Página 2489
REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
ANO DE 1971 21 DE JULHO
X LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.º 124 DA ASSEMBLEIA NACIONAL
EM 2O DE JULHO
Presidente: Ex.mo Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto
Secretários: Ex. Srs. João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta, a sessão às 15 horas e 50 minutos.
Antes da ordem do dia. - Foram aprovados os n.ºs 121 e 122 do Diário das Sessões.
Leu-se o expediente.
Foram presentes a Assembleia, para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os Decretos-Leis n.º 308/71, 309/71 e 310/71.
A Assembleia negou, autorização para o Sr. Deputado Salazar Leite depor como testemunha no 2.º Juízo Correccional da Comarca de Lisboa.
O Sr. Deputado Alberto de Alarcão deu conta do projecto do Estatuto do Agricultor Europeu, aprovado pela Assembleia Consultiva do Conselho da Europa.
Ordem do dia. - Prosseguiu a discussão na especialidade e votação da proposta de lei sobre liberdade religiosa.
Foram discutidas e aprovadas as bases II e III, esta com uma alteração.
No debate intervieram os Srs. Deputados Almeida Cotta, Cunha Araújo, Moura Ramos, Meneses Falcão, Sousa Pedro, Sá Carneiro, Ribeiro Veloso, Oliveira Dias, Veiga de Macedo, Roboredo e Silva, Duarte de Oliveira, Bento Levy, Duarte do Amaral, Pinto Machado, Agostinho Cardoso, Teixeira Canedo, Magalhães Mota e Alberto de Alarcão.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas e 5 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
António da Fonseca Letal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Lopes Quadrado.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Amuando Júlio de Roboredo e Silva.
Armando Valfredo Pires.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Carlos Eugénio Magro Ivo.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfim Linhares de Andrade.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando de Sá Viana Bebelo.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco António da Silva.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Mancada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Página 2490
2490 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João António Teixeira Canedo.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José Maria de Castro Salazar.
José dos Santos Bessa.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Júlio Dias das Neves.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Artur Cotta Agostinho Dias.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel Martins da Cruz.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
Manuel Valente Sanches.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Ricardo Horta Júnior.
Rogério Noel Peres Claro.
Rui de Moura Ramos.
Rui Pontífice Sousa.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Teodoro de Sousa Pedro.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
Vítor Manuel Pires de Aguiar e Silva.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 79 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
ram 15 horas e 50 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.º 121 e 122 do Diário das Sessões.
Se nenhum de VV. Ex.ªs deseja usar da palavra para reclamação sobre estes Diários, considerá-los-ei aprovados.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Cartas
Do Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros do Distrito do Porto transcrevendo um telegrama enviado aos Srs. Presidente do Conselho, Ministro diais Corporações e Ministro do Interior.
Remetendo cópia de uma carta enviada ao Sr. Presidente do Conselho acerca de problemas do território de Cabinda.
De Manuel Morgado sugerindo que seja tratado na Assembleia o problema do divórcio.
Do Pe. Artur Jorge Pinto Lereno acerca da proposta de lei sobre liberdade religiosa.
Postal
De Fernando Couto sobre a mesma proposta de lei.
Telegramas
De Júlia Fonseca sobre a mesma proposta de lei.
De empregados da TAP sobre a detenção de Afonso Assunção Rodrigues e Manuel Candeias.
Da mãe de José C ar vela sobre a detenção deste.
De familiares de Manuel Custódio Jesus sobre a detenção deste.
Da direcção do Grémio Nacional da Imprensa, não Diária sobre a lei de imprensa.
Das Comissões Municipais de Ermera e de Suai (Timor) apodando a intervenção do Deputado por aquela província na discussão da revisão constitucional.
O Sr. Presidente: - Enviado pela Presidência do Conselho, encontra-se na Mesa, para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Diário do Governo, n.º 166, de 16 de Julho corrente, que insere os Decretos-Leis n.º 308/71, que introduz alterações ao Decreto-Lei n.º 41 204, que insere disposições relativas/às infracções contra a saúde pública e contra a economia nacional; n.º 309/71, que autoriza o Ministério do Exército a proceder à microfilmagem dos documentos que, nos termos da lei, devam ser arquivados, com excepção dos de valor histórico e dos livros, e n.º 310/71, que institui junto da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com carácter perpétuo., a Fundação Dr. José Alberto dos Reis.
Está ma Mesa um ofício do 2.º Juízo Correlacionai do Tribunal da Comarca, de Lisboa, datado de 14 do corrente mês, solicitando a comparência naquele Tribunal, em 28 do mês em curso, pelas 15 horas, do Sr. Deputado Augusto Salazar Leite, a fim de depor como testemunha nos autos de carta precatória vindos dal comarca de Barlavento, Cabo Verde.
O Sr. Deputado Salazar Leite informa-me de que vê inconveniente para a sua acção parlamentar em ser autorizado a fazer este depoimento durante o período do actual funcionamento efectivo da Assembleia.
Consultada a Assembleia, foi negada a autorização.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto de Alarcão.
O Sr. Alberto de Alarcão: - Sr. Presidente: Faleceu o Prof. António de Sousa da Câmara.
Está de luto a agronomia lusitana, está mais pobre a cultura nacional.
Seja permitido evocar a quem, dezoito anos vão volvidos, teve, pela primeira vez, a grata oportunidade de o escutar, discorrendo, sobre a «Responsabilidade social da Universidade», em tese apresentada e magistralmente desenvolvida em sessão plenária do I Congresso Nacional da Juventude Universitária Católica, realizado em 1953 nas instalações do Instituto Superior Técnico, da Universidade lisboeta.
Página 2491
21 DE JULHO DE 1971 2491
Permita-me, Sr. Presidente, que lhe consagre a singela homenagem de lhe dedicar estas minhas palavras de agora.
Sr. Presidente: Entre os objectivos fixados pela Confederação Europeia da Agricultura (C. E. A.) figuram não só os de carácter económico, anãs também os de carácter social e cultural. Razão pela qual este organismo vem, desde há quinze amos, chamando a atenção dos governos e das entidades responsáveis sobre a necessidade de melhorar as condições de vida do agricultor e trabalhador agrícola europeus, adequando os projectos de reformas estruturais com os necessários projectos de reformais sociais no âmbito da ruralidade.
Esta preocupação da C. E. A. pelos aspectos sociais dos agricultores e trabalhadores agrários europeus encontrou, finalmente, eco na Assembleia Consultiva do Conselho da Europa, a qual, em sua reunião de Janeiro de 1966, propôs aditar à Conta Social Europeia um protocolo adicional definindo e garantindo os direitos sociais dos agricultores (e demais trabalhadores agrários).
Pese embora à constante pressão da C. E. A., sòmente em Janeiro do ano findo a Assembleia Consultiva do Conselho da Europa, reunida em Estrasburgo, aprovou o seguinte Projecto de Estatuto do Agricultor Europeu, que desejo trazer à colação desta Assembleia e das páginas do Diário das Sessões para que conste:
Projecto de Estatuto do Agricultor Europeu
Os países membros do Conselho dia Europa, subscritores do presente acordo,
1. Considerando que a finalidade do Conselho da Europa é a de realizar uma união mais estreita entre os seus membros, tendo particularmente em vista favorecer o seu progresso económico e social;
2. Considerando que uma melhoria das condições de vida dos agricultores e trabalhadores europeus mediante a adopção de medidas apropriadas contribuirá para o progresso social na Europa;
3. Recordando que a Carta Social Europeia contempla a protecção social e a melhoria do nível de vida e a promoção do bem-estar das populações, tanto rurais como urbanas;
4. Considerando que a transformação profunda experimentada actualmente na agricultura europeia exige que se adoptem medidas apropriadas em favor dos agricultores e trabalhadores agrários europeus a fim de evitar o retrocesso social dessa categoria da população na sociedade moderna;
5. Estimando que convém completar e reforçar a protecção social dos agricultores e de seus familiares, e tendo em conta as condições particulares e o carácter específico das actividades agrícolas,
assentaram no seguinte:
Artigo 1.º As partes contratantes comprometem-se a aplicar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação efectiva das disposições contidas nos artigos 2.º a 12.º do presente Estatuto.
Art. 2.º- 1. Os agricultores e os trabalhadores agrícolas e florestais participarão de medidas de ordem social equivalentes às adoptadas para as outras categorias de trabalhadores.
2. As normas de segurança social previstas pela legislação nacional das partes contratantes deverão ser aplicadas, na medida do possível, aos agricultores e trabalhadores agrários que tenham direito a elas.
Art. 3.º Os agricultores (e demais trabalhadores agrários) participarão de um sistema de segurança social que lhes garanta as prestações em caso de doença, maternidade, invalidez, velhice, morte, acidente de trabalho e doenças profissionais, bem como de prestações familiares.
Art. 4.º Os agricultores desfrutarão de medidas específicas quando, por motivos de ordem estrutural, se vejam obrigados a abandonar, parcial ou totalmente, a sua profissão. Em tais casos adoptar-se-ão as seguintes providências:
a) As autoridades públicas oferecerão a tais agricultores todas as facilidades que lhes permitam realizar, nas melhores condições, uma mobilidade profissional ou exercer uma profissão complementar, susceptíveis de lhes assegurar um rendimento suficiente. Estas facilidades consistirão especialmente em medidas de orientação, de formação e de aperfeiçoamento profissionais, assim como na concessão de indemnizações temporárias;
b) Indemnizações justas ou prémios apropriados serão concedidos aos agricultores obrigados a abandonar a profissão, na medida em que, por motivos de idade, não possam exercer outra actividade.
Art. 5.º As autoridades públicas facilitarão a criação, nas zonas rurais, de novos empregos a favor dos agricultores obrigados a abandonar a profissão, dentro das finalidades de uma política de ordenamento do território adaptada às necessidades e possibilidades locais.
Art. 6.º As autoridades públicas tomarão todas as medidas apropriadas com vista a adaptar as explorações agrícolas à evolução e aos objectivos, imediatos ou a longo prazo, das políticas agrárias nacionais e internacionais, associando os seus dirigentes à elaboração destas políticas.
Art. 7.º As autoridades públicas tomarão todas as medidas apropriadas para:
a) A criação, nas regiões rurais, de um equipamento sócio-cultural adequado;
b) O estabelecimento de normas em matéria de salubridade e higiene, aplicáveis às construções agrárias, compeendida a habitação rural;
c) A concessão de empréstimos a longo prazo, isenções fiscais ou subvenções que permitam respeitar as normas previstas na alínea b) do presente artigo.
Art. 8.º A fim de assegurar aos filhos dos agricultores e trabalhadores agrários uma formação e uma educação o mais elevadas possíveis, serão tomadas as medidas necessárias para:
a) Conceder aos municípios rurais, ou às suas federações, os auxílios indispensáveis que lhes permitam construir os edifícios escolares necessários para abolir progressivamente o ensino em classes únicas e generalizar a assistência escolar;
Página 2492
2492 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
b) Adstringir às escolas rurais um professorado qualificado em número suficiente, mediante a atribuição de indemnizações por sua função nos meios rurais.
Art. 9.º - 1. Serão adoptadas medidas específicas a fim de assegurar a formação geral .e profissional dos jovens rurais por meio de uma orientação profissional de adaptação, a ser prestada por profissionais qualificados, desde o início ao termo da sua escolaridade.
2. Para além deste regime de aprendizagem, eventualmente já aplicado, estas medidas supõem o ordenamento ou a criação de um número suficiente de escolas profissionais, de centros de formação de nível universitário e de escolas superiores de agricultura.
3. O Estado providenciará a concessão de bolsas escolares aos jovens rurais.
4. Os jovens rurais disporão de serviços gratuitos de informação e de consulta nos diversos sectores da profissão agrícola.
Art. 10.º Com o fim de assegurar às .explorações agrícolas as condições de trabalho mais favoráveis possíveis, as autoridades públicas adoptarão as medidas necessárias para estimular a criação das diversas formas de cooperação e ide ajuda mútua entre os agricultores, assim como a participação de voluntários para certas actividades agrárias.
Art. 11.º As autoridades públicas tomarão as medidas necessárias a fim de:
a) Melhorar as condições de trabalho da mulher na exploração agrícola, especialmente através das instalações de moderno equipamento electrodoméstico para utilização comum;
b) Organizar e facilitar o serviço de auxiliares rurais e d« jardins de infância nos meios rurais.
Art. 12.º As disposições dos artigos 2.º a 5.º do presente Estatuto são aplicáveis aos membros da família dos agricultores e trabalhadores agrários, de modo a podarem beneficiar dos mesmos direitos.
Art. 13.º - 1. Cada parte contratante apresentará, durante ,os próximos três anos, ao secretário-geral do Conselho da Europa, na forma que vier a ser determinada pelo Conselho de Ministros, uma informação relativa não sòmente à, aplicação dos artigos 1.º a 12.º do presente Estatuto, mas também aos objectivos a longo prazo da sua política agrária e das suas implicações sociais, assim como dos resultados obtidos.
2. listes relatórios serão publicados pela Secretaria-Geral e submetidos, para aprovação, a uma comissão a designar pelo Conselho de Ministros e à Assembleia Consultiva do Conselho da Europa.
As mencionadas comissão e Assembleia Consultiva apresentarão ao Conselho de Ministros um relatório contendo as suas observações e propostas com vista a:
a) Cumprir uma aplicação mais eficaz do presente Regulamento;
b) Rever ou completar as disposições do mesmo.
Nesta hora de revisão de alguns estatutos fundamenteis do País não se me afigurou descabido ou despropositado aqui trazer, Sr. Presidente, que foi alma grande de dirigente de organizações agrárias regionais, para conhecimento ou recordação desta Assembleia, o projecto de estatuto do agricultor (e trabalhador agrário) europeu.
O mundo rural português também faz parte da Nação e bem merece participar, de pleno direito e sem discriminações:, nos benefícios e construção do seu futuro, do futuro de Portugal.
Tenho dito.
O Sr. Peres Claro: - Muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vamos passar à
Ordem do dia
Continuação da discussão e votação na especialidade da proposta de lei sobre a liberdade religiosa.
Vamos ocupar-mos da base II, em relação à qual há três propostas de alterações que vão ser lidas, bem como o texto da base.
Foram lidas, são as seguintes:
BASE II
1. O Estado não professa qualquer religião e ais suas relações com as confissões religiosas assentam no regime de separação.
2. As confissões religiosas têm direito a igual tratamento, ressalvadas as diferenças impostas pela sua diversa representatividade.
Propostas de alteração apresentadas por diversos Srs. Deputados:
BASE II
1. O Estado, em matéria de religião, manterá o regime de separação nas suas relações com as diversas confissões religiosas.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 15 de Julho de 1971. - Os Deputados: Raul da Silva e Cunha Araújo - Francisco Manuel de Meneses Falcão - Rui de Moura Ramos - Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho - Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral - José dos Santos Bessa - Álvaro Filipe Barreto de Lara.
BASE II
1. O Estado não adopta qualquer religião como própria e as suas relações com as confissões religiosas assentam no regime de separação.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 16 de Julho de 1971. - João Bosco Soares Mota Amaral - Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro - Francisco José Pereira Pinto Balsemão - Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias - Maria Raquel Ribeiro.
Página 2493
21 DE JULHO DE 1971 2493
BASE II
................................................................................
2. Em matéria de reconhecimento e de garantia da liberdade religiosa, bem como pelo que respeita à protecção jurídica contemplada na base anterior, todas as pessoas e confissões têm direito a igual tratamento; poderão, para outros efeitos, ser consideradas diferenças impostas pela sua diferente representatividade.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 16 de Julho de 1971. - Sá Carneiro - Pinto Machado - Pinto Balsemão.
O Sr. Presidente: - Estão em discussão conjuntamente.
O Sr. Almeida Cotta: - Esta base, segundo se diz no parecer da comissão eventual, foi longa e atentamente estudada, como, aliás, as outras, pelo que me é grato voltar a agradecer a excelente colaboração prestada pelos seus membros, e bem assim as palavras amáveis com que quiseram aludir à presidência.
Nela se estabelece que o Estado não professa qualquer religião e as suas relações com as confissões religiosas assentam no regime de separação.
No que respeita à igreja católica, a situação é exactamente a que já existia e se encontrava consagrada no artigo 45.º da Constituição: «O Estaco», diz-se neste preceito, «mantém relativamente à igreja católica o regime de separação, com relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal [...]».
As alterações introduzidas na Constituição não alteraram o statu quo.
Agora, esse regime torna-se extensivo a todas as confissões religiosas, que ficaram assim com direito a igual tratamento, ressalvadas as diferenças impostas pela sua representatividade. E esse é talvez um dos aspectos mais importantes que se teve em vista.
Não se trata de uma lei contra qualquer confissão, mas de uma lei a favor de todas; não se trata de tolerância religiosa, mas do reconhecimento e garantia de um direito.
O regime de separação implica a aconfessionalidade do Estado, e é apenas nesse sentido que deve entender-se o disposto no n.º I desta base, cumprindo-lhe, porém, assegurar a protecção jurídica adequada e permitindo - volto a repetir-, como se afirma na declaração do episcopado da metrópole, «que todos os cidadãos sigam e pratiquem a religião em que acreditam, desde que», conforme na mesma declaração se diz, «se guarde a devida ordem pública».
Parece-me, assim, que não é razoável atribuir-lhe um vislumbre sequer de atitude negativa do Estado perante o factor religioso, muito menos um sabor laicista.
O Rev. P.e António Leite, já muitas vezes aqui citado, chegou, salvo erro, a escrever e sugerir que a1 fórmula utilizada - o Estado não professa qualquer religião - era correcta do ponto de vista dos princípios, embora mais tarde viesse a mostrar preferência por outra solução.
Quanto a nós, ela exprime, mesmo só por si e independentemente, portanto, do texto em que se integra, uma posição do Estado face às confissões religiosas que é indispensável ficar claramente definida, sem prejuízo da representatividade destas, que é também outro factor real a considerar.
E isso não significa, de nenhum modo, indiferença ou mesmo neutralidade, mas, ao contrário, atento cuidado ao problema religioso e à enorme projecção dos seus valores; não significa laicismo, mas colaboração ou cooperação na imparcialidade.
A leitura da proposta mostra à evidência o interesse do Estado pelas várias confissões religiosas e, particularmente, pela tradicional do País, cujos princípios da doutrina e da moral informam o ensino por ele próprio ministrado. Já aqui referi outras razões justificativas da posição especial da igreja católica.
Estou convencido que o apontamento que a este respeito se fez no douto parecer da Câmara Corporativa seria diferente se tivesse recaído na proposta em exame, que dele aproveitou muitas das suas sugestões. Mas, como sabem, o parecer incidiu sobre a proposta inicial.
Ora, se o princípio está certo, se não é lícito conferir-lhe alcance diferente daquele que resulta da correcta interpretação da sua letra e do seu espírito, se realmente nada autoriza atribuir-lhe intenções ateístas - o que seria absurdo - nem tão-pouco laicistas - o que contraria a verdade dos factos - porque amputar a lei nos seus dignos propósitos de imparcialidade e de justiça perante todas as confissões, diminuindo um significado tão do agrado da igreja católica quando reclama não pretender privilégios?
De resto, o lugar especial que a igreja católica legitimamente ocupa no País, como há pouco declarei, é mantido tanto na Constituição como nesta proposta.
Por isso, não vejo razões para alterar esta base nem para aceitar as propostas de alteração apresentadas até agora, pois todas se limitam praticamente a eliminar a primeira parte do seu n.º 1 com fundamento de que não é necessário, visto resultar do regime de separação previsto para regular as relações entre o Estado e as confissões religiosas, ou pelo sabor laicista que se lhe poderia atribuir.
Ora, quanto a este último aspecto, suponho ter já demonstrado a sua inexactidão, devendo, pelo contrário, conferir-se-lhe outro sentido, e, quanto ao primeiro, penso que, como a mulher de César, também o Estado, além de parecer, deve ser na realidade imparcial, sem prejuízo - insisto - da representatividade de cada uma delas, facto tão natural no exame dos fenómenos sociais como na análise dos fenómenos físicos ou materiais: uma floresta e uma árvore não são a mesma coisa, nem se tratam da mesma maneira.
O Sr. Cunha Araújo: - Sr. Presidente: Acabo de ouvir, citada pelo Sr. Deputado Almeida Cotta, a opinião autorizada do Sr. P.e António Leite. Evidentemente que não tenho do Sr. P.e António Leite qualquer procuração para o representar. Mas, como aprendi, por sempre ter ouvido dizer, que o mudar de ideias é uma manifestação de inteligência, não me impressionou nada que o Sr. P.e António Leite, numa primeira observação desta base, se tivesse pronunciado favoravelmente, como manifestou o Sr. Deputado Almeida Cotta. No entanto, reflectindo mais maduramente sobre a expressão - segundo me consta e até segundo ouvi dizer ao Sr. Dr. Almeida Cotta -, ele veio rectificar aquela sua mesma opinião, em termos inequívocos e que contrariam a sua primeira opinião.
Sr. Presidente: Inconformado, desde a primeira leitura, com a redacção do n.º 1 desta base n, logo me predispus a recorrer à possibilidade da proposta de emenda para me pronunciar no sentado da supressão do que nela me pareceu desnecessário e chocante em consequência da usada expressão: «O Estado não professa
Página 2494
2494 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
qualquer religião.» E logo me predispus também a subscrevê-la inteiramente só, desacompanhado de outros colegas, dado que regimentalmente o podia fazer e não me sentia inclinado a aliciar adesões nem sempre fáceis de Conseguir, muito embora tivesse conhecimento de um generalizado entendimento consentâneo com o meu.
Aconteceu, porém, que, não sem justificada satisfação, quando me preparava para executar os meus desígnios, fui abordado - sponte sua - por dois ilustres colegas, que, havendo acompanhado as minhas aduzidas considerações «na generalidade» me manifestaram a sua vontade de me acompanharem, gentileza com que verdadeiramente me honraram. Simplesmente, a atitude desde logo me constituiu na obrigação de dar conhecimento do facto a outros ilustres parlamentares cujas opiniões sabia não serem igualmente concordes com a redacção que me havia merecido reparo.
Daí, o haver resultado subscrita por «muitíssimos» mais do que seria necessário a .proposta cuja viabilidade a minha única assinatura garantiria, melhor e mais expressivamente significativa na companhia que me proporcionaram nove dos meus ilustres colegas com prejuízo dos restantes signatários, que em muito ultrapassavam o número máximo de dez admitido pelo Regimento. Tudo o que, considerado o multifarismo das convicções políticas do conjunto proponente, representa, sem dúvida, una notável e louvável espírito de independência, a predominar sobre o demais uma sadia e dignificante manifestação de «querer» em matéria de sentimentos que em muito transcende o acessório das predilecções políticas de cada um.
E assim, para além do mais, todos podemos dar um alto exemplo de isenção e civismo, de que se poderão tirar ilações de relevante significado político, que não deixarão de sensibilizar o conjunto nacional na demonstrada possibilidade de as existentes correntes de pensamento diferente poderem, sem peias, «cerrar fileiras» para se manifestarem em contrário a uma proposta emanada do Governo, que por tal modo sai prestigiado em conjunto com esta Assembleia, inequívoca e salutarmente livre e independente.
Pois, Sr. Presidente, por esta forma se pôde verificar que não é de poucos, mas de muitos, a oposição ao conteúdo do n.º 1 da base II em discussão.
De muitos e de diferente formação política, que assim se mostram apegados ao que é património comum, os sentimentos de religiosidade de uma nação, através desta Assembleia - «não desinteressada», como já ouvi com desprazer -, tão «generosamente» inclinada a reconhecer um direito de livre exercitamento de cultos, e tão conscientemente que não duvido de que não seja sensível à redacção constante da proposta de alteração apresentada contra o que se entendeu ser uma manifestação expressa de a religiosidade por parte do Estado, que só se manterá verdadeiramente alheio na matéria se, e isso basta, simplesmente afirmar a adopção do regime de separação nas suas relações com as diversas confissões religiosas, tal como se preconiza.
De outro modo, católicos ou não, todos se poderão sentir ofendidos com a agressividade de uma formulação de princípio desnecessária - muitos, como eu, atingidos se sentiram -, já que ninguém pode deixar de conceber, no que concerne ao Estado, implicitamente resultante o entendimento de que não professa qualquer religião, atributo de consciência própria apenas dos indivíduos isoladamente considerados, predisposição interior, estado de alma que nunca será de pressupor no Estado, conjunto de órgãos que só no plano político a todos nos representa.
Isto pondo de parte, como já o referi na «discussão sobre a generalidade», a manifesta incongruência resultante da falta de correspondência com o contexto geral da proposta, donde pode até derivar a argumentação de que o «Estado não professa», mas «obriga a professar» - aliás na exacta observância de um ordenamento de inspiração constitucional.
Sem necessidade de ocupar mais tempo à Câmara faço votos por que tenham resultado incontroversas as razões que nos conduziram a reprovar o n.º 1 da base II em discussão, com o fim de obstar-se a que o Estado, como tal, tome posição de sinal negativo em matéria sobre que só se mostrará verdadeiramente independente se a não tomar.
Sr. Presidente: Estamos de tal modo cansados e dominados pelo calor que a todos nos tem apoquentado - V. Ex.ª, talvez, mais do que todos noa - que, olhando mais distantemente estou, muito justificadamente, a recear a discussão que se seguirá da proposto de lei sobre a liberdade de imprensa. Isto, dominado pela dúvida de que, por maior que seja o nosso afã, não conseguiremos tratar aprofundadamente, como devemos, tão importante problema. O que é simultaneamente grave no que, porventura, nos pode desprestigiar e ao Governo, de que aquela emanou. Pelo menos, àqueles que não «tiraram» umas férias para melhor se apetrecharem e defenderem.
Tenho dito.
O Sr. Moura Ramos: - Sr. Presidente: Com outros Sr s. Deputados, à frente dos quais se encontra o Dr. Cunha Araújo, subscrevi uma proposta de alteração para esta base II.
Consagram-se nela princípios que, em matéria religiosa, já dominam a posição do Estado Português: o princípio da aconfessionalidade ou neutralidade religiosa e o princípio da separação, designado preferentemente pelo Concílio por princípio de colaboração.
O princípio de que o Estado não deve ser confessional - mesmo num país quase totalmente católico -, pois, sendo-o, diz-se «ultrapassaria a esfera da sua competência, que é procurar o bem temporal dos cidadãos», tem vindo a ganhar cada vez mais terreno entre os novos-ricos do pensamento, que o advogam, chegando a ter adeptos entre alguns participantes no Concílio Vaticano U.
Porém, a fórmula usada na proposta de lei de se dizer que «o Estado não professa qualquer religião» parece-nos menos feliz, por equívoca, dando azo a que com ela possa entender-se que o Estado se desinteressa de todo o facto religioso, excluindo toda a ideia de Deus como coisa julgada dispensável.
Ora tal não acontece, nem deve acontecer. Na declaração do episcopado da metrópole, de 13 de Novembro de 1970, afirmou-se que «o Estado, por si mesmo, é laico, mas não pode ser laicista. Não pode assumir, em matéria religiosa, uma atitude de simples indiferença», citando a observação judiciosa do cardeal Daniélou de que «[...] A plena liberdade religiosa deve, portanto, ser reconhecida pelos Estados de maneira positiva.
Trata-se de uma exigência de direito natural. Quer o ateísmo do Estado, que impede a vida religiosa, quer o laicismo, que a ignora, são contrários ao direito natural».
Neutralidade religiosa não é, pois, o mesmo que indiferença pelo facto religioso, e o Estado, como ainda não há muito tempo disse o venerando cardeal Cerejeira, «não pode desinteressar-se do bem comum, e a vida moral e espiritual são componentes essenciais dele».
Página 2495
21 DE JULHO DE 1971 2495
Por isso mesmo é que se inseriu na Constituição Política uma fórmula em que o Estado, repudiando a adopção de qualquer posição laicista - por negação ou indiferença -, antes se veio afirmar «consciente das suas responsabilidades perante Deus», conforme a redacção aprovada para o artigo 45.º da lei fundamental.
Daí a nossa preferência para a redacção sugerida na proposta de alteração, que não tem a contundência nem a equivocidade da fórmula adoptada na proposta de lei, e é aquela que, segundo nos parece, melhor traduz a realidade.
Tenho dito.
O Sr. Meneses Falcão: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: No artigo 45.º da Constituição, lê-se: «O Estado, consciente das suas responsabilidades perante Deus e os homens, assegura [...]» Esta expressão - «O Estado, consciente das suas responsabilidades perante Deus e os homens» - obriga-nos a meditar neste n.º 2 da base I, e não há dúvida nenhuma de que sentimos um certo calafrio quando lemos assim: «O Estado - o tal que é consciente das suas responsabilidades perante Deus e os homens... - não professa qualquer religião. E evidente que o paradoxo, a contradição, estão mais no campo da sensibilidade do que no campo das realidades, sobretudo no sentido jurídico; e se alguém tivesse dúvidas a esse respeito, ficava perfeitamente elucidado depois do douto parecer, da douta explicação, do Sr. Dr. Almeida Cotta.
Em todo o caso, e na qualidade de subscritor desta proposta de alteração, sinto a obrigação de justificar o meu ponto de vista. E faço-o neste termos:
Na alteração proposta para o n.º 1 da base II, o que está em causa não é qualquer compromisso que prejudique o conceito de liberdade religiosa no sentido mais lato.
Nem fica ali negada compreensão pana a ideia de que o Estado, pessoa colectiva, não tem de filiar-se em qualquer confissão religiosa. Muito menos em circunstancias que prejudiquem os direitos conferidos a todos os cidadãos ao longo do diploma que estamos a analisar.
Por mim respeito, racionalmente, a tese que também pode ser enunciada, simplesmente, dizendo que o Estado não deve estar matriculado numa escola porque é o director-geral de todas as escolas.
Mas são muitas as razões que podem impelir-nos para o pensamento expresso no já consagrado parecer da Câmara Corporativa.
Razões de sensibilidade, essencialmente; mas não ficará mal falar em razões políticas num ambiente em que não devemos deixar de raciocionar em termos políticos.
Na proposta do Governo vem a afirmação «fria» de que o Estado não professa qualquer religião.
Mas, na mesma proposta, defende-se - e muito bem - que «o ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País».
Registe-se, ainda, que está reconhecida a religião católica como religião da Nação Portuguesa (artigo 46.º da Constituição Política).
Deste modo, tal afirmação, se não é contraditória, por raciocinarmos dentro do conceito abstracto de Estado, é, pelo menos, desnecessária, como se lê no exaustivo parecer da Câmara Corporativa.
Contudo, se nos refugiarmos no conceito de Estado segundo o senso comum, isto é, a Nação politicamente organizada, como pode dizer-se da Nação aquilo que a Nação não sanciona na sua grande maioria?
De qualquer modo, embora lamentando que oito séculos de história feitos à sombra da cruz de Cristo, não tenham conquistado, na hora conturbada que passa, um lugar oficial de maior relevo nesta disputa de lugares, bato-me simplesmente pelo propósito de evitar algumas palavras que ferem a minha sensibilidade e cuja falta não retira autenticidade à liberdade religiosa que se deseja para todos, nem prejudicará as intenções do legislador, a quem rendo as minhas homenagens, sem quebra de fidelidade que devo ao Legislador Supremo.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Sonsa Pedro: - Sr. Presidente: O articulado desta base corresponde, sensivelmente, ao da base IV do projecto da proposta de lei n.º 6/X.
Por essa razão os comentários tecidos a propósito pela Câmara Corporativa mantêm toda a sua actualidade e oportunidade.
A Câmara emitiu no parecer a opinião de que está certa» e item perfeito cabimento num diploma deste teor «a afirmação dogmática de que as relações do Estado com as organizações correspondentes às diversas confissões religiosas assentam no regime de separação». Considera, porém, desnecessária, supérflua e até inconveniente a declaração de que «o Estado não professa qualquer religião».
O regime de separação que se adopta nas relações do Estado com as diversas profissões religiosas é suficientemente expressivo da aconfessionalidade do Estado. Repisar o conceito que todos admitem sem discussão, com afirmações de «puro sentido negativo», sem uma palavra de reconhecimento por tudo o que a Nação e o próprio Estado devem à religião tradicional do País, parece de facto que não é preciso nem conveniente.
Sobre este ponto concreto se pronunciou o episcopado da metrópole ao achar «um tanto destoante» a redacção da base IV do projecto que corresponde, sensivelmente como se sabe, ao texto da base II da proposta de lei.
Estranharam os bispos e com eles certamente a grande massa da população católica do País que num diploma deste género não se faça qualquer alusão ao que para os Portugueses e, consequentemente, para o Estado «representa a religião católica no quadro das diversas confissões religiosas».
Podem o Governo, a Câmara Corporativa e a Assembleia Nacional entender que essa referência é dispensável pelo facto de a ela aludir o texto constitucional, que expressamente afirma, no artigo 46.º, que «a religião católica, apostólica e romana é considerada como religião tradicional da Nação Portuguesa».
Mas com o mesmo fundamento do recurso à letra da Constituição, não se vê por que motivo há-de a proposta ir além do texto constitucional que, no mesmo artigo 46.º, estabelece inequivocamente que «o regime das relações do Estado com as confissões religiosas é o de separação».
Por isso advogo a alteração sugerida para o n.º 1 desta base II pelo Sr. Deputado Cunha Araújo e outros Srs. Deputados, por me parecer mais conforme, repito, com o texto constitucionalmente consagrado. Penso, contudo, que a redacção se poderia sobrepor à que foi adaptada na Constituição no artigo correspondente.
Desde já aqui deixo expresso o meu voto de confiança à comissão de redacção na escolha da fórmula que vier a aceitar.
Inicialmente tinha pensado adoptar o critério sugerido pela Câmara Corporativa, propondo para o n.º 1 a alteração que já defendi e eliminando o n.º 2 desta base.
Página 2496
2496 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
Diz a Câmara que «o princípio da igualdade de tratamento jurídico das diferentes confissões não é necessário à regra fundamental da liberdade religiosa».
Por outro lado, a afirmação de que «as confissões religiosas têm direito a igual tratamento» pode acarretar ao Estado situações de conflito que o Governo, com certeza, gostaria de evitar. Tem sido citado como exemplo que os Muçulmanos, com fundamento na letra deste n.º 2, «poderiam exigir o reconhecimento, na ordem jurídica portuguesa, do casamento poligâmico, admitido pelo islamismo», o que é inconstitucional.
Com o mesmo argumento poderia a mesma ou outras religiões exigir que o ensino ministrado pelo Estado fosse orientado pelos princípios das respectivas doutrinais, em situação paralela às do ensino inspirado pela doutrina e moral cristãs.
Não nego que assim pudesse ser nos territórios onde o número de fiéis de confissões diferentes da religião católica fosse suficientemente expressivo. Do que duvido é da constitucionalidade de uma tal medida, se algum dia viesse a ser requerida e aceite.
Será que, no espírito do legislador, o conceito de representatividade a que faz apelo é garantia suficiente para obviar a semelhantes desvios?
Subjacente ao conceito estaria a ideia da qualificação especialmente consignada no texto constitucional quanto à religião católica, apostólica, romana.
Partindo deste princípio, não nos custa admitir que a diversa representatividade, apontando o sentido do texto constitucional, possa ser a única ressalva prevista pelo Estado ao afirmar a igualdade de tratamento que atribui às confissões religiosas.
De qualquer modo, a redacção que foi dada ao n.º 2 desta base é susceptível de controvérsias, que se dispensariam com a sua eliminação pura e simples, e sem prejuízo, creio eu, da matéria expressa no número anterior.
Se a Assembleia optar pela manutenção, votarei de preferência o articulado sugerido pelo Sr. Deputado Sá Carneiro e outros, pois parece-me corresponder mais exactamente ao espírito do legislador, tal como o interpreto.
O Sr. Sá Carneiro: - Relativamente ao n.º 1 da base II, Sr. Presidente, entendo que a afirmação de que o Estado não professa qualquer religião se deve manter.
É possível, e será essa a principal objecção, que ela já derive da segunda parte deste n.º 1, ou seja, do regime de separação quanto a todas as religiões.
Simplesmente, parece-me oportuno salientar o traço mais evidente desse regime de separação, que é o da aconfessionalidade do Estado. Não se trata de defender a arreligiosidade do mesmo. Já na base I, votada na passada sessão, ficou claro que a posição do Estado face ao fenómeno religioso não é nem de antagonismo, nem de ignorância, mas de reconhecimento jurídico.
Simplesmente, a redacção que consta da proposta de Lei é que me não parece muito feliz, pois a profissão de uma religião é um fenómeno necessariamente humano, diz respeito única e exclusivamente à pessoa humana, já que a religião, no seu conceito lato, que é aquele que domina esta proposta e a disciplina jurídica da liberdade religiosa, é a relação do homem com a causa da sua própria natureza, da sua existência e do seu espírito. Qualquer relação deste tipo é necessàriamente de carácter religioso, leva à reflexão sobre a própria origem do homem, e à sua actuação em função dessa reflexão.
Como pessoa colectiva que é de direito público, o Estado não pode evidentemente professar uma religião, pode, sim, adoptá-la ou não; e nesse sentido a proposta que subscrevi com o Sr. Deputado Mota Amaral viria dizer que o Estado não adopta qualquer religião como própria.
Relativamente ao n.º 2 da base II, em que há também uma proposta de alteração de que sou signatário, visa ela a deixar claro que a diferença de representatividade jamais pode reflectir-se na disciplina jurídica da liberdade religiosa; e assim propomos que se diga que em matéria de reconhecimento e de garantia da liberdade religiosa, bem como pelo que respeita à protecção jurídica contemplada na base anterior, todas as pessoas e confissões têm direito a igual tratamento. Não deve, a meu ver, ter aqui qualquer influência a diferente representatividade, ela poderá, sim, ser atendível para outros efeitos: para efeitos sociais, para efeitos de toda e qualquer outra ordem, será atendível a diferença de representatividade, mas nunca para efeitos da igualdade de tratamentos; é esse o sentido da emenda ao n.º 2 da base II.
Tenho dito.
O Sr. Cunha Araújo: - Evidentemente que a comissão eventual para o estudo da proposta sobre liberdade religiosa se debruçou, no trabalho havido, sobre todas as possibilidades de minimizar esta fórmula contra que a minha proposta se rebela.
Já tinham sido sugeridas, justamente entre elas, com o espírito de fazer uma modificação que não fosse de nenhum modo agressiva para qualquer religião, já se tinha sugerido, dizia, a possibilidade de se adoptar a fórmula que consta da proposta de emenda do Sr. Deputado Sá Carneiro: «O Estado não adopta qualquer religião. E não só esta, mas aquela outra que chegou ainda a fazer um princípio de carreira, em que se dizia que «o Estado não consagra qualquer religião como própria», o que foi desde logo repudiado por mim e outros colegas na comissão eventual.
Nestas circunstâncias, pondo de parte as expressões que devem ou não devem ser usadas, parece-me a mim que o problema que se põe é o de saber se há ou não há necessidade de o Estado fazer uma declaração, no sentido em que o faz na proposta da comissão eventual, isto é, «o Estado não professa qualquer religião».
Quanto a mim, e agora aos demais subscritores da proposta de alteração de que tive a iniciativa, entendo e insisto que o Estado não precisa de fazer quaisquer declarações nesse sentido, pois lhe bastará declarar o regime de separação com as diferentes confissões religiosas. Portanto, quaisquer outras fórmulas que possam ser sugeridas, é fugir decididamente à dificuldade e ao problema que se põe. O que nós pretendemos, e o que pretende a maioria da consciência nacional, é que não fique expressamente declarado, numa lei sobre a liberdade religiosa, que o Estado não professa qualquer religião.
Tenho dito.
O Sr. Almeida Cotta: - Sr. Presidente: Eu realmente estou de acordo com o Sr. Deputado que acabou de usar da palavra, quando diz que o principal e o indispensável é que fique claramente estabelecida a necessidade ou não necessidade de se fazer preceder o regime de separação, que é princípio fundamental estabelecido para as relações entre p Estado e as diversas confissões religiosas; se será ou não conveniente fazê-lo preceder da declaração, de que não professa qualquer religião, porque o Estado não professa qualquer religião.
É um facto, ninguém o contesta, o Sr. Dr. Cunha Araújo a mesma coisa, ninguém contesta que o Estado, realmente, como pessoa colectiva, não professa qualquer religião. Disse-o aqui o Sr. Dr. Sá Carneiro, disse-o numa intervenção que fez na generalidade, e não sei até se agora
Página 2497
21 DE JULHO DE 1971 2497
o Sr. Dr. Cunha Araújo. Portanto isto representa um facto, nada de novo além do reconhecimento do facto: o Estado não professa qualquer religião.
Quanto à necessidade de fazer constar da lei, realmente, o reconhecimento desse facto, pois eu volto a repetir, que, Como a mulher de César, será necessário que o Estado não garanta apenas tacitamente a sua imparcialidade, mas que a exprima tal e qual, como mais tarde eu virei defender - que os pais devem expressamente confirmar uma anuência tácita, que está prevista adiante, para autorizar os filhos a receberem a educação religiosa e a moral.
E aqui está, com toda a simplicidade, do que se trata. Eu nunca falei aqui nisso, e sou quase forçado a dizer: eu também sou católico, também sou apostólico, e não me sinto nada constrangido, pelo contrário, que fique bem claro que realmente o Estado, que tem diante de si várias religiões, e não como na Constituição, em que apenas se reconhecia a igreja católica. Forque o que estamos a resolver é precisamente o reconhecimento da personalidade jurídica às outras confissões religiosas, o Estado não estiava na mesma situação, a situação era diferente.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
O Sr. Ribeiro Veloso: - Foi aqui feita já a afirmação de que a religião católica é a religião tradicional do País, e estou convencido de que com esta afirmação queriam referir-se só ao Portugal europeu.
A afirmação de que o Estado não professa qualquer religião parece-me conveniente, pois que isso não põe em dúvida as suas relações com a religião tradicional do Portugal europeu e garante a todas as outras confissões que elas se encontrem em situação idêntica para com o Estado.
Parece-me, assim, o texto da proposta de lei o mais conveniente e o que melhor satisfaz ao País, querendo significar com País o todo nacional.
O Sr. Oliveira Dias: - Das redacções propostas para o n.º 1 desta base subscrevi, e, por conseguinte, julgo a mais conveniente, aquela que é sugerida: «O Estado não adopta qualquer religião [...]». Praticamente é a da proposta do Governo; só se substitui a expressão «não professa» por «não adopta», que reputo mais conforme com as realidades.
Como agora recordou o Sr. Deputado Moura Bastos, na definição do documento difundido pelo episcopado da metrópole sobre o problema da liberdade religiosa «o Estado, por si mesmo, é laico, mas não pode ser laicista». Ora, se é laico, isso significa, justamente, que não adopta qualquer religião, embora deva promover as consentâneas com o bem comum. Este será, também, o sentido da proposta do Governo, mas julgo a expressão «não professa» menos exacta, porquanto professar significa praticar, seguir, e o Estado, como tal, nunca pode abraçar qualquer religião. Pode, sim, adoptar uma religião como religião da Nação, como até há pouco sucedia entre nós. Professar uma religião é acto próprio de indivíduos.
Por estas razões, dou o meu voto à citada proposta de emenda que substitui a expressão «não professa» da proposta do Governo por «não adopta».
O Sr. Veiga de Macedo: - A base II da proposta de lei é semelhante à base IV do projecto da proposta de lei.
A Câmara Corporativa entende que a primeira parte do preceito contido no n.º 1 desta base deve ser eliminada. «Esse apêndice introdutório ... traduzido na proclamação nua e crua de que o Estado não tem religião própria .... afigura-se» - à Câmara Corporativa - «desnecessário, uma vez que as relações do Estado com as várias confissões religiosas, sem exceptuar a católica, se regem pelo princípio de separação».
Além disso, a Câmara reputa a disposição supérflua nessa parte, quer pelo seu pronunciado sabor laicista, quer pela manifesta desarmonia existente entre a afirmação descarnada da arreligiosidade do Estado e o espírito e alcance de determinadas posições por ele assumidas, a começar pelo compromisso doutrinário em matéria de educação.
Não me oferecem dúvidas estas observações nem aquela que a Câmara faz no sentido de que «a liberdade não tem puro sentido negativo, expresso na eliminação de qualquer coacção sobre o pensamento ou a acção dos homens em matéria de religião», pois «ela reveste ainda um sentido marcadamente positivo, inspirado no valor social do fenómeno religioso, que obriga o Estado, embora de modo indirecto, a criar condições propícias ao seu livre exercício».
Não resisto à tentação, ainda sobre este último aspecto, de lembrar o que na declaração do Episcopado da metrópole sobre o projecto de lei relativo à liberdade religiosa se disse para fundamentar esta verdade de que se «o Estado, por si mesmo, é laico», ... «não pode ser laicista ... e assumir, em matéria religiosa, uma atitude de simples indiferença».
Naquele documento inscreveram-se, na verdade, palavras dignas de reflexão, como estas.
«E a razão está em que a vida religiosa do homem entra na própria composição da sua felicidade, mesmo terrena, tornando-se assim indispensável para a construção de uma sociedade convenientemente ordenada e integralmente sã», pelo que «os poderes públicos a devem, não apenas aceitar, mas proteger e promover».
São ainda de transcrever estas judiciosas palavras de um teólogo contemporâneo:
Dado que a dimensão religiosa pertence essencialmente à natureza humana, deve ser reconhecida pela sociedade civil, a qual é responsável pelo bem comum, como um elemento construtivo do mesmo bem comum. A plena liberdade religiosa deve, portanto, ser reconhecida pelos Estados de maneira positiva. Trata-se de uma exigência do direito natural. Quer o ateísmo de Estado, que impede a vida religiosa, quer o laicismo, que a ignora, são contrários ao direito natural.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Os bispos portugueses, por tudo isto, reconhecendo embora que «o diploma revela o propósito de conceder a todas as confissões uma liberdade que não seja apenas sinónimo de simples tolerância», ... «consideram algum tanto destoante deste propósito a redacção da base V (base IV do projecto, equivalente à base II da proposta), que pode sugerir «a conclusão de que o Estado deseja assumir uma atitude meramente negativa em relação ao factor religioso».
Foi esta a orientação que defendi na comissão eventual e não vejo que, entretanto, tenham sobrevindo quaisquer razões que, de algum modo, a tivessem afectado. O sentido do meu voto ressalta, assim, bem nítido: será de plena aprovação da proposta de alteração que conduz à eliminação da primeira parte da base II.
Uma lei desta magnitude e desta natureza não pode, mesmo formalmente, ser contraditória nos termos e estes devem ser definidos com meridiana clareza.
«Decerto a esfera religiosa não é da competência do poder civil; mas este ... não pode ignorar a projecção so-
Página 2498
2498 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
cial dos valores religiosos nem furtar-se ao auxílio e protecção que lhes deve por imperativo do bem comum. Se aconfessionalidade não significa de modo nenhum neutralismo, também separação e colaboração se devem ter como realidades complementares».
Felizmente, não há entre nós numa questão religiosa, pelo que também os bispos portugueses fizeram bem em advertir que seria pernicioso para o País se criasse na opinião pública a ideia falsa de que ela existe. Ora, seria também menos desejável que um documento como aquele que vai ser votado pela Assembleia pudesse, de qualquer modo, mesmo no aspecto formal, ser diminuído na autenticidade das suas altas intenções e na coerência das suas proposições fundamentais.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: -Ainda sobre a mesma base, permito-me recordar o que aqui disse, há dias, aquando da apreciação do artigo 46.º da proposta de lei relativa à revisão constitucional.
Na verdade, e sobre o regime da separação, pronunciei-me favoravelmente quanto à sua manutenção, mas considerei o termo que o individualiza menos próprio, «até pelo que recorda de uma política do passado toda centrada, em nome da separação contra a ideia de Deus e contra a verdadeira e efectiva liberdade religiosa».
Pena é que se não tenha adoptado entre nós uma solução semelhante à da Constituição italiana, que se exprime em termos mais realistas e aceitáveis e que, sem ferir qualquer confissão religiosa, logra estabelecer a posição da Igreja Católica de acordo com os factos e com os interesses gerais.
Neste pendor de ideias, não poderia também deixar de levantar reservas ao que se dispõe no n.º 2 da base II. Afiguram-se-me, com efeito, bem fundamentadas as dúvidas que sobre a mesma matéria são apontadas pela Câmara Corporativa.
Recordo as considerações que sobre a posição especial da religião católica no nosso país aqui produzi há dias, aquando da apreciação da proposta da revisão constitucional, pois quero confirmá-las inteiramente, apoiando-me, uma vez mais, na declaração do Episcopado, e sem quebra do princípio da liberdade religiosa que defendo na linha de um fundo pensamento renovado pelo Concílio. Os historiadores mais insuspeitos reconhecem que «há, desde o início da nacionalidade, tanto no pequeno território europeu como nos vastos territórios do ultramar, a presença contínua da Igreja, como educadora dos nossos sentimentos, daquilo que há de mais profundo na nossa maneira de ser ou de estar no mundo ...
E esta presença não se deve medir em termos puramente estatísticos ou de simples representatividade numérica, isto é, só porque são maioria os católicos entre nós. Há-de medir-se em termos de civilização e de história, prolongada por mais de oito séculos de vida nacional».
Mas pretender-se-á, acaso, que o n.º 2 da base II dê guarida a esta verdade ou a este princípio? Se assim é, lograr-se-á atingir tão alto objectivo? Bem quisera responder afirmativamente, mas não posso esquecer a votação de há dias desta Assembleia sobre o artigo 46.º da Constituição, a que não pude aderir, porque também entendo que «a Nação é muito menos o somatório dos cidadãos habitantes de certo território do que uma forma de cultura, uma alma, um património de ideias vividas em comum», às quais - a essa forma de cultura e a essas ideias - deveria continuar subordinado constitucionalmente, de modo inequívoco, o Estado ...
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Estas considerações levam-me a concordar com a proposta de alteração do Deputado Cunha Araújo, embora me parecesse preferível a redacção da Câmara Corporativa, e a discordar do n.º 2 da proposta de lei e, pela mesma razão, ou, melhor, por maioria de razão, da alteração preconizada pelos Deputados Sá Carneiro, Correia da Silva e Pinto Balsemão. A ter de optar por uma ou por outra destas últimas, preferiria a do Governo, por me parecer mais sóbria, mais dará e mais apropriada à disciplina da matéria que abrange.
O parecer da Câmara Corporativa elimina as importantes questões que, neste plano delicado da Fé, tocam profundos sentimentos dos homens e sobre as quais muitos se deixaram possuir de ideias unilaterais e sectárias de seautido positivo ou negativo.
Valerá a pena falar da Lei da Separação de 1911 e do que ela representou para o País em aspectos de maior gravidade, a ponto de, no preâmbulo do Decreto n.º 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, o Ministro da Justiça Moura Pinto ter escrito estas palavras incisivas?
Mas, se é certo que as leis de ordem geral devem reflectir, na mais larga medida, as aspirações do País a que se destinam, nem sempre os legisladores conseguem furtar-se ao império dos seus sentimentos e das soías paixões, de modo a manterem-se serenos e lúcidos intérpretes da vontade da Nação. Assim aconteceu com a Lei da Separação. Contendo princípios universalmente aceites, como garantia do pensamento e da consciência, medidas indispensáveis à segurança da ordem e dos interesses do Estado, ela viu em demasia o Estado em função de ordem e de interesses e, impropriamente, misturou o Regime em contendas de crenças, como se a República em 5 de Outubro fundasse uma religião que tivesse um credo hostil a qualquer outra já existente.
E se a intolerância política ou religiosa por parte dos cidadãos constitui o mais deplorável espectáculo que pode oferecer um país livre e moderno, a intolerância do Estado nem sequer se compreende, degradando a sua alta missão de equilíbrio e imparcialidade.
Os tempos mudaram e, ao menos neste domínio, creio que estes problemas tão melindrosos estão a ser encarados com maior abertura de espírito e com mais objectividade. Mesmo assim ficaram no ar e nas mentalidades muitos preconceitos e deformações que é mister superar. Por outro lado, não são raras as confusões em volta da matéria. Algumas dessas confusões estão bem denunciadas no parecer da Câmara Corporativa e não será de todo inútil chamar, por exemplo, a atenção para o que nesse documento se escreve no seu n.º 26 sobre «a liberdade religiosa e a igualdade de regime jurídico aplicável as diferentes confissões».
A Assembleia Nacional poderá não concordar com tal ponto de vista, mas não deverá votar qualquer norma em sentido contrário, sem o rebater e sem demonstrar que há outro mais procedente. Quem diz Assembleia Nacional, diz Governo, claro está.
Vozes: - Muito bem!
Página 2499
21 DE JULHO DE 1971 2499
O Orador: - Por mim entendo, como aquela Câmara, que os conceitos de liberdade e igualdade são distintos:
Uma coisa é a liberdade religiosa e a igualdade dos cidadãos perante a lei, seja qual for o seu credo, que se referem à eliminação de toda a coacção em matéria de religião e constituem o mínimo igualmente exigível do Estado por todas as confissões reconhecidas. Outra coisa é o conjunto de providências que, excedendo o mínimo de tutela exigível por todos em obediência ao princípio da imunidade de coacção, se consideram aplicáveis apenas a algumas delas.
Sendo certo que o «verdadeiro princípio da paridade não é a cada um o mesmo, mas a cada um o que lhe pertence, na Alemanha Ocidental a Igreja Católica e a Igreja Evangelista são consideradas corporações de direito público, ao passo que as outras, por terem menor influência na vida nacional, possuem estatutos de simples associações de carácter privado.
Este tratamento diferenciado afecta a liberdade religiosa? É evidente que não, sendo ainda certo que os Estados poderão celebrar acordos, com mais facilidade e segurança, com as confissões religiosas mais bem definidas nas suas estruturas e hierarquias e com «um ordenamento jurídico dotado de autonomia» e de maior estabilidade. Este aspecto é particularmente evidente no que se refere à Igreja Católica, que surge como uma organização de amplitude internacional e com os seus contornos, atribuições e finalidades devidamente estabelecidos, até com soberania e com representação diplomática assegurada, sem que o seu responsável mais alto seja chefe de uma potência com domínios territoriais e interesses de ordem política e económica a defender ou a expandir.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - No mencionado parecer, refere-se que «a lenta e conhecida sedimentação de princípios (da Igreja Católica assente numa organização jurídica que conta muitos séculos de existência) com uma notória vocação ecuménica fornece naturalmente aos diferentes Estados uma base jurídica mais sólida de apoio do que a facultada por outras confissões religiosas, algumas das quais se insurgem mesmo, como é sabido, contra o assento jurídico da organização eclesial romana», pelo que «assim se compreende que o reconhecimento da personalidade jurídica de associações católicas possa ser mais facilitado do que o das associações integradas noutras confissões diferentes: que, no primeiro caso, possa nomeadamente vigorar o sistema do reconhecimento normativo e, no segundo, o regime de reconhecimento por concessão.
Para além de aspectos de outra ordem e até de maior relevância de fundo, estas circunstâncias de facto não podem ser iludidas nem ilididas, porque se impõem com a força das realidades inafastáveis.
E penso que nem sequer é necessário falar do princípio relativo à educação consagrado no artigo 43.º, § 3.º, da Constituição e reenunciado na proposta de lei em debate no n.º 1 da base VII. Acaso esse princípio poderia deixar de ser inscrito na lei fundamental ou a sua consagração legislativa afecta a liberdade religiosa? Creio que não. Mas liberdade religiosa não é, ou não é sempre, a mesma coisa que igualdade religiosa.
Sei que há católicos e não católicos, mas estes tantas vezes com espírito anti-religioso, que se apoiam no Concílio para advogarem doutrinas que dizem ser novas ou renovadas, como se, em matérias de fundo, a Igreja houvesse algum dia abjurado das verdades essenciais do seu credo.
Por isso costumo, para não me perder no emaranhado das exegeses dos textos conciliares, ater-me ao que eles dizem, na sua letra e no seu espírito (e não ao que dizem que eles dizem), e aos ensinamentos de hierarquia, quando esta se exprime pela voz suprema ou pelo conjunto de quantos neste País, a nível superior, a representam e dela dão vivo testemunho, na serenidade dos juízos e na responsabilidade da sua altíssima missão.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ora, também sobre este assunto, a declaração do Episcopado sobre o projecto de lei relativo à liberdade religiosa é esclarecedora. Não se pense que estou a falar como católico, esquecendo o meu mandato de Deputado. Pelo contrário, consciente dos imperativos deveres desse mandato, é em nome dos interesses da Nação que procuro exercê-lo, e se, uma vez mais, me situei neste plano de considerações, foi para que, de afirmações ultimamente feitas por católicos, não se extraíssem ilações, por eles pretendidas ou não, contrárias às conveniências gerais e às próprias concepções e interesses da Igreja e até à legítima e adequada posição das restantes confissões religiosas.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Roboredo e Silva: - Sr. Presidente: Eu não tencionava intervir nesta discussão, mas dada a diversidade de opiniões que se verifica na Assembleia, com o único objectivo de tentar uma solução, que porventura satisfizesse uma grande maioria, para o n.º 1 da base II sugeriria apenas a frase seguinte: «O regime das relações do Estado com as confissões religiosas é o de separação». Isto não é mais do que o que está textualmente expresso no artigo 46.º da nova Constituição, aprovada por esta Assembleia há meia dúzia de dias.
A manterem-se as propostas, tanto a da comissão eventual, como a do Sr. Deputado Cunha Araújo e outros Srs. Deputados, honestamente, inclino-me mais para a proposta do Sr. Deputado Cunha Araújo e outros. Até porque reconheço que há uma certa desconexão entre o n.º 1 da base II e o n.º 1 da base VII. Mas penso que qualquer solução semelhante àquela que apresentei em primeiro lugar talvez desse satisfação a todos e acabasse com esta discussão, que está a prolongar-se há muito tempo. Quanto ao n.º 2 da base II não me agrada, nem a apresentada na proposta de lei, nem totalmente a do Sr. Deputado Sá Carneiro e outros Srs. Deputados, se bem que, apesar de tudo, preferisse esta última, com algumas correcções, mas, por mim, preferia que o número fosse eliminado.
Tenho dito.
O Sr. Duarte de Oliveira: - Sr. Presidente: Pedi a palavra, apenas para afirmar que não me parece dever ser eliminada ou substituída a expressão «o Estado não professa religião».
Nós sabemos que há uma convicção muito generalizada, talvez devido a deficiência de informação, que existe aquilo a que se chama compromisso da Igreja com o Estado.
Ora, é da conveniência do próprio catolicismo, que é a minha religião, que o Estado definia bem; claramente que não adopta ou professa religião.
Eu sei que há outros textos onde isso decorre, mas não se perde nada em o tornar expresso, inequívoco.
Pelo contrario, é conveniente, pois estamos numa época em que não pode haver equívocos, sobretudo no domínio das confissões.
Página 2500
2500 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
Isso não prejudica religiões e evita pretensos compromissos efectivos ou possíveis, ou acusações de compromissos.
Tenho dito.
O Sr. Bento Levy: -Sr. Presidente: Não era minha intenção intervir neste debate, visto que V. Ex.ª não me poupou a honra de me designar para a comissão eventual, onde tive a possibilidade de exprimir a minha posição.
Em todo o caso, entendo que não devo deixar de marcar aqui, também, o meu ponto de vista. Para isso, reputo indispensável esta afirmação prévia: não admito, não consinto, não permito, a quem quer que seja que me pergunte qual é a minha religião, nem sequer se acredito ou não em Deus.
E faço esta afirmação porque tenho notado que toda a tónica da discussão desta proposta de lei se tem baseado na religião católica.
O Sr. Cunha Araújo: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Faça favor.
O Sr. Cunha Araújo: - E V. Ex.ª estranha isso?
O Orador: - Não estranho nada. Ainda não acabei ... Ainda agora comecei ...
Quero afirmar que não estou numa Assembleia conciliar católica. Estou aqui como político, a servir os interesses da Nação dentro das minhas modestas possibilidades.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Portanto, não discuto, nem católicos, nem judeus, nem protestantes, nem ateus ... graças a Deus! (Risos). Estou numa assembleia política, e é como políticos que nós temos de discutir para decidir e votar.
O Sr. Francisco Balsemão: - Muito bem!
O Orador: - De outra maneira não vejo outra discussão que não assente, na condição de católicos e - mais - dimensionada à metrópole. Ora, temos de estar atentos, porque Portugal não é só esta faixa europeia; estamos espalhados pelo Mundo.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - E temos de servir todas as religiões, sejam elas quais forem, desde que não sejam contrárias à ordem constitucional, à nossa vida política ou a ordem social que propugnamos.
O Sr. Cunha Araújo: - É justamente por isso ... E por nós estarmos num país em que há variadíssimas religiões que não interessa estar a defender nenhuma e, portanto, a declaração não afecta qualquer delas.
O Orador: - No entanto, a mim, que nunca disse a ninguém que era judeu, já se tentou atingir-me. Lá por ser Bento Benoliel e Levy, isso não quer dizer nada!
O Sr. Casal-Ribeiro: - Em todo o caso, parece que alguém o ofendeu ...
O Orador: - Há quem possa enfiar a carapuça ...
O Sr. Casal-Ribeiro: - Acho muito bem.
O Orador: - Desculpem-me, mas eu tinha de desabafar esta «do judeu».
Risos.
De modo que, Sr. Presidente, e voltando ao princípio, entendo que a melhor posição do Estado, a melhor posição do Governo, com quem nós temos de colaborar, é exactamente aquela que resulta da redacção que está na propósito.
O Sr. Casal-Ribeiro: - Às vezes colabora-se, discordando ...
O Orador: - V. Ex.ª pode discordar, mas eu concordo. «O Estado não professa qualquer religião» é uma fórmula que satisfaz todos.
O Sr. Casal-Ribeiro: - Discordar é muitas vezes uma forma de colaborar.
O Orador: - Diz-se: há laicismo. No entanto, não se vê o que está adiante: o Estado, no seu pleno direito, procura dar uma orientação nas bases seguintes, preocupando-se em defini-la. A crítica isola o preceituado na base em discussão, sem reparar na contextura geral da proposta.
Se o fizer, verá que não há laicismo.
Há uma posição clara e definida do Estado perante as religiões.
O Sr. Cunha Araújo: - V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: - Faça favor.
O Sr. Cunha Araújo: - Antes de V. Ex.ª acabar e como não tenho, (regimentalmente, direito a usar mais da palavra, porque já falei duas vezes, vou aproveitar-me da possibilidade de um aparte a V. Ex.ª só pana fazer uma pequena lectificação ao que aqui disse.
Também foi como político que me pronunciei acerca da lei da liberdade religiosa. Como político, pois é como políticos que todos nós temos de procurar satisfazer os anseios nacionais.
E, em matéria de religião, trata-se de um anseio nacional.
Posto o problema assim, portanto, V. Ex.ª não tem de estiar a reparar se são ou não católicos os portadores dessa afirmação. E como político e foi como político que pus o problema? Muito obrigado.
O Orador: - A comissão eventual é secreta ...
O Sr. Cunha Araújo: - Não é nada.
O Orador: - É ... E e eu não quero dizer o que lá se passou ...
Muito obrigado, Sr. Presidente, não vale a pena continuar, visto que julgo esclarecido o meu ponto de vista quanto à base em discussão.
O Sr. Duarte do Amaral: - Sr. Presidente: A base II da proposta que assinei, da autoria do Sr. Deputado Cunha Araújo, é mais rigorosa na sua expressão do que a proposta de lei, mas quanto à definição de propósitos é rigorosamente igual. Se é assim, e falo apenas no plano político, pergunto por que razão não aprovaram a proposta que subscrevi e que agradaria muito mais, estou certo disso,, à grande maioria dos portugueses que, aqui e no ultramar, é evidentemente religiosa!
Página 2501
21 DE JULHO DE 1971 2501
O Sr. Pinto Machado: - Ao usar pela primeira vez da palavra neste debate sobre a proposta de lei da liberdade religiosa desejo declarar que me é muito grato reconhecer a oportunidade, a justeza e até a coragem do Governo ao apresentá-la.
E devo mesmo dizer que, em diversos aspectos, a começar pela sua óptica geral, me agradava mais o projecto inicial do que esta proposta que contempla certas sugestões da Câmara Corporativa a cujo parecer, aliás, e seu autor rendo a minha homenagem.
Duas breves considerações acerca dos n.ºs 1 e 2 desta base II.
Começo por afirmar que, na minha opinião, é condição importante do uma vida saudável na comunidade política a definição clara de uma separação da esfera de acção do Estado e das confissões religiosas. Separação que de nenhum moldo significa antagonismo, nem mesmo neutralidade indiferente, mas respeito mútuo e colaboração na liberdade e personalidade das partes naqueles terrenos em que forçosamente se encontram.
Em relação ao n.º 1 da base II da proposta do Governo devo dizer que, para além de ser, talvez, discutível - creio que sim -, dizer-se que o Estado pode professar ou deixar de professar uma religião (poderá adoptar ou não adoptar, para ser mais correcto), creio que, independentemente disso, é princípio salutar a declaração de que o Estado, enquanto tal, não adopta uma determinada» religião como sua.
Se, quando fui procurado pelo Sr. Deputado Cunha Araújo para subscrever a proposta de que é primeiro signatário, a subscrevi (não vem na fotocópia porque a assinatura estava no verso), foi por uma razão, aliás, aqui muito invocada quando se discutiu a eleição presidencial.
Estou de acordo com o princípio da declaração da aconfessionalidade do Estado, que, repito, não significa antagonismo, nem mesmo neutralidade. Mas porque, logo que o Governo anunciou o projecto de proposta de lei, se manifestaram certas reacções que, sinceramente, me pareceram pouco legítimas, mas compreensíveis, dada uma mentalidade reinante, pareceu-me que a omissão dessa declaração da aconfessionalidade do Estado - que em nada podia afectar a separação dos dois poderes - evitava o que me parecia, do ponto de vista político aqui já muito evocado, extremamente útil: desnecessárias reacções que, entre outros inconvenientes, poderiam até comprometer na prática o exercício da liberdade religiosa.
É exclusivamente por essa razão de oportunidade política, em relação ao momento actual, que eu efectivamente votarei, se for submetida à votação, a proposta de emenda subscrita pelo Sr. Deputado Cunha Araújo e outros Srs. Deputados.
Em relação ao n.º 2 e à proposta de emenda subscrita pelo Sr. Deputado Sá Carneiro, por mim e por outros Srs. Deputados, queria apenas declarar o seguinte:
O seu teor está perfeitamente de acordo com o consignado no n.º 6 da declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, em que, reconhecendo-se embora que razões particulares dos diferentes povos possam efectivamente legitimar que o Estado reconheça determinados direitos ou atribua determinadas concessões a uma certa confissão religiosa, .se afirma que isso de nenhum modo pode afectar o seu dever de garantir igual tratamento jurídico no assegurar do exercício efectivo da liberdade religiosa.
E até, se me permitem, eu lia (são poucas linhas) palavras que no n.º 13 da declaração conciliar sobre a Uberdade religiosa se dizem e que todos, particularmente católicos, deverão ter muito presentes, pois são palavras de humildade e de verdade:
Se a liberdade religiosa está em vigor, não apenas proclamada de palavra sancionada pelas leis, mas sinceramente praticada (portanto, se - dada apenas esta condição - uma liberdade religiosa efectivamente praticada), então obtém a Igreja finalmente, de direito e de facto, o condicionalismo estável para a necessária independência no desempenho da tua missão divina, independência que as autoridades eclesiásticas, com insistência crescente, reivindicaram uma sociedade civil.
Isto é, a Igreja cada vez mais reconhece que a sua força está na própria palavra de Deus que ela anuncia e no espírito de Deus que a anima, e não na protecção, no fundo sempre mais ou menos interessada, do braço secular.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
O Sr. Agostinho Cardoso: - Temos dito e repetido aqui que não há uma questão religiosa em Portugal e estamos apenas a debater a formulação jurídica e o reconhecimento de uma situação já existente de facto.
Considero, por isso, pleonástico dizer-se que o Estado não professa qualquer religião, já que esta ideia, está contada na ideia da separação.
Não posso, assim, dar o meu apoio à redacção para o n.º 1 da base II da proposta do Governo.
A proposta do Sr. Deputado Sá Carneiro e outros Srs. Deputados melhora a redacção do Governo, mas contínua pleonástica, em minha opinião.
Põe-se à minha consciência a hesitação enfare o texto da Câmara Corporativa e o da proposta do Sr. Deputado Cunha Araújo e outros Srs. Deputados.
Mas, porque se pode acusar o texto da Câmara Corporativa de ser demasiado omisso, quanto à posição do Estado, eu apoio a proposta do Sr. Deputado Cunha, Araújo, porque é suficiente para marcar a posição do Estado, sem ter a aparência laicizante da fórmula do Governo.
E é evidente que só me refiro, nestas considerações, às sugestões que foram formuladas em propostas de alteração, porque só estas serão postas à votação.
Estamos a discutir no plano político, sem dúvida, mas não esqueçamos que- a lei se dirige essencialmente à pessoa humana em todas as dimensões.
Não me parece que ela fique maus dignificada por esta acentuação laicista da proposta do Governo, seja qual for a religião que essa pessoa professe.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Já quinze oradores, alguns deles por duas vezes, se manifestaram sobre esta base. Creio que posso considerar o assunto suficientemente esclarecido e propor a VV. Ex.ªs que passemos à votação.
O Sr. Teixeira Canedo: - Peço a palavra, Sr. Presidente, por causa da votação.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Teixeira Canedo.
O Sr. Teixeira Canedo: - Sr. Presidente: Eu li com atenção todas as propostas. Vejo-lhes chamar, em todos os papéis que me foram distribuídos, propostas de alteração.
Página 2502
2502 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
Ora, o Regimento é explícita ao exigir ou propostas de eliminação ou propostas de substituição ou propostas de emendas. Lidos os textos, eu chego a esta conclusão: é que nós estamos absolutamente em face de textos diferentes, mais são propostas novas, são aditamentos, digamos. Por isso ...
O Sr. Cunha Araújo: - Está enganado.
O Orador: - V. Ex.ª dá-me licença que eu continue? Não se irrite que não vale a pena ...
Se não tiveram o cuidado de lhe chamar pelo nome, tivessem. O Regimento é bem claro: ele não lhe chama propostas de alteração ...
O Sr. Sá Carneiro: - Chama, chama ...
O Orador: - Não chama, não senhor. A todas considera alterações ...
Façam favor de ver o Regimento, antigo 38.º, § 1.º: fala em propostas de alteração - isso são todas.
Os senhores é que as mão qualificaram...
Os Srs. Sá Gameiro e Cunha Araújo: - Não, não ...
O Orador: - Ai não? A Assembleia é soberana para decidir se é ou dão é assim. Não são os senhores.
Ora, em face disso, eu requeria a V. Ex.ª, porque me parece que, afinal, em todos os articulados o que se pretende são novas propostas - em minha opinião, e salvo outra melhor -, que, nos termos do § 2.º, fosse posta à votação, prioritàriamente, a proposta do Governo.
O Sr. Presidente: - Considero admissível o requerimento de V. Ex.ª para ser posta à votação, prioritàriamente, a proposta do Governo.
Devo, no entanto, dizer que esta base II contém dois números e que é minha intenção pôr à votação da Assembleia estes dois números, separadamente, até porque sobre eles incidem diversas propostas de alterações. O requerimento de V. Ex.ª é para que seja dada precedência aos dois números da proposta do Governo ou para algum deles só?
O Sr. Teixeira Canedo: - É precisamente aos dois números, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente:- A qualificação das alterações é essencial à Mesa para determinar as prioridades.
O Sr. Teixeira Canedo: - Pois, mas eu ainda não as vi qualificadas.
Portanto, numa proposta aceita-se um número e rejeita-se o outro, na outra dá-se precisamente o contrário. Ao fim e ao cabo temos três propostas absolutamente diversas, embora com números do Governo e com números que não são do Governo.
Tenho dito.
O Sr. Presidente: - VV. Ex.ªs ouviram o requerimento do Sr. Deputado Teixeira Canedo, que, embora se refira aos dois textos, eu desdobrei na interpretação, tal e qual como penso desdobrar a votação.
Vou, pois, pôr à votação dos Srs. Deputados o requerimento do Sr. Deputado Teixeira Canedo para que seja dada prioridade, na votação do n.º 1 da base II, ao texto da proposta do Governo.
O Sr. Veiga de Macedo: - Peço a palavra para explicações, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.
O Sr. Veiga de Macedo: - Penso que, antes de mais, deveria qualificar-se a natureza das propostas de alteração que estão em discussão, para, em função delas e nos termos regimentais, se definir, fundamentalmente, a prioridade que a elas cabe. Creio que seria esse o método preferível. No entanto, V. Ex.ª resolverá.
O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, eu creio que não é bem assim.
Não há dúvida nenhuma de que o Regimento estabelece ordens de prioridades na votação para as propostas conforme a sua natureza. Mas nem na prática anterior, nem no texto regimental, nada exige que sejam os Srs. Deputados, ao apresentarem as suas propostas, que as qualifiquem, e até nada impede que a Mesa, depois de apreciar as propostas, reconheça que a qualificação possa ser outra.
Onde é essencial que se faça a qualificação das propostas para efeitos de estabelecer as prioridades na votação é na Mesa. À Mesa interessa efectivamente discernir entre propostas de eliminação, propostas de substituição e propostas de emenda quando haja mais do que uma pendente.
Não sei se estou a ser claro, mas parece-me que o princípio é perfeitamente nítido.
Havendo duas ou mais propostas dirigidas ao mesmo texto básico, isto é, porque, como VV. Ex.ªs sabem, nós conduzimos a nossa discussão e votação sobre um texto, em relação a este texto cabe fixar-lhe as prioridades.
Havendo uma só proposta de alteração, não interessa que ela esteja bem ou mal qualificada; é uma só, tem sempre prioridade sobre o texto básico.
Havendo mais do que uma proposta de alteração, compete à Mesa discernir entre as que sejam de eliminação, de substituição ou de emenda, para as colocar por esta ordem prioritária à votação da Assembleia.
No caso presente poder-se-ia discutir a ordem em relação às duas propostas que se dirigem ao n.º 1 da base II. Em relação à proposta que se dirige ao n.º 2 da base II não há dúvida de que é uma proposta só, e regimentalmente tem prioridade na votação sobre o texto básico. Simplesmente, se algum Sr. Deputado requerer a prioridade na votação para o texto básico e a Assembleia lha conceder, então a votação incidirá primeiro sobre esse texto básico.
O § 2.º do artigo 37.º, que aqui foi citado, refere-se ao facto de haver mais do que uma proposta da mesma natureza; estabelece então uma regra de prioridades e admite que a Assembleia altere essa ordem de prioridades. Este § 2.º do artigo 37.º refere-se à concorrência de propostas, sem distinguir as de alterações das que integram o texto discutido.
Mas está dentro do espírito de a Assembleia determinar as suas regras de procedimento o fundo do requerimento do Sr. Deputado Teixeira Canedo. O Sr. Deputado Teixeira Canedo requer que a Assembleia dê prioridade na sua votação ao texto da proposta de lei.
Se a Assembleia conceder essa prioridade, não encontro nada no Regimento que impeça se proceda assim.
Em relação ao n.º 1 da base II, que é o que ponho agora à votação, e depois destes esclarecimentos todos, volto a propor à consideração de V. Ex.ª o requerimento do Sr. Deputado Teixeira Canedo, para que, na votação do
Página 2503
21 DE JULHO DE 1971 2503
n.º 1 da base II, seja dada prioridade ao texto da proposta de lei. Se VV. Ex.ªs aprovarem este requerimento, votaremos primeiro o texto da proposta de lei, que é evidente que sendo aprovado, prejudica os outros; se VV. Ex.ªs não aprovarem o requerimento, submeterei à votação, sucessivamente, a proposta do Sr. Deputado Cunha Araújo e, depois, a proposta do Sr. Deputado Mota Amaral - que é essa a sua ordem de entrada -, a não ser que a Assembleia, em seguida, requeira para essas duas emendas ordem prioritária diferente.
Posto à votação o requerimento do Sr. Deputado Teixeira Canedo, foi aprovado.
O Sr. Presidente: - Ponho, em consequência, à votação o n.º 1 da base II, segundo o texto da proposta de lei.
Posto à votação, foi aprovado.
O Sr. Presidente: - Vamos agora passar ao n.º 2 da base II, em relação ao qual há uma proposta de alteração e em relação ao qual o Sr. Deputado Teixeira Canedo pediu para estender também o seu requerimento de prioridade para o texto da proposta de lei.
Posto à votação o requerimento de prioridade na votação para o texto da proposta de lei, feito pelo Sr. Deputado Teixeira Canção, foi concedida a prioridade.
O Sr. Presidente: - Vou pôr à votação o n.º 2 da base II, segundo o texto da proposta de lei.
Posto à votação, foi aprovado.
O Sr. Presidente:- Vamos passar agora à base III, em relação à qual também há varias propostas de alterações, duas entradas durante esta sessão. Vão ser lidos o texto da proposta de lei e os das propostas de alterações.
Foram lidos. São os seguintes:
II
Conteúdo e extensão da liberdade religiosa
BASE III
É lícito às pessoas, em matéria de crenças e de culto religioso:
a) Ter ou não ter religião, mudar de confissão ou abandonar a que tinham, agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que pertençam;
b) Exprimir as suas convicções pessoais de acordo com a lei geral;
c) Difundir pela palavra, por escrito ou outros meios de comunicação a doutrina da religião que professam;
d) Praticar os actos de culto, particular ou público, próprios da religião professada.
BASE III
Propomos, nos termos regimentais, que a alínea b) da base III passe a ter a seguinte redacção:
b) Exprimir as suas convicções pessoais.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 13 de Julho de 1971. - Os Deputados: Almeida Cotta - Miguel Bastos - Nunes de Oliveira - Oliveira Ramos - Salazar Leite - Bento Levy - Ricardo Horta Júnior - Veiga de Macedo - Prabacor Rau - Cunha Araújo.
BASE III
A liberdade religiosa compreende:
a) O direito de professar ou não uma religião;
b) O direito de não responder a perguntas acerca da religião que professa ou sobre se se professa alguma, a não ser com carácter confidencial, em inquérito estatístico ordenado por lei;
c) O direito de exprimir convicções pessoais em matéria religiosa;
d) O direito de praticar os actos de culto e de observar o dia de repouso semanal próprios de qualquer confissão religiosa e de divulgar a respectiva doutrina;
e) O direito à assistência religiosa por ministros da religião professada, os quais poderão ser livremente nomeados e transferidos pela organização;
f) O direito a receber sepultura de harmonia com os ritos da confissão que se professa, segundo as disposições tomadas pelo próprio ou pelos seus familiares;
g) O direito de os pais, ou quem suas vezes fizer, decidirem sobre a educação religiosa dos filhos menores de 18 anos;
h) O direito de instalar templos ou outros locais destinados à prática do culto;
i) O direito de reunião para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos das confissões religiosas;
j) O direito de organização das confissões religiosas e de constituição de associações para assegurar o exercício do culto;
l) A não discriminação por motivo de convicções religiosas, não podendo ninguém, por causa delas, ser perseguido, privado de um direito ou isento de qualquer obrigação ou dever cívico.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 16 de Julho de 1971. - Sá Carneiro - Pinto Machado - Pinto Balsemão.
Propomos que à alínea a) da base III, com a redacção constante das propostas de alteração subscritas pelo Deputado Sá Carneiro e outros, sejam aditadas as seguintes palavras:
... agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que pertençam;
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. - Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Sá Carneiro - Macedo Correia - Magalhães Mota - Oliveira Dias.
Propomos que à alínea j) da base III, com a redacção constante das propostas de alteração subscritas
Página 2504
2504 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
pelo Deputado Sá Carneiro e outros, sejam aditadas as seguintes palavras:
... ou a prossecução de outros fins específicos das confissões religiosas;
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. - Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Sá Carneiro - Macedo Correia - Magalhães Mota - Oliveira Dias.
O Sr. Presidente: - Estão em discussão conjuntamente.
O Sr. Almeida Cotta: - Julgo poder afirmar que as alterações apresentadas para esta base por um grupo de Srs. Deputados só num ponto, e nesse mesmo aparentemente, alteram a essência da proposta de lei.
Com efeito, nessa base III ou noutras a proposta contempla as questões visadas nas alterações a que me estou a referir.
Assim ...
Poderia, portanto, concluir-se que o objectivo é fundamentalmente de sistematização.
Mas, realmente, segundo posso depreender da intervenção do Sr. Deputado Sá Gameiro, realizada ma sessão de sexta-feira passada, o que principalmente o moveu foi o convencimento de que a forma correcta de exprimir o conteúdo e a extensão da liberdade religiosa seria a de se designar por «direito» a substância desse conteúdo, e não por «lícita», conforme redacção da proposta.
Ora, o reconhecimento e a garantia do direito à liberdade religiosa das pessoas singulares e colectivas foram formalmente proclamados logo na base I, na sequência, aliás, do que a Constituição estabelece no n.º 3.º do artigo 8.º
Quer se considere a liberdade religiosa um direito natural da pessoa superior à ordem jurídica, quer se milite noutras escolas, ninguém aceitará que deixasse de se inscrever e tratar nos diplomas fundamentais que dessa matéria se ocupem.
Mais o direito à liberdade religiosa, como o direito à vida, ao trabalho, à expressão do pensamento, etc., desdobra-se em múltiplas fórmulas de actuação ou faculdades que se mantêm na licitude ou dela se afastam, caindo aos domínios dai ilicitude.
O direito à liberdade religiosa, genericamente estabelecido na base I, admite, por exemplo, a licitude do comportamento pessoal quando alguém, se nega a responder a perguntas acerca da religião professada, mas já não a admite quando essa resposta, com carácter confidencial, se destina a inquéritos estatísticos ordenados por lei, isto é, o direito da liberdade (religiosa confere a licitude a determinados actos, mas nega-a a outros.
E assim por diante.
Na raiz do problema encontramos sempre o direito à liberdade religiosa, mas no exercício desse direito deparamos com actos lícitos ou ilícitos.
Daí, afigurar-se-nos que a maneira correcta é a adoptada pela proposta de lei, visto que na sua base III se enumeram as várias fórmulas em que se desenvolve ou em que se exerce o direito à Uberdade religiosa, lícitas ou ilícitas, consoante o bom ou mau emprego do direito donde elas promanam.
O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: Efectivamente, ao propor a nova redacção para a base III que consta da proposta que assinei, conjuntamente com outros Srs. Deputados, houve essencialmente a preocupação de substituir à mera licitude o reconhecimento de direitos.
Comecei por dizer, a primeira vez que intervim nesta discussão, que a licitude se coadunava com uma posição de simples tolerância; que o reconhecimento de direitos era fruto de uma posição mais positiva, que reconhecia a liberdade em si. E as liberdades decompõem-se em direitos e não em meras faculdades ou em actos simplesmente lícitos.
Em direitos, porque são poderes conferidos por lei, com vista à prossecução de determinados fins. É muito diferente, efectivamente, a qualificação de um acto como meramente lícito ou como um direito.
Como acto meramente lícito, ele é indiferente perante a lei; não a contraria, não é por ela especialmente protegida, pode ter de ceder perante outros actos igualmente lícitos, pode ser definido em novos termos por leis que alterem a licitude. Ao conferir-se um poder - juridicamente protegido com vista à realização de um determinado fim - dá-se às pessoas a quem esse direito é reconhecido a possibilidade de exigir, perante o poder político e perante outras pessoas, o seu respeito, a sua prossecução livre. O reconhecimento do direito limita efectivamente o poder político e limita os actos das pessoas. Não assim a mera licitude.
Há, portanto, uma diferença fundamental, até na repressão dos abusos. Não se pode pensar em abuso de licitude - é figura desconhecida -, enquanto o abuso de direito leva a que as pessoas a quem ele é reconhecido sejam colocadas efectivamente em contradição com a ordem jurídica. Só a figura do abuso do direito, que é possível apenas quando o direito seja reconhecido, permite a defesa da sociedade contra o mau uso dos poderes que são conferidos às pessoas.
Ao propor esta redacção, o grupo de Deputados que a subscreve retoma essencialmente aquela que constava do projecto de proposta de lei apresentado pelo Governo à Câmara Corporativa.
Introduzem-se duas alterações apenas: uma a referente ao repouso semanal, outra a de livre transferência dos ministros do culto. Foi por sugestão da Câmara Corporativa que se abandonou a figura do direito para se consagrar a mera licitude. E não foi sem razão, visto que o parecer da Câmara Corporativa todo ele se encontra dominado por uma distinção entre a confissão católica e as demais confissões. Se fosse aprovada a base constante da proposta, ficaria havendo desigualdade entre o regime a que se acha submetida a igreja católica e as demais confissões, já que a proposta de lei ressalva as disposições concordatórias, e as disposições concordatárias não se limitam a qualificar como lícitos os actos da igreja e dos católicos. Reconhecem à igreja e aos católicos verdadeiros poderes juridicamente protegidos. Se vamos reconhecer direitos à igreja católica e dizer que as demais confissões se encontram em posição de mera licitude, estamos a fazer uma discriminação que reputo inaceitável. Além disso, o próprio relatório da proposta de lei n.º 15/X fala em direitos, lendo-se aí:
Quanto ao exercício dos vários direitos em que a liberdade religiosa se traduz, manteve-se a regra de que em princípio são aplicáveis as normas gerais relativas aos mesmos. Admitiram-se, no entanto, importantes desvios a tal regra. Com efeito, o carácter particular do objecto dos diversos direitos que se inserem na liberdade religiosa não pode deixar de reflectir-se no seu tratamento jurídico. A profundidade e intimidade das opções e dos comportamentos religiosos exigem um respeito especial da parte da
Página 2505
21 DE JULHO DE 1971 2505
lei e do Estado e impõe que se reconheça uma autonomia particular às organizações correspondentes às confissões religiosas.
Pois se, quanto às demais liberdades, está constitucionalmente consagrado que elas se decompõem em direitos e como tais são regulamentadas e aceites no ordenamento constitucional e no ordenamento jurídico geral; se a intenção do Governo ao fazer esta proposta foi a de reconhecer que o fenómeno religioso merece uma especial protecção e uma especial disciplina, não se compreende como a liberdade religiosa se decompõe em meras faculdades lícitas e as demais liberdades se decomponham em verdadeiros direitos.
A única solução consentânea para uma disciplina jurídica aceitável, designadamente em face da nossa ordem constitucional, em face da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em face da própria declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, é a que aceite que a liberdade religiosa se decomponha em autênticos e verdadeiros direitos.
E tudo, de momento.
O Sr. Cunha Araújo: - Segundo me parece ter entendido, a preocupação do nosso ilustre colega Dr. Sá Carneiro é simplesmente de rigor terminológico.
E fica-lhe muito bem como jurista, justamente, essa exigência da terminologia quando está a falar desta matéria em discussão.
Mas, quanto a mim, sem de nenhum modo querer contrariar a sua exposição de que a licitude ou ilicitude de um acto deriva directamente do reconhecimento de um direito.
Portanto, uma vez que nós estamos a tratar de um direito já reconhecido, que é o direito da liberdade religiosa, e salvo o devido respeito pela douta opinião do meu ilustre colega, o emprego da expressão «licitude» ou «ser lícito», conforme se diz na proposta do Governo - «é lícito às pessoas em matéria de crenças è de culto religioso [...] ter ou não ter religião» -, parece que não contende de modo algum com a minha formação jurídica.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
O Sr. Oliveira Dias: - A redacção proposta para esta base pelo Sr. Deputado Sá Carneiro e outros retoma, com algumas alterações, a primeira versão da proposta do Governo.
E retoma-a proclamando com solenidade uma série de direitos que, no seu conjunto, integram a liberdade religiosa.
A segunda versão da proposta do Governo já não faz essa enumeração de direitos, colocando-se antes numa perspectiva de tolerância em relação àquilo que é lícito ao indivíduo proceder.
Como se diz na declaração do episcopado da metrópole sobre a matéria: «A plena liberdade religiosa deve ser reconhecida pelos Estados de forma positiva.»
Por isso, adiro à formulação proposta pelo Sr. Deputado Sá Carneiro e outros, com uma reserva.
No que se refere à alínea d), na parte que diz respeito à observância do dia de repouso semanal próprio de qualquer confissão religiosa, que estando certo, em teoria, não vejo como poderá, praticamente, adoptar-se.
Observo; ainda, comparando a primeira e segunda versão das propostas do Governo, que na segunda alguns dos princípios da liberdade religiosa anteriormente formulados foram difundidos no restante articulado, mas outros deixam de figurar, como:
O direito à assistência religiosa por ministros da religião professada;
O direito de receber sepultura de harmonia com os ritos da confissão que se professa, segundo as disposições tomadas pelo próprio ou pelos seus familiares;
O direito de os pais, ou quem suas vezes fizer, decidir sobre a educação dos filhos menores de certa idade (agora, logicamente, 18 anos).
O direito de reunião e o direito de organização das confissões religiosas deixam de ser proclamados como tal, surgindo as novas redacções nas bases V e XI da proposta do Governo, na referida perspectiva da tolerância, que julgo não deverá ser a tónica da lei. Por isso adiro à proposta do Sr. Deputado Sá Carneiro e outros, com a reserva referida.
O Sr. Pinto Machado: - Sr. Presidente: Como já se tinha dito, e como, aliás, já todos os Srs. Deputados certamente tinham reparado, a redacção para esta base m, proposta pelo Sr. Deputado Sá Carneiro, por mim e por outros, retoma aquela que constava do projecto do Governo.
Efectivamente, a base I reconhece um direito à liberdade religiosa, e a redacção proposta para esta base III define o seu conteúdo concreto: um certo número, não de faculdades ou de possibilidades, mas efectivamente de direitos.
Quando nós consideramos a liberdade religiosa, quer no plano dá pessoa, quer no plano da família, quer no plano de grupos religiosos, estamos sempre em face de um direito natural e, enquanto tal, anterior ao direito positivo.
Estes direitos constam, praticamente todos, da Declaração Conciliar sobre a Liberdade Religiosa, onde são efectivamente apontados como direitos, cujo não reconhecimento, ou cuja violação, são aí consideradas injustiças, verdadeiros atentados contra ã justiça e, enquanto tal, ilegítimos.
A posição do Estado em face deles é do seu conhecimento, da facilitação de todas as Condições indispensáveis para a sua promoção, e isto sem que em nada fique prejudicado o papel que ao Estado compete assegurar o bem comum, tendo aliás presente que a liberdade religiosa é uma dimensão essencial e das mais preciosas deste mesmo bem comum. Creio (aliás, o Sr. Deputado Sá Carneiro já o referiu) que quando o Estado intervém ao reprimir um abuso deste direito, no fim de contas do que se trata é do prevaricador ter saído fora dele.
De resto, a declaração conciliar sobre liberdade religiosa, ao referir-se ao papel do Estado na defesa da sociedade nesta matéria, diz-se que os abusos destes direitos são afinal atitudes ilegitimamente assumidas a pretexto da liberdade religiosa.
Portanto, não é a liberdade religiosa que está em causa, mas sim atitudes concretas de determinadas pessoas individuais ou colectivas, que, a pretexto desta liberdade, se situaram fora do seu âmbito e, portanto, estão sujeitas às penalidades impostas pela lei geral.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
O Sr. Magalhães Mota: - Sr. Presidente: Queria apenas chamar a atenção da Câmara para uma argumentação que me pareceu ter sido proposta, com base no parecer da Câmara Corporativa, e que o parecer, efectivamente não comporta.
Página 2506
2506 DIÁRIO DAS SESSÕES N.ºs 124
Disse-se, em primeiro lugar, que o parecer afastava nitidamente a ideia de direitos. Não é correcto.
No n.º 48 do parecer da Câmara Corporativa diz-se, concretamente, o seguinte:
Na base II do projecto consideram-se como limites da liberdade religiosa, rectius, de alguns dos direitos nela compreendidos: a vida, a integridade da pessoa humana, etc.
A própria Câmara Corporativa foi, pelo menos nesta
passagem do seu parecer, levada a aceitar a formulação de direitos e não faculdades.
Outro ponto que igualmente me parece importante, é que no final do n.º 45 a Câmara Corporativa toma também posição sobre a matéria e diz:
A Câmara evita, deliberadamente, a tentação de definir, em termos exaustivos, o conteúdo de liberdade religiosa ou de classificar doutrinàriamente as faculdades ou poderes em que o respectivo direito se divide [... ]
Quer dizer: a Câmara, que em princípio evitaria uma classificação doutrinária, acabou por fazê-la quando na sua proposta de redacção enunciou: «É lícito às pessoas».
Classificou no âmbito de licitude e das simples faculdades aquilo que na sua fundamentação se tinha procurado não classificar.
Julgo que estes dois aspectos merecem de algum modo a nossa atenção, e merecem-na porque não permitem que se venha com rigidez acentuar que o parecer da Câmara Corporativa se inclina muito decididamente para um campo ou que o fundamenta por forma exaustiva e decisiva.
Nem o fundamenta por forma decisiva e exaustiva nem evita os pontos que assinalei.
Posto isto, gostaria de dizer que também para mim me padece que estamos efectivamente no campo dos direitos, não no campo das meras faculdades, não no campo da simples licitude; estamos a reconhecer direitos das pessoas, que são anteriores ao próprio Estado e que este aceita, nos precisos termos da Constituição, com limites da soberania: a moral e o direito. Aqui estão limitações que provêm do próprio direito natural e que o Estado, como tal, aceita e proclama. É, efectivamente, «direitos» a expressão exacta e o Governo tinha-a usado quando do primitivo projecto. Pois era isso que estava correcto e é, portanto, essa a expressão que tem o meu voto.
O Sr. Veiga de Macedo: - Sr. Presidente: Esta base III vem formulada em termos semelhantes aos preconizados pela Câmara Corporativa. O Governo fez bem em rectificar neste ponto o projecto da proposta de lei, pois são criteriosas e profundas as considerações; aduzidas pela Câmara.
O facto em muito facilitou o trabalho da comissão eventual, que apenas teve dificuldade em fixar o alcance da expressão «de acordo com a lei geral», aditada pelo Governo à disposição da alínea b) da base em debate.
No parecer da comissão eventual faz-se alusão ao problema, e creio que, pelo que nele se diz, não há necessidade, e poderia haver inconveniente, em mandei o aditamento proposto pelo Governo. Mas no projecto da proposta de lei já tal expressão mão figurava nessa alínea c). Deve, pois, quanto a mim, adoptar-se a primitiva fórmula do preceito em questão.
Todavia, está também agora em discussão uma proposta de alteração subscrita por alguns ilustres Deputados, a qual, nas suas linhas gerais, visa dar à base III uma redacção e um alcance semelhantes à do projecto da proposta de lei.
Creio, porém, que não se justificam as modificações preconizadas, cuja doutrina, coimo se disse, o Governo pôs de parte, por haver perfilhado as soluções apresentadas pela Câmara Corporativa.
Assim, quanto à alínea a) da base em apreço, a Câmara entendeu, e bem, que não deveria apenas prever-se a liberdade de se professar ou não uma religião, por lhe parecer que importa estabelecer-se também, para se evitarem dúvidas, a liberdade de mudar de confissão ou abandonar a que se tinha, e agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que se pertença.
Porém, a Câmara tem o cuidado, a propósito deste último ponto, de advertir que o facto de a lei admitir a mudança de credo religioso não arrasta, como consequência necessária, o dever consentir-se na dissolubilidade do vínculo contraído por aqueles que casaram catolicamente, uma vez que no primeiro caso, além de outras razões, estão em jogo puros interesses individuais, enquanto no segundo está em causa, não só o interesse de ambos os cônjuges e dos filhos, mas a estabilidade e a dignidade de todas as outras uniões sacramentais, que a admissibilidade do divórcio imediatamente atingiria.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Feita esta nota, o mesmo parecer da Câmara, depois de referir que na delimitação aparentemente exaustiva do conteúdo da liberdade religiosa se agrupam, sem necessidade, sob o mesmo rótulo genérico dos direitos subjectivos, figuras jurídicas muito distintas, acrescenta:
Seja qual for o critério preferido para a distinção entre liberdades e direitos, não se descortina fàcilmente como será possível chamar direito subjectivo à faculdade que a lei reconhece às pessoas de não responderem a perguntas sobre as suas convicções religiosas.
Se as pessoas não pudessem ser interrogadas por terceiros ou pelas entidades públicas acerca dessa matéria e os interrogantes praticassem, por conseguinte, um verdadeiro acto ilícito sempre que fosse violada a proibição legal, ainda com alguma propriedade se poderia falar de um direito dos indivíduos a não serem interrogados em matéria de religião.
Mas tão longe, avisadamente, não quis ir o projecto.
A sua real intenção é a de consagrar um puro agere licere, para significar, por outras palavras, que não pratica nenhum acto ilícito a pessoa que se recusa a
responder a perguntas acerca da religião que professa ou sobre se professa alguma.
Na mesma linha de pensamento, e acerca do direito consignado na alínea e) do projecto de lei (o direito à assistência religiosa por ministros da religião professada), «o menos que, por sua vez, pode dizer-se é que se trata de uma faculdade definida em termos bastantes equívocos».
Na verdade, «dir-se-ia, em face da forma como o preceito se encontra redigido, que o Estado se propõe garantir a assistência religiosa aos fiéis a quem os ministros do culto se recusem a prestá-la». Não sendo essa a ideia do projecto, o que nele «se pretende consagrar, pela certa, é a ideia de que se deve facultar às pessoas a possibilidade de receberem a assistência religiosa pelos ministros da sua crença, quando estes, é evidente, se disponham a prestá-la».
Página 2507
21 DE JULHO DE 1971 2507
Quanto ao chamado «direito a receber sepultura de harmonia com os ritos professados», também carece de ser entendido em termos hábeis, para empregar as palavras da Câmara, que esclarece não se tratar de um direito da pessoa em face da sua .confissão, pois, por exemplo, mesmo que o interessado disponha que o seu funeral seja católico, não podem as autoridades civis obrigar as autoridades eclesiásticas a fazê-lo, se estas entenderem o contrário.
Isto se diz sem negar «a conveniência em acentuar que a fixação dos termos do funeral, bem como a determinação dos sufrágios, constituem matérias que cabem no âmbito da liberdade religiosa, competindo, assim, a cada pessoa dispor acerca delas como melhor lhe aprouver».
Para tanto, a Câmara sugeriu uma base (base V do parecer), com uma redacção mais apropriada do que a da alínea f) do projecto da proposta de lei e da proposta de alteração, base essa que a proposta de lei elimina talvez porque o disposto na alínea a) do artigo 2326.º do Código Civil contempla a matéria. Mas, quanto a mim, tem razão a Câmara Corporativa (no mesmo pendor se insere, nesta parte, a proposta de alteração), ao dizer que nada se perde em trazer explicitamente a solução destas questões para a sua sede adequada, que é a da lei sobre liberdade religiosa.
É de assinalar que a Câmara Corporativa propõe também uma nova base (base VI), de sentido semelhante à alínea d) da proposta de alteração, em que se prevê que o Estado e as empresas devem, na medida do possível, facilitar o cumprimento dos deveres religiosos por parte dos funcionários e trabalhadores, nomeadamente no que se refere à prestação de assistência religiosa do culto que eles professam. E isto em obediência ao tal valor «positivo» da religião que aconselha a que se preveja que aos principais destinatários da norma (o Estado e as empresas) não só incumbe «permitir», como devem, na medida do possível, «facilitar» o espontâneo cumprimento dos deveres religiosos dos indivíduos, nomeadamente o respeito pelos domingos e dias santos de guarda, a observância do dia de descanso semanal, etc.
Afigura-se equilibrada esta forma de pôr e de solucionar a questão, e por isso, neste caso e no outro anteriormente apontado, estou disposto a apresentar propostas de alteração se as suas soluções não puderem, de algum modo, considerar-se implícitas no texto governamental. Não admiti, até agora, a hipótese de apresentar propostas de alteração em assuntos em que fui vencido na comissão.
Mas, nestes casos, a matéria não foi expressamente discutida na comissão, e daí o sentir-me à vontade para assinar, se necessário, propostas no sentido preconizado pela Câmara Corporativa.
E digo no sentido preconizado pela Câmara Corporativa pelas razões aduzidas e porque, no tocante ao último problema, não se me afigura viável, como é óbvio, obrigar o Estado e as empresas, em regime generalizado, a reconhecer o direito de se «[...] observar o dia de repouso semanal próprio de qualquer confissão religiosa [...]», como se sugere na alínea d) da proposta de alteração também em discussão.
Não valerá a pena, penso, perder tempo a demonstrar ou a mostrar ser manifestamente inviável, em face das exigências da vida e de interesses de carácter geral inamovíveis, prever, como direito para os empregados por conta de outrem, «o de observar o dia de repouso semanal próprio de qualquer confissão religiosa». A lei do trabalho tem de fixar, e fixa, como direito, um dia de descanso semanal, e prevê que esse dia, em regra, seja o domingo. Mas, mesmo em relação ao domingo, permite-se o trabalho, em casos excepcionais e, por vezes, para certas actividades, como norma de observância regular.
Os direitos individuais têm limites naturais decorrentes de interesses gerais que não podem ser ultrapassados numa comunidade organizada com equilíbrio e com realismo, a não ser que se queira instaurar uma sociedade de tão acentuada expressão individualista que se corra o risco de se resvalar para sistemas anárquicos de vida, por sinal inconciliáveis com as liberdades autênticas das pessoas e das instituições.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Sobre a alínea i) da proposta de alteração, idêntica à alínea i) do projecto da proposta de lei, penso que conviria autonomizar a matéria em preceito próprio. Foi o que fez a Câmara Corporativa, que afirma não se levantar qualquer dúvida sobre a necessidade do seu tratamento especial, observando ainda que o direito de reunião de qualquer sociedade, comercial ou civil, ou de qualquer pessoa colectiva está naturalmente reservado apenas aos sócios da colectividade e há-de subordinar-se às regras próprias de funcionamento das assembleias gerais. Mas tratando-se de reuniões para a prática comunitária do culto, dentro dos templos ou nos lugares para tal destinados, o regime jurídico aplicável terá de ser diferente: nem a reunião, pela natureza pública dos lugares, está reservada aos fieis da confissão, nem a sua realização, pela índole especial dos actos, se encontra sujeita às medidas normais de polícia.
Por isso, a Câmara Corporativa - ela própria o diz - achou preferível, de acordo, aliás, com a doutrina do projecto da proposta de lei, a solução de declarar lícitas as reuniões para a prática do culto nos lugares especialmente destinados a esse fim, sem dependência de autorização oficial ou de participação às autoridades.
Em base própria condensou a Câmara a doutrina, mas esta, porém, carece de ser alargada no seu alcance, de modo a abranger não só a prática comunitária do culto, mas também outros fins específicos da vida religiosa. Tal é o significado da proposta de alteração do n.º 2 da base V que, com outros membros da comissão eventual, me foi dado subscrever.
O mesmo se diga quanto ao direito de «associação» referido na alínea j) da proposta de alteração do Deputado Sá Carneiro, direito esse que, pela sua natureza e relevância, veio a merecer «a especialidade do seu regime», justificando-se ainda que, «pelas consequências lógicas do seu exercício, constitua objecto da disposição legal que serve de introdução à disciplina jurídica das confissões e associações religiosas».
Como se vê, a base II do projecto de lei foi alterada no seu articulado e retocada nos seus preceitos, por razões de ordem jurídica e por conveniências de fundo e de forma, sem se cair na tentação de definir, em termos exaustivos, o conteúdo da liberdade religiosa ou de classificar doutrinàriamente as faculdades ou poderes em que o respectivo direito se divide. A esta preocupação, a Câmara Corporativa juntou ainda a de agrupar as soluções de acordo com a sua real afinidade lógica ou teleológica e de procurar melhorar a redacção de algumas disposições formuladas.
Conseguiu-o plenamente, e o Governo, por isso, fez suas as alterações apresentadas, pelo que não vejo como, depois deste longo e fecundo labor, a Assembleia Nacional possa, neste caso bem especial, voltar atrás, sem haver razões ponderosas para tal.
Não me referi até agora a um problema muito importante, ou seja, o da liberdade religiosa e o poder paternal.
Página 2508
2508 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
Como surgirá, de novo, mais adiante, sobre ele me debruçarei então, se m« parecer necessário. No entanto, não deixo, desde já. de sublinhar que a proposta de lei não aproveitou, tanto do ponto de vista material como do formal, as soluções da Câmara Corporativa, quanto a mim mais profundas, mais coerentes e mais adequadas.
Por isso, a proposta de alteração pretende, mas apenas no plano formal, remediar a situação, prevendo, de modo expresso, o direito de os pais decidirem sobre a educação religiosa dos filhos. Este preceito deveria, na verdade, constar da lei, mas, quanto a mim, com autonomia, como preconiza a Câmara Corporativa na base viu do parecer, cujos termos são os seguintes:
Incumbe aos pais, ou a quem as suas vezes fizer, nos termos prescritos para o exercício do poder paternal ou da tutela, decidir sobre a educação religiosa dos filhos menores.
Este preceito representa uma melhoria em relação à alínea g) do projecto da proposta de lei. A Câmara Corporativa justifica a sua posição de modo irrefutável, começando por frisar que «a faculdade de decidir sobre a educação religiosa dos filhos ainda constitui, sem dúvida, uma faceta, aliás muito importante, de liberdade religiosa dos pais», sendo certo que «a Igreja repetidas vezes tem insistido no carácter prioritário do direito e do dever da família nesta matéria ...»
Contudo, e isto esquece-se tantas vezes, «mais que um direito de opção dos pais, a educação (religiosa ou não) dos filhos é fonte de deveres para os seus progenitores; mais do que mero exercício de uma liberdade individual do pai ou da mãe, a educação religiosa dos menores constitui, dentro da jurisdição familiar, peça integrante do poder paternal ou tutelar», pelo que «defini-la apenas à luz dos direitos subjectivos dos pais equivale a deixar na zona de penumbra o interesse capital dos menores, subjacente à instrução e educação da prole».
Por isso, «a fórmula sugerida pela Câmara procura retratar os dois aspectos (direito e dever) do poder que nesta matéria de primordial importância na vida social compete aos pais», sendo ainda certo que a simples remissão para o regime paternal só na aparência pode considerar-se de excessivo rigor legalista, uma vez que o novo regime da menoridade do Código Civil se caracteriza por uma notória flexibilidade.
Nestas considerações acompanhei de perto, como se viu, as próprias palavras da Câmara Corporativa. Fi-lo por não me ser possível exprimir, por mim, com tanta clareza e precisão, as ideias que estão na base da minha posição. Mas fi-lo também - é com aprazimento que o afirmo - para desse modo prestar homenagem aos dignos Procuradores que, sem qualquer declaração de voto, subscreveram o luminoso parecer da Câmara.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Alberto de Alarcão: -Sr. Presidente: Parece-me preferível a arrumação proposta pela comissão eventual desta Assembleia pelas razões seguintes:
a) Na base III proposta enumeram-se o que poderíamos chamar direitos fundamentais das pessoas;
b) Na base IV proposta apontam-se os direitos negativos ou garantias;
c) Na base V trata-se do direito de reunião;
d) Nas bases XVI e XVII trata-se dos direitos das confissões ou associações e, portanto, ficam melhor na respectiva secção.
A catalogação numa só base ou a dispersão, aliás suficientemente justificada, por diversas bases parece-me de somenos importância; quanto à licitude ou direito individual deixo, por minha parte, à consideração da nossa Comissão de Legislação e Bedacção.
Sendo assim, prefiro a sistematização proposta pela comissão eventual desta Assembleia.
Em particular, acerca de alguns números da proposta de alteração subscrita pelo Sr. Deputado Sá Carneiro e outros Srs. Deputados, direi o seguinte:
Alínea d) Não parece viável conceder o direito ao descanso semanal nos dias próprios de cada confissão religiosa: por exemplo, aos judeus o sábado, e aos muçulmanos a sexta-feira.
Numa região homogèneamente islamizada, como na Guiné, poderia estar bem. Nas restantes haverá de seguir-se as diferenças impostas pela sua diferente representatividade.
Por exemplo, seria uma confusão conceder aos alunos dessas confissões que faltassem às aulas nesses dias, aos trabalhadores que não se apresentassem ao trabalho, aos réus e testemunhas que faltassem às convocações judiciais, etc.
Não se faz assim - que eu saiba - em nenhum país! do Mundo, mesmo naqueles que são dos mais respeitadores da liberdade religiosa. Nem em Israel nem nos Estados árabes se concede tal direito aos cristãos quanto ao domingo. Quando muito, poderia dizer-se, como fazia a base IV da proposta da Câmara Corporativa, que o Estado e as empresas deveriam facilitar o cumprimento dos deveres religiosos na medida do possível.
Mas a medida do possível tem muito que se lhe diga em termos de bem comum ou sem lesão dos interesses gerais da sociedade.
Assim, por exemplo: uma equipa operadora está destacada para prestar serviço no banco hospitalar num sábado. Dela faz parte um anestesista que professa a religião judaica, por exemplo, sem qualquer ofensa para o nosso prezado colega Bento Levy, que muito prezo. É lícito esquivar-se às suas obrigações morais, deontológicas, de assistir aos feridos ou mesmo moribundos, sòmente porque a sua religião lhe manda respeitar o sábado? Ou o direito à vida e à integridade física não será um bem superior?
Alínea e) À parte acrescentada à mão na proposta do Sr. Deputado Sá Gameiro e outros Srs. Deputados: livre transferência dos ministros de culto, parece pertencer mais propriamente à liberdade de organização interna das confissões religiosas [alínea j) desta proposta de alteração à base III].
Quando muito tal pormenor, aliás muitíssimo regulamentar, poder-se-ia acrescentar a essa base XI da proposta da comissão eventual, para a qual, aliás, não existem propostas de alteração.
Alínea f) Este direito à sepultura religiosa estava consignado na base V da proposta da Câmara Corporativa e, de forma mais sumária, no primitivo projecto governamental agora reproduzido em sua generalidade.
Mas foi suprimido na posterior proposta do Governo e aceite pela comissão eventual desta Assembleia, talvez por julgar desnecessário mencioná-lo expressamente, visto se poder considerar incluído na liberdade geral de praticar os actos de culto e demais liberdades no âmbito religioso. A incluir-se como aditamento tal disposição, contra a qual, aliás, nada tenho a objectar em princípio, seria conveniente dar-lhe, no entanto, redacção algo diferente, para não parecer que as confissões religiosas e seus ministros estavam imperativamente obrigados a cumprir os ritos
Página 2509
21 DE JULHO DE 1971 2509
fúnebres, mesmo àqueles a quem a respectiva disciplina não concedesse ou negasse.
A Câmara Corporativa no seu parecer n.º 25/X excluía, aliás, expressamente, tal hipótese.
O Sr. Pinto Machado: - Sr. Presidente: Como já foi dito e redito, os direitos definidos na proposta de emenda à base III, subscrita pelo Sr. Deputado Sá Carneiro, por mim e por outros, eram os reconhecidos no inicial projecto de proposta de lei. E como também já foi dito, pelo menos por mim, estes direitos praticamente estão todos explícita e vincadamente apontados e reconhecidos na Declaração Conciliar sobre a Liberdade Religiosa.
Em relação aos reparos da Câmara Corporativa à base III do primitivo projecto -reparos que nos recordou o Sr. Deputado Veiga de Macedo, que declarou perfilhá-los -, digo o seguinte: Considerar-se a sua enumeração exaustiva é muito subjectivo o que se pode entender por tal. São, creio - e reconheço particular autoridade no apoio da referida Declaração Conciliar -, os direitos considerados fundamentais, de tal modo que o não reconhecimento de um só não permite dizer que se está numa situação de liberdade religiosa efectivamente reconhecida. Portanto, não me parece que seja despiciendo seriar estes direitos. E até me dá impressão que, ao ser redigido o projecto de proposta de lei, o legislador tinha na sua frente esta Declaração Conciliar, porque, efectivamente, eles encontram-se lá todos. Não me parece conveniente, portanto, num documento desta importância, reduzir estes direitos a quatro faculdades muito genéricas, que, aliás, não contemplam todos estes direitos fundamentais.
Em relação à objecção ao direito à assistência religiosa por ministros da religião professada, tal como o direito a receber sepultura de harmonia com os ritos da confissão que se professa, segundo as disposições tomadas pelo próprio ou pelos seus familiares, é evidente que se trata aqui - se eu entendo bem - que o Estado reconhece o direito às pessoas de receberem a assistência religiosa e de terem as cerimónias fúnebres religiosas cujas disposições deixaram consignadas. Não cabe, evidentemente, ao Estado impor - aliás, entraria em conflito com a própria liberdade religiosa das confissões religiosas - a essas confissões que os seus ministros prestem essa assistência ou que presidam a essas cerimónias. Não é esse o problema. O problema é que o Estado reconheça às pessoas este direito, sem que isso, evidentemente, possa obrigar as confissões religiosas a prestar essa assistência e a presidir a essas cerimónias fúnebres.
Muito obrigado.
O Sr. Sá Gameiro: - Duas palavras apenas, Sr. Presidente.
A primeira, relativamente ao parecer da Câmara Corporativa que foi aqui pertinentemente invocado, invocações essas que deram uma valiosa achega à discussão.
Para clarificar a questão de haver direitos ou meras faculdades lícitas é importante atentar no que a Câmara Corporativa diz quanto ao direito de não responder, e que é o seguinte: «Se as pessoas não pudessem ser interrogadas por terceiros ou pelas entidades públicas acerca desta matéria e os interrogantes praticassem, por consequência, um verdadeiro acto ilícito, sempre que fosse violada a proibição legal, ainda poderia com alguma propriedade falar-se de um direito dos indivíduos a não serem interrogados em matéria de religião.»
É precisamente isto que leva a qualificar a questão como de fundo, e não meramente terminológica.
Apliquemos este raciocínio às faculdades consignadas na proposta de lei; ter ou não ter religião, mudar de confissão ou abandonar. Pois se qualquer pessoa que contrarie este direito é automàticamente colocada em posição de ilicitude, ele será um direito; se é uma mera faculdade, ele pode ser contrariado, sem que quem o contrarie seja colocado em posição de ilicitude.
Exprimir as suas convicções pessoais de acordo com a lei geral; se é uma mera faculdade, pode o Poder Público ou os particulares contrariarem o seu livre exercício. E desde que o façam por forma lícita não ocorrem em ilicitude. Se é um verdadeiro direito não poderão fazê-lo sem se colocarem em ilicitude.
Isto é igualmente aplicável às alíneas c) e d) da base em discussão.
E daqui deriva necessàriamente que, se queremos garantir a tutela do livre exercício da liberdade, só o podemos fazer conferindo direitos; só havendo direitos conferidos a sua violação conduz ao ilícito, que é a principal garantia legal de as pessoas estarem efectivamente protegidas contra a violação dos seus direitos por parte do Poder Público ou dos particulares.
Tanto assim é que, logo adiante, a Câmara Corporativa fala no direito de reunião e no direito de associação; mas ao propor a nova redacção, esquece que qualificou, ela própria, como direito, estes poderes e propõe-nos como simples faculdades, o que o Governo acolhe.
Mais, eu falei em desigualdade em relação à disciplina legal da liberdade religiosa quanto à igreja católica; haveria também desigualdade em relação ao próprio direito de reunião em geral, pois que o Decreto-Lei n.º 22 468, de 11 de Abril de 1933, começa por dizer que «a todos os cidadãos é garantido o livre exercício do direito de reunião».
Trata-se, pois, e necessariamente, de conferir direitos, se queremos garantir efectivamente a liberdade religiosa; se o não fizermos, estamos a acolher, numa óptica de simples tolerância, o exercício dessa liberdade, permitindo automaticamente que quem contrarie esse exercício não seja punido por lei.
O segundo aspecto é o relativo ao descanso semanal, que me parece ter suscitado alguma confusão.
É evidente que este, como todos os demais direitos em matéria religiosa e pelo que respeita às outras liberdades, há-de ser disciplinado e ter os limites decorrentes da lei geral.
Não há que perguntar se aquele que professa uma confissão que impõe como dia de descanso a sexta-feira pode furtar-se a imperativos legais; pode-o tanto ou tão-pouco como os católicos relativamente ao domingo.
Haverá de ser a lei geral a regulamentar e limitar, com vista à manutenção da ordem pública, estes direitos; consigná-lo como direito equivale a reconhecer um poder incluído na liberdade religiosa, que haverá de ser disciplinado em igualdade com o direito ao descanso semanal das demais confissões.
Tenho dito.
O Sr. Teixeira Canedo: - Sr. Presidente: Sobre esta base III ouvi com atenção os Srs. Deputados que sobre ela se ocuparam.
Temos dois textos em confronto. Um do Sr. Deputado Sá Carneiro e outros e o do Governo. O primeiro problema que VI levantado é a questão da expressão «é lícito». Ora uma lei não se pode ver apenas pelo termo de uma base. Se se reparar no que diz na base I, «o Estado reconhece e garante a liberdade religiosa das pessoas ...», já não nos preocupará o facto de na base III se dizer que «é licito», pois afinal o que se quer dizer é
Página 2510
2510 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
que dentro dessa liberdade é lícito às pessoas fazerem isto, fazerem aquilo. Parece-me que o Estado tem mesmo que legislar desta maneira, não o pode fazer de outra. Mas eu acho que o texto proposto pelo Sr. Deputado Sá Carneiro mostra uma preocupação louvável, que todos temos de respeitar, simplesmente parece-me que a formulação da base III, conforme é apresentada pelo Governo, engloba precisamente tudo o que consta da base III proposta pelo Sr. Deputado Sá Carneiro.
É evidente que nós estamos aqui a discutir bases gerais, não podemos chegar à minúcia de numa lei saber se o enterro se faz desta ou daquela maneira.
Nos diversos números da base III do Governo estão precisamente reconhecidos todos os direitos, e, repare-se bem, que começa logo por ter ou não ter religião; é o primeiro que se pode exigir, exprimir as convicções pessoais. Parece-me que está certo a forma da alínea b), exigindo que seja de acordo com a lei geral, porque então poderiamos ver proliferar religiões a torto e a direito, difundir a palavra por escrito ou outros meios de comunicação, que podem ser pessoais, de pessoa a pessoa, colectivos, de pessoa para o grupo ou até para a colectividade, por outros meios, através da imprensa, da televisão ou outras formas assim, e, finalmente, praticar os actos de culto.
Se repararmos bem, todos os números da base III proposto pelo Sr. Dr. Sá Carneiro, estão precisamente compreendidos nestas quatro alíneas, que estão formuladas pela forma que a Constituição impõe, de que a Assembleia legisle segundo normas gerais; de outra maneira nós estaríamos a entrar já no caminho da regulamentação.
É claro que há aqui dois pontos ou três que obrigaram na proposta do Sr. Dr. Sá Carneiro à eliminação de propostas de lei do Governo. Simplesmente, parece-me que até por uma questão sistemática, que a melhor foram é a que apresenta o Governo, porque se na base III diz «é lícito», e esta licitude tem de se entender no sentido de que é exercício pleno da liberdade reconhecida na base I; já na base IV, de que propõe a eliminação, diz que ninguém será obrigado a declarar se tem ou não tem religião, eu pergunto: isto é ou não é necessário?
É-o, porque de outra maneira, aliás, eu entendo que já na base III a não declaração estava, compreendida, mas pelas razões de ordem estatística as pessoas podem ser obrigadas a declará-lo, embora sigilosamente.
Por isso, parece-me que irmos mais além do que está previsto na base III do Governo é já entrarmos no campo da regulamentação.
Ouvi dizer que no primitivo projecto o Governo se atinha- a uma forma bastante mais desenvolvida para esta base III; eu suponho que naturalmente o Governo na regulamentação terá o cuidado de prever todos esses direitos; desenvolvê-los, de lhes dar disciplina; aliás, é a soía obrigação.
Tenho dito.
O Sr. Presidente: - Continua em discussão a base III.
O Sr. Almeida Cotta: - Sr. Presidente: Eu queria de facto dizer apenas poucas palavras. A intervenção dos Srs. Deputados foi de tal forma clara que todos estamos habilitados a poder fazer um juízo seguro sobre o problema de que nos ocupamos.
Desejava esclarecer algumas afirmações que aqui &e fizeram. Poucas, e em poucas palavras.
Não me recordo que alguém tivesse aqui afirmado que a Câmara Corporativa afastara definitivamente o problema da formulação do direito, reconhecendo que se tratava de faculdades. Eu não me recordo de ter ouvido isso.
Também queria esclarecer um outro aspecto, que foi o da extensão do direito da liberdade religiosa. O direito da liberdade religiosa não é taxativamente como o de qualquer dos direitos fundamentais, e temos como exemplo a própria Constituição, que, ao enumerá-los, não o faz por uma forma definitiva. E uma enumeração exemplificativa.
É muito difícil definir taxativamente um conjunto de direitos e de faculdades como aqueles que envolvem, por exemplo, o direito u vida, o direito à liberdade, o direito à expressão de pensamento, o direito à inviolabilidade das crenças e da fé religiosa. E muito difícil.
Por via de regra, a lei na sua- formulação adopta uma exemplificação, e não uma forma definitiva e taxativa. Com isto eu queria responder, talvez não com muita clareza, umas interrogações do Sr. Deputado Pinto Machado.
Por último, devemos todos reconhecer as dificuldades terminológicas mais uma vez sublinhadas pelo Sr. Deputado Sá Carneiro. Eu continuo a pensar que no direito, liberdade religiosa se encontra todo o desenvolvimento que depois a lei e a proposta de lei lhe dá.
A fonte é o direito à liberdade religiosa. O seu desenvolvimento são faculdades concedidas às pessoas paia fazer ou deixar de fazer, ao abrigo dessa fonte, aquilo que em assunto tão delicado lhe pareça dever ou não dever fazer.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
Queria apenas ainda acrescentar que pensava abordar mais alguns problemas em concreto, mas, depois da intervenção do Sr. Deputado Veiga de Macedo, parece-me inteiramente desnecessário.
Muito obrigado.
O Sr. Magalhães Mota: - Sr. Presidente: Neste momento da discussão julgo que, de facto, são possíveis muito poucas palavras para concretizar tudo quanto já foi dito.
O primeiro ponto que me parece importante é salientar que não é uma questão de terminologia a distinção entre o campo da licitude posta pela Câmara Corporativa e o campo dos direitos. Mostra-o, como já foi salientado, a própria Câmara Corporativa. Quero dizer, quando se entra no puro campo, ou no simples campo da licitude, podemos admitir que a conduta pessoal é livre. Mas podemos admitir apenas isso. Já não admitimos, necessariamente, que essa conduta seja juridicamente tutelada ou juridicamente protegida. Isto é, sé admitimos na redacção da base II o simples enunciado «licitude» estamos em contradição com a base I que votámos. Mostrou-o efectivamente a Câmara Corporativa, como já foi salientado, porque no exemplo que deu a Câmara Corporativa veio mostrar que efectivamente um indivíduo pode ser perguntado sobre qual a religião que professa, um que quem lho pergunta caia no campo do ilícito. Pois é essa a consequência se se admitir que estamos no mero campo da licitude.
Se o estado, efectivamente, pretende, como se dia na base I, proteger, tutelar juridicamente, assegurar a liberdade religiosa, como é seu dever, então tem de efectivamente, a proteger juridicamente. Quer dizer, não lhe basta dizer que é lícito e que tudo se move à vontade e no interesse dos indivíduos. O Estado tem obrigações a assumir. E essas obrigações são as de assegurar efectivamente a protecção da liberdade. E essa protecção da liberdade religiosa só se consegue consagrando com direitos aquilo que na proposta se admite produzir-se no mero campo
Página 2511
21 DE JULHO DE 1971 2511
dos actos lícitos. Só dessa forma corresponderá a sanção do acto ilícito àqueles que efectivamente, sejam eles Estado ou sejam meros particulares, venham a violar a liberdade religosa que consagramos. Por palavras mais simples e sintéticas: ou admitimos na base II uma enumeração de direitos ou não estamos efectivamente a consagrar o direito à liberdade religiosa. Segundo ponto: A enumeração que pretendemos fazer é necessariamente exemplificativa e não taxativa. Todos o sabemos. Mas o que parece é que teremos a maior vantagem, e temos o exemplo da nossa própria Constituição no seu artigo 8.º, teremos todos a maior vantagem em que, com a consciência de que a enumeração não é taxativa, ela seja tão ampla quanto possa ser. Estamos ainda aqui a consagrar o princípio do direito à liberdade religiosa e estamos a afirmá-lo tão amplamente quanto a convicção com que efectivamente a proclamamos. Terceiro ponto: E ainda uma razão para distinguir a licitude do direito. Se admitimos a simples licitude, estamos a admitir a concessão feita pelo Estado do determinadas liberdades de agir ou não agir.
Se estamos a proclamar direitos, estamos no campo do direito natural, estamos no campo dos direitos anteriores ao próprio Estado, da pessoa e da comunidade em que, numa concepção jusnaturalista, que, pelo menos na teoria que quase todos perfilhamos, não parece deixar de se impor como anterior ao próprio Estado e limitando-o.
Mais uma razão para que proclamemos direitos e não concedamos simples licitudes.
O Sr. Veiga de Macedo: - Creio que não devo deixar de formular a minha reserva à ideia aqui expendida de que da aprovação de um ou do outro dos textos em debate sobre a base III resultam consequências de tal modo decisivas que afectam a essência da lei a votar no plano das liberdades religiosas.
A discussão travada teve interesse e os problemas ventilados não podem considerar-se despiciendos. Mas daí a reputar-se a lei a aprovar como sendo, ou não, de verdadeira liberdade religiosa, conforme for adoptada uma ou outra das propostas em análise sobre a base III, vai uma grande distância.
Qualquer que seja o sentido do voto da Assembleia, as liberdades religiosas ficam asseguradas de modo eficaz, ou, senão ficam, não será por se optar por uma ou por outra das soluções preconizadas.
Faço esta afirmação em consciência, pois não atribuo à divergência das duas fórmulas em apreço um interesse fundamental: aprove-se uma ou outra, e teremos, em qualquer caso, uma lei que garantirá às pessoas e às instituições autêntica liberdade religiosa.
Vozes: - Muito bem!
O Sr. Presidente: Continua em discussão.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Se mais nenhum de VV. Ex.ªs desejar da palavra, passaremos a votação.
A proposta subscrita pelo Sr. Deputado Sá Carneiro e outros parece ser uma verdadeira proposta de substituição, porque não se limita a alterar a base III da proposta que orienta a nossa discussão. Ela não se limita a alterar, a restringir, ampliar ou modificar o seu sentido, mas introduz preceitos diversos e o Sr. Deputado proponente, ele mesmo, esclareceu-nos que, de facto, ela envolve uma substituição fundamental, que é a substituição do reconhecimento de direitos à mera licitude.
A Mesa considera, portanto, que a proposta de alterações à base III, subscrita pelo Sr. Deputado Sá Carneiro e outros, é uma proposta de substituição.
Ponho-a à votação com esta classificação, que, aliás, só interessa para o processo de votação.
Submetida à votação, foi rejeitada.
O Sr. Presidente: - Em virtude da sua rejeição, ficam prejudicadas as duas propostas de aditamento a preceitos desta proposta, que deram hoje entrada na Mesa e que foram subscritas pelos Srs. Deputados Pinto Machado, Sá Carneiro e outros.
Fica, pois, pendente da apreciação da Assembleia a base III da proposta de lei e a proposta de alterações da sua alínea b), subscrita pelos Srs. Deputados Almeida Cotta, Miguel Bastos e outros.
Vou pôr à votação da Assembleia o corpo da base III e as suas alíneas a), c) e d).
Submetidas à votação, foram aprovadas.
O Sr. Presidente: - Vou, agora, pôr à votação da .Assembleia, uma vez que na sua qualidade de proposta de emenda tem precedência regimental, a proposta subscrita pelo Sr. Deputado Miguel Bastos e outros, e que consiste em dar à alínea b) a seguinte redacção: «Exprimir as suas convicções pessoais».
Tem, de facto, uma eliminação das palavras «De acordo com a lei geral», em relação à alínea b) da proposta do Governo.
Submetida à votação, foi aprovada.
O Sr. Presidente: - Está assim completada a discussão da base III.
Vou encerrar a sessão. Mas, para amanhã, marco sessão de manhã e sessão de tarde, tendo como ordem do dia a continuação da discussão e votação da especialidade da proposta de lei sobre liberdade religiosa.
A sessão da manhã será às 11 horas.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 5 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
Bento Benoliel Levy.
Fernando Augusto Santos e Castro.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
João Duarte de Oliveira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
José Dias de Araújo Correia.
José João Gonçalves de Proença.
José de Mira Nunes Mexia.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Luís António de Oliveira Ramos.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes
Teófilo Lopes Frazão.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alexandre José Linhares Furtado.
Página 2512
2512 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 124
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando David Laima.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Francisco Correia das Neves.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Manuel Alves.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Jorge Augusto Correia.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Guilherme de Melo e Castro.
José da Silva.
José Vicente Pizarro
Xavier Montalvão Machado
Luís Maria Teixeira Pinto.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Marques da Silva Soares.
Rafael Valadão dos Santos.
O REDACTOR - Januário Pinto.
Propostas enviadas para a Mesa durante a sessão:
Propomos que à alínea a) da base III, com a redacção constante das propostas de alteração subscritas pelo Deputado Sá Carneiro e outros, sejam aditadas as seguintes palavras:
... agir ou não em conformidade com as prescrições da confissão a que pertençam;
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. - Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Sá Carneiro - Macedo Correia - Magalhães Mota - Oliveira Dias.
Propomos que à alínea j) da base III, com a redacção constante das propostas de alteração subscritas pelo Deputado Sá Carneiro e outros, sejam aditadas as seguintes palavras:
... ou a prossecução de outros fins específicos das confissões religiosas;
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. - Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Sá Carneiro - Macedo Correia - Magalhães Mota - Oliveira Dias.
Proposta de emenda
Propomos que ao n.º 1 da base V da proposta de lei n.º 15/X seja dada a seguinte redacção:
BASE V
1. As reuniões com as finalidades indicadas na alínea i) da base III - desde que se realizem dentro dos templos ou lugares a elas destinados -, bem como a celebração dos ritos próprios dos actos fúnebres dentro dos cemitérios, não dependem de autorização ou participação, podendo as capelas nestes existentes ser utilizadas pelos membros de qualquer confissão religiosa reconhecida.
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. - Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Joaquim Carvalho Macedo Correia - Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro - Joaquim Jorge de Magalhães Saraiva da Mota - Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Proposta de emenda
Propomos que ao n.º 6 da base IX da proposta de lei n.º 15/X sobre a liberdade religiosa seja dada a seguinte redacção:
6. O reconhecimento só será recusado:
Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. - Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Joaquim Carvalho Macedo Correia - Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro - Joaquim Jorge de Magalhães Saraiva da Mota - Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Proposta
Nos termos regimentais, propomos que à proposta de lei em discussão seja acrescentada uma nova base, com o seguinte texto:
BASE
Fica o Governo autorizado a estender ao ultramar, com as necessárias adaptações, o regime da presente lei.
Sala, das Sessões da Assembleia Nacional, 20 de Julho de 1971. Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva - Joaquim Carvalho Macedo Correia - Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro - Joaquim Jorge de Magalhães Saraiva da Mota - Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
IMPRENSA NACIONAL
PREÇO DESTE NÚMERO 9$60