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3554 I SÉRIE - NÚMERO 97

sonora, que tem o dom impressionante de transportar até hoje, e até nós, o gesto vigoroso, o fôlego da inspiração, o timbre da voz, a majestade da visão. Lemos Vieira como se ele se tornasse presente, como se o ouvíssemos e víssemos, torrencial e justiceiro, acompanhando-o nos raciocínios, nos argumentos, nos silogismos, nas diatribes, no clamor.
Agradeço à Assembleia da República, e em especial ao Sr. Presidente, o convite que me dirigiu para estar presente nesta Sessão Evocativa e felicito-o por esta ideia, que continua e dá realce a uma tradição que tem valor cívico, utilidade pedagógica e grande significado cultural. Essa tradição é a de homenagear, na sede da representação nacional e em acto para o efeito convocado, grandes figuras que deram e dão substância à nossa identidade de Nação, povo, cultura e história.
Homenageemos, pois, Vieira, a quem Portugal tanto deve. Como falar, porém, com palavras pobres, daquele que fez da palavra um ouro puríssimo, que resiste. ao tempo e com o tempo ainda mais se enobrece e valoriza? A resposta a esta pergunta é a natural: falemos com humildade, escutando mais do que dizendo, com a consciência clara de que estamos perante uma daquelas figuras que desafiam a lógica fechada dos sistemas e a estabilidade das definições. Vieira é grande e desmedido, até nas suas contradições, como se projectasse sobre nós o reflexo de um fogo grandioso e inextinguível.
Quer isto dizer que tudo, no que fez e no que disse, no que realizou e no que deixou por acabar,, tem a mesma medida? Não tem! Quer isto apenas dizer que havia nele uma imaginação, uma vontade, um fervor, uma força, uma fantasia, um poder de acreditar, de persuadir, de realizar, que davam ao que tocava o sopro da desmesura, do excesso e da audácia.
Margarida Vieira Mendes, já hoje aqui justamente mencionada e cujo nome permanecerá ligado aos estudos sobre Vieira, pois lhe devemos uma das últimas grandes interpretações da sua obra, contou que ao iniciar o seu trabalho monumental fora conversar com um dos grandes mestres da investigação também sobre Vieira, António José Saraiva, e que este lhe disse: "Vieira exige uma vida inteira!" Assim é, com efeito, tais as complexidades da obra imensa e as aventuras da vida tão longa. Assim é, de facto, como o atestam as múltiplas obras sobre a obra de Vieira e a diversidade de pontos de vista de leitura, de ângulos de abordagem e de perspectivas de exegese que nelas têm sido ensaiadas.
Disso, dá exemplo evidente o grande António José Saraiva, cuja hermenêutica do discurso engenhoso do autor da História do Futuro é riquíssima. Como o são os trabalhos tão importantes de André de Barros, logo no século XVIII, .de João Lúcio de Azevedo, na primeira metade deste século, e mais próximo de nós, de Hernâni Cidade, António Sérgio, Vasco Pulido Valente, entre outros. Dos estrangeiros, não podemos esquecer os de José Van Den Bessellaar, Raymond Cantei e Charles Boxer, que ainda recentemente confessou a sua mágoa por não ter podido dedicar mais tempo da vida de mais de 90 anos ao estudo do grande Orador barroco.
"Político, missionário, clássico, moralista, Orador, defensor dos fracos e dos oprimidos, sempre patriota" assim dele proclama a lápide que, há um século exacto, foi posta no átrio da Sé de Lisboa, para assinalar o sítio onde fora baptizado. Esta enumeração, tão ao gosto da época, dá as faces essenciais da sua vida, do seu carácter, da sua acção. Mas não revela os acontecimentos, os lances, as glórias, as desgraças, nem os perigos, os combates, os sucessos, as injustiças, os fracassos, as penas.
Nascido em Lisboa e morto na Baía, António Vieira é um património dos dois países irmãos. Mas é mais: é uma figura daquela comunidade de povos e países que se funda na língua e de que ele foi um profeta, como pressentiu Fernando Pessoa, chamando-lhe, como já aqui foi tantas vezes citado hoje, "imperador da língua portuguesa" e dizendo que ela era a verdadeira Pátria.

Aplausos gerais.

Homem que quis ver para além do tempo, mas que não deixou de invectivar os vícios do seu tempo, foi, por isso, ameaçado, vilipendiado, perseguido, encarcerado. A sua atitude para com os judeus e os cristãos-novos demonstra que ele teve a agudíssima percepção de um estado de coisas que se arrastava e que, dois séculos mais tarde, Antero de Quental apontaria como uma das causas da decadência dos povos peninsulares.
A sua corajosa defesa, para a época, dos índios do Brasil não podia deixar de incomodar, escandalizar e de aparecer como suspeito. O recado tinha destinatários claros que perceberam a mensagem e retribuíram com represálias. Mas Vieira nunca depôs as armas do combate, mesmo quando a inquisição o tentou silenciar e anular ou a corte o quis ostracizar. Defendeu-se e atacou. Portugal não lhe deve apenas o seu génio de Orador e de escritor, deve-lhe importantes serviços diplomáticos e políticos. Deve-lhe um patriotismo arrebatado. Deve-lhe a visão larga, mas também a advertência concreta. Há páginas de Vieira que parecem escritas hoje, sobre questões de hoje. Era ao mesmo tempo, prático e visionário, homem do tempo por vir, mas também homem do seu tempo, pós-renascentista e barroco. Agiu e falou, como membro da Companhia de Jesus, padre da contra-reforma, militante inaciano, não o esquecemos. E como português do Portugal restaurado. A sua longa vida cumpriu-se nestas duas pátrias. No púlpito uniu-as com o seu verbo e com o sentido universalista que o percorria.
Interpelava Portugal em nome de Deus e Deus em nome de Portugal. Dizia: "Não hei-de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e
liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fora só nossa e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas mesmo como a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de vossa honra e glória e pelo crédito do vosso nome a razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei-de arguir,
vos hei-de argumentar; e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei-de convencer. Se chegar a me queixar de vós e a acusar as dilações de vossa justiça, ou as desatenções de vossa misericórdia (...), não
será esta vez a primeira em que sofreste semelhantes excessos a quem advoga por vossa causa".
Em Vieira estão Cícero e São Paulo, Santo Agostinho e Séneca, Santo Inácio de Loiola e Bartolomeu de Las Casas, João das Regras e Bandarra. A sua obra pôde atrair e fascinar espíritos tão diferentes e com ideias tão diversas de Portugal como Pessoa e António Sérgio. Vieira encarnou, como nunca tinha acontecido nem mais viria a acontecer, o tipo heróico do pregador, do arauto e do áugure que dá voz, na mesma voz, ao temporal e ao espiritual, ao real e ao profético, ao sagrado e ao profano, transformando a sua personalidade histórica em autor