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Sexta-feira, 6 de Dezembro, de 1996 I Série - Número 15
DIÁRIO da Assembleia da República
VII LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)
SESSÃO EVOCATIVA DOS 500 ANOS DO DECRETO DE EXPULSÃO DOS JUDEUS EM PORTUGAL
Presidente: Ex.mo. Sr. António de Almeida Santos
Secretários: Ex.mos. Srs. Artur Rodrigues Pereira dos Penedos
Maria Luísa Lourenço Ferreira
João Cerveira Corregedor da Fonseca
José Ernesto Figueira dos Reis
SUMÁRIO
Às 16 horas e 35 minutos entrou na Sala das Sessões o cortejo em que se integravam o Presidente da República. Dr. Jorge Sampaio, o Presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, o Presidente do Parlamento do Estado de Israel, Dan Tichon, os Vice-Presidentes, os Secretários da Mesa, a
Secretária-Geral da Assembleia da República e o Chefe do Protocolo do Estado
Na Sala encontravam-se já, além dos Ministros da Presidência (António Vitorino), dos Negócios Estrangeiros (Jaime Gama), do Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (António Costa) e dos Deputados, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Vice-Presidente do Tribunal Constitucional, o Ministro da República para os Açores, o Procurador-Geral da República, os Presidentes do Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas e do Supremo Tribunal Militar, o Provedor de Justiça, os Chefes do Estado Maior da Armada e da Força Aérea, o Presidente do Conselho Económico e Social, os Conselheiros de Estado, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, os Juizes do Tribunal Constitucional, o Governador Civil de Lisboa, o Presidente da Comissão Nacional de Eleições, o Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais
Informatizados, o Presidente da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, o Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Governador Militar de Lisboa e o Comandante da Guarda Nacional Republicana.
Encontravam-se ainda presentes: na Tribuna A, o Representante do Cardeal Patriarca de Lisboa, o Marechal Costa Gomes, o ex-Presidente da Assembleia da República Leonardo Ribeiro de Almeida, a ex-Primeira-Ministra Maria de Lourdes Pintasilgo, Secretários de Estado; na Tribuna B, a comitiva do Presidente do Parlamento do Estado de Israel: na Galeria I, o Corpo Diplomático; nas Galerias
III, IV, V e VI os demais convidados; e na Tribuna D e em parte da Galeria H, os representantes dos órgãos de comunicação social e público.
Formou-se então a Mesa, com o Presidente da República à direita do Presidente da Assembleia e o Presidente do Parlamento do Estado de Israel à esquerda, ladeados pelos Secretários da Mesa.
De seguida o Sr. Presidente deu a palavra aos representantes dos grupos parlamentares Isabel Castro (Os Verdes), Ruben de Carvalho (PCP), Nuno Abecasis (CDS-PP). Reis Leite (PSD) e António Reis (PS), que produziram intervenções após o que foi aprovado o projecto de deliberação n.º 32/VII - Saúda a reaproximação entre o povo judeu e o povo português (Presidente, Vices-Presidentes da Assembleia da Republica e Presidentes dos Grupos Parlamentares).
Por fim, os Srs. Presidentes da Assembleia da República, do Parlamento do Estado de Israel e da República Portuguesa usaram igualmente da palavra.
Eram 18 horas e 5 minutos quando a sessão foi encerrada.
Renovação de assinaturas: ver informação na última página
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O Sr. Presidente: - Declaro aberta esta Sessão Solene Evocativa do 5.º Centenário da Expulsão dos Judeus, comemorativa da reaproximação dos povos português e judeu.
Eram 16 horas e 35 minutos.
Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:
Partido Socialista (PS):
Acácio Manuel de Frias Barreiros.
Aires Manuel Jacinto de Carvalho.
Alberto de Sousa Martins.
Albino Gonçalves da Costa.
António Alves Martinho.
António Bento da Silva Galamba.
António de Almeida Santos.
António Fernandes da Silva Braga.
António Fernando Marques Ribeiro Reis.
António José Gavino Paixão.
Arlindo Cipriano Oliveira.
Arnaldo Augusto Homem Rebelo.
Artur Miguel Claro da Fonseca Mora Coelho.
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos.
Carlos Alberto Cardoso Rodrigues Beja.
Carlos Alberto Dias dos Santos.
Carlos Justino Luís Cordeiro.
Carlos Manuel Amândio.
Carlos Manuel Luís.
Domingos Fernandes Cordeiro.
Eduardo Ribeiro Pereira.
Elisa Maria Ramos Damião.
Fernando Alberto Pereira de Sousa.
Fernando Alberto Pereira Marques.
Fernando Antão de Oliveira Ramos.
Fernando Garcia dos Santos.
Fernando Manuel de Jesus.
Fernando Pereira Serrasqueiro.
Francisco Fernando Osório Gomes.
Francisco José Pereira de Assis Miranda.
Francisco José Pinto Camilo.
Gonçalo Matos Correia de Almeida Velho.
Henrique José de Sousa Neto.
João Carlos da Costa Ferreira da Silva.
João Rui Gaspar de Almeida.
Joaquim Moreira Raposo.
Joaquim Sebastião Sarmento da Fonseca Almeida.
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.
Jorge Lacão Costa.
Jorge Manuel Damas Martins Rato.
Jorge Manuel Fernandes Valente.
Jorge Manuel Gouveia Strecht Ribeiro.
José Adelmo Gouveia Bordalo Junqueiro.
José Afonso Teixeira de Magalhães Lobão.
José Alberto Cardoso Marques.
José António Ribeiro Mendes.
José Carlos Correia Mota de Andrade.
José Carlos da Cruz Lavrador.
José Carlos das Dores Zorrinho.
José Carlos Lourenço Tavares Pereira.
José da Conceição Saraiva.
José de Matos Leitão.
José Ernesto Figueira dos Reis.
José Fernando Rabaça Barradas e Silva.
José Manuel de Medeiros Ferreira.
José Manuel Niza Antunes Mendes.
José Manuel Rosa do Egipto.
José Manuel Santos de Magalhães.
José Maria Teixeira Dias.
José Pinto Simões.
Júlio Manuel de Castro Lopes Faria.
Laurentino José Monteiro Castro Dias.
Luís Afonso Cerqueira Natividade Caudal.
Luís Pedro de Carvalho Martins.
Manuel Afonso da Silva Strecht Monteiro.
Manuel Alberto Barbosa de Oliveira.
Manuel Alegre de Melo Duarte.
Manuel António dos Santos.
Manuel Francisco dos Santos Valente.
Manuel Jorge Pedrosa Forte de Góes.
Manuel Martinho Pinheiro dos Santos Gonçalves.
Manuel Porfírio Varges.
Maria Amélia Macedo Antunes.
Maria Celeste Lopes da Silva Correia.
Maria da Luz Gameiro Beja Ferreira Rosinha.
Maria do Carmo de Jesus Amaro Sequeira.
Maria do Rosário Lopes Amaro da Costa da Luz Carneiro.
Maria Fernanda dos Santos Martins Catarino Costa.
Maria Helena do Rego da Costa Salema Roseta.
Maria Isabel Ferreira Coelho de Sena Lino.
Maria Jesuína Carrilho Bernardo.
Mário Manuel Videira Lopes.
Martim Afonso Pacheco Gracias.
Miguel Bernardo Ginestal Machado Monteiro Albuquerque.
Natalina Nunes Esteves Pires Tavares de Moura.
Nelson Madeira Baltazar.
Nuno Manuel Pereira Baltazar Mendes.
Osvaldo Alberto Rosário Sarmento e Castro.
Paula Cristina Ferreira Guimarães Duarte.
Paulo Jorge dos Santos Neves.
Pedro Luís da Rocha Baptista.
Pedro Ricardo Cavaco Castanheira Jorge.
Raimundo Pedro Narciso.
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz.
Rui Manuel Palácio Carreteiro.
Sérgio Carlos Branco Barros e Silva.
Sónia Ermelinda Matos da Silva Fertuzinhos.
Teresa Maria Gonçalves Gil Oliveira Pereira Narciso.
Victor Brito de Moura.
Vital Martins Moreira.
Partido Social Democrata (PSD):
Adalberto Paulo da Fonseca Mendo.
Adriano de Lima Gouveia Azevedo.
Álvaro dos Santos Amaro.
Amândio Santa Cruz Domingues Basto Oliveira.
Antonino da Silva Antunes.
António Costa Rodrigues.
António Joaquim Correia Vairinhos.
António Moreira Barbosa de Melo.
António Paulo Martins Pereira Coelho.
António Roleira Marinho.
António Soares Gomes.
Arménio dos Santos.
Artur Ryder Torres Pereira.
Bernardino Manuel de Vasconcelos.
Carlos Alberto Pinto.
Carlos Manuel de Sousa Encarnação.
Carlos Manuel Marta Gonçalves.
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Carlos Miguel Maximiano de Almeida Coelho.
Eduardo Eugênio Castro de Azevedo Soares.
Fernando José Antunes Gomes Pereira.
Fernando Manuel Alves Cardoso Ferreira.
Fernando Pedro Peniche de Sousa Moutinho.
Fernando Santos Pereira.
Filomena Maria Beirão Mortágua Salgado Freitas Bordalo.
Francisco Antunes da Silva.
Francisco José Fernandes Martins.
Francisco Xavier Pablo da Silva Torres.
Gilberto Parca Madail.
Hermínio José Sobral Loureiro Gonçalves.
Hugo José Teixeira Velosa.
João Álvaro Poças Santos.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Calvão da Silva.
João Carlos Barreiras Duarte.
João do Lago de Vasconcelos Mota.
João Eduardo Guimarães Moura de Sá.
Joaquim Manuel Cabrita Neto.
Joaquim Martins Ferreira do Amaral.
Jorge Paulo de Seabra Roque da Cunha.
José Álvaro Machado Pacheco Pereira.
José Augusto Gama.
José Augusto Santos da Silva Marques.
José Bernardo Veloso Falcão e Cunha.
José Carlos Pires Póvoas.
José de Almeida Cesário.
José Gonçalves Sapinho.
José Guilherme Reis Leite.
José Luís Campos Vieira de Castro.
José Luís de Rezende Moreira da Silva.
José Macário Custódio Correia.
José Manuel Costa Pereira.
José Mário de Lemos Damião.
José Mendes Bota.
Lucília Maria Samoreno Ferra.
Luís Filipe Menezes Lopes.
Luís Manuel Gonçalves Marques Mendes.
Luís Maria de Barros Serra Marques Guedes.
Manuel Acácio Martins Roque.
Manuel Alves de Oliveira.
Manuel Castro de Almeida.
Manuel Filipe Correia de Jesus.
Manuel Maria Moreira.
Maria do Céu Baptista Ramos.
Maria Eduarda de Almeida Azevedo.
Maria Fernanda Cardoso Correia da Mota Pinto.
Maria Luísa Lourenço Ferreira.
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira.
Maria Manuela Dias Ferreira Leite.
Maria Teresa Pinto Basto Gouveia.
Mário da Silva Coutinho Albuquerque.
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva.
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas.
Pedro Augusto Cunha Pinto.
Pedro Domingos de Souza e Holstein Campilho.
Pedro José da Vinha Rodrigues Costa.
Rolando Lima Lalanda Gonçalves.
Sérgio André da Costa Vieira.
Partido do Centro Democrático Social Popular (CDS/PP):.
António Afonso de Pinto Galvão Lucas.
Armelim Santos Amaral.
Augusto Torres Boucinha.
Fernando José de Moura e Silva.
Gonçalo Filipe Ribas Ribeiro da Costa.
Ismael António dos Santos Gomes Pimentel.
Jorge Alexandre Silva Ferreira.
Luís Afonso Cortez Rodrigues Queiró.
Manuel Fernando da Silva Monteiro.
Manuel José Flores Ferreira dos Ramos.
Maria Helena Pereira Nogueira Santo.
Nuno Jorge Lopes Correia da Silva.
Nuno Kruz Abecasis.
Sílvio Rui Neves Correia Gonçalves Cervan.
Partido Comunista Português (PCP):
António Filipe Gaião Rodrigues.
António João Rodeia Machado.
Bernardino José Torrão Soares.
João António Gonçalves do Amaral.
João Cerveira Corregedor da Fonseca.
José Fernando Araújo Calçada.
Lino António Marques de Carvalho.
Luís Manuel da Silva Viana de Sá.
Maria Luísa Raimundo Mesquita.
Maria Odete dos Santos.
Octávio Augusto Teixeira.
Ruben Luís Tristão de Carvalho e Silva.
Partido Ecologista Os Verdes (PEV):
Heloísa Augusta Baião de Brito Apolónia.
Isabel Maria de Almeida e Castro.
Neste momento, a Banda da Guarda Nacional Republicana, colocada junto aos Passos Perdidos, executou os Hinos Nacionais do Estado de Israel e da República Portuguesa.
O Sr. Presidente: - Com o assentimento dos nossos ilustres convidados, temos hoje o que pode assemelhar-se a uma ordem do dia de trabalho normal parlamentar que se destina e é preenchida pela leitura, discussão e votação de um projecto de deliberação, que todos consideramos histórico e que é subscrito por mim próprio, pelos Vice-Presidentes da Assembleia da República e pelos Presidentes de todos os grupos parlamentares.
Passo, então, à leitura do projecto de deliberação n.º 327/VII - Saúda a reaproximação entre o povo judeu e o povo português (Presidente, Vice-Presidentes da Assembleia da República e Presidentes dos Grupos Parlamentares).
Perfazem-se hoje cinco séculos sobre a assinatura, pelo rei D. Manuel I, do édito de expulsão dos judeus de Portugal.
Esse édito não correspondeu a exigências da situação política ou social do Portugal de então, um reino onde, nas difíceis condições dos conflitos religiosos medievais, se vivia uma situação de tolerância que permitia a coexistência de religiões hostis.
O Édito de 1496 foi antes ditado por tentativas de alinhamento político entre os Estados ibéricos e por um acto de cedência à pressão dos Reis Católicos - que já haviam tomado idêntica medida - necessário aos projectos matrimoniais e hegemónicos do rei de Portugal.
Foi o édito banido da ordem jurídica portuguesa logo nos alvores do liberalismo. A 17 de Fevereiro do 1821, as Cortes Constituintes revogavam-no, em plena coerência com os coevos anseios de liberdade e tolerância.
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A Constituição da República Portuguesa proíbe hoje, com a dignidade de um princípio fundamental, qualquer forma de discriminação fundada em razões de raça, religião, convicções políticas ou ideológicas e garante a todos a inviolabilidade da liberdade de consciência, de religião e de culto.
Através do seu então Presidente, Dr. Mário Soares, a República Portuguesa, numa atitude que fez caminho nas relações internacionais, de passo que reconheceu que a História se assume inteira, no que tem de honroso e no que tem de condenável, pediu perdão ao povo judeu pelas humilhações e os sofrimentos que lhe infligiram os actos de conversão forçada e expulsão.
A República Portuguesa mantém, na base dos preceitos constitucionais aplicáveis e de sentimentos recíprocos, relações de cooperação e amizade com o Estado de Israel - consagração de um sonho milenar do povo judeu -, partilhando com este um anseio universal de justiça e de paz.
E em Portugal vive hoje uma importante e estimável comunidade judaica, política e socialmente integrada, que, não obstante, preserva uma profunda e assumida identidade própria.
Nestas circunstâncias, a Assembleia da República, em sessão plenária de 5 de Dezembro de 1996, convocada expressamente com esse objectivo, e com a presença do Presidente da República, do Presidente do Parlamento do Estado de Israel e de representantes da comunidade judaica, deliberou por unanimidade e aclamação:
Primeiro, saudar a reaproximação de povos, culturas e civilizações que o fundo de apreço recíproco entre o povo judeu e o povo português salvaguardou através dos séculos, ultrapassando os agravos causados pelo Édito de 5 de Dezembro de 1496; segundo, saudar a decisão dos Constituintes de 1820, revogando o édito e abrindo à sociedade portuguesa os caminhos da liberdade e da tolerância religiosa, tão gravemente postas em causa pelo édito e, após ele, pela Inquisição; terceiro, interpretar a vontade e o sentir do povo português, na afirmação do desejo de que sejam reforçados os laços de amizade, respeito mútuo e cooperação em todos os domínios entre o Estado e o povo de Israel e o Estado e o povo de Portugal; quarto, afirmar o propósito e o desejo de preservar, estudar e divulgar os documentos e testemunhos da presença e da vida da comunidade judaica no espaço português e formular, nesse sentido, um apelo à comunidade científica; quinto, saudar o ilustre Presidente do Parlamento do Estado de Israel e todo o povo judeu, onde quer que se encontre, com uma especial palavra de apreço para a comunidade judaica residente em Portugal.
É meu privilégio dar agora a palavra, para uma primeira intervenção, à representante do Partido Ecologista Os Verdes, Sr.ª Deputada Isabel Castro.
A Sr.ª Isabel Castro (Os Verdes): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Parlamento de Israel, Srs. Membros do Governo.
Ex.mos. Convidados e Representantes da Comunidade Judaica em Portugal, Sr.ªs e Srs. Deputados:
Diz o ditado popular que «mais vale prevenir do que remediar» e é com esta sabedoria tão cara aos ecologistas que hoje, aqui e agora, a reflexão em torno da expulsão dos judeus de Portugal importa fazer-se.
Assinalar um acontecimento trágico não para expiar inúteis e tardios sentimentos de culpa, que a nada conduzem. Assinalar um acontecimento trágico não para
celebrar um qualquer ritual litúrgico, que este não seria o local. Tão pouco assinalar um acontecimento trágico para julgar um passado que, porventura, não é este o momento de julgar. Mas assinalar num Parlamento, em liberdade, 500 anos depois da trágica expulsão de judeus em Portugal, reunindo pessoas de tão diferentes convicções políticas, filosóficas, religiosas e culturais, para lembrar o que não deve ser esquecido. Porque os povos que esquecem a sua
História estão fadados a vivê-la outra vez!
Lembrar a História de um povo que soube, é certo, dar contributos inovadores para a experimentação, a ciência, o conhecimento do planeta, a aproximação de povos e culturas. Que soube antecipar-se na abolição da odiosa pena de morte. Que foi berço de um homem que arriscou a sua vida para salvar milhares de outros perseguidos pelo nazismo. Que foi capaz da generosidade de uma revolução
feita de cravos.
Mas lembrar a História de um mesmo povo em que a cruz, demasiadas vezes, benzeu por caminhos sangrentos. Em que em nome da fé se violaram consciências. Em que pelo terror se forçaram conversões.
Um país onde fanática, obscurantista, intolerante e brutal, uma tenebrosa Inquisição durante anos ferozmente silenciou. Um país que desprezou o supremo valor da vida e violou os mais elementares direitos, sujeitando seres
humanos à escravatura. Ao colonialismo. Fomentando o ódio. O racismo e a xenofobia.
Um país que hoje, em nome do direito à memória, não deve fugir ao seu passado mas deve, sobretudo, em nome dessa mesma memória, saber aprender com os seus
próprios erros para que eles jamais se possam repetir no futuro.
Um futuro em que é preciso aprender a vencer o medo da diferença, a deixar de temer o confronto de olhares, a não recear o outro, o desconhecido.
Um futuro em que é preciso compreender que, mais do que o reconhecimento das diferentes identidades culturais, religiosas, étnicas ou sociais, há que respeitá-las e permitir a sua livre expressão.
Um futuro em que é preciso compreender que a diversidade nos seres humanos, tal como na Natureza de que somos parte integrante, constitui não um elemento de
divisão mas de equilíbrio fundamental para a própria vida.
Um futuro em que é preciso entender que é precisamente nessa diversidade e nessa pluralidade cultural, natural, étnica e religiosa que a Humanidade se enriquece,
acrescenta, transcende e adquire a sua riqueza maior que, como um valioso património comum, é forçoso preservar.
Um património hoje ameaçado na Europa e no Planeta, perante velhos fantasmas que de novo se agitam. Sem fronteiras. Provando que a intolerância, o racismo, a
violência e a guerra existem. Alastram. Não são ficções, muito menos coisas do passado. São uma realidade do presente que, inquietantemente, ganha novos contornos e raízes na profunda crise que abala o Planeta.
Uma crise gerada e alimentada pelos graves desequilíbrios entre povos e regiões, pelo desemprego, pela injusta desigualdade nas trocas, pela ruptura ecológica e pela constante ameaça da guerra, responsáveis, uma e outra, pelo êxodo de milhares de crianças, idosos e mulheres que, condenados à desertificação, à fome ou à repressão, buscam noutras latitudes a sobrevivência, o abrigo e, não raro, a própria liberdade.
Uma crise civilizacional aquela com que nos confrontamos, mas que é imperioso ultrapassar já que dela
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depende a prazo a nossa própria sobrevivência, segurança e futuro comuns. Uma sobrevivência, uma segurança e um futuro comuns que têm de ser diferentemente pensados e construídos. Não como meras ausências de conflito mas na capacidade, que é também cultural, de compreender que a busca da paz, do equilíbrio no Planeta não se encontram pela força das armas, pela repressão, pela negação dos
outros, pela submissão, pelo confronto mas se encontram no diálogo, na aproximação dos povos, na desnuclearização, no desarmamento e no estabelecimento de um diferente código de conduta dos homens com a Natureza e dos homens consigo próprios, que permita uma utilização sustentada dos recursos da terra e uma partilha socialmente justas.
Minhas Senhoras e Meus Senhores: A via em que acreditamos não é certamente linear nem fácil; busca-se com interrogações, nem sempre com certezas, e também na aprendizagem feita com os erros passados. Mas busca-se e encontra-se seguramente na esperança e convicção inabaláveis de que é preciso, necessário e urgente redefinir conceitos, escolhas, prioridades para o nosso viver colectivo. Um viver colectivo que terá de se pautar por diferentes valores e valias, pela aproximação de povos e culturas.
Uma aproximação que não é uma utopia. Depende em exclusivo do nosso desejo e da nossa vontade. Um desejo e uma vontade de aproximação que hoje, aqui e agora,
comunidade judaica e povo português nos fizeram reencontrar e que importa, sem mais desperdício de tempo (porque também o tempo é um recurso finito), em nome
do direito à vida, em nome do direito à paz, não mais deixar de multiplicar.
Aplausos de Os Verdes, do PS, do PSD e do PCP.
O Sr. Presidente: - Tenho agora o privilégio de dar a palavra ao representante do Partido Comunista Português, Sr. Deputado Ruben de Carvalho.
O Sr. Ruben de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel,
Srs. Membros do Governo, Ilustres Convidados, Representantes da comunidade judaica portuguesa, Sr.ªs e Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Enfrentando uma interrogação da consciência contemporânea - se se mantém válida a distinção entre direita e esquerda - o filosofo italiano Norberto Bobbio formulou para a ela uma resposta afirmativa ancorando-a em dicotomias de raízes bem fundas na História da humanidade.
Ao longo dos séculos da vida do homem em sociedade, uma constante perpassa pela vida política e social e que define duas posturas face a ela: a que se baseia na solidariedade - e aí temos a raiz mesma da postura de esquerda - e a e que se baseia no privilégio - e aí se queda a essência da postura de direita.
No fundo, trata-se de saber como cada homem define o seu comportamento face aos outros, como concebe o seu relacionamento com o próximo. Se se conclui que com ele há um constante antagonismo ou se, pelo contrário, a própria essência e razão de ser da vida social se traduz na solidariedade.
Ver no outro um ser solidário cria as bases mesmo da liberdade; o privilégio, antagonizando os homens, cria a necessidade da opressão.
Norberto Bobbio invoca a História para alicerçar a sua conclusão. Nós, portugueses, directamente encontramos na nossa a razão de ser dessa indissociabilidade.
Sempre que, nos oito séculos que nos forjaram, a prática do poder político se aproximou do interesse e da vontade do povo em geral, viveu a nossa, terra e quantos nela construíram uma Pátria um quotidiano de solidariedade;
pelo contrário, a defesa do privilégio pelo poder sempre correspondeu à exclusão, ao confronto, ao agravar de contradições, à recusa da diferença, ao conflito e à opressão.
Portugal foi tolerante nos finais do século XIV quando 1383-1385 constituiu o prelúdio do fim da Europa feudal e o irromper da cidadania. Dessa presença da liberdade na política e da tolerância na concepção do mundo nasceu uma epopeia de navegações que foi possível só pela conjugação de saberes e experiências várias - as ciências e experiências cruzadas das culturas mediterrânicas árabes,
muçulmanas, judaicas, cristãs, plasmada na variedade de quantos conceberam a partida das caravelas e de quantos nelas embarcaram. Caravelas que partiram, não receando o outro, o homem diferente, mas, pelo contrário, indo em sua busca com ele procurando o encontro, a troca, o conhecimento.
Um século decorrido, dealbavam os anos 500, o poder político português, na linguagem directa do nosso tempo, virou à direita. Essa mesma expansão, que buscava e vivera o encontro e o trato, mudou em conquista, em saque, em
intolerância com aqueles de terras onde havíamos chegado, alegando paz e procurando entendimentos. E a intolerância, lá nos portos onde os nossos barcos chegaram, cedo se seguiu nos portos de onde eles saíam, cedo ela chegou ao
nosso país.
Foi então, há 500 anos, que um poder empenhado em restaurar o privilégio de uma aristocracia decadente e com sonhos imperiais convocou a diferença religiosa para edificar sobre a intolerância o seu poder político e aumentar a sua riqueza pelo saque e pela espoliação.
Os marranos portugueses não foram as únicas vítimas da Inquisição; eles eram, até então, tão portugueses quanto tantos outros; eles foram os primeiros portugueses que sofreram a intolerância mas as portas dos cárceres da
Inquisição não se fecharam apenas sobre os judeus, as polés dos seus torcionários não dilaceraram apenas corpos de cristãos-novos. A diferença religiosa foi o pretexto e o incentivo para o ajuste de contas, para a vingança, a denúncia, o confisco.
Esse esfacelar da sociedade portuguesa custou ao País a própria independência, do mesmo passo que reduziu, durante três séculos, uma nação que se revelara industriosa a uma «pobre, apagada e vil tristeza». Séculos que viram o País feito puro objecto dos jogos imperiais europeus, campo de batalha de tropas estrangeiras. Pátria abandonada pela sua classe dominante que, colocando-se a um oceano de distância, deu uma imagem sem paralelo na História do afastamento entre governantes e o seu povo.
Para que a tolerância regressasse à letra da lei, para que os Constituintes de 1820 lavassem a nossa ordem jurídica da vergonha do Édito de 1496, houve mártires da Pátria, executados à luz de um luar que regozijou carrascos que
não adivinharam que, afinal, as luzes triunfavam. Então, como sempre, a liberdade e a tolerância foram lutas comuns.
Mas a fúria inquisitória! não fora banida de vez.
Regressou ao serviço, como sempre, da classe dominante.
O País conheceu meio século durante o qual de novo foi
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montada uma máquina para esmagar violentamente a diferença, para espiar, para fomentar a denúncia, para prender, para assassinar. Meio século de intolerância que fez da Pátria um lugar de exílio, que conduziu o povo português a de novo cruzar os mares, mas em armas, e deles fazer caminhos de violência e intolerância, não de paz e de encontro.
Este fascismo bisonho e cruel que abriu campos de concentração em ilhas do Atlântico foi parente próximo do nazismo que os abriu por toda a Europa. A consciência europeia sabe que, assim como o Tarrafal foi tristemente
inaugurado por marinheiros vermelhos insubmissos, também Buchenwald e Matthausen foram abertos pelos militantes comunistas, por operários, por artistas, por
democratas insubmissos.
Foi o assassínio da liberdade e dos que por ela se batiam que abriu esses campos. E, de novo, a classe dominante recorreu à gigantesca e ignóbil intolerância para mascarar o real objectivo de manter privilégios, de
aumentar lucros, luxos e prebendas.
Tal como uma aristocracia voraz apontou os marranos ao povo português como inimigo para disfarçar o inimigo que ela própria era, 450 anos mais tarde o capital europeu pagava o nazismo para que o Holocausto lançasse sobre
os seus lucros a ignominiosa cortina do fumo que saiu das chaminés dos fomos crematórios.
A intolerância é a antecâmara da opressão, quem apregoa a intolerância deseja a opressão. E quem transige com a intolerância abre o caminho à opressão de que será vítima também.
Minhas Senhoras, Meus Senhores: A longa jornada do homem na Terra tem sido feita cruzando escarpas de escuridão, caminhos sombrios e também alamedas de luz.
Todos podemos, todos temos de aprender com essa jornada, com as suas vitórias, com as suas criações e conquistas mas também com os seus erros. Talvez
sobretudo com os erros porque, seguramente, desejamos mais conquistas, mais e mais criação, desejamos todas as vitórias do homem, mas temos o estrito dever de não errar de novo. E a Humanidade tem-no feito.
E, todos o sabemos, de novo se perfilam perigos.
Rememorar é aprender. Rememorar erros é aprender a não os cometer de novo, é a forma de a História iluminar aqueles que os cometeram e os que deles foram vítimas.
E nas mãos solidárias de todos existem forças para que o juízo feito pela História sobre o passado seja lei presente da nossa liberdade e alicerce seguro do nosso futuro.
Respeitar a diferença. Ser solidário. Construir a justiça.
Vivendo-a, defender a liberdade. Este é o caminho do futuro.
Aplausos do PCP, do PS, do PSD e de Os Verdes.
O Sr. Presidente: - Tenho agora o privilégio de dar a palavra ao representante do Partido Popular, o Sr. Deputado Nuno Abecasis.
O Sr. Nuno Abecasis (CDS-PP): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Knesset, Srs. Ministros, Srs. Convidados, Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Cabe-me, em nome da bancada do CDS-Partido Popular, exprimir aqui o nosso total apoio à deliberação que em boa hora a Assembleia da República decidiu propor e votar.
Celebram-se hoje cinco séculos sobre a data em que el-rei D. Manuel, contra a sua vontade e contra a tradição portuguesa, vinda desde a fundação da nacionalidade, promulgou o édito da expulsão dos judeus de Portugal.
Vivia-se então na Europa um período caracterizado pelo fanatismo e pela intolerância religiosa, que iria subsistir por um longo período de cerca de três séculos, e Portugal viu-se nele envolvido por diversas pressões externas que
condicionaram os superiores interesses do Estado.
Não o refiro como desculpa porque, mesmo nestas condições, a intolerância não tem desculpa, mas são evidentes os sinais do inconformismo do rei de Portugal
com a situação que se viu obrigado a criar. Enquanto lhe foi possível, manteve um grande número de judeus ligados à empresa das Descobertas, nomeou outros, que teve de deportar, para encarregados de feitorias nos Países Baixos, enviou muitos para colonizar novas terras, recém-descobertas.
Infelizmente, não perdurou por muito tempo esta situação de transição e a verdade histórica é que também nós, como povo, nos temos de penitenciar por muita inveja, muita violência, muito obscurantismo, que gravemente
prejudicaram o harmonioso desenvolvimento que, até então, a nossa tradicional capacidade de entendimento e convívio tinha proporcionado a Portugal.
Devemos ao Marquês de Pombal, ao terminar com a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, terem-se criado as condições para o regresso das famílias judaicas a Portugal. Digo «regresso» porque muitas delas já tinham
presença marcada no nosso país bem antes do rédito de expulsão.
Penso, aliás, que temos o dever de prestar uma sincera homenagem àqueles que, tendo sido expulsos de Portugal, por vezes em condições tão trágicas, foram capazes de manter, no exílio, o amor a esta terra. Refiro-me, em
especial, aos judeus da Holanda, que ainda hoje chamam à sua sinagoga a sinagoga dos portugueses e também às comunidades judaicas da Turquia e do Médio Oriente, onde persiste, como a televisão ainda há pouco tempo nos mostrou, uma profunda tradição ligada aos nossos costumes, à nossa história e à nossa língua.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Knesset, Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Passados todos estes anos, existe hoje em Portugal uma pequena comunidade de israelitas no meio de um grande número de cidadãos portugueses de origem judaica.
Eu próprio, como tantos outros, sou um desses cidadãos portugueses de origem judaica e, como tal, prova provada de até que ponto Portugal foi capaz de ultrapassar tantas culpas passadas, de vencer todas as xenófobias e de ser
hoje um campeão na defesa dos direitos humanos.
Em meu nome próprio, no do meu partido e no de todos os seus militantes e eleitores, aqui fica o testemunho do nosso incondicional apoio à deliberação que, dentro de momentos, iremos aprovar por unanimidade e aclamação.
Aplausos gerais.
O Sr. Presidente: - Tenho agora o privilégio de dar a palavra ao representante do Partido Social-Democrata, Sr. Deputado Reis Leite.
O Sr. Reis Leite (PSD): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel, Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Uma sessão solene parlamentar evocativa
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daquilo que sucessivas gerações de portugueses consideraram um calamitoso erro não pode deixar de se ver como um acto público de arrependimento. Mas todo o
arrependimento, para ser consequente, deve encerrar em si propósitos de emenda e abjuração do erro cometido.
Assim é, de facto, a intenção que aqui nos traz para aprovarmos uma deliberação solene, em cujas alíneas se condenam as acções passadas e se historiam as razões do arrependimento dos portugueses pelas atitudes assumidas.
A nossa Constituição é o garante dos propósitos actuais do povo português de não aceitar discriminações, perseguições e exclusões e de, por todos os meios, defender os direitos do homem. Arrependidos, os portugueses, através
dos seus representantes legítimos, aproveitam esta ocasião para reafirmarem as suas intenções de prosseguirem os caminhos da convivência pacífica com aqueles que não pensam como nós e para, conjuntamente com os outros povos, procurarmos os caminhos e os laços de solidariedade que cimentem uma autêntica humanidade.
Quando, a 5 de Dezembro de 1496, há cinco séculos, o rei Manuel I de Portugal assinava o édito de expulsão dos judeus do território nacional cortava com a tradição passada de uma convivência relativamente pacífica entre duas culturas e duas religiões. Fazia-o, invocando profundas razões de Estado mas abria na sociedade portuguesa um dos mais profundos sulcos de discórdia e de divisão.
Ao acabar formalmente com a possibilidade da existência entre os portugueses de seguidores de outra religião que não o cristianismo na sua forma considerada
pura, o catolicismo, abria caminho a perseguições e a injustiças indizíveis. O Tribunal da Inquisição, nascido na sequência desse acto, no reinado posterior, iria de tal forma impor-se na sociedade portuguesa, abafando a procura da
modernidade, perseguindo aqueles que se levantavam contra a prepotência do Estado e deformando as mentalidades, que muitos o consideram a mais nefasta das
instituições, não só pelos seus crimes mas, sobretudo, pela castração cultural que impôs a um povo ao longo de três séculos.
Podemos dizer que sofremos, nós próprios, o castigo dos nossos actos como povo, ao sermos privados, por todo esse tempo, do melhor da nossa inteligência e que, ao expulsarmos e perseguirmos todos aqueles que, tendo conseguido escapar às malhas inquisitoriais, foram com o seu talento e trabalho enriquecer outros países e outras culturas, estávamos a ser fortemente punidos. São os
estigmas da nossa obstinação.
Só lentamente a sociedade portuguesa se regenerou do erro fatal de ter mantido activo o Tribunal da
Inquisição e de não ter deixado florescer livremente no seu seio aquelas premissas de humanismo e compreensão por um mundo novo que os portugueses revelavam. Uma cultura que oscilou entre a vontade de conviver e de compreender o outro como diferente e a teimosia de tudo reduzir à nossa
Mundovidência são interessantes temas de meditação, mas decerto insuficientes para nos livrarmos do pesado sentimento de culpa.
Orgulho-me de pertencer a uma terra, os Açores, que, no século XIX, albergou uma comunidade judaica, numerosa e profícua, que lentamente se entrecruzou com
os portugueses ao ponto de vir a ser exemplo de portugalidade e de universalismo. Invocarei os membros da família Bensaúde, que souberam dar bem o exemplo de como se pode continuar a ser judeu e contribuir para o engrandecimento da Pátria que se escolheu. De entre todos, para o meu propósito, destacarei Joaquim Bensaúde, o sábio e entusiasta da ciência náutica portuguesa que defendeu o nome de Portugal na Europa e no Mundo e que, permanecendo judeu, nunca deixou de se considerar e de ser considerado pelos seus concidadãos como um português dos melhores.
Mas quantos anónimos, não só judeus, trabalharam e trabalham, sofreram e sofrem para nos ajudar a construir uma sociedade respeitadora da diferença e com sincero gosto pelo diálogo e pela compreensão. A eles deve Portugal um grande contributo de regeneração do mau caminho iniciado no nefando ano de 1496.
Mas por tudo isto Portugal encontra-se hoje num lugar privilegiado para compreender os sofrimentos passados do povo judaico e para com ele se congratular por ter finalmente reencontrado o seu caminho na construção do
seu Estado, ao regressar à terra bíblica da sua morada.
Por lhe reconhecermos grandes capacidades de sobrevivência e de organização, dele esperamos que na sua terra dê exemplo vivo de repudiar aquilo que justissimamente condenou aos seus perseguidores e que procure, incessantemente e com convicção, os caminhos da paz e da convivência com os seus vizinhos, dando ao Mundo o exemplo da tolerância que tantas vezes lhe foi negada.
Aplausos gerais.
O Sr. Presidente: - Tenho agora o privilégio de dar a palavra ao representante do Partido Socialista, Sr. Deputado António Reis.
O Sr. António Reis (PS): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel,
Srs. Membros do Governo, Srs. Representantes da comunidade judaica em Portugal, Ilustres Convidados, Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: É com
profunda satisfação que o Grupo Parlamentar do Partido Socialista dá o seu apoio à deliberação com que a Assembleia da República, evocando o 5.º centenário do
édito da expulsão dos judeus de Portugal, pretende prestar homenagem a todos aqueles que foram vítimas de uma medida injusta e iníqua e reiterar do mesmo passo a determinação do povo português aqui representado de se opor a quaisquer formas de discriminação e perseguição religiosas.
Satisfação tanto maior quanto vemos hoje também superados os equívocos, as incompreensões e mesmo a estranha argumentação que, nesta mesma Casa, levaram à
rejeição do voto, que apresentámos em 31 de Março de 1992, de condenação das discriminações da Inquisição e do édito de D. Manuel, por ocasião do 5.º centenário do decreto de Isabel a Católica que expulsava os judeus de
Espanha.
Não partilhamos, com efeito, a concepção relativista da História que leva alguns a justificar todo e qualquer acto injusto e persecutório à luz dos condicionalismos mentais de um tempo, um espaço e uma cultura determinadas. Pelo
contrário, acreditamos em valores universais de justiça, tolerância e liberdade que, independentemente do modo concreto como foram praticados, sempre tiveram os seus defensores ao longo da História. Tal como, aliás, no caso em apreço, o próprio Bispo de Silves, Dom Jerónimo Osório, contemporâneo de D. Manuel, que não hesitou em qualificar de «injusta» e «iníqua» a ordem de conversão
forçada dos judeus.
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É por isso que consideramos lícito o apelo à memória de todos os actos e momentos em que esses valores foram postergados para, sem qualquer intuito autoflagelatório, assumirmos perante as gerações contemporâneas o firme
propósito de tudo fazer para evitar que tais actos e momentos se repitam. Com estas ou outras vítimas e, sobretudo, com as mesmas motivações. Branquear a
História em nome da boa consciência do peso da nossa tradição humanista ou do relativismo histórico-cultural dos grandes valores é um convite a caminhar de olhos fechados e coração empedernido nas estradas do presente e do
futuro. Um presente e um futuro que pretendemos seja cada vez mais o de um reencontro dos povos e suas religiões ou convicções ideológicas na base dos valores da liberdade, da paz e da tolerância, num mundo infelizmente
ainda ameaçado pelo recrudescer de fundamentalismos étnico-religiosos vários.
Porque se há uma lição a tirar do acto e do momento histórico que aqui hoje evocamos essa é, ainda e sempre, a do perigo que representa para a liberdade e a justiça o conúbio entre o Estado e qualquer religião ou Igreja na
prossecução de interesses político-religiosos convergentes.
No caso evocado, aquilo que fora inicialmente uma medida do poder real ditada por objectivos políticos hegemónicos em breve se converteria num instrumento do poder clerical para aumentar os seus privilégios próprios pela exploração
do fanatismo da plebe. E se, de início, D. Manuel I garantiu, pela lei de 30 de Maio de 1497, que não haveria «inquirições» sobre as práticas religiosas dos judeus conversos, durante 20 anos, e chegou a condenar à morte os responsáveis fradescos do primeiro massacre de cristãos-novos em 1506, já com o estabelecimento da Inquisição por D. João III, em 1536, foi dado livre curso à sanha persecutória em todo o império português. É a partir de então que se processa a fuga em grande escala de tantos e tantos cristãos-novos para França, Holanda, Itália, Inglaterra, Alemanha, África do Norte, Istambul. Será
preciso esperar por Pombal para se pôr cobro à distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos e à exigência do documento da «limpeza do sangue» para o exercício de determinadas funções civis e eclesiásticas. E se aos
constituintes liberais de 1821 devemos a revogação do édito manuelino, na sequência da extinção do Tribunal de Santo Ofício, é só com a I República - não o esqueçamos - que é finalmente levantada a proibição de cultos públicos que não o católico.
Reconhecida pela Constituição de 1976 a inviolabilidade da liberdade de consciência, religião e culto, aguardamos agora a proposta de lei governamental que visa tomar mais efectivo e equitativo o exercício da liberdade religiosa
pelas diversas confissões.
Minhas Senhoras, Meus Senhores: Herdeiros do que há de mais tolerante e progressista na tradição histórica portuguesa, é de consciência tranquila e até com orgulho que, como democratas, como republicanos e como socialistas, nos associamos a esta homenagem. Com ela pretendemos partilhar o reencontro simbólico não propriamente com uma comunidade estranha ou marginal mas com uma parte de nós próprios, uma parte integrante, de pleno direito histórico, do povo português, co-obreira - não o esqueçamos - da fundação do Reino de
Portugal, no duplo esforço da reconquista e do povoamento do território, que D. Sancho I bem soube reconhecer quando considerava qualquer ofensa contra «os da Nação Hebraica» como praticada contra ele próprio. E como poderíamos ser hoje tanto mais cultos e prósperos se a tentação inquisitorial se não tivesse apossado de Portugal, levando à rejeição de uma comunidade que tanto e tão bem
se distinguiu na vida económica e na vida cultural?
Daqui saudamos, pois, a comunidade judaica portuguesa, fazendo votos para que se intensifiquem os esforços de valorização do património histórico-cultural comum.
E daqui saudamos também o Presidente do Parlamento do Estado de Israel, fazendo votos para que o exemplo aqui dado de reencontro e
cooperação de povos e cultura seja seguido por todos aqueles a quem cabe a pesada responsabilidade de levar a paz, a tolerância e o respeito pela autonomia e dignidade dos povos na martirizada terra da Palestina.
Aplausos do PS, do PSD, do PCP e de Os Verdes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, chegou o momento tão significativo da votação do projecto de deliberação n.º 32/VII - Saúda a reaproximação entre o povo judeu e o povo português, subscrito pelo Presidente e Vice-Presidentes da Assembleia da República e Presidentes dos Grupos Parlamentares.
Submetido à votação, foi aprovado por unanimidade.
Aplausos gerais, de pé.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel, por si e em representação do Presidente da República de Israel, Sr. Ministro da
Presidência e da Defesa, por si e em representação do Primeiro-Ministro e demais membros do Governo.
Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Constitucional, Sr. Procurador-Geral da República, Sr. Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Srs. Deputados, Srs. Representantes do Corpo Diplomático,
demais Autoridades Civis e Militares, Ilustres Membros da Comunidade Judaica, Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Sr. Presidente da República, que as minhas primeiras palavras sejam para realçar e agradecer a presença de V. Ex.ªs neste acto jubiloso de reaproximação entre os
povos judeu e português.
A história das nossas relações não foi linear. A memória dos nossos encontros históricos não foi sem mácula.
A harmonização dos nossos sentimentos recíprocos não foi sem dor.
Mas é exactamente por ter sido assim que, para Portugal - aqui representado por V. Ex.ª
- e para o colectivo do povo português, aqui personificado pela Assembleia dos seus representantes, este acto se reveste do alto desígnio
de uma reaproximação mutuamente desejada, tão impregnado de simbolismo como carregado de memória.
Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel, encontra-se V. Ex.ª entre nós na dupla qualidade de Presidente do Knesset e de representante do. Presidente do
Estado de Israel, logo de representante do povo e do Estado de Israel.
É para nós suprema honra que tenha acedido a tomar assento na Mesa desta Assembleia e perante ela usar da palavra. É este o acto de mais alto significado político e o momento mais solene de um conjunto de cerimónias evocativas que se desenrola por vários dias, e em diversos lugares, com significado religioso, político, memorialista e cultural.
A comissão organizativa desse vasto programa não foi avara a medir em eventos de alto simbolismo o
significado do que se trata de memorar.
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Quero agradecer a sua gentileza, em meu nome e no de todos os Srs. Deputados, e expressar votos de prosperidade para V. Ex.ª, o Presidente do Estado e o povo de Israel: o que vive na Terra da Promissão por tanto tempo desejada, e o que continua a diáspora que para sempre ficará ligada ao destino da Nação Judaica.
Ilustres Membros da Nação Judaica, honra-nos a vossa presença. A presença de cidadãos de um grande povo e de uma grande Nação, tal como a nossa «pelo Mundo repartida». Um povo a que os acidentes da história e a saga de uma maneira de ser e de crer ciosamente preservada conferiu uma autenticidade inconfundível, que o sofrimento sublimou até ao heroísmo.
Custa a aceitar que só depois do maior genocídio e o mais cruento holocausto de que a besta humana foi capaz tenha sido possível o regresso do povo judeu à Terra Prometida, ou seja à Pátria que é hoje a vossa.
Tomo a vossa presença como testemunho de que a exaltação com que vivemos o significado desta cerimónia é uma via de sentido duplo.
Srs. Membros do Governo, Srs. Deputados, Ilustres Autoridades, Minhas Senhoras e Meus Senhores: A História assume-se inteira, no que tem de atractivo e no que tem de repulsivo. Não nos é licito separar o que em nosso entender foi bom, vangloriando-nos dele, do que em nosso juízo foi mau, pretextando que nos não diz respeito.
Não faria hoje sentido abjurar da escravatura que até ao fim praticámos; das guerras injustas que tantas vezes travámos; dos inocentes que a Inquisição vitimou; das ordens religiosas que expatriámos; da expulsão dos judeus que perpetrámos.
Por um lado, teríamos de ser capazes de situar-nos no cerne das condições em que tudo isso aconteceu; dos valores e sentimentos prevalecentes ao tempo em que aconteceu; da específica responsabilidade que a tudo isso presidiu. E não somos.
Por outro lado, teríamos de averiguar se os eventos que lamentamos foram, à época, um erro exclusivamente nosso, ou o resultado de um pendor civilizacional mais vasto.
Em pleno florescimento da «razão de Estado», mister era ainda saber até que ponto, nas relações inter-povos, ou inter-Estados, o bem de um podia ser o mal do outro ou o bem deste ser o mal daquele.
Não tenho a menor dúvida de que o adiamento pelos portugueses de Novos Mundos, que nos encheu de glória e abriu as portas da era moderna, foi encarada pelos povos achados como um acto de intrusão e de violência. E é sabido que o próprio Sócrates, modelo de virtudes, justificou a escravatura e praticou a corrupção.
Isso, porém, não nos impede de reconhecer que, determinado acto foi, mesmo no seu tempo, e na conjuntura civilizacional em que ocorreu, um erro histórico que, já então, podia e devia ter sido evitado.
É esse o caso - «nemo discrepante» - do édito de expulsão dos judeus, promulgado em 5 de Dezembro de 1496 pelo Rei D. Manuel I de Portugal.
Não faltam razões para podermos ter por certo que o Rei D. Manuel foi o primeiro a ter consciência do seu erro; que este se traduziu num acto induzido pelos poderosos Reis Católicos, Fernando e Isabel, que o precederam, em mais de quatro anos, - 31 de Março de 1492 -, na decisão de expulsar os judeus da vizinha Espanha; que aquela expulsão terá sido ditada por razões de Estado, consistentes no projecto hegemónico de viabilizar o casamento do rei português com a princesa Isabel, filha dos reis de Espanha; que o objectivo último era uma virtual concentração dos reinos de Portugal, Castela e Aragão sob a coroa do rei de Portugal.
Nesse então, as ligações pelo matrimónio entre famílias reais eram o único sucedâneo da guerra ao alcance de um projecto hegemónico. Hoje, a razão de Estado perdeu cotação na bolsa dos valores políticos. Mas nem sempre foi assim.
São muitos os sinais de que D. Manuel I apreciava o contributo do povo judeu no plano do interesse nacional, se não o próprio povo judeu em si, na síntese do mérito e demérito da sua identidade, maneira de ser e forma de estar, na linha multissecular da atitude para com eles dos reis de Portugal.
Não foram poucos, nem pouco significativos, os casos em que monarcas portugueses defenderam a comunidade judaica de ataques da então chamada «arraia miúda», sempre indefesa contra manipulações com base em rivalidades religiosas ou na lógica de interesses conflituantes.
Violações graves do direito da comunidade judaica a permanecer e a viver em paz entre nós chegaram a ser castigados, como já aqui foi realçado, com a pena de morte.
A presença de judeus - que terá chegado a atingir entre um sexto e um quinto da população portuguesa - não foi episódica mas continuada. Começou antes de Portugal ser Portugal e perdurou, pôr mais de um milénio, atravessando horizontalmente o tempo muçulmano e a era cristã, o Corão e o Novo Testamento, numa base de recíproco respeito étnico-religioso. Os reis de Portugal - aliás na linha da tradição muçulmana - acabaram por reconhecer à comunidade judaica uma espécie de «direito de cidade», ao demarcar-lhe espaços urbanos próprios e ao pactuar com a vigência intra-comunitária das suas instituições jurídicas e práticas religiosas, multisseculares e identitárias.
E bem sabemos que o tempo dessa saga convivial não foi, todo ele, propício à tolerância religiosa, mesmo antes do odioso advento das fogueiras da Inquisição.
A própria maneira de ser e de estar do povo judeu, ao recusar integrar-se na sociedade envolvente; ao preservar até limites de fanatismo a sua identidade religiosa e civilizacional, os seus comportamentos e os seus valores; ao acumular riquezas e capacidades de fazer inveja; ao praticar a usura, que a ética cristã considerava um pecado; ao dominar o sector bancário e financeiro; ao aceitar cobrar impostos e outras incumbências odiosas; e sobretudo ao negar a reincarnação do deus dos cristãos, contribuiu para que a sua presença fosse caldo de cultura propício ao acicate da intolerância religiosa, da espoliação e do motim.
Apesar disso, e dos inevitáveis acidentes de percurso, pode afirmar-se que a presença entre nós do povo judeu constituiu, para a época, um exemplo de convivência ou, no mínimo, coexistência relativamente harmoniosa.
São comummente reconhecidas as seguintes razões, entre outras, da convicção de que D. Manuel I, ao assinar o édito de expulsão, fez o que, ao mesmo tempo, gostaria de não ter feito:
Primeiro sinal: quando os reis Católicos expulsaram os judeus de Espanha, D. João II, o Príncipe Perfeito, não fechou as fronteiras ao seu ingresso em Portugal. Se estes puderam ser como que desejados, por maioria de razão o haviam de ser, na óptica do seu sucessor, os que já entre nós viviam ou os que entre nós ficaram.
Ao mesmo tempo que assina o édito de expulsão, o rei decreta que sejam bem tratados, mesmo os que preferissem
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a expatriação à conversão. Terá avaliado mal o êxito da conversão facultativa, convicto de que o apego dos judeus a Portugal se sobrepunha em força atractiva à fidelidade à sua religião e à sua fé. Mas foi o contrário o, que na maioria dos casos se verificou.
Perante a evidência desse erro de avaliação, D. Manuel I aceita como bons baptismos de última hora - fechando os olhos à sua natureza patentemente simulada - e alarga por mais um ano o prazo inicialmente demarcado para o
abandono do território nacional. E garante ao povo judeu, também por édito, que os chamados «conversos» não seriam objecto de inquirições e devassas durante vinte anos, quanto a autenticidade da sua conversão.
Enfim, apavorado com a imprevista expatriação do melhor da intelectualidade lusitana, da nata do comércio e das finanças, dos artesãos e cobradores de impostos, da mais avançada medicina do tempo, dos melhores astrólogos
e mestres da arte de marear - por acréscimo no contexto da aventura das descobertas - o rei português passa dos expedientes suasórios à mais condenável violência. Decreta a conversão forçada e, num requinte de crueldade extrema,
tira do poder dos pais os filhos menores de catorze anos, com o declarado objectivo de os industriar na fé cristã.
O próprio Bispo de Silves, já aqui citado, D. Osório, rotula de «iníqua» esta medida de crueldade tamanha, não sem afirmar que foi ditada por um «louvável pressuposto».
Não, decerto, o de assim acrescer o espólio das alma devotadas à fé cristã, mas o de forçar os pais à aceitação do baptismo como última tentativa de os reter em Portugal ou de, em alternativa, perderem os filhos.
Porque relembro eu tudo isto? Para evidenciar que ninguém levou mais longe o esforço de reter os judeus em Portugal do que o próprio rei que os expulsou!
A história tem destes contra-sensos.
Foram ainda assim em número elevado os judeus que sobrepuseram o seu amor a Portugal às exigências da sua fé. Converteram-se, na maioria dos casos, com reserva mental. O Rei D. Manuel, como vimos, de algum modo estimulou essa atitude. Os chamados «cristãos novos», ou «marranos», continuaram,
«imo pectoris» fiéis à sua religião, à sua fé e, secretamente, à prática dos seus ritos.
Séculos de preservação de uma identidade não se apagam por decreto.
Acantonados (ou refugiados?) em lugares remotos e pouco acessíveis, adoptaram nomes de árvores;
introduziram na dieta alimentar artifícios que lhes permitiram simular a rejeição do que pela sua religião lhes era vedado (as famosas alheiras são exemplo disso) e, no mais, continuaram artesãos, prestamistas, usurários, financistas e cobradores de impostos.
Mas Portugal perdeu o contributo da mais genuína intelectualidade judaica. Surpreendemo-la em países de acolhimento onde por muito tempo continuaram a
considerar-se portugueses, e até a ajudar Portugal como financiadores da exploração do comércio com o Oriente.
O grande filósofo Espinosa, que nasceu holandês de ascendentes portugueses, Abraão Zacuto e Pedro Nunes, ilustram bem, sem necessidade de um exaustivo inventário das perdas, até que ponto Portugal se despojou de potencialidades de desenvolvimento científico e cultural que estavam ao nosso alcance, e deixaram de estar, porque um rei ambicioso quis desposar uma princesa. Conhecendo
hoje, como conhecemos, a heterodoxa interpretação dos textos sagrados do grande Espinosa, é fácil a prognose póstuma de que, se a tivera escrito em Portugal, teria enfrentado os rigores da Inquisição.
Abraão Zacuto, judeu espanhol refugiado em Portugal foi o autor do célebre «Almanach Perpetuam», que serviu de viático aos mareantes portugueses. Pedro Nunes foi, como se sabe, o inventor do nónio. Leccionou na Universidade de Coimbra - a minha Universidade! - ensinou matemática ao Rei Sebastião. Antes lhe ensinara política - ter-se-ia evitado o desastre de Alcácer-Quibir!
Mas a tolerância com que D. Manuel - talvez repeso - encarou a permanência em Portugal dos «cristãos novos», viria a encontrar a sua antítese na intolerância fanática do seu sucessor, que ao introduzir a Inquisição em Portugal, exacerbou ódios rácicos e religiosos, promoveu inquirições e devassas, perseguições e martírios. Não só de cristãos novos, mas também. Essa página negra da nossa história é conhecida, e só veio a encontrar o seu epílogo quando o Marquês de Pombal, imbuído de desígnios iluministas, chamou ao Estado o controlo da Inquisição, neutralizando os seus excessos, proscreveu a distinção entre «cristãos novos» e «cristãos velhos», e praticamente repôs o fim das
inquirições e devassas. Diz-se que desejou e promoveu o regresso a Portugal do «povo eleito». Decerto porque precisava dele para a reforma do tradicional modelo económico. Depois disso, como é sabido, com a primeira República, o Estado laicizou-se e introduziu a liberdade religiosa.
De novo em paz, os povos judeu e português só voltaram a enfrentar receios quando Salazar, sem perseguir localmente os judeus residentes - de alguns dos quais foi inclusivamente amigo -, disfarçou mal o seu apoio aos demónios do maior e mais repugnante genocídio da história moderna.
Houve que esperar meio século pelo Estado democrático de direito, em que após Abril nos tomámos, para que a liberdade de religião se convertesse, sem regresso, no direito fundamental que hoje é.
Foi esta, em breve resumo, a saga de coexistência, convivialidade e sofrimento que para sempre ligou os povos judeu e português.
Tão longa e acidentada ela foi que são raros os portugueses que, hoje, como no passado, podem ter a certeza de que não corre nas suas veias uma gota de sangue judeu, o mesmo acontecendo com os judeus que vivem ou viveram em Portugal, relativamente ao sangue português.
É quase irónico que falemos hoje em reencontro de povos, culturas e civilizações, quando, em larga medida, do que se trata é de um reencontro connosco mesmos.
Mas seria pena que não conseguíssemos extrair nada de novo desta e outras cerimónias com que quisemos assinalar a passagem de cinco séculos sobre um erro histórico, na tentativa de sobre ele reflectirmos, a partir dele aprendermos e, em contraste com ele, medirmos até que ponto fomos capazes de salvaguardar um fundo de recíproco respeito, recíproca admiração e até amizade.
Dois grandes povos, ornados por uma grande História, a que não faltaram a sublimação do sofrimento e a grandeza da tragédia, fazem o balanço de séculos de convivência no solo da mesma Pátria, dispostos a partir daí para novas formas de reaproximação cívica, cultural e política, enfim de cooperação na construção do futuro do mundo, tão carregado de ruins presságios e tão carecido de uma
renovada fé nos valores da tolerância, da solidariedade, da justiça, do progresso e da paz.
Aplausos gerais.
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É meu privilégio conceder a palavra ao Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel, que aqui também representa o próprio Presidente do Estado de Israel.
Tem a palavra, Sr. Presidente.
Aplausos gerais, de pé.
O Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel
(Dan Tichon): - S. Ex.ª o Presidente da República, S. Ex.ª o Presidente da Assembleia da República, SS. Ex.ªs os Srs. Membros do Governo, SS. Ex.ªs os Srs. Deputados à Assembleia da República,
Ex.mos. Srs. convidados e Representantes da Comunidade Judaica em Portugal, Senhoras e Senhores: Está perante VV. Ex.ªs um judeu da terra de Israel, um representante do Estado de Israel, livre
e independente. Mas eu não me encontro aqui sozinho, nem sou o seu único representante. A meu lado estão milhares de judeus, vítimas da Inquisição. As suas almas acompanham-me hoje e perguntam a razão do ocorrido há 500 anos atrás, aqui e não somente aqui.
Encontro-me aqui como um continuador do caminho dos chamados «marranos» ou «cristãos novos», como o cumpridor do seu testamento: conservar a religião e a
tradição judaicas, apesar de todas as dificuldades e sacrifícios.
Gostaria de começar por agradecer a V. Ex.ª pela honra com que me agraciaram, a de discursar perante a Assembleia da República de Portugal e, por seu intermédio, perante todos os cidadãos do vosso país.
A honra não me foi concedida a mim, pessoalmente.
Esta é uma honra conferida ao Estado de Israel e, sendo eu o seu representante, sou porta-voz de cinco milhões e meio de cidadãos do Estado de Israel, sendo também em nome de todos eles que hoje vos agradeço.
No próximo fim-de-semana comemorará o povo judeu, em todas as partes do mundo a festa de Chanuká. Na festa de Chanuká, há 500 anos atrás, não foi um milagre
o que aconteceu aos judeus de Portugal, como o milagre que havia acontecido aos judeus alguns milhares de anos antes, pois que, há 500 anos atrás, promulgou
el-rei D. Manuel I, soberano de Portugal, um decreto que ordenava a todos os judeus que abandonassem os seus lares e o seu país ou que, em vez disso, se convertessem. Mais uma vez, e exactamente num país considerado como
hospitaleiro aos judeus, estes foram obrigados a pegar na vara errante e a partir para o exílio.
E eis que hoje está perante vós um representante daquele mesmo povo judeu, desta vez preenchendo o cargo de Presidente do Parlamento do Estado Judeu,
independente e soberano. Porventura, há 500 anos atrás, algum judeu teria sonhado que tal pudesse vir a acontecer?
Temo que, mesmo há 100 anos que fossem, tal seria visto de uma forma um tanto ou quanto fictícia.
Encontro-me hoje aqui, perante vós, um tanto perplexo.
Perplexo, porque não estou certo do que sinto. Amargura pelo que foi feito à gente, do meu povo? Vontade de não esquecer no presente o que ocorreu no passado? Ou deverei antes manifestar-me assim:
reconciliemo-nos e vivamos em paz? Todos estes sentimentos se misturam na minha mente e é humano que vós tenteis compreender esta perplexidade.
A expulsão dos judeus da Península Ibérica pôs termo à presença judaica nesta península, presença que floresceu durante 1500 anos, sob o domínio dos cristãos e dos muçulmanos. O florescimento cultural foi interrompido, e nomes como Baruch Spinoza, Menashe Ben-Israel, Uriel DaCosta e outros desapareceram da paisagem cultural portuguesa.
Contudo, e em consequência da dispersão destas famílias em países europeus mediterrâneos e americanos, floresceu um sistema bancário internacional, o comércio e também a cultura, e da contribuição dos judeus oriundos
de Portugal tiraram proveito os cidadãos franceses, holandeses, alemães, os súbditos do Império Otomano e mais tarde os cidadãos do Brasil e de outros países das Américas e da Ásia.
Mas não escondamos a realidade: a expulsão concorreu para uma crise de identidade profunda no seio do judaísmo.
Causou um florescimento das correntes místicas no judaísmo, por um lado, e uma vontade de fortalecer o sentimento judaico, por outro. Assim foi criada uma
ligação entre os judeus cognominados de «cristãos novos» e o judaísmo nos países europeus e, em conjunto, também foi criado o «novo judeu», exemplificado na figura de Baruch Spinoza.
Sr. Presidente, Srs. Membros do Parlamento: A história dos chamados «marranos» ou «cristãos novos» representa em Israel um exemplo de heroísmo e de lealdade, no sacrifício de vidas como mártires da fé. No decorrer destes 500 anos, a história dos «marranos» é contada de pais para filhos. Mas somente hoje, postado perante este lugar, perante esta terra, sinto uma emoção verdadeira, e quanto
mais profundo o sentimento, tanto maior a incompreensão: como teria sido possível forçar milhares de cidadãos, cujo único pecado residia na religião que professavam, a converterem-se. E não apenas isso, mas ainda torturá-los, submetê-los a humilhações, «relaxá-los» aos autos de fé.
Poderá, porventura, um homem do nosso século entender semelhantes factos? Sim, eu sei, 450 anos mais tarde vimos que se pode chegar bem mais no fundo, naqueles dias
obscuros que se abateram sobre a Europa, exterminando o judaísmo aí existente.
Tenho consciência, Sr. Presidente, de que a promulgação do édito de expulsão não foi unânime. Mesmo dentro das paredes do palácio real surgiam muitas divergências.
É difícil hoje abstrairmo-nos da contribuição dos judeus de Portugal, que representavam então, segundo alguns historiadores, a quinta parte da população do país. Sei que alguns queriam abrandar a gravidade da resolução e até mesmo dificultar a sua concretização. Mas até aqueles não conseguiram amenizar a mão implacável do Santo Ofício, cujos desideratos continuam a ser hoje muito difíceis de entender. Será que foi só a crença cega de que o judeu é
a razão de todas as agruras do mundo? Sinto dificuldade em acreditar nisso, pois que entre os clérigos de então havia também homens cultos e intelectuais, e ainda assim a desgraça não conseguiu ser evitada.
Ressalto hoje estes acontecimentos. Minhas Senhoras e Meus Senhores, porque no meu coração há um forte temor de que nem todas as raízes da intolerância e do anti-semitismo tenham sido extraídas e exterminadas por completo. Em certos lugares do mundo, particularmente na Europa Oriental, mas não apenas aí,
defrontamo-nos com fenómenos de anti-semitismo e de xenofobia. Este problema. Minhas Senhoras e Meus Senhores, não pertence somente ao povo judeu: a xenofobia é uma endemia mundial geral e, se não for cessada a tempo, poderá causar destruição à sociedade humana. É exactamente aqui, nesta data histórica, que eu venho reconhecer a necessidade de expressar estes pensamentos.
Sr. Presidente, o povo judeu tem hoje um estado soberano, independente e sólido. Este Estado possui um governo estável, uma economia forte e uma sociedade
saudável, apesar de nos confrontarmos com tão poucas
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dificuldades e até com situações muito complexas e delicadas.
Estais conscientes, certamente, da sensível situação política que se vive na nossa região, e concordo com a hipótese de que esta situação terá implicações para além dos limites dessa área. No desempenho do meu cargo como Presidente do Parlamento, restrinjo-me e pouco expresso os meus pareceres sobre problemas políticos, mesmo quando tenho uma firme opinião acerca deles. Apesar
disso, permito-me e, até mesmo, obrigo-me a prometer-vos: Israel fará tudo o que estiver ao seu alcance para promover a paz na região e continuar os processos
iniciados pelo governo anterior. Não há povo que mais almeje a paz do que o nosso. Acreditem que quem passou por um holocausto como o sofrido pelo povo judeu, quem passou pelo processo sofrido pelos «marranos», que nós
recordamos hoje, só quem passou por tudo isso sabe valorizar o sossego, a tranquilidade e a vida calma. Será concebível que tenhamos de viver para sempre pela força da espada?
Perante estas circunstâncias, não temos em quem nos apoiar na nossa região e apenas podemos confiar em nós próprios. Ao lado do desejo de paz, somos obrigados a preocuparmo-nos com a nossa segurança e sobrevivência,
pois não temos um outro Estado. Também não temos um outro lugar no mundo no qual pudéssemos erguer um Estado para os judeus. É portanto nosso dever preocuparmo-nos e cuidarmos da nossa segurança.
Sou optimista e creio que a paz poderá realmente vir a ser alcançada, a par do sentimento de segurança que tanto nos é necessário.
Sr. Presidente, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Estou ciente dos grandes esforços que foram necessários para organizar um evento solene como este. Honro e tenho apreço pela iniciativa do Presidente da Assembleia da República, Dr. Almeida Santos, em convocar esta sessão extraordinária, sob os auspícios de S. Ex.ª o Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio. Quero agradecer os esforços
do Presidente da Assembleia, dos Vice-Presidentes, dos líderes das bancadas e de todos os Membros do Parlamento pela hospitalidade que nos dispensaram nesta Casa, o bastião da democracia portuguesa.
Aproveito esta oportunidade para fazer um apelo a todos os povos, principalmente ao povo judaico e ao povo português. Unamo-nos, a fim de que acontecimentos como
o que hoje assinalamos não se repitam. Honremos o nosso próximo e a sua crença, respeitemos a cultura do nosso próximo e os seus costumes, pois que só assim dias melhores e mais seguros serão alcançados para o mundo inteiro.
Agradeço encarecidamente, mais uma vez, a atenção que me foi dispensada e a honra concedida ao meu país e ao meu povo.
Aplausos gerais, de pé.
O Sr. Presidente: - Por direito próprio, vai agora usar da palavra o Sr. Presidente da República.
O Sr. Presidente da República (Jorge Sampaio): - Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel, por si e em
representação do Presidente do Estado de Israel, Srs. Membros do Governo, Srs. Embaixadores, Ilustres Entidades e Autoridades Civis, Judiciais e Militares, Srs. Convidados Representantes da Comunidade Judaica em Portugal,
Sr.ªs e Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: No dia exacto em que se cumprem 500 anos sobre o decreto que expulsou os judeus de Portugal ou os obrigou à conversão, renegando a sua fé e as suas tradições, a
Assembleia da República, sede da representação nacional, decidiu aprovar, por unanimidade, uma deliberação na qual se expressa um juízo moral claro sobre um facto da nossa História, ao mesmo tempo que são reiterados também claramente os princípios da tolerância e do universalismo em que nos reconhecemos.
Esta decisão, tomada em nome do povo português, assume um alto significado simbólico e tem um excepcional valor pedagógico. É como se, hoje, restituíssemos
uma parte do que, há 500 anos, fora negado.
É certo que o passado não se anula, nem se reescreve - assume-se, esclarece-se, interpreta-se, narra-se. Mas também se avalia e se julga criticamente. A História é, afinal, isso mesmo: memória crítica, activa e vigilante.
Uma atitude científica moderna não significa neutralismo ético ou demissionismo moral, menos ainda se pode aceitar o negacionismo ou a mistificação intencional.
A História de um povo é memória viva e identidade consciencializada. Tem de ser assumida no que tem de melhor e de pior, de grandioso e de pequeno, no que
representou de erro e de acerto. A História de Portugal tem períodos de glória e momentos condenáveis. Uns e outros a constituem, uns e outros formam a herança que recebemos, com a qual dialogamos criticamente e que nos identifica como Nação. O passado não prescreve e não há histórias isentas de erros graves ou funestos.
A expulsão dos judeus portugueses, quaisquer que sejam as razões que, na época, a possam ter motivado, foi um acto iníquo, com profundas e nefastas consequências na ordem moral e na ordem material.
Foi ainda injusta, pelo muito que devíamos a esses portugueses que também eram judeus. Iniciou um ciclo de violência e obscurantismo, cujas marcas perduraram;
provocou sofrimentos sem conta, perdas, humilhações, ofensas; empobreceu-nos como povo, como país, como cultura, como vida colectiva. Essa noite da História
constituiu um acto contra nós próprios, contra a nossa identidade, contra a presença do outro nela, uma presença que sempre nos tornou maiores, nos acrescentou, nos abriu ao mundo, nos fez ir ao encontro do desconhecido e do
diferente.
Esse gesto representou uma cedência a pressões exteriores, o sacrifício de sentimentos e princípios fundamentais, a renúncia ao melhor que éramos e
tínhamos, em favor do calculismo estreito e imediato.
Antero de Quental, na conferência tão bela e tão lúcida em que analisa as «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares», diz que a expulsão dos judeus e mouros teve proporções de «calamidade nacional».
E acrescenta, em terríveis palavras, que, desde então, «um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional, a delação é uma virtude religiosa, a expulsão dos judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria e dá um golpe mortal na agricultura (...)»
Quem não reconhece, ao longo da História e até em tempos não muito longínquos, a actualidade destas palavras, o eco destes avisos, os reflexos desta atitude
mental?
É por isso que os actos com que lembramos esta data de trágica memória não se esgotam na pura evocação do que aconteceu. Olhamos o passado, mas como ensinamento
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para o presente e, sobretudo, como abertura para o futuro.
O lema escolhido - «Memória e Reencontro» - significa que vivemos, hoje, num país livre e democrático, que respeita os direitos humanos e pratica a tolerância, o pluralismo e o respeito pelos outros. Significa ainda que
queremos ser, cada vez mais, uma comunidade consciente de que a diversidade nos engrandece, projecta e enriquece.
Mas a lição que temos também de tirar para o nosso tempo é a de que nunca nada está definitivamente erradicado nem vencido, de que, quando menos se espera,
regressam os signos da intolerância, do fanatismo, do ódio ao diferente.
O século que agora se aproxima do ocaso viveu, de par com tantos progressos, os horrores da barbárie, numa escala nunca conhecida ou sequer imaginada. A democracia é uma obra em progresso, tem de ser pedagogia constante, prática quotidiana. A tolerância tem de ser um exercício permanente, uma atitude mental interiorizada.
Num mundo que queremos melhor para todos, devemos, creio firmemente, valorizar os grandes gestos de entendimento e de reencontro, os símbolos da paz, da reconciliação, da concórdia. Devemos conferir-lhes um valor exemplar e pedagógico; devemos não aceitar a fatalidade do mal; devemos opor-nos a uma cultura de passividade perante a miséria do mundo e de inelutabilidade e resignação perante a injustiça, a desigualdade e a opressão.
Onde quer que eles surjam, temos de combater, pela palavra e pela acção, o racismo, a xenofobia, os fanatismos agressivos e violentos, os fundamentalismos nacionalistas, étnicos, religiosos, a discriminação e a exclusão de todos os géneros e tipos, a intolerância, a uniformização, o sectarismo.
Este é também o sentido mais profundo desta cerimónia: renovar o nosso empenhamento no combate pela tolerância e reafirmar a nossa vontade de fraternidade, de solidariedade e de paz.
Dirijamos, neste momento de tão grande significado, o nosso pensamento para todos aqueles que, nos nossos dias e onde quer que se encontrem, sofrem ameaças e exclusões porque pensam ou são diferentes, são perseguidos e humilhados porque recusam a tirania do medo e da iniquidade, são privados de liberdade porque agiram e agem pela liberdade, são julgados sem justiça porque lutam pela
justiça. Como tantas vezes aconteceu, eles antecipam um tempo melhor e um mundo mais digno.
Sr. Presidente do Knesset: A presença de V. Ex.ª entre nós, em representação do Estado de Israel e do seu Presidente, tem um significado excepcional e é-nos muito grata. Põe em evidência os laços tão antigos que unem os nossos povos e que, apesar das vicissitudes, permaneceram vivos e fortes. Quer dizer, também, por isso, amizade renovada e retribuída.
Não há nada mais belo do que a vontade de concórdia que ousa vencer desencontros, ressentimentos ou desconfianças. É essa a grande prova que nos humaniza e nos torna fiéis ao melhor da nossa condição.
Israel vive actualmente um desses momentos que contam verdadeiramente na vida das Nações e em que tudo pode ser construído ou posto em causa.
O corajoso processo iniciado em Oslo permitiu, pela primeira vez em décadas, inverter a escalada da violência e da rejeição, reencontrar a esperança e construir a paz.
Essa esperança não pode ser defraudada e exige, por parte de todos, um continuado empenho nos caminhos da reconciliação e da convivência entre os povos da região onde a vossa bela Pátria encontrou lugar.
Srs. Presidentes, Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores: O encontro que hoje realizamos com a nossa própria História não se completaria se não tivéssemos presente que, por todo o mundo, há descendentes dos judeus portugueses que, há cinco séculos, saíram da terra que também era a sua.
Spinoza é o símbolo mais alto dessas gerações que se dissiparam para continuar a ser o que eram. Na nossa evocação, elas cruzam-se com aquelas outras que, permanecendo aqui, foram obrigadas a ocultar ou a ser o que não eram, dissolvendo com a passagem do tempo, a própria memória da sua
origem. Prestemos homenagem ao se sofrimento, ao heroísmo, à coragem, à sua fortaleza de ânimo.
Spinoza é o símbolo de todos eles. Ele foi o homem livre, que tudo sofreu para ser livre e de tudo foi acusado por ser livre. Ele foi o heterodoxo ameaçado e castigado por todas as ortodoxias, mesmo as da sua família e da sua
raça, aquele de quem já foi dito ser um dos homens mais dignos da história humana, aquele que fez da grande linguagem do sofrimento uma esplendorosa meditação sobre a vida que se afirma contra os simulacros em que é
obrigada a negar-se.
Spinoza, o descendente de judeus portugueses, é um referência universal e o seu pensamento de amor à vida e à liberdade continua a iluminar-nos, neste tempo tão
intenso de dúvidas, conturbado de riscos e também desejoso de esperanças.
O próximo século tem de ser, ao mesmo tempo, o século da universalização e da diferenciação, o tempo de todos e o de cada um. Portugal sabe bem, pela experiência histórica hoje relembrada, que este desafio só será vencido
se a abertura ao outro e ao seu apelo for a regra da convivência humana. Esse é o combate em que, como povo, como país, como história, como cultura, como
democracia, queremos estar presentes e activos.
Nada é mais impiedoso, pois essa é a primeira condição para o reencontro dos seres humanos uns com os outros e com o sentido mais límpido e criador da nossa humanidade renovada.
Aplausos gerais, de pé.
O Sr. Presidente: - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente do Parlamento do Estado de Israel, Srs. Membros do Governo, Ex. mas Autoridades, Srs.
Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores, com o vosso assentimento, tenho a honra de declarar encerrada esta memorável sessão.
Neste momento, a Banda da Guarda Nacional Republicana executou de novo os Hinos Nacionais dos dois países.
Aplausos gerais, de pé.
Eram 18 horas e 5 minutos.
Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados:
Partido Socialista (PS):
Adérito Joaquim Ferro Pires.
Agostinho Marques Moleiro.
António Alves Marques Júnior.
António José Guimarães Fernandes Dias.
Artur Clemente Gomes de Sousa Lopes.
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Cláudio Ramos Monteiro.
Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.
Jovita de Fátima Romano Ladeira Matias.
Luís Filipe Nascimento Madeira.
Raul d'Assunção Pimenta Rego.
Rui do Nascimento Rabaça Vieira.
Sérgio Paulo Mendes de Sousa Pinto.
Partido Social Democrata (PSD):
Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto.
António de Carvalho Martins.
António Fernando da Cruz Oliveira.
António Germano Fernandes de Sá e Abreu.
Carlos Manuel Duarte de Oliveira.
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco.
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva.
Luís Carlos David Nobre.
Pedro Manuel Cruz Roseta.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho.
Rui Fernando da Silva Rio.
Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS/PP):
Maria José Pinto da Cunha Avilez Nogueira Pinto.
Partido Comunista Português (PCP):
Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas.
A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.
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