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Quarta-feira, 11 de Novembro de 1992 I Série - Número 12

DIÁRIO da Assembleia da República

VI LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1992-1993)

REUNIÃO PLENÁRIA DE 10 DE NOVEMBRO DE 1992

Presidente: Exmos. Sr. António Moreira Barbosa de Melo

Secretários: Exmos. Srs.

João Domingos Fernandes de Abreu Salgado
José Mário Lemos Damião
Belarmino Henriques Correia
José Ernesto Figueira dos Reis

SUMÁRIO

O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 15 minutos.

Antes da ordem do dia. - Deu-se conta da entrada na Mesa de requerimentos e de respostas a alguns outros.
Em declaração política, o Sr. Deputado José Magalhães (PS) teceu considerações acerca da protecção da intimidade da vida privada.
Também em declaração política, o Sr. Deputado Jorge Paulo Cunha (PSD) abordou questões relacionadas com a qualidade de vida das populações da Área Metropolitana de Lisboa, respondendo no fim a pedidos de esclarecimento do Sr. Deputado João Corregedor da Fonseca (indep.).
O Sr. Deputado José Mola (PS) falou sobre o VI Congresso Mundial da Federação Internacional dos Trabalhadores de Têxteis, Vestuário e Couro.

Ordem do dia. - Foi aprovada, na generalidade, na especialidade e em votação final global, a proposta de lei n.º 35/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre detenção, circulação e controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo. Intervieram, a diverso título, além do Sr. Subsecretário de Estado Adjunto da Secretaría de Estado Adjunta e do Orçamento (Vasco Matias) e do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (Luís Filipe Menezes), os Srs. Deputados António Carvalho Martins (PSD), Manuel dos Santos (PS), Castro Almeida (PSD), Lino de Carvalha (PCP) e Narana Coissoró (CDS).
Foram debatidos, em conjunto e na generalidade, a proposta de lei n.º 38/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da adopção, e o projecto de lei n.º 219/VI - Altera parcialmente o instituto e o regime da adopção (PCP). Além do Sr. Ministro da Justiça (Laborinho Lúcio), fizeram intervenções, a diverso título, os Srs. Deputados Odete Santos (PCP), José Vera Jardim (PS), Narana Coissoró (CDS), Leonor Beleza (PSD) e Julieta Sampaio (PS).
Entretanto, foi aprovada, em votação global, a proposta de resolução n.º 16/VI - Aprova, para ratificação, o Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.
Os projectos de resolução n.º 40/VI - Recusa da ratificação do Decreto-Lei n.º 127/92, de 3 de Julho, que reestrutura os centros de saúde mental {ratificação n.º 33/VI (PCP)] e 41/VI - Recusa da ratificação do Decreto-Lei n.º 128/92, de 4 de Julho, que define o regime deformação profissional após a licenciatura em Medicina [ratificação n. º 34/VI (PCP)] foram rejeitados.
O Sr. Presidente encerrou a sessão eram 19 horas e 20 minutos.

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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a sessão.
Eram 15 horas e 15 minutos.

Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Abílio Sousa e Silva.
Adérito Manuel Soares Campos.
Adriano da Silva Pinto.
Alberto Cerqueira de Oliveira.
Alberto Monteiro de Araújo.
Ana Paula Matos Barros.
Anabela Honório Matias.
António da Silva Bacelar.
António de Carvalho Martins.
António do Carmo Branco Malveiro.
António Esteves Morgado.
António Germano Fernandes de Sá e Abreu.
António José Barradas Leitão.
António Manuel Fernandes Alves.
António Moreira Barbosa de Melo.
António Paulo Martins Pereira Coelho.
Aristides Alves do Nascimento Teixeira.
Arlindo da Silva André Moreira.
Armando de Carvalho Guerreiro da Cunha.
Arménio dos Santos.
Belarmino Henriques Correia.
Bernardino Gata Silva.
Carlos Alberto Lopes Pereira.
Carlos de Almeida Figueiredo.
Carlos Filipe Pereira de Oliveira.
Carlos Manuel de Oliveira da Silva.
Carlos Manuel Duarte de Oliveira.
Carlos Manuel Marta Gonçalves.
Carlos Miguel de Valleré Pinheiro de Oliveira.
Carlos Miguel Maximiano de Almeida Coelho.
Cipriano Rodrigues Martins.
Delmar Ramiro Palas.
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco.
Eduardo Alfredo de Carvalho Pereira da Silva.
Elói Franklin Fernandes Ribeiro.
Ema Maria Pereira Leite Lóia Paulista.
Fernando Carlos Branco Marques de Andrade.
Fernando dos Reis Condesso.
Fernando Santos Pereira.
Filipe Manuel da Silva Abreu.
Francisco Antunes da Silva.
Francisco João Bernardino da Silva.
Francisco José Fernandes Martins.
Guido Orlando de Freitas Rodrigues.
Hilário Torres Azevedo Marques.
Isilda Maria Renda Periquito Pires Martins.
Jaime Gomes Mil-Homens.
João Alberto Granja dos Santos Silva
João Álvaro Poças Santos.
João do Lago de Vasconcelos Mota.
João Domingos Fernandes de Abreu Salgado.
João Granja Rodrigues da Fonseca
João José da Silva Maçãs.
João José Pedreira de Matos.
Joaquim Cardoso Martins.
Joaquim Maria Fernandes Marques.
Joaquim Vilela de Araújo.
Jorge Paulo de Seabra Roque da Cunha.
José Álvaro Machado Pacheco Pereira.
José Ângelo Ferreira Correia.
José Augusto Santos da Silva Marques.
José de Almeida Cesário.
José Fortunato Freitas Costa Leite.
José Júlio Carvalho Ribeiro.
José Leite Machado.
José Macário Custódio Correia.
José Manuel Borregana Meireles.
José Manuel da Silva Costa.
José Mário de Lemos Damião.
Leonardo Eugénio Ramos Ribeiro de Almeida.
Luís António Martins.
Luís Carlos David Nobre.
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa.
Luís Manuel Costa Geraldes.
Manuel Acácio Martins Roque.
Manuel Albino Casimiro de Almeida.
Manuel Antero da Cunha Pinto.
Manuel Castro de Almeida.
Manuel de Lima Amorim.
Manuel Joaquim Baptista Cardoso.
Manuel Maria Moreira.
Manuel Simões Rodrigues Marques.
Maria da Conceição Figueira Rodrígues.
Maria da Conceição Ulrich de Castro Pereira.
Maria de Lurdes Borges Póvoa Costa.
Maria Helena Falcão Ramos Ferreira Mourão.
Maria José Paulo Caixeiro Barbosa Correia.
Maria Leonor Couceiro Pizarro Beleza de Mendonça Tavares.
Maria Luísa Lourenço Ferreira.
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira.
Maria Margarida a Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa.
Marília Dulce Coelho Pires Morgado Raimundo.
Mário Jorge Belo Maciel.
Melchior Ribeiro Pereira Moreira.
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva.
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas.
Nuno Francisco Fernandes Delerue Alvim de Matos.
Olinto Henrique da Cruz Ravara.
Pedro Domingos de Sousa e Holstein Campilho.
Pedro Manuel Cruz Roseta.
Rui Alberto Limpo Salvada.
Rui Fernando da Silva Rio.
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva.
Simão José Ricon Peres.
Vasco Francisco Aguiar Miguel.
Virgílio de Oliveira Carneiro.
Vítor Pereira Crespo.

Partido Socialista (PS):

Alberto Arons Braga de Carvalho.
Alberto Bernardes Costa.
Alberto de Sousa Martins.
Alberto Manuel Avelino.
Alberto Marques de Oliveira e Silva.
Ana Maria Dias Bettencourt.
António Alves Marques Júnior.
António Alves Martinho.
António Carlos Ribeiro Campos.
António de Almeida Santos.
António Fernandes da Silva Braga.

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António José Borram Crisóstomo Teixeira.
António Luís Santos da Costa.
Armando António Martins Vara.
Artur Rodrígues Pereira dos Penedos.
Carlos Manuel Luís.
Edite de Fátima dos Santos Maneiros Estrela.
Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues.
Eduardo Ribeiro Pereira.
Elisa Maria Ramos Damião.
Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.
Fernando Alberto Pereira de Sousa.
Fernando Alberto Pereira Marques.
Fernando Manuel Lúcio Marques da Costa.
Guilherme Valdemar Pereira d'Oliveira Martins.
Gustavo Rodrígues Pimenta.
Jaime José Matos da Gama.
João António Gomes Proença.
João Eduardo Coelho Ferraz de Abreu.
João Rui Gaspar de Almeida.
Joaquim Américo Fialho Anastácio.
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.
Jorge Lacão Costa.
Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho.
José António Martins Goulart.
José Apolinário Nunes Portada.
José Barbosa Mota.
José Eduardo Reis.
José Eduardo Vera Cruz Jardim.
José Ernesto Figueira dos Reis.
José Manuel Lello Ribeiro de Almeida.
José Manuel Oliveira Gameiro dos Santos.
José Rodrígues Pereira dos Penedos.
Júlio da Piedade Nunes Henriques.
Júlio Francisco Miranda Calha.
Laurentino José Monteiro Castro Dias.
Leonor Coutinho Pereira dos Santos.
Luís Manuel Capoulas Santos.
Manuel António dos Santos.
Maria Julieta Ferreira Baptista Sampaio.
Maria Teresa Dória Santa Clara Gomes.
Raúl d'Assunção Pimenta Rêgo.
Raul Fernando Sousela da Costa Brito.
Rogério da Conceição Serafim Martins.
Rui António Ferreira da Cunha
Rui do Nascimento Rabaça Vieira.
Vítor Manuel Caio Roque.

Partido Comunista Português (PCP):

António Filipe Gaião Rodrígues.
António Manuel dos Santos Murteira.
Apolónia Maria Alberto Pereira Teixeira.
Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas.
Jerónimo Carvalho de Sousa.
João António Gonçalves do Amaral.
José Fernando Araújo Calçada.
José Manuel Maia Nunes de Almeida.
Lino António Marques de Carvalho.
Luís Carlos Martins Peixoto.
Maria Odete dos Santos.
Miguel Urbano Tavares Rodrigues.

Centro Democrático Social (CDS):

Adriano José Alves Moreira.
João Carlos da Silva Pinho.
Manuel Tomás Cortez Rodrigues Queiró.
Narana Sinai Coissoró.

Partido Ecologista Os Verdes (PEV):

André Valente Martins.
Isabel Maria de Almeida e Castro.

Deputados Independentes:

Mário António Baptista Tomé.

João Cerveira Corregedor da Fonseca.

ANTES DA ORDEM DO DIA

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Sr. Secretário vai anunciar os requerimentos e as respostas a requerimentos que deram entrada na Mesa.

O Sr. Secretário (João Salgado): - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Na última reunião plenária, foram apresentados à Mesa os seguintes requerimentos: ao Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, formulados pelos Srs. Deputados Filipe Abreu e Carlos Luís; ao Ministério das Finanças, formulado pelo Sr. Deputado Macário Correia; ao Ministério da Educação, formulados pelo Sr. Deputado José Calçada; ao Ministério da Administração Interna, formulado pelo Sr. Deputado Manuel dos Santos; e ao Ministério da Indústria e Energia, formulado pelo Sr. Deputado Jerónimo de Sousa.
O Governo respondeu aos requerimentos apresentados pelos seguintes Srs. Deputados: Fernando Santos Pereira, na sessão de 9 de Janeiro; Paulo Pereira Coelho, na sessão de 12 de Março; Helena Torres Marques, na sessão de 17 de Julho; José Manuel Maia, na sessão de 24 de Junho; José Apolinário, nas sessões de 24 de Janeiro, 30 de Julho e 4 de Agosto; Macário Correia, na Comissão Permanente de 10 de Setembro; Fernando de Sousa, na sessão de 7 de Julho; Guilherme Oliveira Martins, na sessão de 8 de Julho; Vítor Ranita, na sessão de 9 de Julho; e Adérito Campos, na sessão de 16 de Julho.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o período de antes da ordem do dia de hoje compreende declarações políticas.
Assim, nos termos do Regimento da Assembleia da República, para fazer uma declaração política, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A privacidade é, no Portugal dos anos 90, um tema estranhamente omisso nos debates políticos e jurídicos do presente. Poucos duvidarão, porém, de que a defesa da intimidade da vida privada constitui um dos pontos fulcrais da agenda do nosso futuro.
É certo que, segundo tudo indica, esse neo-intimismo que se desenha coexistirá com um notável surto de exibicionismo. Olhando à volta, só se muito fechássemos os olhos é que deixaríamos de conhecer, por exemplo, os mais secretos segredos da musculosa Madonna ou as não menos conspícuas revelações íntimas de conhecidas estrelas dos nossos écrans.
O problema é que a todos aqueles que enjeitem a exposição de corpos e mentes nem por isso fica garantida a reserva impeditiva da devassa. A esfera pessoal tende a ser cada vez mais prezada, porque cada vez mais falta. A ver-

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dade é que cada vez menos somos senhores da informação que mais essencialmente nos diz respeito. Há, neste domínio, um combate a travar, um torpor a sacudir, um debate urgente a trazer à Assembleia da República.
Nenhum de nós ignora que a explosão tecnológica permite hoje mil novas formas de ingerência visual e auditiva, psíquica e física, mecânica, electrónica e informática, ou todas estas coisas juntas. Mas nos tempos que correm importa nunca esquecer que, por 40 marcos, qualquer um pode obter pelo correio um catálogo como este, que terei todo o gosto em mostrar aos Srs. Deputados, em que estão previstos e vendidos dispositivos através dos quais é possível ouvir através das paredes, ver, ouvir e filmar a longa distância e gravar sem detecção. Tudo isto são versões populares, que só pecam por imperfeitas, em comparação com o equipamento mais sofisticado consumido pelos modernos profissionais da devassa, cuja detenção é entre nós inteiramente livre. Todos estes equipamentos podem ser detidos por qualquer um de nós, o que não podem é ser usados. Evidentemente, é difícil provar esse uso.
Ironicamente, o nosso primeiro problema talvez decorra da excelência do quadro constitucional. Em 1976, a lei fundamental consagrou o direito universal à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1), estabeleceu garantias contra a utilização abusiva da informática (artigo 35.º) e desejou invioláveis a correspondência, o domicílio (artigo 34.º) e a própria consciência (artigo 32.º, n.º 6). A revisão constitucional de 1989, ao impor a transparência como regra de vida da Administração Pública, não se esqueceu de impedir o acesso a informações susceptíveis de perturbar a intimidade das pessoas (artigo 268.º, n.º 2).
Estas normas trouxeram até nós, sinteticamente e quase de uma assentada, o legado riquíssimo de uma longa evolução constitucional que foi da proclamação individualista da privacidade como o direito a não ser incomodado pelo Estado, the right to be left alone, à sua moderna leitura como direito ao controlo activo e à autodeterminação das informações que dizem respeito a cada um de nós.
A queda do muro de Berlim veio apenas confirmar que a transparência e a privacidade fazem parte de um mesmo paradigma de valor universal, a Leste e a Oeste, superando as concepções que viam na protecção da esfera pessoal um resquício de matriz burguesa a eliminar por um mergulho de publicização total da vida de cada um.
Em Portugal, felizmente, o largo consenso constitucional de 1976 teve o enorme mérito de antecipar esta moderna valorização da intimidade pessoal. Isso poupou-nos os dilacerantes debates que dividiram a opinião pública em países como os Estados Unidas, a Itália, a França e a Grã-Bretanha e levaram a lentas e tortuosas inovações da jurisprudência e da lei, sem explícito assento constitucional. Mas talvez tenha ajudado a criar o mito de que a privacidade não constituía problema em Portugal. Sucede que constitui, Srs. Deputados.
De facto, falta-nos quase em absoluto uma cultura da privacidade similar à reinante, por exemplo, nos Estados Unidos - basta atentar na forma inteiramente insensível como são lançados à execração pública os nomes de vítimas de crimes - e o quadro legal é lacunoso e muito frágil.
O Código Civil proclama uma protecção que a lei de processo não assegura devidamente, pois faltam medidas cautelares específicas, existentes, por exemplo, no Direito anglo-saxónico, e as indemnizações por violação da privacidade são raríssimas.
A lei penal prevê a punição, na prática inexistente, de várias formas de intromissão na vida privada (v. g. artigos 178.º a 183.º), mas as prescrições são incompletas, desactualizadas e, como assinala Maia Gonçalves, chegam a omitir normas de protecção que já constaram da Lei n.º 3/73, de 5 de Abril, produzida pela Assembleia Nacional marcelista. Suscitam-se dúvidas sobre se essa lei, a Lei n.º 3/73, estará em vigor, como inculca, por exemplo, o conhecido Dicionário Jurídico, da Dr.ª Ana Prata, ou se foi revogada, como sagazmente não esclarecem Gomes Canotilho e Vital Moreira na correspondente anotação constitucional.
Em contrapartida, não há dúvida alguma de que temos lei de protecção de dados façe à informática. A Lei n.º 10/91 tardou 15 anos, mas acabou por ser aqui aprovada por largo consenso, sob proposta do Grupo Parlamentar do PS. Deixou, porém, ern aberto várias melindrosas questões e, sobretudo, Srs. Deputados, não está em aplicação. Deveria ter sido regulamentada pelo Governo até Abril de 1992, mas não foi.
Em consequência, está bloqueda a eleição de uma comissão nacional de protecção de dados pessoais informatizados e nenhum, mas nenhum, dos mecanismos de acesso à informação previstos na lei pode ser usado pelos cidadãos, o que é absolutamente lamentável. Pior ainda, a proliferação de bancos de dados na Administração Pública continua a fazer-se por mera decisão governamental, sem parecer da referida comissão, que tem também competência exclusiva para autorizar interconexões e ainda vastos poderes para combater a utilização abusiva de computadores e garantir direitos como o de rectificação de informações computorizadas erróneas ou inexactas.
Significa isto, Srs. Deputados, que em Portugal continua a reinar a lei da selva informática, num quadro de expansão exponencial, e positiva, aliás, do uso de computadores no sector público e privado. Só o Centro de Identificação Civil tem quase 11 milhões de registos, o registo criminal deve estabilizar em 400 000 cadastros, a base de dados de pessoas a procurar pelas polícias excede 200 000 fichas e o registo automóvel tem mais de 1,6 milhões, para não falar dos milhões de registos do fisco, dos serviços de saúde, da segurança social, das forças armadas, das universidades, dos institutos públicos, etc.
Os ficheiros das polícias e dos serviços de informações, aos quais têm acesso directo centenas de utentes, são um continente tão invisível quanto vasto e deficientemente controlado, como o reconheceu no seu relatório o Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações, além de talvez poderem incluir dados sobre actividades políticas, sindicais e estudantis, o que, a confirmar-se, seria inteiramente inaceitável.
O sistema de informações Schengen (SIS), em constituição, acarretará em breve um significativo agravamento quantitativo e qualitativo desta situação.
A tudo isto haverá que somar os bancos de dados privados ern que todos nós, potencialmente, podemos figurar na nossa qualidade de consumidores, devedores, activistas associativos e outras variadas qualidades, reflectindo a nossa identidade, as nossas graças e desgraças financeiras, opiniões e gostos pessoais. Talvez alguns de nós se inquietem muito com a vulnerabilidade decorrente do que pode saber-se sobre os números da nossa vida, mas não deve ter-se por pouco relevante o acesso incontrolado à ficha dos vídeos que alugamos no clube no nosso bairro, pois como a experiência norte-americana da eleição de juízes do Tribunal Supremo revelou, isso pode ser extre-

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mamente importante para caracterizar um perfil exibido à execração pública.
Inexplicavelmente, e com isto gostaria de concluir, a Convenção Europeia de Protecção de Dados, assinada há largos anos, continua a não ser submetida à Assembleia da República.
Inexplicavelmente também, nenhuma sequência foi dada às recomendações aprovadas pelo Governo no âmbito do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre acesso à informação policial, económica e laboral.
Mais incompreensivelmente ainda, a Assembleia tem estado arredada do processo de elaboração da importantíssima directiva europeia sobre a protecção de dados pessoais.
Sr. Presidente, creio que poderá gerar-se um largo consenso em torno da ideia de que importa pôr cobro a este quadro malsão para que possamos discutir e legislar sobre novos problemas que neste momento apaixonam outros parlamentos.
Estão por abordar entre nós, e é pena, em nossa opinião, temas como o grau de protecção a conferir às vítimas da sida e à privacidade a que têm direito, a compatibilizar com imperativos de saúde pública; o abuso de testes de personalidade para fins laborais, na admissão ou durante o exercício das funções; o recurso de amparo contra entidades que façam depender, por exemplo, o emprego de mulheres de inquirições sobre dados íntimos ou até, como por vezes acontece, sobre a intenção que a mulher tem ou não de engravidar ou de se encontrar já numa situação de gravidez. Isto tem profundamente a ver com a privacidade e é um aspecto capital na óptica constitucional e legal.
O mesmo se pode dizer da regulação, por exemplo, do uso do telefone e do fax para mensagens publicitárias e políticas, ou seja, o chamado telemarketing, que invade e tende a invadir cada vez mais o nosso quotidiano.
Sr. Presidente, concluo com um anúncio e um apelo.
O anúncio é o de que o Grupo Parlamentar do PS tomará duas iniciativas junto da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias: a primeira visa a convocação de uma reunião especial com os Srs. Ministros da Justiça e da Administração Interna sobre este tema que anunciei e creio ser do interesse de todos, ou seja, a regulamentação inadiável da Lei de Protecção de Dados Pessoais, que deveria ter sido regulamentada em Abril, e estes novos problemas que referi, designadamente os relacionados com inquirições sobre dados íntimos.
A segunda iniciativa visa a elaboração e apresentação ao Plenário de um relatório de informação sobre o estado da discussão do projecto de directiva europeia sobre protecção de dados, para o que devemos, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, colher dados junto do Governo, do Parlamento Europeu e da Comissão das Comunidades, antecipando, aliás, o modelo de acção desenhado pela nova redacção ensejada para os artigos 166.º e 200.ª da Constituição da República Portuguesa.
O apelo final é simples e, devo dizer, inteiramente sincero: que nenhuma bancada, é essa a nossa vontade, deixe de associar-se ao esforço necessário para que a privacidade dos Portugueses passe a constituir, como é inteiramente justo, um dos objectivos prioritários, da nossa atenção legislativa.

Aplausos do PS e do CDS.

O Sr. Presidente: - Também para uma declaração politica, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Paulo Cunha.

O Sr. Jorge Paulo Cunha (PSD): - Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Na próxima semana terá lugar a terceira reunião da Assembleia Metropolitana de Lisboa. Queria, desta tribuna, saudar os membros da referida Assembleia e da Junta Metropolitana, porque com o seu contributo serão decerto encontradas algumas soluções para os problemas que afectam esta região.
Para nós, PSD, as dificuldades que afectam os habitantes da Área Metropolitana de Lisboa (AML) devem estar ern primeiro lugar nas preocupações e recusamos liminarmente guerrilhas político-partidárias porque o gigantismo dos problemas que afectam esta região a isso obriga.
O PSD recorda, aqui e agora, o apoio entusiástico que deu a esta realidade, ao apresentar na V Legislatura um projecto de lei que mereceu a aprovação alargada da Assembleia da República.
Com esta lei criam-se mecanismos que possibilitam a articulação das acções e investimentos do poder central e das autarquias, condição necessária para que os estrangulamentos que se vivem nesta região sejam ultrapassáveis. Na nossa opinião, isso pode ser feito sem criar mais uma superstrutura com mais burocracia, mais desperdício de dinheiros públicos e mais entraves à participação dos cidadãos.
Por isso, recusamo-nos a ver este órgão como um contrapoder ou um palco amplificador para a demagogia.
Questões como as acessibilidades, o ordenamento do território e o urbanismo, os transportes públicos, a habitação, o ambiente, a segurança, o tratamento dos resíduos sólidos e efluentes, as condições de vida dos emigrantes e tantas outras necessitam de uma abordagem comum, de modo a maximizar os recursos existentes.
Numa palavra, é essencial valorizar a área metropolitana como um local em que o stress diário seja substituído pela alegria de viver.
Contrariamente ao que certo discurso político por vezes pretende fazer crer, a Área Metropolitana de Lisboa é hoje uma das regiões do País onde a qualidade de vida apresenta piores índices de referência, onde a habitação apresenta baixos graus de salubridade, conforto e higiene, onde os problemas da segurança são reais, onde é real o drama da toxicodependência, onde são evidenciados fenómenos de degradação social, onde o tempo de deslocação de casa ao emprego é o mais alto do País, onde o contacto com a natureza é virtualmente inexistente, onde a hora de ponta se estende por longas e penosas horas.
Parece-nos que é evidente que aos custos da insularidade justamente reclamados pelas regiões autónomas e aos custos da interioridade igualmente reinvindicados com justiça pelo interior do País há que acrescentar, sem dúvida, os custos da capitalidade.
A atracção que as grandes metrópoles exercem nas populações cria uma grande pressão sobre as infra-estruturas velhas de décadas e uma deterioração da qualidade de vida.
É com satisfação que se verifica hoje, no âmbito do Governo e da Junta Metropolitana, um trabalho que permite alimentar fundadas esperanças e expectativas em matéria de coordenação e articulação dos investimentos públicos.
Longe vão os tempos de desespero de muitos dos habitantes da AML, como os dos salários em atraso com

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manutenção artificial de empresas obsoletas. Estamos hoje perante um tempo de viragem.
O investimento nas circulares rodoviárias, no alargamento das auto-estradas do Estoril e de Vila Franca de Xira, na nova ponte sobre o Tejo, na travessia ferroviária do Tejo, na CP e no Metro, na habitação, em novas estruturas de saúde, no saneamento básico e água canalizada, na reanimação do estuário do Tejo, entre outros, permitem concluir que se está no bom caminho para inverter uma situação que é a consequência de décadas de desinvestimento.
Como exemplo paradigmático destes novos tempos, permitam-me destacar a ideia inovadora da constituição de uma empresa metropolitana de habitação, onde as câmaras municipais e a administração central assumirão a responsabilidade no tratamento global deste problema, não só na procura de soluções dos mais carenciados e insolventes mas também procurando dar resposta aos problemas da classe média.
Este desafio, frutificando, poderá, por um lado, fazer com que outras áreas, tradicionalmente de responsabilidade do poder central, possam ter ganhos de eficácia ao serem transferidas para empresas intermunicipais e, por outro, diminuir as desculpas de todos aqueles que tem do poder local uma visão estreita e de permanente conflito com o poder central.
Parece-me ser este o caminho mais adequado no aligeirar do peso do poder central.
Para nós, é essencial que exista uma relação harmoniosa entre o poder local e o central porque só desta forma será possível ir ao encontro dos problemas das populações.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Apesar deste capital de esperança, existem ainda nuvens negras no horizonte.
É incompreensível que existam câmaras municipais que, pela sua passividade e permissividade, incentivem a proliferação de habitação clandestina e bairros de barracas para, demagogicamente, responsabilizarem o Governo pela sua solução.
É triste constatar que existem autarquias que permitem a construção clandestina no trajecto das circulares para responsabilizarem o Governo, havendo mesmo técnicos que analisam a possibilidade da construção de viadutos ou túneis na CRIL (circular regional interior de Lisboa) a partir do nó da Buraca, para obviar a este problema.
Apesar de Portugal ter índices económicos muito satisfatórios, parece-nos que todo o desperdício de dinheiros públicos tem de ser desincentivado e denunciado.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs Deputados: É incompreensível que existam autarquias que não utilizem financiamentos comunitários a fundo perdido, disponíveis para as instalações escolares e desportivas, argumentando hipocritamente que o poder central tem a responsabilidade constitucional da solução.
Não compreendemos que exista uma autarquia da Área Metropolitana de Lisboa que esteja em risco de privar a população de 800 000 contos inscritos no PIDAC para a ampliação do hospital, porque não disponibiliza os terrenos necessários, apesar de constantemente instada pela direcção do hospital e pela população.
Como para nós o mais importante são as pessoas e a solução dos seus problemas concretos, não pouparemos esforços na procura dessas soluções. Os Deputados do PSD eleitos pelo círculo de Lisboa estão empenhados nesse trabalho, tendo-se organizado para maximizar essa actividade.
Para nós, é urgente pôr de lado guerras mesquinhas porque os únicos prejudicados são os cidadãos da AML.
Este trabalho gigantesco tem de merecer uma maior participação da sociedade civil, das empresas públicas e das universidades. Chegou o momento de essas instituições deixarem de se preocupar exclusivamente com os seus problemas e conflitos internos, porque, dessa forma, perdem de vista a solução dos problemas estruturais da Área Metropolitana de Lisboa.

O Sr. Carlos Coelho (PSD): - Muito bem!

O Orador: - Exemplar, neste capítulo, é a constituição do Parque de Ciência e Tecnologia, onde a universidade, as autarquias, as empresas, o poder central e a Comunidade Europeia deram as mãos e irão levar a cabo um empreendimento que irá mudar a face da investigação científica no nosso país, criando as condições necessárias para a fixação da comunidade científica portuguesa espalhada pelos cinco continentes, ao mesmo tempo que potenciam a ligação universidade/empresas.
Espero, sinceramente, epílogo semelhante para a EXPO 98. A importância estrutural desse projecto para a AML tem de contar com a colaboração de todos, devendo ser afastadas todas as ideias de protagonismo fácil cuja única consequência previsível será o dispêndio de vontades e meios financeiros.
Esta iniciativa irá contar com o nosso empenhamento particular e a nossa dedicação.
Terminaria recordando alguns dos desafios que se colocam na Área Metropolitana de Lisboa para que possa rivalizar em qualidade com as demais urbes europeias.
As circulares interna e externa de Lisboa, projectadas há mais de 30 anos, começam a ver a luz no fundo do túnel. Seria excelente que o prazo de conclusão dessas obras pudesse ser antecipado. O Governo já demonstrou a sua capacidade em superar prazos e ultrapassar dificuldades. Queremos que em relação a estas duas obras gigantescas o Governo demonstre igual empenhamento àquele que, por exemplo, foi demonstrado na conclusão da Auto-Estrada Lisboa-Porto.
Não pactuamos com o discurso miserabilista da oposição, que pretende perpetuar os atrasos e as dificuldades. Para se atingir tal objectivo é essencial que as câmaras municipais e as empresas públicas assumam as suas responsabilidades e ajudem a terminar, o mais rapidamente possível, a construção dessas duas circulares estruturantes.
Para o problema da habitação têm de se encontrar mais respostas. Apelo, pois, ao Governo e às autarquias que se empenhem, acarinhem e invistam na empresa metropolitana de habitação. Está provado que projectos nacionais, como o projecto SAAL e o ex-Fundo de Fomento de Habitação, pela sua macrocefalia, não funcionam. Na nossa opinião, essa empresa pode complementar e potenciar a actividade do INH e do IGAPHE.
O esforço na melhoria da qualidade e quantidade das acessibilidades tem de ter a correspondência necessária por parte das empresas públicas de transportes.
O volume de investimento nas infra-estruturas rodoviárias tem de ter correspondência na melhoria da prestação do serviço público de transporte. Novas carruagens, novas linhas de metro, melhores autocarros, numa palavra, melhor fluidez de tráfego.
O PSD está empenhado na procura das soluções que permitam a melhoria da qualidade de vida das populações desta área geográfica, em ambiente de diálogo aberto com

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a sociedade e com a intervenção das instituições interessadas. É essencial que esta postura de abertura e de diálogo do PSD tenha a correspondência das demais forças políticas. Para termos sucesso neste desiderato é essencial muito trabalho, empenhamento, rigor e humildade para que possamos entrar no século XXI com a consciência de tudo termos feito para que as gerações futuras possam usufruir de uma melhor qualidade de vida.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado João Corregedor da Fonseca.

O Sr. João Corregedor da Fonseca (Indep.): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Jorge Paulo Cunha: A intervenção de V. Ex.ª é uma perfeita confusão. Embora vá lê-la depois mais atentamente e apreciá-la com mais detalhe, penso que o recado que lhe pediram foi dado e vale o que vale!
Com efeito, V. Ex.ª aproveitou para lançar um ataque às autarquias de esquerda e às que estão a promover o desenvolvimento social das zonas onde estão implementadas. E também não se esqueceu de atacar a Câmara de Lisboa e a Área Metropolitana de Lisboa, onde só ao fim de tantos anos é que se está a investir e a promover o desenvolvimento.
Há, no entanto, um aspecto que não posso deixar passar em claro, porque se trata de um verdadeiro abuso e até mesmo de uma provocação de V. Ex.ª e do seu partido, como é evidente! De facto, quando o Sr. Deputado diz que as câmaras permitem a construção de casas clandestinas para atacar o Governo, só posso exclamar: a sua intervenção é formidável, Sr. Deputado!...
Ora, gostava de saber que tipo de política social tem desenvolvido o Governo para a habitação social deste país. Que tipo de política de desenvolvimento tem adoptado o Governo, no interior do País, capaz de criar perspectivas de emprego e de desenvolvimento que, realmente, impeçam a fuga das populações locais para as grandes cidades, devido a não terem condições de trabalho, de forma a evitar-se que Lisboa e outras cidades sejam obrigadas a resolver problemas sociais que dependem do Governo?
Que tipo de previsão existe no Orçamento do Estado deste Governo para a habitação social? Que tipo de política social tem desenvolvido este Governo para solucionar os problemas gravíssimas que as câmaras, nomeadamente as de esquerda - que V. Ex.ª atacou duramente e mal, muito mal -, realmente enfrentam?
Na realidade, Sr. Deputado, o que V. Ex.ª acabou por fazer com a sua intervenção, - aliás, perfeitamente confusa pois é uma mistura vaga de uma série de assuntos - foi uma verdadeira crítica e um ataque ao seu partido e ao próprio Governo.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Paulo Cunha.

O Sr. Jorge Paulo Cunha (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado João Corregedor da Fonseca: Começo por agradecer-lhe as questões que me colocou, pois permitem-me clarificar alguns aspectos que, pelos vistos, segundo me apercebi pela forma «confusa» - e não queria qualificá-la assim para não cometer uma indelicadeza - como se expressou, não entendeu perfeitamente.
Em primeiro lugar, que eu saiba, não fiz qualquer ataque às autarquias de esquerda. Provavelmente, enfiará essa carapuça a quem ela servir!

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Na minha intervenção pretendi, essencialmente, fazer um apelo a algumas autarquias deste país para que deixem de se desresponsabilizar quanto ao problema da habitação, pois entendo que não faz qualquer sentido que não procurem soluções concretas para resolvê-lo e os munícipes não têm culpa alguma de haver uma administração que siga essa política.
Como o Sr. Deputado sabe, se existirem políticas flexíveis de solos e de incentivos à construção social, a preços controlados, o INH e o IGAPHE dispõem de programas de apoio e, respondendo agora concretamente à sua questão, verificaram, para este ano, um reforço no seu orçamento. No entanto, seria perfeitamente demagógico acreditar que este ou qualquer outro governo poderia, por si só, resolver o problema da habitação.
Ora, foi nesse sentido que fiz a minha intervenção e que me referi a um dos instrumentos que me parecem inovadores, ou seja, a constituição de uma empresa intermunicipal, com a participação financeira de uma instituição bancária, do INH e do IGAPHE, no capital social, para que, de uma forma serena, sem pretender ganhos políticos fáceis, se possa resolver este grave problema, porque o que nos interessa é melhorar a qualidade de vida das pessoas que habitam aqui, em Lisboa.
Por outro lado, o Sr. Deputado também deve ter prestado pouca atenção quando eu disse que esta situação está, felizmente, a sofrer um ponto de viragem. Só quem é cego e não quer ver é que não verifica que as condições que boje existem nada têm a ver com o universo de esperança que existia há, aproximadamente, seis anos atrás.
Portanto, Sr. Deputado João Corregedor da Fonseca, o que quero dizer e reforçar, nesta minha resposta ao seu pedido de esclarecimento, é tão simplesmente o seguinte: as questões que se colocam à Área Metropolitana de Lisboa nada têm a ver com o facto de as câmaras serem de esquerda ou de direita, de serem brancas, vermelhas, pretas ou amarelas, mas com a necessidade de, todos juntos, com o apoio do poder central e da Comunidade Europeia, conseguirmos melhorar a qualidade de vida nesta Área Metropolitana. Daí, a nossa disponibilidade e o nosso empenho e nesse sentido desenvolvemos o nosso trabalho.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, antes de dar a palavra ao próximo orador inscrito, gostaria de, em nome da Câmara, cumprimentar e saudar um grupo de alunos da Escola Preparatória de Vila Franca de Xira que se encontra a assistir aos nossos trabalhos na galeria central.

Aplausos gerais, de pé.

Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado José Mota.

O Sr. José Mota (PS): - Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Na última semana de Outubro realizou-se, entre nós, um acto de grande importância, que, creio bem, importará assinalar também nesta Câmara.

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Refiro-me ao VI Congresso Mundial da Federação Internacional dos Trabalhadores dos Têxteis, Vestuário e Couro, organização que, representando mais de 6 milhões de trabalhadores em todo o mundo, trouxe a Portugal quase meio milhar de seus dirigentes para aqui analisarem e discutirem os mais instantes problemas e desafios que àqueles sectores se colocam.
Na oportunidade, a que os órgãos de comunicação social deram merecido relevo, dirigentes sindicais dos cinco continentes abordaram e decidiram sobre questões que também, em Portugal, são sentidas num sector - é sabido! - de primordial importância para nós, hoje como sempre.
Mais do que reivindicações imediatas num sentido restrito da esfera sindical, os representantes de trabalhadores dos têxteis, vestuário, couro e calcado dos vários pontos do mundo deixaram claro nas resoluções do seu VI Congresso que se preocupam e pretendem o estabelecimento de uma nova ordem no relacionamento internacional.
Não que tenham descurado problemas (infelizmente quase universais) que aos trabalhadores respeitam.
É claro que questões como os salários, a duração do trabalho, a saúde, higiene e segurança nas empresas ou a formação profissional, particularmente no quadro das mudanças tecnológicas a que se assiste no sector, não poderiam deixar de merecer especial atenção da parte dos congressistas.
Nestes domínios, é ainda o sector têxtil quase sempre o exemplo maior do desrespeito, do incumprimento de regras e direitos essenciais dos trabalhadores, primeiras vítimas de uma «lógica» que parece apenas considerar o lucro e outros factores económicos como sua razão de ser.
Com uma perspectiva necessariamente global, a Federação Sindical Internacional denunciou e contestou (ais práticas e conceitos, sendo diversas as medidas aprovadas no sentido de inverter tal estado.
Mas, e como disse, são ainda mais vastas as preocupações que este Congresso Mundial deixou patentes.
Os direitos humanos, a protecção da criança e da família a defesa do ambiente foram temas a merecer particular relevo, num quadro geral de preocupação e de exigência de medidas concretas e exequíveis.
A participação das organizações sindicais na Conferência sobre Direitos Humanos, a realizar sob a égide da ONU em Berlim no próximo ano, ou o Ano da Família em 1994, também da ONU, são dois dos muitos exemplos daquelas acções concretas.
Num sector como o têxtil, que tem baseado a sua competitividade não só no que se consideram as várias formas de clumping mas mesmo nos mais sérios atentados à liberdade e à dignidade do homem, não será de estranhar que se tenham ouvido relatos, denúncias e apelos que poderíamos pensar só terem tido razão de existir um século atrás. Mas, infelizmente, e bem pelo contrário, o que constatamos verificar-se ainda em vários pontos do mundo - em El Salvador, nas Honduras, como noutros países da América Latina, na África por exemplo na Nigéria ou no Lesotho, ou particularmente na Asia, onde se multiplicam os casas com a China à cabeça -, o que vemos, dizia, é motivo de séria preocupação para todos nós.
Por isso, ou melhor, sobretudo por isso, as questões tratadas são questões que a todos respeitam, sobre que todos devemos atentar.
Uma vez mais, a Federação Internacional dos Trabalhadores de Têxteis, Vestuário e Couro exigiu a consagração do respeito dos direitos sociais mínimos nos acordos de comércio internacional. Ponto muito concreto da acção daquela organização mundial e que de forma clara deixou realçada nas conclusões deste seu VI Congresso, a luta pela cláusula social será, pois, incentivada.
É, de facto, inaceitável que a liberalização (previsível) dos mercados mundiais se não baseie no respeito de condições mínimas de trabalho e de vida dos povos e não pressuponha mesmo a sua gradual melhoria Só uma muito estreita ligação entre os direitos dos trabalhadores e o desenvolvimento do comércio mundial - isto é, a consagração inequívoca da dimensão social do comércio - poderá justificar e permitir a abolição de quaisquer barreiras a esse desenvolvimento internacional.
A luta pela defesa dos direitos dos trabalhadores e, em geral, do homem, contínua a ser tarefa prioritária num sector que é, ainda tantas vezes, o exemplo primeiro de tantos e tamanhos atentados que lhe são desferidos.
O trabalho forçado, o trabalho infantil, a discriminação das mulheres, a exploração desenfreada são situações por que passam milhares de pessoas em todo o mundo.
Temos a obrigação de dizer basta!, juntando a nossa voz à de sindicalistas e suas organizações.
E que se não pense que aquelas ou outras situações também de exploração e de violação dos direitos sociais e sindicais são algo apenas detectável em países menos desenvolvidos, no que alguém convencionou chamar-se de «Terceiro Mundo». Não ! Infelizmente também a Europa, também o nosso país nos dão exemplos não raros do que pensaríamos estar de há muito erradicado deste continente, particularmente da Comunidade Europeia.
Em Portugal, ainda hoje se ouve - e se vê - defender-se a competitividade externa das nossas empresas de têxteis, vestuário e calçado baseada em baixos salários, prolongadas jornadas de trabalho e deficientes condições gerais.
Em Portugal, ainda hoje se conhecem casos de exploração de trabalho infantil e de discriminação da mulher trabalhadora.
Para Portugal, ainda hoje se deslocam exploradores internacionais, na busca, não tanto da qualificação da nossa mão-de-obra e de outras condições geográficas ou económicas mas, sim, desvantagens comparativas no domínio laboral que esperarão ver perpetuadas.
Em Portugal, ainda hoje e mesmo mais hoje do que ontem, ser-se sindicalista, fazer-se sindicalismo é tarefa de «alto risco» e que, sobretudo os mais novos, deixam a uns tantos «masoquistas»!
Sem verem a sua função social reconhecida pelo Estado, os sindicatos, seus dirigentes e activistas confrontam-se, para mais, com uma desajustada legislação sindical que, no domínio das quotizações dos trabalhadores, chega a ser caricata. Estes dois aspectos a merecer reflexão, talvez mesmo nesta Assembleia.
Mas, neste momento, queria mais realçar a importância do acontecimento que foi para o País, para a região onde se efectivou, para as indústrias nacionais e para os trabalhadores portugueses o Congresso Mundial da Federação Internacional dos Trabalhadores Têxteis, Vestuário e Couro.
Os elogios que foram feitos, quer pela própria Federação Internacional quer pela generalidade das delegações estrangeiras, valeram, desde logo, a responsabilidade de sermos os anfitriões.
Devemos, pois, congratular-nos por esta realização em Portugal, reconhecendo que a estrutura sindical nacional co-responsável por ela prestou um bom serviço ao País.

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Entendo ser também da mais elementar justiça deixar uma palavra de simpatia às personalidades e entidades nacionais que, com a sua colaboração, apoio e representação pessoal no acto, ajudaram àquele êxito.
Pena que talvez nem todos se tenham apercebido, pelo menos em tempo, da importância e alcance de um acto que, no seu âmbito, foi só (!) o maior jamais realizado em Portugal.
Terminaria manifestando um desejo, mas não sem deixar um lamento. O que num quadro geral de dificuldades como o que atravessam as nossas indústrias de têxteis, vestuário e couro, com o cortejo de acrescidos problemas e dificuldades, particularmente para os seus trabalhadores, quer no imediato em resultado de sucessão de encerramentos e falências, quer as que se poderão perspectivar face à ausência de medidas aos mais diversos níveis para a defesa do seu futuro, que - este é o meu desejo - esta realização de nível mundial no nosso país venha a influenciar uma maior atenção e resultados positivos concretos para aquele que é ainda hoje o nosso maior sector industrial.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, terminámos o período de antes da ordem do dia.

Eram 15 horas e 55 minutos.

ORDEM DO DIA

O Sr. Presidente. - Srs. Deputados, vamos iniciar a discussão da proposta de lei n.º 35/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre detenção, circulação e controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento.

O Sr. Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunto e do Orçamento (Vasco Matias): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Através da presente proposta de lei pretende o Governo prosseguir o objectivo de aprofundamento da harmonização fiscal necessária à construção do mercado único, desenvolvendo, no domínio dos impostos especiais de consumo, a política de harmonização fiscal delineada aquando da Lei do Orçamento do Estado para o corrente ano e que teve particular ênfase na harmonização das taxas do IVA.
Visa-se, assim, a par do que vem acontecendo no domínio do imposto sobre o valor acrescentado, consagrar regras e princípios, no plano do direito interno, que garantam a eficácia, a simplicidade, a justiça e a transparência que caracterizam o regime instituído pela Directiva n.º 92/12/CEE, no quadro das trocas intracomunitárias ao nível dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.
A harmonização fiscal simboliza o grande projecto do mercado único, porquanto implica a abolição das fronteiras fiscais. A fixação uniforme da exigibilidade dos impostos especiais de consumo surge, pois, como instrumento necessário ao êxito do mercado único.
Assim, no sentido de garantir o estabelecimento e o funcionamento eficaz do mercado interno para 1 de Janeiro de 1993, conforme previsto no artigo 8.º-A do Tratado de Roma, foi aprovada, em 25 de Fevereiro último, a Directiva n.º 92/12/CEE, instrumento necessário à plena abolição das fronteiras fiscais.
Com o objectivo de ficar habilitado a transpor, para o direito interno, normas precisas relativas ao regime geral, à detenção, à circulação e aos controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo, o Governo apresentou a esta Assembleia o pedido de autorização legislativa, hoje, em debate.
Até agora, os impostos especiais de consumo eram cobrados, nos vários Estados membros, de acordo com as regras nacionais, não obstante o respeito por princípios gerais de direito comunitário (v. g. artigo 95º. do Tratado de Roma) e algumas regras relativas às taxas dos impostos especiais sobre o consumo de tabacos. Doravante, os impostos especiais de consumo serão arrecadados segundo regras e procedimentos harmonizados.
Neste sentido, a directiva que se visa transpor é aplicável à produção, transformação, detenção e expedição dos seguintes produtos sujeitos a impostos especiais de consumo e harmonizados a nível comunitário: óleos minerais, álcool e bebidas alcoólicas e tabacos manufacturados.
Foi, aliás, no desenvolvimento dos princípios contidos nesta directiva que se procedeu à harmonização comunitária das estruturas e níveis de taxas dos impostos especiais aplicáveis a estes produtos, tendo sido, recentemente, aprovadas as respectivas directivas, mais concretamente, no último ECOFIN de 19 de Outubro e ern relação às quais o Governo já solicitou também a autorização legislativa a esta Câmara para as transpor, no âmbito do Orçamento do Estado para 1993.
Basicamente, o que se regula, de forma precisa, na presente directiva, que se pretende transpor, são os mecanismos e as condições aplicáveis à circulação intracomunitária daqueles produtos e a consagração da liberdade de circulação para produtos adquiridos por particulares.
É que, ao contrário dos mecanismos e das regras adoptados quanto à circulação, a directiva deixa grande margem de autonomia aos Estados membros no que diz respeito à regulamentação em matéria de produção, transformação e detenção destes produtos.
Efectivamente, o regime-regra estabelecido pela Directiva n.º 92/12/CEE é o de que os bens sujeitos a impostos especiais de consumo circularão em regime de suspensão do imposto entre entrepostos fiscais, verificando-se, deste modo, um diferimento no pagamento do mesmo.
A abertura e o funcionamento dos referidos entrepostos depende de autorização e regulamentação específica a estabelecer por parte de cada Estado membro.
Em ligação estreita com o funcionamento dos entrepostos fiscais, a directiva criou a figura do depositário autorizado - pessoa singular ou colectiva, autorizada pelas autoridades competentes de cada Estado membro, no exercício da sua profissão, a produzir, transformar, deter, receber e expedir, num entreposto fiscal, os referidos produtos ern regime de suspensão do imposto.
É que, determinando a directiva como facto gerador do imposto a produção ou importação na Comunidade dos produtos sujeitos ao imposto especial de consumo, a sua exigibilidade só se verificará com a introdução no consumo dos referidos produtos, Isto é, quando o depositário autorizado os coloca à disposição de retalhistas e ou consumidores finais do Estado membro, terminando assim o regime suspensivo à saída do entreposto fiscal.
Só que permitir que tal regime vigorasse unicamente nas trocas efectuadas entre operadores autorizados acarretaria, de algum modo, dificuldades ao normal desenvolvimento das trocas intracomunitárias, razão pela qual, a par daquele

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tipo de operadores, a directiva veio consagrar que outro tipo esteja habilitado a receber os produtos em regime suspensivo. Institui-se, assim, a figura do operador registado e do operador não registado.
Quanto ao operador registado, ele estará habilitado a receber os produtos em regime de suspensão do imposto e garantirá o seu pagamento aquando da recepção da mercadoria.
Ao invés, o operador não registado, não tendo qualquer obrigação de registo junto das autoridades competentes, poderá, no exercício da sua actividade, receber os produtos sujeitos a imposto especial de consumo mediante uma declaração prévia, junto das mesmas autoridades, pagando de imediato o imposto que ê devido ou garantindo o seu pagamento ainda antes da expedição dos produtos.
Não tendo estes operadores, mais concretamente o operador não registado, um leque de obrigações tão detalhado como os depositários autorizados, estas regras relativas à declaração prévia de recebimento dos produtos e garantia do pagamento do imposto consubstanciam, essencialmente, medidas preventivas de controlo, atendendo a que se trata de produtos sensíveis e onde os riscos de fraude e de evasão fiscal não podem ser descurados, e não foram!
Prevendo a directiva e estando já a Comissão das Comunidades Europeias a estudar a utilização de processos informáticos que garantam um eficaz controlo dos produtos que circulem em regime de suspensão do imposto, importa recordar que tais produtos circularão, obrigatoriamente, a coberto de um documento de acompanhamento emitido pelo expedidor. Nos casos em que o destinatário dos produtos não seja um depositário autorizado ou um operador registado, o documento emitido pelo expedidor deverá ser acompanhado por um outro que certifique o pagamento do imposto no Estado membro do destino.
No que diz respeito às compras efectuadas por particulares, para satisfação das suas necessidades, e desde que os produtos sejam transportados pelos próprios, tendo em conta os princípios que regem o mercado interno, a directiva prevê que os impostos especiais de consumo sejam cobrados no Estado membro onde os mesmos foram adquiridos.
Ainda a este propósito, convém lembrar que para evitar que haja compras efectuadas por particulares que se desunem a actividade comercial, desvirtuando-se, por este facto, o funcionamento do sistema, a directiva prevê que, sempre que os produtos já introduzidos no consumo num determinado Estado membro venham a ser detidos num outro Estado membro para fins comerciais, o imposto tornar-se-á exigível neste último Estado.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A directiva estabelece alguns princípios indicativos para se aferir se os produtos são detidos para fins comerciais. De entre esses princípios, há um de natureza quantitativa que, por se traduzir numa opção a adoptar, eventualmente, por cada Estado membro, se inseriu no âmbito da previsão da autorização legislativa.
Foi, pois, à luz dos princípios e das normas insertas na Directiva n.º 92/12/CEE que o Governo elaborou a presente proposta de lei. Numa perspectiva de simplificação e de rigor metodológico optou-se por: incluir no artigo 1.º da proposta de lei, de forma genérica e global, a matéria que se visa transpor; inserir no artigo 2.º várias normas, consagrando decisões deixadas pela directiva à livre opção de cada Estado membro e individualizando-se por alíneas as referidas matérias.
Assim, a alínea a) do artigo 2.º visa obter a autorização para transpor o que se prevê no artigo 9.º da directiva, dado que os Estados membros podem estabelecer níveis indicativos, aí definidos, que servirão apenas como elemento de prova do uso pessoal do tabaco e das bebidas alcoólicas adquiridos por particulares.
Na alínea b) insere-se uma norma idêntica à da alínea a), porquanto se reporta a produtos adquiridos por particulares. Atendendo a que se trata de óleos minerais, não era possível estabelecer uma presunção baseada na quantidade dos produtos, antes, porém, na forma como é efectuado o seu transporte.
Com a previsão da alínea c), pretende-se estabelecer um mecanismo de reembolso do imposto, sempre que os produtos já tenham sido introduzidos no consumo no nosso país e, efectivamente, se destinem a ser consumidos num outro Estado membro.
Convém, aliás, sublinhar que não permitir um mecanismo desta natureza seria, sem dúvida, desvirtuar os grandes princípios que devem reger um verdadeiro mercado único, sendo certo que a directiva, para obviar a fenómenos de fraude, obriga a que, em caso de reembolso, a entidade que o requerer exiba o comprovativo do pagamento do imposto no Estado membro em questão.
Na previsão da alínea d), por estarmos ao nível de meros procedimentos administrativos que, de algum modo, poderão colidir com as garantias dos contribuintes, pretendeu-se solicitar autorização legislativa para desonerar os pequenos produtores de vinhos dos procedimentos previstos nos títulos II e III da directiva, atendendo à sua diminuta dimensão económica, aferida por produção média inferior a 100 OOO l de vinho por ano.
Por último, e ao contrário das isenções insertas no artigo 23.º da directiva (isenções que todos os Estados membros, obrigatoriamente, terão de consagrar nos termos aí previstos), na alínea e) da proposta de lei pretende utilizar-se a faculdade de conceder a isenção durante o período transitório previsto, até 30 de Dezembro de 1999, relativamente à venda de produtos efectuada em estabelecimentos situados em portos e aeroportos e desde que eles sejam transportados na bagagem pessoal dos passageiros que viajem para outros Estados membros.
Finalmente, consignou-se na alínea f) a previsão de emissão e a obrigação de utilização de uma cópia suplementar do documento de acompanhamento, destinada às entidades competentes dos Estados membros de partida, já que a directiva só obriga à utilização de quatro exemplares, sendo certo que nenhum deles se destina àquelas entidades. Pretendendo-se um controlo eficaz da circulação destes produtos, no sentido de obviar-se os riscos de evasão e fraude fiscais que o mercado mais alargado propicia, com a utilização de um documento complementar } poder-se-á, mais facilmente, atingir aquele desiderato.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Na esteira do que atrás foi dito acerca da preocupação que sempre nos norteia de salvaguardar as garantias dos contribuintes, quero deixar uma palavra final sobre a previsão do artigo 3.º
Prevendo a directiva que ora se pretende transpor, no seu artigo 30.º, que a Directiva n.º 77/799/CEE, relativa à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados membros, no domínio dos impostos directos e indirectos, seja modificada no sentido de abranger os impostos especiais de consumo, impõe-se, agora, a alteração do Decreto-Lei n.º 127/90, de 17 de Abril, que procedeu à transposição da referida directiva em ordem a materializar tal intuito.

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Concluindo, gostava de, uma vez mais, salientar os passos que estão a dar-se no sentido de construir o edifício jurídico indispensável à concretização plena do mercado único, de que a transposição desta directiva é mais um exemplo concreto.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Carvalho Martins.

O Sr. António Carvalho Martias (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: O Tratado de Roma pretendeu, desde o início, criar o mercado único da Comunidade Europeia no qual os bens, as pessoas, os serviços e o capital circulassem livremente.
Em 1987, o Acto Único Europeu, que alterou o Tratado da CEE, veio confirmar o objectivo da realização do mercado único europeu e, ao mesmo tempo, promover e adoptar as medidas propostas pelo Livro Branco - publicado pela Comissão sobre a realização do mercado interno -, respeitando o calendário previsto quanto as principais decisões relativas aos controlos nas fronteiras e definindo que 1993 seria o ano da realização do grande mercado de 320 milhões de cidadãos.
Na verdade, para conseguir a realização de um verdadeiro mercado comum torna-se necessário acrescentar às medidas de liberalização todas as demais necessárias para coordenar, harmonizar ou mesmo uniformizar as regras e as políticas nacionais - por vezes divergentes ou mesmo contraditórias -, de modo que, em todo o espaço económico que pretende integrar, a produção e as trocas possam desenvolver-se num quadro de regras e de políticas comuns a todos os Estados membros.
Exige-se, por isso, que as legislações nacionais com incidência directa ou indirecta no sistema económico sejam, pelos menos, convenientemente harmonizadas, implicando por isso a transformação de vários mercados nacionais num mercado único, o que exige, para além da livre circulação das mercadorias e dos factores de produção, que se garanta no espaço que tal mercado abarca a liberdade, em condições de perfeita igualdade, das operações económicas de produção, de distribuição e de consumo, que concorrem para o funcionamento do mercado.
A existência de controlos fronteiriços representa, felizmente por pouco tempo, não apenas um constrangimento físico mas também um constrangimento económico significativo e a sua manutenção perpetuava custos e desvantagens de um mercado dividido, impondo uma carga desnecessária à indústria, resultante das formalidades, encargos de transporte e manutenção a que estão sujeitas as mercadorias sempre que atravessam uma fronteira.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: A proposta de lei n.º 35/V visa transpor para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 92/12/CEE, do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992, e relativa ao regime geral, à detenção, à circulação e aos controlos dos produtos sujeitos ao imposto especial sobre o consumo, directiva que assenta em três Principios básicos: para os particulares, os impostos especiais de consumo são devidos no Estado membro da aquisição dos produtos que a eles estão sujeitos, sendo certo que os mesmos produtos, não são mais submetidos a qualquer tipo de tributação; para os profissionais, os impostos especiais de consumo são devidos no Estado membro em que os produtos são detidos para fins comerciais; a colocação dos produtos sujeitos a
impostos especiais de consumo, sob um regime de suspensão, permite deferir o pagamento do referido imposto.
Além disso, são definidos, na proposta de lei, os produtos sujeitos a imposto especial: óleos minerais, tabacos manufacturados, álcool e bebidas alcoólicas, bem como os níveis quantitativos a partir dos quais há a presunção de detenção dos produtos por particulares para fins comerciais, ou seja, a presunção de actividade comercial, que, no caso concreto, são iguais aos mínimos indicados na própria directiva.
Prevê-se ainda inexistência de limites indicativos para os óleos minerais, havendo só a limitação imposta pela maneira como se fará o transporte dos mesmos.
Além disso, as operações de produção, detenção e comercialização entre profissionais deverão ser efectuadas a coberto de um regime suspensivo e, neste caso, o imposto especial de consumo, será exigível, aquando da introdução dos produtos no consumo, tanto aos consumidores gerais como aos retalhistas não sujeitos às regras do regime suspensivo mas estabelecidas nos países onde se verifica o consumo.
Assim, o imposto é exigível nos casos em que se verifique a produção fora de qualquer regime suspensivo ou a detenção por um profissional, num Estado membro, de um produto que já foi tributado noutro Estado membro.
Neste último caso, sem prejuízo do cumprimento de determinadas obrigações, a proposta de lei prevê que um Estado membro reembolse o profissional que os detém num outro Estado membro.
É ainda possibilitada aos pequenos produtores de vinho a faculdade de se libertarem de obrigações ligadas ao regime geral de impostos especiais de consumo, bem como a existência de Isenções quando os produtos forem adquiridos em lojas francas e imposta a necessidade de instituir um processo para a circulação dos produtos sujeitos a imposto especial em regime de suspensão, exigindo-se, por isso, a existência de um documento de acompanhamento para facilmente se identificar cada remessa e a sua situação em termos fiscais.
Alarga-se o âmbito do Decreto Lei n.º 127/90 ao imposto especial sobre o consumo, exigindo, por isso, alterações aos artigos 2.º e 6.º do dito decreto-lei, com o claro objectivo de troca de informações entre os Estados membros sobre as transacções sujeitas a imposto especial, de forma a evitar riscos de fraude e, consequentemente, distorções à concorrência.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: A necessidade de harmonizar os impostos indirectos fica a dever-se, fundamentalmente, à estreita relação deste com a circulação dos bens e respectivos efeitos económicos e, em especial, ao imposto especial sobre o consumo.
Exige-se, por isso, uma acção harmonizadora coerente, tendo em conta que se devem evitar conflitos entre as estruturas harmonizadas e as prioridades sócio-económicas de cada país membro, nas modificações estruturais no consumo interno global, na redução da margem de manobra nacional em matéria de público economia conjuntural e nas alterações do volume de receitas. Só assim se construirá com êxito o mercado interno.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel dos Santos.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: O Governo, ao pedir a

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autorização legislativa que hoje aqui foi apresentada pelo Sr. Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, visa, fundamentalmente, como é dito tanto no articulado como no preâmbulo do próprio diploma, transpor para a ordem jurídica interna, a partir de 1 de Janeiro de 1993, a Directiva n.º 92/12/CEE e também alterar o Decreto-Lei n.º 127/90, de 17 de Abril, que já transpunha a Directiva n.º 77/799/CEE.
Antes de emitirmos uma opinião sobre a matéria legislativa que nos é proposta, valerá a pena, na sequência das intervenções anteriores, passar em relance, rapidamente, o que dispõem, genericamente, as duas directivas citadas.
Assim, a Directiva n.º 92/12/CEE, de 25 de Fevereiro de 1992, evidencia a necessidade de um conceito uniforme de classificação de mercadorias sujeitas a impostas sobre consumo nos diversos Estados membros.
Não obstante, apesar da faculdade que cada Estado membro tem de tratar, fiscalmente, em termos de especificidade, estes produtos, o processo não pode consubstanciar um entrave à livre circulação de mercadorias. Esse é outro dos objectivos desta directiva.
Um terceiro objectivo é o de estipular que a tributação do imposto especial sobre o consumo deve ser efectuada no Estado membro de destino e, com vista a possibilitar ao Estado membro o conhecimento de transporte de mercadorias, institui-se um documento intercomunitário para transporte dos produtos. Contudo, não haverá tributação enquanto as mercadorias não entrarem no consumo e, entretanto, não forem entregues numa zona franca ou num entreposto.
Finalmente, objectiva-se que as infracções consideram-se cometidas no Estado membro onde elas se verifiquem, competindo a esse Estado o respectivo auto de transgressão.
O artigo 2.º desta directiva derroga a aplicação das normas nela constantes a algumas parcelas isoladas de territórios pertencentes a Estados membros. Introduz, no entanto, a faculdade de esses Estados membros, por simples declaração, poderem proceder ao alargamento às ilhas isentas.
Por outro lado, o artigo 3.º define quais são os produtos considerados abrangidos pelos impostos sobre o consumo, e que são, basicamente, os óleos minerais, o álcool e as bebidas alcoólicas e os tabacos manufacturados, e confere ainda a faculdade de os Estados membros fixarem taxas, cálculo de base tributável, momento de exigibilidade e controlo do imposto.
O artigo 5.º define o momento da sujeição a imposto, sendo este o da produção ou de introdução em qualquer Estado membro, sem prejuízo dos mecanismos de suspensão.
Finalmente, o artigo 6.º define o momento da exigibilidade do imposto, sendo este momento o da introdução no consumo.
Quanto aos restantes itens, conexos com a liquidação e pagamento do imposto, remete para as normas vigentes nos diversos Estados membros.
A Directiva n.º 77/799/CEE, por seu turno, estabelece, no seu artigo 1.º, a disposição de os Estados membros trocarem informações entre si, com vista ao estabelecimento correcto de impostos sobre o rendimento e o património.
O seu artigo 2.º não vincula a obrigatoriedade de um Estado membro fornecer a informação solicitada se, entretanto, o Estado peticionário não esgotar, interfronteiras, todos os meios susceptíveis de lhe fornecer a informação pretendida.
Finalmente, o seu artigo 4.º estabelece as condições em que um Estado membro pode pedir informação a outro Estado membro, sendo estas duas ordens de razão: sempre que um Estado membro tenha conhecimento das alterações de ordem legal ou factos não manifestamente previstos em normativos legais que propiciem, pela sua prática, uma desigualdade de tratamento fiscal, conduzam, por via da aplicação da fiscalidade a situações de tratamento ou de concorrência desleal; sempre que a experiência e conhecimentos obtidos por um Estado membro seja susceptível de enriquecer outro Estado membro, com vista à implementação do sistema de tributação.
A proposta de lei n.º 35/VI, como tive oportunidade de dizer e como já foi também referido pelo Sr. Subsecretário de Estado quando no uso da palavra, mais não faz do que procurar aplicar na ordem legislativa interna tanto as normas constantes da Directiva n.º 92/12/CEE como também as alterações decorrentes do decreto-lei que citei.
Não me parece que existam da parte do Partido Socialista, em termos estritamente técnicos, grandes preocupações com a aceitação da concessão desta autorização legislativa.
No entanto, há alguns cuidados que devem ser evidenciados, tais como o de acautelar-se suficientemente a situação de um número significativo de pequenos agricultores vinícolas existentes no País, no sentido de salvaguardar a não tributação das qualidades destinadas ao autoconsumo, de haver o cuidado da determinação do momento da obrigação da liquidação, com vista a evitar um financiamento coercivo dos viticultores ao Estado pela via fiscal. Quanto ao mecanismo proposto, no que concerne à detenção de quantidades, é de o aprovar, salvaguardadas, entretanto, as situações dos agricultores e viticultores, dado que, como já se explicitei, ele pode ser penalizante para os mesmos.
Além disso, há uma outra questão, relativamente mais importante, que merece da nossa parte alguma objecção de fundo. Trata-se da forma como esta matéria foi tratada pelo Governo relativamente à Assembleia da República.
Na realidade, pela exposição e pela descrição que acabei de fazer, fica claramente indiciado que estamos em matéria da competência da Assembleia da República, uma vez que se trata de matéria relacionada com a criação de impostos e de sistema fiscal, em geral.
Por outro lado, ficou também claramente definido que se trata de matéria que tem de ser introduzida na ordem jurídica interna, em virtude dos compromissos assumidos por Portugal no âmbito da integração económica e, nomeadamente, no objectivo da consolidação do mercado interno a partir de 1 de Janeiro de 1993.
Sendo assim, não há dúvida que era aplicável ao tratamento desta medida legislativa a Lei n.º 111/88, que dispõe, desde logo, no seu artigo 1.º, que o Governo deve enviar, oportunamente, à Assembleia da República, projectos de actos vinculativos pertencentes ao direito, derivados dos tratados que instituem a Comunidade Europeia.
Ora não encontrámos, nas comissões da Assembleia da República que se debruçaram sobre esta matéria, qualquer traço, nesta fase de discussão da proposta directiva, de movimento do Governo no sentido de - e passo a citar, também o artigo 2.º da referida lei - «consultar a Assembleia da República sobre as posições a assumir nas várias instituições comunitárias, sendo tal consulta obrigatória sempre que esteja em causa matéria que, pelas suas implicações, envolva a competência da Assembleia da República, devendo, ern cada caso, a Comissão de Assuntos Europeus, elaborar o competente parecer».

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Estamos, portanto, perante uma matéria que, do ponto de vista técnico, não nos oferece qualquer dificuldade e, por isso, o Partido Socialista votará favoravelmente a concessão da autorização legislativa.
De qualquer forma, estamos face a um comportamento político do Governo que, manifestamente, não convalida o que está determinado na Lei n.º 111/88 e, nesse sentido, o Partido Socialista não pode aqui deixar de fazer esta crítica e de acentuar a errada interpretação do Governo relativamente à tramitação deste tipo de matérias. E não se diga que esta tramitação não era importante, porque na ausência de uma discussão atempada sobre a matéria e, sobretudo, na ausência da prestação de esclarecimentos por parte do Governo à Assembleia da República, esta desconheceu e desconhece, completamente, a estratégia que o Governo seguiu ou segue na defesa dos interesses nacionais quando o assunto foi discutido em Bruxelas.
Assim, poderia parecer que só na posse destes dados é que se iria formular um juízo crítico, positivo ou negativo, sobre a proposta de autorização legislativa, que agora nos é apresentada.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Quero terminar, dizendo que não estamos elucidados - nem a intervenção do Sr. Subsecretário de Estado nos esclareceu sobre alguns aspectos de natureza administrativa, mas nem por isso menos importantes, que têm a ver com o controlo aduaneiro e, sobretudo, com o conflito de competências que pode vir a ser estabelecido em determinadas circunstâncias.
Por exemplo, em relação ao tabaco, não está, verdadeiramente, esclarecido como é que o controlo aduaneiro vai ser efectuado, se através da Direcção-Geral das Alfândegas ou da Inspecção-Geral de Finanças.
Em relação às bebidas, também se desconhece se o controlo aduaneiro será feito pelas alfândegas ou através da respectiva Direcção-Geral do Comércio Interno.
Espero que o Sr. Subsecretário de Estado tenha ainda oportunidade para responder a estas questões.
Pela nossa parte, e como tive oportunidade de referir, não temos, do ponto de vista técnico, nenhuma objecção essencial a formular ao pedido de autorização legislativa, que, aliás, nos aparece suficientemente esclarecedor e detalhado; temos, sim, uma crítica política a formular ao Governo por, desta vez - e podia fazê-lo porque se tratava de uma matéria significativa exemplar -, não ter dado cumprimento à sua obrigação legal, ou seja, à obrigação de cumprir o artigo 1.º da Lei n.º 111/88.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Castro Almeida.

O Sr. Castro Almeida (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Manuel dos Santos: Tomámos boa nota de que o PS nada tem a opor à matéria que é proposta à Assembleia da República para decisão.
No entanto, V. Ex.ª deixou indiciada alguma crítica ao Governo pelo facto de, segundo disse, o Governo não se ter munido de um parecer prévio da Assembleia da República à própria tomada da directiva, que agora é transposta.
Gostaria que nos explicasse, com melhor detalhe, qual o procedimento que proporia que o Governo tivesse adoptado. Aliás, recordo a discussão havida em sede de Comissão de Assuntos Europeus sobre esta matéria, em que um projecto de relatório indiciava no sentido de este diploma não poder subir a Plenário, dado que o Governo não tinha obtido da Assembleia da República o seu parecer prévio à tomada da directiva.
Ora, como é que podíamos, nesta fase, deixar de transpor a directiva, que já está tomada, com o argumento de que a Assembleia não teria sido chamada a pronunciar-se sobre a própria directiva: ou ficávamos sem a directiva transposta ou, no limite, teria o PS, ou quem o entendesse, que arguir uma qualquer inconstitucionalidade, uma qualquer ilegalidade - não vejo que inconstitucionalidade pudesse ser invocada no caso concreto.
Mas indo mesmo à questão de fundo, admitindo mesmo que, nesta altura, se discuta se o Governo devia ou não ter tomado qualquer diligência prévia à aprovação da directiva, gostaria, pois, de saber qual é o entendimento do PS sobre o concreto dever do Governo nesta matéria.
V. Ex.ª conhece bem que os projectos de directiva são publicados no Jornal Oficial da Comunidade Europeia, que é recebido nesta Assembleia e que, portanto, todos os Deputados tem conhecimento desses projectos.
O que se poderia pedir ao Governo era que comunicasse à Assembleia os projectos de directiva, o que parece descabido e desnecessário, porque a Assembleia conhece o Jornal Oficial.
O que poderia mais o Governo fazer? Prestar esclarecimentos à Assembleia sobre a directiva? Afigura-se-nos que isso apenas deverá acontecer nos casos em que a Assembleia assim o entenda. Quando a Assembleia quer pedir esclarecimentos ao Governo tem as figuras regimentais próprias para o fazer.
Fico, pois, sem saber qual é, em concreto, o vício que é atribuído ao Governo.
Sr. Deputado Manuel dos Santos, entendemos - o PSD tem-no dito por diversas vezes - que é necessário, enquanto se está a tratar do aprofundamento da integração europeia, uma maior articulação e um maior protagonismo da parte dos parlamentos nacionais. É necessário dar cumprimento às leis, como é evidente. A Lei n.º 111/88, cuja violação parece ser reclamada por parte do PS, impõe que o Governo se disponibilize perante a Assembleia para dar os esclarecimentos que entenda necessários.
Sr. Deputado, ern concreto, qual foi a norma violada, qual era o procedimento que o Governo deveria ter tomado e não tomou e em que medida é que uma eventual violação, que não descortino, pode inquinar a proposta de lei em discussão?

O Sr. Presidente: - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel dos Santos.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Deputado Castro Almeida, a sua pergunta inicial tinha uma resposta muito simples e elementar.
O Sr. Deputado começou por perguntar o que é que o PS sugeria que tivesse sido feito para que, efectivamente, não fizéssemos a crítica política que aqui formulámos.
Julgo que o disse, claramente, mas, se não o disse, digo-o agora: que se tivesse, pura e simplesmente, dado cumprimento à Lei n.º 111/88. E por aqui me podia ficar.
Isto é, o que o PS reclamou, através da minha intervenção, é que fosse dado cumprimento à Lei n.º 111/88, que, como V. Ex.ª sabe, é uma lei importantíssima - e agora extraordinariamente datada, face a tudo o que sabemos e que ainda vamos saber mais, seguramente, nos próximos dias -, pois diz respeito ao acompanhamento pela

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Assembleia da República de matérias relativas à participação de Portugal nas Comunidades Europeias.
Se é verdade que o artigo 1.º refere que a Assembleia da República deve fazer o acompanhamento do processo de inserção de Portugal nas CE, logo no n.º 2 esclarece que «para efeitos do disposto no número anterior, o Governo deve enviar oportunamente à Assembleia [...] toda a documentação e informação». Ora bem, o que reclamei é que esse tipo de informação fosse produzida e enviada à Assembleia da República na altura em que foi conhecida pelo Governo, ou seja, há uns meses largos.
Portanto, há muito tempo que a Assembleia da República poderia ter tido conhecimento da informação que o Governo já tinha e que, seguramente, lhe permitiu estabelecer a sua própria estratégia negocial em Bruxelas, em relação à própria directiva, uma vez que o Governo Português teve, necessariamente, que ter uma palavra na aprovação da competente directiva.
Não se diga que isto está hoje ultrapassado pelos acontecimentos, porque V. Ex.ª sabe que não está, na medida em que a declaração anexa ao Tratado de Maastricht vem reforçar exactamente este dever de o Governo prestar todas as informações à Assembleia da República. Mas isso deve acontecer, exactamente, na fase das propostas e não, apenas e só, na fase de aplicação das directivas.
Portanto, a reclamação que aqui é apresentada, do ponto de vista político do PS, tem exactamente a ver com a fase da proposta. Ora, isso é conhecido, como V. Ex.ª sabe, há muito tempo.
Julgo ter retirado da sua intervenção uma má interpretação das minhas palavras, no sentido de que, eventualmente, o PS poderia arguir qualquer tipo de inconstitucionalidade, relativamente a esta matéria. Não foi isso o que disse. Fiz uma crítica politica, a Comissão dos Assuntos Europeus não a assumiu como tal, e o projecto de relatório que foi apresentado por um Deputado da minha bancada acabou por não ter vencimento.
Portanto, a interpretação da Comissão, que, aliás, respeito, foi essencialmente diferente da bancada socialista, nomeadamente da minha própria interpretação.
O que apenas digo é que há aqui lugar a uma crítica política, pelo facto de, oportunamente, a matéria informativa adequada não ter sido enviada à Assembleia da República.
O que procurei, de algum modo, foi, se me permite, abrir um pouco o caminho para que situações destas possam ser, quer neste quadro quer num quadro mais vasto, ligadas ao Tratado de Maastricht, resolvidas num futuro imediato.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares.

O Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (Luís Filipe Menezes): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero fazer uma breve intervenção, suscitada pela crítica que o Sr. Deputado Manuel dos Santos fez ao Governo, no que diz respeito ao não cumprimento da Lei n.º 111/88, relativamente a esta proposta de autorização legislativa.
De uma forma genérica, é conhecido que o Governo tem dado uma grande atenção à Assembleia da República no que respeita a informá-la permanentemente, de forma sistemática, em relação a todas as matérias que têm a ver com as negociações com a Comunidade Europeia.
Na anterior sessão legislativa, o Governo esteve presente em mais de 40 reuniões, em que se debateram questões europeias, quer em sede de comissões parlamentares quer em Plenário, e só sob a presidência portuguesa houve cerca de 14 debates em sede de comissão e Plenário.
Portanto, houve uma troca muito aprofundada de informações sobre estas matérias.
Quanto ao cumprimento da Lei n.º 111/88, julgo que, se tem havido algumas faltas, elas não têm sido, principalmente, do Governo.
Lembro ao Sr. Deputado Manuel dos Santos que, por exemplo, o artigo 2º da Lei n.º 111/88, no seu n.º 3, diz o seguinte: «A Comissão dos Assuntos Europeus da Assembleia da República deve elaborar anualmente um relatório, que sirva de base para apreciação da matéria em sessão plenária.» No seu n.º 4 diz o seguinte: «A Assembleia da República procede anualmente à avaliação global da participação portuguesa nas Comunidades, podendo realizar, para esse efeito, um debate em sessão plenária»
Que me conste, esse relatório anual, desde 1988, nunca foi elaborado e nunca foi suscitada a realização de um debate parlamentar anual com base nesses mesmos relatórios.
Portanto, se existe alguma falta, ela não é somente consignada ao Governo.
Relativamente à interpretação da eventual falta que o Governo cometeu em relação a esta proposta de autorização legislativa concreta, também temos uma interpretação de que não será totalmente assim. Quanto ao acompanhamento que a Assembleia pode fazer destas matérias e à consulta que o Governo deve fazer à Assembleia sobre estas questões, a Lei n.º 111/88 não é suficientemente clara Podemos até admitir que é realista pensar que o facto de o Governo, e outras instituições mandarem atempadamente à Assembleia da República o Jornal Oficial das Comunidades, onde as propostas de directiva vêm publicadas, será o suficiente para que as diferentes comissões, principalmente a Comissão de Assuntos Europeus, possam atempadamente tomar contacto com essas matérias, elaborar os seus pareceres, discuti-las e votá-las.
Julgo, pois, que não há razões para o tipo de críticas como as que o Sr. Deputado Manuel dos Santos formulou ao Governo.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel dos Santos.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, não é propriamente para pedir esclarecimentos, porque já fui esclarecido. Era para me inscrever, uma vez que ainda disponho de tempo e nessa pequena intervenção procurarei contrapor a minha própria interpretação. Aliás, presumo que, antes de mim, haverá outro orador.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: A proposta de autorização legislativa que hoje nos é trazida não encerra matéria especialmente polémica. Trata-se, como já foi dito, no plano técnico, da transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 92/12/CEE, que estabelece o regime geral, circulação e controlo dos produtos sujeitos a impostos especiais do consumo.
No entanto, não sendo matéria especialmente polémica, existe em relação à questão de fundo que ela coloca

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uma dúvida sobre a qual gostaria que o Sr. Subsecretário de Estado se viesse a pronunciar. É que, estando a harmonização fiscal em período de transição e havendo ainda taxas diferentes de IVA de país para país, como é que se perspectiva a harmonização de procedimentos fiscais e, designadamente, a tributação no consumo quando estamos, em muitos casos, perante bens com taxas de IVA diferentes em vários Estados membros da Comunidade? Tal facto até poderia levar a que os agentes económicos fossem transitando de país para país, conforme a taxa de IVA fosse mais favorável.
É verdade que em relação a estes produtos e bens, o último Conselho ECOFIN terá avançado na harmonização das taxas. Contudo, penso que elas também não estão ainda completamente em vigor.
Portanto, sobre este ponto de dúvida em relação a essa possibilidade de harmonização, quando se tratam de produtos e bens com taxas de IVA diferenciadas de país para país, o que poderia levar a fraudes e fugas ao fisco, gostaria que o Governo pudesse esclarecer-nos completamente.
A outra questão que queríamos levantar - não sendo também esta matéria polémica - tem a ver com um problema já aqui levantado, designadamente pelo Sr. Deputado Manuel das Santos, quanto ao relacionamento com a Assembleia da República em matéria comunitária. Mais a mais, quando essa matéria se prende com competências exclusivas da Assembleia da República.
Já foi aqui largamente citada a Lei n.º 111/88, e não me parece que a simples existência pública dos boletins oficiais das Comunidades constitua elemento suficiente para elidir a responsabilidade que o Governo tem no cumprimento desta lei, pois qualquer cidadão tem acesso a esses jornais oficiais.
Ora, o que está em causa, na Lei n.º 111/88, não é que os Deputados tenham o tipo de acesso que tem qualquer cidadão normal, mas o serem informados, ou seja, terem a informação disponível sobre as negociações que estão em curso. Em particular, lembro ao Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares o n.º 1 do artigo 2.º, que diz: «O Governo deve consultar a Assembleia da República sobre as posições a assumir nas várias instituições comunitárias, sendo tal consulta obrigatória sempre que esteja em causa matéria, que pelas suas implicações, envolva a competência da Assembleia da República.»
Portanto, penso que estamos perante uma matéria em que é claro que é da competência da Assembleia da República e, nesse quadro, é evidente que a Assembleia é hoje colocada perante uma directiva, que é já um facto consumado, que foi negociada e aprovada e à qual o Governo deu o seu aval.
Hoje, a Assembleia não tem outra solução que não seja aprovar ou reprovar, mas nunca fazer-lhe alterações ou melhorias que, porventura, poderia introduzir através do seu acompanhamento deste procedimento, caso o Governo, cumprindo a lei de acompanhamento, entregasse atempadamente à Assembleia da República a informação disponível sobre os actos e matérias que vai negociando, designadamente - como a lei refere - em matérias da responsabilidade exclusiva da Assembleia.
Não é a primeira vez que tal acontece. Ainda recentemente, estivemos a discutir o Acordo do Espaço Económico Europeu, onde o mesmo problema se colocou.
De facto, o nosso receio é que este défice democrático que se tem vindo a aprofundar no relacionamento prático - não é nas reuniões que o Governo tem, aqui, connosco -, em relação aos compromissos que o Governo vai assumindo, se vá aprofundando e desenvolvendo, designadamente agora, a partir da aprovação do Tratado da União Europeia.
Trata-se, pois, de uma questão sobre a qual, naturalmente, a Assembleia da República deverá estar atenta e, também, sobre a qual o Governo deverá fazer um esforço para, pelo menos, cumprir o que está definido na legislação.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Orador: - A matéria de fundo desta proposta de autorização legislativa, como disse na minha intervenção inicial, e apenas retirando aquele aspecto de dúvida que, certamente, o Sr. Secretário de Estado esclarecerá, não nos merece quaisquer reservas, sobretudo quando a directiva comunitária define quais os valores ou quantidades de certos bens que podem circular entre particulares sem presunção de detenção para fins comerciais.
Salvaguardando, como já foi referido, a questão dos pequenos produtores - que a directiva também se propõe salvaguardar -, diria que, numa época em que a Comunidade Europeia nos pretende uniformizar gostos e sabores, nos proíbe de comprar a água-pé em vésperas de São Martinho, pelo menos, nos permita transportar algum do nosso bom vinho para o podermos beber ern países estrangeiros, sem com isso se presumir que estamos a fazer transacções comerciais.
Deste modo, não nos restam quaisquer objecções em relação à transposição desta directiva, pelo que votaremos a favor da autorização legislativa.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel dos Santos.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: A minha intervenção vai ser muito rápida, pois ela está limitada pelo tempo de que disponho e, de algum modo, também pelo facto de o essencial já estar esclarecido.
Esta intervenção é, também, uma resposta ao Sr. Secretario de Estado que ouvi atentamente e ao qual não formulei esclarecimentos, uma vez que a sua intervenção foi suficientemente esclarecedora. Gostaria apenas de deixar algumas «bandeiras» neste terreno, que me parece particularmente importante.
É indiscutível que se produziu, sobretudo nos últimos tempos e com a colaboração da Assembleia da República, uma ampla discussão em volta da ideia ou ideias europeias. Falta saber se essa discussão foi suficiente; se foi a que era possível ter feito ou se ficou aquém daquilo que era necessário e, sobretudo, do que poderíamos ter feito.
Em todo o caso, reconheço que, em várias circunstâncias, se organizaram colóquios, debates e reuniões, prestou-se e cruzou-se informação. Mas isso não está em causa. O que está em causa, volto a dizer, é saber se isso terá sido suficiente e, sobretudo, se teria sido convergente com as possibilidades que existiam.
Quanto ao cumprimento da Lei n.º 111/88, manifestamente, neste caso concreto, a lei não foi cumprida Era esta a segunda «bandeira» que lhe deixava e, como já referiu o Sr. Deputado Lino de Carvalho, tem de ser rejeitada a ideia de que o dever de o Governo enviar, oportunamente, à Assembleia da República a informação dis-

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ponível se esgota no envio do Jornal Oficial das Comunidades. Tal, manifestamente, não tem qualquer sentido.
Assim, ao «pôr esta bandeira» quero fazê-lo com suficiente ênfase para que V. Ex.ª, e nomeadamente o seu partido, não parta daí para interpretações, no futuro imediato, restritivas relativamente a este dever, que é essencial para ultrapassar aquilo que é boje uma questão na Europa: o défice democrático.
Finalmente, a terceira «bandeira» tem a ver com as obrigações da Comissão de Assuntos Europeus. V. Ex.ª tem muita razão, aliás, leu sem qualquer deturpação o que consta dos n.ºs 3 e 4 do artigo 2º desta lei, e o que aí está é bem claro.
De qualquer modo, lembro a V. Ex.ª que o partido da maioria tem maioria em todas comissões e, portanto, pelo menos solidária e maioritariamente, está comprometido com o não cumprimento desta obrigação legal.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Castro Almeida.

O Sr. Castro Almeida (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que foi infeliz a posição do Partido Socialista, ao trazer para este debate, sobre a transposição de uma directiva relativa a impostos especiais de consumo, a questão mais geral, e muito relevante, da relação entre a Assembleia e o Governo em matéria de interesse comunitário.
Primeiro, porque, de alguma forma, banalizou um assunto importante. De facto, as relações entre o Governo e a Assembleia em matéria comunitária são muito importantes. Há mesmo uma larga margem de consenso dentro da Assembleia sobre a sua importância e sobre a forma concreta de cooperação que deve ser implementada, pelo que, ao aparecer com um ar crítico quando não tem razão, o PS vem tirar importância a uma matéria que, de facto, a tem.
Gostava, pois, de deixar claro que entendo que foi inoportuna a intervenção do Sr. Deputado Manuel dos Santos neste contexto.
Trata-se de um caso concreto ern que estamos a aplicar uma directiva - não está em causa um regulamento e, neste caso, a Assembleia não teria mais nenhuma palavra, porque ele se aplicaria directamente no direito português - e, por isso, todos os partidos - a Assembleia da República - têm inteira liberdade de dizerem o que entendem, não só sobre a directiva e fins a que ela se propõe mas, também e sobretudo, sobre os meios e instrumentos de pôr em prática os objectivos definidos pela directiva.
O Partido Socialista, bem como os demais partidos da Assembleia, têm oportunidade de dizer, nesta altura, tudo o que pensam sobre a matéria.
Portanto, do ponto de vista político, Sr. Deputado, não há aqui qualquer inibição ou constrangimento ao debate e ao diálogo e ao que as diversas forças da oposição e o partido que suporta o Governo possam dizer sobre esta matéria, e estamos a fazê-lo.
Contudo, exactamente na altura em que o Parlamento é chamado a pronunciar-se sobre a directiva, o Partido Socialista vem apenas dizer «não nos chamaram para nos pronunciarmos». Não tem mais nada de substancial a dizer a não ser «não nos perguntaram o que pensávamos sobre o assunto». É, pois, esta a altura própria para se falar sobre o assunto.
Por outro lado, Sr. Deputado Manuel dos Santos, gostava de realçar o que foi já afirmado pelo Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, ou seja, que, do nosso ponto de vista - e creio que o Sr. Deputado nos acompanhará neste comentário-, não há nenhuma acusação a formular ao Governo quanto a uma eventual falta de informação à Assembleia ou quanto à presença de membros do Governo na Assembleia. Creio que o Governo, tanto quanto sei, tem estado na Assembleia sempre que para tal é solicitado, com uma quantidade de informação e uma disponibilidade para a informação e diálogo que me parece deverem ser registadas.
Finalmente, estamos perante um caso em que, tanto quanto sei, nenhum grupo parlamentar ou Deputado tomou a iniciativa de formular uma pergunta ao Governo, como está habilitado; ninguém tomou a iniciativa de fazer um requerimento pedindo esclarecimentos ao Governo sobre esta matéria, sendo certo que tinha conhecimento que a directiva existia em projecto e, depois de aprovada, publicada no Jornal Oficial das Comunidades.
É evidente que não penso que basta a leitura dessa publicação...

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Ah!

O Orador: - Sr. Deputado, deixei isso bem claro há pouco!
De qualquer forma, o Jornal Oficial das Comunidades dá-nos a informação de que existe o projecto de directiva ou a própria directiva.
Assim, os Deputados e grupos parlamentares têm todo o direito, constitucional e regimental, de solicitar ao Governo a informação que entendam. Neste caso concreto, isso não aconteceu. Se tivesse havido algum pedido de informação, estou seguro - a avaliar pelos antecedentes - de que o Governo a teria dado.

Vozes do PSD:- Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento.

O Sr. Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Gostaria de começar por salientar, por um lado, e a propósito da intervenção do Sr. Deputado Manuel dos Santos, que não devemos estar preocupados em saber qual é a estrutura da Administração Pública que vai fazer este ou aquele controlo. O que importa, efectivamente, é que esses mecanismos estejam assegurados.
Por outro lado, não devemos ter ilusões, pois a partir de Janeiro de 1993 o mercado único é mesmo para ser cumprido.
Isto significa, por consequência, que vão desaparecer os controlos, neste momento ex ante, ou seja, no momento da entrada na fronteira, para passarem a ser feitos nos termos previstos na directiva, no caso dos impostos especiais de consumo, e através dos mecanismos previstos no diploma respectivo, que foi recentemente aprovado pelo Conselho de Ministros, no caso do IVA.
Estamos, de facto, determinados no sentido de cumprir tudo aquilo que é necessário fazer para que o mercado único entre ern funcionamento no dia 1 de Janeiro de 1993 e a aprovação de legislação sobre impostos especiais de consumo é mais um passo.
O que lhe posso garantir é que as estruturas da administração fiscal estão já preparadas, seja qual for o orga-

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nismo que, em concreto, venha a fazer essa aplicação concreta dos controlos.
Por outro lado, em relação ao Sr. Deputado Lino de Carvalho, gostaria de dizer que a questão que colocou tem uma resposta muito simples, isto é, que no mesmo Conselho ECOFIN de 19 de Outubro foram também aprovadas as taxas do IVA.
Este ano, tivemos um longo debate sobre a nossa harmonização fiscal e, nesse sentido, antecipámo-nos em relação a alguns países comunitários. Essa foi uma opção deliberada do Governo, em boa hora tomada.
No mesmo Conselho ECOFIN de 19 de Outubro, também foi aprovada uma proposta de directiva que estabelece taxas efectivas para o IVA e, por isso, o problema que o Sr. Deputado levantou não existe efectivamente.
Por outro lado, em relação ao caso concreto dos impostos especiais sobre o consumo, a matéria das taxas também se encontra prevista nas directivas que foram aprovadas nesse Conselho ECOFIN de 19 de Outubro, tendo nós, antecipadamente, pedido autorização para legislarmos sobre elas no próprio âmbito da proposta de lei de Orçamento de Estado para 1993. Embora elas só tenham sido publicadas recentemente, antecipámo-nos porque previmos aquilo que viria a ser proposto nessas mesmas directivas.
Finalmente, quanto à questão de fundo, quero dizer, sublinhando as palavras do Sr. Deputado Castro Almeida, que penso que os interesses que o Governo defendeu em Bruxelas foram bem defendidos porque não tivemos aqui a mais pequena crítica quanto ao fundo da questão.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como não sou especialista nesta matéria, quero apenas dizer que votaremos favoravelmente o pedido de autorização legislativa, porque, no fundo, trata-se tão-somente de obedecer a uma directiva das Comunidades, à qual o País não pode ficar imune.
No entanto - e vem isto a propósito da nossa revisão constitucional -, propusemos que toda a legislação derivada das directivas comunitárias passasse pela Assembleia da República antes de o Governo tomar qualquer medida de execução para o efeito. Julgamos que fizemos bem, mas as críticas que aqui ouvimos vão exactamente no sentido do não cumprimento, digamos assim, de no plano de colaboração institucional não ter sido ouvida a Assembleia da República antes de o Governo tomar estas medidas, principalmente sobre impostos.
V. Ex.ª está aqui porque se trata de impostos, pois, caso contrário, não estaria.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, terminámos o debate sobre a proposta de lei n.º 35/VI.
Vamos agora iniciar a discussão conjunta da proposta de lei n.º 38/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico da adopção, e do projecto de lei n.º 219/VI - Altera parcialmente o instituto e o regime da adopção (PCP).
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça (Laborinho Lúcio): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O desenvolvimento em que estamos empenhados não poderá alcançar-se em tempo razoável e da forma global e integrada, sem que no centro do processo de desenvolvimento se encontre o homem, como seu essencial destinatário e promotor.
A qualidade desse desenvolvimento, capaz de facilitar a realização, a felicidade e o progresso das pessoas e das comunidades, tem de basear-se forçosamente na qualidade humana dos seus agentes, no plano ético, intelectual e cultural, pressupostos de dignidade, competência, equilíbrio, sentido cívico de serviço e de solidariedade que lhe são indispensáveis.
Sem qualidade humana, não há desenvolvimento de qualidade. E só poderá existir desenvolvimento humano de qualidade se este tiver apoio e expressão suficientes na vida familiar e nas condições de desenvolvimento harmonioso da criança e do jovem.
Não é, por isso, de estranhar a preocupação pela concepção e execução de uma política global de família, de infância e de juventude, em consonância com o espírito dos grandes instrumentos internacionais e com os direitos e as garantias constitucionais consagrados no nosso diploma fundamental, que a legislação ordinária procura prosseguir.
Essa política global e integrada pressupõe, hoje, quer na sua concepção, quer na sua execução, uma perspectiva interdisciplinar e interinstitucional, com intervenção articulada de diversos departamentos e instituições, desde os que têm responsabilidades no sistema legal e judiciário até aos demais serviços públicos e às instituições privadas que se ocupam da prevenção das perturbações do normal desenvolvimento da criança e da vivência familiar.
São expressões exemplificativas mais recentes da acção do Governo para o progressivo enquadramento legislativo e estrutural (na referida política nesta área: o diploma que regula a criação, a competência e o funcionamento das comissões de protecção de menores; o decreto-lei que veio isentar de preparos e de custas os processos de adopção e estabelecer a gratuitidade das certidões de registo destinadas a instruir esses processos; a resolução do Conselho de Ministros que criou o Projecto de Apoio à Família e à Criança; o diploma que veio reformular, numa perspectiva de aperfeiçoamento e maior adequação às actuais realidades nacionais, o Instituto da Colocação Familiar; e a criação e instalação de tribunais de competência especializada mista em matéria de família e de menores.
Aliás, não é só do Governo esta preocupação pela família e pela criança mas de todas as forças políticas representadas nesta Assembleia, como decorre da recente aprovação, por unanimidade, do projecto de resolução sobre medidas de defesa das crianças em risco, apresentado pelo Partido Socialista.
Não enjeita, porém, o Governo as responsabilidades que lhe cabem relativamente a esta problemática, que vem constituindo uma das vertentes mais expressivas das suas preocupações, dos seus esforços e das suas actividades.
Compete-lhe, designadamente, uma colaboração determinante para que o sistema jurídico disponha dos instrumentos legais indispensáveis à prossecução política a que se aludiu. Por isso, veio trabalhando no estudo de propostas de alterações ao regime jurídico da adopção.
É de todos conhecida a importância sócio-jurídica deste instituto, fonte de relações jurídicas familiares, como um dos instrumentos mais relevantes para a resposta capaz ao problema da criança desprovida de meio familiar normal.
O instituto da adopção, tal como é previsto e regulado na actual ordem jurídica portuguesa, encerra claras

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virtualidades e vem respondendo razoavelmente aos objectivos visados, com a sua introdução ern 1966 e a sua importante reformulação em 1977.
São decorridos, porém, já 15 anos, pelo que é tempo de fazer traduzir em algumas alterações significativas os resultados da experiência da sua aplicação e as interpelações que derivam das rápidas e profundas modificações sócio-culturais que, desde então, se verificaram.
É o que se pretende com a presente proposta de lei, agora em apreciação, ela própria concretização de mais uma das medidas essenciais do Programa do Governo.
Como resulta da exposição de motivos e do articulado da proposta, importa trazer aqui, embora de forma resumida, os princípios, os objectivos e as grandes linhas das alterações que se propõe introduzir, destacando-se, entre os princípios, em primeiro lugar, o de que a criança é um sujeito autónomo de direitos, em que sobreleva o direito a um desenvolvimento harmonioso, num ambiente que exige afeição e responsabilidade e ausência de descontinuidades graves no seu acompanhamento afectivo e educacional; em segundo lugar, o de que a família, elemento essencial da sociedade, é considerada o meio privilegiado para a concretização desse direito fundamental da criança; em terceiro lugar, o de que se tem por indiscutível o primado da família nuclear natural para a concretização daquele direito no seu seio, com liberdade de opções educacionais e garantia do respeito do direito fundamental à reserva da vida privada e familiar; em quarto lugar, o de que é essencial a colaboração do Estado e da sociedade com a família para a realização do mesmo direito, sendo que, ao mesmo tempo, se toma o exercício da função parental pelos pais, não como um poder absoluto, mas como um conjunto de poderes-deveres atribuídos aos pais para a exercerem essencialmente no interesse dos filhos.
Por outro lado, implicará este carácter funcional do poder paternal a possibilidade e o dever, por parte do Estado, através de um órgão de soberania independente - o tribunal -, de delimitar ou inibir o exercício do poder paternal, quando, por acções ou omissões graves, tal exercício se afastar sensivelmente da sua referida função essencial.
Do mesmo modo que, verificados esses desvios graves, importa reconhecer á criança e à família o direito ao apoio da sociedade e do Estado para que, ern tempo útil para a criança, se tente a recuperação da função parental.
Quando, porém, essa recuperação, em tempo útil, não se mostre viável, nem por isso a família deve deixar de continuar a ser acompanhada e ajudada até para que se evite a reprodução, de geração em geração, de dificuldades graves, com sérias repercussões prejudiciais as crianças, às famílias e à comunidade.
Haverá, então, que procurar-se a melhor solução alternativa, sem demoras injustificáveis para as necessidades prementes da criança, embora sem pressas que perturbem a indispensável ponderação de todas as circunstâncias e interesses legítimos em presença.
O que tudo exige um diagnóstico interdisciplinar cuidado, base indispensável de opção esclarecida por um projecto alternativo que prossiga o interesse essencial da criança e considere os interesses justos dos elementos da comunidade, que se dispõem a colaborar para tornar viável a melhor solução alternativa.
Entre esses elementos da comunidade perfilam-se, sucessivamente: em primeiro lugar, membros da família natural extensa que, sendo familiares próximos da criança, se mostrem com vontade e capacidade para substituir os pais; em segundo lugar, candidatos a adoptantes que, recusando expedientes ilegítimos, aceitem uma selecção e um acompanhamento sérios e competentes, com vista à adopção; em terceiro lugar, casais e pessoas que, pela sua tutela ou apadrinhamento, são capazes de tomar a seu cargo a protecção e a educação da criança que não pode ser integrada adequadamente em família natural ou adoptiva; e, em quarto lugar, as organizações não governamentais, em especial as instituições particulares de solidariedade social.
Toda esta acção de detecção, diagnóstico, elaboração de projecto e sua execução exige uma acção coordenada, dinâmica e flexível, que, envolvendo os diversos agentes do Estado, designadamente os tribunais e os serviços de acção social, a família natural e a adoptiva, bem como as instituições da sociedade civil, contemple, de forma ajustada, todos os interesses legítimos em jogo, designadamente os daqueles que constituem o «triângulo adoptivo», isto é, a criança, a família natural e a família adoptiva.
Consagrados, assim, os princípios, importa definir os objectivos. E como objectivo essencial da alteração proposta, retira-se o de estabelecer mecanismos que facilitem a adopção, de forma mais clarificadora e segura para todos os intervenientes e mais capaz de satisfazer em concreto o interesse da criança desprovida de meio familiar normal, num esforço de concordância prática, que assegure o respeito pelos interesses legítimos e direitos de todos e se integre também numa perspectiva de interesse público.
Destaco, assim, entre as grandes linhas das alterações a introduzir, alguns aspectos mais significativos: desde logo, como primeira inovação, a previsão do instituto da «confiança judicial» do menor, com vista a futura adopção. A «confiança judicial» vem substituir, com vantagem, desde logo, por uma designação envolvendo menor risco de estigmatização, a declaração judicial de abandono, prevista na legislação ainda em vigor, reduzindo, porém, para seis meses o período durante o qual deve verificar-se o manifesto desinteresse pelo filho em termos de comprometer os vínculos próprios da filiação.
Pensa-se, em harmonia com os dados da experiência, os ensinamentos da sociopsicologia do desenvolvimento e ainda com um sentido actualizado da responsabilidade parental, decorrente do conceito e do conteúdo do poder paternal, que será assim melhor respeitado o interesse da criança de não ver protelada injustificadamente a definição, que lhe é essencial, da sua situação face aos pais biológicos, sem prejuízo do respeito pela posição e direitos legítimos destes.
Entretanto, para além desses casos que integram, na lei actual, o «estado de abandono do menor», tipificam-se outras hipóteses que podem fundamentar a «confiança judicial».
Relativamente à legitimidade para requerer a «confiança judicial», alarga-se a previsão actual, que apenas a atribui ao Ministério Público e à direcção do estabelecimento público ou particular de assistência onde o menor tenha sido recolhido, estendendo-a agora ao organismo de segurança social da área da residência do menor e à pessoa a quem o menor tenha sido administrativamente confiado. Assim se facilita a definição, com segurança, de situações que podem conduzir à adopção.
Para que a adopção seja decretada não é, porém, indispensável a prévia «confiança judicial».

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É que, resolvendo questão controversa na jurisprudência, pretende-se que a nova lei consagre claramente a solução de permitir que, no próprio processo de adopção, se possa dispensar o consentimento, que não tenha sido voluntariamente prestado, naqueles casos que teriam permitido a prévia «confiança judicial».
E projecta-se que o faça, abolindo o termo «indignidade» do actual artigo 1981.º, n.º 4, do Código Civil, na linha da já referida preocupação de evitar expressões que envolvam desnecessários riscos de estigmatização e de culpabilização excessiva dos que não puderam, não souberam ou não quiseram assumir as suas responsabilidades parentais.
Mas se a adopção, como se disse, não está dependente da prévia «confiança judicial», a possibilidade desta revelar-se-á de grande utilidade em vários e frequentes casos, permitirá que o investimento afectivo e educacional no período de pré-adopção se processe com a segurança e a serenidade indispensáveis, sem incertezas prejudiciais ao êxito do processo de integração da criança na nova família.
É que, confiado judicialmente o menor, deixa de ser necessário, no processo de adopção, o consentimento dos pais ou dos parentes ou tutor, conforme os casos.
O novo sistema conciliará, assim, a maleabilidade e presteza de actuação com a necessária segurança e clarificação das situações, no respeito de todos os direitos e interesses atendíveis.
Por outro lado, a legislação que agora se propõe torna a adopção dependente do facto de o adoptante ler tomado o menor a seu cargo com vista a futura adopção, mediante confiança judicial ou administrativa.
A confiança administrativa resulta de decisão do organismo de segurança social competente, que entrega o menor ao candidato a adoptante ou confirme a permanência a cargo deste. Procura-se, assim, no desenvolvimento da importante actuação desses organismos, reforçar condições para evitar casos de adopções menos sérias, claras e úteis à criança, obviando a situações de clandestinidade ou a intervenções censuráveis ou prejudiciais ao interesse do menor e ainda aos interesses legítimos dos candidatos a adoptantes que aceitem o processo normal e correcto de selecção.
A «confiança administrativa», tal como está concebida, não envolve riscos sequer comparáveis com os graves prejuízos que é adequada a evitar, tendo a seu favor a tradição da acção valiosa e correcta dos referidos organismos da segurança social responsáveis por essa confiança.
E a nova lei, tendo bem presente que, por força de disposição constitucional inquestionável, só ao tribunal compete limitar o poder paternal, conterá disposições perfeitamente aptas a preservar os direitos da criança e daqueles que detêm o poder paternal ou a guarda do menor, considerando ainda os interesses legítimos dos que pretendem colaborar, adoptando.
Assim, a confiança administrativa não pode ser decidida se houver oposição de quem exerça o poder paternal ou a tutela ou de quem detenha, de direito ou de facto, a guarda do menor.
A confiança administrativa não poderá, igualmente, ser decidida nos casos em que a situação do menor é objecto de processo instaurado em tribunal competente em matéria de menores ou de família e de menores.
O organismo de segurança social deve comunicar, em cinco dias, ao magistrado do Ministério Público junto do tribunal competente em matéria de família e de menores da área da residência do menor, a decisão e respectivos fundamentos de que resulte a confiança administrativa do menor, bem como a oposição que tenha impedido a confiança.
No caso de o pretendente a adoptante ter consigo menor não confiado pelo organismo de segurança social e este não confirmar a permanência da criança a seu cargo, pode interpor recurso para o tribunal de família ou de família e de menores da área da sede do organismo de segurança social.
Este sistema, que não deixará de ser acompanhado, com vista a uma avaliação cuidada, afigura-se mais seguro e constitui um dos elementos que se pretendem introduzir para fomentar uma ainda mais saudável, dinâmica, criativa e responsabilizaste cooperação entre a família, a comunidade, os organismos de segurança social e os tribunais.
De salientar, entretanto, que poderão vir a actuar nesta área, como organismos de segurança social, nos termos previstos para estes na nova lei, as instituições particulares de solidariedade social que, dispondo de equipas interdisciplinares suficientemente dimensionadas e qualificadas em termos de recursos humanos, vejam reconhecida, em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e do Emprego e da Segurança Social, a sua capacidade para essa actuação.
Também como inovação, sublinhe-se o ensaio de um sistema de colaboração mais activo, dialogante e coordenado entre cidadãos, famílias, organismos, instituições particulares ou oficiais que tenham a seu cargo ou conheçam crianças desprovidas de meio familiar normal e em risco e os organismos de segurança social, em ligação e cooperação com o magistrado do Ministério Público junto do tribunal competente em matéria de família ou de família e de menores da área da residência da criança.
Pretende-se o conhecimento e o estudo dessas situações, por forma a que seja possível diagnóstico interdisciplinar cuidado e sequente formulação de projecto, que viabilize: a permanência da criança na família natural ou o regresso a esta, sempre que viável; a solução alternativa possível que melhor salvaguarde o interesse da criança; a preparação da adopção, em tempo e por forma clarificada e segura, no interesse primacial da criança e com respeito pelos interesses legítimos dos outros intervenientes, quando, porventura, o estudo conclua que, no caso, deve ser essa a solução alternativa.
É claro que, fazendo parte integrante deste sistema de intervenção, situa-se também o tribunal, contudo reservado à sua função essencial e insubstituível de garantia dos direitos fundamentais e de definição coactiva das situações, ainda que ern colaboração coordenada com os outros intervenientes.
Outras inovações, entretanto, cabe ainda destacar aqui.
Desde logo, a necessidade de audiência de parentes do progenitor falecido, caso se trate de adopção de filho do cônjuge do adoptante, com vista a averiguar da conveniência do estabelecimento do vínculo. Pretende-se, desta forma, evitar que a criança perca a relação familiar com os parentes do seu progenitor falecido sem que estes fossem sequer ouvidos. Valoriza-se, assim, a função da família natural.
Depois, a possibilidade de, em casos excepcionais, modificar o nome próprio do menor adoptado plenamente, com vista a permitir uma melhor integração na nova família. Ao que acresce a admissão de recurso, para os tribunais competentes, das decisões dos organismos de segurança social que rejeitem a candidatura a adoptante.

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Outras inovações são a atribuição de carácter urgente aos processos de consentimento prévio e de confiança judicial do menor e o estabelecimento do prazo de um ano para, verificadas que sejam as condições de adopção, o adoptante a requerer em tribunal.
Finalmente, e com particular importância, regula-se, pela primeira vez, a adopção transnacional, procurando-se acautelar a seriedade, a clareza e a segurança das procedimentos.
Assim, regulamenta-se a colocação no estrangeiro de menores residentes em Portugal, com vista a serem ali adoptados, estabelecendo-se um regime de subsidiariedade de tal solução em relação à adopção em Portugal e a exigência de prévia confiança judicial do menor por tribunal português, regulando-se a competência e a legitimidade para o respectivo processo, bem como os requisitos da decisão, que visam garantir a estabilidade e a segurança necessárias a facilitar o êxito da futura adopção.
Estabelecem-se, entretanto, regras gerais relativas a procedimentos a seguir na adopção de crianças estrangeiras em Portugal.
Sei que foi apresentado, entretanto, pelo Grupo Parlamentar do PSD, um projecto de ligeira alteração nesta matéria, ultrapassando a situação da adopção transnacional, prevendo o princípio da subsidiariedade nacional e aplicando princípio de subsidariedade por comunidade. Posso dizer-vos que o Governo não tem, obviamente, qualquer oposição a que seja essa formulação agora proposta a que venha a constar em definitivo da proposta de lei de autorização legislativa apresentada.
Finalmente, a par destas inovações essenciais, algumas alterações cumpre também sublinhar. Registe-se, assim, a alteração profunda quanto ao segredo das identidades, criando-se, para a violação do segredo, um tipo legal de crime punível com a pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
Com a alteração relativa ao segredo da identidade dos pais naturais e ao carácter secreto do processo de adopção e dos procedimentos preliminares, pretende-se garantir o respeito por exigências compreensíveis de salvaguarda da intimidade e condições de serenidade no processo de integração e vivência da criança na família adoptiva.
Não se esquece, porém, o direito do adoptado ao conhecimento das suas origens e do seu património genético, mas entende-se preferível que as condições de exercício desse direito sejam apreciadas e decididas caso a caso por órgão independente e preparado - o tribunal - que, tendo uma visão conjunta, possa satisfazer esse direito nas condições que melhor correspondam aos interesses do próprio titular e respeitem o mais possível os interesses legítimos da família natural e da família adoptiva num exercício correcto, tantas vezes exigente, de compatibilização prática de direitas.
Por outro lado, ajusta-se o instituto à realidade actual. Assim, o adoptando pode agora ser adoptado até aos 15 anos; podem ser adoptantes duas pessoas casadas há mais de quatro anos e, no caso de adopção singular, basta agora que se tenha 35 anos. Os adoptantes devem, contudo, ter menos de 50 anos, à data ern que o menor lhes foi confiado.
Em adequação à Convenção Europeia em Matéria de Adopção, proíbe-se o consentimento da mãe antes de seis semanas após o parlo, o que permitirá levantar a reserva feita aquando da ratificação da Convenção Europeia.
O consentimento prévio passa a poder ser requerido e prestado no tribunal da área da residência do menor ou de qualquer dos pais, atribuindo-se ao Ministério Público legitimidade para requerer ao tribunal que seja designado dia para os pais prestarem consentimento prévio.
Finalmente, clarificam-se aspectos controversos do actual regime. Assim, como já se acentuou a propósito da inovação da «confiança judicial», os fundamentos desta e a nova regulamentação dos consentimentos permitirão, com segurança, esclarecer a divergência jurisprudência! acerca da distinção entre desinteresse e indignidade; quanto ao consentimento dos pais, esclarece-se agora que deve ser prestado sempre por estes, ainda que sejam menores; a idade máxima do adoptante reporta-se agora, expressa e inequivocamente, à data em que o menor lhe haja sido confiado; e a idade máxima do adoptando reporta-se expressamente à data da petição judicial da acção.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em conclusão, confia o Governo que as alterações que pretende introduzir numa matéria das mais delicadas - porque ligada ao mundo maravilhoso dos afectos, das fantasias, dos desejos mais profundos do ser humano - vão facilitar, por um lado, que se detectem e diagnostiquem, de forma interdisciplinar e interinstitucional, os casos de crianças desprovidas de meio familiar normal; depois, que se formulem mais correctamente projectos e soluções; por outro lado, que se promova, de forma mais clara e segura, a adopção; por outro lado, ainda que se adeqúe a lei à realidade portuguesa, tendo em conta a experiência acumulada na prática comunitária, administrativa e judiciária; e, finalmente, que se acelere, garantida sempre a máxima segurança, um processo cujas delongas põem em causa tantas vezes a realização integral do seu nobre objectivo.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: O debate que vai seguir-se verá, certamente, substituída a emoção da disputa política pela emoção que acompanha sempre as mais singelas manifestações de solidariedade humana.
Para lá do sempre necessário rigor normativo das regras de direito, o que vos propomos hoje é uma lei com gente dentro, melhor compreendida com argumentos da vida do que com razoes de oportunidade puramente intelectual. E de crianças que se trata e é de felicidade que falamos. O consenso será, por isso, aqui, o nosso orgulho. Que esta seja, então, não apenas uma lei de todos nós, mas um desafio para todos nós. Por isso, que o vosso voto unânime, que aqui tomo a liberdade de solicitar, signifique menos um aplauso à iniciativa do Governo e mais uma carícia de esperança num futuro melhor para muitas das crianças que, embora ainda sem o saberem, acreditam já na nossa capacidade de compreender e de agir.

Aplausos do PSD e do CDS.

O Sr. Presidente: - Para formular pedidos de esclarecimento, inscreveram-se os Srs. Deputados Odete Santos, José Vera Jardim e Narana Coissoró.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sr. Ministro da Justiça: Pretendo colocar apenas algumas questões muito breves.
O Governo tem já pronto um projecto de decreto-lei sobre esta matéria que enviou recentemente à Assembleia da República. A primeira questão que coloco relaciona-se com esse facto. Porque é que, ern vez de uma autorização legislativa, e não estando a Assembleia em férias parlamentares, o Governo não apresentou uma proposta de lei material, que tomaria possível um debate muito alargado

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sobre algumas questões, que podem ter respostas diferentes ou sobre as quais podemos até, no final, estar todos de acordo, mas que possibilitaria sempre essa reflexão?
A segunda questão relaciona-se com o instituto da confiança administrativa. Acabei de manifestar, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a propósito da discussão do parecer da Comissão, o meu desacordo em relação ao instituto da confiança administrativa.
Penso que a adopção se pode resolver com a confiança judicial, até porque a confiança administrativa, tal como aqui vem configurada no diploma - e estou a referir-me já ao projecto de decreto-lei -, alonga desnecessariamente o processo da adopção, pois, primeiro, exige-se um relatório, que com certeza só estará elaborado no fim do prazo máximo que é concedido - se não considerarmos aqui os casos em que esse prazo é excedido-, dada a míngua de trabalhadores e, até, a questão dos disponíveis na função pública, e esse prazo é de seis meses, e depois é necessário que se cumpra o prazo de mais um ano em que o menor reside com os candidatos a adoptandos, e só depois é que se dará início ao processo judicial. Não seria melhor começarmos logo com o processo de confiança judicial e pôr de lado a confiança administrativa?

Vozes do PCP: - Muito bem!

A Oradora: - A terceira questão é a seguinte: penso que a confiança judicial, que a proposta do Governo coloca como condição prévia e necessária para ser decretada uma adopção, terá tido por objectivo resolver um problema com que as instituições se defrontam e que é consubstanciado pelas verdadeiras situações de tacto - chamemos-lhes adopções de facto - que passam à margem dos organismos da segurança social, isto para não falar já dos registos de nascimento falsos e dos supostos partos, que não o foram, e em que a pessoa que quer adoptar figura logo como mãe nos hospitais. Perante o que aqui está, nomeadamente a alteração proposta para os artigos 1982.º e 1983.º, salvo erro, do Código Civil como é que se resolve este problema das situações de facto, que colocam os organismos perante uma situação que já é irremediável e que irá causar traumas, mesmo as crianças, se o organismo se decidir pela não entrega daquela criança? É que nesses artigos refere-se «a pessoa que tiver acolhido a criança». Portanto, admite-se que haja um acolhimento sem ser a confiança.
Por isso mesmo, penso que este problema só se resolve com a reforma de mentalidades, e acho que, de facto, isto continua a permitir que a confiança judicial, considerada absolutamente necessária, não resolva o problema.
Por último, quero expor duas dúvidas que lenho. Não percebo a questão relativa aos quatro anos de casamento, que surge com este diploma. Estabeleceu-se uma medida entre três e cinco anos? A medida lógica a estabelecer seria a de três anos de casamento, pois é este o prazo que se dá aos cônjuges para que decidam sobre a manutenção ou não da estabilidade familiar - porque a partir deste período os cônjuges podem divorciar-se por mútuo consentimento. Penso que o prazo de três anos seria mais lógico. Ou acha que os cônjuges adquirem a maturidade só ao fim de quatro anos de casamento?
A outra dúvida é a seguinte: não haverá alguma contradição, depois de se dizer «é permitida adopção quando o menor tiver menos de 15 anos», vir exigir-se o consentimento quando ele tiver mais de 14 anos? Não seria melhor uniformizar a idade e, em relação a essa questão, adoptar sempre como ponto de referência os 15 anos? Para finalizar, penso que este é um debate importante e o Grupo Parlamentar do PCP não quis deixar de contribuir com um projecto de lei para este debate.

Vozes do PCP: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, quer responder agora ou no fim?

O Sr. Ministro da Justiça: - No fim, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem, pois, a palavra o Sr. Deputado José Vera Jardim.

O Sr. José Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, Sr. Ministro: Corremos o risco de nos repetir. V. Ex.ª, cada vez que sobe àquela tribuna, faz um apelo ao consenso. Eu e outros Deputados da minha bancada, cada vez que falamos, dizemos-lhe repetidamente que o consenso tem condições para existir, sendo uma delas o facto de conhecermos, com a necessária antecedência, o que V. Ex.ª pretende. Há-de concordar que há uma grande diferença entre a autorização legislativa e o decreto, o qual, estando pronto praticamente desde o início de 1991, como bem sabe, e depois de sofrer apenas ligeiras diferenças, só chegou à Assembleia na sexta-feira passada Esta é uma nota inicial que aqui quero deixar.
O Sr. Ministro da Justiça, nesta matéria, trata da superestrutura, porque quem trata da infra-estrutura não é V. Ex.ª Lamentamos, e queremos deixá-lo aqui bem claro, que não esteja presente na bancada do Governo o Sr. Ministro que trata da infra-estrutura, o Sr. Ministro do Emprego e da Segurança Social.
Em matéria de menores, V. Ex.ª não tem infra-estruturas. E poderá dizer: «felizmente que não tenho». E isso porque as que tem estão numa desgraça tal que o Sr. Ministro, no que diz respeito aos estabelecimentos tutelares de menores, já não deve querer, com certeza, mais instituições que tratem de menores no terreno, porque todos sabemos - e também o queremos deixar aqui bem claro, e V. Ex.ª sabe isso tão bem como nós -, a situação de verdadeiro escândalo em que se encontra a maior parte desses estabelecimentos.
Dadas estas duas notas, queria apenas colocar-lhe duas ou três questões muito concretas.
A primeira diz respeito à introdução, nesta proposta, da figura da confiança administrativa. O Sr. Ministro, na sua intervenção, rodeou-a de vários cuidados, enunciou as condições em que ela ia ser concedida, mas, no fundo, há uma série de contradições no seu discurso e nas propostas que apresenta. E porquê? Porque V. Ex.ª vem atribuir ao processo da confiança judicial, assim como ao do consentimento, a natureza de urgentes. E ainda bem, porque sabemos que é aí que, a maior parte das vezes, devido à demora extrema dos tribunais em resolverem situações deste tipo, está um dos grandes estrangulamentos neste tipo de actuações.
Mas depois, ao contrário do discurso que proferiu, chamando a atenção para a necessária ponderação por parte do Estado e de uma entidade independente, como os juízes, em matérias desta sensibilidade, vem criar um processo da confiança administrativa com que não podemos, de modo nenhum, estar de acordo. Primeiro, porque ele é introduzido ao arrepio de toda a nossa tradição, embora esse não

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seja um argumento por si só, porque há um controlo do juiz em decisões desta natureza e tem de continuar a haver.
E coloco-lhe uma questão em relação à qual V. Ex.ª não foi claro no seu discurso: o que é que sucede ao poder tutelar, no caso da confiança administrativa? Repare que, em muitos casos, a confiança administrativa será decidida pela própria instituição que vai ter a seu cargo o menor. Esta situação pode suceder. E não me parece que seja remédio para tal o n.º 4 que V. Ex.ª introduz no decreto-lei, que é uma declaração de princípio muito bonita, em que se prevê que se mandem as cópias ao Ministério Público. Perguntava a V. Ex.ª que meios, que ajuda, em termos de pessoas que tratem dos aspectos psicológicos, sociais, etc., tem o Ministério Público para controlar e averiguar aquilo que se passou no processo da confiança administrativa.
Penso que o Sr. Ministro, ao introduzir, simultaneamente, nesta autorização legislativa, a urgência do processo judicial, declarando que entende que ern decisões desta natureza deve haver sempre um controlo judicial e independente do juiz, e a criação desse processo da confiança administrativa, cai numa manifesta contradição. Não vemos razão para se ter ido, para já, para um processo deste tipo, tanto mais que ele não será apenas atribuído aos centros de segurança social, mas poderá ser também atribuído àquelas entidades, muito relevantes e por quem temos grande admiração - e sabemos o trabalho que muitas delas têm desenvolvido -, mas que não nos merecem, apesar de tudo e por enquanto, por não terem a experiência que este decreto exige, a confiança suficiente neste aspecto, pelo que nos parece extremamente arriscada esta introdução da confiança administrativa. Esta, a nossa grande crítica à proposta de autorização legislativa e também ao decreto que a acompanha.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: Queria aplaudir a intervenção do Sr. Ministro da Justiça, porque disse, e bem, que esta lei não devia ser a lei de um partido nem de um ministro, mas, sim, a lei da criança portuguesa. E por que somos sensíveis a esse apelo de fazer uma lei da criança portuguesa, e não a lei deste Governo, Ministro ou partido, gostei do seu gesto, e essa é a única razão por que me sinto vinculado a algumas das propostas feitas por V. Ex.ª.
O que transparece deste diploma é que continua ainda o desamor à adopção restrita. O instituto da adopção restrita não é minimamente mexido. Ora, nós verificámos que existem fenómenos internacionais, devido aos quais, por exemplo, por causa das guerras, das secas, das lutas civis, etc., aparecem muitas vezes, em Portugal, crianças que tem uma casa de acolhimento, e simultaneamente aparecem famílias que têm o desejo de as tratar bem, mas que não gostariam de prendê-las definitivamente à sua família mediante a adopção plena, e, ao mesmo tempo, não gostariam também de ter um vínculo tão ténue como a «adopção de facto». É preciso exercer o poder paternal, é preciso alguma coisa que ligue a criança adoptada aos adoptantes, não vá amanhã aparecer qualquer senhora a dizer «este é meu filho e vou levá-lo imediatamente» - só porque ele veio durante a guerra metido num comboio ou num avião. É necessário que essa pessoa dê uma justificação da razão de só agora aparecer e os adoptantes têm de ter alguma certeza de que, enquanto a criança estiver sob a sua tutela, não serão perturbados por supostos pais que aparecem a exigir o filho.
Por sua vez, tem-se provado muitas vezes quanto à adopção restrita, não apenas em relação às crianças estrangeiras, por exemplo da Bósnia, mas também relativamente à própria comunidade portuguesa que, para o amparo das próprias crianças e para que elas não cortem cerce toda a sua ligação à família biológica natural, estas podem ter duas famílias - alias, como V. Ex.ª aqui explicou. Esse jogo no sentido de serem mantidos laços com a família natural e ao mesmo tempo a criança ter uma probabilidade de ascensão social ou educacional e de protecção de uma família que ela admite também como se fosse a sua, mas onde recebe todos os cuidados, pode também ser servido pela adopção restrita porque permite esse desiderato de manutenção de uma ligação da criança à sua família natural, ao mesmo tempo que mantém uma ligação à família dos adoptantes.
Ora, não vejo retratado este instituto no diploma em análise e faço minhas as palavras já ditas quanto à confiança administrativa. E isto pela simples razão de se tratarem de organizações não particularmente dedicadas ou vocacionadas apenas para tratar de menores, pois têm muitas outras funções a desempenhar que lhes são conferidas por lei, pelo que, para estas organizações, o cuidado e a defesa da criança é mais uma atribuição e não apenas a única. Se existisse um organismo dedicado apenas aos cuidados da criança, poderia aceitar de bom grado a sua entrega a essas organizações especialmente vocacionadas para o problema.
É que é sempre melhor entregá-las a uma família do que a organizações da segurança social. E dou-vos o exemplo do que sucedeu no ano passado com uma determinada criança: uma rapariga, que estava a trabalhar na Embaixada do Egipto, supostamente alegou maus tratos por parte dos seus amos - não eram sequer pais adoptivos, a rapariga tinha 14 anos e era uma espécie de companheira dos filhos do conselheiro da Embaixada - e o juiz de menores decidiu que, até se verificar a situação e saber se ela recebia ou não maus tratos, esta iria para um organismo da segurança social em Coimbra. O que é certo é que, passados oito dias, a rapariga foi ao rio Mondego com os seus colegas e morreu afogada e a carta que foi enviada à Embaixada do Egipto dizia apenas o seguinte: «Lamentamos ter de informar que a nossa querida Fulana de Tal morreu ontem às tantas horas!» Nem sequer dizia o que é que tinha acontecido! E tratava-se de uma instituição religiosa, não era uma instituição laica!
Assim, para evitar casos destes, é sempre melhor uma decisão judicial prévia para entregar qualquer criança a qualquer organismo do que a mera confiança administrativa.

(O orador reviu.)

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por agradecer todas as questões que me foram dirigidas relativamente a uma matéria que, obviamente, é, por si própria, consensual e não necessariamente resolvida pela via do projecto de iniciativa do Governo, e gostaria de dizer à Sr.ª Deputada Odete Santos que nós não podemos ser «presos por ter decreto e presos por não

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ter». Se apresentamos uma proposta de autorização legislativa e a não acompanhamos do respectivo projecto de decreto-lei, somos acusados de que apenas com a proposta de autorização legislativa dificilmente os Srs. Deputados estão em condições de poder dar o apoio e a aprovação que solicitamos; se a apresentamos acompanhada do projecto de decreto-lei, somos acusados de que, nessa medida, então, deveríamos ter apresentado uma proposta de lei e não um pedido de autorização legislativa. Como, de qualquer forma, o caminho que seguimos é obviamente legal - e isto não é posto em causa sequer por V. Ex.ª - e representa essa abertura de apresentar a todos vós não apenas a proposta de autorização legislativa, mas o respectivo projecto de decreto-lei, suponho que manifestamos aí uma abertura e um desejo de diálogo e de procura de consenso com VV. Ex.ªs que não pode deixar de ser sublinhado.
Relativamente à questão da confiança administrativa que foi colocada por V. Ex.ª, pela bancada do PS e pela bancada do CDS, gostaria de referir o seguinte - embora infelizmente muito rapidamente, visto que não disponho de tempo suficiente para fazer uma intervenção mais aprofundada: nós não podemos, antes de mais, ter uma noção exclusivamente judicialista do conjunto do processo da adopção. É, evidentemente, fundamental que o processo da adopção tenha a garantia da intervenção judicial - e essa está absolutamente garantida também no projecto que intentamos levar por diante -, mas não podemos ter, repito, uma intervenção totalmente judicialista de todo o conjunto do processo. Nós temos uma série de situações que podem, justamente pela via da confiança administrativa, conduzir à adopção, desde que - e esse seria o ponto onde VV. Ex.ªs teriam razão - esse processo de confiança administrativa tenha a tutela judicial normal, ou seja, uma tutela judicial de acompanhamento, de selecção de situações e, inclusivamente, de selecção até para a projecção da maior celeridade relativamente ao processo de adopção propriamente dito.
Dizendo isto de forma mais concreta, o facto de a autoridade ou o organismo de segurança social ter, no prazo de cinco dias, que é um prazo imediato, que comunicar ao Ministério Público quer a situação em que confiou administrativamente, quer a situação em que houve oposição à confiança administrativa, faz transitar, obviamente, para uma autoridade independente, que tem uma função parajudicial, aquelas que, no fundo, são as apreensões manifestadas por VV. Ex.ªs.
Compreenderia que assim não fosse se, por exemplo, nós vivêssemos num sistema judiciário ou parajudiciário em que o Ministério Público tivesse uma função de total dependência relativamente ao Executivo. Mas não tem - e ainda há relativamente pouco tempo nós consagrámos aqui a autonomia total do Ministério Público - e, portanto, a independência do Ministério Público, nessa perspectiva, é aqui a garantia da judicialização ou da parajudicialização do controlo do respectivo processo. Portanto, logo que a informação chega ao Ministério Público, ele próprio pode solicitar a conversão da confiança administrativa em confiança judicial.
Por outro lado, se se entender que assim não é, ele tem outro tipo de acompanhamentos, através dos instrumentos de que dispõe, para poder fazer o acompanhamento da transição da criança confiada administrativamente para poder transitar para o processo já efectivo de concessão da adopção pela via judicial sempre consagrada. O que está aqui em jogo, em termos de comparação, não é a confiança administrativa versus confiança judicial, mas a confiança administrativa versus nada, que é o que acontece actualmente, em que uma séria vastíssima de situações, que agora passam a ser cobertas pela confiança administrativa com toda esta grelha de controlo, hoje são descobertas de qualquer tipo de controlo. E muitas vezes o sistema não faz outra coisa senão intervir para regularizar situações de facto, elas próprias já produtoras de situações claramente perversas para o crescimento e para o desenvolvimento normal da criança.
Por outro lado, não podemos ter da intervenção dos organismos de segurança social, e, portanto, da intervenção administrativa, a concepção que resulta de uma visão claramente negativista da intervenção da própria administração. Nós vivemos, Sr. Deputado, num regime democrático. As instituições do Estado, na sua globalidade, são elas próprias instituições democráticas. Nós não vivemos hoje a necessidade de ter também a este nível - e não apenas ao nível central, mas ao nível regional e local - uma tutela absoluta do judicial em intervenção originária e primária. O que é fundamental é que essa tutela do judicial esteja permanentemente garantida e não necessariamente que façamos descer a intervenção do judicial à zona inicial ou originária do desenvolvimento do processo. Aí temos, obviamente, que confiar nas nossas instituições, na sua capacidade ética de intervenção, e sobretudo naquela que é a grande tradição dos organismos de segurança social nesta matéria. Aliás, hoje, os centros regionais de segurança social são eles já centros de adopção e, portanto, o que aqui estamos a fazer é a regulamentar, de uma forma mais precisa, mais segura e mais clara, uma realidade que hoje existe e que tem, inclusivamente, demonstrado ter capacidade para uma afirmação de segurança e de qualidade.
Quanto ao problema das idades - e digo-o com toda a abertura -, não temos nenhum compasso nem nenhuma régua e esquadro que nos permitam dizer que são quatro anos e não são nem cinco nem três. Há sempre aqui alguma tentativa de procura de bom senso, e creio que a minha intervenção inicial, adicionada à intervenção de V. Ex.ª, por sua vez adicionada a esta minha intervenção agora, nos vai deixar no ponto exacto. A lei anteriormente previa cinco anos, V. Ex.ª diz que, ao fim de três anos, a maturidade do casal estará conseguida, a lei actualmente também o diz e, portanto, nós entendemos que, se a lei considera que essa maturidade está conseguida ao fim de três anos, deveremos dizer quatro anos para dar uma margem de segurança. Digamos que a maturidade de três anos está conseguida para o casal funcionar entre si com filhos naturais e nós damos mais um ano para que o casal adquira essa maturidade relativamente aos filhos adoptivos.
O mesmo se passa relativamente à criança de 15 anos. Porquê 15 anos e não 14 anos como actualmente? Exactamente porque, podendo a adopção acontecer até aos 18 anos, entendemos que esta margem de três anos é suficiente para permitir que ainda outro tipo de crianças que possam vir a ser adoptadas possam ser abrangidas agora por um processo mais célere e mais moderno de adopção.
Sr. Deputado José Vera Jardim, nós temos realmente essa aproximação recíproca e sucessiva relativamente àquilo que seja o consenso e temos feito chegar, progressivamente mais depressa e mais consubstanciadamente, os diplomas. Desta feita, a novidade está no decreto que é apresentado, juntamente e na véspera, dois ou três dias antes, da proposta de autorização legislativa, mas - e

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V. Ex.ª terá compreendido mal, obviamente por deficiência da minha explicitação - não solicitei o consenso para o diploma enquanto elaborado nestes termos e sim o consenso desta realidade, que é necessariamente consensual. E era importante que, à volta dessa consensualidade que a realidade nos impõe, pudéssemos fazer sair daqui um diploma que fosse de facto um diploma de todos nós para ser um diploma abrangente de todas as crianças. Foi nessa perspectiva que ele foi trabalhado, com um debate longo - e devo dizer que não está nada concluído desde o início de 1991, porque, se o estivesse, com certeza que nós já o teríamos feito avançar. O que ele está é em maturação e em reflexão constante, para que possa ser aqui apresentado como um diploma de uma enorme responsabilidade ética e não apenas como um diploma de responsabilidade política. E, ao apresentarmos este diploma aqui, temos que estar profundamente convencidos de que demos o melhor do nosso esforço para garantir essa convergência ética com as exigências da matéria que está em questão e com as soluções que aqui apresentamos.
Deixe que lhe diga, Sr. Deputado, que quando V. Ex.ª diz que as instituições do Ministério da Justiça não são instituições capazes de responder a este tipo de problema, lhe direi que certamente não são, porque não têm sequer, elas próprias, vocação para serem originariamente instituições para responder a este problema. Nós temos uma visão, também ao nível do Governo, interinstitucional e interdisciplinar, e quando apresentamos este diploma, apresentamo-lo subscrito pelo Ministro do Emprego e da Segurança Social e, portanto, é óbvio que é com a partilha de competências que o definimos internamente.
Mas quando V. Ex.ª fala na degradação e no escândalo que são os institutos de menores em Portugal, Sr. Deputado, eu aceito-o, pois quando não estamos claramente de acordo com aquela que é uma perspectiva de consensualização política mas estamos de acordo com o diploma que está em discussão, temos de criar algum debate de divergência política um pouco lateral! Compreendo isso! V. Ex.ª cumpriu a sua função como Deputado da oposição, claramente não contestou o diploma mas as instituições do Ministério da Justiça, e não tenho dúvida de que, noutra perspectiva, V. Ex.ª seria o primeiro a reconhecer - porque tem uma intervenção política séria - que, de facto, não é um escândalo o que se passa hoje nos estabelecimentos de menores do Ministério da Justiça pois há uma recuperação sensível nesse domínio e V. Ex.ª, por todas as razões, conhece-a tão bem como eu e sabe que, efectivamente, não é assim. Houve tempos em que assim era, evidentemente que estamos muito longe de ter aquilo que gostaríamos de ter, mas várias reportagens espontâneas realizadas ultimamente demonstram exactamente o contrário.
O que eu não gostaria de concluir, e não concluo - porque não quero entrar num debate político puramente dialéctico e retórico -, é que V. Ex.ª tem uma concepção institucionalista da adopção. Nós estamos a falar da adopção e da libertação das instituições e não da afirmação das instituições como alternativa à criação da família natural. Não foi isto que V. Ex.ª disse, ser-me-ia fácil imaginar que foi e dizer que tinha sido, não é esse o caminho que estamos a seguir hoje aqui e, portanto, interpreto a intervenção de V. Ex.ª como um arremedo da oposição perfeitamente legítimo. Com certeza que estamos de acordo se considerarmos que assim é, e é bom que o debate parlamentar, mesmo em questões de consenso, seja um debate vivo.
Quanto ao problema da confiança administrativa, considero-o respondido com o que disse anteriormente em termos mais globais.
Agradeço as palavras do Sr. Deputado Narana Coissoró, palavras de afirmação e de manifestação da compreensão do consenso que foi proposto inicialmente por mim, e, relativamente à adopção restrita, dir-lhe-ei, seguindo a linha de pensamento de V. Ex.ª, que ainda bem que não introduzimos alteração nenhuma, porque a alternativa era acabar com a adopção restrita. Esse é hoje um caminho que se vai seguindo. A Espanha acaba de o fazer há relativamente pouco tempo, mas nós entendemos que não o devíamos fazer não tanto por razões que se prendem com essas situações, mais ou menos conjunturais, como é a situação de grande infelicidade da maior parte das crianças da Bósnia-Herzegovina, mas, sobretudo, por uma razão diferente. É que entendemos que ainda há hoje um conjunto significativo de situações de adopção restrita em Portugal, e não se trata aqui de estar à la page com o que se passa na Europa, mas, sim, de estar, sobretudo, ao corrente daquilo que se passa intramuros no nosso próprio país. E as situações de adopção restrita são ainda em número suficiente para justificar a sua manutenção.
Em todo o caso, creio que essa não é a melhor solução para situações como as que acabou de referir. Aí creio que temos de ter, e temos tido, claramente, a grande compreensão para as situações familiares que essas crianças atravessam, mas não devemos, precocemente, dar passos no sentido de quebrar os vínculos familiares naturais, mesmo que eles se mantenham na perspectiva da adopção restrita. Penso que esse é um problema mais de solidariedade de gente, de povo e de Estado relativamente às situações transitórias em que as crianças se encontram e não a uma situação intermédia, de uma certa disfunção familiar entre o que é a família natural e o que pode, eventualmente, vir a ser uma família adoptiva. Se essa é claramente a situação, que seja então uma adopção plena; se não é, não é pela via da adopção restrita que esse tipo de situações devem ser resolvidas.
Quanto ao problema da confiança administrativa, devo dizer que a resposta é obviamente a mesma. Claro que uma leitura mais atenta e mais circunstanciada do decreto - e só digo que não terá sido completamente atenta e circunstanciada porque, embora chegado há três dias, é necessária, evidentemente, uma exegese mais aprofundada - vai demonstrar que os instrumentos por nós propostos têm, todos eles, as «almofadas» e as linhas de segurança suficientes para garantir que este seja realmente o diploma da criança portuguesa desprovida do meio familiar normal.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo, Sr. Ministro da Justiça: O instituto da adopção, com a finalidade que o vem caracterizando - o de dar uma família a uma criança da mesma despojada -, é encarado como uma das respostas aos problemas colocados pela situação da infância e juventude.
A evolução histórica do instituto indica-nos que o agravamento da situação das crianças tem determinado, a nível internacional, a reformulação do vínculo familiar da adopção, por forma a facilitá-lo, com vista a minorar situ-

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ações graves de penúria ou abandono de crianças. As duas grandes guerras mundiais, com o seu cortejo de menores abandonados e de órfãos, determinaram o ressurgimento da adopção na óptica do interesse da criança.
A instituição familiar conheceu, assim, mais uma transformação, com a qual se ia acentuando a importância do afecto, a sua prevalência em estruturas que, embora com dificuldades e conflitos, se iam libertando do peso dos interesses patrimoniais, até então subjacentes aos vínculos de parentesco.
Sendo assim, fruto de condições de especial gravidade vivida pelas crianças e jovens, toda a reformulação do instituto de adopção conduz-nos a interrogações sobre a situação que determina as medidas legislativas. E por pensarmos que isso é pouco, não nos ateremos apenas ao que se passa a nível nacional já que organizações internacionais têm vindo a aprovar recomendações, convenções e resoluções, salientando a importância da adopção, como forma de resolver alguns dos graves problemas das crianças. Assim acontece com as recomendações de 1987 e 1988 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, com a Recomendação n.º 1071, de 1988, da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, com a resolução da ONU, de 1988, sobre a adopção e com a recente Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças. Tais documentos não deixaram de partir da constatação da gravidade dos problemas que, a nível mundial, se colocam quanto à situação da infância.
Uma recente publicação da UNESCO, de Janeiro de 1991, fala-nos dos 5 milhões de crianças de rua em África - um sinal de alarme! Vimos, aliás, algumas delas em recente reportagem televisiva. Crianças vítimas de recessão económica generalizada, da pauperização acelerada que se abate sobre o seu continente, das guerras que as afastam definitivamente dos pais. Usadas, por vezes, em guerras, pretensamente libertadoras - o que acontece, por exemplo, com as crianças que andam a mando da Renamo, como vimos na televisão -, são pequenos soldados a quem privaram de amar.
É ainda a UNESCO que alerta: crianças de rua são 30 milhões em todo o mundo, sendo 5 milhões em África.
Vergonha para o mundo neste final do século XX!
Em 1990 realizou-se na sede das Nações Unidas o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, no qual se assumiram obrigações, a que esteve subjacente o respeito pelo princípio da prioridade absoluta para a criança na aplicação dos recursos da sociedade. Tal como se realça no relatório, datado de 1992, da UNICEF, sobre a situação mundial da infância, «a própria essência do desenvolvimento infantil é um compromisso que todas as sociedades deveriam assumir, e manter, tanto nos bons como nos maus momentos. Esse compromisso não deveria ser abalado ern tempos de recessão económica, não deveria ser preterido pelas exigências de ajustes estruturais, não deveria ceder diante da pressão de interesses de grupos particulares [...]». Mas, de facto, conforme se adianta no relatório, o princípio da prioridade absoluta para a criança é frequentemente abandonado, nos momentos em que a criança mais dele necessita, nos momentos de grande tensão na política internacional. E os exemplos, apesar do mencionado Encontro Mundial e das obrigações nele assumidas, proliferam no relatório da UNICEF.
O Fundo de Defesa da Criança, com sede em Washington, denuncia que a proporção de crianças vivendo na pobreza nos Estados Unidos aumentou de 14 % na década de 60 para aproximadamente 22 % na época actual. Mas, acrescenta o relatório da UNICEF, aos números de escândalo da subnutrição, da miséria, somam-se ainda os 10 milhões de crianças sofrendo de traumas psicológicos causados por guerras.
No entanto, o verdadeiro massacre de crianças a que o mundo assistiu na última década - e os números constam desse relatório da UNICEF - continuou em 1991, com mais de 40 guerras que nesse ano se desenrolaram. Por exemplo, no Iraque, foram as crianças que pagaram o altíssimo preço da guerra. A taxa de mortalidade infantil aumentou aí acentuadamente.
Neste final de século, salienta-se no relatório sobre a situação mundial da infância, a participação de civis ern guerras é normalmente de 80 %, na sua maioria mulheres e crianças. E as crianças - as crianças, Srs. Deputados - são as que carregam o fardo mais pesado. É todo um futuro que, repentinamente, se cerra num horizonte sem amanhã. Charles Dickens colheria hoje, infelizmente, um inesgotável manancial para novas obras!
Perante este panorama, não admira assim que novas reflexões se venham fazendo sobre a instituição familiar, sobre o estabelecimento e conteúdo dos vínculos familiares, sobre os meios de dotar com uma família crianças em situação de crise e sobre a necessidade de facilitar o estabelecimento de parentesco por adopção.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: A reformulação deste instituto, proposta pelo Governo, vem no seguimento de diversos trabalhos, estudos e debates a que vêm procedendo todos os que trabalham na área da infância e juventude.
Confrontados, cada vez mais, com os graves problemas das crianças abandonadas, das crianças em situação de risco, das crianças maltratadas, fenómeno que vem surgindo com uma frequência preocupante, magistrados, assistentes sociais, médicos e todos os que à criança se dedicam vêm reclamando medidas que tomem possível uma melhor resposta. Temos, de facto, razões para estar preocupados.
Muitas das nossas crianças já não se assemelham hoje a «bandos de pardais à solta». Não tem um colo de pai, não sentem regressar a ternura ao fim do dia, porque nunca fizeram a sua aprendizagem. Alguns vagabundeiam, mas ainda há outros, os que trabalham duramente e que não têm, por isso, melhor sorte.
O trabalho infantil, o expoente máximo de uma situação de exploração selvagem, constitui entre nós um indicador de vergonha sobre a situação da infância no nosso país. Portugal já foi classificado como a pátria do trabalho infantil. Segundo a OIT, teremos cerca de 200 000 crianças, vítimas de soez exploração. E isto não pode ser esquecido nem calado, nem há obra de cosmética que possa esconder esta afronta, agora que se começa a preparar a Conferência Internacional sobre o Trabalho Infantil, que as Nações Unidas vão promover em 1994.
O Governo apresentou um pedido de autorização legislativa para introduzir alterações ao instituto de adopção. Estando já preparado o decreto-lei autorizado não se compreende que não tenha apresentado para discussão o próprio diploma.
A Assembleia da República já, por mais de uma vez, se debruçou sobre as questões relacionadas com a criança e está em condições de analisar, debater, alterar, se for necessário, as propostas concretas sobre a reformulação da adopção, tanto mais que a rica experiência dos nossos tribunais fornece todos os elementos que tornam possível o debate e a procura das melhores soluções, tanto mais que

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a Assembleia da República está em funcionamento, não podendo sequer as férias parlamentares funcionar como passa culpas, à semelhança do que acontece com alguma frequência, segundo as declarações do Governo.
Foi porque entendeu que o papel da Assembleia ficaria limitado com o mero debate do pedido de autorização legislativa, apenas enunciadora de princípios e orientações, que o PCP resolveu apresentar o projecto de lei n.º 219/VI.
As questões da adopção merecem, desde há muito tempo, a atenção do Grupo Parlamentar do PCP, que já, aquando da aprovação da Lei da Protecção da Maternidade e da Paternidade, afirmou a necessidade de se proceder à reformulação do instituto.
Em Abril de 1990, o PCP apresentou na Mesa da Assembleia da República um projecto de deliberação para que se constituísse, a nível parlamentar, um grupo de trabalho que teria como último objectivo a elaboração de um anteprojecto de alteração ao instituto da adopção. O projecto de lei do PCP incide sobre as questões que na autorização legislativa se apresentavam menos claras e que o projecto de diploma veio, depois, esclarecer aqui e além, chegando, no entanto, tardiamente à Assembleia da República, o que aconteceu, como foi dito, na passada quinta ou sexta-feira.
Relativamente à iniciativa do Governo, a proposta de lei apresenta uma diferença fundamental, já aqui focada, que é a de a confiança administrativa do menor não ser contemplada, apesar das explicações do Sr. Ministro, mas que continuamos a não aceitar, porque, sendo possível decretá-la judicialmente - e o Sr. Ministro acabou por dizer que, de qualquer forma, ficava sempre submetida à apreciação do tribunal -, é preferível remeter essa medida para os tribunais. Por outro lado, a confiança judicial já é, aliás, permitida pelo artigo 19.º da Organização Tutelar de Menores, não expressamente em relação ao processo de adopção, mas o processo de adopção permite que se lance mão desse artigo. Assim, não é, ao contrário do que o Sr. Ministro disse, confiança administrativa versus nada. De facto, essa afirmação não corresponde à verdade, pois sabe-se que o Tribunal de Menores de Lisboa tem feito largo uso desta medida em processos de adopção, com resultados francamente positivos, como afirmam os curadores de menores Drs. Rui Epifânio e António Farinha, os quais salientam também que tal medida, podendo contribuir positivamente para o processo de adopção, pode, quando mal aplicada, prejudicar essa mesma adopção.
Assim, a confiança judicial, porque é o resultado da análise dos organismos de segurança social e dos magistrados, dá melhores garantias de correcta aplicação da medida e, logo, do sucesso da adopção.
De resto, cabe agora dizer que o processo de confiança do menor - condição prévia da adopção -, destinado a obviar que os organismos de segurança social e os tribunais se vejam colocados perante verdadeiras adopções de facto, não cumprirá totalmente esse objectivo. Já que não será difícil perspectivar a continuação dessas situações que os candidatos a adoptantes poderão encarar como a melhor maneira de colocar os organismos de segurança social e os tribunais perante a habituação do adoptando a determinado meio familiar e a irremediabilidade de decretar a confiança para evitar traumas, muito embora a família candidata possa não ser a que se encontra em melhor situação para aquela criança determinada.
Não são raros os exemplos de erros de avaliação e não está em causa a credibilidade dos organismos de segurança social. O que pode estar em causa são os meios com que eles são dotados, as dificuldades que têm em responder às várias solicitações, porque, de facto, os trabalhadores desta área sentem essas dificuldades e, perante as medidas que o Governo anuncia, far-se-ão sentir, seguramente, mais ainda. Mas não são raros os exemplos de erros de avaliação, tão fáceis, quando estão em causa perfis psicológicos e sociais.
Alguns casos, vindos a lume, quanto ao acolhimento familiar, já não quanto à adopção, fazem suspeitar que este instituto é por vezes encarado pela família de acolhimento como uma forma de suprir faltas no orçamento familiar. E esses casos só são detectados, e só têm sido detectados, depois de algumas situações serem apresentadas no tribunal, pondo em causa e em risco crianças. Esses exemplos revelam-nos a falibilidade dos juízos nesta matéria e mostram que continuará a pôr-se a questão da reforma de mentalidades, ainda que se condicione a adopção à confiança judicial do menor. Os candidatos a adoptantes devem, realmente, estar convencidos de que a adopção tem como finalidade última a felicidade da criança e não a resolução dos seus problemas pessoais.
De resto, o próprio Governo sabe e traduz no seu projecto de decreto-lei a convicção de que vai continuar a haver situações de facto que vão conduzir a adopção e que se desenrolam à margem dos organismos da segurança social. Como já referi nas questões que coloquei, há dois artigos do Código Civil, para os quais o Governo propõe alteração, aceitando situações de facto sem que haja lugar à confiança judicial do menor. São os casos em que se fala no acolhimento do menor em que já não é possível revogar o consentimento, impossibilidade que, de resto, também não é total, na medida em que, se não for requerida a adopção no prazo estipulado, a situação é reexaminada podendo o consentimento ser revogado.
O projecto de lei do PCP introduz ainda algumas alterações no que toca à declaração judicial do estado de abandono com vista a facilitar a declaração daquele estado, resolvendo problemas que a jurisprudência deixou por solucionar nos casos em que haja manifesto desinteresse dos progenitores relativamente à criança.
E, para além de outras alterações processuais, o projecto de lei, no seu artigo 1.º, toma possível a adopção naqueles casos em que ela ficaria inviabilizada pela morosidade dos tribunais. Com efeito, é lamentável constatar que a falta dos meios necessários por parte dos tribunais conduziu a que algumas crianças não fossem adoptadas, embora na altura em que a petição deu entrada no tribunal estivessem reunidos todos os requisitos para a adopção. Mas, tendo esses processos demorado anos, as crianças não puderam ser adoptadas no momento da sentença.
Os tribunais estão desprovidos de meios, mas ouvimos o Sr. Ministro da Justiça anunciar, já há algum tempo, que o círculo - e não o tribunal de círculo - seria uma estrutura que permitiria muita coisa aos tribunais. O círculo poderia servir, como é óbvio, para a criação de serviços que possibilitassem que a decisão dos tribunais tivesse a menor margem de erro possível. Infelizmente, o círculo não serve para essa finalidade, existe no papel servindo para sediar apenas um tribunal.
O projecto de lei do PCP alarga, finalmente, aos candidatos a adoptantes o regime do direito a faltar ao trabalho para assistência a menores doentes.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Todos afirmam que a adopção é apenas uma das

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respostas possíveis para graves problemas da infância e da juventude, como já salientei. A resposta global, de fundo, para esses problemas passará, como se diz no relatório sobre o desenvolvimento humano para 1991, da ONU, citando Lincoln, pelo «desenvolvimento do povo, pelo povo, para o povo»; por taxas de prioridade social envolvendo gastos sociais adequados à satisfação de necessidades humanas prioritárias, como cuidados básicos de saúde e educação; por taxas de locação social envolvendo gastos públicos para serviços sociais.
Vivemos hoje, não só a nível internacional mas também a nível nacional, um clima depressivo e o espectro da recessão está à vista.
As condições sociais em que hoje se vive em Portugal indicam que o princípio da prioridade absoluta para a criança continuará a ser preterido. Elas, as crianças, continuarão a ser manchette dos jornais e notícia de abertura dos canais da televisão, não porque se lhes inunde os olhos de felicidade, mas porque, neste mundo de adultos, elas sofrem como adultos. De stress, de angústia, de pobreza! Neste século XX que a UNICEF classificou como século da invenção da guerra contra crianças!

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra a Sr.ª Deputada Leonor Beleza.

A Sr.ª Leonor Beleza (PSD): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Odete Santos: Vou referir-me a um ponto que levantou, que tem a ver com o regime da adopção e em que manifestou discordância em relação à legislação projectada pelo Governo. Estou a pensar na confiança administrativa.
Diz a Sr.ª Deputada que o Governo prevê, ern alternativa, uma coisa e a outra e até admite que, ern certas condições, as crianças estejam a cargo de alguém que pretende adoptá-las sem confiança judicial nem administrativa. Gostava de saber quem é que tem o poder de impedir que isso, de facto, aconteça se, por exemplo, o pai ou a mãe pegam na criança entregando-a a uma pessoa que a quer adoptar, independentemente dos processos que devem, entretanto, decorrer.
Pode haver circunstâncias, e ninguém pode impedi-lo, em que o menor esteja nessas condições. Como a Sr.ª Deputada sabe, os artigos 1982.º e 1983.º do Código Civil referem-se ao consentimento dos pais; não é propriamente a questão da entrega que está em causa, mas sim os termos em que o consentimento prévio pode ser prestado e revogado. Não há qualquer contradição entre esta ideia e o regime preconizado pelo Governo.
Mas quero fazer-lhe a seguinte pergunta: suponha que há um menor que não tem família ou cuja família o abandonou e que está, porventura, nas mãos de uma instituição de segurança social. Considera que essa instituição deve estar privada de o entregar a uma família que o possa adoptar, até que um juiz se pronuncie sobre a confiança? Porque é essa, ao fim e ao cabo, a solução que decorre daquilo que diz.
O Sr. Ministro da Justiça disse há momentos que era a confiança administrativa ou nada, e tinha toda a razão. Não tem senado aquilo que a Sr.ª Deputada entretanto disse, porque, segundo o regime actual, a criança pode ir parar, entregue eventualmente pela segurança social, a uma família que deseja adoptá-la sem que isso, formalmente, signifique coisa alguma.
A legislação projectada pelo Governo passa a considerar essa situação como uma alternativa à confiança judicial antes que surja um processo de adopção, mas uma alternativa que só pode ser utilizada em ausência total de conditos. Suponha que não há pais, pura e simplesmente, ou que ninguém discute quem é que fica com aquela criança. Para que é que há-de obrigar-se as pessoas, nessas condições, a passarem por um processo judicial prévio ao da adopção?
Se aquele que recebeu a criança em confiança administrativa sente necessidade de confirmação perante um tribunal, tem legitimidade para o fazer; se alguém levanta dúvidas sobre aquilo que foi feito, pode pedir ao Ministério Público que peça a confiança judicial e, inclusivamente, pode haver recurso de uma recusa de confiança administrativa determinada por um organismo judicial.
Que mal faz que este processo exista com o controlo não só do Ministério Público, mas também judicial, quando é sempre possível uma confiança judicial em situações em que ninguém levanta dificuldades?
O grande interesse da confiança judicial é fazer com que a questão do consentimento dos pais não venha a colocar-se num momento posterior. Se esse problema, numa situação concreta, não se coloca, para quê obrigar as pessoas a passarem por um processo judicial inútil?

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr." Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sr.ª Deputada Leonor Beleza: Ainda bem que me colocou essas perguntas. Não fiz a intervenção para que a Sr.º Deputada caísse nessa esparrela, mas caiu, porque as suas perguntas denotam, obviamente, o que afirmei no início.
O Sr. Ministro da Justiça disse que, com a confiança judicial e a administrativa resolviam-se muitas questões em relação a situações que passam à margem de organismos da segurança social ou que não pode haver nunca uma adopção sem a confiança judicial e, na óptica da proposta de lei, assim é. Porém, esta ideia faz-me pensar na seguinte situação: as crianças são acolhidas por famílias - não estou contra isso e o projecto de lei do PCP permite-o - que estão com elas durante um, dois, três anos e, depois de uma situação consumada, candidatam-se à adopção perante a segurança social. Mesmo que aquela família não seja a indicada para aquela criança, não haverá, com certeza, ninguém a quem ela possa ser entregue e será desumano provocar rupturas, choques e traumas.
Portanto, quando se utiliza o instituto da confiança judicial obrigatória para responder a essas questões, prova-se, pelas perguntas que a Sr." Deputada colocou, que talvez não seja necessário considerar esta confiança judicial, prévia à adopção, como obrigatória. Este carácter de obrigatoriedade não atinge os seus objectivos - e os grupos de estudo que se têm debruçado sobre esta problemática têm-no afirmado - e, como disse na minha intervenção, é uma questão de reforma de mentalidades.
Por outro lado, Sr.ª Deputada Leonor Beleza, não se obriga a requerer a confiança judicial! O projecto de lei do PCP, pelo contrário, comete o encargo de desencadear o processo da confiança judicial aos organismos da segurança social e não aos interessados. Pelo contrário, a proposta de lei obriga a que, de facto, sejam os próprios inte-

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ressados a requerer a confiança judicial do menor, caso não exista uma confiança administrativa. Portanto, é o diploma apresentado pelo Governo que impõe essa obrigação.
Creio que as questões colocadas pela Sr.ª Deputada Leonor Beleza foram um pouco infelizes...

Risos do PSD.

... e denotaram alguma precipitação na análise das questões que coloquei, nomeadamente em relação aos artigos 1982.º e 1983.º do Código Civil.
Essas questões não mereceram resposta por parte do Sr. Ministro da Justiça quando lhas coloquei, mas a defesa que V. Ex.ª, Sr. Ministro, fez da confiança administrativa, continua a merecer, da minha parte, algumas críticas, sem que deixe de afirmar que, globalmente, estou de acordo com a proposta de lei apresentada. Não digo que, por ser da autoria do Governo, não concordo com o seu teor.
É evidente que, globalmente, estou de acordo com ela, até porque foi realizado previamente um grande debate e houve lugar a estudos de grupos de análise que funcionaram no âmbito do Centro de Estudos Judiciários, dirigido outrora pelo Sr. Ministro da Justiça, merecendo ainda a participação de pessoas altamente dedicadas a estas questões, como o Dr. Armando Leandro.
No entanto, não posso deixar de dizer que esta questão concreta continua a merecer a minha desaprovação sincera, honesta e leal, sem que pretenda retirar desse facto quaisquer trunfos políticos. Porém, não podemos esquecer-nos da questão de fundo inerente a este debate. Com certeza que não acedi na minha intervenção à .solicitação do Sr. Ministro da Justiça, porque tratei de outras questões de fundo, mas compreenda que penso que, em relação às crianças, não podemos pôr de lado outros assuntos de fundo e assumir aqui uma postura de técnicos que apenas estudam o processado, esquecendo a maneira como se poderá globalmente ir resolvendo paulatinamente as questões relativas às crianças.
Também concedo que, de facto, não seria V. Ex.ª, Sr. Ministro da Justiça, o membro do Governo indicado para ouvir algumas das questões que coloquei, mas penso que o debate aqui realizado transmitirá às entidades mais directamente responsáveis por esta situação aquilo que foi dito na Assembleia acerca da situação vivida pelas crianças portuguesas.

Aplausos do PCP.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Julieta Sampaio.

A Sr.ª Julieta Sampaio (PS): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Deputados: A proposta de lei n.º 38/VI, que autoriza o Governo a legislar sobre o regime jurídico de adopção, e o projecto de lei n.º 219/VI, do PCP, que propõe a alteração parcial do instituto e do regime de adopção, são, para o Partido Socialista, matéria da maior importância. Está em causa não só matéria de direitos, liberdades e garantias, mas sobretudo decidir sobre direitos da criança.
A criança, para além dos direitos universalmente reconhecidos, tem de ter uma protecção especial que lhe assegure o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade e contribua para que venha a desempenhar na sociedade um papel activo e responsável.
O pedido de autorização legislativa do Governo merece, por parte do Partido Socialista, a aprovação na generalidade. No entanto, e considerando o melindre do tema em debate, não deixaremos de questionar alguns aspectos que consideramos da maior importância.
A adopção é apenas um recurso de protecção à infância. Não é, no entanto, o melhor nem tão pouco o único. É positivo, mas só nos casos em que pode utilizar-se e se for feito de forma competente. Mas não podemos esquecer outros recursos e acções que existem para ajudar as crianças e, sobretudo, prevenir as situações graves.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governos, Sr.ª e Srs. Deputados: A acção de defesa da infância só tem sentido nesta perspectiva, quando alargada a um plano de protecção à infância e à juventude integrado e coerente. Assim, há que distinguir a adopção da criança maltratada na família e a corrupção que uma e outra podem originar.
Uma criança oriunda de uma família de risco, e que é maltratada, não tem necessariamente de ser retirada à família. Essa, quanto a nós, deve ser a última etapa. A primeira terá necessariamente de passar por medidas de apoio à família sem desenraizar o menor. É na família que a criança encontra o meio natural de crescimento e de bem-estar e, por isso, a esta deve ser dada a protecção e a assistência necessárias para o desempenho pleno do seu papel.
No entanto, nos casos em que não haja dúvidas quanto à conveniência de serem encaminhados para a adopção, esta deve ser feita com decisão, sem atrasos, que só vão prejudicar a evolução da criança. Torna-se então imperioso que as normas legais e as disposições administrativas facilitem os procedimentos, sem prejuízo das necessárias garantias. Um dos meios exigidos como indispensável para a boa qualidade de tudo o que se fizer na prática da adopção, é que os serviços responsáveis contem com equipas pluridisciplinares, competentes, experientes e com formação adequada.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr. e Srs. Deputados: A adopção é um assunto de enorme complexidade, que exige a capacidade de lidar com situações humanas, por vezes muito pesadas.
É necessário estudar e acompanhar a mãe ou a família natural, avaliar a situação da criança não só na faceta jurídica mas também e, sobretudo, na social, psicológica e médica. É imprescindível estudar e seleccionar para posteriormente acompanhar os candidatos a adoptante» e responder às várias exigências legais e administrativas, quer ao nível dos tribunais quer do registo civil.
A adopção, Sr. Presidente e Srs. Deputados, tem de ser distinta dos centros de acolhimento para crianças de risco, que são outra realidade. Estes devem articular-se com os serviços de adopção, mas não têm necessariamente que ser os serviços de adopção. E isso só pode ser aceitável se houver pessoal suficientemente qualificado para o desempenho das funções e se estiver implantado num local onde não seja possível o recurso aos serviços de adopção já existentes.
Nada nos move contra os centros de acolhimento, que tão bons serviços têm prestado às crianças de risco, mas, como já referimos, a adopção requer equipas especializadas e competentes, que, por vezes, são difíceis de encontrar. Assim, atitudes de facilitismo em matéria tão delicada podem comprometer a qualidade que se exige às equipas dos serviços de adopção existentes.
A multiplicação de organismos numa área geográfica limitada pode originar o subaproveitamento de recursos, já que os casos de adopção são sempre em número limitado.

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Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Deputados: A proposta de lei n.º 38/VI do Governo merece, como anunciei no início da intervenção, genericamente a aprovação do Partido Socialista. A diminuição para quatro anos da duração do casamento dos candidatos a adoptante , bem como o fixar da idade mínima para adoptar em 30 anos, parece-nos correcta, pois visa facilitar a adopção e evitar que se crie uma excessiva diferença de idades entre adoptantes e adoptados.
A nossa preocupação (e desejamos de novo salienta-lo) é chamar a atenção do Governo para que ao legislar introduza a necessidade de se garantir que o trabalho seja feito por equipas pluridisciplinares, competentes e experientes. Essa preocupação é nesta matéria tão grande que não sei se não seria de ponderar a necessidade de elaborar orientações técnicas suficientemente precisas para uso das equipas. Deixo ao Governo a sugestão de um possível «Manual de Adopção».

Vozes do PS: - Muito bem!

A Oradora: - A filosofia que orienta este pedido de autorização é correcta nas orientações que preconiza. No entanto, na segunda parte da proposta de lei o articulado é de nível inferior, apressado e vago. Se for aprovado tal como está, poderá deixar excessivas imprecisões na autorização legislativa. Será talvez necessário que, ao legislar, algumas dessas imprecisões sejam colmatadas, nomeadamente quando se refere «às necessidades actuais das crianças», especificando melhor essas necessidades.
Os artigos l.º e 2.º deixam-nos dúvidas quanto ao sentido «da necessidade da criança», se é pelo reforço da família e dificultar a adopção ou o contrário. Só â luz da filosofia do preâmbulo se pode fazer uma ideia do sentido em que se pretende caminhar.
Quanto ao abandono, não está claro o que se deseja quando se refere «situações graves». A sua tipificação ficará nas mãos do legislador. Não é claro se abandonar é deixar a criança em sítio estranho sem a voltar a procurar, ou se também é considerado abandono deixar a criança em casa enquanto se vai trabalhar. Será que também se pretende incluir no abandono a falta de cuidados?
Uma referência especial para o texto de lei que cita os organismos de segurança social. Expressão correcta, mas convém não esquecer a competência que tem sido atribuída à Misericórdia de Lisboa para este concelho.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Deputados: Comparando os dois diplomas ern debate parece-nos que o texto do Governo, apontadas que foram as dúvidas que nos merece, dá mais garantias.
O projecto de lei do PCP levanta problemas que revelam imperfeito conhecimento das situações concretas, como, por exemplo, confiar o menor aos adoptantes mesmo quando os pais negam o consentimento, o que equivale a criar situações de conflito grave. Casos como o apontado podem frustrar o objectivo principal dos adoptantes, que, em vez de serem pais, ficam transformados (para sempre?) numa família de acolhimento.
Este projecto de lei tem, quanto a nós, algumas deficiências graves, que necessitam de ser corrigidas. É omisso em muitos pontos que, em matéria desta importância, têm de ser muito bem clarificados.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Deputados: A ideia fundamental é a de que as crianças privadas de ambiente familiar temporário ou definitivamente, ou que nele não possam permanecer no seu superior interesse, devem beneficiar de especial protecção e assistência do Estado.
A criança deve estar acima de todo e qualquer interesse, e a adopção só deve verificar-se quando se esgotam todas as etapas de dar à criança a sua família natural. O superior interesse da criança deve ser sempre a consideraçâo básica a ter em conta pelas entidades competentes.
Legislar em matérias de tanto melindre, Sr. Presidente e Srs. Deputados, requer ponderação e um enorme cuidado no estudo de todas as situações, de forma a assegurar uma efectiva protecção dos interesses do menor.
São, de novo, as nossas crianças, Sr. Presidente e Srs. Deputados.

Aplausos do PS.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos suspender a discussão dos temas da ordem do dia de hoje para procedermos às votações agendadas para esta sessão.
Vamos começar pela votação global da proposta de resolução n.º 16/VI - Aprova, para ratificação, o Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.
Submetida à votação, foi aprovada por unanimidade, registando-se a ausência do PSN e do Deputado independente Mário Tomé.
Agora, passamos à votação do projecto de resolução n.º 40/VI - Recusa da ratificação do Decreto-Lei n.º 1211 92, de 3 de Julho, que reestrutura os centros de saúde mental (PCP) (ratificação n.º 33/VI).
Submetido à votação, foi rejeitado, com votos contra do PSD e do CDS e votos a favor do PS, do PCP, de Os Verdes e do Deputado independente João Corregedor da Fonseca.
Srs. Deputados, vamos igualmente votar o projecto de resolução n.º 41/VI - Recusa da ratificação do Decreto-Lei n.º 128/92, de 4 de Julho, que define o regime de formação profissional após a licenciatura de Medicina (PCP) (ratificação n.º 34/VI).
Submetido à votação, foi rejeitado, com votos contra do PSD e do CDS e votos a favor do PS, do PCP, de Os Verdes e do Deputado independente João Corregedor da Fonseca.
Srs. Deputados, nestes termos, e por força do artigo 201.º do Regimento, não tendo sido recusada a ratificação dos decretos-leis, baixarão à Comissão competente as propostas de alteração que entretanto foram apresentadas a estes dois diplomas.
Vamos, finalmente, votar na generalidade, na especialidade e em votação final global a proposta de lei n.º 357 VI - Autoriza o Governo a legislar sobre a detenção, circulação e controlos dos produtos sujeitos a impostos especiais de consumo.
Submetida à votação, foi aprovada por unanimidade, registando-se a ausência do PSN e do Deputado independente Mário Tomé.
Srs. Deputados, foi distribuído um requerimento de avocação ao Plenário das propostas de alteração apresentadas ao Decreto-Lei n.º 212/92.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Peço a palavra para interpelar a Mesa, Sr. Presidente.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, não sei se este requerimento funciona como avocação porque, se funcionar, tem de ter as competentes assinaturas. Todavia, informo a Mesa de que estaremos na disposição de votar a favor mas, naturalmente, isso implica, de acordo com o Regimento, a organização do debate destas propostas.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, dá-me licença?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Manuel dos Santos (PS): - Sr. Presidente, penso que V. Ex.ª se refere ao requerimento apresentado pelo meu camarada António Costa e por mim ern nome do Partido Socialista.

O Sr. Presidente: - Certo, Sr. Deputado.

O Orador: - Portanto, presumo que há o pequeno erro formal da falta de assinaturas, mas trata-se, de facto, de uma avocação. Assim, coloca-se o problema de falta de tempo para o debater hoje e consequentemente o Partido Socialista não vê inconveniente em que essa discussão não seja feita de imediato.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, dado que são 13 propostas de alteração, se não houver a fixação de um tempo global, como cada interveniente tem direito a cinco minutos de uma vez e três de outra, a sua discussão e votação levará muito tempo.
Assim, proponho que este ponto seja discutido amanhã em Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares e que façamos a votação do requerimento na próxima quinta-feira. Peço ainda aos Srs. Deputados que, entretanto, completem as necessárias assinaturas.
Sendo assim, vamos retomar o curso dos nossos trabalhos.
Para uma intervenção, tem a palavra a Sr." Deputada Leonor Beleza.
A Sr.ª Leonor Beleza (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: A apresentação pelo Governo da proposta de lei n.º 38/VI, que o autoriza a legislar sobre o regime jurídico da adopção, insere-se numa linha de promoção deste instituto como a resposta mais adequada à situação das crianças que a vida não dotou, à partida, de uma família natural em condições de assumir o papel que normalmente lhe caberia.
A adopção consiste simplesmente em dotar de uma família uma criança que não a tem, na verdadeira acepção da palavra. Nisto reside toda a riqueza e a força de tal instituto - mas daqui provêm também muitas dificuldades, bloqueamentos e resistências.
A riqueza da adopção consiste, de facto, em que por ela se cria família. E ainda ninguém inventou - e estou certo de que ninguém virá a inventar - uma solução que melhor sirva as interesses do indivíduo na sua fase de formação do que a inserção numa família. A descoberta da vida, a educação na sua dimensão mais ampla devem fazer-se no interior da família, no convívio intenso com o pai, com a mãe, com os irmãos (se for caso disso). A adopção cria família onde ela não existe ou não se soube ou pôde assumir - uma criança que não a tinha passa a tê-la por força da lei, mas por força sobretudo de laços que a convivência, o amor e a dedicação sabem criar para além da natureza.
Mas é também porque pela adopção se substitui uma família por outra, uma família que não é natural à natural, que ela é difícil e nem sempre bem compreendida. Aí reside a sua fraqueza.
A voz do sangue é algo que todos nós, de uma maneira ou de outra, julgamos muito forte. Ousar pôr essa voz em causa é o primeiro passo que a muitos custa dar; ousar julgar que essa voz possa ser substituída por outra, igualmente rica e forte, é algo que, à partida, não estarão todos em condições de admitir. É isto, sem querer sobressimplificar a realidade, que basicamente toma muitas vezes socialmente insustentável a situação de uma família natural - quase sempre, aliás, de uma mãe natural - que não pode ocupar-se do seu filho. É isto também que muitas vezes leva a família adoptiva a conhecer enormes dificuldades em assumir-se sem mais como família perante a comunidade em que se insere.
Todos aqueles que viveram ou ajudaram a viver uma adopção sabem como ela é no direito e nos factos um passo cheio de obstáculos. O que interessa obviamente equacionar é se as suas vantagens não serão previsivelmente superiores aos inconvenientes que ocasiona, tornando estes assim justificados.
Não esconderei que sou dos que acreditam profundamente que a adopção pode constituir laços que, na prática, se confundem com os laços familiares habitualmente existentes entre os pais e os filhos; sou daqueles que julgam que entre a verdade sociológica e a verdade biológica da filiação não existe uma hierarquia de valores, mas tão-só uma relação entre duas realidades possivelmente tão ricas de conteúdo uma como a outra e que nem sempre se sobrepõem.
Indo um pouco mais longe - e correndo talvez o risco de escandalizar alguém - direi que a relação biológica da filiação sem a relação afectiva e sociológica quase não passa de uma forma vazia de conteúdo, mas que a relação afectiva e sociológica da filiação sem a relação biológica correspondente pode conter uma riqueza e uma verdade que não permitam a ninguém notar uma diferença realmente importante em relação à situação em que as duas relações se sobrepõem.
E óbvio que o problema não está na escolha entre a família natural e uma família adoptiva. Pressuposto para desencadear um processo de adopção é justamente que a família natural não exista ou não possa preencher o seu papel. O que interessa não é tanto assim comparar família natural e família adoptiva, mas esta e as alternativas que, num caso concreto, se podem pôr a uma criança.
Esgotadas todas as possibilidades de assegurar a integração harmoniosa de uma criança na família em que nasceu, não duvido de que a melhor solução para essa mesma criança é a integração numa nova família. As vantagens são muito superiores às que garantiria uma solução alternativa, nomeadamente o internamento em lar para crianças privadas de meio familiar normal.
Há também que ter sempre consciência das enormes diferenças que separam a adopção de outros institutos que possam surgir como aparentados, como a tutela e a colocação familiar. Só com a adopção, e mesmo com a adopção plena, a criança se integra totalmente numa família.

Vozes do PSD: - Muito bem!

A Oradora: - Entendo, assim, que, perante uma criança sem família ou cuja família virá verosimilmente a rejeitá-la,

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a hipótese da adopção deverá ser sempre colocada e o mais cedo possível.
É nesta ideia que, a meu ver, assenta a proposta de lei de autorização legislativa que o Governo apresentou a esta Assembleia. O que resulta, desde logo, do esforço exigido a entidades particulares ou oficiais que tenham conhecimento de menores em situações de risco, como a quem tenha a seu cargo menores que possam ser adoptados, no sentido de que se proceda a um estudo rigoroso dos casos, que podem ou não vir a passar por uma adopção.
Tais disposições assentam na responsabilidade de toda a sociedade pelo destino individual de cada criança e na consciência de que o meio em que se nasceu não é vezes demais capaz de garantir o melhor acompanhamento que pode ser prestado e de que, por muito que possa perturbar alguma intromissão no âmbito privado de cada um, bem maior indignação deve causar o conhecimento de situações que não podem ser toleradas.

Vozes do PSD: - Muito bem!

A Oradora: - Infelizmente, razões tem havido para que a opinião pública venha crescentemente sendo chocada com o confronto com violências que atingem crianças, muitas vezes sem que o alarido respeite minimamente a identidade e a intimidade dessas próprias crianças, sendo, pelo menos, de esperar que do choque se passe a uma mais activa intervenção no sentido de prevenir ou, pelo menos, remediar.
A adopção não existia em Portugal durante a vigência do Código de Seabra. Instituída pelo Código Civil de 1966, estava então prevista em termos tão apertados e tão rigorosos que quase se tornou inviável, pelo menos a adopção plena. A reforma do Código Civil operada pelo Decreto-Lei n.º 499/77 feita sobre a responsabilidade - que aqui me apraz recordar - do então Ministro da Justiça Almeida Santos, modificou muito substancialmente a lei no sentido claramente favorável à adopção plena.
O objectivo foi então introduzir no instituto a flexibilidade suficiente para que, perante situações de facto de ausência de família, a adopção pudesse ser decretada. E passou a ser evidente, na lei e na prática, o carácter residual da adopção restrita.
A nova proposta de lei do Governo mantém o pensamento que neste domínio presidiu à reforma de 1977 e o respectivo quadro essencial, mas traduz a intenção de introduzir alterações extensas no instituto com o objectivo de ultrapassar dificuldades que a prática veio a demonstrar serem criadas pela lei e de abordar pela primeira vez a cada vez mais premente questão da adopção transnacional.
Tendo o Governo remetido à Assembleia da República o texto do projecto de decreto-lei que tenciona emitir no uso da autorização legislativa, referir-me-ei as alterações projectadas fazendo dele uso, o que toma obviamente mais claro o sentido do conteúdo da proposta de lei n.º 38/VI.
Pretende o Governo, ern primeiro lugar, alterar várias das disposições que no Código Civil se referem à adopção. Em seguida, propõe-se modificar o respectivo processo, quer no que respeita ao que hoje consta da Organização Tutelar de Menores, quer substituindo o diploma que disciplina a intervenção dos organismos de segurança social. Finalmente, criar-se-á pela primeira vez disciplina adequada à colocação no estrangeiro de crianças residentes ern Portugal para adopção e à adopção em Portugal de crianças residentes no estrangeiro.
Deixando a adopção transnacional para daqui a pouco, as alterações visam alargar ainda mais a possibilidade de adopção plena através de alguma flexibilização dos seus requisitos e sobretudo de uma mais adequada e precisa regulamentação dos casos em que é possível ultrapassar a falta de consentimento dos pais naturais, bem como de modificações processuais que tomam mais sólida e mais cedo a garantia de que uma adopção poderá vir a ter lugar.
No interesse estrito da criança, a adopção deverá ter lugar tão precocemente quanto possível. É da experiência comum que a integração de uma criança recém-nascida na família adoptiva se processa em termos de maiores garantias.
E se há que criar atitudes de generosidade que permitam também adoptar crianças mais velhas, os esforços têm de ser feitos para garantir uma adopção tão depressa quanto possível.

Vozes do PSD: -Muito bem!

A Oradora: - Um processo de adopção é moroso e complicado. Mas o que é verdadeiramente decisivo não é tanto o momento em que aquela é decretada, mas a altura em que a criança é de facto confiada aos cuidados da futura família adoptiva, o que precede necessariamente o processo de adopção propriamente dito.
Ora, quem está disposto a tomar a seu cargo uma criança que deseja adoptar, iniciando um percurso de grande empenhamento e doação pessoal, se não tem um mínimo de segurança, quando é que a adopção virá, de facto, a ser possível? O receio de que um dia, mais cedo ou mais tarde, alguém venha a pôr em causa todo o processo e a retirar-lhe a criança impede manifestamente que se ponha todo aquele empenhamento e doação de que o adoptando carece ern absoluto e conduzirá as mais das vezes a que o candidato a adoptante não queira tomar o menor a seu cargo.
Mas que obstáculos se opõem, de facto, à segurança necessária? Basicamente, a possibilidade de falta de consentimento dos pais.
Permitir-me-ão que recorde que o problema se não punha na versão original do Código Civil quanto à adopção plena. Com efeito, aí só podiam ser adoptados plenamente filhos de pais incógnitos ou falecidos ou então filhos então ditos «ilegítimos» de um dos adoptantes, se o outro progenitor fosse também incógnito ou falecido.
Já o direito em vigor, na linha explicitada, admite a adopção plena de quem tem um progenitor ou ambos os progenitores vivos e conhecidos.
Em tais casos, há que enfrentar a questão do consentimento dos pais naturais, que, aliás, a lei admite seja prestado, independentemente da existência do processo de adopção.
A declaração judicial do estado de abandono, inovação da reforma de 1977, visava justamente no essencial permitir que alguém tomasse conta de um menor com vista à futura adopção sem recear a falta de consentimento dos pais naturais. Com efeito, se o tribunal constatasse que, durante pelo menos um ano os pais tinham revelado manifesto desinteresse pelo filho, «em termos de comprometer a subsistência dos vínculos afectivos próprios da filiação», podia ser declarado o estado de abandono do menor com o efeito de o consentimento dos pais para uma adopção deixar de ser necessário.
Na ausência de declaração judicial de abandono, o tribunal só pode dispensar o consentimento dos pais se es-

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tes estiverem privados do uso das faculdades mentais, se por qualquer outra razão houver grave dificuldade em os ouvir ou ainda se se tiverem mostrado indignos no seu comportamento para com o filho.
Este conjunto de dispositivos legais tem vindo a mostrar-se insuficiente por duas ordens de razões: ou porque o prazo de um ano que é preciso esperar para a declaração judicial de abandono se revela demasiado longo numa altura em que cada dia conta, ou porque o comportamento dos pais naturais, prejudicando embora gravemente a possibilidade de crescimento harmonioso do filho, se não integra suficientemente em nenhuma das situações que a lei prevê como justificando a ultrapassagem do seu consentimento.
Infelizmente, a recusa do consentimento assume por vezes contornos de puro e desprezível interesse material. Mas, mesmo sem aí se chegar, há que compreender o real sofrimento, a hesitação, a vergonha, o peso da pressão social, o medo das consequências que os pais - as mais das vezes, de facto, a mãe sozinha - sentirão ao meditar uma decisão que assume sempre contornos muito dramáticos.
Todos os que lidam com situações destas sabem com que frequência os pais - mais precisamente a mãe - deixam um filho entregue a terceiros pouco depois de nascer e alimentam em seguida durante muito tempo a ideia de que um dia, no futuro, se voltarão dele a ocupar. A princípio, as visitas são frequentes, depois vão-se espaçando, mas a ilusão de que as coisas mudarão impede os pais de enfrentar a realidade e faz eternizar uma situação que importa um enorme sofrimento para a criança e que compromete a sua integração numa família.
Noutras situações os pais manterão os filhos consigo, mas por real incapacidade, desinteresse ou sobrecarga praticarão no dia-a-dia pequenos ou grandes actos de rejeição.

Vozes do PSD: - Muito bem!

A Oradora: - É claro que só perante cada situação concreta cuidadosamente estudada se pode concluir da possibilidade e conveniência da adopção. É claro que é necessário garantir, quando for caso disso, quer auxílio suficiente aos pais naturais para que eles assumam a paternidade, quer compreensão e ajuda quando a entrega para adopção, sempre muito dolorosa, é justificada em nome do interesse da criança e constitui, ela mesmo um acto de amor. Ao legislador cabe ern qualquer caso traçar um quadro que permita em cada situação uma actuação com a garantia de a decisão sempre há-de provir de um juiz.
Como conciliar, em nome do superior interesse da criança que a tudo se deve sobrepor, uma adequada tutela do consentimento dos pais, a garantia de segurança que exige quem quer adoptar e a necessidade vital do menor de que uma integração familiar se processe tão depressa quanto possível.

Vozes do PSD: -Muito bem!

A Oradora: - O Governo optou por estabelecer um processo de confiança, obrigatoriamente prévio ao processo de adopção (excepto se se tratar do filho do cônjuge do adoptante).
A confiança será administrativa ou judicial. A administrativa só será possível face à não oposição, nomeadamente dos pais, e só existirá para entrega do menor a candidato a adoptante ou confirmação da permanência daquele a cargo deste.
Compreendo ainda a posição daqueles que entendem que em caso nenhum a confiança administrativa deve existir e a confiança judicial deva ser sempre pressuposto de uma acção de adopção, embora não considere que a solução deva ser essa, porque me parece que há situações em que nem a confiança é necessária. Mas compreendo mal a posição daqueles que, não admitindo que a confiança judicial deva ser sempre pressuposto da adopção, entendam que então não vale sequer a pena proceder a uma confiança administrativa que algum controlo da situação permitirá pelo menos.
A confiança judicial, que assume uma importância nuclear nesta reforma, pode ter por destinatário uma pessoa, um casal ou uma instituição - não necessariamente quem pretenda adoptar -, e elimina a necessidade de consentimento dos pais ern futura adopção.
A confiança judicial garante assim segurança ao candidato a adoptante e é agora pelos seus pressupostos de aplicação que o legislador exprime as situações que considera passíveis de adopção e as condições em que - fora a alteração das faculdades mentais e a ausência - pode ultrapassar-se a falta de consentimento dos pais. São três as condições tipificadas: o abandono propriamente dito, situação em que a confiança judicial pode sobrevir imediatamente, e dois tipos de comportamento que, em ambos os casos, deve comprometer seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação - exige-se ou que, com gravidade, os pais tenham posto «ern perigo a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do menor» sem qualquer exigência de tempo, ou então que um «manifesto desinteresse» dos pais tenha durado pelo menos seis meses.
Alarga-se assim expressamente o tipo de comportamento dos pais que pode fazer passar sem o seu consentimento, e diminui-se de facto de doze para seis meses o período que antes era necessário à declaração judicial de abandono, o qual desaparece como instituto autónomo, sendo os seus pressupostos convertidos em uma das situações que podem conduzir à confiança judicial.
É uma solução que entendo corresponder ao equipamento dos interesses em causa a que acima procedi, que me parece tecnicamente adequada e que em qualquer caso deixa a avaliação da situação, como deve acontecer em casos como este, em última instância ao juiz que, nos termos previstos, «pode» confiar o menor, desde que obviamente entenda que o deve fazer, em julgamento de oportunidade e não de mera legalidade.
Pretende o Governo ainda flexibilizar alguns dos requisitos estritos da adopção, no que respeita a idades e a tempo de duração do casamento. Parece-me bem tal orientação, mas desejo ainda fazer uma observação.
Desejo lembrar que o juiz que decreta uma adopção não tem apenas de verificar se adoptante e adoptado têm a idade requerida, se há consentimentos, etc. Tem também de determinar se se está perante os quatro grandes requisitos gerais da adopção, a saber: que apresente reais vantagens para o adoptando, que se funde em motivos legítimos, que não envolva sacrifício injusto para outros eventuais filhos de adoptante, e que seja razoável supor que entre adoptante e adoptando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação.
Perante estes requisitos gerais que acrescem aos mais específicos, o juiz pode decretar a adopção.

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Como pode, num caso concreto, perante o preenchimento dos requisitos de contornos mais precisos, negar a adopção porque não entende verificados os mais gerais. Por exemplo, poderá, deverá mesmo do meu ponto de vista, recusar a adopção de um adolescente por um casal muito jovem, com fundamento em que as idades respectivas não permitam supor que entre um e outros se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação, embora se situem em todos os casos dentro dos limites expressamente previstos.
Parece-me assim feliz que se introduza alguma maior flexibilidade nos requisitos nos termos admitidos, tendo em conta que sempre o juiz deverá ajuizar da presença dos requisitos gerais, ern suma, aumenta-se a margem de manobra do juiz, mas não se lhe diminuem as exigências.
Não seria possível abordar, nem seria adequado que o fizesse, todas as questões suscitadas pela reforma projectada, mas desejo ainda referir-me às regras que propõe o Governo emitir no que respeita à adopção transnacional carecida há muito de adequado tratamento, aliás prometido desde o Decreto-Lei n.º 274/80, de 13 de Agosto.
Todos reconhecem a necessidade de estabelecer garantias para que tais adopções se façam também no interesse superior da criança e no respeito dos seus direitos fundamentais, bem como de prevenir a todo o custo o rapto, a venda ou o tráfico de crianças, para referir os objectivos expressos no anteprojecto de convenção sobre a cooperação internacional e a protecção das crianças em matéria de adopção transnacional da responsabilidade da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado.
Propõe-se o Governo legislar sucessivamente sobre a «colocação no estrangeiro de menores residentes em Portugal com vista à sua adopção» e sobre a «adopção por residentes em Portugal de crianças residentes no estrangeiro». Quanto à segunda, trata-se de regras processuais sobretudo destinadas a tomar viável a passagem da informação necessária sobre candidaturas. Quanto à primeira, visa-se impedir a saída de crianças sem um controlo adequado, e é sobre ela que direi ainda algumas palavras.
Sabe-se de experiência feita que algumas crianças residentes em Portugal não têm aqui encontrado quem as deseje adoptar, enquanto que é possível encontrar candidatos no estrangeiro. Tal tem-se mostrado particularmente verdade em relação a grupos mais difíceis de colocar crianças mais velhas, com deficiências ou que não são de raça branca. Na prática, algumas adopções tem sido facilitadas, com algum controlo e às vezes recurso ao processo de confiança judicial previsto no artigo 19.º da Organização Tutelar de Menores. Mas a verdade é que assumem contornos diferentes em relação às adopções realizadas em Portugal e por isso, bem como pelos riscos particulares que representam, necessitam de adequado tratamento.
Referir-me-ei a cinco aspectos do regime legal que se pretende implantar.
Em primeiro lugar, nenhuma criança residente em Portugal poderá ser colocada no estrangeiro para adopção sem prévia decisão judicial de confiança do menor. É a garantia máxima de controlo de situação, que se traduzirá de facto numa primeira avaliação da viabilidade de tal adopção e sobretudo de despistagem de qualquer situação menos clara que se possa verificar.
Ern seguida, propõe-se o Governo estabelecer um regime de subsidiariedade da adopção no estrangeiro por estrangeiros ern relação à adopção em Portugal ou por portugueses. Compreende-se e aplaude-se tal orientação, por muitas razões e também porque é em princípio melhor que a integração familiar se faça em meio cultural mais próximo da origem.
Mas o Grupo Parlamentar do PSD propõe que a subsidiariedade se não estabeleça em função da nacionalidade de adoptante e adoptando, mas antes em função de a adopção se fazer no estrangeiro ou ern Portugal, não distinguindo a nacionalidade dos menores que saem nem dos residentes no estrangeiro que adoptam, com uma possível limitação que nos pareceria razoável se os adoptantes forem membros de comunidades portuguesas no estrangeiro. Para o efeito, apresentámos necessárias propostas de alteração.
Ern terceiro lugar, há que ser a um tempo exigente e flexível no que respeita aos requisitos perante os quais o tribunal concederá a confiança judicial. Exigente quanto a certas condições materiais que terão de verificar-se: idoneidade dos candidatos a adoptantes, previsão de um período de convivência suficiente, vantagens reais para o adoptando, motivos legítimos, verosimilhança de que se venha a estabelecer um vínculo semelhante ao da filiação. Flexível no sentido de que se apela à lei aplicável segundo o direito da residência do adoptante para que se deixe prosseguir o processo.
Exigirá depois a lei um sistema de inter-relacionamento entre as autoridades competentes portugueses e estrangeiras por forma a assegurar a colaboração e a vigilância necessárias ao êxito do processo, quer antes quer depois da saída do menor.
Por último, deverá sempre haver revisão da sentença estrangeira que decide a adopção de menor nacional, com vista a assegurar em Portugal a eficácia do seu novo estado. Assim, se os adoptantes não requererem a revisão, fá-lo-á o Ministério Público.
Eis, Sr. Presidente e Srs. Deputados, nos seus traços mais relevantes, aquilo que compreendemos sobre as regras que o Governo pretende emitir com o objectivo de introduzir uma extensa reforma cujo sentido de humanização e protecção dos mais frágeis elementos da sociedade cabe sublinhar.
Ultrapassam-se com coragem obstáculos da actual legislação, mesmo correndo o risco de que alguns queiram agitar princípios a que também aderimos, mas que não podem deixar de ser confrontados com realidades duras a que nenhum ser humano pode virar costas.
Finalmente, fecham-se as portas a que, sob as inocentes vestes da adopção, alguém pretenda ainda utilizar o nosso país e as nossas crianças com o real objectivo de realizar um qualquer miserável tráfico.
O Grupo Parlamentar do PSD aplaude sem reservas as intenções legislativas do Governo.

Aplausos do PSD.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado José Vera Jardim.
O Sr. José Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados: Já tivemos a ocasião de dizer durante este debate que estamos de acordo, de uma forma geral, com a reforma que se pretende introduzir no instituto da adopção.
Esta reforma peca, desde logo, por ser tardia, como já o indicou a Sr.ª Deputada Leonor Beleza.
É tardia no que diz respeito à adopção transnacional, anunciada e programada desde 1980 e que os sucessivos

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governos levaram 12 anos a regular, com iodos os inconvenientes que conhecemos. Por exemplo, Portugal é alvo de «adopções», que nada têm de adopção, tratando-se mais de tráfico de crianças.
E é tardia, também, porque desde 1985/1986 que são os próprios serviços do Ministério e os melhores especialistas a reconhecer que muitos dos aspectos do instituto da adopção estavam ultrapassados e constituíam bloqueamentos visíveis para que as adopções pudessem ter um impacte diverso daquele que têm tido no nosso país.
Com efeito, se consultarmos as estatísticas disponíveis da adopção em Portugal e em outros países da Europa, em que à primeira vista se poderia supor que o número de adopções era menor - até por se tratar de países mais desenvolvidos-, a verdade é que, segundo tais estatísticas, Portugal tem um número de adopções menor do que outros países com população e características idênticas à nossa.
As preocupações do Partido Socialista vão para além ou, talvez, para aquém deste diploma legislativo e das suas propostas. Efectivamente, tivemos ocasião de acentuar, e continuaremos a fazê-lo, que é muitas vezes a montante e a jusante das soluções legislativas que os problemas se encontram.
Não podemos esquecer que o direito não é um universo isolado, que não tem relação com as condições sociais, que não tem relação com os meios postos à disposição pelo Governo para que tudo o que é um programa desta reforma se possa praticar com o mínimo de dignidade, com o mínimo de condições que nos assegure que a adopção virá para o futuro a ter no nosso país um peso e um impacte social diverso daquele que tem até hoje.
Muitas das adopções, como já aqui foi acentuado, são processadas à margem de qualquer intervenção social útil e - até como o próprio grupo de análise do CEJ, a quem, aliás, se deve fazer um elogio sobre o trabalho que tem feito ao longo destes anos no que respeita à análise da situação dos menores em Portugal -, portanto, muitas vezes, como já aqui foi acentuado, com o registo efectuado logo em nome do casal sem que se passe sequer por um processo de adopção, mas por um processo de falsificação do registo.
A verdade é que continua a existir uma enorme carência de meios por parte dos organismos da acção social. Apesar de todo o programa, de todo o futuro que nas é aberto por esta reforma, temos grandes interrogações sobre as capacidades dos centros regionais de segurança social para levar a cabo esta tarefa.
O Sr. Ministro da Justiça falou - e toda a gente fala - da interdisciplinaridade necessária nestas matérias, no seu acompanhamento necessário e é verdade que a maior novidade do diploma e a mais saliente é, efectivamente, no fundo, a regulamentação do regime de pré-adopção e o seguimento desse regime por todas as entidades com intervenção social nesta matéria.
As nossas dúvidas, repito, são quanto à capacidade de muitos desses organismos estarem em meios técnicos e, sobretudo, interdisciplinares capazes de fazer face à maior parte das situações - situações de abandono, situações de crise profunda da família natural, quando não da sua pura e simples inexistência. Portanto, é aí a montante e a jusante das propostas legislativas que se situam as nossas interrogações e as nossas preocupações.
Quanto ao sentido geral da reforma, achamos que é positiva e que vem resolver muitos dos entraves e dos bloqueamentos existentes ao nível legal, apenas chama-mos a atenção e continuaremos a chamar para o processo de confiança administrativa.
Temos dúvidas que, num diploma em que, ao fim e ao cabo, se pretende, e bem, que a confiança judicial possa vir a ser um instrumento à altura das necessidades, ou seja, resolvendo, no fundo, o problema mais grave que a confiança judicial tem, que é o da demora dos processos, quando se transformam esses processos, e bem, quando se lhes atribui carácter urgente, acentuando - aliás, como é natural e está na dependência directa da qualificação de urgente - que esses processos têm andamento em férias, que se sinta a necessidade de vir instituir um processo de confiança administrativa relativamente ao qual temos dúvidas várias. E as dúvidas são estas: no processo de confiança judicial houve o cuidado de regulamentar, em termos muito estritos, o andamento do processo, as posições das várias partes, os articulados e os meios de prova, mas no que diz respeito ao processo de confiança administrativa, isso deixou-se, como é natural e pela sua própria natureza, ao cuidado, única e simplesmente, das instituições que dele vão tomar conta.
Pensamos que é um passo arriscado, tanto mais que sabemos estar nas intenções do Governo, e bem, para certos efeitos, a equiparação aos centros de segurança social de outras instituições de solidariedade social privadas, que terão, digamos, a chancela do Governo para todos os efeitos e parece-nos que também para este da confiança administrativa.
Entendemos que é um passo demasiado arriscado e que, neste momento, não há confiança administrativa nem nada, havendo, isso sim, porta aberta para usar em termos úteis o processo de confiança judicial, em moldes completamente diferentes daqueles que vinham sendo usados até agora.
Para terminar, quero, mais uma vez, reforçar que há, da nossa parte, uma vontade de adesão a esse projecto de lei. Aderimos porque pensamos que é muito positivo, pena que tardio, para o conjunto de questões que são hoje colocadas pelo instituto da adopção e para que possa ter na sociedade portuguesa um papel muito mais relevante do que aquele que tem tido até agora.

Aplausos do PS.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Ferraz de Abreu.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, dou por encerrado o debate da proposta de lei e do projecto de lei sobre o regime da adopção.
A próxima reunião plenária terá lugar na próxima quinta-feira, dia 10, de manhã e à tarde.
No período da manhã, com início às 10 horas, será discutido o projecto de deliberação relativo aos últimos acontecimentos em Angola e no período da tarde será discutido o projecto de lei sobre a alteração do regime do arrendamento rural.

Está encerrada a sessão.

Eram 19 horas e 20 minutos.

Declaração enviada à Mesa para publicação, relativa a votação do relatório final da Comissão Eventual de Inquérito para apuramento de responsabilidade» quanto à decisão e ao processo de vazamento da albufeira do Maranhão, bem como quanto às suas consequências económicas, sociais e ambientais designadamente na região que envolve os municípios de Avis e Mora.
Os Deputados do PS votaram favoravelmente os projectos de resolução n.ºs 38, 39, 48 e 49/VI, porquanto, face

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ao conteúdo das conclusões do relatório aprovado exclusivamente pelo PSD na Comissão de inquérito ao esvaziamento da barragem do Maranhão, é a única forma de denunciar o que consideram ser um verdadeiro escândalo, porque:

1) O conteúdo do relatório apresentado tem como único objectivo branquear totalmente as responsabilidades do Governo e da Administração neste processo;
2) Esta atitude do PSD transforma os inquéritos parlamentares, que deviam ser isentos, rigorosos e objectivos, em relatórios da maioria com o mero intuito de proteger o Governo. Este comportamento põe em causa a dignidade e a importância das comissões de inquérito e o papel fiscalizador do Parlamento;
3) As conclusões finais propostas e a ausência de apuramento de responsabilidades constituem uma autêntica farsa e visam deixar impunes os responsáveis pelo que foi um verdadeiro escândalo ambiental;
4) É inadmissível a total ausência de atribuição de responsabilidades que o PSD pretende fazer prevalecer com o único objectivo de camuflar a comprovada incompetência e desarticulação de alguns departamentos governamentais;
5) É insustentável a posição do PSD segundo a qual o esvaziamento não originou por si prejuízos nas únicas valias que entendeu considerar, isto é, a agrícola e a eléctrica, demonstrando total desprezo pelos danos causados na sensibilidade dos cidadãos e no plano ambiental;
6) É ridículo pretender atribuir a excessiva mortandade de peixe e a sua demorada remoção b superpopulação da albufeira, a hipotéticas doenças e a inexperiência dos trabalhadores encarregados de executar a tarefa;
7) É profundamente lamentável que um partido com as responsabilidades do PSD pretenda instrumentalizar despudoradamente o Parlamento e contribuir decisivamente para o descrédito da instituição parlamentar e do papel fiscalizador dos actos do Governo que à Assembleia da República incumbe;
8) No entender dos deputados do PS, dos factos comprovados e correspondentes conclusões é possível atribuir as seguintes responsabilidades:
Ao Ministério do Ambiente e Recursos Naturais:
a) Pela não realização do estudo de avaliação de impacte ambiental sem qualquer justificação para tal;
b) Pela total falta de articulação e contraditoriedade no que concerne à interpretação e aplicação de normas essenciais, entre o Ministro e o Secretário de Estado e este e o director-geral dos Recursos Naturais;
c) Pela corresponsabilidade na constituição, funcionamento e resultados da acção da denominada Comissão de Acompanhamento;
d) Pela ilegítima tentativa de declinação de responsabilidades próprias em órgãos da administração local;
e) Pelas consequências económicas, sociais e ambientais do esvaziamento na data em que ocorreu principalmente no que respeita à morte desnecessária de cerca de 3001 de peixes;

Ao Ministério da Agricultura:

a) Pela autorização de financiamento da obra na data em que ocorreu sem prévia ponderação, tecnicamente fundamentada, das consequências;
b) Pela demonstrada falta de articulação no entendimento da questão entre a Secretaria de Estado da Agricultura e a Direcção-Geral de Hidráulica e Engenharia Agrícola;
c) Pela corresponsabilidade na constituição, funcionamento e resultados da acção da denominada Comissão de Acompanhamento;
d) Pelas consequências económicas, sociais e ambientais do esvaziamento na data em que ocorreu principalmente no que respeita à morte desnecessária de cerca de 3001 de peixes;

À Direcção-Geral dos Recursos Naturais:

a) Por desrespeitar orientações do membro do Governo do qual dependia à data da ocorrência dos factos;
b) Pelo procedimento responsável pela não sujeição do assunto a parecer da Comissão de Segurança de Barragens;
c) Pela não realização do estudo de AIA e por impedir que a Câmara Municipal de Avis tivesse diligenciado no sentido da sua realização;
d) Pelas consequências económicas, sociais e ambientais do esvaziamento na data em que ocorreu principalmente no que respeita à morte desnecessária de cerca de 3001 de peixes.

Assembleia da República, 3 de Novembro de 1992. - Os Deputados do PS: Luís Capoulas Santos-Miranda Calha - José Sócrates.

Entraram durante a sessão os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Álvaro José Martins Viegas.
António Maria Pereira.
Domingos Duarte Lima.
Fernando José Antunes Gomes Pereira.
Fernando José Russo Roque Correia Afonso.
Fernando Manuel Alves Cardoso Ferreira.
João Manuel dos Santos Henriques.
Joaquim Eduardo Gomes.
José Alberto Puig dos Santos Costa.
José Pereira Lopes.
Manuel da Silva Azevedo.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho.
Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete.
Vítor Manuel da Igreja Raposo.

Partido Socialista (PS):

António Poppe Lopes Cardoso.
Carlos Manuel Natividade da Costa Candal.

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José Manuel Santos de Magalhães.
José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
Luís Filipe Nascimento Madeira .
Mário Manuel Videira Lopes.

Centro Democrático Social (CDS):
José Luís Nogueira de Brito.

Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados:

Partido Social-Democrata (PSD):

Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto.
António Joaquim Correia Vairinhos.
António José Caeiro da Mota Veiga.
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves.
Cecília Pita Catarino.
Fernando Monteiro do Amaral.
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva.
João Carlos Teixeira Baltazar Gomes.
João Maria Leitão de Oliveira Martins.
José Bernardo Veloso Falcão e Cunha.
José Guilherme Reis Leite.
Luís António Carrilho da Cunha.
Manuel da Costa Andrade.
Rui Carlos Alvarez Carp.

Partido Socialista (PS):

António Domingues de Azevedo.
António José Martins Seguro.
António Manuel Oliveira Guterres.
António Ribeiro Marques da Silva.
Carlos Cardoso Lage.
Helena de Melo Torres Marques.
João Maria de Lemos de Menezes Ferreira.
José Alberto Relevo dos Reis Lamego.
Manuel Alegre de Melo Duarte.

Partido Comunista Português (PCP):

Octávio Augusto Teixeira.

Partido da solidariedade Nacional (PSN):

Manuel Sérgio Vieira e Cunha.

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