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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 224 14 DE FEVEREIRO

ASSEMBLEIA NACIONAL

X LEGISLATURA

SESSÃO N.º 224, EM 13 DE FEVEREIRO

Presidente: Exmo. Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto

Secretários: Exmos. Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amilcar da Costa Pereira Mesquita

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.

Antes da ordem do dia. - O Sr. Presidente deu conhecimento à Assembleia da presença do Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil e do Sr. Deputado Federal Dr. Avelino Faria e pediu assentimento para que eles tomassem lugar no hemiciclo.
O Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil foi introduzido na sala pelos Srs. Deputados Franco Nogueira e Salazar Leite, tendo o Sr. Deputado Anapolino Faria sido acompanhado pelo Sr. Deputado Martins da Cruz.
Assistiram à sessão o Sr. Embaixador do Brasil em Lisboa e os membros da comitiva do Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil.
Usaram da palavra para saudar o Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil os Srs. Deputados Franco Nogueira e Gonçalves de Proença, a quem o Sr. Presidente pediu para subirem à tribuna.
O Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil agradeceu as palavras a ele dirigidas.
O Sr. Presidente proferiu um discurso de homenagem ao seu homólogo brasileiro.

Ordem do dia. - Iniciou-se a discussão na generalidade da Proposta de lei sobre a protecção da intimidade da vida privada.
Usou da palavra o Sr. Deputado João Manuel Alves, que apresentou o relatório da Comissão de Política e Administração Geral e Local sobre a proposta de lei em debate.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 50 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
Amilcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Lopes Quadrado.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Armando Valfredo Pires.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.

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Delfim Linhares de Andrade.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Francisco António da Silva.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João António Teixeira Canedo.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José João Gonçalves de Proença.
José Maria de Castro Salazar.
José dos Santos Bessa.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
José Vicente Pizarro Xavier. Montalvao Machado.
Júlio Dias das Neves.
Luís António de Oliveira Ramos.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Martins da Cruz.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Nicolau Martins Nunes.
Olímpio da Conceição Pereira.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Rafael Valadão dos Santos.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Ricardo Horta Júnior.
Rui de Moura Ramos.
Teodoro de Sousa Pedro.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Conforme os meios de informação têm largamente noticiado, encontra-se desde anteontem em Lisboa o ilustre Presidente da Câmara Federal dos Deputados do Brasil, o Sr. Doutor Ernesto Pereira Lopes.
O Sr. Deputado Pereira Lopes, Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, encontra-se neste momento no edifício da Assembleia Nacional. E confirmando a intenção de que já dei conta a VV. Exas. há dias, é meu propósito, e espero o assentimento de VV. Exas. para o efeito, valer-me da nova disposição regimental que me permite convidar o Sr. Deputado Pereira Lopes a tomar assento no hemiciclo da Assembleia Nacional. Seguidamente vou conceder-lhe a palavra para cumprimentar a Assembleia, pois ele mostrou desejo de o fazer.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Também está com ele o Sr. Deputado Federal Dr. Anapolino de Faria. E, do mesmo modo, espero o assentamento da Assembleia para que ele assista à nossa sessão, sentando-se no hemiciclo.
Peço aos Srs. Deputados Franco Nogueira e Salazar Leite o favor de introduzirem na sala o Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil. E peço ao Sr. Deputado Martins da Cruz o favor de introduzir também na sala o Sr. Deputado Federal Dr. Anapolino de Faria.

Pausa.

Para saudar o Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tem a palavra o Sr. Deputado Franco Nogueira, presidente da Comissão Permanente dos Negócios Estrangeiros e presidente também da comissão eventual para o estudo das medidas tendentes a reforçar a comunidade luso-brasileira.
Peço ao Sr. Deputado o favor de subir à tribuna.

O Sr. Franco Nogueira: - Sr. Presidente, Srs. Deputados. No decurso dos trabalhos desta Câmara surgem momentos em que tomar a palavra perante a Assembleia constitui tarefa particularmente grata. Este é um desses momentos, e para todos nós e para mim ocasião também de júbilo muito especial. Nenhum motivo singular aparece evidente para que, neste local e nesta hora, devesse ser eu a desempenhar-me de encargo tão afortunado. Dos sentimentos que hei-de exprimir, de afecto e admiração pelo Brasil, todos os membros desta Casa partilham por igual, e por isso estou seguro de dizer a esse título o que qualquer dos Srs. Deputados diria, embora por outros títulos o pudessem dizer mais e dizer melhor. Não me esqueço, todavia, de que nesta Assembleia me cabe a honra de presidir à Comissão luso-brasileira, e apenas nesta qualidade poderei acaso justificar o privilégio que me permite saudar daqui a eminente figura do Brasil que hoje acolhemos nesta Câmara. Presente a esta sessão, e assistindo aos nossos debates, está o Sr. Deputado Ernesto Pereira Lopes, Presidente da Câmara dos Deputados da República Federal do Brasil.
E poder-se-á dizer que V. Exa., Sr. Presidente Pereira Lopes, tem assento nesta Câmara dos Deputados de Portugal por direito próprio: por direito que lhe é outorgado pelo sentir e vontade unânimes dos seus colegas portugueses; por direito que lhe é atri-

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buído através de uma prática que nesta Casa se converteu em tradição; por um direito, enfim, que lhe é reconhecido pelo próprio Regimento já votado por esta Assembleia. E por que é isto assim? Por tão simples, é ociosa a resposta: V. Exa. é um Deputado brasileiro. Acontece que, além dessa qualidade eminente, tem atrás de si uma longa carreira política, rica de experiência, rica de actividade, rica de dedicação à coisa pública, e tanto no âmbito estadual, no grande Estado de S. Paulo, como no plano federal. Vulto que marca nas esferas superiores da política e da sociedade do seu país, tem V. Exa. servido o povo como seu mandatário e defendido os interesses colectivos, e por escolha dos seus pares preside à mais alta assembleia legislativa do seu país, de que é portanto também o primeiro mandatário, e cuja representação, neste momento e perante nós todos, V. Exa. personifica e encarna.
Equivale isto a afirmar que V. Exa. é um qualificado representante do povo do Brasil.
Daquele povo de além-Atlântico em que nós, situados a norte e a sul deste lado do velho mar oceano, encontramos uma comunhão vibrante e profunda no que há de essencial: o apego a uma tradição cristã, assente na mesma raiz; o sangue que jorrou das mesmas veias; a cultura que se inspira dos mesmos valores; uma atitude moral que venera os mesmos ideais; e uma língua de idêntica matriz, que a todos emociona em Camões ou em Manuel Boadeira, que a todos cativa em Eça de Queirós ou em Machado de Assis, que a todos empolga em Camilo ou em Euclides da Cunha, e que a todos arrebata em Vieira ou em Rui Barbosa.

O Sr. Veiga de Macedo: - Muito bem!

O Orador: - Isto é muito belo, e alto, e imenso, e único. Tudo isto, Sr. Presidente Pereira Lopes, seria mais que bastante, mas não é tudo, e no mundo de hoje acaso poderá ser precário se por detrás de tudo não houver uma vontade firme ao serviço de interesses a longo prazo. Para além do que pertence ao âmbito do espírito, e alimenta as inteligências e ilumina a fé, está a realidade poderosa do presente, concreta e positiva, e está sobretudo a visão exaltada do futuro, que só não é profética porque a sabemos antecipadamente exacta. A grandeza e o vigor da continentalidade brasileira e a vastidão do Portugal de aquém e de além-mar são pilares fiadores de que, dentro da construção político-jurídica própria e discricionário de cada um...

Vozes: - Muito bem!
O Orador: -... serão salvaguardados os interesses legislativos dos dois, garantida a ascensão de ambos, assegurado o acesso de um e de outro aos benefícios da cultura, da ciência, do progresso em suma.
Na afinidade dos valores e dos princípios - o culto do direito, o sentido da justiça social, o respeito pela dignidade de cada homem sem olhar à raça, a igualdade de todos perante a lei - encontram o Brasil e Portugal os fundamentos de compreensão mútua; e, Pois que estamos aqui numa assembleia política, cumprirá não esquecer, por outro lado, os instrumentos Políticos e legais que fornecem aos dois países o quadro do entendimento e da colaboração: o Tratado de
Amizade e Consulta, os Acordos de 1967, a Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres de Brasileiros e Portugueses. E tudo isto, Sr. Deputado Pereira Lopes, é a comunidade luso-brasileira; são aqueles mundos de Portugal e do Brasil que alguns não percebem e que a outros parecem afrontar; são aqueles dois mundos que conseguem transformar sonhos em realidades e em que os homens sabem desencadear aventuras colectivas; são dois mundos que, assentes no passado olham para o futuro e constróem Cabora Bassa e a Transamazónia. Mas se posso falar dos valores que partilhamos, não me caberia falar do que seja próprio à Nação Portuguesa. Já assim não sucede, todavia, no que pertence ao Brasil, porque nesse particular não tenho inibições em dar o meu testemunho.
São já muitas as visitas que em quinze anos fiz ao país de V. Exa., e a derradeira há pouco mais de um mês. E sinto sempre uma comoção renovada, empolga-me sempre uma admiração crescente, dominam-me sempre o fascínio da Guanabara e do Rio, a grandeza de S. Paulo, a vitalidade de Brasília, e por todo o lado, com mística e com fervor, o espírito de bandeira que arrosta com o Planalto, abre o Nordeste e rasga para novas fronteiras económicas, sociais e humanas toda a imensidão que vai de Belém ao Forte do Príncipe da Beira. Não é o Brasil uma grande potência de amanhã: é uma grande potência de hoje: uma realidade que se espraia ante os nossos olhos deslumbrados.
Neste contexto também, e para lá do quadro que procurei esboçar atrás, supomos deste lado do Atlântico que para o Brasil, e até para todo o Ocidente, deverá ter significado uma leal colaboração luso-brasileira: firme, decerto; estável, sem dúvida; alheia a correntes e a interesses que não sejam os de um e de outro, com certeza; e com os seus mundos tão amplos quanto viável, já que perdida para um dos dois países qualquer posição política, económica ou territorial, estaria perdida para ambos, e teríamos ilusão perigosa e amarga se acaso pensássemos que não nos substituiriam outros.

O Sr. Veiga de Macedo: - Muito bem!

O Orador: - No mundo dos nossos dias, afiguram-se em causa todas as coordenadas da vida individual e colectiva. Com dificuldade se entendem as nações, e os próprios homens entre si; e com o desaparecimento das certezas, e na falta de um padrão comum, de valores, surgem mil verdades, tão afirmativas que se excluem mutuamente, tão messiânicas que cada uma procura destruir todas as restantes.
Não será de mais, por isso, que o Brasil e Portugal tentem dar exemplo, harmonioso e construtivo, de concórdia e de colaboração. Ninguém poderá razoavelmente afirmar que as estreitas relações luso-brasileiras, sem par com quaisquer outras, prejudiquem terceiros, ou tenham objectivos hostis a quem quer que seja. Mas se porventura alguns se julgassem afectados ou se sentissem desagradados, então teríamos de buscar o motivo na ilegitimidade dos seus interesses e na improcedência dos seus propósitos. Nem por isso, estou certo, deixaria contudo de prosseguir e crescer a comunidade luso-brasileira.

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São esses os votos que, por seu lado, esta Câmara tem formulado em ocasiões numerosas, e que reitera, segura de interpretar a consciência geral. E estamos convictos de que é idêntico o ânimo brasileiro. Deste estado de espírito comum teremos, dentro em pouco, mais uma expressiva manifestação. Correspondendo à visita que no ano findo fez ao Brasil S. Exa. o Presidente da República Portuguesa, ser-nos-á dada em breve a alta honra de acolher S. Exa. o Presidente da República do Brasil: posso assegurar, podemos todos assegurar a V. Exa., Sr. Deputado Pereira Lopes, que todo o povo português quer dar e saberá dar ao Presidente Médici todas as provas de suprema deferência, de profundo respeito, de admiração, de carinhoso afecto, que lhe são devidos pela nobreza da sua figura, pela eminência do seu cargo, pela representação de que vem investido.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E termino imediatamente. Mas antes, com a devida vénia de V. Exa., Sr. Presidente, quero pedir ao Sr. Deputado Pereira Lopes que aceite as saudações afectuosas e fraternais desta Assembleia. Saudações que se dirigem à figura de V. Exa., com os nossos agradecimentos pela honra da sua visita. Saudações que, por seu intermédio, desejamos que transmita à Câmara dos Deputados do Brasil, de que V. Exa. é nobre presidente. Saudações, enfim, que esta Casa dirige ao povo brasileiro, em comunhão de sentimentos e de propósitos. E termino, decerto sem os enfeites de uma linguagem ataviada e fidalga, mas com a galhardia simples e franca do povo português: Sr. Presidente Pereira Lopes está em sua casa, seja bem-vindo.

Vozes: - Muito bem! Muito bem!

Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Gonçalves de Proença, a quem peço também que suba à Tribuna.

O Sr. Gonçalves de Proença: - Sr. Presidente da Assembleia Nacional, Sr. Presidente da Câmara de Deputados do Brasil, Srs. Deputados: Recente viagem ao Brasil em representação da economia ultramarina portuguesa motivou a presente fala. A presença de V. Exa., Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil nesta Casa, determinou a sua oportunidade. Ei-la:
As evidências não se demonstram, mostram-se! A evidência que pretendo "mostrar" neste momento à Câmara está bem patente perante os nossos olhos. É ela a realidade económico-política da comunidade luso-brasileira. Acentuo a palavra realidade e o qualificativo de económico-política.
Não é minha intenção falar dos anseios ou das ideias que têm constituído durante séculos alimento lindo da retórica lusíada de uma e outra margem do Atlântico.
Falo em realidade, como coisa palpável, que se sente, que se come ou que se usa na vivência das relações comerciais, na trepidação das actividades produtivas ou nas carências do consumo. Falo em realidade como concretização actual de um imperativo sócio-político, que transcende os homens e as nações e os enquadra na moldura contemporânea da convivência mundial: o imperativo dos grandes espaços e das reservas estratégicas internacionais.
O meu realismo não vai porém ao ponto de tudo situar em termos de "sociedade de consumo" ou de tudo perspectivar em alucinações de estratégia económico-militar, defensiva ou ofensiva. É um realismo global que envolve, naturalmente, os valores do espírito que realidade são, preze embora a alguns! É a realidade da língua comum, da fé que une e da idiossincrasia que confunde e esmaga os 100 milhões de lusos, atlânticos, africanos ou orientais. A história única é também realidade grande, mas essa, o meu realismo absorve-a no presente e deste parte à conquista do futuro.
Banida a retórica, proibido o narcisismo e autorizados só os poetas do concreto, o que nos fica então da comunidade luso-brasileira?
Três coisas muito simples que pesam, no entanto, como punhos de verdades indiscutíveis: Uma realidade política; um mercado comum; uma zona estratégica.
Política é palavra que vem de "polis", a cidade, que congrega todos os cidadãos, aqueles em que a comunidade dos interesses é factor de polarização e identidade de vida. A língua é veículo que facilita a aproximação de todos, uns com os outros, e a fé, quando fala a mesma língua, a todos une com a divindade comum.
Outros ingredientes mais facilitam a génese das comunidades: a mistura do sangue, a comunhão nos sacrifícios, a exaltação nas glórias e nos triunfos, a paridade legal.
E assim surgem as nacionalidades no cadinho da história, como realidades políticas individualizadas, mais amplas umas, mais restritas outras, consoante a estreiteza ou largueza dos horizontes sócio-geográficos em que a "mistura" se operou e consolidou.
Este o "molde" paradigmático das "realidades políticas", em sentido unitário, no contexto das convivências internacionais.
Como é próprio dos "moldes" estes transmitem à matéria "moldada" a figuração de que estão possuídos nos volumes e nas formas.
Foi o que aconteceu à comunidade luso-brasileira moldada na realidade sócio-política do mundo lusíada, com toda a sua complexidade, unidade e perplexidade. A complexidade da multirracialidade e pluricontinentalidade; a unidade da fala, da fé ou da fraternidade; a perplexidade do contraste, do "escândalo", das invejas e das independências recíprocas.
Mas assim mesmo não deixa de ser uma realidade viva e actuante que todos sentimos, os que dela participamos, e os que, de fora, com ela terão de contar.
Realidade tão forte que se impôs aos próprios homens e às leis de sua invenção.
A prova aí está, palpitante e incontroversa: cidadania comum constitucionalmente reconhecida às gentes de uma e outra parte, não obstante a independência de um e outro.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - As leis são feitas para os homens e não os homens para as leis e por isso a realidade jurí-

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dica teve de aceitar o "molde" da realidade humana há muito existente na comunidade lusíada.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quase nos apetece trazer para aqui a frase do monumento a Eça de Queirós, o Eça das duas pátrias: A nudez forte da verdade, que a comunidade lusíada sempre constituiu, sobressai bela e provocante do manto diáfano da fantasia com que alguns a supunham ocultar e disfarçar.
A tal evidência que não se demonstra mas apenas se mostra.
E mais não direi sobre essa "realidade política", que deixo aos teóricos o gosto de classificar, apenas com uma advertência: se não encontrarem paralelo nos livros da ciência política, não se assustem. Nem Sempre foi pelos livros que os Portugueses aprenderam o que fizeram, nem é seguramente pelos livros que de um e de outro lado do Atlântico Sul Portugueses e Brasileiros, cada um em sua casa, estão a construir, neste preciso momento, um mundo novo de potencialidades económico-políticas.
Os livros virão depois explicar como foi.
E assim passamos à realidade económica da comunidade lusíada que acima apelidei de mercado comum luso-brasileiro.
Trata-se de uma tese que há muito me é cara e já aqui mesmo, nesta Câmara, defendi em outra oportunidade.
É a tese da conformidade, que se me afigura evidente, entre a comunidade lusíada e a problemática dos grandes espaços que actualmente domina a panorâmica política mundial.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Uma vez mais a evidência a "mostrar-se" sem necessidade de demonstração.
Todos sabemos, com efeito, que um dos aspectos mais salientes da dinâmica político-económica dos tempos modernos é a tendência mundial para a formação de grandes blocos, caracterizados pela complementaridade e solidariedade dos interesses comuns.
Isto é, estamos na época das grande comunidades ou das federações de Estados de que são exemplos o bloco comunista, a Comunidade Económica Europeia, a Associação Económica para a América Latina, etc.
Pois, como já um dia afirmei, e aqui recordo, é precisamente "nesta perspectiva de macropolítica mundial que nos aparece e importa caracterizar a comunidade luso-brasileira sob o ponto de vista económico".
Comunidade não quer dizer fusão de Estados, antes pressupõe e impõe as independências e individualidades recíprocas das partes interessadas.
Também isto é evidente e deve ficar bem assente de um e outro lado, para evitar dúvidas e confusões malévolas. Mas como é igualmente evidente, para haver comunidade económica terá de existir solidariedade ou complementaridade de interesses.
E ela existirá, realmente, no seio da comunidade luso-brasileira?
Dúvida pertinente, sabido como é que nem sempre Os interesses económicos dos dois parceiros são coincidentes ou complementares, situando-se, pelo contrário, nos antípodas aparentes da concorrência económica nalguns casos.
A tal dúvida responderemos com mais uma evidência: Nem sempre a concorrência divide, muitas vezes é factor de união e aproximação.
Seja o caso dos produtos ultramarinos, também produzidos em terra brasileira e que, por isso, em termos de concorrência pura, podem não apetecer ao outro parceiro no aparelho circulatório dos negócios que alimentam a comunidade.
Podem não interessar à circulação interna, mas é evidente a sua capacidade de potenciar a força económica comum, desde que a seu respeito seja posta em funcionamento hábil política económica de coordenação.
O café poderá ser um exemplo.
Em primeiro lugar não está provado que o café português seja totalmente concorrente do café brasileiro.
Pode até, nalguns casos, interessar à economia comum misturar "robustas" angolanos com "arábicos" brasileiros:
Em segundo lugar é manifesto o interesse que o Brasil, como maior produtor do mundo, tem no apport que lhe pode ser dado pela produção portuguesa, na conjugação das políticas mundiais ou na definição das orientações. O peso dessa influência comum cresce na proporção da coordenação realizada. Influência que é muito mais interessante em termos económicos do que o valor meramente monetário das 200 000 t angolanas.
A produção florestal é um outro exemplo onde igualmente se impõe coordenar as políticas de exploração económica entre Portugal ultramarino e o Brasil, que de concorrentes devem passar a associados, impondo no mercado mundial a linha mais conforme com os interesses da sua magnífica e talvez única posição no contexto dos produtos florestais. É riqueza delicada, porque perecível e de difícil renovação, que importa, por isso, salvaguardar e valorizar.
E o mesmo se diga para a pecuária, para as pescas, para o petróleo, para os minérios de ferro, para o caju, para o chá, etc.
Além disso, sabido é quanto a técnica moderna das operações mercantis pode facilitar a colocação exterior por uma das partes dos produtos da outra, para, com as cambiais assim obtidas, lhe vender os produtos próprios. Numa palavra: quanto mais vendermos no exterior, mais produtos poderemos adquirir no mercado da outra parte, que no caso presente é o mercado brasileiro, sem dúvida o mercado externo mais apto para o abastecimento dos territórios do nosso ultramar. Basta notar, a este último propósito, a similitude de gostos e preferências que dá a identidade de raças e origens étnicas das populações ultramarina e brasileira; a facilidade de colocação dos produtos favorecida pela língua comum; a adaptação das qualidades e gamas de produção às condições de clima e necessidades de um e outro lado do Atlântico; e até a garantia de escoamento que a técnica e capacidade industrial podem encontrar, nalguns casos, no consumo brasileiro e ultramarino.
Tudo está em que a par das importações de um lado igualmente cresçam e se desenvolvam a produção e exportação do outro.
Quer dizer: ao Brasil como ao ultramar português interessa favorecer e potenciar as colocações exteriores

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dos respectivos produtos, para assim, reciprocamente, mais poderem comprar e vender um ao outro. O comércio internacional é amor que só correspondido floresce.
Esse o sentido mais forte da realidade económica que a comunidade luso-brasileira constitui.
E aí têm a palavra os técnicos dos ajustes económicos que geram as comunidades, com a vantagem de que, no nosso caso, não é a comunidade que nasce do acordo
(género Mercado Comum, Acordo de Roma), mas sim o acordo que é gerado pela comunidade.
Importa, no entanto, que se seja corajoso, como se foi no domínio da cidadania luso-brasileira, e não se fique apenas em meias soluções do tipo das zonas francas, e se caminhe afoitamente para fórmulas do estilo união aduaneira ou zona de livre câmbio, respeitadas que sejam sempre, é bom repetir, as independências recíprocas.
Para os grandes problemas só as grandes soluções convêm. Esta outra evidência que não necessita demonstração.
E, chegados a este ponto, talvez devêssemos ainda deixar cair algumas palavras sobre a realidade económica da comunidade luso-brasileira, pondo em destaque o interesse bilateral que uma e outra têm nos respectivos mercados.
Quem ignora os olhos cobiçosos com que a indústria transformadora brasileira olha o mercado de consumo do ultramar português, para o qual se sente especialmente preparada e apta, e quem ignora também o anseio de colocação que anima muitas das nossas produções, face à dimensão do mercado brasileiro?
E quem desconhece, outrossim, a atracção que a economia brasileira está a exercer sobre os nossos capitais e como os horizontes europeus e africanos seduzem a imaginação e a tecnologia brasileira?
Também estas realidades fazem parte da realidade maior que é o mundo lusíada.
E assim chegamos, sem mais delongas, à última evidência da comunidade luso-brasileira - a sua realidade político-estratégica.
Todos sabemos, Portugueses e Brasileiros, quanto vale internacionalmente a solidariedade lusíada no concerto dos interesses universais, constituindo, como constitui, uma das maiores potências políticas mundiais. Daí o arreganho com que os inimigos de uma e outra parte procuram fomentar a divisão ou inquinar a harmonia com falsos pretextos de discórdia ou intriga. E daí também os cantos de sereia procurando arrastar uma ou outra parte para caminhos diferentes da comunidade, prometendo solidariedades de última hora ou chorudas recompensas de imediatos interesses a troco de abandonos ou isolamentos políticos.
Não são de agora tais cantos traiçoeiros, embora ultimamente se tivessem intensificado procurando aproveitar certas brisas de paradoxo que sopram no Mundo.
Mal irá, porém, àquele de nós que ingenuamente se deixe encantar por estas miragens e abandone a solidariedade natural da comunidade pelo gosto de amores que nada têm para oferecer, porque a outros pertencem de corpo e alma na trama apertada de outras solidariedades. Se tal acontecesse, o acordar seria doloroso, pois nada ofende mais a amizade do que o abandono sem proveito, sem justificação e sem glória.
Tal, porém, não acontecerá, até porque de um e outro lado do Atlântico, tanto no plano económico como no plano político, tem-se cada vez mais consciência da necessidade de contrapor o peso natural da comunidade lusíada, com toda a sua dimensão, à influência crescente das superpotências a quem parece confiada a missão de porem e disporem de tudo e de todos, como se tudo e todos lhes pertencessem. É a história, já aqui um dia referida, do jogo de xadrez em que, unidos, poderemos participar como jogadores, enquanto, desunidos e isolados, seremos remetidos à mísera condição de pedras que outros jogam no tabuleiro dos interesses mudiais.
Acresce o valor estratégico da região do Mundo confiada à nossa guarda, mas que logo será presa de outros se abrandarmos a vigilância comum ou abandonarmos as posições. Pense-se só no que poderá acontecer a todo o Atlântico Austral se Portugal deixar de controlar o arquipélago de Cabo Verde ou se as costas ocidentais de África estiverem à mercê de inimigos do Brasil e vice-versa. Notícias recentes abundam nesta tese, anunciando o plano soviético de domínio de Cabo Verde através da Guiné Portuguesa como meio de fechar ao Ocidente o mare nostrum do Atlântico Sul. Pensem nisto os políticos e os militares, antes de se deixarem arrastar por falsos conceitos de liberdades e de ventos mais ou menos históricos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O que não quer dizer, evidentemente, que se fechem os olhos às realidades e os ouvidos aos imperativos da verdadeira história, aquela que os povos vão construindo. Tudo está em que não se confunda história com ideologia e não se procure acelerar com fins ideológicos o que só as gerações sabem edificar com o seu espírito e a sua alma.
E essa história não a temem os Portugueses, antes por ela se sacrificam e lutam, dando, inclusive, o seu sangue e a sua vida. Assim surgirá a grande comunidade lusíada do futuro, continuação natural e actualizada da comunidade que do passado herdámos e desejamos transmitir engrandecida aos vindouros. Realidade natural em que o Brasil e Portugal podem ter um papel muito importante a desempenhar.
Esta a última realidade que assim deixamos sem mais demonstração, sobretudo neste dia em que pela primeira vez a Assembleia Nacional Portuguesa funciona como se fora a Câmara dos Deputados do Brasil, acolhendo nas suas tribunas, por direito próprio, entre os representantes do povo português um representante do povo brasileiro.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A realidade da comunidade luso-brasileira não poderia ter melhor expressão. Nós a saudamos desta tribuna.

Vozes: - Muito bem! Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vou ter a honra e o prazer de dar a palavra ao Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, pela primeira vez usando da nova disposição regimental, para que S. Exa. agradeça, como me mostrou desejar, as saudações que lhe focam dirigidas e nos comunique a missão que aqui o traz.

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Quebrando a reserva habitual, peço a VV. Exas. que, com algumas palmas, manifestemos ao Sr. Deputado Pereira Lopes o prazer com que o vemos aqui e lhe peçamos que nessas palmas veja também envolvido o carinho com que saudamos os nossos colegas do Brasil.

Palmas.

O Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil: - Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Nacional Portuguesa, Exmos. Srs. Representantes do Povo Português: As constituições estatuem, as leis determinam, os acordos e os protocolos regulamentam - mas o facto positivo, em verdade, é anterior à lei escrita, e eu me animo a afirmar que ele se situa no campo imutável do nosso direito natural: Brasileiros e Portugueses, somos os únicos cidadãos que desfrutamos do privilégio de sair do Brasil para Portugal ou de ir de Portugal para o Brasil, mudando de terra e de continente sem deixar a Pátria.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Esta augusta representação exceliu em gentileza deliberando receber-me em seu seio, reiterando um convite cujo timbre cristalino soa como o festivo encontro de almas irmãs, e conferindo-me a honra de ser, por uns poucos instantes, um dos seus, presta-me um preito que vai muito além do muito que eu próprio poderia sonhar. A Assembleia Nacional Portuguesa tributa-me uma homenagem que transcende, amplamente, a minha modéstia, mesmo a minha humildade, e eu afianço que recebo a honra suprema desta celebração como a cortesia feita ao Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil e como o tributo de simpatia que os meus colegas do Legislativo de Portugal rendem àquele que continua, nas bandas de além-mar, buscando dignificar, pelo trabalho e pelo esforço em prol das liberdades cívicas e cidadãs, o sangue português, generoso e honrado, a que deve a própria vida.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Seja-me dado, assim, relembre, aqui e agora, com a maior emoção e o maior carinho, a figura estremecida e saudosa de meu pai, rijo e valente lusitano que deitou raízes no Brasil, onde se fez árvore que floriu e frutificou, sem jamais deixar de pertencer à ancestral floresta de seus maiores, cujas nascentes, vetustas e dignas, embora modestas, ainda perduram sob os murmúrios do Tejo e se espraiam nos vales entre o Minho e o Mondego.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Senhores: Mandatários da soberania do povo, em cujo nome agimos, pesa sobre nós a responsabilidade imensa de sermos parte do Poder Legislativo, origem e fonte de todos os demais poderes, numa quadra da vida universal em que os limites da vida pública não são traçados ao alvedrio de quem ocupa o Poder, mas são determinados pela velocidade que a moderna estrutura social exige para a solução dos problemas em que as partes magnas são o povo e a Pátria.
Creio que não se me debitará, até por supérfluo, que não me refira eu, ainda que sucintamente, às nossas afinidades, ao nosso multissecular intercâmbio económico e cultural, até mesmo ao milagre da unidade territorial e linguística que o génio português realizou no Brasil, para pasmo universal.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Aqui estou como Deputado brasileiro, entre iguais e entre irmãos, e entendo possa lhes dizer quanto pensa o Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil sobre as funções do parlamento no mundo moderno, face às novas realidades com que ele se defronta.
Não cogito, por óbvio, da grosseira impostura totalitária dos pseudoparlamentos da área socialista, eis que me situo estritamente na esfera da legitimidade da representação do mundo democrático.
As exigências do progresso e os reclamos da evolução, cuja dinâmica veloz se socorre mais e mais do arrimo diuturno da tecnologia, carrearam para o Poder Executivo a imposição de novos critérios de comportamento administrativo, lastreado de intensa agilização de métodos, e, assim, os limites tradicionais dos poderes do Estado já não assinalavam, nos mapas das áreas de seu domínio específico, as fronteiras reais de cada um deles. Daí porque o Estado contemporâneo, na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos da América - pólos de legítimas democracias -, assiste à crise, não a crise, em sua semântica vulgar, mas crise segundo a entende o pensamento grego, da função legislativa convencional, facto que exige de todos os homens públicos potencial imaginativo e criador, fermento de soluções e perspectivas de acção. O mundo moderno testemunha o declínio da tarefa legiferante dos parlamentos com a consequente outorga ao Poder Executivo de generalizada posição de relevo no processo da formação das leis.
Não pretendo que decresceu de importância o papel dos parlamentos na actualidade de nossa civilização; antes concedo que sua destinação se alterou, realisticamente, tornando-se diferente, e outra, mas sem abdicar do exercício de actividades conspícuas e insubstituíveis, cumprindo-as com grandeza e competência, com dignidade e com eficiência.
Não se compadece com o estágio de cultura e de civilização, onde somos parte do movimento universal, o lirismo pueril de nos comportarmos como se fosse possível ressuscitar os princípios da liberal democracia quando interesse da sociedade, como um todo, está à frente do restritíssimo e peculiar interesse do indivíduo.
A organização estatal, como decorrência dos fenómenos do Estado contemporâneo, não resulta - insisto- do exclusivismo do arbítrio de quem, ocasionalmente, detém o Poder, mas se cinge ao império das novas estruturas jurídicas e administrativas ditadas pela velocidade com que é indispensável deliberar e realizar a tarefa de Governo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Resulta daí, pois, que o Executivo não é mais o simples executor adstrito ao decidido em outro sector da soberania nacional. Já a ensaística parlamentar estadunidense qualifica o chefe do Governo como "o inspirador essencial da legislação".

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Continuo convencido, assim, de que a função do parlamento não se situa mais no exclusivismo de votar leis actualíssimas e sábios códigos, eis que ela se reparte, com igual mérito, em fazer revogar as leis iníquas ou anacrónicas...

O Sr. Correia da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - ... e em bem fiscalizar, em nome do povo, a correcta aplicação dos dinheiros públicos...

O Sr. Correia da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - ... e a real operosidade dos administradores. Considero correcto o pensamento de que nenhum homem é suficientemente sábio ou suficientemente bom para que lhe seja confiado ilimitado poder.

O Sr. Correia da Cunha: - Muito bem!

O Orador: - Creio que legislar é uma arte política que escapa à competência da tecnocracia...

Vozes: - Muito bem!

O Orador. - ... e que, consequentemente, nenhum parlamento pode transformar-se em mero ofício de registro de actos do Governo...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... sem influir em nada, nem na elaboração das leis, nem na formação dos quadros políticos.
Não compreendo que o parlamento (e, no passo, me socorro da interpretação histórica e semântica do vocábulo) não seja, de par com a sua condição de centro de decisões políticas, alteado fórum de debates, onde, com a compostura e a altitude impostergáveis, todos os temas do interesse colectivo sejam discutidos, largamente tratados, cuidadosamente examinados, com inteligência e com honradez, de tal modo e de tal sorte que o povo e o país possam saber como pensam...

Vozes: - Muito bem!

O Orador - ... e porque pensam, os seus legítimos mandatários.

Vozes: - Muito bem! Muito bem!

O Orador: - A instituição que não ocupa devidamente o seu lugar no cenário público cede o posto a outra, inexoravelmente! Paladino das liberdades individuais, cumpre ao parlamento o fecundo caminho das realizações capazes, sempre actuante, sempre lúcido, sempre activo, pois na dinâmica política, como na dinâmica animal, é o exercício das funções que tonifica os órgãos.
Repito-me, neste egrégio plenário, reeditando conceitos que tenho por duradouros: "Há - e seria pueril negá-lo - um domínio reservado ao Executivo, mas que não priva o parlamento de suas atribuições fundamentais e que constituem, também, o seu domínio reservado. À representação popular deve ficar cometida a decisão política, que é intransferível e de sua exclusiva responsabilidade. Insisto em que é necessário conciliar os direitos e as tradições fundamentais da representação política nacional com as irrecusáveis exigências político-administrativas do Estado contemporâneo...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ..., em todos os continentes onde se pratica a democracia. E, com humildade, relembro que a utilidade do Poder Legislativo nem sempre pode ser avaliada em função do que faz, antes do que evita."
Quero significar, em síntese, que a agilidade e a flexibilidade da administração moderna, onde o acesso fácil e rápido a todas as fontes de informação e a presença continuada e fecunda de sólida assessoria técnica com que se arma e se municia o Poder Executivo, tornam incompatíveis com a realidade do quotidiano os métodos tradicionais da actuação parlamentar.
É aqui que entendo caber a frase feita: "Renovar ou morrer."
Senhores: Sou um político por vocação irrecusável. A vida pública, no meu país, ofereceu-me oportunidades constantes de servir aos meus ideais democráticos, e, até mesmo, elevou-me a posições insuspeitadas, inclusive nos meus secretos anseios. Mas, me houvera negado tudo, condenando-me a um justo anonimato, e eu me consideraria recompensado, de sobejo feliz e de muito engrandecido pela honra excelsa de ser o hóspede acarinhado pela legítima representação do povo português nesta luminosa Assembleia Nacional portuguesa, imperecível monumento do espírito público dos meus irmãos e dos meus maiores.
Gratíssimo, senhores!

Vozes: - Muito bem! Muito bem!

Palmas.

O Sr. Presidente: - Exmo. Sr. Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil: Vão completar-se em breve noventa e dois anos sobre o dia em que se sentou nesta sala, pela primeira vez, um Deputado federal brasileiro.
Esse Deputado foi Joaquim Nabuco, como ficou conhecido, numa daquelas simplificações de nome que são sinais de celebridade. Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, no dizer de um dos seus biógrafos "personalidade irradiante, que marcou a vida política, diplomática e social brasileira".
Ao tempo já famoso, embora contasse pouco mais de 30 anos, pelo ardor e talento com que se lançara na campanha abolicionista da escravatura, foi certo dia do ano de 1881 que ele se sentou numa das nossas tribunas para assistir à sessão da Câmara; e então António Cândido - outro nome condensado pela glória -, o mais eloquente português do seu tempo, tomou a palavra para sustentar que ao Deputado brasileiro deveriam ser conferidas as honras do recinto parlamentar, excepcionando os preceitos do Regimento, como antes nunca se fizera.
Fundamentou-se "a águia do Marão", como lhe chamavam quantos seguiam os altaneiros voos da sua oratória, na nobreza da causa pela qual se consumia o ilustre brasileiro, mas não menos relembrou à Câmara as íntimas relações que prendiam Portugal ao

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Brasil; e ouviu os seus pares apoiarem-no com tal abundância que o Presidente logo tomou a manifestação como bastante para dispensar consulta formal e fez entrar nesta sala a Joaquim Nabuco.
Volvido quase um século, apertados os laços jurídicos e de sensibilidade entre os nossos dois países, fortalecida por demonstrações nacionais, actos de simpatia e textos de lei a comunidade luso-brasileira, não nos foi mais necessário excepcionar o Regimento para V. Exa., Sr. Presidente, tomar assento e falar entre nós, porque desde há semanas é preceito votado pela Assembleia Nacional que os membros do Congresso do Brasil podem ter lugar neste hemiciclo e aqui responder a saudações que lhes sejam feitas ou falar em missão oficial.
Como sempre, o apuro do texto consagrou a elaboração do sentimento, porque já na Câmara dos Deputados do Brasil se haviam sentado portugueses, e a nossa Assembleia se havia concedido a si mesma o gosto de repetir a excepção de 1881 para acolher patrícios vossos.
Porém, hoje, a visita de V. Exa. é, pela representação da pessoa, a mais brilhante estreia que poderíamos desejar para a nossa recente regra.
Recebendo e cumprimentando V. Exa. aqui, prestamos-lhe a mais alta homenagem que está em nossas posses render, na compenetração da deferência devida ao primeiro dos representantes do povo brasileiro, mas também com o carinho naturalmente gerado no sentimento de que, como V. Exa. tão bem acaba de nos dizer, partilhamos do privilégio de mudar de terra e de continente sem deixar a Pátria!
Com esta asseveração cabe-me ainda, não por mero reconhecimento, mas por forte mandado de consciência, agradecer a vossa aceitação do convite para visitar Portugal, aqui em Lisboa e além em África.
Sei que V. Exa. tem de roubar tempo às absorventes ocupações do seu alto cargo para corresponder ao convite, formulado no desejo honestamente orgulhoso de lhe mostrar como nós outros somos, e o que somos, nos diversos territórios onde, mudando embora de continente, nunca deixamos de ser a mesma Nação.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Conhece V. Exa. os portugueses na Europa... e no Brasil; é-nos sumamente grato que queira conhecer-nos em Angola, para bem avaliar como em toda a parte somos os mesmos, na dedicação aos ideais de humanidade e de trabalho que ao longo dos séculos temos servido, com honra para o nosso povo e proveito para as terras onde lidamos.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - E só nos pesa que a vossa viagem não possa estender-se à contracosta para, em Moçambique, apreciar novas facetas da mesma tenacidade na adaptação às circunstâncias, diligência na valorização dos recursos locais e simplicidade no convívio das gentes.
Irá V. Exa. como amigo, e nada mais se pode pedir e desejar, porque, se amizade envolve boa disposição para compreender, a compreensão de V. Exa. bastará para nos assegurar de justas avaliações da nossa obra.
E estas importar-nos-ão muito por pessoa tão qualificada para levar seus juízos ao mais alto nível da opinião brasileira!
Eu creio, Sr. Presidente, que à comunidade luso-brasileira - atados como estão, com firmes nós, os seus laços intelectuais, políticos e sentimentais - só falta, para produzir todos os seus frutos, o desenvolvimento dos resultados materiais que o entendimento das nossas duas grandes nações há-de potenciar. Não vejo - e creio que em Portugal ninguém vê -, não vejo a comunidade como meio de arrastar Portugal na onda da pujança sempre maior do Brasil; vejo-a como associação de dois grandes povos, riquíssimos, um e outro, de bens morais e terrenos nas suas vastíssimas pátrias, que, ajustando-se nas acções, podem obter os melhores resultados dessa riqueza de bens.
E como creio que o modo português de estar além-mar é o que melhor pode assegurar o desenvolvimento desse enorme contributo para a comunidade - desenvolvimento na ordem e no progresso de que o Brasil fez seu próprio lema, mas Portugal ali, como por toda a parte, também sustenta -, regozijo-me ao pensar que V. Exa. irá, embora rapidamente, avaliar por seus próprios olhos o grau e o sentido da nossa ordem e do nosso progresso.
Sr. Presidente: Ouvi com muito interesse - ouviu a Assembleia Nacional- o pensamento de V. Exa. sobre as funções dos parlamentos no mundo moderno.
Guardadas inevitáveis diferenças de óptica e de lugar, posso dizer que a substância das conclusões de V. Exa. tem a minha adesão.
Estimo no mais alto grau a função legislativa, e folguei que ainda recentemente a nossa Assembleia tivesse aumentado neste campo a reserva da sua competência.
Mas, como vós, vejo o que me parece evidente e vai sendo muito reconhecido: a complexidade cada vez maior da formulação legislativa, função de crescente número de variáveis de difícil relacionamento, remetendo para os serviços mais apetrechados das administrações o estudo da maioria das regras normativas da vida comunitária, reduz inevitavelmente a participação quantitativa das assembleias políticas na sua elaboração.
Todavia, na polícia dos grandes princípios como na humanização dos preceitos correntes, creio que ainda resta às nossas câmaras papel essencial, e esta é a base da estruturação portuguesa.
Considero, com efeito, que a força da tecnicização das administrações as cerebraliza e afasta da percepção, ou apenas da aceitação, das peculiaridades das criaturas que parecem querer afeiçoar aos modelos ideais a golpes de articulados.
Os leitos de Procustes, por vezes concebidos no isolamento dos gabinetes, têm de ser ajustados pelo melhor às diversíssimas craveira dos cidadãos, e as assembleias legislativas, microcosmos representativos e directamente observadores das variedades das gentes, são os órgãos capazes de introduzirem na rigidez do óptimo conceptual a moderação politicamente boa.
Convenho, sem embargo, em que a função fiscalizadora aumenta de utilidade para o equilíbrio do bem comum. E partilho convosco da admissão de que a utilidade do Poder Legislativo pode frequentemente ser avaliada em função do que evita tanto como do que faz.

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São estes, aliás, conceitos informadores da Constituição Portuguesa, que atribui à Assembleia Nacional, logo depois da de fazer e fiscalizar leis, as competências de apreciar os actos do Governo ou da Administração e de lhes tomar as contas.
Passaram, porventura de vez, e sem deixar especiais saudades, os tempos de as assembleias legislativas, reagindo aos absolutismos abatidos, se quererem únicas depositárias da soberania; e eu pergunto-me se não estará também a fechar a ronda das experiências sucessivas de sistemas onde os homens, desde há dois séculos, teimam em procurar a perfeição que logo inquinam das suas imperfeições individuais.
Por isto, creio que, mais do que na formulação política de novas regras de convivência - se ainda há novidades grandes a conceber -, será no equilíbrio dinâmico dos poderes aplicados às diversas funções do Estado que havemos de procurar as condições de criação de ambientes estáveis, e quanto possíveis livres, para o melhor florescimento das personalidades dos cidadãos, que é, ou deve ser, o escopo último da política.
Sr. Presidente: Alonguei-me, arrastado pelo interesse das declarações de V. Exa. É tempo de concluir, e fá-lo-ei na simplicidade forte das afirmações sinceras.
Desejo a V. Exa., pessoalmente, que o resto desta para nós tão curta visita lhe corra com pleno agrado, e possa enriquecer a vossa experiência com algum conhecimento novo e útil; e peço-lhe, em nome da Assembleia Nacional de Portugal, que leve aos Deputados do Brasil o nosso abraço de irmãos e de pares na dedicação ao bem dos nossos povos!
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem! Muito bem!

Pausa.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vamos passar à

Ordem do dia

Início da discussão na generalidade da proposta de lei de protecção da intimidade da vida privada.
Tem a palavra, para apresentar o relatório da nossa Comissão de Política e Administração Geral e Local, o Sr. Deputado João Manuel Alves.

O Sr. João Manuel Alves: - Sr. Presidente: A Comissão de Política e Administração Geral e Local, solicitada por V. Exa. para se pronunciar sobre a proposta de lei n.°27/X - Protecção da intimidade da vida privada-, é do parecer seguinte:
I) Por tudo quanto vem referido no relatório preliminar da proposta e é doutamente desenvolvido pela Câmara Corporativa - e que, por isso, se escusa de repetir -, concluiu a Comissão também pela vantagem e oportunidade dos novos princípios legais, cuja definição nos é proposta.
Mas não se deixa de encarecer a atenção e preocupação do Governo em dar resposta, talvez até com uma certa antecipação para o nosso país, à exigência que hoje, por toda a parte, se faz da defesa da intimidade da vida privada, seriamente ameaçada na sociedade técnica dos nossos dias.
E é de relembrar que, se é certo que os juristas se não cansam de modernamente afirmar o direito à intimidade como um dos direitos mais sensíveis do homem, sem o qual a liberdade individual é fortemente limitada na sua expressão, a verdade é que, na maior parte dos países, no plano legislativo, a afirmação de tal direito, pelo menos com tutela penal, ou ainda não foi feita ou não passou de uma fase balbuciante.
Deste modo, a proposta que vai ser submetida à nossa apreciação e votação coloca-nos à frente de muitos países nesta matéria. De notar, por outro lado, como acentua a Câmara Corporativa, que no plano da delimitação objectiva das condutas previstas a proposta é, em termos de direito comparado, das mais amplas e evoluídas.
II) Quanto à sua economia, a proposta sugere à Comissão, porém, algumas ligeiras observações:
1) A necessidade de prover à tutela da intimidade da vida privada, pela via do direito criminal e em relação a determinadas acções concretas, violadoras de tal bem jurídico, resulta do facto de a técnica haver posto à disposição de quem quer que seja instrumentos extraordinariamente aperfeiçoados e aptos para essas acções.
Interceptar, escutar e divulgar conversas, observar pessoas às ocultas, sempre foi possível com o simples uso dos sentidos e de algum engenho, sem que se justificasse, na maior parte dos casos, outra censura, além da censura moral.
De resto - e isso importa evidenciar -, sempre as pessoas tinham maneira de se defender, pelos seus próprios meios, da intromissão de indiscretos.
Só que o progresso científico e técnico veio reduzir a nada tais defesas. Já não basta falar baixo ou isolar-se ou fechar-se o indivíduo para não ser escutado ou observado. Instrumentos aperfeiçoadíssimos vencem as distâncias e as paredes, captam mesmo o simples murmúrio e registam tudo o que se julgava resguardado de estranhos.
Eis por que, nalguns países, esses actos só sejam ilícitos quando praticados com auxílio de tais instrumentos.
Ora, porque na economia da proposta o conteúdo da ilicitude é bastante amplo e abrange também as acções simples, isto é, aquelas em que o agente não utiliza qualquer instrumento, parece impor-se, pelas razões expostas, uma diferenciação no seu tratamento penal.
Daí que a comissão sugira, na linha da Câmara Corporativa, se preveja uma punição mais grave para os actos praticados com o auxílio daqueles instrumentos.
2) Na sequência do exposto, importa acentuar mais uma vez que, na realidade, o que veio a pôr em crise a intimidade da vida privada e dar relevância à tutela do respectivo direito foi o aparecimento de tais instrumentos.
Não se crê, porém, que, para refrear o seu uso, baste a simples tutela penal; nem os juízos de censurabilidade, mesmo que juridicamente relevantes, nem a representação das penas cominadas, bastarão, no maior número de casos, para dissuadir da sua utilização.
Na verdade, a perfeição desses instrumentos, tornando muito difícil a sua percepção, há-de afoitar ao

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seu uso, na previsão - quase sempre certa - de que o facto não será conhecido e ficará impune.
Esta a razão por que, na legislação de alguns países, se condiciona o fabrico, a importação e a simples detenção de tais instrumentos, em termos de, nalguns casos, se proibirem essas actividades.
Pelos mesmos motivos, entende a comissão que tal matéria deverá ser também objecto de regulamentação entre nós, para que se possam atingir eficazmente as intenções da proposta.
Dada, porém, a pormenorização que tal regulamentação exige e até a natureza técnica da matéria, sugere-se o aditamento de uma base em que se cometa ao Governo essa tarefa.
III) Numa apreciação da especialidade, também a comissão concorda genericamente com a formulação das bases da proposta.
Todavia, no que se refere à definição dos diversos elementos que entram na descrição da ilicitude dos comportamentos que se quer proibir - problema que se põe sobretudo em relação às bases I e III - já se sucitam alguns reparos.
Recorde-se que no projecto que foi submetido à Câmara Corporativa formulou a base I nos seguintes termos: "É punido [...] aquele que, com o propósito de devassar a vida privada de outrem [...] utilize qualquer conversa particular."
A proposta, na esteira da Câmara, substituiu tal formulação por estoutra: "Será punido aquele que devassando a intimidade da vida privada de outrem, utilize [...] qualquer conversa particular."
Parecem formulações idênticas, mas, na realidade, numa perspectiva jurídico-criminal, têm conteúdo substancialmente diferenciado.
Os argumentos invocados pela Câmara Corporativa (n.° 18 do parecer), embora de ponderar, não serão de molde a invalidar outros que se podem produzir em favor da primitiva redacção do projecto e que a comissão julga mais relevantes.
Estes últimos projectam-se quer num plano de pura técnica jurídica, quer num plano dê política legislativa.
A vocação específica da Assembleia é, naturalmente, para acentuar os que se situam no segundo desses planos.
Por isso, só muito sumariamente, em linguagem despida de preocupações dogmático-jurídicas e na medida em que os resultados dessa apreciação se projectam no outro, é que aqui se aduzirão alguns argumentos em favor da solução que a comissão julga preferível e se situam no primeiro daqueles planos.
Desde logo, parece que a formulação aconselhada pela Câmara acarreta sérias dificuldades ao intérprete e, por consequência, ao julgador, na medida em que é possível, com a mesma lógica interpretativa, assumir três posições.
Numa primeira (e essa terá sido a da Câmara Corporativa) seria punida toda e qualquer actividade consistente na utilização, transmissão, etc., de qualquer conversa particular, independentemente de se verificar ou não efectiva devassa da intimidade privada.
Uma segunda interpretação seria a de que aquela actividade só seria punida se tal devassa (da intimidade da vida privada) se verificasse, independente do agente ter querido ou não esse resultado.
Possível é ainda uma terceira interpretação, segundo a qual o ilícito só ficaria preenchido quando, para além da verificação daquele resultado, o agente o representou e o quis.
E, para maior dificuldade, acresce que cada uma das referidas interpretações é susceptível de conduzir a situações concretas mais ou menos iníquas.
Assim:
Perante a primeira, poderiam ser elevados à categoria de ilícitos certos comportamentos que talvez nem censura moral possam merecer. Seja, por exemplo, a simples escuta por meios naturais de conversa particular sem conteúdo privado.
Pela segunda, ao contrário, poderiam ficar de fora, pelo menos com categoria de crime consumado, certos comportamentos altamente censuráveis. Seria o caso, por exemplo, de escuta intencional, com instrumentos, de conversa particular de que não resultasse um efectivo devassamento da vida privada.
Da terceira interpretação, por seu lado, poderia resultar que certos comportamentos, quando consumados, teriam a categoria de crime, mas já não seria punida como tentativa, segundo os princípios gerais, a execução começada e incompleta dos actos que os deviam produzir, apesar de a proposta prever á sua punição.
Exemplo deste caso seria o de escuta de conversa particular sem o propósito imediato de devassar a vida privada, mas em que o agente representou esse resultado, e se decidiu, apesar dele.
Do que se acaba de expor resulta que a formulação da base I, tal como foi propugnada pela Câmara Corporativa, daria aso a um incontrolável casuísmo das decisões, e isso bastaria para o legislador a dever arredar, em nome da segurança do direito.
Crê a comissão que uma fórmula idêntica à usada no projecto do Governo satisfaz, em maior grau, esse imperativo.
Por outro lado - e este será o segundo dos planos de valoração há pouco enunciados -, julga-se que as intenções que presidiram à elaboração do projecto, nesta matéria, são absolutamente pertinentes, pois tudo aconselha "prudência no âmbito da incriminação de ofensas a um bem jurídico de expressão positiva tão recente".
Na verdade, pese embora a existência de alguma literatura e uma acentuada tendência legislativa acerca da tutela da intimidade da vida privada, ainda se não passou de fase hesitante quando se pretende definir, numa perspectiva de conceitualização, os bens jurídicos postos em causa.
Não existem, assim, elaborados de forma definitiva pela doutrina ou pela jurisprudência, conceitos de que o legislador se possa, com segurança, apropriar.
Esta consideração e ainda a de que as experiências legislativas nesta matéria e no âmbito do direito criminal são recentes, se não até raras, aconselham a que se tomem as maiores cautelas na definição dos tipos legais de crimes.
De ter em conta são ainda as possíveis colisões do direito à intimidade da vida privada com outros direitos igualmente inerentes à pessoa humana.
Por último, há a considerar que, para além do círculo de comportamento em que se verifique o uso de instrumentos especialmente adequados à sua realização, outros comportamentos, desde sempre possíveis sem que pusessem em crise os bens jurídicos agora tutelados, passarão a ficar sob a alçada da lei penal.

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Parece, pois, ser necessário restringir o círculo desses comportamentos, sob pena de se criarem escusadamente tensões sociais graves ou, em alternativa, a falência da própria dignidade da lei.
Por tudo quanto foi dito, entende a comissão como aconselhável que na definição da ilicitude de tais comportamentos entre o elemento subjectivo, em moldes semelhantes aos do projecto inicial do Governo.
No mais, ou seja na exigência, como seu elemento constitutivo, de um requisito objectivo de ilicitude, sem prejuízo da eficácia normal das causas gerais da justificação, concorda com as razões da Câmara Corporativa.
O que se deixa dito para a base I, vale mutatis mutandis, para a base III.
Quanto à base II, na lógica da posição assumida pela comissão relativamente à base I, parece não ser de exigir, na configuração da ilicitude do tipo legal aí descrito, qualquer elemento subjectivo.
Trata-se de um crime de perigo, que se consuma, pois, independentemente do resultado, não devendo, por isso, entrar na sua descrição qualquer consideração de natureza finalista.
IV) Nestes termos, a comissão entende que a proposta de lei em apreço é oportuna e são vantajosos os princípios legais nela definidos, sem embargo de dever proceder-se à reformulação de algumas das suas bases, cujas alterações oportunamente proporá.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão.
Amanhã haverá sessão à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação da discussão na generalidade da proposta de lei n.° 27/X.
Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Manuel Valente Sanches.
Rogério Noel Peres Claro.
Rui Pontífice Sousa.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Albano Vaz Pinto Alves.
Alexandre José Linhares Furtado.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Eugénio Magro Ivo.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando David Laima.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
Jorge Augusto Correia.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Dias de Araújo Correia.
José de Mira Nunes Mexia.
José da Silva.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luís Maria Teixeira Pinto.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Marques da Silva Soares.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Pedro Baessa.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Teófilo Lopes Frazão.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.

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