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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

DIÁRIO DAS SESSÕES

N.º 150 ANO DE 1972 19 DE JANEIRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

X LEGISLATURA

SESSÃO N.º 150 EM 18 DE JANEIRO

Presidente: Ex.mo Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto.

Secretários: Ex.mos Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conto do expediente.

O Sr. Presidente informou estar na Mesa, acompanhada do parecer da, Câmara Corporativa, uma proposta, de lei de defesa, da concorrências, a qual ia ser publicada, no Diário das Sessões e baixava para estudo à Comissão de Economia.

Informou também estarem na Meia, para efeitos do disposto no § 3.º do artigo 109." da Constituição, os Decretos-Leis n.ºs 20/72, 21/72, 22/72 e 23/72.

Dou ainda conta de estafem na Mesa elementos fornecidos pelo Ministério das Comunicações em satisfação do requerimento apresentado pela Sr. Deputado Mota Amaral na sessão de IS de Desembro último.

O Sr. Presidente referiu-se também à visita que lhe fizera o Sr. Contra-Almirante Sarmento Rodrigues, presidente da Comissão Nacional das Comemorações do Cinquentenário da Primeira Viagem. Aérea Lisboa-Río de Janeiro, teceu a propósito algumas considerações e disse que reputaria apropriadas as intervenções que na altura própria os Srs. Deputados entendessem produzir.

O Sr. Deputado Cancella de Abreu focou a projecção e prestigio alcançados em vida pelo Prof. Egas Monis no âmbito nacional e no campo da ciência, internacional, lamentando o encerramento da sua Casa-Museu, que espera soja provisório.

O Sr. Deputado Correia das Neves referiu o interesse manifestado pelo Governo Espanhol relativamente as ligações rodoviárias Befa-Sevilha.

O Sr. Deputado Alberto de Meireles interrogou a Mesa sobre se, tendo sido o Sr. Deputado Pinto Machado convocado para prestar serviço militar, Haviam sido tomadas providencias para que a sua presença fosse assegurada para efeito" do exercício e cumprimento do respectivo mandato.

O Sr. Presidente deu conta das diligências feitas pela Mesa junto do Sr. Ministro do Exército, diligencias estas oportunamente atendidas.

Sobre o assunto fizeram considerações, além do Sr. Deputado Alberto de Meireles, os Srs. Deputados Júlio Evangelista, Pinto Machado e Ricardo Horta.

Ordem do dia. - Continuou a apreciação do Decreto-Lei n.º 620/71, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Sá Carneiro, Miller Guerra, Mota Amaral, Castelino e Alvim e Moura Ramos.

Depois de convocar a Comissão de Economia para iniciar o estudo dia proposta de lei de defesa da concorrência, o Sr. Presidente encerrou a sessão as 18 horas e 25 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada. Eram 16 horas e 10 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Albino Soares Pinto dos Beis Júnior.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Lopes Quadrado.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Armando Valfredo Pires.

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Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfim Linhares de Andrade.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Duarte Finto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Augusto Santos e Castro.
Fernando David Laima.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco José Pereira Finto Balsemão.
Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João António Teixeira Canedo.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
Joaquim Germano Finto Machado Correia da Silva.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Coelho Jordão.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José Maria de Castro Salazar.
José dos Santos Bessa.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luís António de Oliveira Ramos.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Martins da Cruz.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso Manuel Valente Sanches.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Rafael Ávila de Azevedo.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Rui de Moura Ramos.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Teodoro de Sousa Pedro.
Teófilo Lopes Frazão.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos

O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.

Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 20 minutos.

Antes da ordem do dia

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Vários, apoiando a não ratificação do Decreto-Lei n.º 520/71.

O Sr. Presidente: - Está na Mesa, enviada pela Presidência do Conselho, uma proposta de lei de defesa da concorrência, acompanhada do parecer da Câmara Corporativa. Vai ser publicada no Diário das Sessões e baixa imediatamente a Comissão de Economia, para que sobre ela se pronuncie.

Se já estivesse regulada no nosso Regimento a tramitação especial a que se refere a alínea d) do artigo 101.º da Constituição, eu pediria a VV. Ex.ªs para marcarem prazo de urgência para apreciação na Comissão desta proposta de lei. Como não sucede, limito-me a pedir ao seu Ex.mo Presidente e aos seus vogais que diligenciem concluir, com toda a brevidade possível, a sua apreciação, para que dentro de pouco tempo a proposta possa ser trazida ao plenário da Assembleia com o estudo da Comissão de Economia.

Estão também na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, os n.ºs 12, 18 e 14 do Diário do Governo, respectivamente de 15, 17 e 18 do corrente mês de Janeiro, que inserem os seguintes decretos-leis:

N.º 20/72, que cria o quadro único de escriturários-dactilógrafos do Ministério do Ultramar;

N.º 21/72, que cria os quadros únicos de telefonistas, de contínuos e porteiros e de serventes e paquetes do citado Ministério;

N.º 22/72, que fixa os critérios para a avaliação das redes eléctricos e outros bens a transferir das concessionárias de pequena distribuição de energia eléctrica para as entidades concedentes no termo da concessão, ou por força de resgate ou rescisão;

N.º 28/72, que determina que sejam aditados e abatidos vários lugares aos quadros do pessoal aprovados por lei da Secretaria de Estado da Informação e Turismo e do Gabinete do Secretário de Estado da Informação e Turismo.

Para satisfação do requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Mota Amaral na sessão de 15 de Dezembro último, estuo na Mesa, enviados pela Presidência do Conselho, os elementos fornecidos pelo Ministério dos Comunicações.

Desejo informar VV. Ex.ªs de que me visitou há pouco o Sr. Contra-Almirante Sarmento Rodrigues, Presidente da Comissão Nacional das Comemorações do Cinquentenário da Primeira Viagem Aérea Lisboa-Rio de Janeiro.

O Sr. Almirante, aliás antigo membro desta Casa, lembrou-me as datas mais salientes. Com efeito, a 30 de Março perfazer-se-ão cinquenta anos sobre a partida dos heróicos aviadores de Lisboa. A 18 de Abril perfazer-se-ão igualmente cinquenta anos sobre a chegada do avião Lusitânia ao penedo de- S. Pedro. A 17 de Junho do corrente ano completar-se-á o cinquentenário da chegada ao Rio de Janeiro do avião Santa Cruz. As duas primeiras efemérides ocorrem durante o funcionamento da Assembleia. Se algum Sr. Deputado as quiser comemorar conforme merecem, permito-me exprimir a opinião que o fará muito

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apropriadamente, pois as pessoas de hoje dificilmente podem conceber o que significou de coragem, de reflectida Audácia e de capacidade científica a viagem iniciada em 1922, que representou a primeira travessia aérea do Atlântico Sul com escassíssimos meios materiais quanto ao próprio instrumento de viagem, ou seja o avião, embora com solida preparação dos seus navegadores. Estamos hoje em dia habituados a ver vencer pela via dos ares as maiores distâncias nos mais curtos tempos. Felizmente para os homens da actual geração, não lhes é possível, em verdade, figurarem-se facilmente, com prontidão, com presença imediata ao espírito, quanto essa viagem teve de extraordinário e como ela comoveu, apaixonou e entusiasmou os portugueses desses tempos. Se houver quem queira recordá-lo à Assembleia, nas datas efemérides dos principais passos aã viagem, certamente a Assembleia terá gosto em ouvir, e ninguém duvidará de que a iniciativa seja apropriada. Tem a palavra o Sr. Deputado Cancella de Abreu.

O Sr. Cancella de Abreu: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: - Foi António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, ou apenas Egas Moniz, uma individualidade de grande projecção e prestígio, não apenas no âmbito nacional, mas muito principalmente no amplo campo da ciência internacional. Basta recordar que conseguiu com os seus trabalhos médicos ser galardoado com o primeiro e único Prémio Nobel que até agora foi atribuído a um português.

A sua extraordinária personalidade teve múltiplas e distintas facetas.

Do ponto de vista científico, ninguém lhe pode negar um valor ímpar. Professor eminente, neurologista famoso, investigador dotado de uma imaginação criadora fora de série, os trabalhos de Egas Moniz sobre arteriografia cerebral -para não folar agora DOS da leucotomia pré-frontal, motivo da concessão do tão desejado Prémio Nobel- abriram para o Mundo o imenso e importantíssimo campo da angiografia, investigações que na matéria e com tonto êxito foram prosseguidas no sector renal por Reinaldo dos Santos, nas doenças pulmonares por Lopo de Carvalho, com a sua angiopneumografia, e em estudos que devotadamente se continuaram em vários ramos da patologia, entre outros, por Almeida Lima, Cid dos Santos e Aires de Sousa, constituindo este conjunto de valiosíssimos trabalhos o que internacionalmente se conhece sob o nome de Escola de Angiografia Portuguesa, de que tanto e tão justamente nos orgulhamos.

O Sr. Roboredo e Silva: - Muito bem!

O Orador: - Se do ponto de visto político, como membro de um partido. Deputado ou Ministro, nem todas os ideias que Egas Moniz defendeu se enquadram nas minhas, isso não me impede, de modo algum, de prestar homenagem ao seu indesmentível portuguesismo. Sempre e em todas as circunstâncias as suas atitudes políticas foram orientadas com a finalidade de conseguir prestigiar o nome e a posição internacionais do nosso país.

O Sr. Roboredo e Silva: - Muito bem!

O Orador: - Mas, além de respeitado mestre na medicina, de cientista e de investigador de mérito incontestáveis honro-me de ter sido um dos seus alunos, que não poderá jamais esquecer as suas maravilhosos aulas, debordantes de interesse -, foi Egas Moniz uma personagem cujos conhecimentos ultrapassaram de muito os limites já bem largos da própria medicina. E de todos conhecida o sua erudição no campo literário, de que resultou a magnífica obra sobre Júlio Dinis, e ainda- no sector das artes os seus trabalhos sobre a figura do grande pintor José Malhoa e acerca do escultor Maurício de Almeida.

Igualmente em outros sectores, o espírito, o intelecto e a vasta cultura de Egas Moniz se espraiaram largamente. Nas suas cosas, que bem conheci, a par de uma magnífico biblioteca, alinhavam-se quadros e gravuras de pintores e gravadores célebres, móveis assinados, louças preciosas, especialmente dos melhores períodos do império chinês, vidros raros e tantas e tantas outras riquezas do campo cultural e artístico.

Egas Moniz faleceu em Dezembro de 1955, há pouco mais de dezasseis anos. No seu testamento determinou que todas as preciosidades que possuía se não dispersassem. Antes, que se reunísseis num museu, a instalar em Avança, a terra onde nascera, na sua Casa do Marinheiro, que legou para esse fim. Nessa conformidade, depois do falecimento da sua viúva, criou-se a Fundação Egas Moniz, com estatutos aprovados por despacho ministerial de 15 de Março de 1966, publicados no Diário do Governo, de 28 do mesmo mês e ano. "Esta Fundação", como diz no seu artigo 2.º, "tem por fim principal a organização, manutenção e conservação da Casa-Museu Egas Moniz, destinada a reunir os objectos e documentos relativos ao falecido Prof. António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, à sua vida, à sua obra e à sua projecção nacional e internacional, e, se os seus recursos o permitirem, promover cos imóveis que lhe estão afectos o seu aproveitamento para fins de cultura literária, artística e científica e ainda o aperfeiçoamento profissional no âmbito dos programas oficiais." E o artigo 3.º esclarece que "para realização dos seus fins deverá o referido Museu compreender uma parte artística, outra científica ligada aos trabalhos do Prof. Egas Moniz e outra mais intima dedicada a recordações de família e pessoais, e, quando possível, deverá o mesmo possuir salas de leitura e de aula, em anexos apropriados para escolas diurnas e nocturnas, de acordo com os objectivos pretendidos. Dentro dos mesmos propósitos, terá a sua conveniente biblioteca e organizará exposições, conferências e cursos, de harmonia com os regulamentos e planos que vierem a estabelecer-se". Quer dizer, Egas Moniz não pensou apenas em criar um museu, na acepção vulgar da palavra, mas desejou dar-lhe, como vemos, uma autêntica vida intrínseca, para que essa casa pudesse ser utilizada na difusão da cultura literária, artística e científica.

O Museu foi carinhosamente montado e procedeu-se à sua inauguração. Tive oportunidade, em diversas ocasiões, de rever os admiráveis peças que nele se apresentam, a última vez com a honrosa missão de acompanhar S. Ex.ª o Presidente da República, na visita que o Sr. Almirante Américo Tomás ali realizou há algum tempo.

Desde o início, foi guarda do Museu o Joaquim Rosado, devotado mordomo e dedicadíssimo e amigo servidor de Egas Moniz durante vários dezenas de anos. Ninguém melhor do que ele nos guiava na visita. Conhecia as peças quase uma por uma, a sua história e de como haviam chegado à posse aos seus patrões. Pode dizer-se que era contemporâneo da entrada na casa da imensa maioria daquelas preciosidades.

Mas Joaquim Rosado faleceu há poucos meses. Desde então o Museu fechou as suas portas, por a comissão dirigente da Fundação não ter meios para poder pagar a quem tomasse devidamente conta de todo aquele valioso recheio.

Com o encerramento, esperamos que provisório, do antiga Casa do Marinheiro, o património artístico, cultural

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e histórico português, já de si tão escasso, ficou mais pobre. Estão lamentavelmente aferrolhados, longe da nossa vista, além de peças de alta valia, todos os importantes documentos referentes ao único Prémio Nobel de que Portugal se pode vangloriar.

O Sr. Miller Guerra: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Miller Guerra: - Na qualidade de discípulo, amigo e admirador de Egas Moniz, não posso deixar de apoiar as palavras do Sr. Deputado Lopo Cancella de Abreu.

A ciência portuguesa, a Nação, o mundo, devem a Egas Moniz serviços inestimáveis, e não é de mais que o Estado tome à sua conta a manutenção do Museu que conserva e perpetua a memória do grande cientista, do granule português e homem público.

O Orador: - Muito agradeço ao ar. Deputado Miller Guerra a valiosa achega que quis tnazar às minhas considerações.

O último antigo dos estatutos da Fundação Egas Moniz, o 20.º, admitia que, em caso do força maior, mas mantendo sempre as disposições testamemtarias, o seu património revertesse para o Estado. Julgo que foram já feitas diligências nesse sentido junto do Ministério da Educação Nacional. E eu, desta tribuna, como Deputado por Aveiro, como amigo e discípulo, que fui, de Egas Moniz e, acima de todo, como português, desejava solicitar a sempre benevolente e interessada deferência do Ministro Veiga Simão paira que, o mais rapidamente possível, o Museu de Egas Moniz reabra as suas portas. Assim o exige o nome de um sábio que tanto honrou Portugal e assim o impõe a premente necessidade de aumentar, cada vez mais, a cultura artística da nossa gente.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Correia das Neves: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Na minha intervenção de 10 de Dezembro último, com vista a chamar a esclarecida atenção do Governo paira alguns problemas e interesses do Baixo Alentejo, tive oportunidade de salientar a particular importância que revestem, sobremaneira, na conjuntura turística actual, es ligações por esteada entre Beja e Sevilha, dando conta, ao mesmo tempo, das más características de viação da esteada da fronteira luso-espanhola de Ficalho à dita e famosa cidade de Serrilha.

Por amável cuidado do Sr. Embaixador de Espanha, o assunto foi levado a consideração de S. Ex.ª o Ministro das Obras Públicos do país vizinho, D. Fernandez de La Mora, que Be dignou prestar a melhor atenção ao problema e fazer seguir pronta informação até junto do seu ilustre colega português, Engenheiro Bui Sanches, que, amavelmente também, se apressou a dar-mos conta dela.

Ai se esclarecem diversos pormenores relativos à rodovia em questão, a cuja melhoria e conservação o Governo Espanhol vem atendendo com as verbos ordinárias, realizando-se alargamentos em alguns pontos, e em tal linha prosseguirá, já que as consignações especiais do próximo quadriénio estão comprometidas com estradas de tráfego superior.

No entanto, tal como textualmente nos é informado, o Ministro das Obras Públicas de Espanha, compartilhando o justificado interesse de aumentar e melhorar os acessos a Portugal, deu instruções ao departamento da Dirección Gemera! de Carreteras para que, na medida do possível, se vá melhorando a via, com alargamentos da faixa e doa pontões e acondicionamento de curvas, por ordem de perigosidade, para melhorar os condições da rodovia, em benefício de um tráfego que, tal como as autoridades espanholas "também expressamente reconhecem, há-de crescer nos próximos snos, por razões principalmente turísticas.

Por agora, cumpre-me manifestar, tanto ao Sr. Ministro das Obras Públicas de Espanha, como ao Sr. Embaixador do pais vizinho, o meu muito "preço pela solicitude que lhes mereceu o problema, que, se reveste importância para os dois países, tem particular significado porá a região do Baixo Alentejo, que aqui representamos.

Sabemos igualmente que a ele dedicará a melhor atenção o Sr. Ministro das Obras Públicas de Portugal, que tanto interesse vem manifestando pelo Alentejo, o que nesta oportunidade me apraz registar e agradecer.

E, com efeito, mais uma vez se afirma assim o salutar espírito de cooperação nas relações entre os dois Governos, que vem tendo, ultimamente, em alguns domínios, resultados práticos mais esclarecidos, de que é exemplo recente a conclusão das diligências e trabalhos preliminares com vista à construção da ponte Algarve-Aiamonte, que, segundo se prevê, será em breve uma realidade.

Que dessa louvável colaboração possa colher benefícios mais directos o meu distrito de Beja - é o apelo que dirijo a ambos os Governos, exprimindo desde já, como Deputado, o nosso agradecimento pelo que possa ser feito em tal sentido, a começar pela beneficiação dos ligações Beja-Sevilha.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Alberto de Meireles: - Peço a palavra. Pausa.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Alberto de Meireles pediu a palavra?

O Sr. Alberto de Meireles: - Se V. Ex.ª ma dá, será para interrogar a Mesa, portanto com precedência regimental.

O Sr. Presidente: - Tem V. Ex.ª a palavra.

O Sr. Alberto de Meireles: - Sr. Presidente: Constou-me que um ilustre Deputado pertencente ao círculo pelo qual também eu fui eleito foi convocado para prestar serviço militar.

Desejo interrogar V. Ex.ª e a Mesa sobre se está assegurada a presença desse Deputado, como entendo que o deve ser, para exercício e cumprimento do seu mandato.

O Sr. Presidente: - Em resposta à pergunta de V. Ex.ª informo que o Sr. Deputado Pinto Machado Correia da Silva, efectivamente eleito pelo círculo do Porto, de que V. Ex.ª é também um dos representantes, me comunicou no princípio da semana passada que havia sido mobilizado para prestar serviço militar no quadro de complemento.

VV. Ex.ªs sabem perfeitamente que a qualidade de Deputado não inibe o dever da prestação de serviço militar, e eu, pessoalmente, creio que está certa essa isenção de privilégio.

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No entanto, o mandato de Deputado, sendo um mandato nacional, prima todo o serviço público, e, em consequência, pedi ao Sr. Ministro do Exército que providenciasse no sentido de o Sr. Deputado Finto Machado Correia da Silva poder participar nos trabalhos parlamentares durante a sessão legislativa, isto é, a partir de 15 de Janeiro até 30 de Abril.

Certifiquei-me, em conversa directa com o Sr. Ministro do Exército, que fora deferido o pedido que lhe dirigi e que só o deferiu hoje por ligeira demora dos serviços de expediente do seu Ministério.

Pareceu-me perfeitamente demonstrada a pronta vontade deste membro do Governo de atender à solicitação que lhe dirigi, e que efectivamente tinha o valor e o sentido de requisição, para exercício do seu mandato, do referido Deputado. E se ela não foi tão imediata quanto, a data do meu pedido me permitia esperar, foi, porventura, porque nos serviços do Gabinete não se atribuiu a um ofício emanado da Mesa da Assembleia Nacional, e para aquele fim, a celeridade de atenção que seria lícito esperar.

Em suma, espero qua o Sr. Deputado Finito Machado venha retomar os seus trabalhos parlamentares.

O Sr. Alberto de Meireles: - Agradeço a V. Ex.ª, Sr. Presidente, as claras explicações, a clara resposta, que acaba de dar à minha pergunta, e permita V. Ex.ª que, com toda a Câmara, penso eu, nos regozijemos pela pronta e adequada actividade de V. Ex.ª para que fosse assegurada a presença do ilustre Deputado nesta Assembleia.

O Sr. Presidente: - Agradeço as palavras de V. Ex.ª O Sr. Deputado Júlio Evangelista pediu a palavra, paia? ...

O Sr. Júlio Evangelista: - Para fazer aqui, na Assembleia Nacional, como parlamentar há várias legislaturas, a evocação de um antigo colega, Deputado por Timor, distinto oficial do exército português - o então major Chorão de Carvalho -, que prescindiu das suas prerrogativas de Deputado para embarcar, galharda e gloriosamente, no cumprimento do seu serviço militar no ultramar.

Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Devo dizer a V. Ex.ª que a presença de um Deputado para os trabalhos parlamentares mão exclui a prestação de serviço militar, uma vez que esses cessem, e que neste sentido há precedentes na história da Assembleia., além daquele que V. Ex.ª invocou.

O Sr. Pinto Machado: - Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, é para explicações?

O Sr. Pinto Machado: - E sim, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Porque, não estando V. Ex.ª inscrito ... Já a intervenção do Sr. Deputado Júlio Evangelista, sem inscrição, teve de ser recebida com muito boa vontade. Pois V. Ex.ª beneficiará de boa vontade igual.

O Sr. Pinto Machado: - Muito obrigado, Sr. Presidente. Em primeiro lugar, queria agradecer, Sr. Presidente, os esclarecimentos aqui dados acerca da minha situação, visto que ainda hoje eu cão sabia, em rigor, qual era. Não podia deixar de fazer um breve, muito breve, comentário ao que acaba de afirmar o Sr. Deputado Júlio Evangelista, na medida em que parece conter uma insinuação que sputo extremamamte grave e infeliz ...

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - ... de que eu e a Presidência da Assembleia Nacional nos estávamos a eximir ao cumprimento de um dever. Como, desde o início da minha mobilização, disse claramente ao Sr. Chefe do Gabinete do Sr. Ministro do Exército, do que é testemunha o Sr. Brigadeiro Ricardo Horta, e como afirmei ao Sr. Presidente da Assembleia Nacional, eu, pessoalmente, nunca pus qualquer reserva à minha mobilização. Só numa exposição que enviei ao Sr. Ministro do Exército, por ter sido convocado para exercer funções de ajudante de cirurgião, declarei e demonstrei, nessa exposição, que não tenho competência, visto que, como já afirmei nesta Assembleia, defendo o tempo integral para o professor universitário. As minhas funções são de docente de anatomia normal; trabalho com cadáveres humanos e com animais de laboratório e entendo que não tenho o direito de, com a minha incompetência, pôr em risco a saúde dos militares que me fossem atribuídos para operar.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Júlio Evangelista: - Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Para encerrar o incidente, eu tenho apenas de prestar um esclarecimento à Assembleia. Não foi a solicitação do Sr. Deputado Pinto Machado que eu o requisitei para participar cos trabalhos parlamentares; foi por iniciativa minha. E o precedente em que me louvei tem nada mais nada menos que a assinatura especialmente autorizada do Prof. Doutor José Alberto dos Reis, primeiro ilustríssimo Presidente desta Assembleia Nacional.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Ricardo Horta: - Sr. Presidente, peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Eu gostaria de dar o incidente por esclarecido, mas faça favor.

O Sr. Ricardo Horta: - Sr. Presidente: Peço desculpa a V. Ex.ª, mas o Sr. Deputado Pinto Machado invocou aqui o meu nome e eu queria esclarecer a Assembleia Nacional das verdadeiras e justas palavras que ouvi do Sr. Deputado Pinto Machado.

O Sr. Deputado procurou-me para esclarecer uma situação de ordem técnica e esse esclarecimento estava cheio de verdade, de sentido técnico, cheio de vontade de cumprir o seu dever onde ele fosse mais útil, mais justo e mais humano.

O Sr. Deputado Pinto Machado foi comigo ao Ministério do Exercício e expôs o problema com uma clareza e com uma verdade, sob o ponto de visto técnico, que era incontestável, e mais ainda, pôs-se a ordem do Ministério do Exército para, quando necessário fosse, embarcar para ir cumprir o seu dever, como estava notificado para o caso.

A dúvida, o problema que se levantava, era a missão que lhe devia ser atribuída, a justificação que ò Sr. Depu-

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tado apresentava para a missão perfeita e concreta da sua mobilização era a coisa mais justa que podemos admitir no caso.

Portanto, cumprimento o Sr. Deputado Pinto Machado e presto-lhe a homenagem da verdade que aqui apresentou, à alta dignidade do seu carácter, à sua apreciação técnica para o caso em vista.

Muito obrigado.

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª dá-me licença? Uma interrupção, Sr. Presidente, que eu ...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Ricardo Horta já tinha encerrado as suas conclusões, portanto já não se trata de uma interrupção...

O Sr. Júlio Evangelista: - Não tinha encerrado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Eu já dei o incidente por encerrado, Sr. Deputado, tenho imensa pena, mas não podemos continuar indefinidamente.

V. Ex.ª já expôs o seu ponto de vista, não ó desprimoroso para ninguém; a Presidência já esclareceu; o assunto está encerrado.

Vamos passar à ordem do dia: .apreciação do Decreto--Lei n.º 520/71.

Tem a palavra o Sr. Deputado Sá Carneiro.

O Sr. Júlio Evangelista: - V. Ex.ª não me dá a palavra para explicações?

Agradeço muito a V. Ex.ª, porque poderia pairar no ar qualquer suspeita de que eu não prestava, como devia, a minha homenagem à Mesa e ao Sr. Deputado Pinto Machado. Às explicações que provoquei foram úteis a todos os títulos, dado que a questão veio ao plenário.

Simplesmente, Sr. Presidente, queria deixar bem esclarecido: acho clara, perfeitamente certa, a atitude da Mesa, como a atitude do Sr. Deputado Pinto Machado. Mas os esclarecimentos foram úteis, repito. Não queria também deixar de invocar um outro precedente, de outro género - isso é com cada um -, para prestar também homenagem a um outro Deputado que esteve nesta Casa e então adoptou atitude diferente. Isto não quer dizer que o serviço desta Câmara não seja serviço de precedência nacional.

Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - V. Ex.ª reconhecerão à Mesa a permanente, constante e porventura até excessiva boa vontade de consentir que todos os Srs. Deputados manifestem as suas razões em qualquer questão que seja aqui levantada.

Mas agora, e usando da autoridade que me conferiram, vamos efectivamente passar à

Ordem do dia

Continuação da apreciação do Decreto-Lei n.º 520/71, e, repito, tem a palavra o Sr. Deputado Sá Carneiro.

O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: Os signatários do requerimento que apresentei na sessão de 15 de Dezembro do ano passado, ao pedirem que o Decreto-Lei n.º 520/71 fosse submetido à apreciação da Assembleia, praticaram um acto que, nem por ser tradução de uma passada supremacia legislativa, deixa de ter conteúdo eminentemente político.

Certamente que será diverso o significado que para cada um tem esse acto.

Pela minha parte começarei por aludir ao sentido que ele tem para mim, não por razões pessoais, mas porque esse significado e a inerente posição me parecem elucidativas do nosso actual contexto parlamentar e político, em que surge não só o decreto-lei em causa, como o pedido de ratificação.

O decurso da segunda sessão, e em especial o que se passou na sessão extraordinária do Verão passado, vieram confirmar-me as apreensões aqui insuspeitamente formuladas, em 8 de Abril de 1970, pelo Deputado Homem Ferreira, nestes termos lapidares:

Parece haver ainda nesta Casa o culto da opinião do Governo só porque é do Governo, o que pode levar a confundir independência com indisciplina e a perfilhar um conceito de colaboração que roça as fronteiras da vassalagem.

Neste quadro nem será difícil profetizar que todas as propostas de lei enviadas à Câmara receberão um carinhoso beneplácito, por mais distanciadas das realidades que se apresentem e por mais deficiências que contenham.

Se me for consentido, espero poder abordar, em breve, estes aspectos, na medida em que provocam interpretações desagradáveis e traduzem uma desvalorização política da Assembleia.

Porquê então insistir, se, por experiência própria, sei que aqui não á possível ver acolhidas posições'que não sejam aceites pelo Governo?

É evidente que não tenho qualquer gosto em ver derrotadas ou antecipadamente abortadas todas as iniciativas em que me empenho, que não me posso regozijar com o insucesso certo, resultante de uma votação disciplinada e maciça.

É frequente ouvir aqui mesmo a pergunta, formulada até a propósito da matéria de que hoje nos ocupamos: para quê pedir a ratificação?

Porquê, em última análise, teimar numa posição de isolamento, estudar os problemas e trabalhar os assuntos com a certeza antecipada de que, na melhor das hipóteses, a votação final será amplamente contrária?

Para quê, perguntarão os políticos experientes, os homens de 'bom senso, ias pessoas razoáveis, as individualidades "prudentes", insisti numa posição que à partida parecia ser exequível e até oficialmente aceite, mas que hoje foi iprogressmmenite reduzida a oposição?

Não era melhor ser conciliador, cooperar, tentar conseguir alguns resultodinhos nos (bastidores?

Ou então reconhecer a impossibilidade, aceitar publicamente o insucesso, abandonar a Itdfca inglória?

Valerá sequer a pena?

Creio sinceramente que, no sentido literal da expressão, "não vale a pena". E entendo também que há que prosseguir.

Por isso hoje aqui estou.

E, por estranho que pareça, não subo a esta tribuna "sem qualquer espécie de entusiasmo e com o espírito mergulhado em profundo cepticismo", como o Deputado Homem. Ferreira, mas sim com o ânimo e a boa disposição de quem tem a consciência da razão que lhe assiste.

Ao aceitar a candidatura, fiz uma opção, assumi um risco: aquela, a de trabalhar para as reformas, que entendo necessárias, através dos meios legais ao dispor dos Deputados, cuja limitação conhecia. O risco era o de não con-

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seguir alcançar o fim pretendido, o de ser invariavelmente vencido, o de nem sequer conseguir alargar os limites conhecidos.

Corri-o e suporto-o.

Forque quem é eleito não pode pensar em desistir, mão tem o direito de abandonar: assumiu o compromisso de lutar durante quatro anos como representante da Nação mesta órgão de soberania, e há-de, perante ela, procurar desempenhar-se o melhor possível do cargo que lhe confiaram.

Eis por que entendo que, embora "não valha e, penai, contínuo a trabalhar o melhor que iposso e sei alta ao fim do mandato.

Até por uma circunstância, que é a de especial importância de esta legislatura lhe vir não só dos seus poderes constituintes, como da participação que Itera na eleição do Presidente da República.

Mesmo quem, como eu, discorda do actual modo de eleição, não pode ignorar a importância do processo eleitoral, que começa com a escolha e propositura de candidatos e se encerra com a escolha de um dos propostos para durante sete anos governar a Nação com poder quase absoluto.

Aqueles de entre nós que às vezes se tom mostrado tão ciosos do respeito pelo assunto da ordem do dia, criticando até implicitamente a Mesa, se até agora se dominaram, estão por certo prestes a intervir.

Mas sem razão.

Entendi ser necessário o que disse antes de encetar a discussão do Decreto-Lei n.º 520/71, e não abdico de ser o único juiz do modo de conduzir" exposição das minhas ideias sobre a matéria em debate.

Pela primeira vez nesta legislatura é a Assembleia Nacional chamada aipronunciar-se sobre um acto legislativo do Governo.

O poder de ratificação que fomos chamados a exercer é o último resquício da supremacia legislativa da Assembleia Nacional.

Ante uma medida legislativa do Governo, tida por inadequada ou indevida, surgida durante o funcionamento efectivo desta Coimara, resta-nos, condicionado embora, o poder de ratificação.

O seu não uso exprime aceitação do diploma legislativo do Governo ou ... impossibilidade de conseguir as dez assinaturas necessárias para aqui pedir a sua discussão, que desta vez se reuniram sem qualquer dificuldade.

Estamos, pois, a examinar um acto solene do Governo, promulgado pelo Presidente da República, e a decidir se o mesmo acto deve ser pura e simplesmente sancionado, rejeitado ou convertido em proposta; nesse caso, depois de estudado pela Câmara Corporativa, virá aqui para ser discutido e votado, artigo por artigo;

Aqueles, e são muitos, que sacrificam no altar da omnipotência do Governo e são fervorosos e nédios prosélitos da sua omnisciência escandalizar-se-ão por certo com tão "desrespeitosa" pretensão.

Mas com o discutir os actos do Governo lucramos todos: a Nação, que assim pode tomar consciência dos problemas que lhe dizem respeito e formar a sua opinião sobre as pessoas e as instituições.

Nós, que nos debruçamos sobre as questões, as quais sem isso talvez escapassem à nossa atenção, procurando dar-lhes remédio. O Governo, que gostará certamente de sentir-se fiscalizado, criticado e emendado se necessário, pois toda a gente sobe que ninguém é infalível e são até muito conhecidos es inconvenientes da legislação burocrática ou de gabinete, como é a presente.

Muito recentemente, na sua mensagem de Ano Novo, S. Ex.ª o Sr. Presidente da República não duvidou criticar

abertamente um voto da maior importância em que todo o Governo estava, creio, comprometido, como era o último censo da população.

É, pois, louvável que discutamos o Decreto-Lei n.º 520/71, de 24 de Novembro, que submete todas as cooperativas ao regime legal que regula o direito de associação.

Sem a análise deste não pode apreender-se o alcance do decreto-lei.

Ao intervir pela primeira vez no debate relativo à revisão da Constituição, quando referi a situação da pessoa face ao poder, resumi deste modo essa legislação, hoje aplicável a todas as cooperativas:

Qualquer um pode associar-se com os demais para prosseguir os fins que entender, desde que o conteúdo estatutário tenha o beneplácito do Governo, que mesmo assim pode acabar com a associação, ou dissolver-lhe os corpos gerentes, eu nomear-lhe uma comissão administrativa.

As primeiras restrições constam da Lei n.º 1901, de 21 de Maio de 1935.

Mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 87 447, de 13 de Junho de 1949, foi "proibido promover, constituir, organizar ou dirigir em território português associações de carácter internacional, sem autorização do Ministro do Interior. A filiação de associações portuguesas em organismos internacionais depende também de autorização do Governo" - artigo 25.º

Veio depois o Decreto-Lei n.º 39 660, de 20 de Maio de 1954, que torna a constituição de quaisquer associações dependentes da aprovação dos estatutos pelo governo civil do distrito da sede, ou pelo Ministro do Interior, se não houver regime ou lei especial.

As mesmas autoridades é atribuído o poder de decretar a extinção das associações que exerçam actividade diversa das previstas nos estatutos ou contrária à ordem social, ou que infrinjam, o artigo 1.º do decreto-lei: não ter carácter secreto, nem objectivos que importem ofensa dos direitos de terceiros ou do bem público, nem lesão dos interesses da sociedade ou dos princípios em que assenta a ordem moral, económica e social da Nação.

A discrição das mesmas autoridades fica, no entanto, optar, quando se verifiquem esses casos, entre a extinção pura e simples, a suspensão da actividade e a dissolução dos corpos gerentes, com nomeação de comissões administrativas.

Por último, as associações que funcionem em contravenção desta regulamentação são pura e simplesmente equiparadas a associações secretas, responsabilizando-se criminalmente todos aqueles que as dirijam, administrem, ou participem na sua actividade, ainda que como simples associados.

As penas aplicáveis eram, e são, de prisão e multa.

É este, hoje, o regime policial a que estão submetidas todas as cooperativas.

Desde 1959 que a legislação sobre direito de associação constitui matéria de exclusiva competência da Assembleia Nacional, que dela, aliás, nunca usou.

Isso não impediu, no entanto, que o Governo legislasse sobre essa matéria no actual Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966.

Este decreto-lei foi propositadamente publicado nesse dia; e aqui justificado o Código pelo Ministro titular da pasta, por incumbência do Presidente do Conselho.

Nas dez sessões seguintes, creio que em todas elas, vieram Deputados enaltecer os méritos do novo diploma, elogiar a obro do respectivo Ministro.

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Por fim, não tendo surgido nenhum pedido de ratificação, concluiu uni Deputado que "o nosso unânime silêncio ratificativo é a afirmação legal da nossa clara ratificação".

Merca do novo decreto-lei, que não mereceu esse silêncio ratificativo, as disposições do Código Civil passam a ser aplicáveis a todas as cooperativas.

O Código Civil disciplina, efectivamente, o direito de associação.

Regula a aquisição de personalidade das associações, a capacidade, a aquisição e alienação de imóveis, os órgãos e a representação das pessoas colectivas, a sua responsabilidade civil, o destino dos seus bens no caso de extinção, o acto de constituição e os estatutos e a própria vida interna das associações.

Lá figura também uma disposição equivalente à do decreto-lei de 1954, o qual, juntamente com outra legislação, houve o cuidado de ressalvar, que prevê a extinção administrativa quando o fim real da associação não coincida com o fim estatutário, ou quando ele seja sistematicamente prosseguido por meios ilícitos ou imorais ou quando a existência da associação se torne contrária à ordem pública (artigo 182.º, n.º 2).

Ora, esta matéria da disciplina legal do direito de associação contida no Código Civil, aprovado por decreto-lei, foi usurpada à competência exclusiva da Assembleia Nacional, com infracção do disposto no artigo 93.º, alínea d), da Constituição.

O novo decreto-lei, ordenando a aplicação dessa legislação inconstitucional às cooperativas, comunga de tal inconstitucion alidade.

Ele próprio, de resto, enferma directamente de igual vício, pois, na .realidade, regula o direito de associação.

Fá-lo por remissão para outros preceitos, os que ficaram enumerados, mas não deixa de o fazer; a regulamentação legal por remissão é uma forma de legislar.

Tanto assim é que, até à sua publicação, os Portugueses podiam livremente associar-se em cooperativas, nos termos do Código Comercial.

E agora não podem: foram postos na dependência da Administração, mesmo quanto aos actos que já haviam praticado, aplicação retroactiva que constitui só por si manifesta prepotência. Era as primeiras razões de não ratificação.

Prevê-se a objecção, fácil, formalista e improcedente: a Constituição alude apenas a bases gerais, o que deixaria campo livre ao Governo no restante.

Alude, como sempre, de resto, que contempla os poderes legislativos da Assembleia. Daí não se segue que, não tendo ela legislado, o Governo o possa fazer, nem mesmo ao nível regulamentar. Que regulamentaria ele? E ponto a que, se necessário, se voltará.

Demais, o Código Civil, a respeito do direito de associação, contém preceitos regulamentares e normas básicas, tal como sucede com o presente decreto-lei.

Ambos usurparam, portanto, a competência exclusiva desta Câmara.

Antes de entrar na análise pormenorizada do presente diploma e dos seus antecedentes, cumpre evidenciar a incongruência a que ele conduz, ao mandar aplicar às sociedades cooperativas o regime legal do direito de associação.

A quase totalidade dessas sociedades tem carácter comercial: sem prejuízo da sua feição própria, têm por objecto praticar actos de comércio e encontram-se constituídas por forma prevista no respectivo Código.

Teremos, pois, sociedades comerciais subordinadas ao governador civil, dependentes do Ministério do Interior, reguladas pelo Código Civil: um autêntico pandemónio jurídico.

O Código Comercial fixa-lhes certos casos de extinção.

O Civil aplica-lhe outros.

Por aquele podem ser declaradas em estado de falência; pelo segunda, insolventes.

São sociedades comerciais, mas, regidas também pelo direito referente às associações, até carecerão de autorização do Governo para alienar ou onerar imóveis.

E por aqui fora é um rosário de contradições e incongruências inevitáveis, porque toda a legislação sobre associações se molda sobre o carácter não económico delas, e todas as cooperativas estão estruturadas em moldes económicos.

Como se salienta, e bem, em recente estudo do Dr. Roque Laia, "as próprias cooperativas ditas de fins culturais exercem uma actividade económica, na medida em que põem essa cultura ao nível dos seus sócios, por meios e preços que eles não conseguem obter de outra forma".

O diploma em discussão conduz, portanto, a uma autêntica aberração.

Eis outra razão para o não ratificarmos.

Se, do ponto de vista jurídico, o diploma em causa, além de inconstitucional, é incongruente e aberrante, não é menos desastroso quando encarado sob os ângulos político e social.

Ele tem o lamentável aspecto do desfecho, ou melhor, do esforço, de uma longa luta empreendida pelo Governo contra as cooperativas, na qual aquele foi sendo sucessivamente derrotado.

Vejamos.

Em 1968 o Sr. Ministro do Interior declara, por despacho, a extinção da Cooperativa Pragma, Sociedade Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, com sede em Lisboa.

Esse despacho vem a ser anulado por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1.º secção, de 11 de Julho de 1969, que estabelece os seguintes princípios:

1) As sociedades cooperativas não podem ser dissolvidas por acto administrativo.

2) E aos tribunais judiciais que o artigo 147.º do Código Comercial atribui competência para conhecer do pedido de declaração de inexistência de sociedades que funcionem ou se constituam em contravenção das disposições daquele Código.

3) O acto do Governo que decreta a dissolução de tais sociedades enferma do vício de usurpação de poder.

Como se vê, decidiu o órgão supremo do contencioso administrativo, por unanimidade de votos dos três conselheiros que firmam a decisão, que o Sr. Ministro do Interior tinha usurpado um poder que só aos tribunais pertencia.

Restabelecida a legalidade com a anulação do despacho viciado de tal usurpação, era legítimo esperar que se deixassem as cooperativas prosseguirem em paz a sua actividade, sem prejuízo de, se algum acto ilícito cometessem, fosse de que natureza fosse, se recorrer ao Poder Judicial para punição dos responsáveis.

É ponto que não esteve nem está em causa.

Mas não, continua a luta administrativa.

Com base no parecer da Procuradoria-Geral da República de 7 de Dezembro de 1967, muito anterior, portanto, ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Julho de 1969, o Sr. Ministro do Interior passa a ordenar que algumas cooperativas sejam intimadas pela P. I.

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D. E. a submeterem os seus estatutos à aprovação da autoridade administrativa, sob pena de serem havidas como associações secretas, o que, como se viu, determinava a sujeição dos seus dirigentes e associados a penas, de prisão e multa.

Essa vaga de repressão administrativa atingiu várias cooperativas de consumo matriculadas como sociedades comerciais e exercendo efectivamente actividade económica, geralmente em benefício de operários e de pequenos agricultores.

Muitas, se não todas, reagiram contra a nova forma de ilegalidade administrativa, e novamente o Supremo Tribunal Administrativo lhes deu razão.

São os casos da Cooperativa Operária de Crédito e Consumo de Alhos Vedros, da Sociedade Cooperativa Operária Barreirense, S. C. B. L., da Sociedade Cooperativa Piedense, da Sociedade Cooperativa 31 de Janeiro, da Progresso e União Amorense, S. C. B. L.

Ante a nova forma de repressão às 'cooperativas, o Supremo Tribunal Administrativo, na sequência da jurisprudência iniciada com o citado acórdão, julga que está ferido de usurpação de poder o acto da Administração que declara ilegal a constituição de uma sociedade cooperativa, para a sujeitar ao regime de reconhecimento e dissolução das associações - Acórdãos de 28 de Novembro e de 12 de Dezembro de 1969.

Mas, no caso da Piedense, o Supremo Tribunal Administrativo adopta orientação diferente, embora não favorável à Administração, que não fica justificada, nem prestigiada.

Julga-se, no Acórdão de 13 de Março de 1970, que o acto de notificação de uma cooperativa de consumo para submeter os seus estatutos à aprovação da entidade competente, sob pena de, não o fazendo, ser considerada uma associação secreta, encerra uma simples ameaça, sem afectar a situação jurídica da pessoa colectiva a que se dirige, pelo que não constitui acto definitivo nem executório, sendo, por isso, irrecorrível.

Esta nova orientação veio a prevalecer e o pleno do Supremo Tribunal Administrativo adoptou-se por maioria nos casos citados, revogando os acórdãos da 1.º secção, por entender que os tais despachos de simples ameaça não ofendiam os direitos das cooperativas.

O último desses acórdãos que conheço é o de 15 de Janeiro de 1971 - caso da Sociedade Cooperativa Operária de Crédito e Consumo de Alhos Vedros, fundada em 1916.

Nesse, como nos demais recursos dos tais despachos de ameaça, o Tribunal não se pronunciou sobre a legalidade deles; limitou-se a havê-los como irrecorríveis, por os não considerar definitivos nem executórios.

E assim as cooperativas visadas puderam prosseguir a sua actividade em benefício dos seus associados.

Quanto a nenhuma, creio, a ameaça foi executada com a dissolução administrativa da cooperativa e aplicação de sanções criminais aos seus membros, pelo que não surgiram mais recursos.

Até que sobre o cooperativismo português se abate o Decreto-Lei n.º 520/71, submetendo-o por completo ao poder discricionário do Governo.

Aquilo que, mercê da reacção dos tribunais, se não conseguiu por via administrativa - o domínio governamental do cooperativismo - é inconstitucional e indevidamente obtido por via legislativa.

Eis nova razão para não ratificarmos esto diploma.

Ele vai mesmo muito além da prévia tentativa de imposição de tutela administrativa.

Fundamentava-se esta, de harmonia com o parecer da Procuradoria-Geral da República que o Supremo Tribunal Administrativo não acolheu, em que o regime legal das associações devia aplicar-se às cooperativas de fim interessado não lucrativo, apesar de constituídas como sociedades comerciais, por ser esse o regime legal vigente.

Não era, como nos tribunais se reconheceu.

Isso bastava para que, se só isso se contivesse no decreto-lei, ele implicasse uma alteração da legislação referente ao direito de associação, matéria que, como se viu, é da exclusiva competência da Assembleia Nacional.

Mas o decreto-lei vai muito mais longe: submete ao regime das associações as próprias cooperativas de fim económico interessado, com alteração do preceito do artigo 157.º do Código Civil, o que mais uma vez comprova que se buliu mesmo com o regime legal do direito de associação.

O citado parecer da Procuradoria-Geral da República, aliás muito contestável, havia concluído mie as cooperativas de fim económico lucrativo, consideradas como sociedades, podiam exercer actividades de natureza diversa, embora com vista a sua finalidade lucrativa, não ficando, nesse caso, sujeitas às disposições legais relativas às associações.

Efectivamente, pondera-se no parecer que "não se tratando de actividade condicionada e considerando-a, a cooperativa, não como um fim, mas sim como um meio para atingir a sua finalidade lucrativa, acontece que, unia vez constituída legalmente a mesma e adquirida a personalidade jurídica pelo reconhecimento normativo, fica ela automaticamente autorizada a exercer tal actividade, sem intervenção, portanto, de qualquer entidade da Administração".

"E não se vê que, nestas condições, haja possibilidade de adoptar qualquer das medidas previstos nos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 39 060, que incumbem à entidade competente para aprovar os estatutos, pois tais medidas pressupõem uma noção tutelar que no caso se não verifica."

E, acrescenta ainda o parecer, "o que acaba de ser dito parece ser confirmado pela análise do vigente Código Civil".

Admitindo que fosse esse o regime legal vigente sobre o direito de associação, designadamente em cooperativas, o que o Supremo Tribunal Administrativo não entendeu, e muito bem, teríamos de concluir que ele foi alterado pelo diploma em discussão.

Ele veio sujeitar à tutela administrativa não só as cooperativas de fim económico não lucrativo, mas as próprias cooperativas de fim económico lucrativo, desde que se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, outras actividades.

Ou seja, o Decreto-Lei n.º 520/71 veio submeter ao controle da Administração todas as cooperativas, como desde o início venho referindo.

E que não há cooperativa, mesmo de fim económico lucrativo, que não se proponha exercer, ou efectivamente não exerça, actividade que não seja de natureza exclusivamente económica, para empregar a terminologia do diploma em discussão.

O parecer citado entendia, em foce da legislação vigente, que as cooperativos de fim económico lucrativo não podiam prosseguir fins de natureza ideal, mas que podiam exercer actividades desse tipo desde que conexas com o seu fim lucrativo. Distinguia, portanto, fins e actividades.

O diplomo em discussão altera mesmo isso e veda às cooperativas o exercício de qualquer actividade não eco-

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nómica, sob pena de serem tratadas como associações. Este ponto é fundamental e insofismável.

Toda e qualquer cooperativa está ai abrangida, repete-se, pois não há verdadeira cooperativa que não se proponha exercer, ou efectivamente não exerça, actividade não económica a favor dos seus associados.

Isto não consente quaisquer sofismas: cooperativa que se limite a actividade exclusivamente económica não é cooperativa, é uma mera organização comercial que usa indevidamente o rótulo de cooperativa.

Sabem-no todos os que conhecem o movimento cooperativo.

Se as cooperativas não quiserem degenerar em fórmulas simples e banais de organização comercial, para que da sua actividade se desprenda, como valor fundamental, a associação - meio de harmonizar a economia e preservar a vida de relação numa sociedade de massa -, elas deverão aderir firmemente a valores morais e culturais e ministrá-los aos seus aderentes

Prevejo que, a míngua de razões, não deixará de se contrapor que toda a acentuação do valor cultural das cooperativas é feita com o intuito de, exagerando o negro da situação, atacar o decreto e as intenções do Governo.

Por isso me pareceu oportuno citar há momentos um passo de insuspeito trabalho de Sérvulo Correia, inserto no ano IV da não menos insuspeita revista Estudos Sociais e Corporativos, da Junta de Acção Social, insuspeitamente citado no referido parecer da Frocuradoria-Geral da República.

O decreto vai, portanto, atingir todas as cooperativas e, através delas, todo o esforço de autoprotecçao e autopromoção económica è cultural das classes sociais mais desfavorecidas.

De 20 de Novembro de 1971 em diante, esse esforço é vigiado, tutelado, fiscalizado, controlado, orientado, gerido ou suprimido, se ele assim o entender, pelo Ministério do Interior.

Eis mais uma razão, entre as inúmeras invocáveis, para negarmos ratificação a tão regressivo diploma, que leva iniludlvelmente ao controle político do movimento cooperativo, do seu meritório esforço de autodesenvolvimento económico e social. Se não foi isso que se quis, se não é isso que se quer, ainda é tempo de o demonstrar.

Não foi por acaso que o cooperativismo nasceu entre as classes trabalhadoras, pobres de recursos económicos, sociais e culturais, como meio de tentar diminuir essa pobreza injusta e imerecida.

E não é sem razão que ele é tolhido, desfavorecido ou proibido nos regimes antidemocráticos e antiliberais, que o olham sempre com suspeita e frequentemente o apodam de subversivo.

Sabido que a autêntica promoção económica, social e cultural leva à democratização política, que tais regimes não toleram, qualquer esforço sério' naquele sentido é necessariamente mal acolhido.

E haverá esforço mais sério, mais autêntico e mais empenhado que o daqueles mesmos que suportam as consequências desse imerecido e injusto subdesenvolvimento económico, social e cultural?

Precisamente porque antidemocráticos, os Estados autoritários e totalitários são necessariamente antiliberais: uma das razões de não respeitarem honestamente nem eficazmente assegurarem, as liberdades da pessoa é a de o exercício delas poder favorecer a democratização.

Disso é exemplo elucidativo o cooperativismo: as pessoas não pretendem mais do que o livre uso do direito de se associarem em cooperativas para fomentarem a sua promoção e construírem o seu próprio desenvolvimento humano.

Ora isto, que é lícito, honesto, respeitável, louvável e, acima de tudo, humano, não pode ser olhado com bons olhos por um Estado antidemocrático e antiliberal, autoritário ou totalitário, que é, acima de tudo, desumano.

Eis outra razão, s última que invoco, para não ratificarmos o Decreto-Lei n.º 520/71.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem! O orador foi cumprimentado.

O Sr. Miller Guerra: - À intervenção será breve, porque a matéria foi versada pelos Deputados que me precederam, Magalhães Mota, José da Silva e Sá Carneiro.

A minha posição sobre o Decreto-Lei n.º 520/71, respeitante as cooperativas., é análoga à dos meus distintos colegas.

Por isso peço desculpa, Sr. Presidente, se repetir ideias já expostas, mas entendo que a reafirmação de atitudes justas e livres nunca é inútil, embora uma ou outra pessoa se enfade com isso.

Como se sabe, o cooperativismo destina-se a desenvolver a cooperação e o acordo entre os homens, orientando-se por normas de carácter democrático, respeitando as crenças religiosas e as ideologias políticas, e dedicando-se também, como é óbvio, ao ensino e propagação da doutrina no intuito de formar dirigentes, ilustrar os seus membros e conquistar associados.

O cooperativismo existe no nosso país desde 1867. Portugal faz parte da Aliança Cooperativa Internacional, aderindo as resoluções tomadas em 1966. Estas dizem respeito aos principias, reguladores do movimento, entoe as quais saliento a Uberdade de constituição e escolha do objecto, quer civil, quer comercial, e a não ingerência das entidades governamentais na constituição, organização e funcionamento das cooperativas.

Estes princípios pacíficos e morais foram reconhecidos pela Organização Internacional do Trabalho.

O decreto-lei em discussão opõe-se aos princípios mencionados, cerceando a liberdade de que as cooperativas gozam e, por consequência, dificultando-lhes o funcionamento e a acção específica. O ponto que quero acentuar respeita as actividades educativas e culturais proibidos pela citada lei, com o fundamento de que estas sociedades só podem ter funções exclusivamente económicas. Decorrem daqui inconvenientes graves. O primeiro é ficarem colocadas numa situação insegura, porquanto há-de ser difícil, quando não impossível, de separar o domínio particular do económico da esfera genérica da cultura. Abre-se neste ponto um campo eivado de incertezas, que vai dor azo a interpretações divergentes e, quem sabe, a arbitrariedades. O que, olhado sob um ângulo aberto, é cultura para uns, pode ser para outros, os que vêem os valores da convivência, da informação e do ensino com olhos de míope, perturbação, desordem e coisas piores.

O segundo inconveniente é paralisia parcial ou completa do movimento cooperativo, porque aã novas prescrições legais embaraçam a expansão das sociedades, o recrutamento de sócios, a preparação dos dirigentes, bem como a difusão da doutrina e a diversificação dos actividades.

Em terceiro lugar, a lei impede pura e simplesmente a constituição e o funcionamento das cooperativas, cujo fim "não seja exclusivamente económico".

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Ora, existem cooperativas cujo objecto consiste mo desenvolvimento de interesses não económicos, como seja a arte, a impressão, venda e propaganda do livro, os museus, a educação, o recreio, a acção comunitária, etc.

Impedir actividades da natureza destas num país e época que todos dizem, pobre em manifestações e interesses culturais, é ilaquear as inteligências, reduzindo-lhes os anseios e as formas de os realizar. É, numa palavra, suscitar o abaixamento do gosto pelas coisas do espirito, acentuando a incultura.

Decerto não foi isso que deliberadamente se procurou, mas é esse o resultado infalível.

Constitui um péssimo sintoma a restrição da liberdade de associação e de expressão do pensamento decorrente do decreto-lei. Como se tivéssemos liberdades demasiadas, ou delas se usasse imoderadamente, o Sr. Ministro do Interior pensou em reduzi-las ainda um pouco.

É este o aspecto que mais fere a minha consciência, me desilude e desanima, porque prova que o Governo não se dispõe ia trilhar o caminho da "liberalização". Pelo contrario, fica-se com a ideia que fazem falta reduções maiores das liberdades públicas.

Quem alimento esperanças começa a perde-tas, quando vá colocar o acento tónico da política na monotonia da continuidade, em vez de ser no movimento da inovação.

A decepção é tanto maior quanto se haviam, acalentado esperanças razoáveis e condizentes com as aspirações do povo português.

Em tempo nenhum, desde 1667, houve necessidade de promulgar uma lei tão contraria ao cooperativismo. Contudo, atravessamos épocas diferentes, regimes políticos adversos a liberdade e à autonomia dos indivíduos e grupos, muitíssimo opostos aos principias da democracia. Será preciso recordar o longo Governo instaurado em 1926?

Deveremos concluir que as cooperativas se tornaram ameaçadoras, ou que o Poder Público estai mato temeroso a vigilante?

Parece que já não bastam as leis vigentes, a censura e a polícia.

De que mais precisa o Sr. Ministro do Interior?

O Sr. Casal-Ribeiro: - Não apoiado!

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Mota Amaral: - Sr. Presidente: Com data de 24 de Novembro do amo transacto, inseriu o Diário do Governo um diploma legislativo, de origem governamental, que, na sua parte substancial, ordenava a sujeição das sociedades cooperativas que se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividade que mão seja exclusivamente económica, de interesse para os seus associados, ao regime legal regulador do direito de associação.

Recebeu este diploma o número de ordem 520/71 e a sua publicação constituiu a primeira notícia que o País teve da correspondente deliberação do Conselho de Ministros. Desacompanhado de qualquer preâmbulo justificativo, limitando-se afinal a remeter para outras disposições legais, dir-se-ia tratar-se de medida de importância secundaria, destinada a passar desapercebida. Foi este, nó entanto, o primeiro decreto-lei cuja apreciação pela Assembleia Nacional, para os efeitos do antigo 109.º, § 8.º, da Constituição Política vigente, foi requerida no decurso da actual legislatura.

Dessa apreciação aos ocupamos agora. E não se afigura, por isso, deslocado determo-nos em algumas considerações sobre o procedimento constitucional a que presentemente damos execução.

Determina a Constituição vigente, na disposição há pouco referida, que serão sujeitos a ratificação pela Assembleia Nacional os decretos-leis que o Governo publicar durante o período de funcionamento efectivo dela e fora dos casos de autorização legislativa. Encontra-se aqui consagrada, a me"u ver, a primazia, em matéria de feitura das leis, do órgão de soberania oriundo do sufrágio universal directo, tributo que o nosso sistema político paga, no plano das instituições, à concepção clássica da democracia liberal.

É esta, sem dúvida alguma, Sr. Presidente, a razão por que se exige uma intervenção da Assembleia no exercício das faculdades legislativas atribuídas ao Governo, que desde 1945 não conhecem limitações circunstanciais. Pouco importa que tal intervenção se configure, a maior parte das vezes, como um comportamento passivo, ide mera abstenção, ao qual a lei fundamental atribui o significado de concordância. Nem, tão-pouco, que o princípio não seja levado as suas últimas consequências lógicas, que impariam, pelo menos, a possibilidade de a Assembleia apreciar qualquer providência legislativa do Governo, publicada mesmo fora do período do funcionalmente efectivo dela, como, de resto, propunha o projecto de lei de revisão constitucional que teve o n.º 6/X.

Aliás, o texto primitivo da Constituição de 1933 impunha ao Governo a obrigação de apresentar, num dos cinco primeiros dias de sessão da Assembleia Nacional, a proposta para a ratificação dos decretos-leis que tivesse publicado no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública. Este regime, correspondente ao bill de indemnidade, que o constitucionalismo monárquico importou das praxes parlamentares britânicas, foi sendo progressivamente recortado por leis de 1935 e 1937, até ser substituído, aquando da revisão de 1945, por aquele que hoje vigora, por seu turno também posteriormente corrigido.

Mas o princípio da supremacia legislativa da Assembleia Nacional mantém-se de pé. E é em nome dele e da soberania popular, que está na sua raiz, no exercício de atribuições próprias, que não carecem de autorização nem toleram interferências, que hoje reunimos para apreciar o Deoreto-Lei n.º 520/71.

Trata-se de submeter este diploma, Sr. Presidente, a um juízo de natureza política. Vão é confrontá-lo com legislação anterior, que ele revoga na porte em que se lhe opõe, e mais ainda com soluções jurisprudências assentes em regras talvez agora, de momento ao menos, derrogadas.

No plano do direito positivo, o único vício de que as leis podem enfermar é a inconstitucionalidade, a divergência com o diploma fundamental do sistema jurídico. Mas parece-me difícil invocar o texto actual da Constituição de 1983 em defesa da liberdade de associação, bem como de outras liberdades cívicas, cuja definição foi por ele expressamente transferida para a legislação ordinária. Visava precisamente introduzir solução contrária o projecto de lei de revisão constitucional de que fui co-autor, mas é sabido como ele não logrou recolher os sufrágios da maioria da Câmara. Quanto à inconstitucionalidade orgânica ou formal, a dedução das suas consequências práticas assenta também, por seu lado, em critérios políticos.

Não cabem pois subterfúgios: o que está em causa, frontalmente, é a bondade ou a maldade do Decreto-Lei n.º 520/71 sob um ponto de vista política. São convenientes as soluções por ele apresentadas para as situações em causa? E oportuna a introdução dos novos princípios que ele contém?

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Conforme for a resposta dada a estas perguntas, assim será o destino do diploma legal sub judico. Se a Câmara decidir pela validade política dele, votará a sua ratificação pura e simples; se, pelo contrário, se opuser terminantemente ao seu conteúdo, negará a ratificação, revogando-o, portanto, com todas as consequências jurídicas a tal inerentes; se entender que, embora incorrecto, ele á susceptível de aproveitamento depois de melhorado, então o caminho será conceder a ratificação com emendas, convertendo-se o decreto-lei em proposta de lei, submetida à tramitação habitual.

Não tem sido muito frequente, desde 1945 a esta parte, o recurso ao procedimento de ratificação como instrumento de controle pela Assembleia Nacional da actividade legislativa do Governo. Excluindo o presente, é possível contar dezassete requerimentos para apreciação por esta Câmara de diplomas legislativos governamentais. Cerca de metade desses requerimentos - mais exactamente, oito - foram apresentados na IV Legislatura (1945-1949). Do total deles, três não chegaram a dar origem a discussão, por invocada falta de tempo. Dos diplomas discutidos, cinco foram objecto de ratificação pura e simples e nove de ratificação com emendas.

Durante toda a década de 60 os dois únicos casos de apreciação de decretos-leis, um ocorrido na VIII Legislatura (emissão de um empréstimo externo em dólares) e outro na IX (protecção aduaneira dos produtos da indústria siderúrgica), terminaram, ambos pela ratificação pura e simples. A última ratificação com emendas foi votada em 1959 (mandato dos presidentes das câmaras municipais). Casos de recusa de ratificação, de 1945 até hoje, não registam os anais desta Câmara um só. Tudo isto é bem sintoma do modo como ao longo do período em causa se desenvolveram as relações entre os dois órgãos da soberania, com nítido predomínio do Governo sobre a Assembleia Nacional, dentro da tónica autoritária que caracterizou o regime.

Mas revertamos, Sr. Presidente, ao Decreto-Lei n.º 520/71 s aos princípios que mediante slê se pretende introduzir na nossa legislação.

De verdadeiramente substancial tem este diploma apenas o artigo 1.º o artigo 2.º limita-se a proibir aos notários que lavrem escrituras de constituição de cooperativas que tenham finalidades não exclusivamente económicas, sem provia aprovação administrativa dos estatutos, e a cominar a nulidade das que forem celebradas com infracção desse condicionalismo. O artigo 3.º, por seu turno, que a si mesmo se qualifica de transitório, impõe às cooperativas existentes, abrangidas pela disposição do artigo 1.º, a obrigação de submeterem os seus estatutos à aprovação da autoridade competente, extraindo a aplicação dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 39 660, de 20 de Maio de 1954 (extinção da pessoa colectiva, suspensão da sua actividade, ou dissolução dos corpos gerentes), como consequência do mão cumprimento desta obrigação ou dia eventual não aprovação dos estatutos.

Fundamentalmente é, pois, a regra contida no artigo 1.º De acordo com ela, "sempre que as sociedades cooperativas se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividade que não seja exclusivamente económica, de interesse para os seus associados, ficam sujeitas ao regime legai que regula o exercício do direito de associação".

Eis aqui a novidade do Decreto-Lei n.º 620/71! E digo justamente novidade porque até agora as sociedades cooperativas, vivendo à sombra do direito comercial, constituem-se por escritura pública, estabelecendo-se os respectivos estatutos por acordo livre das pessoas nela interessadas; elegem livremente os seus corpos gerentes, que só perante a assembleia geral respondem; administram-se com plena autonomia, podendo adquirir, onerar ou alienar bens por qualquer título. A aplicação que se pretende fazei as sociedades cooperativos do regime das associações implica, além do mais, intervenção policial prévia à constituição, com emissão de juízo sobre os objectivos sociais propósitos, e sujeição a uma apertada tutela administrativa, que vai desde aspectos patrimoniais (anexação e aquisição ou alienação de bens imóveis) até ao mais comente funcionar da associação n dos seus órgãos, uns e outra sob constante cominação de severas intervenções dos sautoridades competentes".

Será conveniente e oportuna a introdução destes princípios? Por mim, respondo decididamente que não.

O papel que as sociedades cooperativas têm a desempenhar numa sociedade em desenvolvimento, como é a nosso, não se compadece com o estabelecimento de limitações e controlou, que lhes tirariam a- espontaneidade e a curto período as conduziriam à morte.

As cooperativas são eficaz instrumento na luta contra a inflação que sempre acompanha o processo de crescimento: constituem, na verdade, garantia de defesa do consumidor contra práticas monopolistas e outros abusos, tantas vezes difíceis de detectar, quanto mais de erradicar por completo. Além disso, elas favorecem a expansão do sentido social, comunitário, do circuito económico, sejam quais forem os sectores onde intervêm. E como se tal não fosse já por si mesmo bastante, proporcionam estruturas de participação, estimulando o interesse dos indivíduos pelas questões colectavas, a começar peias mais próximas, e a intervenção activa, com espírito de iniciativa, na resolução delas.

E por isso, entre tudo o mais, que a Organização Internacional do Trabalho vivamente exorta os países membros em vias de desenvolvimento, numa recomendação datada de Junho de 1966, a reconhecerem as cooperativas como um dos factores, importantes do desenvolvimento económico, social e cultural, bem como da promoção humana. Daí deverá seguir-se a adopção de uma política de ajuda e estímulo de natureza económica, financeira, técnica e legislativa.

Mas a mesma recomendação acrescenta logo que essa ajuda não deve implicar uma intervenção na vida interna das cooperativas, um controlo cerrado sobre elas. A genuinidade do movimento cooperativista, que entre os seus princípios fundamentais inscreve o da organização em moldes democráticos, repousa, com efeito, sobre uma margem ampla de autonomia.

A ingerência do Estado nas cooperativas, certamente a pretexto de defesa dos interesses da sociedade, vem a redundar, afinal, em prejuízo desta, porquanto a priva, a maior ou menor prazo, do valioso contributo positivo que elos têm para lhe dar. Discriminar as cooperativas face às outras organizações de interesses privados, que se mantém ao abrigo do direito comercial e é a isto que conduz a aplicação que se lhes pretende fazer das regras sobre associações contidas no Código Civil e em legislação avulsa -, descriminá-las, dizia, é condená-las a um rápido extermínio por mero efeito do jogo das leis do mercado em concorrência.

Julgo, Sr. Presidente, que não podemos prescindir, no momento actual que o País atravessa, dos benefícios do movimento cooperativista, que, aliás, o Governo, por vários departamentos, se esforça, por outros meios, bem entendido, por promover e auxiliar. Daí o meu desacordo e a minha oposição ao diploma que a Câmara agora aprecia.

Mas, dir-se-á, o Decreto-Lei n.º 520/71 visa atingir apenas as sociedades cooperativas que se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividade que não seja

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exclusivamente económica, de interesse para os seus associados. Permanecem, pois, dentro da autonomia que hoje vigora as cooperativas de fins exclusivamente económicos, que moda, por isso, têm a temer quanta à ingerência estadual.

Parece desconhecer esta linha de argumentação o peculiar carácter das sociedades cooperativas, ao qual se tem de adaptar a regulamentação jurídica que se pretender instituir. Todas as cooperativas incluem entre os seus objectivos e actividades realidades não estritamente económicas. E isto é mesmo da essência do cooperativismo, conforme se pode ver nos princípios formulados no Congresso de Viena de 1966, da Aliança Cooperativa Internacional:

Todas as sociedades cooperativas deverão constituir fundos para o ensino aos seus membros, aos seus dirigentes, aos seus empregados e ao público em geral dos princípios e métodos da cooperação, sobre o plano democrático (n.º 5).

Todas ias cooperativas que o são, pois, verdadeiramente, expandem-se, para além do domínio propriamente económico, no campo educativo, cultural e até recreativo. Trata-se de actividades conexas com o seu escopo fundamental, similares às que hoje desempenham outras sociedades comerciais e que no caso concreto das cooperativas visam, antes de mais, a adequada preparação cívica dos seus sócios para a cooperação. A elas se há-de estender necessariamente a regra, básica do respeito pela autonomia dos indivíduos e dos grupos sociais primários. Mantém-se, portanto, a meu ver, a inadmissibilidade do princípio introduzido pelo diploma em discussão, que constitui como que uma espada de Dâmocles pesando sobre a cabeça de todos as sociedades cooperativas.

Coisa diversa é constatar, Sr. Presidente, que a forma de sociedade cooperativa veste entre nós realidades de natureza muito variada. Juntamente com autênticas sociedades comerciais - organizações de pessoas com um fim interessado lucrativo -, encontram-se aqui realidades que são, ou pelo menos na prática se comportam como verdadeiras associações, organizações de pessoas com um fim interessado não lucrativo, ou até mesmo de fim desinteressado ou ideal.

Tentou em tempos o Governo aplicar a estas associações constituídas sob a forma de sociedades cooperativas as regras que entoe nós regulam o direito de associação. A isso, porém, se opuseram os tribunais administrativos, com base no respeito devido à forma doa actos jurídicos. A eventual declaração de nulidade do acto de constituição dessas associações sob forma de sociedade cooperativa só pelos tribunais judiciais poderia vir a ser proferida.

Visto nesta perspectiva, como pretendendo atrair para uma regulamentação única as várias configurações externas das associações, o Decreto-Lei n.º 520/71 já tem, parece-me, algum grau de aceitabilidade. Mas este entendimento teria de ser esclarecido mediante a radical alteração do seu antigo 1.º e, ma sequência, também dos outros.

Estou aqui a separar rigorosamente o problema agora em debate, da extensão às sociedades cooperativas do regime jurídico que regula o exercício do direito de associação, de outro diferente, qual seja o da apreciação deste mesmo regime.

Sobre este último problema tomei já posição ao subscrever, há cerca de um ano, o projecto de lei de revisão constitucional n.º 6/X. No que a mim respeita, a intenção das alterações propostas para alguns dos números do artigo 8.º, e sobretudo para o seu § 2.º, era ferir de inconstitucionalidade material o estatuto vigente das liberdades cívicas, entre elas o direito de associação, herança de um passado que julgo inadmissível prolongar no tempo por forma mitigada e mais ainda fazer voltar novamente em plenitude. Assim se forçaria a revisão das leis sobre o exercício dos direitos individuais dos cidadãos, actualizando-as de acordo com as realidades da hora que passa em Portugal, na Europa e no Mundo.

A atitude que a Câmara tomou no debate da passada sessão extraordinária talvez me devesse tranquilizar a consciência quanto a este assunto. Não obstante, é possível que tenha de voltar a abrir a questão meei" Casa pelos meios adequados.

Sr. Presidente: Concluo dando o meu voto à ratificação com emendas do decreto-lei em discussão e propondo a imediata suspensão dele pata prevenir os prejuízos irreparáveis que da sua execução podem advir.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Castelino Alvim: - Sr. Presidente: Nos termos do § 3.º do artigo 109.º da Constituição vigente, dez Srs. Deputados requererem fosse submetido a apreciação da Assembleia Nacional o Decreto-Lei n.º 620/71, publicado no Diário do Governo, l.ª série, n.º 276, de 24 de Novembro do passado ano.

Agiram estes fins. Deputados na esfera de um direito que, se por ser do uso escasso, não perdeu a sua relevância, menos ainda perdeu a sua transcendente delicadeza.

Efectivamente, Sr. Presidente e .Srs. Deputados, a Assembleia Nacional, ao debruçar-se na apreciação de um diploma legal dimanado de outro órgão de soberania, promulgado pelo que tem de ser sempre o mais respeitado de todos os órgãos do Estado porque a encarnação da própria Nação -, verdadeiramente transcende as suas funções legislativa, como até fiscalizadora.

A Assembleia Nacional reúne e trabalha, em CUBOS como este, não como órgão legislativo, não como órgão fiscalizador, mês como órgão de defesa e equilíbrio das competência políticas, direi mesmo, que como verdadeiro órgão de garantia da própria estabilidade do Estado.

Sem dramatismos descabidos, mas com séria e profunda convicção, permito-me recordar aqui o que há mais de mil amos notava - com tanta actualidade como hoje- um grande escritor e político romano: "Um Estado sem equilíbrio de poderes não pode ter estabilidade nem permanência ...", e o País, Sr. Presidente e Srs. Deputados, mão só precisa, mas exige, estabilidade e permanência.

Esta a delicadeza da função, este o grande, cuidado que temos que pôr na analise e na apreciação de problemas como aquele que hoje aqui nos reúne.

Uma falta de cuidado ou de atenção, uma menor sensibilidade ma medida da gravidade da função tão alta, mas tão responsável, que nos cabe, poderia levar ao triste espectáculo de vermos aquilo que pessoalmente rejeito, que colectivamente não podemos deixar de repudiar e que o País jamais poderia admitir: vermos órgãos de soberania paralisando órgãos da soberania.

Porque assim penso, intervenho neste debate, mas não o faço sem solenemente declarar que estou certo de que o mesmo espírito não pode deixar de animar todos os ilustres Deputados que formam esta Assembleia.

Temos, assim, todos de fazer os maiores esforços para que as palavras não atropelem as ideias, poro que as atitudes não aviltem a nobreza dos sentimentos que es animam.

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Se assam não fora, mais do que negarmo-nos, negávamos o mandado que recebemos, muito embora nas atitudes pudessem, aparentemente, servir para adular clientelas ou satisfazer pequenos vaidades pessoais.

Não estamos aqui para adular clientelas, como não estamos, nenhum de nós o está, para, em caída momento, em coda atitude, em coda voto, declararmos ex cátedra infalibilidades governamentais.

Não merecemos que quem quer que seja assim nos julgue, venha o julgamento de fora, o que é triste, venha de dentro, o que seria lamentável.

Não estamos aqui paira defender pretextos, venham donde vierem, mas, isso sim, estamos aqui para os combater, venham igualmente donde vierem.

Não estamos aqui para entoar loas ao Governo, afirmando e (reafirmando a bondade de todas as suas atitudes, mas igualmente não estamos aqui a pretexto de atitudes de independência, que queremos tomar cada dia móis vistosas, para cobrirmos u nossa nudez oom a capa feita em tiras do Poder Executivo.

O Sr. Casal-Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Não defendemos o Governo para lhe agradar, mas seria injusto e até iníquo atacá-lo paira agradar aos outros, ou para que os outros se agradem de nós.

O Sr. Casal-Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Temos de trabalhar e construir, e não se constrói na desconfiança permanente e uai orítiaa sistemática.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Feitas estas breves considerações, entrarei na apreciação do decreto-lei que nos reúne neste ordem do dia.

erei tão breve quanto mo permita a natureza da matéria.

Procurarei ser tão claro quanto mo consinta o seu entendimento.

Começarei por dizer, com uma humildade total, que dificilmente entendo a celeuma que em certos meios levantou o Decreto-Lei n.º 620/71.

Efectivamente, tenho para mim que, se este diploma legal alguma coisa tem a oaraioterizá-lo, é a quase total ausência de matéria inovadora.

Efectivamente, que nos vem dizer o decreto-lei?

Que "sempre que as sociedades cooperativas se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividade que não seja exclusivamente económica, de interesse para os seus associados, ficam sujeitas ao regime legal que regula, o exercício do direito de associação".

O Sr. Magalhães Mota: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Magalhães Mota: - Pareceu-me entender das suas palavras, e julgo tê-las seguido com atenção, que não considerava inovador o Decreto-Lei n.º 520/71.

O Orador: - Não considero.

O Sr. Magalhães Mota: -Pergunto se, na sequência desse pensamento, o considera inútil.

O Orador: - Eu disse "inovador", V. Ex.ª acrescentou "inútil". Será V. Ex.ª que julga. Eu disse apenas que não era inovador.

O Sr. Magalhães Mota: - E que eu penso, que em mataria legal, quando uma lei viesse apenas repetir ou reproduzir uma situação existente, seria inútil.

O Orador: - Pode não ser inútil. Há regras jurídicas técnicas que não suo inovadoras e que são meramente técnicas.

O Sr. Magalhães Mota: - Então V. Ex.ª poderá dizer-me quais os regras técnicas contadas no Decreto-Lei n.º 520/71 e não inovadoras?

O Orador: - Do Decreto-Lei n.º 520/71 digo que não é inovador, só, Sr. Deputado.

O Sr. Magalhães Mota: - Ah! Então falta-lhe explicar quais, no seu entender, as regras técnicas que o tornam mera consagração da lei anterior.

O Orador: - Não é inovador na medida em que apela, em meu entender apenas, para um diploma legal que lhe é anterior. Portanto, não inova.

O Sr. Magalhães Mota: - Bom, esse é um entendimento que não me parece perfeitamente curial. Eu tenho a impressão de que, se, por exemplo e absurdo, nós viéssemos dizer neste momento que deixava de vigorar entre nós a Constituição Portuguesa para vigorar uma Constituição Francesa de 1800 (ou a nossa de 1820), isso seria profundamente inovador.

Risos.

O Sr. Casal-Ribeiro: - Inovador e ridículo.

Risos.

O Orador: - É o seu entendimento.

Mas a sujeição das cooperativas que se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividades que não sejam exclusivamente económicas, ao regime das associações, constituirá algum atropelo à ordem jurídica existente?

Creio francamente que não.

Efectivamente, se cada um de nós é livre de escolher o instituto que moldará determinada actividade que se propõe prosseguir, é necessário que o mesmo se mostre apto ao exercício das funções que visa alcançar.

Se assim não fora, estaríamos bem mais próximo do caos da ordem jurídica que de qualquer outra coisa.

Direi mesmo que, se a qualificação de certo instituto se pode adivinhar pela forma que adoptou, só se alcançará através de uma análise completa da sua natureza, objectivos e fins ..., pese muito embora vir a verificar-se que, por erro ou sem ele, a moldura escolhida ... não era a própria.

A realidade, na vida, e na vida jurídica inevitavelmente, está bem para além das aparências.

Uma compra e venda será sempre uma compra e venda, por muito que se lhe queira chamar doação.

Um arrendamento ou aluguer permanecerá aluguer ou arrendamento, por mais que se deseje dar-lhe a imagem de empréstimo.

Uma associação não deixará de caracterizar-se como tal, por mais que formalmente nos apareça como sociedade.

A ordem jurídica dificilmente subsistiria se entregasse a cada interessado a qualificação jurídica das organizações ou dos institutos com que pretende enquadrar os seus objectivos, definir os seus fins, proteger os seus interesses.

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Ora, uma cooperativa é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade particular, muito embora esse interesse privado, como o diria o Prof. Manuel de Andrade, possa não deixar de ter' as suas "atinências com o interesse público". Simplesmente, como o acentuava o ilustre professor, este interesse não assume "relevo especial".

Sempre que uma pessoa colectiva de direito privado visa ou se propõe um escopro de interesse público, sejam os seus fins meramente altruístas, ou sejam interessados, de fim ideal ou de fim económico não lucrativo, saímos do campo das sociedades, que, por definição, são pessoas privadas de utilidade particular.

Saindo do campo das pessoas colectivas de direito privado e utilidade particular, encontramo-nos no campo das pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública.

E aqui não são os particulares que podem submeter ao regime jurídico das sociedades o que por natureza, direi mesmo que por desejo, é já de si uma associação.

Se associação, onde ver violentação num diploma legal

que se limita a reconhecer tal facto e que, longe de criar qualquer regime jurídico próprio, se limita, repito-o, se limita a remeter para a lei informadora e reguladora de tais pessoas jurídicas?

É, a meu ver, isto tão simplesmente que o Decreto-Lei n.º 520/71 veio fazer.

Verificando que nem sempre a realidade formal condiz com a material, esclareceu ser esta a imperotàva para a determinação do regime jurídico, que não aquela.

Onde, pois, a inovação?

Ultrapassará o decreto-lei a mera interpretação?

Em meu entender, com decreto-lei ou sem decreto-lei, o regime mão poderia deixar de ser aquele que o seu 'articulado traduz e define, pois a sua criação antecedeu-o.

Dele acaso teria resultado alguma restrição a direitos anteriores de associação?

Creio igualmente bem que não e que, antes e pelo contrario, a sua entrada em vigor veio dar maiores garantias a esse direito.

Efectivamente, não foram criadas quaisquer peias à erecção de pessoas colectivas de direito privado e utilidade particular e, antes pelo contrário, se veio acentuar a sua total independência em relação a qualquer acto de autorização de natureza administrativa.

Quanto às pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública -pessoas colectivas que prosseguem fins ou objectivos altruístas, ou interessados mas ideais ou não lucrativos -, tudo permaneceu na mesma.

Creio assim que, objectiva e realisticamente, apenas se pode atribuir ao Decreto-Lei n.º 520/71 o feito de chamar a atenção para a inexistência ou falta de substrato jurídico daquilo que já não o tinha e, entes pelo contrário, mediante um processo administrativo prévio, reconhecer como realidades jurídicas entidades que sem ele eram meras aparências.

O Sr. Magalhães Mota: - V. Ex.ª dá-me licença? O Orador: - Faz favor, Sr. Deputado.

O Sr. Magalhães Mota: - Era só mais um esclarecimento, aliás ma linha daquele que há pouco encetámos.

Parece-me que V. Ex.ª considera que o Decreto-Lei n.º 520/71 veio introduzir réguas muito simples. Ora não me parece que isso seja perfeitamente consentâneo com aquilo que se diz no seu artigo 1.º E pergunto: Quando uma cooperativa, por exemplo, agrícola organiza um curso de formação de dirigentes, eu digo que isso não á actividade exclusivamente económica, tal como está regulado ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 520/71.

V. Ex.ª, na sequência 3o seu raciocínio, que é perfeitamente dualista e separa, por um lado, sociedades, por outro, associações, integrará esta actividade mima actividade de carácter associativo?

O Orador: - Sr. Deputado Magalhães Mota: Digo que, numa sociedade de natureza económica, numa sociedade cooperativa, o seu fim principal, o seu objecto, escopo de que se fala, é de natureza económica, o que não quer dizer que não haja uma série de actividades - que não suo, a meu ver, primárias - que não revistam outras muitas naturezas, que não têm de ser fundamentalmente económicas ...

O Sr. Magalhães Mota: - V. Ex.ª então critica o aspecto exclusivo que o Decreto-Lei n.º 520/71 ...

O Orador: - Sr. Deputado Magalhães Mota: Eu talvez seja mais compreensivo que V. Ex.ª Eu até acho que "exclusivo" pode lá estar em ofensa...

O Sr. Magalhães Mota: - Ah! Pode-se manter o "exclusivo" e ter actividades de natureza não económica?

O Orador: - ... E o "exclusivo" referir-se ao objecto ou fim principal da sociedade ...

O Sr. Magalhães Mota: - Não, não. Exclusivo não é principal. Exclusivo é único ...

O Orador: - O "exclusivo" refere-se ao objecto da sociedade, o que não quer dizer que não haja depois possibilidade de, por exemplo, numa cooperativa agrícola, se ensinar a tratar arames; mas esse não é o objecto principal da sociedade ...

O Sr. Magalhães Mota: - Mas o que o decreto não permite são "actividades", não s5o sobjectos" de sociedade ...

O Orador: - Sou mais liberal do que V. Ex.ª na interpretação do decreto, Sr. Doutor ...

O Sr. Magalhães Mota: - O que estamos a tentar é melhorar e evitar interpretações falses que o decreto permite ...

O Orador: - Se a minha interpretação o ajuda, ela aqui ficou, Sr. Doutor ...

O Sr. Magalhães Mota: - Infelizmente não, Sr. Deputado.

Risos.

Ao fazer estas afirmações faço-as certo de que, tal como eu, há muito já esta Camará se teria apercebido tio perigo de confundir realidades objectivas com mistificações que, se fossem aceites, conduziriam a situações de consequências imprevisíveis.

E que outra coisa não seria que uma mistificação, aceitarmos atribuir regimes jurídicos específicos a aparências que mão a realidades?

Ao encerrar as minhas considerações não quero, contudo, que fique no espírito de quem quer que seja a menor dúvida quanto ao altíssimo interesse que vejo - e estou certo toda a Câmara verá - no desenvolvimento das cooperativas, como do espírito cooperativista.

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Simplesmente, entendo que é tão Alto o valor em causa, que jamais precisará que, quem quer que seja, lhe empreste, paira que caminhe, as muletas da confusão.

Pugnarei, exactamente como os oradores que me antecederam, para que se generalize o espírito cooperativo, para que se dê uma cada vez maior atenção a tudo o que possa levar à compreensão cooperativista.

Mas seria a negação dos intenções o apelo a realidades, o chamamento de factores que nada contribuiriam para isso.

Descansem os timoratos que a ratificação do presente decreto-lei não empurrará a Europa para além doe Pire-néus, nem sequer para além de Badajoz.

A ratificação do presente decreto-lei mais não é do que uma atitude dará e nítida que empurrará, paira além das fronteiras da confusão, regimes jurídicos claros e indiscutíveis.

Voto, meus senhores, a ratificação, porque quero votar com justiça.

Voto, maus senhores, a ratificação, porque quero votar com confiança e na confiança.

Voto, Sais. Deputados, a ratificação, porque quero votar no interesse nacional.

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Moura Ramos: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Impõe-me a consciência que manifeste a minha atitude mental, sincera por necessidade e por formação, ao apreciar o Decreto-Lei n.º 620/71, que veio determinar que as sociedades cooperativas, desde que não se proponham exercer, ou efectivamente exerçam, actividade que não seja exclusivamente económica, fiquem sujeites ao regime legal que regula o exercício do direito de associação, diploma que, na interpretação de alguns, significa ou se traduz numa espécie de requiem para o movimento cooperativista no nosso país.

Serei breve nas considerações a fazer, começando por declarar que não sou contra as cooperativas. Antes pelo contrário, pois que sendo sócio, há longos anos, de uma, fiz já parte dos corpos directivos de uma outra. Mesmo nesta Assembleia já sugeri e defendi a criação de cooperativas como instrumentos para ajudar a resolver o problema da comercialização dos produtos agrícolas. For tudo isto me sinto à vontade para fazer o meu depoimento, que não vai ao ponto de considerar as cooperativas como espécie de varinhas mágicas para solucionar todos ou quase todos os problemas snuma sociedade em desenvolvimento e em crise de inflação".

E porque não escrevemos nem falamos para a galeria, cumpre-nos dizer, muito sinceramente, que não desfraldamos a bandeira das cooperativas de tal modo que não demos pelos princípios que brigam entre si, desconhecendo que "o interesse do produtor cooperativamente organizado opõe-se aos interesses do consumo tomados no ponto de luta pelo barateamento a toda a forca dos produtos a consumir".

Na verdade, as cooperativas de produção não se cosam bem com as de consumo por serem opostos os fins que ambas se propõem: pois que, enquanto os produtores diligenciam e tudo fazem para colocar o melhor que podem os seus produtos, os consumidores, ao contrário, nunca cessam de procurar pagar pelo menos possível tudo quanto consomem.

Isto leva-nos a não aderir nem alinhar com os propagandistas do cooperativismo, sobretudo com aqueles que sonharam ver a Nação e até "o Mundo transformado em armazém por grosso, com a pomba da cooperativa no alto da fachada", sendo emprestado "ao excelso símbolo a compostura, ao mesmo tempo angélica e indiscutível, das coisas infinitamente adoráveis," "o total desinteresse pelo voo político, o ar todo convencido das asas experimentadas no espaço económico, a mirada sempre atenta e sempre amorosa rondando o fundo social, o carinho dogmático pelo bem do povo, o ramo da oliveira no bico ...".

A ajuizar pelas declarações romântica e fantasticamente aliciantes, prenhes de arroubos de oratória e literatura demagógica que este caso das cooperativas provocou, tem-se até falado em democracia cooperativa (mais uma democracia a juntar a tantos outras ...), ao mesmo tempo que, por tudo e por nada, se teima e insiste no filão cooperativista, já sobejamente conhecido, explorando-o com denodo, grande vontade e manhosa subtileza, alandeando e fazendo crer que tal movimento cooperativisita tunda despido de todo e qualquer preconceito ou intenção política.

E foi tal a agitação especulativa e as vozes clamorosas e alarmantes que à volta deste caso só desencadearam, logrando, certamente, persuadir e ganhar adeptos, que a opinião pública quase era levada a acreditar que, neste momento e nesta terra de Santa Maria, outros problemas essenciais a vida da Nação não havia que subalternizassem, amesquinhassem, quase tornassem ridículo o problema das cooperativas l ...

Efectivamente, temos vindo a assistir, nestas últimas semanas, a uma bem organizada e orquestrada campanha dos opositores ao Regime e secundada por elementos que nele se incrustaram ou dele beneficiam, com o fim de criar um estado emocional tendente a obter desejados efeitos políticos, mediante uma pretensa tentativa de liquidação das cooperativas pelo Decreto-Lei n.º 520/71, de 24 de Novembro passado.

E porquê tanto alarido? Porque através da chamada acção cultural das cooperativas teríamos facilitada, a breve trecho, pela sua doutrina e conteúdo, a ressurreição dos partidos políticos, pústulas que desfeiam e consomem a unidade nacional, o que o citado diploma legal veio travar.

E isto porque um Governo tem não só de defender-se contra os que o servem mal, mas também contra os que julgam servi-lo bem.

Ora, o Governo entende que se o ideário cooperativo, na sua transplantação para a prática, se exemplifica ou afirma como sistema económico, nada lhe tem a opor. Mas se se apresenta como um sistema de política social e económica, o caso então já muda de figura.

Na crítica feita ao Decreto-Lei n.º 520/71, e ao pedir que a Assembleia Nacional recuse a sua ratificação ao referido diploma legal, não conseguem os seus propugnadores desprender-se da preocupação estreitamente política que motiva os seus reparos e objecções.

Não ratificado o decreto-lei, nos programas das cooperativas, mais dia menos dia, veríamos incluída uma reforma radical da Nação, isto numa altura em que buscamos uma sociedade sem partidos em que todos falemos apenas pela unidade da Nação Corporativa. Quer dizer, em vez de cooperativas de finalidade exclusivamente económica, passaríamos a ter antes associações de carácter ideológico que, inevitavelmente, se transformariam em partidos políticos, quando o que importa é que trabalhemos dentro das instituições actuais, sem ideias reservadas, aglutinando todas as actividades com diversidade de opiniões, de modo que a acção do Governo possa exercer-se de maneira frutuosa, sem grandes atritos e sem grandes obstáculos.

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19 DE JANEIRO DE 1972 3039

Aproveite-se, pois, das cooperativas o que de construtivo seja de aproveitai -, repelindo exageros e sub-reptícias finalidades.

E neste sentido, elas cabem perfeitamente dentro do regime político vigente. Já em 17 de Setembro de 1956, ao abordar problemas políticos e sociais da actualidade portuguesa, o Sr. Prof. Doutor Marcelo Caetano podia afirmar:

A obsessão de reduzir toda a organização económica de um país a cooperativas, desde a grande indústria ao consumo corrente, pertence até hoje ao número dos mitos com que se vai alimentando a esperança dos fiéis descoroçoados com as realizações efectivas do colectivismo nos países em que o regime comunista foi instaurado.

E num outro passo:

A cooperativização integral era o ideal anarquista, é a fórmula do comunismo libertário, E o último estádio do processo da realização da sociedade sem classes com a supressão do aparelho político do Estado.

E a concluir, mais o seguinte:

Pensar que a economia moderna é possível com fórmulas puramente cooperativas, com ou sem régie, é uma fantasia que a realidade do capitalismo do Estado suplantou nos países socialistas.

Isto afirmava o Sr. Prof. Doutor Marcelo Caetano, depois de haver declarado:

Sou, de há muito, um adepto convicto da expansão da fórmula cooperativista e tenho e. certeza de que, quando inteligentemente empregada e honestamente servida, essa fórmula pode ajudar a resolver muitos problemas dos produtores e dos consumidores e a corrigir vícios do capitalismo sem que o comércio útil seja com isso afectado. (Cf. Problemas Políticos e Sociais da Actualidade Portuguesa, pp. 28 e 27.)

Importa, portanto, estremar o âmbito da acção das cooperativas, separando-o do resvaladiço terreno político.

O Sr. Oliveira Dias: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Oliveira Dias: - Tenho estado a seguir com atenção as considerações ide V. Ex.ª, e, se bem entendi, V. Ex.ª dá o seu apoio e até faz parte de cooperativas que têm fins exclusivamente económicos. Todas as outras podem ser, ou pelo menos potencialmente, um perigo político que é necessário nos ponhamos de sobreaviso contra elos.

Eu queria pedir a atenção de V. Ex.ª para os fins culturais das cooperativas e lembrar-lhe que no nosso distrito existe, por exemplo, na Benedita, um colégio que é uma cooperativa, que prossegue, portanto, fins de educação e que se tem revelado da maior utilidade para a comunidade.

O Orador: - Sim, senhor. Mas eu também posso dizer a V. Ex.ª que ainda hoje alguém com responsabilidades no distrito me dizia, que V. Ex.ª conhece, como eu, existir uma cooperativa no nosso distrito que visa sobretudo fins políticos. E isso parece que causou a V. Ex.ª algumas apreensões.

O Sr. Oliveira Dias: - Pois, Sr. Deputado, o problema creio que se deve colocar desta maneira: não é só útil o fim económico das cooperativas ...

O Orador: - Exactamente, há outros fins úteis.

O Sr. Oliveira Dias: - ... o seu fim cultural é também de acolher e é também de acautelar, por isso é que estamos a discutir esta assunto. O outro problema é um problema político. Creio que não se deve misturar o cultural com o político - esta a razão da minha intervenção.

O Orador: - Pois, exactamente ... Lá está o Governo para distinguir onde está o cultural e o político.

Risos.

O Sr. Oliveira Dias: - Não é só o Governo, Sr. Deputado, também nós estamos aqui ...

O Orador: -... O Sr. Deputado, nós lemos por cartilhas tão diferentes que não é possível o diálogo.

O Sr. Oliveira Dias: - Eu tento o diálogo, V. Ex.ª ... Enfim ...

O Orador: - Foi quanto o Decreto-Lei n.º 520/71 veio procurar fazer, (prescrevendo' um regime diferente para as sociedades cooperativas que visem objectivos não exclusivamente económicos. E isto para que S3 não enfeudem a objectivos políticos que levam mais à divisão do que à cooperação e, por conseguinte, ao desvirtuamento da própria finalidade cooperativista.

Estas as razões que fundamentam a nossa opinião de que o Decreto-Lei n.º 520/71 deve ser ratificado por esta Assembleia, sendo nesse sentido que vamos votar, além de que sé preciso não esquecer que o nosso país se encontra em estado de guerra" e ser perigoso correr o risco de que suma certa propaganda faça trabalho de sapa no moral da Nação e traia os nossos saldados que se batem". (Da entrevista concedida pelo Sr. Presidente do Conselho, Prof. Doutor Marcelo Caetano, ao jornal francês L'Aurore, em Setembro de 1969.)

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão. Convoco a Comissão de Economia para se reunir amanhã, às .18 horas e 30 minutos, e iniciar a apreciação da proposta de lei de defesa da concorrência. Volto a apresentar-lhe o meu pedido de proceder ao respectivo estudo com a possível brevidade.

A Comissão continuará as suas reuniões, organizando-as e marcando-as conforme as conveniências do seu trabalho.

Amanhã haverá sessão, à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação da apreciação do Decreto-Lei n.º 520/71.

Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Francisco António da Silva.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
José de Mira Nunes Mexia.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Manuel Artur Cotta Agostinho Dias.
Prabacor Rau.
Rafael Valadão dos Santos.
Ricardo Horta Júnior.

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3040 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 150

Rogério Noel Peres Claro.
Rui Pontífice Sousa.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alexandre José Linhares Furtado.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Pereira de Meireles da Bocha Lacerda.
Carlos Eugênio Magro Ivo.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Jorge Augusto Correia.
José da Costa Oliveira.
José Dias de Araújo Correia.
José Guilherme de Melo e Castro.
José João Gonçalves de Proença.
José da Silva.
Júlio Dias das Neves.
Luís Maria Teixeira Pinto.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Marques da Silva Soares.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.
Miguel Pádua Rodrigues Bastor
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.

O REDACTOR - José Pinto.

IMPRENSA NACIONAL

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