita do Sr. -Presidente do Conselho ao Brasil que passou à primeira linha da ordem do dia. Daí para cá, desenvolveram-se acções conjugadas, com oportunidades naturalmente T.ao simultâneas sem que de nenhuma forma isso signifique, ao contrário do que aqui foi dito noutra altura, qualquer atraso nos nossos próprios passos para a concretização desse desiderato comum, com raízes na inteligência e no coração de todos os portugueses.
Tornam-se desnecessárias demonstrações ou argumentações em reforço de uma ideia que, sendo-nos tão cara, tem vivido na zona hiperbólica da oratória política ou sentimental.
São igualmente preponderantes, sem dúvida, os fundamentos políticos na orientação de ampliar a competência legislativa reservada à Assembleia Nacional. Não nos apercebemos, porém, de que dúvidas sejam postas relativamente a este ponto, aceitando-se de forma geral que em matérias com particular relevância para a comunidade haverá vantagem em estender a discussão aos componentes dos colégios politicamente qualificados, em termos diversos dos que, mais simplificados, se seguem no âmbito da legislação dita «burocrática». Por isso, também sobre este ponto me não alongarei, sem deixar, contudo, de exprimir, do mesmo modo que em relação aos anteriores, a convicção da sua extraordinária relevância e da inteira adesão que merece a forma lúcida como o aspecto em causa foi encarado pelo Governo.
5. Tocamos o cerne político das constituições ao abordar a questão dos direitos e garantias fundamentais de que elas são sede.
A perspectiva do indivíduo desde sempre influiu na definição e regulamentação do poder político pela indispensável fixação de limites ao seu exercício.
A problemática do Estado nada mais representa, em última instância, do que a problemática dos termos essenciais em que o indivíduo deve inserir-se na comunidade a que pertence.
Indivíduo e sociedade constituem as duas pontas de uma antítese que há-de resolver-se, mais ou menos harmoniosamente, no Estado: este tenderá a representar uma situação de equilíbrio entre essas duas forças, em termos naturalmente variáveis com as circunstâncias e com a tónica, individualista ou socializante, da estrutura política que se adopte.
Numa emergência nacional, os direitos e as liberdades dos cidadãos reduzem-se mais ou menos drasticamente para que a própria sociedade sobreviva. Num contexto de prosperidade geral, com elevado nível médio de cultura, refinado o espírito cívico, com perfeita consciencialização dos deveres sociais de cada um, garantida a paz interna e externa, o Estado tenderá a liberalizar-se cada vez mais.
Tal é uma das primeiras considerações em que tem de enquadrar-se a questão fundamental dos direitos e garantias dos cidadãos. Não há nesta matéria soluções teóricas definitivas nem soluções imutáveis: estamos exactamente mo âmago do problema político; e a política, destinada a actuar sobre uma realidade o ambiente, tem necessariamente de assumir feições diversas à medida, que essa realidade, evolui.
A posição jurídica do indivíduo na sociedade a que pertence não é, nem pode ser nunca, a mesma em circunstancias sociais diversas.
As construções teóricas, as grandes doutrinais abstractas, as ideologias inflamadas esquecem ou desconhecem, afinal, tombais vezes que o indivíduo e * saciedade, mão sendo figuras geométricas mas realidades históricas, jamais se apresentam idênticos em dois instantes diferentes - nem em si mesmos, nem em face um do outro, nem perante o mundo que os envolve. E como há-de, sendo assim, defender-se a imutabilidade das suas posições relativas?
Esta consideração fundamental feita toda de simples bom senso, e uma perspectiva desapaixonada logo permitirão ver que os direitos e garantias do actuai artigo 8.º, e as que as alterações propositais pelo Governo consignam, correspondem aos imperativos decorrentes de uma concepção irredutívelmente personalista do mundo e da vida, de raiz cristã, que é a mossa, respeitando rigorosamente limites cujas transposição contenderia com a realidade do homem mo que o homem tem de maus essencial.
É aqui, no gume do conflito entre as duas conclusões apontadas - a da historicidade inevitável da posição do homem na sociedade e a da perenidade de certos direitos
Página 2292
2292 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
que não podem ser-lhe negados -, que se enxerta toda uma discussão secular, desenvolvida em torno de palavras vibrantes, tais como liberdade e autoridade, personalismo e transpersonalismo, liberalismo e totalitarismo, democracia e ditadura.
E o conflito tem de resolver-se de forma ajustada às conveniências da vida social, Arredados todos os propósitos demagógicos.
A liberdade é, fora de dúvida, faculdade fundamental de que o homem não prescinde. Ninguém o contestará nesta Casa, e não o contesta seguramente o Governo.
Importa, todavia, distinguir. A liberdade absoluta, sem limitações r: em fronteiras, seria incompatível com a própria existência da sociedade e, assim, a própria realização do indivíduo se inviabilizaria. Impõem-se as restrições, cujos limites serão, precisamente, os necessários para que a vida em sociedade se torne possível.
E o dilema resolve-se: perenidade no essencial a garantia da liberdade do (homem em tudo quanto não contenda com a sua inserção numa sociedade pacífica e progressiva), historicidade na concretização efectiva do direito (função sempre das circunstâncias particulares ido agregado) .
Significa tudo isto uma coisa que já foi porventura dita mil vezes: a de que é crucial distinguir entre liberdade e liberdades.
A liberdade tout court, refrão obrigatório das ideologias de todos os matizes - até o marxismo leninista a reivindica para o seu sistema, que considera o único verdadeiramente democrático -, a liberdade tout court, dizia, não significa, na prática, coisa alguma, porque implicaria, como já salientei, a negação da própria sociedade. O que interessa ao homem são liberdades concretas e viáveis: as que, no plano moral, condicionam a consecução do seu destino transcendente e que, no plano político, as circunstâncias históricas da sociedade em que vive tornam possíveis.
Os limites, esses, sendo, por tudo quanto recordei, inevitáveis, procuram apenas, no caso concreto da proposta, e a meu ver equilibradamente, assegurar a indispensável harmonização de interesses e conveniências individuais e colectivos. E, como disse o Presidente do Conselho, «essa harmonização de interesses e conveniências, de modo a manter cada qual na sua órbita e a permitir a normal convivência na sociedade, fazendo prevalecer nela a justiça, é o que se chama ordem».
A ordem que todos nós queremos.
A ordem de que o País necessita para se desenvolver social e economicamente e para enfrentar, com a coesão que a vitória final requer, a guerra subversiva que nos movem em África.
A ordem sem a qual todos os direitos e garantias dos cidadãos não passariam, afinal, de palavras vãs.
Sem autoridade, todo o elenco de direitos, liberdades e garantias não passará de declaração sonante mas vazia de conteúdo. A autoridade posta ao serviço dessas garantias legitima-se e, no reconhecimento delas, encontrará a auto-limitação e o fundamento moral que a defenda das tentações hipertrofiantes geradoras da opressão.
A evolução da sociedade para altos níveis de maturidade e de compreensão cívica permitirá ir alargando a zona dos direitos em causa e, porventura, trilhar com segurança os caminhos da liberalização. Na senda dessa evolução, porém, perder a consciência de que ela é feita de uma «descompressão» gradual será prejudicá-la irremediavelmente.
Está, portanto, quanto a mim, certo o texto do artigo 8.º da Constituição. Há que mante-lo.
Mas torna-se possível introduzir-lhe melhorias em alguns pontos, aliás importantes. Há que renová-lo.
6. O capítulo dos direitos e garantias fundamentais, além da proposta do Governo, constitui objectivo principal de um projecto apresentado pôr vários Srs. Deputados. Há coincidência de intenções, já que não hesito em afirmar que todos nós desejaríamos ver caminhar a sociedade portuguesa para os altos níveis de civismo a que já me referi. A proposta do Governo situa-se nessa linha.
Torna-se, de facto, patente a seriedade com que o Governo se debruçou sobre o capítulo deis garantias fundamentais.
Ressaltando das suas próprias declamações a intenção de mão se deixar desarmar na luta contra a subversão e a anarquia, de mão deixar que se crie o plano inclinado em que a tentação de governar à margem da Constituição tome facilmente corpo, mesmo assim foi feito o esforço sério de melhorar onde fosse possível. Nessa ordem de ideias é forçoso atribuir a maior importância à generalização do recurso contencioso dos actos administrativos erguidos de ilegalidade. Com tal fórmula são relegados paro o campo da inconstitucionalidade os diplomas que, em. casos concretos, pretendam excluir o recurso de anulação. A generalização de tal princípio - conjugada com a tutela jurisdicional geral contra actos de administração que ofendam interesses também com assento no texto constitucional - representa armadura do maior interesse para os cidadãos mas situações em que mais comummente eles vêem postergados os seus direitos.
No mesmo sentido de apontarão os alterações referentes à não retroactividade da lei penal, em que a extensão dos principios vigentes a movais hipóteses no domínio da incriminação e de punição resultam em evidente progresso pelo que toca, à segurança jurídica dos individuos.
Também a maior precisão nas condições da prisão preventiva denuncia a mesma preocupação do legislador. E neste tão melindroso e discutido campo não pode ver-se contradição quando o legislador constitucional se abstém de fixar o limite de tempo para esse tipo de prisão, como era desejo de alguns Srs. Deputados e consta de um projecto. A remissão para lei ordinária das condições da prisão preventiva é o caso comum nas ordens jurídicas estrangeiras. Deve ainda a este respeito notar-se, porque o facto tem impressionado muita gente, que as condições de prazo fixadas em alguns poucos textos constitucionais estrangeiros não traduzem o limite para a duração da prisão preventiva, mas sim para a validação da captura. E tornar-se obrigatória tal fixação de condições representa já progresso indiscutível, da mesma maneira que progresso representa a restrição dos casos em que se pode autorizar a prisão antes da sentença condenatória.
Outro tanto se diga a respeito da extensão das garantias de defesa aos casos de aplicação das medidas de segurança, assim como da importantíssima limitação destas no tempo.
Em todas es hipóteses acabadas de referir se rompe, aliás, com regimes estabelecidos ma lei ordinária.
Não creio ultrapassar o âmbito da apreciação na generalidade ao procurar, nas disposições referentes a garantias, aflorações ou sintomas da grande preocupação, que foi a do Governo, em precisar, em progredir messe domínio, ficando claramente demonstrada a intenção que presidiu à elaboração da proposta e que, tendencialmente, referimos ser idêntica à do projecto.
Mais interessará notá-lo e colaborar construtivamente, para que se progrida sempre, do que cultivar em estufa a
Página 2293
30 DE JUNHO DE 1971 2293
imagem do sofrimento totalitário e apresenta-lo, em cores carregadas, como exemplo eterno do mal.
Talvez que em nenhuma outra matéria resulte tão evidente a asserção de ser a política a «arte do possível». Não se ausenta o Governo, expressamente o diz, dia linha de liberalização dia vadiai pública portuguesa. Progredindo nela mia medida do possível, não pode, porém, deixar-se desarmar na luta sem quartel que, por formas novas e insidiosas, em todos os campos e com violência antes
insuspeitada, é movida contra a sociedade civilizada e os alicerces em que necessàriamente ela assenta.
Não podemos virar costas às fronteiras do possível em nome de aspirações utópicas. Li algures que uma das razões por que os movimentos utópicos, sobretudo os esquerdistas, adquirem reputação de dinamismo é a facilidade com que, exclusivamente quando estão fora do Poder, ultrapassam as fronteiras do possível e ignoram as limitações que são inerentes a toda a situação concreta.
Para um certo «gauchismo» utópico o estado presente é sempre obliquamente olhado como imperfeito e a realidade que se vive sempre incompleta. E por todas as vias, sobretudo as revolucionárias, se procura completá-la, em busca da impossível coincidência absoluta entre o que é e o que devia ser. E- assim o espírito crítico, à partida construtivo e gerador de progressos sociais desejáveis, descamba, por incurável exagero, em espírito de negação das realidades, logo utópico e revolucionário, de que o Maio de 1968 foi, em França, a natural consequência.
Deixemos, porém, a filosofia ... O que parece que seria natural, perante o sentido das inovações propostas e dos progressos manifestos, que já referi, no domínio da liberalização - o que seria natural, dizia, era, pelo menos, um movimento de agrado. Ao verificar-se o contrario, ser-se-á levado a identificar tal atitude com a dos utopistas puros, que recusam mesmo as modificações favoráveis à sua causa, desde que não sejam integrais e absolutas.
Não entrarei análise do que mesta matéria é divergente na proposta e nos projectos que nos estão submetidos. O sentido da liberalização que fica bem frisado ser o desta proposta e a prudência e segurança com que se trilham os caminhos em que a liberalização se desenvolve, garantindo que, sem prejuízo desta, a ordem e tranquilidade da vida portuguesa serão asseguradas, permitem-me concluir sem hesitação ou dúvida pelo apodo que devem merecer à Câmara as sugestões do Governo.
7. Sendo o anafe importante e delicado aspecto da proposta o que respeita ao Estatuto das Províncias Ultramarinas, o sentido claro do debate até aqui decorrido dispensa-me de a ele me referir muito desenvolvidamente, mas
dedicar-lhe-ei, mesmo assim, algumas palavras.
Quisera eu, oeste momento tão delicado da vida nacional, fadar a tal respeito uma linguagem que traduzisse, na sua cristalina transparência, a singeleza com que, tal como as vejo, se desenham no horizonte do nosso presente e do nosso futuro, as ideias e as intenções do Governo, consubstanciadas ma proposta d
Dirigindo-me apenas e a todos os que estão de recta intenção, porque aos outros não valerá a pena explicar coisa alguma, direi o que foram os meus próprios raciocínios sobre a proposta do Governo, na parte que respeita ao ultramar e que, em minha opinião, repito, constitui, de longe, a mais importante no contexto de todas as alterações constitucionais sugeridas.
Faço-o apenas com um depoimento mais, já que tudo quanto aqui foi dito, sobretudo o que, com conhecimento e propriedade, foi dito pelos Deputados ultramarinos, permite que se tenha o assunto por esclarecido.
8. Á ideia-força da proposta de revisão, na parte relativa ao ultramar, é, continuada da Constituição de 1933, a do carácter unitário do Estado Português.
A figuração jurídica do Estado unitário, com constituição única elaborada por um órgão central, donde decorrerá toda e qualquer descentralização de poderes, é tão nítida nos textos vigentes e nos que são submetidos à Assembleia que seria ociosa, no domínio da técnica constitucional, a demonstração de que assim era e assim continua a ser.
Quais então os fundamentos e qual o efectivo conteúdo do que pretende o Governo?
Governar foi, é e será sempre equilíbrio delicado entre o presente e o futuro, interessando comunidades inteiras. E uma virtude entre todas avulta nesse complexo de virtudes que desenham o perfil incisivo do governante autêntico: a virtude, mais essencial que nenhuma outra, de um absoluto e desassombrado realismo.
Não se governa com utopias. E esconder a cabeça na areia é, em política, a forma mais rápida de suicídio de um povo. Estando em causa a sorte de cada um, no quadro mais amplo do destino do conjunto e com repercussão irreversível na vida das gerações futuras, o integral respeito das realidades é a primeira norma da ética governativa.
Poderá perdoar-se tudo a um governo - menos que faça tábua rasa do real e que lhe sobreponha as suas apriorísticas concepções das coisas e dos factos. Em política «o que é, é» - por muito que nos custe e por mais que devesse ser outra coisa. Não vale a pena fechar os olhos e continuar a avançar como se a muralha impenetrável dos fenómenos de todo em todo não existisse.
O real marca, por um lado, o trilho do necessário e, por outro lado, a fronteira do possível. São essas, no enquadramento dos valores históricos e do destino tendêncial de cada país, as baias de toda a governação consciente. Governar é, em suma. combinar valores com realidades: realizar os primeiros na carne viva das segundas. E tão estulto e criminoso seria desprezar os valores que, na raiz das coisas, exprimem a mesma essência da Pátria, como ignorar as realidades em que eles hão-de materializar-se e que, naturalmente, condicionam e limitam as suas formas de concretização.
Por conseguinte, política realista, inserindo avisadamente o desejável no possível, sem fugir à vinculação do necessário onde ele definitivamente se impõe.
E a realidade, Sr. Presidente e Srs. Deputados, é, antes de mais, a de um todo nacional fragmentado em numerosas regiões geogràficamente dispersas pela Terra inteira. A individualidade de cada uma dessas regiões distintíssimas começa, assim, por ser física - a mais palpável, se bem que não necessariamente a mais relevante no domínio ontológico. Moçambique, Timor e Cabo Verde não são como um Mezzogiorno duvidoso numa Itália contínua ou uma Catalunha inventada numa Espanha inin-
Página 2294
2294 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
terrupta: trata-se de territórios separados entre si de milhares de quilómetros e situados, mesmo, em continentes diversos.
Geogràficamente distintas, as parcelas em que se decompõe o espaço político e económico português afastam-se - logo umas das outras, de forma extremamente significativa, pelas suas condições e recursos naturais, pelas características das suas populações, pelo seu nível de desenvolvimento sócio-económico, pelos padrões de cultura dos seus povos e pelo contexto geopolítico em que se inserem. E a tudo acrescem, a influir na sensibilidade para os problemas e no acerto das perspectivas, as enormes distâncias que entre elas medeiam e a que todas se encontram da metrópole.
Nada há de mais perigoso do que o «apriorismo» político.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Fazendo da geometria conceituai pura um sucedâneo do real, passa ao lado das situações e dos factos sem se aperceber nem de umas nem de outros e lança sobre tudo, a rasoira das suas ideias feitas.
Desconhecer as diferenças, igualar o desigual, aplicar a todas as situações, por mais irredutíveis que sejam umas às outras, as mesmas regras e os mesmos esquemas, decretar - em nome da validez universal de quaisquer princípios uniformidade que a própria natureza das coisas rejeita, eis o vício comum desse apriorismo livresco superficial, mas de ar catedrático, infelizmente tão vulgar entre nós.
Sobre o ultramar, meus senhores, porque é preciso conhecê-lo pana talão: dele apropriadamente, ouvimos já aqui quem; o conhece - e são esses que interessa e cumpre ouvir, porquanto podem ajudar-mos a esclarecer as ideias próprias. Isso tenho procurado fazer, embora já o haja «sentido», vivendo-o no contacto directo com a sua estonteante dimensão, com a infinita riqueza da sua potencialidade, com os seus pequenos e grandes problemas, com a estrutra e funcionamento da sua máquina administrativa, com o fogo abrasador da sua crença mo futuro, com as suas mentalidades particulares e idiossincrasias específicas. Não basta, de facto, o cliché de um conceito, o colorido de um imediato qualquer, o esquema organigramático de um genial fabricante de abstracções: é necessário ir lá, pisar a sua tenra e viver as sanas gentes, sentir na pele, logo ao primeiro contacto, que se mudou de latitude e de estilo de vida, perceber em cada pormenor imperceptível a «marca» que caracteriza e distingue a personalidade peculiaríssima de cada província.
O Sr. David Laima: - Muito bem!
O Orador: - Ir lá e entender como, apesar dessas marcadíssimas e iniludíveis diferenças, subsiste e cada vez mais se radica uma identidade profunda, feita de um passado orgulhosamente comum, de valores nacionais idênticos e, acima de tudo, de uma idêntica maneira, que é a maneira portuguesa de estar no Mundo.
O Sr. Silva Mendes: - Muito bem!
O Orador: - Para os puros teóricos desligados das realidades - e como o irrealismo não é infelizmente raro neste nosso país - a localização dos centros de decisão, o rateio das competências, a partilha dos poderes é matéria de somenos. E, todavia, meus senhores, como as distâncias são longas e como elas atenuam a acuidade e distorcem o desenho e falseiam o conteúdo das situações e dos problemas. É que é diferente, num e noutro lado, em aspectos essenciais, todo o contexto da vida - como podem ser diferenciadíssimas, em muitas facetas, as características das populações e é, seguramente, distinta a estrutura económica, social ou política. Os fenómenos não têm a mesma significação nem a mesma acuidade em contextos mentais e existenciais diversos. Usamos as mesmas palavras, mas pensamos e sentimos através delas coisas que se não identificam perfeitamente umas com as outras, arriscando-se um diálogo de surdos ou um dueto de monólogos. E falham assim, mais ou menos flagrantemente, os mecanismos de coimando centralizador.
Mais uma vez, Sr. Presidente e Srs. Deputados, não se trata de uma construção no espaço. Trata-se precisamente do contrário: de uma realidade essencial, muitas vezes testemunhada e comprovada por todos os que, no Portugal ultramarino, tiveram de equacionar e de fazer entender problemas muito específicos dos seus territórios. Esses, e ainda os que, conhecendo profundamente a terra em que vivem, tantas vezes na alta voz do pleno cumprimento do dever cívico ou no silêncio das suas consciências, se rebelaram contra o espartilhamento e a deformação das suas realidades próprias, no colete-de-forças dos belos figurinos teóricos que se lhes não ajustam.
Aqui estão - para não citar muitas outras que seria fácil aduzir - as razões basilares da necessidade de regionalização do Estado. Porque é - sublinhemo-lo bem - de regionalização que se trata.
O que na proposta do Governo se tem em vista é, acima de tudo, proporcionar e garantir a cada parcela do «todo português» a efectiva possibilidade de sem deixar de ser o que é, parte integrante de uma só nação pluricontinental, resolver, adequadamente e em tempo, a cada vez mais complexa problemática que o seu acelerado desenvolvimento económico e social levanta.
Porque, meus senhores, já não pode ninguém estar em África por estar. Os direitos adquiridos têm de readquirir-se em cada momento que passa. Portuguesismo tem de ser, em todas as latitudes, e designadamente em África, movimento contínuo, esforço ininterrupto de promoção de todos os que vivem sob a bandeira nacional. Impõe-se-nos assegurar isso mesmo, sob pena de a torrente da necessidade insatisfeita levar de vencida, como «palha na cheia» o escudo das nossas tão evidentes razões históricas.
O Sr. Ricardo Horta: - Muito bem!
O Orador: - Eis o que de modo algum podemos esquecer e que seguramente o Governo não esqueceu.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Cumpre-nos assegurar com dinamismo e com oportunidade o desenvolvimento económico-social de cada uma das parcelas que integram o espaço português. E isso entende o Governo que só pode atingir-se com a regionalização e a apropriada e consequente descentralização de poderes. Sem dúvida, está com o Governo a razão. E nem por isso se perde, ponto fundamental, a unidade da Nação e a unidade do Estado.
A sociologia já demonstrou que um edifício sócio-político consistente depende, em todos os casos, da sua estruturação na base de grupos sociais múltiplos e de raio cada vez mais amplo, desde o agregado familiar até ao Estado. E isto, não por exigência de qualquer esteticismo ou lógica de construção, mas porque é exactamente assim que a vida social se organiza e funciona.
O homem não é um animal social apenas nos dois extremos da família e da Nação: é social por natureza em
Página 2295
30 DE JUNHO DE 1971 2295
todos os escalões intermédios, desde a freguesia, o município, o distrito e a província até ao clube desportivo, à organização de classe, etc. Em tudo e por tudo o homem busca novas coligações de interesses, para novas estruturações sociais.
O Sr. Ricardo Horta: - Muito bem!
O Orador: - E sempre que, prosseguindo fins relevantes essas «comunidades» de segundo grau adquirem uma tal coesão interna, uma consciência de si mesmas e uma personalidade tão vincada, que passam a afirmar-se como forças vivas e naturais, legitimamente reivindicantes no meio social mais amplo em que se constituem, não resta senão reconhecê-las legalmente, disciplinando-as de modo a subordiná-las sempre aos imperativos decorrentes de interesses mais gerais ou dos direitos intangíveis de outros grupos menores e do próprio indivíduo, facultando-lhes os meios jurídicos adequados à defesa e à realização dos seus interesses específicos.
O Sr. Henrique Tenreiro: - Muito bem!
O Orador: - Ignorá-las, ou contrariar-lhes os propósitos, será em última instância e apenas remetê-las para uma existência livre na periferia da lei ou para um funcionamento da clandestinidade e, assim, em qualquer caso, perder todo o domínio sobre a sua actividade e a sua evolução interna.
A ajuizar por uma ou outra esporádica reacção desencontrada que por aí se ouviu, dir-se-ia que a fórmula sugerida pelo Governo, isto é, a regionalização do Estado, constituiria invenção da última hora, esquema cheio de audaciosa inovação técnica e de subtil maquiavelismo político que, para satisfação de ínvios objectivos de um Governo, se iria aplicar pela primeira vez em Portugal.
Torna-se, por isso, necessário e oportuno lembrar, como se faz, aliás, na proposta do Governo, que a fórmula depois chamada de «estado regional» introduziu-a no direito positivo, embora, com nome diferente, a Assembleia Constituinte Espanhola de 1931, e adoptou-a e enriqueceu-a, em circunstancialismo diverso, a Assembleia Constituinte Italiana de 1946-1947.
O regionalismo surgiu no Mundo como movimento irreversível, contra tudo o que as aparências inculcariam, na Espanha, na Itália, na França, e surgiu por se reconhecer a existência de regiões mais ou menos caracterizadas messes territórios de perfeita continuidade. Como não havemos de qualificar de regiões diferenciadíssimas, de vincada e irredutível personalidade, perfeitamente definidas dos pontos de vista geográfico, etnográfico, económico e até histórico as províncias ultramarinas e a parcela europeia do nosso país?
Acontece à nossa vista que a complexidade crescente da vida moderna e uma acção crítica sobre as estruturas administrativas clássicas levaram em toda a parte a um interesse crescente pela regionalização.
O mundo moderno exige a descentralização. As regiões e os seus habitantes não prescindem de participar na construção das soluções para os problemas que lhes são próprios, sejam eles económicos, sanitários, educacionais ou de turismo.
O Sr. Ricardo Horta: - Muito bem!
O Orador: - E nem nos interessaria grandemente que a regionalização do Estado estivesse, porventura, já definida como um êxito ou um fracasso na Espanha, França ou Itália.
Em nenhuma parte o regionalismo prejudicou a visão de conjunto dos países, sempre se conseguindo encontrar o equilíbrio entre o que convém descentralizar e o que, por imposição e interesso do conjunto, tem. de pertencer às autoridades centrais. Além de que nós nos orgulhamos de ser um país ímpar.
Temos atrás de nós uma vasta tradição de autonomias locais, de estados e reinos a que a égide portuguesa servia de ponte, uma larga experiência de desconcentração de poderes e de descentralização administrativa, a todos os níveis.
A dimensão ultramarina e pluricontinental ensinaram-nos, nesse domínio, coisas que os outros países não tiveram oportunidade ou possibilidade de aprender. O nosso regionalismo há-de ser, pois, uma solução estranhadamente portuguesa, ajustada à globalidade dos interesses superiores do todo nacional e à peculiaridade de cada território.
O Sr. Silva Mendes: - Muito bem!
O Orador: - É que nós temos de facto a nossa própria tradição e experiência, percursoras até dos movimentos regionalistas que referi.
Algumas das mais brilhantes páginas da história do Portugal contemporâneo foram escritas ao forjar dessa tradição e experiência, na acção de administradores como António Emes e dos capitães de África como Mouzinho, Aires de Orneias, Paiva Couceiro e outros.
Teve o Ministro do Ultramar, há bem poucos dias, oportunidade de expor ao País, de forma completa e esclarecedora, a evolução histórica da administração ultramarina portuguesa, criando uma tradição, que se não nega, em que se entroncam todos os passos agora dados.
Não está, de resto, em causa inovação de substância. Como se sublinha no preâmbulo da proposta, «já hoje o Estado Português é um Estado regional e já hoje as províncias ultramarinas constituem verdadeiras regiões autónomas e não meras circunscrições administrativas». Trata-se, tão-só, de definir mais precisamente o regime das regiões e de o fazer com a elasticidade suficiente para que se torne possível ajustar - à especialidade de cada caso concreto a solução a adoptar.
E é aqui que incidem, de forma especial, as críticas por causa das palavras e as críticas por falta de palavras. Autonomia das províncias significa logo, para esses que importa esclarecer, o mesmo que autodeterminação, com que, demagogicamente, se iludem e atraiçoam, nos areópagos internacionais, os verdadeiros interesses dos povos do terceiro mundo. E esta implicaria sempre, para eles, mais ou menos necessariamente, a independência e a soberania das províncias.
As palavras «autonomia» e «regiões autónomas», insisto também, são perfeitamente inequívocas e traduzem conceitos técnico-jurídicos e políticos perfeitamente adquiridos. Ninguém que conheça o problema terá dúvidas sobre aquilo que se pretende significar.
Transcrevo a lição proferida na serenidade e objectividade da sua cátedra, muitos anos antes da apresentação da proposta em exame, por quem haveria de vir a subscrevê-la:
Há estados unitários, divididos em províncias amplamente descentralizadas, com faculdades legislativas e executivas, como acontece, por exemplo, na União
Sul-Africana, no ultramar português, na república italiana e noutros países. Nesses casos, a que se tem chamado de estados regionais, há regiões com autonomia político-administrativa regulada no esta-
Página 2296
2296 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
tuto próprio de cada uma, assegurando a competência dos órgãos legislativos da região e os poderes das respectivas autoridades executivas.
Aí está, limpidamente definida, a autonomia de que se trata. É aí está, também, como a regionalização do Estado de forma alguma contende com o seu carácter unitário.
E o que se pretende é exactamente aquilo que se escreve: regiões autónomas que, como se diz no preâmbulo da proposta, traduzindo uma verdadeira «descentralização política e não simplesmente administrativa», se caracterizam por, de um lado, disporem de órgãos que não se limitam a administrar, governam e legislam, e, de outro lado, por não possuírem autoridade própria, exercendo, pelo contrário, poder político em nome do Estado e não disporem, portanto, de «faculdade constituinte». E daí que, Como também se afirma no .preâmbulo citado, de harmonia com o que se propõe para o artigo 5.º da Constituição. o Estado em que tais regiões se integram não perca o seu carácter unitário.
As ideias e as soluções são nítidas e são certas. Inserem-se valeria a pena demonstrá-los na linha de estruturação evolutiva do todo nacional. Exigem-nas as realidades regionais palpitantes de um. País disperso por quatro continentes. Reclamam-nas o bem-estar e o progresso social e económico dos povos portugueses de todas as raças, credos e cores. Impõem-nas a complexidade crescente dos problemas e o movimento inevitável de desconcentração que consequentemente se processa, pelo Afundo todo, nos poderes e mecanismos de administração. Implicam-nas a especificidade das economias locais e o seu diferentissimo grau de desenvolvimento. Pede-as o dinamismo a imprimir ao crescimento económico de cada uma das parcelas do espaço português.
E de maneira alguma se prejudica a integração desse espaço, ao contrário do que se leu por aí.
Com efeito, as palavras «autonomia» e «integração» só se contrapõem na medida em que, desde logo, as recheamos de notas conceituais antitéticas. É esse já o advertimos o subtil procedimento de certos críticos: transformando autonomia em independência (autonomia soberana) imediata ou diferida e concebendo a integração como centralização política e administrativa total, no mais apertado regime de Estado unitário, os conceitos são liminarmente atirados para os antípodas um do outro e a sua conciliação torna-se, como é óbvio, impossível. Assim, deformando intencionalmente os concertos, se estadeia nos escaparates das livrarias muita especulação barata.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - Pois nem autonomia é uma coisa nem integração ou assimilação é a outra.
A primeira consiste, muito singela e inequivocamente, naquilo que já recordei. A segunda, longe de pressupor uma centralização absoluta, anacrónica e mesmo impossível, e quando não seja apenas o desejo vão de uma igualizarização utópica, envolve necessariamente autonomia, única forma de consagrar e fazer fortificar em proveito comum as diferenças irremovíveis das diversas parcelas a integrar. Integração, no caso português, como em todos os demais, significa precisamente unidade na multiplicidade, igualdade na diferença, assimilação na autonomia.
Não vale a pena perder tempo a demonstrar a evidencia. Direi apenas terminada toda esta análise, que reconheço incompleta e superficial que a proposta do Governo, traduzindo a atitude coerente de um governante que sai em linha recta do mestre de Direito, sem artifícios de palavras nem arranjos políticos de conceitos, se identifica, de todos os pontos de vista, com os mais autênticos interesses do País.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: V. Ex.ª recorda-se Sr. Presidente, da luta aqui travada por um Deputado em 1959, aquando da última revisão incondicional.Sustentando com coragem e denodo os seus pontos de vista, fez aguerridamente frente a vultos eminentes, experimentados na política; e forte da razão que lhe assistia e da ciência que demonstrou, levou de vencida os seus opositores, para ser finalmente vendido mas votações uniformeis, de uma inexorável e quase silenciosa maioria
V. Ex.ª lembra-se, Sr. Presidente, de como esse Deputado, com a expressão do seu civismo, da sua coragem e do seu saber, prestígios esta Assembleia, que jamais assistiria - digo assistira e gostaria de dizer vivera - a um tal debate da revisão constitucional.
Certamente que V. Ex.ª tem melhor presente do que nós o que há treze anos se passou, pois que encontrando-se o Deputado Ciarias Lima, a quem me refiro, praticamente isolado, um dos raros parlamentares que lhe manifestaram apoio chamava-se Amaral Netto.
Assim foi ano tempo em que se não concebiam gemas rejeições corporativas do uso da iniciativa constituinte da Assembleia.
Aquilo que, estou certo, V. Ex.ª não deixou de recordar, tiveram-no muitos de nós também presente; é justo lembrar o aflito exemplo do Deputado Cairias Lima.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Hoje cabe-me a honrosa missão de encerrar este debate na generalidade por parte dos subscritores do projecto n.º 6/X.
A circunstância de os mencionar especialmente não significa, como é evidente, juízo contrário para os restantes intervenientes na discussão.
Para defender convictamente um projecto que tem como merecedor de aprovação, preparam-se os signatários com seriedade e discutiram com serenidade.
Se outros méritos não tiveram, estes bastam-lhes para aguardarem tranquilamente a discussão na especialidade e a votação que vier a ser feita, seguros da razão que lhes assiste e certos de que cumpriram o seu dever.
Certamente que o debate podia, pela nossa parte, ter sido mais profundo, mais animado, mais rico. Faltou-nos enormemente a inteligência, a vivacidade, o entusiasmo do grande companheiro de luta que foi o José Pedro Pinto Leite. Ausência que nos leva a redobrar esforços e a lutar mais aguerridamente; essa, a homenagem sincera que lhe é devida, a única que ele apreciaria.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Aí também estamos próximos dos signatários do projecto n. º 7/X, principal razão de ser da actividade parlamentar da figura mística de Leonardo Coimbra, preocupado sempre com Deus, e por isso mesmo devotado incansavelmente a uma- obra notável para os filhos dos homens.
Página 2297
30 DE JUNHO DE 1971 2297
O Orador: - A discussão na generalidade foi concentrada e abundante; fatigante portanto.
Não há agora que fazer um balanço geral, mas apenas que deixar um ou outro apontamento, expressado na perspectiva do projecto que assino.
É-nos grato reconhecer a justiça que quase unanimemente foi feita aos nossos propósitos; as divergências e as oposições frontais não impediram que quase todos os nossos «adversários dia discussão reconhecessem com lealdade que, tal como sucedia com eles, a nossa única finalidade e constante preocupação foi, e é, a de bem desempenhar o cargo para o qual fomos eleitos, servindo a Nação na revisão dai Constituição como em tudo o maus.
O Sr. Barreto de Lara: - Muito bem!
O Orador: - Não vale a pena pender tempo com quaisquer suposições insidiosas, mate ou miemos expressas; repudiam-se e deploram-se.
E não se cuida de perguntas apressadas, com pretensões de ironia, pois os respostas já foram dadas.
Importa apenas esclarecer um ou outro ponto.
alou-se muito em eleições, na manifestação dia vontade do eleitorado, em mandatos conferidos; mão só a propósito da defesa do ultramar mais também a respeito do nosso projecto.
E campo em que estamos totalmente à vontade.
As eleições são escolha, simples modo de designação dais pessoas o eleger.
Mas nem por isso o seu resultado deixa de ter vaiar de conclusões, de expressar a adesão a um programa.
Ora a campanha eleitoral da União Nacional foi o desenvolvimento das duas opções postas pelo Presidente do Conselho: reformas resolutas na ordem da defesa do além-mar com incremento da sua autonomia e do seu desenvolvimento.
Depois de Outubro a tónica foi posta mo segundo ponto. Mas é bom não esquecer o primeiro.
Raro foi o comunicado eleitoral dos candidatos da União Nacional em que com maior ou menor desenvolvimento, se não versasse a necessidade de assegurar o exercício das liberdades fundamentais, como aqui já foi recordado.
Esse ponto foi uma constante de todos os programas distritais, um dos traços mais vincados com que nos apresentámos ao eleitorado.
Os signatários do projecto n.º 6/X procuraram ser-lhe fiéis em coerência com as afirmações que fizeram como candidatos e em correspondência com o resultado das eleições.
O Sr. Mota Amaral: - Muito bem!
O Orador: - Admitem que haja quem as interprete de modo diferente, e seja levado a tomar por isso uma posição de exclusivo apoio à proposta do Governo.
Mas não consentem que se procure monopolizar o sentido das eleições para o pôr ao serviço de uma proposta ou de uma «acção».
A defesa do ultramar era a certeza oferecida ao eleitorado.
A restauração das liberdades públicas e o efectivo exercício dos direitos cívicos foi a grande esperança que quase todos nós lhe demos.
Esta é a melhor altura de começar a realizar as intenções expressas.
Não pomos em causa o sentido da escolha eleitoral de quem pensa de modo diverso, mas exigimos igual respeito.
Ao propor as alterações que entendemos ser necessário introduzir na Constituição limitamo-nos a concretizar o que havia sido prometido aos eleitores. Prometido e afirmado claramente; não apenas pensado em silencie.
Promessas de liberalização em que os eleitores acreditaram e que nós queremos cumprir.
O Sr. Júlio Evangelista: E que o Governo está cumprindo.
O Orador: - V. Ex.ª disse alguma coisa? Desculpe, é que anão o ouvi pedir licença, como é costume.
O Sr. Júlio Evangelista: - E que o Governo está cumprindo. Promessas de liberalização que o Governo está cumprindo.
O Orador: - Não contesto, Sr. Deputado, a intenção dó Governo. Não oculto o movimento de agrado, para usar a palavra do orador que me antecedeu. ao verificar a coincidência das intenções. Mas isso não me dispensa de completar, ainda que implique trabalho árduo, as realizações que reputo insuficientes.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Júlio Evangelista: - Não ponho em dúvida, de maneira nenhuma, não ponho em dúvida, nem quero minimizar essa insatisfação.
O Orador: - Não falei em insatisfação.
O Sr. Júlio Evangelista: - No sentido de mais amplas, mais profundas e mais velozes reformas. Só quero efectivamente acrescentar que o Governo tem caminhado no sentido dia liberalização prometida diante a campanha deitaral. Que o Governo tem sitio honesto, saneara e até ousado nesse propósito. Mais que todos nós, os que não temos as responsabilidades do Executivo, os que temos as responsabilidades perante a opinião pública, temos de compreender os travões com que o Governo tem de lidar, e tudo isso constitui, efectivamente, forças que há que ter em conta, porque o Governo lida com a realidade e não com doutrinas, não com teorias.
O Orador: - Folgo muito com a interrupção de V. Ex.ª.
O Sr. Júlio Evangelista: - Desculpe V. Ex.ª interrompê-lo, porque V. Ex.ª ia tudo bem ...
O Orador: - Eu só não desculpo, porque não tenho nada a desculpar.
Folgo muito, ia a dizer, com a interrupção de V. Ex.ª, até porque estando eu no uso do direito regimental, ao usar da palavra da terceira vez para encerrar o debate, é esta a altura, realmente, de dar qualquer achega, não depois do debate encerrado. V. Ex.ª falou em insatisfação. Eu não. Estará V. Ex.ª insatisfeito?
O Sr. Júlio Evangelista: - Tanto quanto possível satisfeito com a obra do Governo, digo-lhe francamente, e estou convencido que a maioria desta Câmara.
O Orador: - Vejo que a sua satisfação vai faltando quando é possível. Ainda bem. Isso é mais um estímulo para trabalhar.
Página 2298
2298 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
sentido do possível, que é aquele que todos nós temos de ter presente na vida pública.
O Orador: - V. Ex.ª fala como um sábio governante. Eu expresso-me como um simples Deputado.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Júlio Evangelista: - Eu, como um pobre homem do Alto Minho, que nada mais tem que um simples mandato da sua gente.
O Orador: - Congratulo-me por V. Ex.ª ter falado agora em seu nome pessoal, porque é uma perspectiva pessoal, tal como a minha, embora neste momento eu esteja a encerrar o debate por parte dos signatários. Como lhes disse há bocado, já não me pareceu tão curial que V. Ex.ª há pouco, na parte da manhã, na sua intervenção ...
O Sr. Júlio Evangelista: - Peço desculpa a V. Ex.ª, mas esse problema transitou em julgado; a altura para se referir a ele era quando eu usava da palavra.
O Orador: - Ora vê V. Ex.ª que é muito menos liberal do que eu?
O Sr. Henrique Tenreiro: - Não apoiado!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Eu já tinha reparado. Cá me parecia isso.
Risos.
O Orador: - Pois se não tem mais nada a dizer, eu continuo.
Num comunicado que assinei juntamente com três candidatos, dois dos quais também subscritores, e que foi divulgado pela União Nacional do Porto em 28 de Setembro de 1969, embora devesse ter sido difundido antes do anúncio das candidaturas, condensam-se alguns dos pontos desenvolvidos em manifestos e discursos.
Depois de frisar que a sua intervenção, livre e independente, era compatível com a apresentação da candidatura pela União Nacional, porque os então dirigentes desse organismo, além de homens de boa vontade, haviam apontado publicamente a instauração de um regime de tipo europeu ocidental como meta final da sua - actividade política, afirmou-se nessa declaração aos eleitores:
Nesta orientação, crêem que é possível realizar as transformações e reformas de que o País urgentemente carece na linha política do actual Chefe do Governo, necessariamente sujeita à fiscalização crítica da Assembleia Nacional. Neste ponto divergem das oposições, cuja existência e livre expressão encaram como indispensáveis e inerentes a uma vida política sã e normal.
Esta intervenção dos signatários, desligada de quaisquer, compromissos, que ninguém, aliás, lhes solicitou, orientar-se-á, pois, essencialmente, no sentido da rápida e efectiva transformação política, social e económica do País. Consideram essencial para a realização de tal transformação assegurar o exerci CID efectivo dos direitos e liberdades fundamentais consignados na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Podiam multiplicar-se as citações de manifestos, discursos e comunicados relativos aos signatários, mas não é necessário; basta lembrar isto a quem estiver esquecido.
Invoque-se, pois, o voto dos eleitores, que perante eles está a iniciativa dos subscritores do projecto n.º 6/X inteiramente legitimada.
Nem nos eleitores nem em nós há esquecimento.
O Estado social não é alternativa da liberalização prometida. Nem consubstancia em si toda a abertura possível.
Com o dizer-se que ele é social não se define eticamente um Estado.
Já ficou dito que a expressão traduz apenas uma concepção das relações entre o poder político e a sociedade civil, em que aquele prossegue fins sociais.
Não há o Estado social; todo o Estado moderno é necessariamente um Estado social.
Entre nós a ideia é velha de, pelo menos, quarenta anos. Apareceu então ligada à de Estado corporativo.
Ao retomá-lo em 1969 o Presidente do Conselho deixou bem claro que defendia um Estado social; não pretendeu instituir, incarnar ou simbolizar o Estado social.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: V. Ex.ª, que está usando da palavra pela terceira vez na qualidade de signatário de um dos projectos, sabe que o Regimento, nessa circunstância, não lhe concede a palavra senão até 15 minutos.
É duvidoso, mas eu usarei de bom grado, se me é permitido também neste caso o poder de autorizar a prorrogação do uso da palavra.
V. Ex.ª quanto tempo julga necessário para concluir as suas considerações?
O Orador: - Suponho que dez minutos.
O Sr. Presidente: - Então V. Ex.ª beneficiará da minha própria dúvida sobre o cabimento do limite de 30 minutos, no seu caso.
O Orador: - Nem o Estado é melhoramento público a baptizar com nome de governante ilustre. Passou há muito o tempo de dizer que o Estado é alguém.
Estado social tanto pode ser Estado despótico como Estado de direito.
Lutamos e lutaremos para que seja de direito, quer dizer, de legitimidade e de justiça.
Legitimidade aferida designadamente ante o fundamento democrático do poder.
Justiça quanto aos direitos da pessoa e quanto ao exercício do poder político, sem esquecer que o primeiro bem que em justiça é devido ao povo são as suas liberdades, devidamente asseguradas e acauteladas. Sem elas, não há ordem autêntica.
Para isso é necessário «restaurar» os direitos e liberdades fundamentais; eu sei que «restaurar» implica julgar que
Quase ninguém aqui aplaudiu, sem reservas, o modo de eleição do Chefe do Estado.
Muitos dos que se pronunciaram pelo sufrágio directo cederam ante considerações de conveniência ou de oportunismo político.
Quase todos reconheceram que o actual colégio não é satisfatório.
Página 2299
30 DE JUNHO DE 1971 2299
O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª poderia substituir a palavra «oportunismo» por «oportunidade»?
O Orador: - Não fui só eu que a empreguei. Foi, salvo erro duas vezes, o Sr. Deputado Ávila de Azevedo.
O Sr. Júlio Evangelista: - Então V. Ex.ª ponha a palavra entre aspas, se faz favor.
O Orador: - Não, Sr. Deputado. Eu aceito pedidos de interrupção; não aceito colaboração na autoria: é só minha!
O Sr. Júlio Evangelista: - Não. Segundo V. Ex.ª, é do Sr. Deputado Ávila de Azevedo.
O Orador: - Este ponto transita já em julgado.
O Sr. Júlio Evangelista: - Está transitado!
Risos.
O Orador: - Veremos os resultados que isso dá na especialidade.
Mas há que assinalar desde já que não concebemos jamais o sufrágio directo como forma de secessões, que repudiamos. Nem admitimos que a nós, e a quem a favor dele se manifestou, se impute essa concepção do sufrágio directo.
Pelo contrário, pretendendo que o Chefe do Estado seja eleito pela Nação, queremos ver reforçada a imagem da unidade nacional que ele garante.
Não queremos que se possa sequer supor que a escolha do Chefe do Estado resultou apenas do entendimento de um pequeno colégio; desejamos que ele seja a expressão viva do voto da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não deixou de aludir-se a golpe de Estado constitucional, velha expressão que não pode deixar-se sem reparo.
O uso dos meios constitucionais para obter a substituição dos membros dos órgãos de soberania e alteração da política por eles prosseguida não pode ser qualificado como golpe de Estado.
Os meios constitucionais são legítimos e lícitos para procurar essas mudanças; visá-las não é golpe de Estado.
E se os meios se não contêm dentro das normas da Constituição, o tal golpe não será constitucional.
A expressão referida equivale a pôr os meios constitucionais ao serviço de uma personalidade, de um governo, de uma política, identificando-os com a ordem constitucional, o que é inaceitável.
Mais do que um contra-senso, a expressão em causa implica menosprezo pela Constituição e pela Nação que ele rege. Pode ser expressiva como imagem oratória; mas é inaceitável como categoria jurídico-política.
Ainda quanto ao modo de eleição do Presidente da República, esgrimiu-se com a estrutura corporativa.
Partindo da concepção orgânica, alegou-se que, não a tendo posto em causa, haveríamos de aceitar-lhe as consequências quanto ao sufrágio; seríamos, pois, incoerentes.
As premissas são inexactas; e o virtuosismo conceptual do raciocínio não resgata o erro da conclusão.
Ficou patente, para quem quis ouvir, ler e entender, que consideramos inexistente o corporativismo político a nível nacional, ou seja, que, quanto aos órgãos de soberania, não consideramos a Nação corporativamente organizada.
Ficou claro que impugnamos mesmo a aptidão do corporativismo para uma organização política nacional, confinando como está na Constituição aos domínios do económico, do social e do político local.
Foi evidente que não reputamos sequer corporativo ou orgânico o actual modo de eleição do Chefe do Estado.
São opiniões contestáveis, como todas; mas não podem ser ignoradas para verbalizar conclusões de suposta incoerência.
A este respeito, a imagem tomista evocada em defesa da concepção orgânica é altamente elucidativa; merece reflexão.
É certo que S. Tomás, designadamente a propósito do hilemorfismo aristotélico, dá a imagem da casa e das pedras, desenvolvendo as ideias de forma acidental e forma substancial com referência à relação da alma e do corpo.
Ouvimos essa imagem ser aplicada à Nação e à comunidade política.
O tomismo está só na imagem; o personalismo tomista exclui necessariamente a sua aplicação às relações da pessoa com a comunidade: pessoa não é pedra a que a organização corporativa dê forma.
O Sr. Pinto Machado: - Muito bem!
O Orador: - Logo foi notado que tal aplicação conduz ao transpersonalismo, que não é mais do que um aspecto filosófico do totalitarismo.
O Sr. Miller Guerra: - Muito bem!
O Orador: - Assim o confirma a origem da aplicação política da imagem tomista.
Foi para ilustrar a doutrina de Mussolini que se fez essa transposição, para concretizar o seu conceito fascista de organização política: já não há as pedras que eram os indivíduos, mas só edifícios e cidades; o todo absorveu as pessoas através dos elementos estruturais.
Essa concepção do corporativismo rejeitamo-la em absoluto.
Nessa rejeição estamos com a Constituição e a ordem sócia; vigentes, estruturada esta «na base do respeito da personalidade humana, da propriedade individual que a completa e da liberdade de iniciativa que expande».
O edifício da imagem que se transpôs para o campo político é inevitavelmente totalitário.
Para empregar as palavras de um dos oradores que agora me antecedeu, essa «transposição contende com a realização do homem no que ele tem de mais essencial».
Em política, o que parece, é.
É indiferente que pintem o edifício de vermelho ou de rosa, que lhe dêem o colorido das camisas simbólicas outrora vestidas, ou o branco dos sepultemos calados.
Essas construções rejeitamo-las sempre, qualquer que seja. a sua cor; e lutamos para estabelecer uma origem constitucional que cus tome impossíveis, que dedais mos defenda.
Comecei por evocar uma revisão passada.; volto à lição que nos dá.
A maior parte dais alterações então recusadas são hoje acolhidas pelo Governo e serão, por certo, aprovadas., treze anos volvidos; não deixam de ser hoje necessárias, mas já não são suficientes.
Oxalá isso se não repita.
Não defende-mos precipitações, nem exageros, nem ingenuidades, nem utopias, nem «gauchismos»; mas também não queremos avançar de costas voltadas ao futuro e olhos fitos no passado.
Página 2300
2300 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
Não ignoramos nem condenamos tudo o que está para trás, sejam quarenta ou sessenta os anos volvidos; tão-pouco incensamos o presente. Reconhecemos, com agrado, coincidência de intenções com o Governo; não nos eximimos a completar o que reputamos insuficiente nas realizações.
Cremos que tudo o que houve de válido no que nos precedeu é honrado eloquentemente em silêncio pelo valor das honestas tentativas presentes, entre as quais a nossa.
Do resto não vale a pena falar.
Acreditamo-nos comprometidos num processo de crescimento da humanidade a caminho do seu ponto de convergência.
Procuramos contribuir com o resultado de um esforço sério e sereno, com um trabalho de reflexão e de acção políticas.
Esperamos que ele seja acolhido, mas não nos perturbaremos se for recusado.
Aguardamos com a mesma serenidade com que defendemos o nosso projecto; continuaremos a trabalhar com a mesma seriedade que presidiu ao nosso esforço, pois assim nos impõe a responsabilidade que assumimos perante a Nação.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Cotta.
O Sr. Sá-Carneiro: - Peço a palavra para uma interrogação à Mesa.
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.
O Sr. Sá Carneiro: - Á interrogação à Mesa, Sr. Presidente, radica na circunstância de que, como eu frisei, supor encerrar o debate; e daí, nos termos do artigo 48.º do Regimento que eu só previ-se que usasse de igual faculdade de encerramento do debate algum dos subscritores do projecto n.º 7/X, ou o Presidente ou o relator da comissão eventual para estudo da revisão da Constituição.
E pensei mesmo na analogia surgida em 1959, quando igual interrogação foi feita pelo Deputado Carlos Lima, que, depois de usar pela terceira vez da palavra, viu ser ela concedida ao Dr. Mário de Figueiredo; ao que o Presidente da Assembleia só lhe pôde retorquir que o Dr. Mário de Figueiredo tinha esse direito por ser o Presidente da Comissão de Legislação e Redacção. Não é o caso.
Eu não quero de maneira nenhuma pôr em causa, como é evidente, o direito de falar seja quem for, é apenas uma questão de ordem.
Como não se trata de presidente ou relatar, usei da palavra, nos termos do artigo 48.º, para encerrar o debate; queria invocar este artigo do Regimento e deixar esta interrogação à Mesa.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: A suposição de V. Ex.ª de que encerrava o debate foi uma suposição de V. Ex.ª está tudo dito!
Provavelmente V. Ex.ª refere-se ao disposto no artigo 48.º do Regimento.
O artigo 48.º do nosso Regimento, que eu, infelizmente, tenho de invocar muito, e, portanto, sou obrigado a conhecer bastante de perto, estabelece uma condição dominante, que é a de que o Deputado poderá usar da palavra sobre a ordem do dia duas vezes, com limites de tempo.
A seguir estabelece a excepção de autorizar a usar da palavra, terceira vez, o autor ou um dos autores do projecto, na discussão de um, projecto de lei, ou o presidente ou o relator da comissão competente na discussão de uma proposta de lei, para fecho do debate.
Salvo melhor critério. Sr. Deputado, esta excepção, no caso presente, em que estão em debate, simultaneamente, uma proposta e dois projectos de lei de diferentes autorias, suscitaria matéria altamente discutível no decidir de quais dos proponentes ou representantes de quaisquer desses textos teriam direito a encerrar o debate.
A mecânica do encerramento do debate não está, aliás, precisada, nem no nosso Regimento, nem na prática da Assembleia.
Se V. Ex.ª se der ao incómodo de verificar como têm sido encerrados dezenas ou centenas de debates nesta Casa, reconhecerá que não há regra precisa sobre quem encerra. E verificará que, muitas vezes, quem encerra é o esgotamento das inscrições, pura e simplesmente.
No caso presente, eu dou a palavra ao Sr. Deputado Almeida Cotta, pelo seu direito de usar dela duas vezes.
É apenas à sombra deste direito que eu lhe concedo a palavra e mantenho a concessão.
V. Ex.ª teria legitimamente cabimento para a sua interrogação se o Sr. Deputado Almeida Cotta fosse usar da palavra terceira vez.
A Assembleia terá entendido, e a Mesa também, que V. Ex.ª, como proponente de um dos projectos de lei pendentes, encerrou o debate no que toca à defesa desse projecto de lei; não posso deduzir, de nada do que está aqui para ler, nem de nada do que expus a V. Ex.ª, que V. Ex.ª tenha por esse facto encerrado o debate em relação aos outros Srs. Deputados que até agora só falaram uma vez, nem quanto aos outros textos.
Tem, portanto, a palavra o Sr. Deputado Almeida Cotta.
O Sr. Almeida Cotta: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Conforme expressamente se declara no preâmbulo da proposta de lei n.º 14/X, o propósito visado pelo Governo é o de «actualizar e revitalizar» o texto constitucional que há perto de quarenta anos molda a vida do País.
Os projectos de lei n.ºs 6 e 7 obedeceram naturalmente aos mesmos intuitos, tendo-se, «porém, tornado notório o espírito marcadamente individualista de um deles, a fazer recordar a aurora do liberalismo, com algum perfume setanubrista, mas certamente com menos realismo, pois, segundo rezam as crónicas, Passos Manuel, perante a contingência de se ter visto obrigado a violar frequentemente a Constituição, justificou-se nos seguintes termos:
A execução da Constituição de 1822 seria um crime, «porque eu perderia a revolução e a liberdade, e a papéis e a, livros sacrificava a riqueza e a liberdade do País.
No decorrer do debate suscitaram-se efectivamente temas que muito preocuparam as gerações daquela época e que o homem voltará sempre a discutir ao jeito das novas concepções que vão surgindo.
Página 2301
30 DE JUNHO DE 1971 2301
Nacional mais amplas faculdades legislativas, para alguns talvez com exclusividade, para outros partilhadas pelo Governo.
Adiante me referirei a outras questões suscitadas.
Num primeiro juízo, trata-se, quanto àquele último aspecto de um problema de eficácia político-administrativa, desde logo levantando dúvidas sobre a possibilidade de órgãos de funcionamento irregular poderem enfrentar e resolver as necessidades permanentes da administração pública. Por outro lado, quando se organiza o Estado, é evidente o dever de ponderar como se conseguirá gerir convenientemente os negócios públicos, se não forem atribuídas competências suficientes aos órgãos de actuação permanente.
Mas se não convém, de facto, reunir num só órgão os poderes legislativo e executivo, já é perfeitamente compreensível repartir o exercício das faculdades da soberania de harmonia com critérios que visem fazer funcionar eficientemente o sistema para a realização dos fins superiores do Estado.
A cooperação implícita ou forçada dos órgãos soberanos, correspondente à rígida divisão de poderes, melhoraria admitindo-se a concorrência deles segundo as exigências da administração, sem prejuízo da independência de cada um e da necessária colaboração entre todos.
De resto, o valor concedido pelo liberalismo à separação rígida, como factor importante da limitação do poder político, perdeu muito do seu crédito e cada vez se afasta mais das realidades perante a intervenção crescente do Estado nos domínios outrora reservados à actividade privada.
Quanto ao primeiro ponto, parece-nos ter-se querido afirmar que, uma vez consagrados constitucionalmente os direitos e as liberdades individuais, o Poder Público ficaria organizado em condições de evitar os totalitarismos em que a pessoa desaparece sacrificada aos altos projectos nacionais, e as tecnocracias que subtraindo o homem de cuidados e necessidades o transforma numa máquina de consumo.
Mas se o Estado se limita a proclamar princípios ou a inscrever direitos, não prevenindo a forma de os fazer respeitar e cumprir, estará porventura a elaborar um excelente compêndio sobre a moral e o direito, mas não evitará que o cidadão que se dispense de saber ou que não quer saber onde acabam os seus e começam os de terceiros devore insaciavelmente o património das liberdades do próximo, perante a impassibilidade de quem não devia tardar a defendê-lo por todos os meios lícitos ao seu alcance.
Enunciar os direitos e liberdades do cidadão, sem dúvida, mas, mais do que isso, promover pelos processos legalmente estabelecidos a maneira de os fazer observar e de reprimir as suas violações.
Alexandre Herculano, eminente jusnaturalista, não deixou de notar que a esfera dos actos livres tem por limites naturais a esfera dos actos livres dos outros e por limites factícios restrições a que convém submeter-mo-nos para a sociedade existir e para nela se encontrar a garantia das outras liberdades.
E Beudant, acerca dos direitos individuais consignados na Constituição Francesa de 1793, deplora terem ficado letra morta, por não se organizarem garantias para os proteger.
O Estado de direito é aquele que «efectivamente desejamos, embora a antinomia entre a liberdade e a autoridade praticamente se esbata quando a autoridade se coloca ao serviço da liberdade, da liberdade real, pois a ideal só se define juridicamente «no concreto, no fundo e ao caibo, quando e substancia do direito natural, da ética, como às vezes se diz também, é acatada como autolimitação do poder político.
Ora, exactamente porque pretendemos o direito a disciplinar as relações sociais é que será forçoso admitir a intervenção do Estado através de todos os seus órgãos e não apenas de alguns. E todos, infelizmente, não serão de mais para o conseguir.
Sem estes instrumentos de defesa do cidadão, coloca-se a sociedade à mercê dos instintos, sacrifica-se a liberdade em come da liberdade, corre-se o risco de criar condições óptimas à instalação dos totalitarismos ou à anarquia das revoluções permanentes.
Quando, portanto, em determinados casos se reserva à lei ordinária a definição das condições do exercício desses direitos, está-se a utilizar o processo adequado e imoralizador de evitar o agravamento de situações intoleráveis, carecentes, por isso mesmo, de imediata intervenção. Está-se, precisamente, a garantir >a liberdade real e efectiva que o indivíduo, só por si, não consegue assegurar. Está-se a criar um Estado de direito em oposição a um Estado de força ou que a ela se submeta, onde todos os órgãos da soberania, em qualquer hipótese e, portanto, também nesta, têm as suas tarefas a desempenhar e as suas responsabilidades a assumir.
E, repito, todos, infelizmente, não serão de mais.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - São difíceis os caminhos da liberdade, atributo quase divino, como alguém já disse, que o frágil ser humano mal pode manipular sem se ferir.
Estes os rumos para os traçar com segurança, para não cairmos na ingenuidade académica ou na violência, nas pressões directas ou disfarçadas de grupos ou de partidos, e que marca a enorme distância que separa certas concepções doutrinárias das realidades da vida corrente, onde se acotovelam todos os dias interesses antagónicos, entendimentos diferentes, preocupações e sentimentos diversos e divergentes, forças que ou são refreadas ou pretenderão dominar, sem querer saber para nada dos direitos e das liberdades de terceiros, impondo, depois, os que inspiram as tábuas da sua lei.
Prezamos por de mais a liberdade na ordem, na justiça e na legitimidade, para nos deixarmos seduzir pela linguagem dos mitos, que cedo conduz à debilidade moral e cívica, à degradação do poder, à pobreza em todas as suas formas e com todas as suas servidões, aos saltos do nada para o nada.
Prezamo-la por de mais para corrermos o risco dos totalitarismos das esquerdas ou das direitas.
Queremos uma Constituição inspirada nos verdadeiros interesses da comunidade nacional e respeitada na sua letra e espírito.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - A revisão proposta pelo Governo visa esses objectivos,
estreitando-se, assim, cada vez mais, a unidade da Nação à volta dos seus valores supremos e das instituições que servem a Pátria e a sua grandeza, o povo e o seu bem-estar, as pessoas e a sua eminente dignidade.
As disposições respeitantes à eleição do Chefe do Estado mereceram particular interesse.
O problema assume, de facto, importância relevante, pois, no fundo, pretende resolver uma das mais delicadas questões das sociedades políticas: escolher as pessoas que virão a ser titulares dos órgãos soberanos.
Página 2302
2302 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
Pondo de parte outras modalidades, referir-me-ei apenas à do sufrágio que abrange, aliás, formas várias, e, daí, outro ponto delicado a examinar: sufrágio restrito, universal, igualitário, censitário, obrigatório, facultativo, directo, indirecto, corporativo?
Tratando-se de processos de escolha de pessoas, desde logo não se filiam directa e necessariamente com formas de expressão da soberania nacional.
Na verdade, segundo alguns constitucionalistas, a ligação entre o carácter representativo dos órgãos e o processo eleitoral de escolha dos seus titulares faz-se por mera convenção que procurará exprimir, como diriam Marnoco e Sousa e Oliveira Martins, a imagem da sociedade pelas maneiras menos susceptíveis de a desvirtuar.
Os critérios de escolha, independentemente das opiniões que radicalmente os afastam, não se apresentam nem simples, nem pacíficos. Há quem defenda qualquer deles com argumentos válidos, naturalmente inspirados no desenvolvimento económico e cultural, no espírito cívico do eleitorado, na organização política do Estado, na tradição, etc.
Deste modo, parece-nos que não deveria ser por aqui que conviria iniciar o impulso de politizarão, tão apregoado hoje, antes se impõe, por agora, na segurança e na legitimidade das fórmulas experimentadas, continuar a praticá-las e a caminhar pelas sendas constitucionalmente, abertas no sentido de robustecer o Estado Social e Corporativo, sem embargo da abertura de uma ampla participação dos elementos estruturais da comunidade nacional.
Estou absolutamente convicto de que o sistema eleitoral vigente para a eleição do Chefe do Estado, tendo em consideração as circunstâncias actuais e a intervenção no acto eleitoral de uma comunidade espalhada por todos os continentes, é o que melhor e mais serenamente pode recolher e interpretar a expressão do sufrágio.
E não se ponham a este respeito questões de legitimidade, porque essas, no plano jurídico, estão resolvidas pelo direito positivo constitucional e, doutrinàriamente, se as opiniões se dividem, ou todas são legítimas ou em absoluto nenhuma o será. O que importa é adoptar a solução que melhor contemple os interesses superiores do País, de cada país, quando demandam, como convém, as mais adequadas ao seu carácter, ao seu modo de ser e aos condicionalismos políticos e sociais a ter em conta.
Gostaria ainda de aludir à disposição que estabelece, sob o benefício da reciprocidade, a equiparação de Brasileiros e Portugueses para o efeito do gozo dos direitos e liberdades individuais.
E «permito-me apenas, na exaltação de um dos mais altos exemplos da nossa maneira de estabelecer contactos humanos, recordar a espantosa comunhão nascida naquele dia em que se avistaram terras de Santa Cruz, estuante e mútua dádiva de amor às coisas e às pessoas, laboratório singular de almas florescendo e crescendo fraternalmente, mercê do poderoso cadinho do sangue, da compreensão, do idioma comum, das alegrias e das tristezas da criação.
Que por todos os séculos dos séculos se mantenha, eis a nossa prece.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: No que toca à administração ultramarina, principiarei por notar que nesta matéria poderíamos surpreender uma forte corrente identificada pela preocupação de abrir mais vastos horizontes à organização política e administrativa das províncias ultramarinas para que possam convenientemente acudir às necessidades de uma administração eficiente e capaz; outra, mostrando preferência por um aggiornamento que acentuasse antes o princípio da «descentralização administrativa em lugar da descentralização política»; outra, mais receosa no ensaiar de qualquer alteração, oscilando, talvez, entre a integração pura e a descentralização tímida e a prazo.
Ora, as fronteiras que marcam os limites entre a descentralização administrativa e a descentralização política não têm contornos rigorosamente definidos: quando se julga estar no âmbito da primeira, já se terá invadido o da segunda, e
vice-versa.
Para traduzir as dúvidas e incertezas em que se pode flutuar em assunto de tão pouca densidade concreta, cito, por exemplo, o caso de um dos mais aguerridos arautos do integracionismo puro ter criticado vivamente, público e raso, a existência do Ministério do Ultramar, por constituir sério obstáculo à unidade nacional e contrariar os princípios da integração.
Pois bem! Um outro eminente defensor do sistema, a quem aquele reconhecera já em letra de imprensa o valor e a clareza das atitudes, pronunciou-se agora pela manutenção desse Ministério.
De algum modo isto significa que nem todos estaremos de acordo sobre o sentido e o alcance destes sistemas e muito menos sobre as consequências do seu emprego e utilização.
Historicamente, não será exacto atribuir-lhes em exclusivo a responsabilidade do enfraquecimento ou do fortalecimento da unidade nacional.
Bastará, para tanto, recordar o movimento municapalista como factor de solidez nacional nas comunidades medievais, sem dúvida de cariz descentralizante, e os escombros dos grandes impérios, expoentes da centralização.
Embora pensemos que boa parte das inovações introduzidas pela proposta do Governo se contêm nos limites da descentralização administrativa e da desconcentração, elas não impedirão o arrastamento do processo burocrático se não se admitir que podem e devem também comportar faculdades de decisão a nível que exceda em muito as questões de mero expediente e faculdades legislativas ao nível daquelas.
Se assim não for, a Administração paralisaria naquilo que é fundamental, aguardando se pronunciem as entidades competentes. Ora, são estes poderes que convém alargar, em condições e termos que, sem prejuízo da unidade e da soberania, consintam, todavia, promover o funcionamento regular e eficiente dos organismos e instituições que, afinal, servem a Nação e o Estado em qualquer parte do território nacional.
A característica daqueles sistemas não é definida pela amplitude dos poderes, mas pela sua natureza e pela fonte donde promanam. Quando o direito vigente atribui poderes legislativos aos governadores das províncias e às suas assembleias legislativas, estará a proceder à descentralização administrativa, à desconcentrarão ou à descentralização política?
Em quase todos os países a execução administrativa do direito está descentralizada, quer dizer, partilha-se entre o Estado e outras pessoas colectivas de direito público, assim como, dentro dos limites constitucionais de cada Estado, a própria função legislativa lhe não pertence em exclusivo, embora a sede do poder legislativo resida unicamente nos órgãos soberanos.
Entendamo-nos acerca de certas dúvidas que têm pairado a este respeito no decurso dos debates.
Quando se alega que as alterações nesta matéria não mudaram radicalmente a estrutura político-administrativa das províncias ultramarinas, na aparente lógica deste ra-
Página 2303
30 DE JUNHO DE 1971 2303
ciocínio, tenho ouvido dizer que, nesse caso, não valia a pena ter-se mantido a mesma situação, por outras palavras.
Ora a verdade é que o raciocínio peca redondamente por defeito.
A estrutura político-administrativa é, de facto, idêntica à actual, mas quanto à constituição, atribuições e competência dos seus órgãos, as modificações foram profundas e do mais vasto alcance. Aqui, deu-se ou aconteceu, como agora se diz, renovação na continuidade.
Nem de outra maneira se explicariam as preocupações que têm provocado em alguns espíritos. Pois se tudo continuasse na mesma, como justificar ou a que propósito vinham essas apreensões? Não quero acreditar em fantasmas, mas também não posso recusar a evidência.
Ainda com base em reflexões deste género, falou-se e escreveu-se bastante sobre palavras inúteis, mas perigosas para uns, inofensivas para outros, significativas para tantos.
Houve também os que se alarmaram com novidades importadas, lastimando o esquecimento do rico espólio da tradição nacional.
Critérios próprios devem pautar e pautam a nossa vida pública, mas é evidente que seria suicida a posição de enterrar a cabeça na areia para nos subtrairmos às influências do mundo exterior, ao contacto das culturas e das civilizações, negando uma das mais excelsas características da nossa acção, que tem sido sempre ecuménica e universalista.
Melhor juízo será aproveitarmos da própria e alheia experiência aquilo que reputarmos conveniente e útil. Nem torres de marfim, nem provinciano encantamento pelo que vem de fora.
E quanto às palavras inúteis?
Tomemos as que foram apontadas como exemplo: designação honorífica de Estado às províncias ultramarinas.
Em primeiro lugar, trata-se de uma qualificação que vem de longe e ainda hoje é mantida, embora nada adiantando ao real conteúdo dos sistemas de Governo que as regem.
Mas, nesse caso, o que significarão?
Pois, quanto a mim, na genuína tradição nacional, para além de representarem uma distinção, respondem, sobretudo, a interrogações ou a expectativas, proliferando principalmente nos meios internacionais onde se pretende traçar a política africana de países como o nosso, que ali têm interesses legítimos e seculares, em suma, países também africanos. Respondem e esclarecem, interna e externamente, mais uma vez, que, em perfeita comunhão com as populações da comunidade, temos concebido regimes de organização político-administrativa em que a designação de Estado se apresenta, nesse contexto, com um significado específico, próprio, tradicional, e só esse.
Nada autoriza emprestar-lhe agora outro, como nunca ninguém se lembrou de o fazer relativamente ao actual Estado da índia.
Podemos, assim, continuar a falar em formas de descentralização de um Estado unitário, nenhuma delas comportando, em si, germes de desagregação da unidade nacional que, acima de tudo, temos de preservar.
Ainda que alguns transponham o problema para outros domínios diferentes, isto é, mesmo que se não possa falar, hoje, de soluções puramente políticas ou puramente administrativas: se, em última análise, é a vontade das pessoas ou dos grupos quem dita a última palavra na conformação orgânica de uma sociedade, pois então nós podemos gritar ao mundo, sem qualquer espécie de dúvidas ou hesitações, que desejamos e queremos esta nossa esplêndida comunidade portuguesa, pela qual nos batemos todos há mais de dez anos, que digo eu, há mais de quatro séculos, e pela qual continuaremos a combater até que nos seja concedido o bem inestimável da paz.
O Sr. Agostinho Cardoso: - Muito bem!
O Orador: - Queria, ainda, acrescentar umas palavras acerca do artigo 134.º da Constituição, na redacção da Lei n.º 2100.
Ao entendimento daquele preceito, conforme foi sublinhado no parecer da Câmara Corporativa, não pode dar-se o sentido de que só pela integração se realiza melhor a unidade nacional.
A ser assim, estaria a própria Constituição vigente a afirmar por um lado o que contrariava por outro, ao conceder já lata descentralização às províncias ultramarinas, o que é inadmissível.
E não se diga também que a autonomia e a especialidade das leis tinham carácter transitório até se realizar a integração e que esta consente a descentralização e a desconcentração.
Nesse caso, afigura-se-nos muito difícil distinguir as subtis diferenças entre os dois sistemas e entender as críticas que se não fizeram àquele que a Constituição consagra, mas que se fazem agora ao que a revisão mantém, ou seja, precisamente, o que identifica e já identificava um Estado unitário descentralizado.
E quanto à especialidade das leis e consequente autonomia, julgamos poder adiantar que se praticou, não apenas recentemente, mas desde há muito, pois já em alguns Regimentos do Reino e nas Cartas das Donatárias aparece nítido o espírito da descentralização, único que permitia, dada a dificuldade e morosidade das comunicações e dos transportes, regular convenientemente as relações que se iam estabelecendo com os habitantes das terras descobertas e a ocupação que delas se ia fazendo.
Esta tem sido a orientação predominante no decurso da nossa história, só interrompida nos princípios do século XIX por influências, desta vez, sim, ditadas do exterior e de que não se colheram bons frutos.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Vai terminar a discussão na generalidade dos textos submetidos à Assembleia Nacional com o objectivo de rever e alterar a Constituição Política da República Portuguesa.
Discussão ampla, como raramente se terá visto nos nossos dias em parlamentos de qualquer país, já que a existência de partidos na maior parte deles restringe ao porta-voz de cada um a intervenção nos debates.
Discussão libérrima, como é das tradições desta Casa, e na qual o facto de os Srs. Deputados haverem sido eleitos em lista com o patrocínio de uma organização política de apoio ao Governo e ao Regime, não inibiu alguns de se manifestarem em desacordo com a natural disciplina resultante de haver uma proposta de lei governamental e mesmo em oposição ao próprio Regime.
Discussão que em muitos casos se afastou da generalidade para se deter em problemas concretos que o Regimento reserva à discussão na especialidade.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - E, não o esqueçamos, discussão pública que se seguiu ao exame detido e minucioso feito pela comissão eventual, na qual estavam representados os signatários dos projectos de lei e em cujos trabalhos, decorridos sobre a presidência esclarecida do Sr. Deputado Albino dos Reis, reinou sempre a mais franca abertura e a mais cordial franqueza.
Página 2304
2304 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
A comissão eventual funcionou de Março a Junho e realizou 46 reuniões, tendo concluído, como estarão lembrados, por sugerir um texto para a lei de revisão que, tomando por base a proposta do Governo, nela inseriu tudo quanto lhe pareceu digno de aprovação no conteúdo dos projectos de lei n.ºs 6 e 7.
É preciso não esquecer ainda que a Constituição preceitua que, em consequência da revisão a que a Assembleia proceda em cada período a tal destinado, será publicada uma só lei - a chamada «lei de revisão» -, na qual se compreendem todas as alterações aprovadas.
Ora o que a comissão eventual procurou foi estabelecer, desde já, o projecto dessa lei de revisão, em vez de deixar a sua elaboração, após votações na especialidade feitas dispersivamente e com risco da contradições, à Comissão de Legislação e Redacção.
O método que a comissão eventual preconiza tem a vantagem de permitir uma melhor e mais rápida discussão na especialidade e de facilitar posteriormente a redacção do texto a submeter à promulgação do Chefe do Estado.
Vozes: - Não apoiado!
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - Diz o Regimento que a discussão na generalidade versará sobre a oportunidade e a vantagem dos novos princípios legais e sobre a economia dá proposta ou projecto.
A verdade é que no caso da revisão constitucional em que a Constituição prevê, ela própria, a existência de várias iniciativas, a oportunidade e a vantagem a discutir não são, em rigor, de um texto ou de outro, mas, sim, da revisão.
O Sr. Magalhães Mota: - Muito bem!
O Orador: - A revisão constitucional de que o Governo tomou a iniciativa é oportuna? E traz vantagens para a ordem jurídica do País?
Ora a estas perguntas o debate respondeu unanimemente que sim. A revisão é oportuna e vantajosa. Saber qual a substância de cada uma das alterações a introduzir e a melhor forma a dar-lhes é matéria da especialidade.
Pois bem: a comissão eventual propôs, e por unanimidade dos votos dos seus membros presentes à reunião da aprovação do parecer final, que a discussão na especialidade se fizesse sobre a proposta da lei governamental, com as alterações, emendas e aditamentos que mereceram a sua aprovação e nas quais foram tidos em conta os projectos de lei n.ºs 6 e 7.
Tive ocasião de anunciar, no início do presente debate, que o Governo, desejoso de colaborar com a Assembleia Nacional, prontamente se dispusera a aceitar as alterações, emendas e aditamentos que a comissão eventual, de seu livre alvedrio, introduziu na proposta de lei.
Hoje posso reiterar a afirmação que então fiz e acrescentar que o Governo, salvo alguma alteração de redacção, não julga possível ir mais além na sua transigência.
Os textos da revisão constitucional estão pendentes de discussão desde o início de Dezembro de 1970. Foram objecto de cuidado parecer da Câmara Corporativa, a cujo labor há que prestar homenagem.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem!
O Orador: - Puderam sem examinados fora da Assembleia. Constituíram matéria de aturado estudo da comissão eventual. Termina agora a sua discussão na generalidade no plenário.
Todos podemos, pois, ter as nossas ideias formadas. E o Governo, que é responsável perante a Nação pela condução dos negócios públicos e ao qual não podem ser negados meios indispensáveis para corresponder a essas responsabilidades neste momento da história de Portugal e do Mundo, o Governo também está consciente do que convém aos interesses superiores do País em matéria de alteração constitucional.
Para que não restem d lívidas a nenhum dos senhores Deputados sobre o que devam fazer no caso de quererem colaborar com o Governo, estou autorizado, repito, a informar que ele adopta o texto a que a nossa comissão eventual chegou em conclusão dos seus trabalhos, e só esse adopta.
O Sr. Presidente do Conselho veio aqui dizer-nos, na sessão de 2 de Dezembro de 1970, quais as circunstâncias em que se processa essa revisão e quais as razões inspiradoras da proposta da Governo.
No final desta discussão permito-me pedir a todos os Srs. Deputados, eleitos sob a égide de Marcelo Caetano, que releiam esse discurso e que ponderem, em sua consciência de homens e de cidadãos, essas circunstâncias e essas razões.
O Sr. Júlio Evangelista: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Albino dos Beis: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Subo a esta tribuna vergado ao peso de muitas e laboriosas sessões da comissão eventual, de muitas sessões deste plenário, de muitos discursos, aliás brilhantíssimos, e só tenho, para aliviar-me esse peso, exactamente o brilho dos discursos aqui proferidos e a certeza da generosidade com que esta Câmara sempre me tem tratado.
Depois da leitura e estudo atento da proposta de lei, dos projectos, do exaustivo parecer da Câmara Corporativa, dos trabalhos da comissão eventual e do parecer que ela apresentou, que mais posso eu dizer a VV. Ex.ªs?
Não posso com certeza trazer nova luz a este debate, nem posso ter a ilusão de poder modificar qualquer das posições já tomadas.
Creio mesmo que não é pura figura de retórica dizer a VV. Ex.ªs que me está a acontecer o que acontece muitas vezes aos estudantes na véspera do exame: sentir um vácuo no seu cérebro. Varrerem-se da sua memória todos os estudos que fizeram, e, todavia, terem de ser submetidos no dia seguinte u dura prova do exame.
Se não fora, pois, o facto de ter presidido à comissão eventual e de não ter nessa comissão podido usar do meu direito de voto, para manter a imparcialidade indispensável durante os trabalhos dessa comissão e poder o meu silêncio no plenário ter interpretações indesejáveis, eu não teria subido a esta tribuna.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Esta Câmara, a meu ver, enobreceu-se, prestigiou esta instituição, conquistou seguramente na opinião pública do País; maior crédito quanto ao exercício do mandato que lhe foi confiado.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - A perfeita correcção dos debates, a compostura e a elegância das atitudes, o respeito pela sinceridade das opiniões alheias, foram para mim, encanecido nestas lides parlamentares, gratíssimo momento
Página 2305
30 DE JUNHO DE 1971 2305
para o meu coração. Nunca, pude ver, em nenhuma das posições tomadas, senão a maior pureza de intenções, a maior sinceridade de propósitos.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - É-me grato por isso, neste momento, congratular-me com a Assembleia pela maneira como tudo isto tem corrido. Felicito VV. Ex.ªs, congratulo-me com esta Câmara.
Quero, Sr. Presidente, afirmar a V. Ex.ª que serei brevíssimo nas minhas considerações. O debate vai muito adiantado, foi muito denso de controvérsias, nada poderei acrescentar de interessante para esta Câmara.
Todavia, desejo testemunhar, neste momento, aos vogais da comissão eventual o meu reconhecimento pelo esforço sério que fizeram, pelo estudo a que se dedicaram, dos problemas que lhes foram postos. Dizer-lhes quanto me impressionou a sinceridade e o desassombro com que afirmaram as suas posições Exactamente porque a sua consciência lhes aconselhava um caminho a seguir, independente de quaisquer pressões exteriores. Porque, Srs. Deputados, eu também não estaria mesta tribuna se não tivesse obrigação de vir aqui marcar claramente a minha posição em relação a uma insidiosa especulação política que fora deste recinto se fez - quando impendem suspeitas sobre as intenções de quem, com as suas grandes responsabilidades e, com certeza, com uma visão diferente dos caminhos a seguir, porque tem uma percepção mais realista do momento em que vivemos -, não podia deixar de vir a esta tribuna marcar a minha posição de clara reprovação a essa insidiosa especulação política fora deste recinto, repito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Sr. Presidente: Três são, a meu ver, os pontos essenciais da proposta de lei e dos projectos. São esses três pontos essenciais que deram vasto relevo e mereceram a maior atenção desta Câmara: é a questão dos direitos, garantias e liberdades individuais do artigo 6.º da Constituição; é o sistema de eleição do Chefe do Estado; é a questão das províncias Ultramarinas, da autonomia idas províncias ultramarinas.
Eu não venho aqui reeditar o velho tema: a antítese da liberdade e da autoridade. Não venho aqui entoar a canção lírica da liberdade, nem erguer perante VV. Ex.ªs a majestade austera da autoridade.
Dizem que eu sou liberal. Se por liberal se entende o horror ao poder discricionário e opressivo, ao tripúdio da força sobre o direito, à prevalência dos valores materiais ou das oligarquias financeiras sobre os valores espirituais e morais de uma nação, eu sou verdadeiramente liberal!
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas reconheço que, em determinados momentos da história de um país, é necessário que um Governo, dentro de leis justas, (procure afirmar o principio da autoridade e o prestígio da sua autoridade, porque muitas vezes, também, meus senhores, a fraqueza da autoridade conduz à negação das liberdades.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Todos têm os seus excessos: o autoritarismo e as liberdades. E eu não sei se através da história são mais os prejuízos resultantes do abuso das liberdades do que propriamente dos abusos do Poder.
E a esta luz que eu examino a proposta de lei quanto às liberdades e garantias individuais. Nitidamente, o espírito que anima a proposta de lei a este respeito é um propósito de ampliar as garantias, direitos e liberdades individuais.
Talvez o Governo ao fosse tão longe como desejava, porque teve de ponderar as circunstâncias do momento em que estava a legislar.
O momento que o País atravessa, como VV. Ex.ªs sabem, é um momento delicado, e há certos sintomas, certos sinais, que explodem de vez em quando, que nos mostram que não são risonhas as perspectivas. Em tais condições, penso que o Governo foi prudente em não ir além daquilo que consta da proposta de lei.
Exactamente porque estou convencido de que estas considerações prevaleceram no espírito dos autores da proposta, pensando que se a Constituição fosse rígida e dura quanto à fixação das garantias, quanto à enumeração Idos direitos e liberdades individuais, quanto ao sistema de eleição do Chefe do Estado, obrigaria o Governo, como acontece em alguns países, a ter de recorrer com frequência aos estados de emergência, à suspensão de garantias, com todo o desprestígio que isso acarreta para a estabilidade política de um país e para as instituições políticas que o regem.
Nestas circunstâncias não me custa nada, não faço violência à minha formação e ao meu espírito, dar aprovação a proposta de lei desse ponto, não obstante a minha tendência ser liberal.
Temos agora de examinar muito profundamente a proposta e os projectos de lei quanto à eleição do Chefe do Estado.
Há dois sistemas em discussão: a eleição por sufrágio directo e a eleição pelo sufrágio orgânico ou corporativo.
Direi com inteira imparcialidade que ambos esses sistemas, a face dos princípios em que se inspiram, têm a sua legitimidade.
Se me perguntarem a mim qual perfilho, direi muito sinceramente que toda a minha simpatia vai para o sufrágio directo. Tenho necessidade de ser fraco com VV. Ex.ªs para que não se suponha que eu vim para este tribuna camuflar os meus princípios.
Todavia, tamibém aí tenho de reflectir sobre o momento que estamos atravessando; nós estamos a legislar em 1971, quando ainda dura a guerra que nos impuseram em África, quando há sinais, como já disse, de tentativas de perturbações internas. E o momento em que é necessário não atingir a força moral e espiritual !da Nação, é o momento em que o Poder precisa de estar atento, pana não se enfraquecer e não se desprestigiar. Nestas circunstâncias e prevendo que infelizmente teremos ainda guerra em 1972, quando tivermos de fazer a eleição do Chefe do Estado, pergunto à minha consciência se será útil para o País estabelecer desde já o sufrágio directo, fazer reviver neste país o espectáculo que decorreu na última eleição por sufrágio directo? Teremos de novo esse espectáculo, mas aumentado e agravado pelas circunstâncias delicadas do momento.
Seria útil para robustecer a força moral da Nação? Mesmo para robustecer a força moral dos soldados, que nas fronteiras longínquas de África arriscam a sua vida em defesa da integridade do território?
Meus senhores, depois deste exame de consciência, eu penso que por enquanto não escolhamos o sufrágio directo.
Sr. Presidente: Temos agora a questão de autonomia das províncias ultramarinas.
Creio que este ponto foi de todos o que tocou mais vivamente a atenção desta Câmara e a atenção do Paes e que talvez tenha perturbado mesmo muitas consciências.
Página 2306
2306 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
Perturbado quando tiveram de tomar uma opção e prever quais as consequências dessa opção. Compreendo perfeitamente tais perturbações de consciência e isso só revela que têm consciência de verdadeiros portugueses e que procuram
determinar-se pelo melhor.
Ouvi mesmo falar em responsabilidades históricas o juízo incorruptível da história ...
Esse argumento não me comoveu. A história é muito variada e contraditória. Tão depressa eleva os que julga à altura de santos ou de heróis, como os reduz à situação de répteis e de traidores.
Eu digo-lhes muito simplesmente: gosto de ler a história. Sei alguma coisa de história. Gosto de ler a história quando ela me dá o encanto de uma arte literária de bom gosto, mas não tenho a maior das considerações pela infalibilidade da história. A história é feita por homens e os seus juízos são variáveis, estão sujeitos às suas paixões políticas. Mas se um dia tiver de responder no tribunal da história, Srs. Deputados, levo o conforto de que me vou encontrar em muito boa companhia ... e eu gostei sempre das boas companhias
Sr. Presidente: Não vejo na desconcentração progressiva, que me conste a proposta de lei acentua, não vejo nisso um perigo para a unidade nacional. Logo no artigo 4.º a proposta de lei afirma a unidade da soberania nacional. E o artigo 5.º volta a reafirmar a unidade do Estado Português.
No artigo 135.º define-se o que é autonomia, os parâmetros dentro dos quais ela pode ser exercida, e aí vem estabelecida, precisamente, qual a competência dos órgãos da soberania. Excluindo, portanto, da matéria de competência da soberania a competência dos órgãos locais. Está definido o conteúdo da soberania. Está definida a competência dos órgãos locais, em relação a cada uma das províncias ultramarinas. Penso que podamos estar tranquilos.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Suponho mesmo, meus senhores, que a desconcentração, a autonomia, favorece a maioria dos portugueses. Favorece mais a criação de um espírito nacional em toda a comunidade lusitana ...
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - ... do que um sistema de violenta repressão, de violenta asfixia dos sentimentos locais das populações.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Não é submetendo um país à violência de um leito de procustes que se pode ver florescer esse espírito nacional, esse espírito ide comunidade nacional que é necessário acalentar se queremos continuar todos pacificamente a viagem através da história do futuro.
Ditas estas palavras e como esta discussão vai muito longa, eu vou terminar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A comissão eventual elaborou por intermédio do relator um parecer de que VV. Ex.ªs já têm conhecimento. Espero que esse parecer tenha iluminado alguma coisa, a selva escura, como dizia o poeta, a selva escura constituída pelo conjunto da proposta de lei, dos projectos de lei, do parecer da Câmara Corporativa, do próprio parecer da comissão, tenha iluminado essa selva escura. Há para mim um facto impressionante, é que o Governo, tendo conhecimento desse parecer e tendo estudado esse parecer, mandou através
do seu líder comunicar à Assembleia que adoptava esse parecer. Isto enobrece o -Governo. Mostra que o Governo tem a compreensão da colaboração que deve existir entre os órgãos da soberania. Teve a compreensão das exigências da consciência desta Assembleia, para não fazer por ela apenas uma pressão de autoridade. Adoptou o parecer da comissão eventual. À luz deste facto, Srs. Deputados, não seria razoável crer que a Assembleia não mostrasse igual compreensão.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Não está mais nenhum orador inscrito para este debate na generalidade; não foi apresentada qualquer questão prévia tendente a retirar da discussão alguns dos diplomas pendentes da vossa atenção.
Declaro, pois, admitidos ao debate na especialidade a proposta de lei n.º 14/X e os projectos de lei n.ºs 6/X e 7/X.
Vamos passar à discussão na especialidade.
Está aberto o debate na especialidade.
O Sr. Trigo Pereira: - Peço a palavra para um requerimento.
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.
O Sr. Trigo Pereira: - Em meu nome e no de outros Srs. Deputados, requeiro que a votação da revisão constitucional se faça sobre o texto sugerido pela nossa comissão eventual, com prejuízo da proposta de lei n.º 14/X e dos projectos de lei n.ºs 6/X e 7/X.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª tenha a bondade de enviar para a Mesa o seu requerimento.
O Sr. Duarte do Amaral: - Sr. Presidente: Peço a palavra.
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.
O Sr. Duarte do Amaral: - Sr. Presidente: Desejo declarar que este debate muito brilhante não alterou II opinião, que expus quando tive a honra de subir à tribuna, de que o plenário desta Assembleia devia discutir tudo o que aqui foi legalmente apresentado, aprovando ou não, caso por caso, a proposta e os projectos de que tem estado a discutir.
Sendo assim, não posso dar a minha concordância ao requerimento apresentado.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: Regimentalmente, os requerimentos não têm nem justificação, nem discussão. Não posso, portanto, considerar as palavras de V. Ex.ª
O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: Peço a palavra para invocar o Regimento.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Sá Carneiro tem a palavra.
O Sr. Sá Carneiro: - Invoco os artigos 37.º e 38.º do Regimento, que tornam, a meu ver, inviável o requerimento apresentado.
Página 2307
30 DE JUNHO DE 1971 2307
O Sr. Presidente: - Conheço relativamente bem os dois artigos que V. Ex.ª citou e não posso encontrar neles quaisquer razões para tornarem inviável esse requerimento.
Mas, em todo o caso, V. Ex.ª está-se aproximando perigosamente - perigosamente, é evidente que é uma imagem de oratória - de infringir o Regimento, discutindo o requerimento.
V. Ex.ª diz-me que encontra nos artigos 37.º e 38.º matérias que tornam inadmissível este requerimento. Faça V. Ex.ª o favor de citar, precisamente, quais são os passos que tornam este requerimento inadmisssível.
O Sr. Sá Carneiro: - Se V. Ex.ª entendesse que isso é regimental, eu pediria que se abrisse discussão sobre o Regimento.
Vozes: -Não! Não!
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: O § 6.º do artigo 46.º é perfeitamente preciso. VV. Exas perante um requerimento, aprovam ou rejeitam-no, mas não o podem nem justificar, nem discutir.
O Sr. Sá Carneiro: - O que eu pretendia discutir não era o requerimento. Era a sua admissibilidade.
O Sr. Presidente: - É exactamente a mesma coisa.
O Sr. Sá Carneiro: - Parece-me que não. Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Qual é o passo do Regimento que define as condições de admissibilidade dos requerimentos?
O Sr. Sá Carneiro: - Eu vou referi-lo, mas, antes, não quero deixar de corresponder ao pedido de V. Ex.ª, citando, precisamente, os passos dos artigos que invoquei, que se me afiguram tornar inviáveis o requerimento apresentado. São: o artigo 37.º, § 1.º, já que o prejuízo é no fundo retirar, com prejuízo da proposta e dos projectos, o que equivale a retirá-los da discussão; é o § 2.º, já que as propostas que se pretende sejam apresentadas como único texto são propostas da comissão. E a comissão, por isso, não tem de fazer propostas nem de sugerir projectos de lei; é o artigo 38.º, na medida em que diz que o exame de especialidade será feito com base nas propostas de eliminação, substituição e emenda por disposição ou grupos de disposições, como a Mesa entenda.
Ora, mediante o requerimento, nós somos colocados ante um texto global da comissão, com o invocado prejuízo da proposta e dos projectos que V. Ex.ª acabou de declarar estarem admitidos à discussão na especialidade. Isto não é constitucional, nem regimental.
Tenho dito.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª está hoje para as interpretações de sua responsabilidade pessoal e a segunda.
O que quererá dizer a aceitação de um texto para base de discussão é que sobre o articulado desse texto incidirão quaisquer propostas de alteração que a Assembleia entenda dever fazer.
Não está, portanto, validada a argumentação que V. Ex.ª usou, com referência ao artigo 38.º
No artigo 37.º não há nada que impeça. A comissão a que V. Ex.ª se referiu não tem competência para fazer propostas, mas estão pendentes na Mesa, foram
apresentadas em tempo e encontram-se publicadas no Diário das Sessões, propostas, subscritas por Srs. Deputados, entre os quais se contam o presidente, o relator e os secretários dessa comissão eventual e que dão, portanto, bastante autenticação de que correspondem às conclusões da comissão; propostas de alteração dos tarticulados, sujeitas à deliberação da Assembleia.
Há um princípio regimentalíssimo, que é o do artigo 36.º, que permite à Assembleia considerar outros textos que sejam apresentados.
A circunstância de nesse artigo 36.º se figurar a hipótese de o texto de divergência provir da Câmara Corporativa não é de maneira nenhuma exclusiva.
Não há em todo o Regimento um passo único, liem em toda a Constituição um único passo, de que eu tenha conhecimento, que impeça a Assembleia, se quiser votar o requerimento apresentado, de adoptar, em relação ao texto aprovado pela comissão eventual e materializado em propostas de muitos Srs. Deputados, um princípio que será perfeitamente análogo ao que está estabelecido no final do artigo 36.º do nosso Regimento.
Srs. Deputados: Já está por de mais discutido o requerimento. VV. Ex.ªs determinar-se-ão como entenderem sobre ele; mas eu concedo uma interrupção para que possam meditar mais no sentido da sua aprovação ou da sua rejeição.
Está suspensa a sessão por alguns minutos.
O Sr. Presidente: - Esta reaberta a sessão.
Vai ser lido o requerimento, que se encontra sobre a Mesa, apresentado pelo Sr. Deputado Trigo Pereira e outros Srs. Deputados, e que em seguida porei à votação.
Foi lido. É o seguinte:
Requerimento
Requeremos que a votação da revisão constitucional se faça sobre o texto sugerido pela nossa comissão eventual, com prejuízo da proposta de lei n.º 14/X e dos projectos de lei n.ºs 6/X e 7/X.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 29 de Junho de 1971. - Os Deputados: Lopo Carvalho Cancella de Abreu - Manuel Elias Trigo Pereira - José Coelho Jordão - António Fonseca Leal de Oliveira - Teófilo Lopes Frazão - Joaquim José Nunes de Oliveira - Augusto Salazar Leite - José Vicente Cordeiro Malato Beliz - Filipe José Freire Themudo Barata - Humberto Cardoso de Carvalho - Eleutério Gomes de Aguiar - Júlio Dias das Neves - Augusto Domingos Correia - Fernando Nascimento Malafaia Novais.
O Sr. Presidente: - Esclareço a Assembleia de que o texto sugerido pela nossa comissão eventual se encontra substanciado sob a forma de propostas formais, publicadas no Diário das Sessões, n.º 112, e subscritas pelo número regimental de Deputados, entre os quais encontramos o presidente, o relator e os secretários dessa comissão eventual, como garantes da identidade dessas propostas com os textos votados pela comissão eventual.
O Sr. Sá Carneiro: - Peço a palavra.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª pediu a palavra, para?
O Sr. Sá Carneiro: - Para explicações & para interrogar a Mesa, Sr. Presidente.
Página 2308
2308 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
O Sr. Presidente: - Tenha a bondade de apresentar as suas explicações.
O Sr. Sá Carneiro: - Para explicações, apenas quanto aquele passo da referência que V. Ex.ª fez no sentido de hoje as minhas interpretações serem puramente pessoais. Eu queria explicar que não é hoje; são sempre, claramente, apenas pessoais.
Para interrogar a Mesa acerca do sentido e alcance da expressão usada no requerimento «com prejuízo da proposta e dos projectos».
O Sr. Presidente: - Parece à Mesa que o entendimento será este: a discussão incidirá sobre o sistema de propostas que traduzem as conclusões da comissão eventual e, é claro, em relação a esse sistema de propostas naturalmente poderão ser apresentadas as propostas de alteração que o Regimento consente. Não serão postas à discussão da Assembleia individualmente nem a proposta de lei n.º 14/X, nem os projectos de lei n.ºs 6/X e 7/X. Individualmente, quero dizer, especificadamente nos seus diferentes artigos.
O Sr. Sá Carneiro: - Eu requeiro a votação nominal, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: A votação nominal não me parece adequada a um requerimento. Vamos fazer, conforme o Regimento me autoriza a estipular a votação por levantados e sentados. Se for necessário, far-se-á a contagem. Em relação a um requerimento não é indispensável a votação nominal, nunca é, aliás, indispensável. V. Ex.ª conhece o Regimento, sabe que depende da decisão da Mesa conceder ou não conceder a votação nominal.
O Sr. Sá Carneiro: - Ponho à consideração da Mesa a necessidade de votação nominal para apresentação da declaração de voto. SÁ é possível nesse caso.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª deseja então fazer uma declaração de voto. V. Ex.ª quererá refrescar a minha memória dizendo em que circunstâncias é que o Presidente tem que deferir o requerimento de votação nominal?
O Sr. Sá Carneiro: - Eu não digo que tem que deferir, Sr. Presidente, eu requeiro; invoco esse fundamento e invoco também os artigos 52.º e 53.º do Regimento, o último dos quais diz que não podem deixar de votar os Deputados presentes à sessão. Só serão admitidas declarações de voto quando a votação for nominal, devendo ser feitas por escrito e enviadas à Mesa, que as mandará publicar no Diário das Sessões.
Ora, eu não posso nem quero deixar de votar, mas posso e quero apresentar uma declaração de voto. Se o requerimento for aprovado, reputo essa decisão anti-regimental e inconstitucional; e por isso não participarei na discussão na especialidade.
O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª dá-me licença, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Tem A palavra o Sr. Deputado Júlio Evangelista.
O Sr. Júlio Evangelista: - Pedi a palavra, em primeiro lugar, para me pronunciar sobre a forma de votação ...
O Sr. Presidente: - Sobre o modo de votar pode usar da palavra.
O Sr. Júlio Evangelista: -... sobre a forma de votação, dizendo a V. Ex.ª que o artigo 52.º do Regimento é imperativo no seu § 1.º, deixando liberdade ao Presidente da Assembleia Nacional para escolher a forma de votação. Neste caso particular, depois das considerações tão concisas, tão esclarecedoras de V. Ex.ª acerca da interpretação do Regimento, eu quero dizer a V. Ex.ª que a Câmara se encontra esclarecida e que as explicações que aqui foram dadas pelos Srs. Deputados, a quem V. Ex.ª liberalmente já concedeu a palavra, representam declarações. De outra maneira, se nos embrenhamos em votações nominais, a Câmara não enxergará o termo desta discussão.
Vozes: - Apoiado!
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vamos votar o requerimento que VV. Ex.ªs ouviram ler, por levantados e sentados.
Pausa.
Submetido à votação, foi aprovado.
O Sr. Sá Carneiro: - Peço a palavra.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sá Carneiro.
O Sr. Sá Carneiro: - A Mesa tem poderes para decidir, mas eu requeiro a contraprova por votação nominal.
O Sr. Ulisses Cortês: - Mas estamos na Assembleia Nacional ou no Tribunal de Barcelos?
O Sr. Presidente: - Vamos fazer a contraprova, por levantados e sentados.
Submetido à contraprova, foi confirmada a aprovação.
O Sr. Presidente: - Vamos, portanto, passar à discussão na especialidade, estando em discussão a redacção do § 2.º do artigo 2.º Vai ser lida a respectiva proposta.
Foi lida. É a seguinte:
Proposta de alteração
PARTE I
TITULO I
Artigo 2.º
Nos termos regimentais, propomos que o § 2.º do artigo 2.º da Constituição Política passe a ter a seguinte redacção:
Art. 2.º ..................
§ 2.º Nas províncias ultramarinas, a aquisição por Estado estrangeiro de terreno ou edifício para instalação de representação consular será condicionada pela anuência do Governo Português à escolha do respectivo local.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 25 de Junho de 1971. - Os Deputados: Albino dos Reis Júnior. - José Coelho de Almeida Coita - José Gonçalves de Proença - João Duarte de Oliveira - An-
Página 2309
30 DE JUNHO DE 1971 2309
tónio Vadre Castelino e Alvim - João Manuel Alves - Manuel Cotta Agostinho Dias-Bento Benoliel Levy - Albano Vaz Pinto Alves - Júlio Alberto Evangelista - Ulisses Gruis de Aguiar Cortês - Manual Monteiro Ribeiro Veloso - José Maria de Castro Salazar - Álvaro Filipe Barreto de Lara.
O Sr. Ulisses Cortês: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ulisses Cortês.
O Sr. Ulisses Cortês: - Sr. Presidente: O preceito em discussão tem de inserir-se, no seu contexto, que é o princípio geral consignado no corpo do mesmo artigo, segundo o qual o Estado não aliena de qualquer modo qualquer parcela do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce - princípio que inspira outros preceitos da revisão, referentes em especial ao ultramar português.
Desejaria fazer a este respeito, porque interligados, uma breve declaração.
Por imposição das circunstâncias e por exigências dos cargos que ocupei, assumi responsabilidades directas e pessoais na definição e sobretudo na execução da política ultramarina portuguesa.
Não enjeito essas responsabilidades. Não as repudio. Reafirmo-as na sua plenitude. Nada tenho a corrigir ou a rectificar. Permaneço fiel ao meu passado e aos princípios que sempre professei.
Esta posição corresponde aliás ao sentimento colectivo do Paus e tem raízes profundas na consciência nacional.
Mas, ao analisar a proposta do Governo, no seu aspecto formal e no seu espírito informador, verifico, em identidade de atitude com a Câmara Corporativa, que no texto governamental relativo às províncias ultramarinas se salvaguardam as grandes orientações que tenho por fundamentais: a unidade política, espiritual e moral da Nação; o carácter unitário do Estado Português; a indivisibilidade da sua soberania; a defesa inquebrantável da integridade nacional.
São estes os valores essenciais a manter, os princípios irrenunciáveis a preservar.
E são estas também as ideias basilares orientadoras do § 2.º do artigo 2.º, em discussão, e dos artigos 5.º e 133.º a 136.º da proposta, que lhe são conexos.
Mas o sentido da reforma constitucional não consta apenas da proposta; tem sido repetidamente esclarecido e afirmado em sucessivas declarações do Sr. Presidente do Conselho, a cuja autenticidade de atitudes, rectidão de propósitos e lídimo portuguesismo não quero deixar de render a minha homenagem.
Acrescentarei que o Mundo vive actualmente a hora das regionalizações e que a descentralização e a autonomia correspondem a necessidades que não podem ser iludidas para se evitar, a paralisia de centralização e as dilações do burocratismo. Mantendo-me, pois, igual a mim próprio, coerente com o meu passado, indefectível nas minhas ideias, dou o meu voto concordante ao preceito em debate, com as alterações aprovadas pelo Governo e exprimo igualmente a minha concordância com as disposições complementares dos artigos 133.º a 136.º, relativas ao ultramar.
E afirmo ao Governo a minha solidariedade sem reservas no seu esforço meritório de rejuvenescimento de concepções e estruturas, sem comprometer a unidade da
Nação, a sua vocação histórica e os rumos imutáveis do seu destino.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Presidente: - Continua em discussão.
O Sr. Veiga de Macedo: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.
O Sr. Veiga de Macedo: - Congratulo-me com o facto de no preceito em discussão (§ 2.º do artigo 2.º) não se fazer alusão ao Ministro do Ultramar, mas ao Governo. Aliás, noutras disposições adopta-se o mesmo critério, o que torna possível de futuro, à lei ordinária estabelecer, sem a actual peia constitucional na matéria, a distribuição das funções ministeriais por diversos departamentos.
É certo que a intenção do Governo afigura-se-me ser a da manutenção do Ministério Ido Ultramar com a sua actual estrutura e com a vastidão das múltiplas atribuições que o congestionam. Mas a alteração da proposta que ora se discute abre, por si, a possibilidade de se ultrapassar a orgânica tradicional que já há umas dezenas de anos, o general João de Almeida considerava contrária a uma administração racional assente numa visão global dos problemas de todo o espaço português e, simultâneamente, no estudo e resolução dos mesmos por sectores diferenciados, de acordo com a especialização dos serviços em função da natureza dos assuntos.
Este objectivo dificilmente se alcançará de outra forma, embora a passagem de um sistema para outro houvesse de ser feita com muita prudência, mas de modo firme e depois de aprofundada análise das realidades e de criteriosa escolha dos métodos a adoptar.
Ainda a propósito deste § 2.º do artigo 2.º, direi que apoiei a substituição das palavras «territórios ultramarinos» pelas de «províncias ultramarinas» por se me afigurar esta expressão mais precisa e conveniente. Aliás, a Câmara Corporativa também assim pensou ao propor a mesma substituição.
O Sr. Cunha Araújo: - V. Ex.ª dá-me licença, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Cunha Araújo.
O Sr. Cunha Araújo: - Se V. Ex.ª me der licença, é apenas para reflectir que aquilo que sucede comigo creio suceder com bastantes Srs. Deputados: é que não estamos habilitados com o texto da comissão eventual que está em discussão.
O Sr. Presidente: - V. Ex.ª não tem aí o n.º 112 do Diário das Sessões. Foi distribuído ontem ...
O Sr. Cunha Araújo: - Não tenho.
O Sr. Presidente: - Já tinha dito, e creio mais do que uma vez, que aí se encontram as propostas.
O Sr. Cunha Araújo: - Então queira V. Ex.ª desculpar, mas eu não me tinha apercebido.
O Sr. Presidente: - Em todo o caso se algum de VV. Ex.ªs, por qualquer motivo, não tem em seu poder o n.º 112 do Diário das Sessões, vou tentar obter exemplares para lhes serem facultados.
Página 2310
2310 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 114
O Sr. Cunha Araújo: - Aqui o nosso ilustre colega Sr. Deputado Salazar Leite chamou a atenção para o facto de que não vem o texto no n.º 112 do Diário das Sessões, mas apenas propostas de alteração.
O Sr. Presidente: - As propostas de alteração, conforme eu expliquei, são a substanciarão das redacções aprovadas pela comissão eventual.
Continua em discussão a alteração do § 2.º do artigo 2.º da Constituição.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como mais nenhum de VV. Ex.ªs deseja usar da palavra, passaremos à votação.
Submetida à votação, foi aprovada.
O Sr. Presidente: - Está aprovada a nova redacção do § 2.º do artigo 2.º, segundo a proposta apresentada pelo Sr. Deputado Albino dos Reis e outros.
Vamos agora passar ao artigo 4.º do mesmo título I da Constituição em relação ao qual também há uma proposta de alteração subscrita pelos Srs. Deputados Albino dos Beis, Almeida Cotta, Gonçalves de Proença, Castelino e Alvim e outros.
Vai ser lida.
Foi lida, é a seguinte:
Proposta de alteração
TÍTULO I
Artigo 4.º
Nos termos regimentais, propomos que o artigo 4.º da Constituição Política passe a ter a seguinte redacção:
Art. 4.º A Nação Portuguesa constitui um Estado independente, cuja soberania, una e indivisível, só reconhece como limites a moral e o direito.
§ 1.º As normas de direito internacional, vinculativas do Estado Português, vigoram na ordem interna desde que constem de tratado ou de outro acto aprovado pela Assembleia Nacional ou pelo Governo e cujo texto haja sido devidamente publicado.
§ 2.º O Estado Português cooperará com outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da Humanidade e preconiza a arbitragem como meio de dirimir os litígios internacionais.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 25 de Junho de 197]. - Os Deputados: Albino dos Reis Júnior - José Coelho de Almeida Cotta - José Gonçalves de Proença - João Duarte de Oliveira - António Vadre Castelino e Alvim - João Manuel Alves - Manoel Cotta Agostinho Dias - Bento Benoliel Levy - Albano Vaz Pinto Alves - Júlio Alberto Evangelista - Ulisses Cruz de Aguiar Cortês - Manuel Monteiro Ribeiro Veloso - José Maria de Castro Salazar - Álvaro Filipe Barreto de Lara.
O. Sr. Presidente: - Está em discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Duarte de Oliveira.
É da própria definição de soberania una e indivisível e tanto assim que, a partir de certo momento, foi julgado dispensável inserir nas Constituições esses atributos de soberania.
A necessidade de o fazer agora visa, por um lado, vincar bem esse atributo de soberania, por outro, deixar bem expresso que as alterações propostas para as províncias ultramarinas em nada afectam o conceito geral de soberania; que o poder supremo tem a mesma sede de sempre: a Nação. Que a soberania não se desmultiplica com a autonomia dos territórios.
Quanto à segunda alteração, sempre a soberania portuguesa se via limitada pelo direito e pela moral, tanto interna como externamente.
O Poder, quer nas suas relações com as pessoas, quer com outros poderes também soberanos, sempre se viu limitado pelo direito e pela moral, como aliás até já constava menos sinteticamente na parte final do corpo do artigo 4.º, que se revê.
Quanto ao § 1.º, é aqui consagrado o princípio da adopção em direito interno das normas de direito internacional, mas desde que contém de tratado ou de outro artigo aprovado pela Assembleia Nacional ou pelo Governo.
Assim se evita a prevalência das normas de direito internacional sobre o direito interno a que Portugal não tenha dado a sua adesão expressa.
É uma medida salutar e indispensável num tempo em que pode haver normas de direito internacional que não convenham ao nosso país.
Outras considerações a produzir seriam de ordem doutrinária.
No que respeita ao § 2.º é uma obrigação moral.
Directrizes ético-jurídicas e ético-religiosas informam a actuação do Estado Português, de tal modo que a moral cristã obriga-o a essa cooperação e a esse progresso ... (ler o § 2.º).
Ora, se a moral e o direito limitam o Estado Português na ordem externa, pelo que seria quase supérfluo este § 2.º, que, porém, até numa tradição constitucional aconselha a ficar expresso na Constituição.
O Sr. Presidente: - Continua em discussão a proposta de alteração ao artigo 4.º do título I da Constituição.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Como mais nenhum de VV. Ex.ªs deseja usar da palavra sobro este artigo, passaremos à votação.
Submetido à votação, foi aprovado.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão.
A próxima sessão será amanhã, à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação da discussão na generalidade e votação da proposta de lei de alterações à Constituição Política no texto que a Assembleia deliberou adoptar.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 15 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
António Bebiano Correia Henriques Cabreira.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
Página 2311
30 DE JUNHO DE 1971 2311
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Armando Valfredo Pires.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Delfim Linhares de Andrade.
Peruando Augusto Sentas e Castro.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Henrique Veiga de Macedo.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João Lopes dia Cruz.
João Manuel Alves.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
José Dias de Araújo Correia.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Rafael Valadão dos Santos.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Rogério Noel Peres Claro.
Rui de Moura Ramos.
Rui Pontífice Sousa.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.
Srs. Deputados que faltaram à chamada:
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alexandre José Linhares Furtado.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
Carlos Eugênio Magro Ivo.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Francisco Correia das Neves.
João António Teixeira Canedo.
Jorge Augusto Correia.
José da Costa Oliveira.
José Guilherme de Melo e Castro.
José João Gonçalves de Proença.
José da Silva.
Luís Maria Teixeira Pinto.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
O Redactor - Luiz de Avillez.
Rectificações ao n.º 110 do Diário das Sessões, feitas pelo Sr. Deputado Correia da Cunha:
P. 2215, col. l.ª, 1. 38, onde se lê: «Eu leio, eu leio», deve ler-se: «Eu leio»; na mesma página e coluna, 1. 39, onde se lê: «para me lamentar», deve ler-se: «para lamentar ...»; na mesma página, col. 2.ª, 1. 5, onde se lê: «a comissões, e não à comissão eventual», deve ler-se: «às Comissões de Legislação e Redacção e de Política e Administração Geral e Local, e não à comissão eventual»; na mesma página e coluna, 1. 12, onde se lê: «do plenário», deve ler-se: «no plenário», e na p. 2216, col. 1.ª, 1.59, onde se lê: «O Orador», deve ler-se: «O Sr. Agostinho Cardoso».
IMPRENSA NACIONAL
Página 2312
PREÇO DESTE NÚMERO 10$40