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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

DIÁRIO DAS SESSÕES

N.º 238 ANO DE 1973 17 DE MARÇO

ASSEMBLEIA NACIONAL

X LEGISLATURA

SESSÃO N.º 238, EM 16 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto

Secretários: Exmos. Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia - Foram aprovados, com rectificações, os n.ºs 235 e 236 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.

O Sr. Deputado David Laima apresentou um requerimento.
O Sr. Deputado Montanha Pinto lembrou a eclosão do terrorismo em Angola.
O Sr. Deputado Eleutério de Aguiar teceu algumas considerações de agradecimento a propósito da revisão da política de transportes aéreos da ilha da Madeira e de assistência médica na ilha de Porto Santo.
O Sr. Deputado Bento Levy lembrou, a propósito do recente aumento dos funcionários, a necessidade de idêntico benefício não demorar em ser extensivo às províncias ultramarinas, em especial a Cabo Verde.
O Sr. Deputado Oliveira Dias deu conta de algumas discordâncias sobre matérias fiscais.
O Sr. Presidente informou ter recebido uma proposta de lei de terras do ultramar e respectivo parecer da Câmara Corporativa, que irão ser publicados em suplemento ao Diário das Sessões.

Ordem do dia. - Terminou o debate do aviso prévio sobre o toxicomania.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Alberto de Alarcão, Agostinho Cardoso, Ávila de Azevedo e Delfino Ribeiro.
Foi aprovada uma moção.
O Sr. Presidente, depois de convocar a Comissão do Ultramar, informou contar receber na próxima semana o parecer sobre a proposta de lei de reforma do sistema educativo e encerrou a sessão às 17 horas e 50 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Lopes Quadrado.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando David Laima.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Fernando de Sá Viana Rebelo.

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Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha
José Maria de Castro Salazar.
José de Mira Nunes Mexia.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Júlio Dias das Neves.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luís António de Oliveira Ramos.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel Martins da Cruz.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
Manuel Valente Sanches.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Nicolau Martins Nunes.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Rogério Noel Peres Claro.
Rui de Moura Ramos.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 59 Srs. Deputados, número suficiente para a Assembleia funcionar em período de antes da ordem do dia. Está aberta a sessão.
Eram 16 horas e 5 minutos.

O Sr. Presidente: - Estão em reclamação os n.ºs 235 e 236 do Diário das Sessões.

O Sr. Roboredo e Silva: - Sr. Presidente: Pretendo apresentar uma reclamação ao n.° 235 do Diário das Sessões:
Na p. 4735, col. 1.ª, l. 33, onde se lê: "fazendas", deve ler-se: "fazenda".

Neste caso particular, figurando a palavra no plural alterava completamente o sentido que se pretendia dar.
Muito obrigado.

O Sr. Castro Salazar: - Sr. Presidente: Peço para ser feita a seguinte rectificação ao n.° 235 do Diário das Sessões:
Na p. 4744, col. 2.ª, l. 10 e 11, onde se lê: "uma síndroma neurasténica", deve ler-se: "um síndroma neurasténico".

Muito obrigado.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Sr. Presidente: Solicito a V. Exa. se digne mandar proceder à seguinte rectificação no n.° 236 do Diário das Sessões:
Na p. 4764, col. 2.ª, l. 30, onde se lê: "pois V. Exa.", deve ler-se: "pois S. Exa.".

Muito obrigado.

O Sr. Cancela de Abreu: - Sr. Presidente: Agradecia que V. Exa. mandasse proceder às seguintes rectificações no n.° 236 do Diário das Sessões:
Na p. 4763, col. 1.ª, 1. 4, onde está: "se outros houvesse", deve ler-se: "se outros não houvesse";
Na p. 4764, col. 2.ª, l. 8, a seguir à vírgula e antes da palavra "sabemos", escrever "pois";
Na mesma página e coluna, l. 12, a seguir a "nela", acrescentar "e";
Na p. 4765, col. 2.ª, l. 14, onde está: "que se deviam", deverá ler-se: "que não se deviam";
Na mesma página e coluna, l. 17, em vez de "nesse caso", ler "nesses casos".

Muito obrigado.

O Sr. Montanha Pinto: - Sr. Presidente: Pedia a V. Exa. para mandar proceder à seguinte rectificação ao n.° 236 do Diário das Sessões:
Na p. 4757, col. 2.ª, l. 60, onde se lê: "mínimos", deverá ler-se: "máximos".

Muito obrigado.

O Sr. Presidente: - Continuam em reclamação os n.ºs 235 e 236 do Diário das Sessões.

Pausa.

Se mais nenhum de VV. Exas. tem reclamações a apresentar sobre estes Diários das Sessões, considerá-los-ei aprovados com as rectificações já apresentadas.

Pausa.

Estão aprovados.
Vai ser lido o expediente.

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Do Sr. Isaac realçando o interesse de um requerimento do Sr. Deputado Augusto Correia.
Do pessoal administrativo e auxiliar do Liceu de Guimarães aplaudindo a intervenção do Sr. Deputado Carvalho Conceição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra para um requerimento o Sr. Deputado David Laima.

O Sr. David Laima: - Sr. Presidente: Pedi a palavra para enviar para a Mesa o seguinte

Requerimento

Ao abrigo das disposições regimentais, requeiro que, pelo Ministério do Ultramar, me sejam fa-

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cultadas as normas de fixação dos valores das cauções a prestar ao Governo-Geral de Angola pelas entidades a quem são concedidas autorizações para a instalação de novas indústrias no Estado de Angola.

O Sr. Montanha Pinto: - Sr. Presidente: Há doze anos que em Angola se luta em defesa do território nacional.
A data foi evocada pelo Sr. Deputado Sá Viana Rebelo e eu, ao associar-me e apoiar inteiramente a intervenção de S. Exa., faço-o por não poder calar o testemunho de quem vive num distrito onde a subversão violenta é ainda uma constante do dia a dia.
As minhas palavras de hoje serão apenas de homenagem, pois, ao recordar a eclosão de tão grande tragédia, sei que outras seriam insuficientes e não conseguiriam traduzir o sentimento que em nome da população de Angola me cumpriria exprimir, por dificuldade em acrescentar algo de novo àquelas já aqui pronunciadas, em mensagem que, nos anos anteriores, dirigi a esta ilustre Assembleia.
Sabemos bem que esta guerra que nos impuseram tem sido uma luta global em que todos, metropolitanos e ultramarinos, estamos decidida e conscientemente empenhados. E sendo certo que em Angola os primeiros golpes foram enfrentados e repelidos por quem, naquela província, desde há muito tempo lhe estava dedicando o melhor do seu esforço e trabalho, também é certo que, de então para cá, a maior parte do esforço de guerra, desenvolvido pelas forças armadas, se deve à generosa mocidade do Portugal europeu que, no ultramar, se tem batido valorosamente, não regateando sacrifícios que, infelizmente, tantas e tantas vezes têm ido até ao limite da própria vida.
Eis a razão do preito de homenagem e agradecimento que presto às nossas forças armadas e a todos os magníficos soldados que, desde 1961, têm passado por Angola no cumprimento do seu dever.
Homenagem da mais reconhecida gratidão e respeito pela memória dos que ali caíram para sempre, confirmando a sua própria coragem e deixando uma áurea de heroicidade que não mais se poderá olvidar. Daí também a razão do carinho e solidariedade espiritual que une a população de Angola aos pais, famílias e amigos desses combatentes, cujas reacções de apreensão e ansiedade, enquanto dura o período da prestação do serviço militar, são perfeita e justamente compreensíveis.
Permito-me, no entanto, afirmar que esses sacrifícios não são feitos em vão, pois Angola será cada vez mais portuguesa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E porque a data que se assinala não só convida a um sentido recolhimento, para lembrar as vítimas de tão traiçoeiro ataque, mas impõe uma meditação sobre o futuro, aqui deixo, para terminar, um apontamento sobre uma questão que reputo do mais válido alcance e de relevante interesse nacional. Não basta que os nossos militares continuem galhardamente a luta armada ou que os serviços de segurança persigam e punam, implacavelmente, os que lançam bombas, cá ou lá.

Vozes: - Muito bem!

O Orador:- É necessário, direi mesmo imperioso, tentar canalizar para o ultramar, para ali se fixar, o maior número possível de metropolitanos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Quanto nos preocupa o saber que por Angola passaram, nestes doze anos, muitas centenas de milhares de jovens que constituem a parte mais valiosa da Nação e temos assistido à sua partida, quando ali tanto teriam para fazer, sabendo de antemão que esses jovens, cheios de qualidades e abnegação, vão enriquecer outros países em vez de aumentarem a sua própria casa.

O Sr. Roboredo e Silva: - Muito bem!

O Orador: - Não poderemos continuar a esquecer que as correntes migratórias só se conduzem por melhoria acentuada de nível de vida ou pela aliciante garantia de uma situação material que preencha as suas justas ambições. Julgo poder afirmar que a riqueza do ultramar pode garantir o sucesso de tudo quanto se faça nesse sentido, não com leis, mas com medidas de ordem prática que se concretizem em realizações onde todos colham os justos benefícios.
O povo lusitano sempre demonstrou destemor e capacidade de adaptação a novos ambientes. O que nos permite concluir ser viável uma fixação de muitos mais portugueses em terras de além-mar. Ali se aguardam ardentemente, para ter lugar uma obra de povoamento que consideramos imprescindível e a mais eficaz para consolidar o esforço das forças armadas. E assim, inevitavelmente, aquelas terras se tornarão cada vez mais portuguesas.
Temos de consegui-lo, fortalecendo o ultramar, serviremos melhor a Pátria.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Eleutério de Aguiar: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A circunstância de apenas pretender referir-me a dois assuntos já versados na minha intervenção de 27 de Fevereiro, recomenda a maior brevidade no apontamento que hoje trago, por reconhecer-lhe a indispensável oportunidade, ao conhecimento de V. Exas.
Refiro-me, em primeiro lugar, à necessidade de revisão da política dos "transportes aéreos, bem como às limitações do Aeroporto da Madeira", incapaz de responder às exigências da capacidade hoteleira, para que a ilha se vem estruturando, tendo em consideração que a rentabilidade dos investimentos já efectuados ou previstos, à volta de cinco milhões de contos até 1975, só poderá ser devidamente garantida se, nessa data, o número de turistas atingir os 500 milhares.
Tendo-o hierarquizado como um dos problemas imediatos da Madeira, que bem justificariam a atenção do Conselho de Ministros para os Assuntos Económicos, é-me muito grato informar a Câmara de que, por despacho do Secretário de Estado das Comunicações e Transportes de 2 do corrente foi criado um grupo de trabalho, constituído por representantes

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dos sectores público e privado, com o mandato de propor ao Governo, no prazo máximo de sessenta dias:

a)O programa dos estudos a efectuar, segundo um plano coordenado de conjunto, com vista a definir as perspectivas de desenvolvimento turístico do arquipélago da Madeira e as implicações daí decorrentes sobre a necessária expansão dos transportes aéreos regulares e ocasionais e o equipamento aeronáutico disponível;
b)O papel a desempenhar pelas entidades públicas e privadas que convenha fazer intervir na programação e acompanhamento dos trabalhos;
c)A distribuição por essas entidades dos encargos financeiros correspondentes; e, finalmente
d)A escolha dos consultores idóneos e experientes a que se julgue necessário recorrer.

Verifica-se, assim, que o Governo correspondeu, como impunham os interesses da Madeira, aos anseios expressos por diversas entidades, sendo de evidenciar, nesta circunstância, o prazo relativamente de urgência determinado ao grupo de trabalho para conclusão dos estudos indispensáveis à prática das medidas concretas.
Os Madeirenses, preocupados como estão com o seu efectivo progresso económico e social, manifestam-se deveras agradecidos ao Governo da Nação por mais esta prova de interesse pela solução dos seus problemas instantes.
Ainda na mesma intervenção foi dito que a ilha de Porto Santo, com os seus 4000 habitantes, vira sobremaneira agravadas as inúmeras carências existentes no sector da assistência médica em consequência da hospitalização do único clínico privativo. Com imensa satisfação, aqui manifesto o meu apreço pela forma como em tão difícil emergência a Junta Geral e a Caixa de Previdência e Abono de Família do Distrito do Funchal providenciaram, dando-se as mãos, no sentido de, rapidamente, assegurarem a prestação de serviços médicos e de enfermagem à população, tranferindo-os da Madeira.
Eis, Sr. Presidente e Srs. Deputados, uma decisão merecedora de aplauso, um exemplo de actuação que se recomenda para ser seguido noutras ilhas geográficas ou só humanas, que ainda abundam pelo País, sem a imprescindível cobertura sanitária.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Bento Levy: - Sr. Presidente: Não se pode chamar uma intervenção ao que vou dizer, pois trata-se apenas de um apontamento ou de uma "nota de lembrança" às entidades que venham a resolver o assunto.
Refiro-me aos vencimentos dos funcionários recentemente aumentados na metrópole.
O Decreto-Lei n.° 76/73, que estabelece esse aumento, prevê no seu artigo 6.°, n.° 2, que dependerá de diploma especial a atribuição do aumento ao pessoal civil e militar das províncias ultramarinas.
O assunto está certamente em estudo, mas preocupa-me o que se irá passar com Cabo Verde.
É certo e sabido que qualquer diploma dessa natureza traz sempre um "paragrafozinho" que excepciona os funcionários da província dos benefícios estabelecidos para as outras. Há sempre um "enquanto subsistirem as actuais condições de Cabo Verde", etc., a querer dizer que os servidores da província têm de esperar por melhores dias. Dias que demoram às vezes anos, numa expectativa angustiante e depressiva.
Foi assim que, por exemplo, o Decreto n.° 40 709, de 1956, que estabeleceu um vencimento complementar para todo o ultramar, sendo os de Cabo Verde bastante baixos, só foi mandado aplicar à província em Janeiro de 1967 pelo Diploma Legislativo n.° 1641, de 15 de Março desse ano de 1967.
Temos de concordar que por causa do tal parágrafo de mau agouro foi esperar tempo de mais - quase tanto quanto Jacob serviu Labão, para finalmente lhe levar a bela serrana...
Com o último aumento fixado pelo Decreto n.° 268/70, vamos lá que não esperou muito pelo da base, mas o complementar - esse - só foi reajustado para Janeiro de 1971 e, como sempre, em escalões baixos e não sem que alguns funcionários da mesma categoria nas outras províncias percebam um complementar por vezes substancialmente mais elevado que os fixados em Cabo Verde. E só me refiro às províncias do governo simples, porque em relação às outras nem vale a pena estabelecer comparações.
Argumenta-se com a barateza do custo de vida, e já demonstrei por mais de uma vez que não é exacta a afirmação.
Só quem lá vive sabe quanto custa o passadio dos que por lá trabalham, servindo com o mesmo entusiasmo e com idêntico afinco ao daqueles que noutras latitudes também se esforçam pelo progresso da Nação.
Os que por lá passam cometem graves erros, estribando-se em informações cujas causas desconhecem.
É assim que um jornalista nos vem dizer, em Lisboa, que o leite custa dez tostões o litro nas ilhas.
É verdade, custa efectivamente dez tostões o litro, mas é para o trabalhador assistido pelo Estado indirectamente por causa da seca.
A razão é muito simples e o Sr. Governador de Cabo Verde, numa entrevista recente na televisão, explicou o porquê desse preço. É que o Governo importa toneladas de leite em pó que lhe fica a 20$ o quilo e vende-o a 10$ aos atingidos pela seca. E como um quilo de leite em pó dá dez litros depois de liquefeito, fácil é concluir a razão dos dez tostões por litro.
Mas isso, insisto, é uma medida louvável do Governo que abrange apenas e somente o rural. O funcionário, esse, tem de pagar por quilo 57$40, e se aparecer o de cabra ou de vaca não tem outro remédio senão pagá-lo a 8 e 10 escudos por litro - por litro, não por quilo.
E aqui está como se cria a fantasia da vida barata em Cabo Verde. O jornalista, que, aliás, fez uma reportagem objectiva, contactou com os trabalhadores das frentes de trabalho sem entrar no fundo do problema, e o que diz quanto ao leite barato repe-

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te-o acerca de outros produtos que também são amparo do Governo, como a carne de vaca a 15$ o quilo, que provocou uma verdadeira avalancha de donas de casa a perguntarem para o jornal da terra onde é que havia disso, pois em S. Vicente um quilo de carne custa, preço tabelado, 60$.
São só quatro vezes mais... e se o preço não é superior deve-se à falta de pasto provocada pela seca e que obriga a um abate de animais fora do normal, para que os donos salvem o que ainda é possível salvar.
Mas, para além dos produtos alimentares, há que contar com os medicamentos, que custam o dobro e o triplo dos preços praticados na metrópole, onde a sua carestia é tão notória que já foi objecto de uma intervenção nesta Câmara.
E as rendas de casa? E o calçado? E o vestuário? E a educação dos filhos?
Sr. Presidente, poderia citar dezenas e dezenas de exemplos a demonstrar a falta de exactidão da barateza da vida em Cabo Verde, onde até para a gente se lavar tem de pensar no fim do mês, como no fim do mês tem de pensar se quiser ler, trabalhar ou ouvir telefonia à noite, dado o custo elevadíssimo da água e da energia eléctrica, que só por si consomem umas centenas de escudos dos parcos vencimentos do funcionalismo.
Eu sei que Cabo Verde está em crise por falta de chuvas, e nunca é de mais salientar a ajuda substancial da metrópole para evitar situações catastróficas.
Mas é preciso não esquecer que a população não é composta só de rurais, e certo é também que os subsídios não são malbaratados. São aplicados em obras definitivas, que se não fizéssemos agora teríamos de executar em futuro próximo, com mão-de-obra mais cata e materiais de preço mais elevado.
Aliás, o funcionalismo de Cabo Verde tem de suportar um custo de vida cada vez mais elevado. As suas razões são as mesmas que levaram o Governo a promulgar o Decreto-Lei n.° 76/73, e não me parece curial colocá-los em situação de manifesta desigualdade com os servidores dos outros territórios.
O dinheiro aparece. É uma questão de boa vontade. Para a fixação do vencimento base estabelecido pelo Decreto n.° 268/70 ele apareceu, não obstante as dificuldades que se queriam opor. O orçamento ordinário de Cabo Verde tem sempre saldo, e não podemos pensar em pagar dívidas enquanto não explorarmos todas as suas potencialidades, que ainda são algumas, para fazer progredir a província em termos de poder pagar os seus débitos. Antes disso, não pode ser.
Sr. Presidente: Eu tenho a certeza de que Cabo Verde está nas preocupações do Sr. Ministro do Ultramar, mas não posso deixar de fazer a S. Exa. um apelo no sentido de não deixar complexar o funcionalismo de Cabo Verde, permitindo que fique em situação de inferioridade em relação aos das outras províncias.

O Sr. Ávila de Azevedo: - Muito bem!

O Orador: - Espero que o tal parágrafo calisto não apareça desta vez no diploma a aplicar ao ultramar... Aliás, tais diferenciações provocam a fuga dos próprios naturais em carreiras de acesso nas outras províncias e que tudo fazem para não serem promovidos se pressentirem que vão parar a Cabo Verde. A promoção é, para eles, um verdadeiro castigo.
É preciso, de resto, não criarmos situações incompatíveis com a dignidade do funcionário.
É necessário, enfim, evitar aos que lá estão o drama doloroso de querer ficar e ter de partir!...
Tenho dito!

O Sr. Oliveira Dias: - Antes de findar o mandato que me trouxe a esta Casa, sinto-me no dever de aqui fazer eco de diversas manifestações de discordância que me têm chegado, em pontos que, embora de pormenor, não deixam de revestir muita importância, sendo todos de matéria fiscal.
O primeiro desses pontos respeita ao imposto de transacções.
O Código do Imposto de Transacções estipula, no seu artigo 105.°, que:
A falta ou entrega nos cofres do Estado, ou a entrega fora dos prazos estabelecidos, de todo ou parte do imposto devido, será punida com multa igual à importância do imposto em falta nos casos de mera negligência; e com multa variável entre o dobro e o quádruplo do imposto, quando a infracção for cometida dolosamente.
É certo que o artigo 127.° do mesmo Código estabelece que, verificando-se pagamento espontâneo, será a multa reduzida a 50 por cento e, nos casos de mera negligência, será reduzida, ainda, para 25 por cento se a participação do facto for feita até quinze dias depois do termo do prazo para pagamento.
Isto significa que no domínio do Código do Imposto de Transacções o atraso de uma hora que seja no pagamento, atraso esse que pode dever-se ao descuido de um empregado ou a qualquer caso fortuito ou de força maior, é logo punido com a multa de, pelo menos, 25 por cento do montante do imposto, o que equivalerá, em muitos casos, a dezenas ou mesmo a centenas de contos. E se tiverem decorrido quinze dias sobre o indicado prazo de pagamento e não se verificando o pagamento espontâneo, a multa ascenderá a 100 por cento.
Note-se que não estou aqui a defender os casos de infracção dolosa, pois nesses bem se justifica que a lei use de todo o rigor. Refiro-me à mera negligência, procurando demonstrar a incongruência do regime vigente.
Efectivamente, se confrontarmos este regime de sanções com o dos impostos que incidem sobre rendimentos, casos, por exemplo, da contribuição predial e contribuição industrial, verificamos que nestes a falta de pagamento origina a incidência de juros de mora de 1 por cento ao mês (Decreto-Lei n.° 49 168, de 5 de Agosto de 1969) e que, decorridos sessenta dias, haverá procedimento executivo.
A diferença de tratamento legal é, assim, notória, mas poderá objectar-se que são impostos de natureza diferente, pois que, em matéria de imposto de transacções, ocorre aquilo a que se chama a retenção na fonte pelo contribuinte, que deverá depositar o que, presumivelmente, recebeu no prazo estipulado na lei.
É o que sucede, também, no domínio do imposto profissional, onde o regime de penalidades pela falta de entrega das importâncias deduzidas no prazo legal

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é igualmente rigoroso, sendo a multa igual à importância em dívida, reduzindo-se a metade em caso de pagamento voluntário.
Outro caso análogo é o do imposto de capitais, secção B, ou seja o imposto que incide, por exemplo, sobre lucros de sócios de sociedades comerciais e juros de suprimentos.
Também aqui o imposto é retido na fonte, mas a falta de pagamento, quando sanada nos dez dias imediatos ao termo do prazo, é punida apenas com a multa de 100$ a 10 000$, como estipula o artigo 75.° do Código do Imposto de Capitais.
Conclui-se, portanto, que também no domínio dos impostos, cuja arrecadação se faz por retenção da fonte, se verificam discrepâncias no regime de penalidades a aplicar por atraso no pagamento.
Ora, de entre estes, se há situação que mereça tratamento mais favorável, essa é seguramente a das entidades sujeitas ao pagamento do imposto de transacções. Recai este encargo sobre os grossistas, ou seja, em muitos casos, sobre as próprias empresas produtoras. Ora, todos nós sabemos que, sendo os grossistas ou armazenistas as entidades encarregadas de debitar aos retalhistas o montante do imposto, só o vêm a receber, em muitos casos, um ano mais tarde, e, muitas vezes, depois. Isto quando não acontece que não chegam a receber os seus débitos, não podendo, porém, faltar com as importâncias correspondentes ao imposto no dia exacto, sob pena de terem de suportar os pesados encargos adicionais que
Todos estamos de acordo em que é preciso ajudar a indústria nacional a progredir para que mais se acelere o nosso processo de desenvolvimento. Mas para que tal se verifique é necessário não sobrecarregarmos os circuitos de que ela depende, ou ela própria, com disposições discriminatórias do tipo da que mencionei.
Por isso, solicito ao Governo a revisão do regime de multas previsto no Código do Imposto de Transacções, de modo que a redacção do § 1.° do artigo 127.° seja substituída por outra semelhante à do artigo 75.° do Código do Imposto de Capitais, embora se condicione que a importância da multa nunca seja inferior, por exemplo, a 2 por cento do imposto, para assim impedir o contribuinte de tirar partido financeiro da mora de entrega e que tal faculdade seja extensiva a todo o mês seguinte ao último dia do prazo da entrega, e não só aos quinze dias imediatos.
O segundo dos pontos que desejaria tratar respeita ao imposto do selo. Tal como está redigido, o artigo 141 da Tabela Geral do Imposto do Selo obriga a que sejam seladas, como se de recibos se tratasse, todas as notas e avisos de crédito.
Ficam, assim, compreendidas nesta obrigação as notas de crédito emitidas por motivo de devolução de quaisquer mercadorias, o que não se afigura justo.
Com efeito, o artigo 13.° do Decreto-Lei n.° 44 083, de 12 de Dezembro de 1961, que introduziu alterações no Regulamento e Tabela Geral do Imposto do Selo, dispõe:
[...] É obrigatória a passagem de recibo no momento do pagamento do preço de qualquer transação ou serviço prestado, independentemente do meio de pagamento utilizado, quando a sua importância não for inferior a 200$00.
Parece, assim, evidente que as notas de crédito só devem ser tratadas como recibos, para efeitos da Lei do Selo, quando se refiram ao pagamento de qualquer transacção ou serviço prestado ou, ainda, quando envolvam a desobrigação de valores, dinheiros ou objectos.
Compreende-se facilmente esta equivalência de "recibos" com "notas de crédito", para evitar a fácil evasão do imposto do selo que se conseguiria classificando como notas de crédito documentos que são verdadeiros recibos.
Já não se compreende, porém, que para evitar evasões sejam tratadas como recibos as notas de crédito que se referem à devolução de mercadorias.
Nos termos do Código Comercial (artigos 470.° e 471.°), é concedida ao comprador a faculdade de devolver, dentro de certo prazo, a mercadoria que não satisfaça as condições estipuladas.
Por isso, a devolução total ou parcial da mercadoria não pode de forma alguma representar o pagamento da transacção de que ela é objecto, até porque essa transacção não estava ainda finalizada, e, consequentemente, não envolve quitação do cumprimento de qualquer obrigação, visto que a obrigação de pagar só existe depois de expirado o prazo para a devolução.
Por isso, sugiro que a redacção da Tabela Geral do Imposto do Selo seja alterada por forma que sejam isentas deste imposto as notas de crédito que se refiram à devolução de mercadorias.
O terceiro ponto que me proponho tratar respeita à contribuição industrial. O artigo 26.° do Código respectivo estabelece que na determinação do lucro tributável de cada empresa serão considerados como custos do exercício os que forem tidos como razoáveis pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos.
Na linha desta disposição legal, foi recentemente estabelecida a seguinte orientação:

Quando se verificar a existência de gratificações à empregados, assalariados ou sócios das sociedades que nelas exerçam unicamente funções diferentes das referidas no artigo 23.° do Código do Imposto Profissional (ou seja, sócios que não pertençam aos corpos gerentes das sociedades) superiores a um sexto do respectivo vencimento anual, tido este como correspondente a doze meses, tais gratificações só deverão ser consideradas como custos do exercício na parte que não exceder esse sexto.

Isto significa que, se qualquer empresa atribuir gratificações ou - o que é mais corrente - comissões a funcionários seus para além de um mês de férias e um mês no fim do ano, verifica-se em relação ao excedente a situação bizarra de estar sujeito a tributação de imposto profissional e, eventualmente, imposto complementar, por um lado, e a contribuição industrial e adicionais, por outro.
Porque me parece que tal orientação briga, além do mais, com os propósitos, tantas vezes repetidos, de uma mais justa repartição de rendimentos, que deve efectivar-se, ao nível das empresas, através de uma crescente participação nos lucros por parte dos empregados, julgo que a mesma deve ser revogada e sugiro que se considere, antes, a situação dos sócios gerentes de sociedades que repartem, legalmente, como

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gratificações, os lucros das empresas, pagando embora o imposto profissional respectivo pela taxa da contribuição industrial,, mas deixando de estar sujeitos aos adicionais, nomeadamente ao imposto de comércio e indústria, o que tem, repito, legalmente, cerceado as receitas das câmaras municipais, colocando muitas delas em situações de apuro financeiro.
O quarto e último ponto que me proponho tratar refere-se, igualmente, à contribuição industrial.
Estabelece o artigo 142.° do Código respectivo que as faltas de declarações dos contribuintes, bem como as omissões ou inexactidões nelas praticadas, serão punidas com multas que, para os contribuintes do grupo A, vão de 500$ a 50 000$, sendo agravadas, em caso és dolo.
Na prática, tal disposição tem levado às mais estranhas aplicações, chegando-se ao ponto de penalizar uma inexactidão que acrescenta o lucro tributável! Poderá objectar-se que o dever do contribuinte é cumprir à risca a lei fiscal e que se o fizer não está sujeito a penalizações. Simplesmente acontece que a lei fiscal - mais do que as outras, porque a cada passo rectificada por circulares, despachos, instruções, etc. - é fluida e oferece margem a interpretações diversas. E o contribuinte não pode estar a cada passo a consultar a Administração, e se o fizer a mais de um agente sobre o mesmo assunto, provavelmente obterá opiniões diversas. Cada cabeça, sua sentença!
Aliás, a própria lei reconhece esta dificuldade, e já atrás aludi a uma disposição do Código da Contribuição Industrial - o artigo 26.°-, segundo a qual se consideram custos ou perdas imputáveis ao exercício os que forem considerados dentro de limites tidos por razoáveis pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. Ora o contribuinte também tem os seus critérios de razoabilidade e deles naturalmente se socorre, mas quando não coincidem com o fisco - aí vem a penalização. É claro que toda a gente tem de aceitar que o resultado do exercício numa empresa deve ser corrigido conforme a indicação da Administração, mas que se penalize o que deriva apenas de divergência de critérios, quando todos os elementos foram, honestamente, postos à disposição da Administração, é que não se afigura justo.
Concretizando: uma despesa publicitária ou uma obra social ou um simples donativo podem ser ou não considerados pela Administração como custos do exercício. E havendo divergência de critérios entre o contribuinte e o fisco, surge a inexactidão punível nos termos do Código, o que não está certo, pois não podemos falar, sequer, em negligência por parte do contribuinte, dada a mobilidade da matéria e diversidade de critérios possíveis.
Por isso, me parece e sugiro a correcção do artigo 142.° do Código da Contribuição Industrial, por forma que fique claro que só nos casos de comprovada negligência ou má fé dos contribuintes possam ser punidas omissões ou inexactidões por eles cometidas em declarações apresentadas ao fisco.
Termino, solicitando ao Governo a consideração dos pontos expostos e a correcção das anomalias apontadas, por forma a tornar mais humana a lei fiscal e mais justa a sua aplicação.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Acaba de chegar à Mesa uma proposta de lei de terras do ultrajar, enviada pela Presidência do Conselho e já acompanhada de parecer da Câmara Corporativa. Vai ser publicada no Diário das Sessões e baixa à nossa Comissão do Ultramar para que inicie a sua apreciação. Vamos passar à

Conclusão do aviso prévio sobre a toxicomania.

Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto de Alarcão.

O Sr. Alberto de Alarcão - Sr. Presidente: Sejam minhas primeiras palavras de elogio pela iniciativa do Sr. Deputado avisante, Dr. Delfino Ribeiro, pelo facto de trazer a esta Assembleia um tema tão candente e actual como o da toxicomania. Problema que não é apenas de Macau, às portas dessa milenária civilização chinesa, mas se estendeu - ou tende a estender-se - a quase todo o mundo, como já aqui foi recordado.
Gratos ficamos a V. Exa., Sr. Presidente, por ter concedido a generalização do debate e possibilitado participação, que nos é cara, na efectivação deste aviso prévio. E se V. Exa. no-lo permite, tentaremos alargar um pouco o âmbito da incidência da matéria, para considerar outras drogas, também, na generalização deste debate. Assim se enriquecerá o seu conteúdo, se bem soubermos aproveitar a colaboração de quem, de há meses a esta parte, me permitiu avançar neste mundo misterioso da droga, das drogas e da toxicomania, no contexto da civilização.
Sr. Presidente: Se interrogarmos a história das civilizações, breve anotaremos que, ao longo do tempo, os homens procuraram nas drogas uma resposta para as suas interrogações ou aspirações, um modo diferente de encarar a vida e sonhar.
Para alguns, a droga representava um meio de melhor conhecerem ou entreverem o seu futuro, para muitos possibilitava um alívio para as tensões da vida, para outros simbolizava a chave de conquista de um paraíso ainda que artificial, um "oásis de beatitude", a temporária conquista de felicidade neste vale de lágrimas que é a Terra.
Desde passado bem remoto que houve gentes que se consagraram a drogas, chegou, inclusive, a dar origem a religiões, transformou não apenas os costumes como a própria economia de regiões, provocou guerras. Pretende-se, inclusive, responsabilizar o desaparecimento ou extinção de algumas civilizações de antanho pelo consumo abusivo de drogas. Não seremos nós que o negaremos.
O fenómeno não é, assim, verdadeiramente novo; o que é, porventura, novidade é a sua dimensão actual, a querer abarcar o mundo quase inteiro e, sobretudo, o agravar és suas consequências e dependências em termos de originar o fenómeno da toxicomania. Mas não sendo mais do que uma fase última do processo evolutivo do recurso e habituação à droga - a certas drogas -, creio poder ter algum interesse remontar atrás para encontrar explicação para o desenvolvimento do fenómeno.
Para esta escalada alguns factores, sobretudo, contribuíram, de que quero salientar a química, a rapidez, eficácia e fluxo ou quantitativo dos novos meios de comunicação social e transportes, o aumento mais ou menos generalizado do nível de vida e tempos livres, a disponibilidade de bens e movimentação de pessoas, certa ociosidade, crise da civilização.

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Outrora, como largamente foi focado, as plantas eram as únicas fornecedoras de drogas. Actualmente, a química elabora constantemente novas substâncias capazes de transformar o comportamento do homem e as maneiras de viver e pensar. Preocupante, se admitirmos que o desenvolvimento da química ensaia pouco mais que os primeiros titubeantes passos e que o futuro nos pode reservar não poucas surpresas, também neste campo.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Por seu lado, e em outros tempos, o uso das drogas mostrava-se circunscrito a certas seitas, classes sociais ou grupos bem determinados. Hodiernamente, os mass media da informação, ao suprimirem ou abaterem em parte as fronteiras, sobretudo quando ao som juntam a imagem, servem a veicular com eficácia novos usos e costumes, mentalidades, aqui e além surgidos. O homem em suas deslocações mais favorece ou facilita, promove ou realiza, essas trocas de produtos, ideias, experiências.
Não admira, assim, que os hábitos de drogar que se desenvolveram na Califórnia há poucos anos se hajam rapidamente propagado de oeste à costa atlântica, nos Estados Unidos da América. E quanto mais essas práticas ou costumes são extravagantes, mais parecem generalizar-se facilmente. O fenómeno não é, aliás, exclusivo das drogas, nem sequer de agora.
Esta habituação induz impressionantes efeitos de demonstração-propaganda e explica a generalização que vêm tomando certos usos e costumes outrora limitados e ciosamente guardados no interior de uma comunidade ou estrato social.
A difusão de costumes é neste aspecto facilitada pela melhoria dos níveis reais de vida das populações, pelas disponibilidades monetárias para utilização em novos consumos, pela "libertação" do trabalho "escravizante" de outrora, pelo aumento dos tempos livres. A ter que ver com o desenvolvimento económico das nações o grupo social e a cultura que o anima.
Dizia certo autor que "um jovem de 16 anos que fazia uso de marijuana desde há algum tempo afirmava que seu pai lhe censurava o hábito e o repreendia com um cigarro numa mão e um copo de Martini na outra. E acrescentava que sua mãe, farta de ouvir a argumentação, ia para o seu quarto tomar um tranquilizante".
Esta história não é uma caricatura. Reflecte uma parte do estado actual do consumo de drogas na sociedade ocidental. Nem todas redundarão em toxicomanias, mas para lá caminham, ou tendem a predispor, ao criarem certa dependência.
O mundo adulto nessas sociedades mais "progressivas" do Ocidente faz uso de sedativos que não correspondem a fins médicos normais. Entre esses sedativos encontram-se: álcool, barbitúricos, tranquilizantes, sem contar numerosos outros produtos expostos e vendidos nas montras e balcões das farmácias e, até, em outros estabelecimentos comerciais.
Um inquérito recentemente levado a efeito na Califórnia pelo Stanford Research Institute revelou que se encontraram 2539 medicamentos diferentes em 86 fogos visitados. O que representa cerca de 30 produtos por "farmácia caseira". Entre estes medicamentos, apenas um em cada cinco tinha sido objecto de prescrição médica, muitos não deveriam estar à mão de semear de crianças e adolescentes, pelo menos. Surpreenderão certas tragédias de que os jornais frequentemente nos dão conta?
Um outro inquérito, realizado em 1969, esclarecia que em Washington, entre os produtos vendidos legalmente como medicamentos, 583 eram mais perigosos que o L. S. D. E, contudo, achava-se normal, pois era lícito utilizar esses medicamentos, essoutras drogas, sem excessivos cuidados, ao mesmo tempo que facilmente se escandalizava por vezes face à marijuana. Longe de defender esta ou outras, não podemos deixar de estranhar o acesso fácil e indiscriminado a certas drogas em algumas sociedades "permissivas". Não creio que o mesmo se passe, com igual amplitude, em outros mundos.
De qualquer modo, se aquele uso reflecte verdadeiramente a necessidade terapêutica das sociedades ditas mais "evoluídas" do mundo ocidental, convém interrogarmo-nos seriamente não apenas sobre o fenómeno da droga, ou das drogas, mas sobretudo acerca das razões que conduzem a pagar tal preço para viver e sonhar um pouco mais tranquilamente.
O corpo humano não é um laboratório que se possa facilmente reconstruir. Afigura-se perigoso efectuar experiências, aplicar a esse organismo, ainda cheio de incógnitas, produtos de que se não conhecem todos os efeitos residuais ou longínquos. "Nenhuma droga é isenta de perigos", escreveu conceituado autor. Ter-se-á um dia que pagar a conta, somente este argumento nem sempre convence.
O problema do uso e abuso, médico e não médico, de droga, de variadas drogas, parece ser uma das realidades dominantes da sociedade contemporânea. Dificuldades de ajustamento, de início pequenas, surgem e amplificam-se progressivamente entre o indivíduo, adulto ou jovem, e o meio social que o rodeia. A droga aparece então como um "sistema tampão" que amortece estes conflitos exacerbados, desencadeados no próprio universo do indivíduo, ou entre ele e o mundo envolvente.
A droga não modifica o homem, exterioriza a sua personalidade, indivíduos, tendo consumido idêntica quantidade de álcool, têm comportamentos diferentes: um tornar-se-á colérico, agressivo; outro mostrar-se-á passivo, sonolento; um terceiro, apaixonado, amorudo; outros não registarão qualquer mudança de comportamento.
A própria personalidade do indivíduo influencia a opção: o tímido dirigir-se-á para o álcool, procurando por esta via remédio para o seu temperamento; o sonhador preferirá a Cannabis; alguns nevróticos satisfazer-se-ão com calmantes, outros inclinar-se-ão para os estimulantes.
Uma anedota persa dar-nos-á ideia desta variedade de efeitos: Três homens viajavam conjuntamente para uma cidade amuralhada. O primeiro era grande apreciador de álcool, o segundo consumia marijuana, o terceiro recorria ao ópio. Ao cair da noite, depois de longa jornada, chegaram ao seu destino. As portas da cidade estavam já fechadas. O consumidor de ópio sugeriu que se deitassem e dormissem até ao dia seguinte, quando fossem abertas as portas, o apreciador de álcool propôs que se arrombassem as mesmas, enquanto o utilizador de marijuana se afirmava convencido de que podia passar pelo buraco da fechadura.

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A droga não é um facto primário, mas um sinal revelador de mal-estar psico-social, como a dor é a manifestação de um mal-estar biológico. Importa não fazer apenas uma terapêutica sintomática, tratar os sintomas externos, mas procurar ir mais a fundo, tentar um tratamento etiológico, investigar as causas.

O Sr. Delfino Ribeiro:- Muito bem!

O Orador: - No XIV Relatório da Comissão da O. M. S. de especialistas da saúde mental, pode ler-se, a p. 9 (Organisation mondiale de la Santé, Série de Rapports Techniques, n.° 363, Genebra, 1967):

É indispensável acreditar que a dependência a respeito das drogas cria problemas sanitários graves que devem ser estudados não apenas em relação às próprias substâncias mas também em função do homem e do meio.

Neste sentido, gostosamente aceitei o convite do Sr. Deputado avisante para participar no debate.
Sr. Presidente: É difícil determinar as razões que levam as pessoas a consumir drogas para fins não médicos. Mais se multiplicam os produtos e a heterogeneidade dos consumidores, mais se agrava o problema.
Sem pretender enquadrar todos, nem sequer a maioria, dos casos possíveis, um resumo apresentarei, convicto como Confúcio, que "mais do que maldizer as trevas, o que importa é acender uma candeia, por pequena que seja".
O uso das drogas está longe de ser apanágio de jovens, encontra-se largamente difundido - o de certas drogas - mesmo entre os adultos. Motivações múltiplas e bem complexas pelas quais o jovem procura o mundo de amanhã, um mundo de sonho, a dimensional, e o menos jovem, o adulto, deseja preservar o mundo de ontem, proteger o de hoje, o mundo das ideias e das coisas, quadridimensional, onde as coordenadas espaço e tempo são fundamentais para a devida compreensão e integração do indivíduo e das sociedades no contexto civilizacional.
É por isso que a compreensão plena do fenómeno não a podem alcançar especialistas de uma só ciência; é necessária toda uma investigação multidisciplinar, em que cada qual possa carrear suas pedras. Estou em boa companhia, não apenas por me situar no meio de formações profissionais as mais diversificadas na apreciação deste aviso prévio, como por ter presente, entre outras, as seguintes palavras do já referido relatório da O. M. S.:

Dado que os múltiplos problemas postos pela etiologia, a prevenção, o contrôle e o tratamento da dependência ultrapassam a competência de uma única profissão ou de um único grupo especializado e que os conhecimentos neste domínio são ainda limitados, só uma aproximação interdisciplinar permite esperar solução [...] A investigação deve considerar, assim, as relações existentes entre as diferentes disciplinas e a contribuição que cada uma é capaz de prestar. (P. 12.)

E depois de referir:

Entre os grupos que importa atingir, durante a sua formação profissional (dados os contactos que manterão com os utilizadores das drogas ou do álcool), devem citar-se os psiquiatras e outros médicos, os psicólogos, os sociólogos, as assistentes sociais, as enfermeiras (sobretudo de saúde pública), os padres, os "homens de leis" e os membros das corporações policiais.

Sem esgotar, aliás, todos os profissionais ou não (professores e demais educadores, os próprios pais, etc.), acaba por recordar que, por ser a dependência uma doença que resulta de uma inadaptação física, psicológica e social, se torna imperativo coordenar os esforços das mais diversas especializações, de todos nós, em suma.
Sr. Presidente: As drogas dos adultos, que são compostas quase que exclusivamente de sedativos e de estimulantes, são geralmente ou prescritas por um médico, ou recomendadas por um farmacêutico, ou louvadas por um vizinho, ou induzidas pela publicidade.
Já alguém escreveu que a farmácia, tendo-se transformado em drugstore nas Américas, obrigou o farmacêutico a pôr ao alcance de todos uma multidão de drogas. Charles Trenet, aliás, glosou o interesse de visitar "estas farmácias em que se vendem sacos às escondidas". O saudável assim como o doente aí encontram a droga que pode convir aos seus males actuais e futuros.
O terapeuta caseiro, se é propagandista do médico que o curou, encontra confiança sobretudo na pílula que lhe receitou. Todas as vezes que encontra alguém que se queixa de um mal-estar tem tendência para aconselhar a maravilhosa poção ou pílula que transforma seus achaques em saúde e energia.
A publicidade, por seu turno, não lhe fica atrás, enaltece as qualidades de certos produtos, propõe-no-los como uma necessidade: "Por causa do vosso fraco limiar de tolerância à dor", a tomada de um sedativo é não apenas uma necessidade, mas um direito, quase um dever. Em alguns países chega-se a promover, inclusive, "semanas da aspirina"... O homem-droga raramente é adepto de um só produto. A sua "farmácia caseira", como regra, está bem recheada e pronta a responder a todas as situações. Socialmente não se gaba das drogas que toma, a menos que esteja num meio íntimo, e então não visa mais do que ajudar os outros. O álcool e o tabaco são as únicas de que se orgulha, pois que, em geral, contrariamente às outras, são símbolo de maturidade e de virilidade. Ou assim entendidas.
Diverso é o caso de muitos jovens; as suas motivações são frequentemente bem mais complexas. O seu consumo não tem por origem, geralmente, uma prescrição, é mais o fruto de uma vaga pesquisa, de que a droga é a descoberta de momento.
Outrora, normas muito rígidas interditavam o acesso a certos actos ou diligências. A religião orientava os seus passos, vigiava atentamente o que se não deveria fazer. A obediência cega fazia abortar no subconsciente um sem-número de questões que não encontravam respostas racionais. As normas sociais eram rígidas, a censura impedia o mal de as atingir. Hoje, uma profunda transformação se instaurou, quase todo o sistema está em causa, é objecto de discussão. Como todas as revoluções, já fez suas vítimas; há quem acredite que entre extremos seja possível encontrar um dia, neste evoluir das sociedades, novos estádios civilizacionais dotados de certa estabilidade, ainda que dinâmica.

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No contexto desta transformação, a droga, as diferentes drogas apareceram a alguns como solução. No ponto de vista da maioria dos comentadores, parece ser solução que não vai longe, um beco sem saída: permitirá quanto muito a alguns, e para algumas, adquirir a experiência necessária a um rendimento mais eficaz, mas para outros tem sido, é, e certamente continuará a ser, uma experiência sem amanhã. Parece impor-se aos espíritos, através das suas vítimas e por via de experiências fracassadas, por esse mundo além, que a higiene mental é uma necessidade mesmo, ou, sobretudo, em sociedades mais tolerantes, "permissivas".
Mas não deriva apenas deste contexto de evolução civilizacional a popularidade que a droga vem assumindo, em algumas dessas sociedades.
O objectivo principal do seu consumo é a felicidade, o prazer. Parte da humanidade deseja desfrutar já nesta terra o paraíso que lhe prometem as religiões na outra vida, e a droga tem sido apresentada como passaporte para esse paraíso artificial.
Os perigos inerentes, como os que podem sobrevir, aliás, em corridas de automóveis e competições similares, em vez de desencorajarem parecem acrescentar aliciantes à experiência de drogar-se.
Os jovens sempre procuraram identificar-se a modelos capazes de satisfazer o seu desejo de superação. Nas sociedades rurais tradicionais, era a vida dos santos o modelo proposto; o cinema veio-nos trazer outros heróis, justiceiros ou gangsters extraordinários, as bandas desenhadas nos propõem os Superman, Ultraman, Batman, etc., fazendo coisas excepcionais com meios fora do vulgar. Breve reconhecem os jovens, aliás, que estes modelos, por muito aliciantes que sejam, não são de forma alguma acessíveis, antes desencorajam ou desequilibram os que pretendem imitá-los.
Por seu turno, olhando à sua volta, o jovem que contempla o mundo dos adultos dá-se conta de que não terá muito que aprender com algumas dessas figuras familiares. Efectivamente, quantos não vivem em tensão, por vezes extrema, estão em permanente contradição consigo, e as ideias que dizem defender, numa palavra, não lograram ultrapassar, porventura, a "crise da adolescência".
Diante desta ausência de modelos mais chegados, o jovem idealista, sonhador, é tentado a procurar nos produtos vegetais ou químicos um meio de se ultrapassar. A droga parece conceder-lhe, por algumas horas, esta satisfação. Durante esse período de euforia, sente-se engrandecido, o mundo retoma um sentido maravilhoso, a realidade desaparece e é substituída por um mundo "ideal". Vive então experiências "enriquecedoras". Os utilizadores das drogas tornam-se rapidamente profetas, fazem figuras de heróis e os jovens olham-nos como modelos a imitar.
O nosso século de síntese torna, aliás, mais fácil esta identificação. Com efeito, crê-se hoje menos nos princípios ou definições do que nos homens que os encarnam ou deram vida. Foi e é assim que certas correntes de pensamento tomaram o nome dos seus autores ou fundadores: o marxismo, o estalinismo, o maoísmo, o "degaulismo", o fenómeno Kennedy, etc. Não poderia Portugal dar também uma imagem pedagogicamente mais adulta, esclarecida, popular, dos vultos da sua história?
Por outro lado, a sociedade materialista tem vindo a sacrificar desde há bastante tempo os valores espirituais. Esta "dessacralização" começou pela rejeição dos ritos, das práticas que simbolizavam esses valores espirituais. Mais tarde prosseguiu pela dúvida do espírito que animava essas práticas, seguidamente orgulha-se da sua falta de fé. E, um dia, os valores espirituais deixaram de ter sentido e passou-se a deificar somente os valores materiais: "homem realizado" foi o que conseguiu reunir em sua vida uma grande fortuna.
Novas juventudes, um pouco por todo o mundo, nasceram desta geração. Não tendo passado pelo processo de dessacralização, esta juventude ressente-se do vazio espiritual que não sabe explicar. Face a esse vácuo, procura-se nas drogas com que preencher tal lacuna. Anote-se que certos alucinogéneos são chamados "psicadélicos", quer dizer, "libertadores do espírito". O uso dessas drogas faz-se acompanhar, por vezes, de um rito, de uma "liturgia", conduzida por um guia a que chamam "profeta", nalguns casos mesmo "o grande padre" ou "sacerdote". Cai-se assim na "religião psicadélica", que não dispensa, inclusive, "sessões de meditação". Face à religião, dita o "ópio dos pobres", não se cairá no ópio... religão dos ricos?
Um relatório nacional, que no continente americano recolheu numerosos testemunhos, chega mesmo a afirmar:
Parece evidenciar-se que o uso das drogas no mundo contemporâneo está de algum modo ligado ao declínio dos valores espirituais, à incapacidade de encontrar na vida um significado (ou sentido) de tal natureza. Os valores que os homens querem encontrar graças ao uso da droga assemelham-se de um modo particular aos valores religiosos tradicionais: a alma, o eu interior, o espírito de renúncia, a disponibilidade, o "amor" de todo o mundo numa doação geral, a interdependência comunitária. Parece assinalar-se, contudo, um elemento novo, que vem juntar-se, porventura, aos valores tradicionais: o sentimento de se identificar a qualquer coisa mais vasta, de que cada qual faça parte na qualidade de ser humano.

Há aí qualquer coisa de aproveitável.
Mas outras causas vêm juntar-se ainda às explicações desta procura da droga, das drogas.
Na sociedade moderna os fracassos possíveis são cada vez mais numerosos. O tédio invade uma sociedade adulta tornada passiva e demasiado opulenta. Para os jovens, aliás, as perspectivas do futuro nem sempre serão brilhantes.
Para que servirão, dentro de alguns anos - interrogam-se alguns -, esses milhares de diplomados num mundo onde o desemprego aumenta, em seu dizer, a ritmo espantoso entre os licenciados? O nosso século, em que a palavra "planificação" anda nos lábios de quase toda a gente, saberá como manter os graduados desempregados de amanhã?
Os jovens começam a interrogar-se ou a julgar-se conscientes de algumas destas perspectivas. O futuro tornou-se fonte de tensão, mais do que de arrebatamento ou êxtase. Procuram meios de distensão, sem terem sido ensinados a servir-se deles. Os seus professores deixaram muitas vezes de ser educadores, pois demitiram-se face à impossibilidade de, compreenderem e darem resposta capaz.

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Surge então a droga como "válvula de escape" artificial. Muitos têm a sensação de que não é o método normal de distracção e repouso; mas de momento satisfaz. Esperam que lhes proporcione conhecerem-se melhor, descobrirem um novo modo ou género de vida onde o descanso, a tranquilidade, seja possível.
Desse relatório nacional se recolhe um outro testemunho insuspeito de drogado:

Recorremos às drogas para descobrir até onde podemos ir e não para nos abandonarmos à passividade. As drogas são um meio artificial de preencher a distância que separa as nossas aspirações das nossas possibilidades.

Para alguns, este estado de depressão manifesta-se por uma falta de fé total no futuro. Não querem mesmo conceber esse futuro. "Entre os da nossa geração", dizia uma rapariga, "há muito poucos que imaginam poder ultrapassar a idade dos 40 anos."
Parece impor-se despertar nos jovens um novo ideal, a fim de que possam encher-se de coragem para suportar a competividade e aspereza do mundo futuro, viver plenamente a vida à dimensão dos seus sonhos. E é aí que intervém a droga, perigosamente, ao impedir os jovens de se prepararem para assumir o papel que o destino lhes reserva no dia de amanhã.
Existe, por último, entre certos consumidores de drogas uma personalidade patológica que provoca essa verdadeira "faísca ou combustão toxicológica" (Logre), quando há um encontro entre esses indivíduos e substâncias, podendo dar origem a toxicomanias.
Essas pessoas podem vir a encontrar-se em contacto com a droga de maneira por vezes acidental, seja através de um utilizador em busca de adeptos, seja posteriormente a um acto terapêutico para acalmar a dor, reduzir a angústia ou proporcionar o sono. Outras vezes, a droga é procurada conscientemente, sobretudo no período de adolescência, como substituto de outros prazeres.
Devem mencionar-se ainda numerosas outras causas, tais como o desejo de viver novas aventuras, experiências humanas e sexuais, reacção contra a "sociedade de abundância" ou mesmo "da opulência", desejo de alienação, de descomprometimento ou procura de um meio para ultrapassar momentaneamente os limites normais de resistência física.
Analisada, assim, a droga, símbolo sobretudo de um fosso entre os jovens que querem criar, imaturamente, o seu próprio sistema de valores baseado em conhecimentos e experiências inacabados e o mundo adulto, cujos valores se basearam - quando não cristalizaram - na experiência e conhecimentos do passado, importa reflectir, por último, em termos de soluções para além daquelas que naturalmente decorrem do combate contra o tráfico ilícito da droga é sua produção e distribuição irregulares.
Sr. Presidente: Parece não haver receitas únicas que permitam convencer jovens e adultos dos riscos que incorrem pelo consumo abusivo de drogas. Há, no entanto, alguma experiência que pode influir no que se deve ou não dizer e fazer.
Duas atitudes extremas parecem ser de rejeitar, por ineficazes: a que consiste em deixarmo-nos invadir pelo pânico, ou essoutra do avestruz, que, escondendo a cabeça na areia ou erguendo-a demasiado acima dos mortais, prefere não encarar a luz crua da realidade que se lhe apresenta ou avizinha.
O pânico fez sempre exagerar os problemas. Tudo se torna então sombrio: vivemos no século das drogas; a droga é a morte da sociedade; se não extirparmos o hábito de consumir drogas, em breve a humanidade perecerá, e outras afirmações de idêntico jaez.
Em sua intenção de tentar proteger o bem-estar dos indivíduos e o futuro da sociedade, os propagandistas do pânico podem ser levados - por devotamento extremo - a exagerar as estatísticas dos consumidores, que serão então mais fruto de ardor salvatérico do que, verdadeiramente, de ciência certa.
Os resultados não poderão deixar de ser contraproducentes: as pessoas que até aí se acreditavam normais, julgando-se ora marginais, fora do andar dos tempos e das modas, sentir-se-ão tentadas a engrossar o grupo dos desviados. E ao reconhecerem que certas drogas são menos graves do que por vezes se afirma, poderão ser levadas a experimentar outras, bem mais perigosas, que por esta via inconsciente se lhes tornam desejáveis.
Mas a inversa não é menos eficaz. Tal política de avestruz expressa-se por: exagera-se de mais; não acreditamos; esperemos para ver; aliás, já temos visto outras modas; não há nada a fazer; o melhor é esperar; o tempo é o melhor conselheiro, e outras expressões similares.
A auto-suficiência como as frustrações, o convencimento como a desilusão, o receio de encarar de frente a realidade bem como o medo de aceitar certas transformações económico-sociais, o risco do esforço ou o temor de se comprometerem em obra que a todos chama, são, entre outros, motivos que podem cristalizar uma certa demissão ou passividade de atitudes.
Nem tanto, pois, ao mar nem tanto à terra... No equilíbrio poderá estar a virtude.
Deixemos de lado os indutores de pânico, os "cabeças de avestruz" e seus primos mais chegados: os autoconvencidos de que têm a verdade, a verdade inteira, agarrada por uma perna e para todo o sempre, procuremos serenamente reflectir.
O primeiro elemento da nossa reflexão deverá ser: as pessoas tomam drogas, e tomam-nas em maior número e mais frequentemente. Parece ser facto relativamente assente:" o número de adultos que consomem sedativos aumenta, o de jovens que procuram alucinogéneos os segue.
O segundo elemento pode apresentara por estoutra forma: mas corresponderá verdadeiramente esse consumo a necessidades terapêuticas, medicamentosas? Se sim, as drogas constituirão solução para tal patologia? Se não, onde reside o problema?
É sobre estes elementos de reflexão que deveremos centrar os mecanismos de prevenção, nomeadamente no campo educacional e civilizacional, muito antes dos de recuperação, ou cura dos transviados. Que são, aliás, necessários.
Imediatamente nos veremos confrontados com um dilema: com efeito, se o consumo responde a uma necessidade, então a sociedade dita "ocidental" (ou alguns dos seus membros) pode estar em parte doente para ter de recorrer a tais narcóticos - o mal é lá com eles, mas a organização e vida social podem ter a ver algo com o problema e, não devendo coarctar-se o

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direito de partida à busca de paraísos cá na Terra, nem que seja em Katmandu, poderá importar repensar o que possa ter originado tal maleita; se, em contrapartida, o consumo não corresponde a uma necessidade, então a sociedade é conformista, por princípio ou educação, adopta o que outros fazem, aceita os usos de alguns sem sobre eles se dar ao meritório esforço de reflectir.
No primeiro caso, se a sociedade dita "ocidental" (ou alguns dos seus membros) está doente, mostra-se infeliz ou afirma necessitar de evasão, a droga poderá satisfazer a longo prazo a acalmia que procuram conseguir a curto termo? Creio bem que não. De outro modo, poderemos acabar por acordar no que nos descreve Aldous Huxley no Regresso ao Melhor dos Mundos: um mundo de autómatos, subordinados às drogas que condicionam os pensamentos, as actividades, os ideais.
Importa aprender a viver com meios naturais, desintoxicantes, como só eles nos oferecem, desenvolver um sistema de higiene mental. A solução haverá de encontrar-se na descoberta e utilização de "válvulas de escape" naturais, sejam elas actividades sociais "enriquecedoras", trabalho bem realizado, vida familiar criadora, distracções apropriadas, utilização racional de bens materiais, descoberta dos valores transcendentais do ser, etc.
Estes "centros de interesse" poderão representar resposta válida à angústia do nosso tempo, facultar o "suplemento da alma" de que falava Bergson, gerar a alegria de viver. Que falta nos faz Leonardo Coimbra e o seu anunciado aviso prévio sobre problemas da formação da juventude, que não pôde concretizar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Em nós mesmos, no interior de cada um, deveremos descobrir o que se torna necessário para tais situações anormais. As "escoras" de natureza química ou botânica não devem servir senão para ajudar a vencer momentâneos estádios de fraqueza. Não podem converter-se no modo habitual de suporte de ânimo de gentes normais.
Por outro lado, se a nossa sociedade consome drogas por conformismo, para estar à moda, para enfileirar no curso dos usos, para experimentar o que outros falam, metodologia diversa se impõe.
Neste caso importará criar um clima tal que os que tomam drogas sejam considerados anormais e o seu comportamento olhado com compreensão, mas algum repúdio.
Que idosos desiludidos sintam a necessidade de tudo tentarem, vá que não vá, ainda se compreende, mas que jovens, a menos que tenham precocemente envelhecido ou recusado a tornarem-se adultos, é que será menos compreensível. A característica da juventude sempre foi a capacidade de criar, não a de se demitir de suas responsabilidades.
Como a droga é geralmente procurada não por si mesma mas como meio de pretensa libertação, de luta contra o establishment, de realização pessoal, as soluções que se apresentam deverão, pois, considerar, entre outros, os seguintes aspectos:

1) Esforço de compreensão e prospecção da sociedade de que se deseja neste virar de uma página agro-rural para uma civilização industriai e dos serviços, marcadamente urbana, concentrada, competitiva, de "consumo";
2)Investigação dos meios para permitir o desenvolvimento harmónico dessa sociedade;
3)Redescoberta dos valores essenciais da pessoa humana e do seu viver colectivo;
4)Conhecimento dos mecanismos de contrôle da evolução ou encobrimento da verdade - a droga poderá ser um deles, mas a pornografia, a liberdade sexual, o deixar correr, bem como a violência, não serão outros, também?
5) Preocupação de perfeição, sabido que o mundo e a sociedade estão em constante devir desde a revolução industrial e que a verdade, permanecendo estruturalmente una, reveste, contudo, aspectos frequentemente novos, permanentemente mutáveis.

No fundo, necessidade de uma filosofia centrada não sobre a droga, mas englobando a tríade indivíduo-sociedade-droga, isto é, compreensão do homem como ser social em soa integração na vida.
A partir daqueles princípios, a solução para o problema da droga encontrar-se-á sobretudo numa educação e acção formativas, adultas, conscientes, responsáveis, alicerçadas no conhecimento do homem e na pedagogia do viver.
De um e de outro lado, dos utilizadores ou tentados a ela recorrerem, como dos investigadores das mais variadas ciências e humanidades (médicos, psicólogos, educadores sociais, filósofos, sociólogos, etc.), impõe-se o diálogo, em que a experiência e a investigação, sem preconceitos, busquem soluções. Neste ambiente ou atmosfera de confiança e respeito mútuos o homem de ciência adquirirá conhecimentos e o utilizador efectivo ou potencial poderá tornar-se mais prudente, colaborar. Por essa via, e não desprezando nenhuma forma de esclarecimento e prevenção, fiscalização e tratamento, a sociedade acabará por verificar que a droga não é de facto essencial. Poderá nalguns casos servir para auxiliar certos doentes, mas de forma nenhuma nela se reconhecerá a panaceia dos que se crêem, por vezes, "bem-pensantes" e, muitas vezes, mais não são do que pobres (ou ricos ...) doentes mentais ou psíquicos.
Sirva este aviso prévio para alertar, sem pânico, como convém, mas adulta, conscientemente, a população de Portugal para um malefício que tem atingido última e mais fortemente povos considerados evoluídos ou avançados e, sobretudo, a organizar eficazes serviços de fiscalização, prevenção (nela incluídos os educacionais), tratamento e recuperação dos que porventura vierem a ser atingidos por este "mal da civilização": a droga, certas drogas,, a toxicomania.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Agostinho Cardoso: - Pretendo reunir nesta, algumas breves notas complementares à minha intervenção de 2 de Março, no debate deste aviso prévio.
E quero acentuar, antes de mais, que interessa rever e acentuar as penalidades para os diversos interventores no tráfico da droga. O governador Rockefeller, de Nova Iorque, há dias, e agoira o Presidente Nixon,

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insistem na prisão perpétua para quem venda mais de uma certa quantia de estupefacientes ilicitamente.
Desejo também precisar a posição que penso ser de tomar-se perante o toxicómano.
Em minha opinião, todos devem ser classificados como doentes para efeito de tratamento, recuperação e vigilância sanitária.

O Sr. Castro Salazar - Muito bem!

O Orador: - Mas uma grande parte dos consumidores de drogas - exceptuam-se os psicopatas, todos como irresponsáveis - são considerados - e bem - como delinquentes, pelas diversas legislações, sobretudo como disseminadores e propagandistas da droga e fomentadores de grupos marginais anti-sociais.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - O preâmbulo da lei francesa justifica como se segue a repressão do uso pessoal e solitário da droga:
Numa época onde o direito à saúde e à assistência sanitária é progressivamente reconhecido ao indivíduo (em particular pela generalização da segurança social e da assistência social) (aide sociale), parece normal, em contrapartida, que a sociedade possa impor certos limites à utilização que cada um pode fazer do seu próprio corpo, sobretudo quando se trata de interditar o uso de substâncias que os especialistas unanimemente consideram nocivas.

Esta noção vem-nos do país do "individualismo" por excelência... A lei francesa, como já acentuei na minha primeira intervenção, permite às autoridades judiciais e sanitárias imporem não só a desintoxicação em regime hospitalar mas também a vigilância sanitária periódica, numa espécie de "liberdade vigiada com residência declarada", a delinquentes primários e reincidentes, uma vez definida sanitariamente a sua situação.
Certidões de que cumprem este dispositivo são-lhes entregues para qualquer eventual contrôle da Polícia.
Este sistema prolonga socialmente o efeito de um tratamento cujo êxito em si próprio é limitado, levado como é o toxicómano a reincidências frequentes. Não exclui o tratamento voluntário, a estimular, em regime de anonimato, regime acerca do qual eu e outros Srs. Deputados nos referimos, considerando de grande interesse social a sua utilização.
A moção que vai ser proposta à Assembleia menciona a constituição de uma comissão ou serviço destinados a mentalizar a população contra o uso de tráfico da droga.
Desejo frisar o que penso quanto às características predominantes que deve revestir esta mentalização.
Em primeiro lugar, centrar a sua actividade nos dirigentes e leaders a todos os níveis e evitar certa propaganda de massa, que pode contribuir para despertar a curiosidade em meios onde o problema não exista. Repito o que a este respeito disse na minha primeira intervenção:
[...] não deve servir para despertar na multidão e sobretudo na juventude curiosidades doentias e sempre perigosas, e sobretudo nos meios onde o conhecimento e a notícia do mal não tenha chegado nem haja probalidades de lá chegar tão cedo.
Não difundamos, sem querer, a informação daquilo que não queremos se difunda.
É este o erro das exageradas profilaxias que esgrimam precocemente contra moinhos de vento.

Não exclui isto a ideia de que deve ser convenientemente preparado e valorizado o sector da Polícia Judiciária que tem a seu cargo o combate à droga e estabelecidas as necessárias ligações sanitário-policiais que no referido sector devem ser íntimas.
Por outro lado, não esqueçamos que o "subsolo" da droga leva sempre algum tempo a aparecer com evidência à superfície. Pode dizer-se que aqui toda a vigilância é pouca.
Em segundo lugar, interessava que a comissão ou serviço referidos considerassem a necessidade de publicações de carácter doutrinário criticando a validez e o valor da arte psicadélica, os erros fundamentais das teorias de Huxley, Leary e outros, ou seja daquilo que constitui a "filosofia da droga", a qual pretende justificar o seu uso no plano intelectual e social.

O Sr. Ávila de Azevedo: - Muito bem!

O Orador: - E, ainda na esteira de Paulo VI, criticar a "contestação passiva" e a "evasão" dos drogados e dos grupos marginalmente sociais que criam e a sua indignidade inútil, como reacção contra a sociedade de consumo, ou contra a geração dos adultos.
Doutrinação esta que aponte caminhos de esperança e de redenção e os chame à luta activa e leal, pelas suas reivindicações, tendente a modificar certas características da actual sociedade.
E se dirija também à sociedade dos adultos, acentuando as responsabilidades que à família competem na continuidade da formação do filho desde que nasce até ser adulto, verberando os erros dos pais e educadores e apontando a posição que devem assumir na restauração do equilíbrio da família ocidental.
A tecnicidade do ensino dos filhos deve ser complementada pela formação espiritual, pelo culto do idealismo e do amor, num sentido integral, diametralmente oposto à desnaturação e mutilação egoísta e sombria do sexo e do erotismo.
É de fazer-se crítica corajosa à sociedade de superprodução ou consumo nos aspectos que podem justificar a contestação da droga.
Serão estas, segundo penso, as coordenadas válidas no domínio da inteligência para uma actuação que conduza ao desmantelamento da traficância da droga, que afinal constitui a grande exploração comercial de uma teoria diabólica vivida por certo sector da juventude. Essa traficância utiliza - não o esqueçamos - um demoníaco sistema publicitário, ao fazer do consumidor um propagandista gratuito e altamente interessado.
Aos que falam, a propósito da repressão da droga, do fracasso da "lei seca" na luta contra o alcoolismo há algumas dezenas de anos nos Estados Unidos, eu lembro que a escravatura correspondia a lucros fabulosos e representava uma instituição poderosa, fornecedora de mão-de-obra gratuita, e que a humanidade conseguiu destruí-la.
O contra-ataque no plano doutrinário, dirigido amorosamente ao cérebro e ao coração da juventude, interessa mais do que tudo o resto.

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Aqui deixo um alarme e um apelo aos pensadores, aos escritores, aos que têm funções de magistério a qualquer nível e em qualquer especialização, aos homens da Igreja, aos intelectuais do meu país.
E termino, Sr. Presidente, com a frase célebre de um escritor célebre, Artur Koestler, que, parafraseando Clemenceau, disse:

O problema é demasiado importante para deixá-lo nas mãos dos psiquiatras. Para resolver uma situação cujas origens se encontram nas próprias origens da nossa sociedade actual é preciso a cooperação de todos, não só dos médicos, criminologistas, químicos e sociólogos, mas também e sobretudo, dos pais e mães de família.

E estes, acrescento eu, têm de ser consciencializados neste sentido - no sentido de levarem a efeito a sua revolução.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Ávila de Azevedo: - Sr. Presidente: Desejei corresponder à solicitação do Sr. Deputado avisante, Dr. Delfino Ribeiro, sobre a toxicomania. E aqui me encontro cumprindo o prometido, ainda que num assunto um tanto estranho à minha especialidade e às minhas predilecções. Além disso, tratado à saciedade pelo Sr. Deputado avisante e por outros dos nossos colegas.
Como já foi dito, o uso dos estupefacientes é tão velho como a própria humanidade. Num livro escrito por uma das glórias da ciência portuguesa, o botânico Félix de Avelar Brotero, lente da Universidade de Coimbra, impresso em 1824, deparou-se-me esta curiosa síntese dos efeitos produzidos pelo ópio:

O ópio passado uma hora causa nos que o tomam por costume agradáveis sensações de alegria e deleite, mais força para o trabalho; às vezes embriaguez, como também desprezo da morte; valor e ferocidade para os combates.

Acrescentava Brotero que os generais turcos o ministravam aos soldados...
Mas "passadas quatro ou cinco horas, ordinariamente, esfriava neles esta efervescência e ficavam imediatamente frouxos, enfastiados e mais ou menos sonolentos [...]" Retomavam então o uso da droga, que os tornava descorados, macilentos, lânguidos, tristes, taciturnos, inteiramente desmemoriados e estúpidos. Envelheciam muito depressa e acabavam prematuramente.
Esta página de um cientista português, escrita no primeiro quartel do século XIX, ainda não perdeu a actualidade, pela sua arguta observação e pelo seu vigor expressivo.
Não há muitos anos os estupefacientes só interessavam aos intelectuais, que neles procuravam sensações inéditas, aos neuróticos ou aos viajantes de torna-viagem de países exóticos. Restringiam-se a um grupo de indivíduos anormais.
Porém, um escritor inglês, Thomas de Quincey, adquiriu grande reputação literária publicando em 1821 um livro com o título de As Confissões de um Fumador de Ópio. Enquanto o vinho perturbava as faculdades mentais, o ópio introduzia, nelas a ordem e a harmonia...Comunicava-lhes ainda o sentimento profundo da disciplina e uma espécie de saúde divina.
Baudelaire, um dos mais originais poetas franceses, "o manganão das Flores do Mal", na frase de Fradique Mendes, celebrou "os paraísos artificiais" - os paraísos fabricados pelo ópio e pelo haxixe, ou cânhamo indiano. Para ele, o ser humano gozava do privilégio de poder extrair prazeres novos e subtis da dor, da catástrofe e da fatalidade. Aquelas duas substâncias eram as mais apropriadas ao que Baudelaire chamava "o ideal artificial". Conseguiam uma sensação de alegria imoderada ou de bem-estar e de plenitude de vida ou de um sono povoado por maravilhosos sonhos.
Infelizmente, esta apologia da droga, então limitada aos círculos literários e artísticos, foi divulgada nos nossos dias por intelectuais desequilibrados. Entre eles, cita-se Teófilo Leary, psicólogo americano, antigo professor da Universidade de Harvard, convertido ao hinduísmo, autor de uma obra insidiosa que exerceu influência nefasta na juventude. Por outro lado, o conhecido prosador britânico Aldous Huxley escreveu, pouco antes da sua morte, um romance, A Ilha, que nos constrói uma "utopia" moderna.
Conta-nos a história de um jornalista inglês que desembarca na ilha de Pala. Os seus habitantes praticam uma religião próxima do budismo e ingerem um cogumelo vermelho, a moksha, que provoca as visões mais agradáveis e reforça o poder da consciência. Em vez da ascese mística, voga-se no universo da droga...
Exaltada por estes mentores, dissolventes, a droga propaga-se entre a juventude, como um dos processos de contestação, a partir da década de 60.
Então, no uso dos estupefacientes podem divisar-se, entre outros aspectos patológicos, motivações psicológicas e motivações sociológicas, umas e outras originadas pela civilização racional, técnica e desumanizada que assinala o nosso tempo.
Segundo um médico e psicólogo francês e uma consciência cristã, Paulo Chauchard, a toxicomania tem a sua explicação nos seguintes factores mentais:
Em primeiro lugar, o uso da droga representa uma necessidade de imaginação, de sonho, de ascensão a um mundo irreal, de evasão da monotonia dos hábitos quotidianos e de uma vida demasiadamente chã e prosaica.
Em segundo lugar, pretende estimular a criatividade, suscitando artificialmente uma aparência do génio. A droga teria, assim, a sua justificação para os toxicomaníacos numa tradução subjectiva do inconsciente e na exaltação de valores estéticos.
Em terceiro lugar, o toxicómano encontra um meio de escapar às responsabilidades sociais, de repelir o mundo em que vive para se refugiar num outro mundo criado pelas seduções aliciantes da droga.
Em quarto lugar, aduz ainda o psicólogo francês, os estupefacientes criam no drogado uma atmosfera artificial de misticismo, como nas personagens do romance de Huxley. Os drogados, dentro da ética dos movimentos contestatários, revoltam-se contra os mecanismos da sociedade de abundância, contra a ausência de um poder espiritual que dignifique as acções humanas. É uma "pseudomística alucinatória e barata", como diz aquele autor.
A estas explicações de ordem psicológica sucedem outras de ordem sociológica, bem características da dinâmica dos grupos. A droga exerce na juventude

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a sedução da moda, da imitação, do exemplo. Fuma-se ou ingere-se a droga porque se vê fumar ou ingerir a droga. Como em muitas outras manifestações do psiquismo dos adolescentes, ela representa uma afirmação de personalidade, a cobiça do fruto proibido. É nestas circunstâncias que se nos apresenta como um aspecto das atitudes contestatárias: contestação à obediência dos pais, ao constrangimento da disciplina escolar, às imposições sociais.
Fruto da imaginação, da criação artificial da centelha do génio, da fuga à responsabilidade, da ansiedade religiosa ou, ainda, do contágio da imitação, o uso da droga tem de ser combatido por todo um processo de acção pedagógica. E como acontece na prática de todos os vícios, só se poderá obter um resultado positivo se, em vez de os ignorarmos, ou de actuarmos apenas com armas repressivas, empregarmos também meios eficientes de vigilância e de persuasão.
Sr. Presidente: Há que exercer junto da juventude ameaçada e já contaminada pelos horríveis efeitos da droga, tão lucidamente explanados nas intervenções desta Assembleia, uma espécie de profilaxia moral e mental que competirá aos pedagogos, aos sacerdotes, aos psicólogos, aos médicos, aos pais, aos educadores e, de uma maneira geral, a todos aqueles que desfrutam de responsabilidades educativas.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Como bem se pode compreender, os estupefacientes provocam as suas devastações nos ambientes, nos grupos humanos ou simplesmente nos indivíduos que se encontram em circunstâncias favoráveis para receber a sua influência - isto é, nos meios de mais elevado nível económico. Não me consta que tenham penetrado nas comunidades rurais, nas oficinas, nos estaleiros, em que o trabalho é constante e penoso. Neste ponto, observam, com razão, os sociólogos que a droga é uma das consequências mórbidas da sociedade da abundância, ou seja, das sociedades em que os lazeres e mesmo o ócio se sobrepõem à salutar disciplina das actividades laboriosas.
Há, assim, que adoptar no combate ao uso dos estupefacientes um conjunto de normas de higiene mental com fundamentos programáticos de acção pedagógica a que nos referimos. Entre elas, cumpre-nos cultivar e reabilitar a imaginação como antídoto aos prazeres loucos motivados pela droga; estimular as reservas de poder criador que se encontram em todas as almas juvenis, tanto pelas actividades físicas como pelas vocações ou tendências estéticas; suscitar o gosto da responsabilidade nas múltiplas tarefas exigidas pelo progresso da humanidade e tão gostosamente aceites pelos jovens; prepará-los, do mesmo modo, para todas as missões que solicitam altruísmo, coragem, espírito de sacrifício e até desprezo da própria vida, e, por fim, substituir o mundo patológico da droga pelo sentimento da existência de Deus e da lição de misticismo haurido nos grandes modelos da ascese, como Santo Inácio de Loiola ou Santa Teresa de Ávila.
São estes os caminhos - porventura os caminhos mais difíceis - contra as neuroses provocadas pela droga. Todos eles conduzem a um alto ideal humano, esse ideal que sempre apaixonou a juventude e do qual não se podem separar os fins últimos da educação. Competirá depois aos pedagogos emprestar-lhes feição prática nos métodos e nos objectivos da disciplina escolar.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente: Não quero terminar esta simples intervenção com uma visão apocalíptica. Mas não me parece exagerado afirmar que a propagação do uso da droga pode significar não só a decadência, mas a morte da civilização ocidental, confirmando o pensamento de Paul Valéry de que todas as civilizações são mortais.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Delfino Ribeiro: - Sr. Presidente: Vou ser muito breve.
Em obediência à praxe, regresso a esta tribuna para proceder ao fecho do debate deste aviso prévio sobre a toxicomania.
Consola-me, ao fazê-lo, a satisfação que brota de um dever cumprido e da verificação do solidário acolhimento por parte dos meus ilustres pares.
Como previa, os inúmeros oradores que quiseram intervir com a autoridade e o brilho da sua palavra imprimiram maior realce ao tema, quer preenchendo as minhas muitas lacunas, quer esmiuçando e desfibrando as variadas facetas de assunto tão complexo como absorvente.
Para todos VV. Exas. vai o meu muito obrigado.
Falam com eloquência pelo mundo fora os destroços causados pela toxicomania na saúde e bem-estar do género humano e na fortaleza dos povos.
Das leis do homem e de Deus dimana o imperativo da sua eliminação.
Esta Assembleia acaba de manifestar a sua inquietude em termos que não deixarão certamente de se repercutir na mente e no coração de quantos querem um Portugal robusto.
Queira V. Exa., Sr. Presidente, aceitar uma moção que, subscrita por outros Srs. Deputados e por mim, se destina a ser apreciada pela Assembleia, caso V. Exa. assim o entenda.
Tenho dito.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: O Sr. Deputado Delfino Ribeiro acaba de entregar na Mesa um projecto de moção, que vai ser lido.
Foi lido. É o seguinte:

Moção

A Assembleia Nacional, encerrando o debate do aviso prévio sobre a toxicomania:

1. Manifesta a sua apreensão pelos graves perigos que do consumo indiscriminado de drogas podem resultar para a saúde e bem-estar físico e moral do povo português, designadamente da sua juventude; e
2. Recomenda:

a) Que seja constituída uma comissão ou serviço especializado para

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mentalizar a população contra os riscos do uso ilegal de drogas;
b)Que se dotem com adequados meios de acção os departamentos ligados à prevenção e combate da toxicomania, diligenciando-se no sentido de entre eles se estreitarem as relações de cooperação para o efeito;
c)Que sejam promulgadas medidas legislativas conducentes à mais completa descrição das infracções, à melhor graduação das penas, ao estímulo do tratamento e ao fomento de todas as colaborações; e
d)Que sejam criados centros de profilaxia, tratamento e reabilitação.

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 16 de Março de 1973. - Os Deputados: Delfino José Rodrigues Ribeiro - Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso - Lopo de Carvalho Cancella de Abreu - António da Fonseca Leal de Oliveira - Augusto Salazar Leite - José Maria de Castro Salazar - Custódia Lopes - Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva - Rafael Ávila de Azevedo - Armando Júlio de Roboredo e Silva - Sinclética Soares dos Santos Torres - Rui de Moura Ramos - Francisco João Caetano de Sousa Reis Gomes - Maria Raquel Ribeiro.

O Sr. Presidente: - Como já foram distribuídas cópias desta moção a VV. Exas., creio poder pô-la imediatamente à discussão.

Pausa.

Se nenhum de VV. Exas. deseja usar da palavra para discutir este projecto de moção, pô-lo-ei à votação.
Submetido à votação, foi aprovado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Convoco a Comissão do Ultramar para se reunir na próxima terça-feira, dia 20, pelas 15 horas e 30 minutos, a fim de iniciar a apreciação da proposta de lei de terras do ultramar. A referida Comissão continuará os seus trabalhos em reuniões a convocar pelo seu presidente, no qual delego os poderes para o efeito.
Aviso os Srs. Deputados a quem a matéria possa interessar de que ela deve ser posta em discussão na Assembleia na mais próxima oportunidade.
Também informo VV. Exas. da que espero que possa ser distribuído no princípio da próxima semana o parecer da Câmara Corporativa sobre a proposta de lei de reforma do sistema educativo. A importância deste diploma está bem presente no espírito de todos VV. Exas.
A nossa Comissão de Educação Nacional, Cultura Popular e Interesses Espirituais e Morais, já convocada para apreciar a proposta de lei, não deixará, espero, de se dedicar imediatamente à comparação do parecer da Câmara Corporativa com as suas próprias conclusões.
Em virtude da importância destes trabalhos que cometo às comissões parlamentares, pois, além destas duas, ainda a Comissão de Legislação e Redacção tem entre mãos tarefa importante, julgo conveniente não marcar sessões do plenário para a próxima semana.
Em consequência, a próxima sessão será na terça-feira, 27 do corrente, tendo como ordem do dia a efectivação, pelo Sr. Deputado David Laima, do seu aviso prévio sobre a indústria do turismo no desenvolvimento económico e social do ultramar.
Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 50 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Alexandre José Linhares Furtado.
Delfim Linhares de Andrade.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
João António Teixeira Canedo.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
José João Gonçalves de Proença.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Ricardo Horta Júnior.
Rui Pontífice Sousa.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Armando Valfredo Pires.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Eugénio Magro Ivo.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Francisco António da Silva.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Jorge Augusto Correia.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Dias de Araújo Correia.

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José dos Santos Bessa.
José da Silva.
Júlio Alberto da Cosia Evangelista.
Luís Maria Teixeira Pinto.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Marques da Silva Soares.
Rafael Valadão dos Santos.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Teodoro de Sousa Pedro.
Teófilo Lopes Frazão.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.

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