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3552 I SÉRIE - NÚMERO 97

mãos atadas atrás, como imagens vilíssimas da servidão e espectáculos da extrema miséria».
E invectivando directamente os colonos: «Quem vos sustenta no Brasil se não os vossos escravos? Pois se eles são os que vos dão de comer, porque lhes haveis de negar a mesa, que é mais sua do que vossa?»
Contudo, o que segundo Vieira prevalecia, era que «não só não eram admitidos os escravos à mesa, mas nem ainda às migalhas dela, sendo melhor a fortuna dos cães que a sua, posto que tratados com o mesmo nome».
Reconheça-se que, nas circunstâncias do tempo, do lugar e da cultura prevalecente, era difícil ter sido mais arrojado, mais contundente, mais implacavelmente acusador.
Já se disse que Vieira foi, no seu tempo, quem mais livremente se exprimiu. Privilégio de púlpito, sem dúvida. Mas também, senão sobretudo, exigência de alma. . De algum modo, corrigindo a palavra dos apóstolos - de São Paulo a São Lucas, e depois disso a São Tomás, que aos escravos pregaram a obediência -, Vieira chega a incitá-los a desobedecerem ao seu senhor, se este quiser «algo que ofenda gravemente a alma e a consciência». E anuncia-lhes que a Senhora do Rosário lhes «promete a todos uma carta de alforria, com que não só gozeis a liberdade eterna na segunda transmigração da outra vida, mas também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira».
Reconheça-se que não era exigível que tivesse ido mais longe!... O Inquisidor Geral viria mesmo a considerar que foi longe demais!
Mas a rebeldia de Vieira não se cingia à defesa dos índios e dos escravos «contra a cupidez dos colonos». Traduzia-se também noutros recados que mandava a Lisboa, como este: «A justiça que evite os latrocínios de que resulta andarem descalços e despidos os soldados do mais poderoso monarca do Mundo».
Chega, na sua exaltação patriótica, como já aqui foi realçado, a increpar o próprio Deus. Quando uma armada holandesa invade pela segunda vez a Baía, sob o comando do temível Nassau, Vieira, no sermão que profere pela vitória das armas portuguesas, assim se dirige a Deus: «Abrasai, destrui, consumi-nos a todos, mas pode ser que algum dia queirais espanhóis e portugueses e que os não acheis. Holanda vos dará os apostólicos conquistadores que levem pelo Mundo os estandartes da cruz. Holanda vos dará os pregadores evangélicos».
Quer-se mais são atrevimento?
Há também em Vieira o homem político. O homem que, pela acção, mais do que pela palavra, procura influir nos acontecimentos do seu tempo.
A coberto da admiração e da estima que por ele sempre nutriu o rei D. João IV, de quem foi pregador e conselheiro, bateu-se lucidamente pelo regresso dos judeus, após um salutar perdão. Decerto também por outras razões mais nobres, mas sobretudo com base na consideração elementar de. que precisávamos de uma armada e não tínhamos, barcos, nem o dinheiro com que se compram. Esse dinheiro estava nas mãos das famílias dos judeus expulsos e na origem da capacidade ofensiva dos holandeses contra o Brasil, Angola e outras possessões portuguesas. O rei não era insensível aos seus argumentos. Mas, como costuma acontecer aos cérebros de excepção, Vieira teve razão antes do tempo. O Santo Ofício não era sensível a pragmatismos tão pouco ortodoxos.
Vieira chegou, por iniciativa própria ou ao serviço do rei, a deslocar-se por diversas vezes ao estrangeiro em recolha de fundos para comprar trigo e barcos. Comprou o trigo, mas só conseguiu um barco, que por contradição se chamou «Fortuna».
Dotado de grande poder de insinuação, convenceu o rei a uma complexa teia de alianças pela via dos casamentos dinásticos, expediente privilegiado do tempo. Mas falharam todas as suas incumbências de casamenteiro. Santo António teria talvez, nesse afã diplomático, tido mais sucesso. A verdade é que não podiam ser sedutoras alianças com o parceiro pouco atractivo que Portugal era nesse momento.
A Espanha havia feito a paz com a Holanda e a França negociava a paz com Castela. Vieira chega a advogar a cedência de Pernambuco à Holanda, como última ratio para salvar Angola e o demais Brasil. Isto porque «sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros».
«A gente é tão pouca - dizia Vieira - que, para qualquer rebate no Alentejo, é necessário tirar os estudantes das universidades, os oficiais das tendas e os lavradores do arado».
Com razão o sofrido Padre considerava da zona do milagre «a defesa de tantas conquistas, a mais vizinha distante mil léguas e a mais afastada cinco mil»!... E os milagres - acrescentava - «é sempre mais seguro merecê-los que esperá-los».
Não obstante, o milagre aconteceu e o Brasil manteve-se uno até aos nossos dias, contra os dezoito países em que se desdobrou a América espanhola. É essa, sem dúvida, a obra prima do génio português.

Aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP.

Perdida a confiança do rei, embora não a sua amizade, Vieira regressa ao Brasil e à sua originária «missão». A vida palaciana e a glória de pregador, que arrastava multidões à Igreja de São Roque, não haviam extinguido nele o fogo do missionário. Despoja-se de todos os bens materiais, incluindo o ordenado de pregador régio, que entrega às missões. Interna-se no sertão. Aprende os dialectos dos nativos, que passam a chamar-lhe «Padre Grande».
«Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra (...) durmo pouco, trabalho de pela manhã até à noite» - informa. Habito - acrescenta - num «tosco edifício de barro e varas, palácio da pobreza».
Passa, assim, «seis anos de vida ardente», apesar de sofrer de impaludismo e de fraqueza pulmonar, com hemoptises frequentes. Forte, era só a vontade. Segundo ele, «começa agora a ser religioso». E diz, citando de novo o que já citou o Sr. Deputado do PSD: «Se a alegria de entrar no céu tem na terra comparação, é esta».
Mas regressa também à defesa dos índios e dos escravos negros. E obtém de Lisboa um diploma, a promulgar, que manda libertar todos os índios cativos.
«Sabeis - diz ele aos colonos - qual o jejum que quer Deus de vós nesta quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça e que deixeis ir livres os que tendes cativos (...) Todos estais em pecado mortal. Todos vós ireis direitos ao inferno (...) se não mudardes de vida».
A reacção dos colonos não podia ser mais viva. O Colégio dos Jesuítas é apedrejado. Vieira é preso e expulso. «Fora os urubus» - era a palavra de ordem.
Em Lisboa, já sem o arrimo de D. João IV, defende o Infante D. Pedro contra D. Afonso, seu irmão enfermo, mas rei legítimo. Em resultado da investidura deste, o pregador cai de novo em desgraça, com residência fixa no Porto, longe das seduções da corte. Recupera ligeiramente