19 DE JUNHO DE 1997
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saúde mental no sistema geral dos cuidados de saúde, embora a um nível exclusivamente hospitalar, veio criar uma total indefinição legal no que respeita aos futuros desenvolvimentos dos serviços prestadores de cuidados de saúde mental exigidos pelas concepções actuais neste domínio, tendo-se ainda tornado contraditório com o quadro entretanto definido pela Lei de Bases da Saúde, o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde e legislação complementar, bem como pela Lei Orgânica do Ministério da Saúde, tornando o sistema inoperacional.
Tais disfuncionalidades foram, aliás, implicitamente reconhecidas pelo despacho ministerial de 23 e Agosto de 1995, publicado no Diário da República, 2.º série, de 30 de Outubro de 1995, que aprovou as conclusões da Conferência sobre Saúde Mental, realizada pela Direcção--Geral da Saúde em Maio do mesmo ano. Nele se determinou a criação de uma Comissão Nacional de Saúde Mental, com competência para dar seguimento às citadas conclusões, nomeadamente quanto à necessidade de reformulação da política dc saúde mental, ao modelo organizacional do sector e à eventual revisão do Decreto--Lei n.° 127/92, bem como, naturalmente, da Lei n.°2118.
Em conclusão, verifica-se, assim, que o regime definido pela Lei n.° 2118 se mostra desactualizado no que diz respeito à organização dos serviços prestadores de cuidados de saúde mental, colidindo, em diversos pontos fundamentais, com a Lei de Bases da Saúde — Lei n.° 48/ 90, de 24 de Agosto — e com o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 11/93, de 15 de Janeiro. Verifica-se também que o Decreto-Lei n.° 127/92, ao extinguir os centros de saúde mental, introduziu uma contradição básica com o regime definido pela Lei n.° 2118, sem, contudo, apresentar um quadro legal alternativo ao desenvolvimento de um sistema coerente de saúde mental.
Acresce ainda que o Decreto-Lei n.° 127/92 se revela significativamente desajustado do quadro organizacional definido no Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, ao criar órgãos com funções de definição e execução da política de saúde mental a nível regional, não coincidentes com a divisão territorial do País, estabelecida pelo referido estatuto, em regiões de saúde.
4 — No seu capítulo III, a Lei de Saúde Mental enquadra o «tratamento e internamento dos doentes mentais».
Aqui se estabelecem dois tipos de internamento — o internamento em regime aberto e o internamento em regime fechado —, «conforme sejam ou não reconhecidas ao internado as garantias normais dos admitidos em hospitais comuns, em especial o direito da saída» (base XXI). É esta restrição à liberdade que caracteriza, na sua essência, o internamento em regime fechado, embora este se projecte igualmente, para além do mais, sobre a imposição do tratamento que o acompanha e justifica.
O internamento em regime fechado tem como pressupostos a existência de uma doença ou anomalia mental e a necessidade de imposição deste tipo de regime. Necessidade «pelo carácter perigoso ou anti-social do internando, ou pela sua oposição injustificada, actual ou eventual, a um internamento considerado meio presumivelmente eficaz de debelar um estado de espírito anormal, grave e prejudicial ao doente naquele momento ou na sua provável evolução» (base xxv, n.° 3).
5 —A Lei de Saúde Mental foi publicada na vigência da Constituição Política da República Portuguesa de 1933, a qual conferia o direito de «não ser privado da liberdade pessoal 'nem preso preventivamente, salvo nos casos e
termos previstos nos n.ºs 3 e 4» (artigo 8.°, n.° 8). Decorria deste último parágrafo que, «fora dos casos de flagrante delito, a prisão em cadeia pública ou detenção em domicílio privado ou estabelecimento de alienados só poderá ser levada a efeito mediante ordem por escrito da autoridade judicial ou de outras autoridades expressamente indicadas na lei, donde constem os fundamentos objectivos da prisão ou detenção».
Os cidadãos podiam, assim, ser objecto de «detenção em domicílio privado ou estabelecimento de alienados» por ordem das autoridades expressamente indicadas na lei, sem que a Constituição definisse os pressupostos desta restrição do direito à liberdade', o que conferia amplos poderes ao legislador ordinário.
6 — Esta situação veio a ser profundamente alterada com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, o que levou, consequentemente, à questão de saber se a Lei de Saúde Mental — direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição — é, ou não, contrária à Constituição ou aos princípios nela consignados (cf. artigo 290.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa).
Reagindo à indefinição dos limites às medidas privativas da liberdade que a Constituição de 1933 permitia, o legislador constituinte adoptou o princípio da tipicidade das medidas restritivas da liberdade, no artigo 27.° da Constituição da República Portuguesa. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, «as restrições ao direito à liberdade, que se traduzem em medidas de privação total ou parcial dela, só podem ser as previstas nos n.°* 2 e 3 (entre as quais avulta a pena de prisão), não podendo a lei criar outras — princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas (ou restritivas) da liberdade» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, anotação ao artigo 27.°).
7 — A primeira questão que o teor do artigo 27.° da Constituição da República Portuguesa suscita é a de saber se o texto constitucional permite a privação da liberdade para tratamento médico de indivíduos portadores de anomalia psíquica, sendo a resposta, à primeira vista, negativa.
Com efeito, por um lado, o internamento de portador de anomalia psíquica não está expressamente elencado no n.° 3 de artigo 27.°, o que não deixa de ser estranho quando se sabe que este artigo sofreu manifestas influências do artigo 5.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em cujo n.° 1, alínea e), se prevê a detenção de um alienado mental (sic); por outro, um internamento deste tipo nem sempre se traduz na aplicação judicial de medida de segurança, uma das formas de privação da liberdade expressamente permitidas no n.° 2 do artigo 27.°
E nem sempre se traduz porque as medidas de segurança passaram a estar constitucionalmente legitimadas apenas quando o portador dc anomalia psíquica pratique, em estado de inimputabilidade, um facto ilícito típico. Na verdade, a Constituição da República Portuguesa de 1976, ao estender às medidas de segurança o princípio da legalidade (artigo 29.°), veio pôr cobro às denominadas «medidas de segurança pré-delituais», aquelas que se fundamentam num mero estado de perigosidade criminal, prescindindo do pressuposto da prática de um facto ilícito típico (cf. Maria João Antunes, O Internamento de Imputáveis em Estabelecimentos Destinados a Inimputáveis, Coimbra, 1993, p. 110 e segs.).