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Quinta-feira, 4 de Março de 1999
II Série-A — Número 41
DIARIO
da Assembleia da República
VII LEGISLATURA
4.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1998-1999)
2.° SUPLEMENTO
SUMÁRIO
Projectos de lei (n.º 414/VIl e 527 7VII):
N.° 414/VII (Alarga os direitos das pessoas cuja família se constitui em união de facto):
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias................ IIO8-(30)
N.° 527/VII (Regime Jurídico da União de Facto): V. Projecto de lei n." 414/VII.
Proposta de lei n.° 194ATI (Garante uma maior igualdade de oportunidades na participação de cidadãos de cada sexo nas listas de candidatura apresentadas nas eleições para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu quanto aos Deputados a eleger por Portugal):
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias........................ 1108-09)
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II SÉRIE-A — NÚMERO 41
PROJECTO DE LEI N.º 414/VII
(ALARGA OS DIREITOS DAS PESSOAS CUJA FAMÍLIA SE CONSTITUI EM UNIÃO DE FACTO)
PROJECTO DE LEI N.º527/VII
(REGIME JURÍDICO DA UNIÃO DE FACTO)
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Relatório
1 — Os dois projectos de lei em análise visam consagrar um estatuto relativo às uniões de facto heterossexuais.
Segundo o Partido Ecologista Os Verdes, a união de facto é uma realidade sociológica profundamente enraizada em Portugal, sendo uma expressão da organização familiar em tendencial crescimento, à semelhança do que acontece por toda a Europa.
Assim, para os proponentes do projecto de lei n.°414/ VII, torna-se forçoso que a lei se adapte à vida e às suas necessidades.
Para os proponentes do projecto de lei n.° 527/VII, a união de facto, vista durante décadas pela lei ora com reprovação moral, desde logo patente no termo usado para a designar — concubinato — ora como indesejável mas inevitável consequência da proibição legal do divórcio, foi-se tornando progressivamente mais comum.
Para os proponentes a disciplina jurídica na matéria deve procurar permanentemente soluções de equilíbrio entre a necessidade de preservar o espaço da liberdade individual e da própria escolha de modelos de vida e a constatação de que a ausência de qualquer regime legal cria desnecessárias dificuldades práticas ou injustas carências aos casais em união de facto.
Daí que, segundo os proponentes, a sua iniciativa legislativa tenha respeitado essa óptica.
2 — Mas porque a legislação portuguesa não pode ser acusada de ignorar as uniões de facto heterossexuais, convirá fazer uma recensão ainda que breve das soluções já existentes na lei portuguesa para responder a problemas vividos pelos membros das pessoas em união de facto, até visando determinar o alcance de cada um dos projectos de lei.
O artigo 36.° da Constituição da República estabelece no n.° 1 o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.
Esta dicotomia, conjugada com o estabelecido no n.°4 do mesmo artigo (que fala em filhos nascidos fora do casamento e não fora da família), tem sido entendida por alguns constitucionalistas, como Vital Moreira e Gomes Canotilho, como estabelecendo um conceito constitucional de família não apenas jurídico, «havendo assim, uma abertura consütucional — se não mesmo uma obrigação — para conferir o devido relevo jurídico às uniões familiares de facto» (v. Constituição Anotada).
As alterações ao Código Civil foram o início da consagração progressiva de vários direitos das uniões de facto heterossexuais, sendo bem evidente que a lei deixou de ostentar o.seu vesgo censório sobre realidades sociológicas, que, segundo os últimos dados estatísticos se encontram em progressão.
Com efeito, as alterações introduzidas ao artigo 2196.° do Código Civil, permitindo que fosse válida a disposição
testamentária a favor de pessoa com quem o testador tivesse cometido adultério se há data da abertura da sucessão o testador já estivesse separado há mais de seis anos do seu cônjuge, e estabelecendo também a validade do testamento a favor dessa pessoa se a disposição testamentária se limitasse a assegurar alimentos ao beneficiário, foram alterações de relevo, nomeadamente porque lhes está subjacente o objectivo de retirar ao direito civil uma finalidade moral.
O mesmo regime é aplicável às doações por força do artigo 953.° do Código Civil.
E assim se deu um passo importante visando responder a situações de clamorosa injustiça.
Também o artigo 2020.° do Código Civil, definindo união de facto, por forma que nenhumas dificuldades se registaram na jurisprudência sobre esse conceito, veio permitir uma resposta justa àquelas situações em que o membro sobrevivo da união de facto ficava em situação de manifesta carência perante uma herança a que não tinha qualquer direito.
Posteriormente a legislação umas vezes, e outras vezes a jurisprudência, consagrou novos direitos, que uns consideram decorrentes da própria concepção constitucional de família.
E assim podem citar-se resumindo algumas das alterações mais significativas introduzidas em legislação dispersa:
Decreto-lei consagrando para as uniões de facto o direito aos benefícios na eventualidade de morte aos • beneficiários da Caixa Geral de Aposentações;
Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro, consagrando idênticos direitos no âmbito do regime geral da segurança social;
Decreto-Lei n.°321-B/90, de 15 de Outubro — Regime do Arrendamento Urbano—, que na alínea e) do n.° 1 do artigo 85.° estabelece a transmissão do direito ao arrendamento, em caso de morte do primitivo arrendatário, para a pessoa que com ele vivia em circunstâncias análogas às dos cônjuges por mais de cinco anos;
Lei n.° 19-A/96, de 29 de Junho, artigo 6.°, n.° 1, alínea a) — rendimento mínimo garantido (salienta-. -se que para efeito da atribuição do rendimento se considera em união de facto quem viva com o titular do direito naquela situação há mais de um ano);
Lei n.° 100/97, de 13 de Setembro — artigo 20.° estabelecendo o direito a pensão por morte resultante de acidente de trabalho a quem tenha vivido com o falecido em união de facto sem se fazer depender tal direito da necessidade de alimentos por parte do sobrevivo. Artigo 1.°, n.°2, desta lei que aplica às doenças profissionais o regime dos acidentes de trabalho;
Decreto-Lei n.° 497/88, de 30 de Dezembro — férias feriados e faltas na Administração Pública que coloca as pessoas em união de facto em igualdade com os cônjuges excepto no que toca a licenças;
Decreto-Lei n.° 223/95, de 8 de Setembro — regulamenta a atribuição de subsídio por morte de funcionário — artigo 3.°;
Decreto-Lei n.° 191- B/79, de 25 de Junho, que deu nova redacção aos artigos 40.° e 41.° do Decreto--Lei n.c 142/73 para conferir o direito à pensão de sobrevivência às pessoas vivendo em união de facto carenciadas de alimentos;
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Decreto Regulamentar n.° 1/94, de 18 de Janeiro, que . regulamenta a forma de exercer o direito às pensões da segurança social.— regime geral.
3 — Na sua última publicação Portugal Social — INE 1998 — o Instituto Nacional de Estatística regista profundas alterações ao nível das famílias quer ao nível da União Europeia, quer ao nível de Portugal.
Alterações que também são patentes nos dados publicitados pelo Eurostat.
Com efeito, segundo o Eurostat, na União Europeia, segundo os dados relativos a 1997, são cerca de 25% as crianças nascidas fora do casamento. Na Dinamarca e na Suécia a proporção é mesmo de 50%, enquanto na Finlândia e na França atinge os 30%.
Em Portugal regista-se também uma tendência crescente de nascimentos fora do casamento.
Se em 1991 a proporção de nados vivos fora do casamento era de 9,5%, em 1985 já representava 12% e em 1995 tinha já atingido os 18,7%.
Relativamente à taxa de nupcialidade, revela o Eurostat que o casamento está em -declínio na União Europeia, sendo a taxa de matrimonialidade (número de casamentos por cada 1000 pessoas) de 6,3 em 1980, em 1997 baixou para 5.
Enquanto relativamente à taxa de divorcialidade, o Eurostat em Setembro de 1997 alertava para o aumento desta taxa, prevendo o perigo de um terço dos casamentos da União Europeia virem a terminar em divórcio.
Em Portugal, segundo o INE, o número de casamentos no período entre 1990 e 1995 diminuiu 8,2% enquanto o número de divórcios aumentou 33,7%. Neste mesmo período o número de divórcios cresceu, em termos médios,' 6,5%, média bastante elevada por comparação, em termos médios, cóm a taxa média de aumento entre 1985 e 1990, que-foi de 0,6%.
De 1996 para 1997,' ainda seguindo dados do INE, se é certo que se verificou um aumento de casamentos (3,3%), a verdade é que a taxa de divorcialidade conheceu um aumento superior (4,8%).
4 — Síntese dos dois projectos de lei: No projecto de lei n.° 414/VII:
Define-se união de facto — artigo 2.° ;
Estipulam-se quais os regimes legais relaüvos aos cônjuges que se aplicam às famílias constituídas' em união de facto, sem prejuízo de outros direitos e do disposto no projecto de lei — artigo 3.°;
Consagra-se a possibilidade de as pessoas vivendo em união de facto poderem adoptar qualquer dos regimes de bens previstos para o casamento — artigo 4.°;
Definição através de legislação especial — nomeadamente na área do processo civil.— dos meios processuais necessários à efectivação dos direitos.
No projecto de'lei n.°527/VII:
Definição do âmbito do projecto — definir o regime jurídico das pessoas de sexo diferente vivendo em união de facto — de união de facto — artigo 1 °;
Consagram-se os impedimentos à constituição da união de facto — artigo 2.°;
EÍenca-se taxativamente o quadro dos direitos das pessoas vivendo em união de facto— artigo 3.°;
Estabelece-se o regime relativo à casa de morada de família em caso de morte ou de separação;
Altera-se o artigo 85." do RAU relativo à transmissão do direito ao arrendamento;
Estabelecem-se os meios processuais destinados a obter pensões na eventualidade de morte do beneficiário dos regimes de segurança social, por morte decorrente de acidente de trabalho, e de pensão por preço de sangue — artigo6o
5 — Análise das soluções de cada um dos projectos de lei:
Projecto de lei n.° 414ATI
Relativamente ao conceito de união de facto:
Parece-nos inequívoco, pela definição que se faz de união de facto no artigo 2° do projecto de lei, que o regime constante do projecto de lei apenas se aplica às uniões de facto heterossexuais.
Com efeito, a utilização da expressão «coabitando em circunstâncias análogas às dos cônjuges» não tem outro sentido no sistema jurídico português senão o de coabitação entre pessoas de sexo diferente.
Efectivamente, a definição de união de facto constante do projecto de lei adopta nesse aspecto a formulação do artigo 2020.° do Código Civil — «vivia com ela há mais de dois anos em circunstâncias análogas às dos cônjuges».
Ora, os cônjuges estão obrigados ao dever de coabitação, o qual não envolve apenas o dever de os cônjuges viverem em comum sob o mesmo tecto. Este dever envolve o chamado débito conjugal (v. Abel Pereira Delgado, in Divórcio, pp. 43 e 44).
Assim, a expressão que o partido proponente retoma do citado artigo 2020.°, outra interpretação não autoriza senão a de que a união de facto a que o projecto de lei se refere, não pode ser outra senão a união de facto heterossexual.
Esclarecida esta questão, importa ainda acrescentar que no artigo 2." do projecto de lei se adita, relativamente ao conceito constante do artigo 2020.° do Código Civil, a exigência de idade núbil de ambas as pessoas vivendo em circunstâncias análogas às dos cônjuges, e se reconhece a possibilidade de existir a união de facto sem exigência de qualquer prazo de duração, se houver descendência comum dos unidos naquelas circunstâncias.
Por último, e ainda quanto ao conceito, mantém-se a exigência de as pessoas vivendo em comum e em circunstâncias análogas às dos cônjuges não serem casadas ou serem separadas judicialmente de pessoas.
Não se refere no artigo 2.° se se podem considerar em união de facto pessoas que estão abrangidas pelos impedimentos que tornam absolutamente impossível o casamento.
Mas, dado que o projecto de lei se destina a alargar às uniões de facto certos direitos das pessoas casadas, não temos dúvidas de que não se mostra necessário juntar aos requisitos previstos no projecto de lei aqueles que constam dos impedimentos que tornam impossível o casamento. Pois que se as pessoas não podem casar, não podendo, portanto, gozar dos direitos que as pessoas casadas têm por via do casamento, não poderão gozar desses direitos vivendo em união de facto.
Relativamente aos impedimentos impedientes, já que os mesmos não impedem o casamento, nenhuma razão há para que não se possam alargar os direitos às pessoas que podiam obter dispensa dos mesmos impedimentos para se casarem.
E, assim, o conceito expresso define concisamente união de facto sem deixar lugar a problemas jurisprudenciais que não se registaram até agora.
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O partido proponente alarga às pessoas vivendo em união de facto os seguintes regimes jurídicos:
Atribuição das prestações da segurança social; Atribuição das prestações decorrentes de acidentes de trabalho;
Transmissão do direito ao arrendamento;
Regime do IRS;
Regime de faltas no trabalho.
Mais adiante, cotejando os dois projectos de lei em análise, nos referiremos a algumas destas soluções. O que também se fará relativamente ao que é proposto no artigo 4." — a adopção pelas pessoas vivendo em união de facto, de qualquer dos regimes de bens previstos para o casamento: comunhão geral de bens, comunhão de adquiridos ou separação de bens.
Relativamente à entrada em vigor do diploma—vem proposto que o mesmo entre em vigor no prazo de 30 dias após a data de publicação —, deve ser ponderado, em sede de especialidade, o momento da produção de efeitos de algumas das disposições.
Pois que se há algumas que podem produzir efeitos até imediatamente ao dia da publicação até — como acontece com a transmissão do regime do direito ao arrendamento por morte — com a atribuição de prestações de segurança social — que já estão em vigor para as uniões de facto definidas no artigo 2020." do Código Civil — e com a atribuição de prestações decorrentes de acidentes de trabalho, outras há que só podem produzir eficácia depois da regulamentação que se nos afigura ter de ser vastíssima. Bastará atentar na transmissão do direito aô arrendamento devido a ruptura da união de facto, e no que terá de legislar-se para acautelar os direitos dos credores face ao que consta do artigo4o
Realça-se ainda que da protecção constante do artigo 3° está excluído o regime de prestação alimentar a que estão obrigados os cônjuges, e o regime de atribuição da casa de morada de família quando própria do outro cônjuge.
Projecto de lei n.°527ATI — Regime jurídico da união de facto
O projecto de lei apresentado pelo Deputado Sérgio Sousa Pinto e outros Deputados do Partido Socialista claramente exclui do seu âmbito as uniões de facto de pessoas do mesmo sexo — veja-se o artigo \° do diploma em análise.
Os proponentes adoptam para a definição de união de facto a mesma definição utilizada pelo Código Civil para o casamento — plena comunhão de vida.
Segundo Pereira Coelho, plena comunhão de vida no casamento é a comunhão de vida em que os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, comunhão de vida exclusiva ou tendencialmente perpétua.
Exige-se ainda no n.° 2 do artigo 1." que a plena comunhão de vida dure há mais de dois anos, decorrendo do artigo 2.° que não há união de facto quando qualquer das pessoas tenha idade inferior à idade núbil — impedimento do casamento — quando qualquer dos unidos de facto sofra de demência notória, mesmo nos intervalos lúcidos, ou esteja interdito ou inabilitado por anomalia psíquica, e quando qualquer das pessoas seja casada, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens; quando entre as pessoas exista parentesco em linha recta.
Assim, o projecto de lei acolhe alguns dos impedimentos do casamento — todos os impedimentos absolutos e alguns dos impedimentos relativos.
Mas mais importante do que isto — é facto a reter para a avaliação de outras soluções do projecto de lei — está o facto de se ter abandonado a definição constante do artigo 2020." do Código Civil — vida em circunstâncias análogas às dos cônjuges — e se ter optado pela definição de casamento — plena comunhão de vida.
Na verdade, pareceria pela definição que o projecto iria considerar a união de facto como fonte de relações jurídicas familiares dado os deveres que se impõem às pessoas em união de facto.
Contudo, tudo o que do mesmo projecto consta, não dando expressão a deveres, como o dever de assistência e de cooperação, que impõe aos membros em união de facto por força da definição adoptada, suscita a necessidade de clarificar o papel das uniões de facto como fonte de relações jurídicas familiares.
Posto isto, e resumidamente, o projecto de lei estabelece para as pessoas vivendo em união de facto os seguintes direitos:
1) A protecção da casa de morada de família;
2) Ao regime jurídico de férias, feriados, faltas e licenças dos funcionários da administração pública equiparado ao dos cônjuges;
3) Ao regime jurídico das férias, feriados e faltas aplicável por efeito de contrato individual de trabalho equiparado ao dos cônjuges;
4) A aplicação do regime do IRS nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens;
5) A adoptar nos termos previstos para os cônjuges no artigo 1979° do Código Civil;
6) À protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei;
7) A pensão por morte resultante de acidente de trabalho, nos termos da lei;
8) A pensão por preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, nos termos da lei.
Nos artigos seguintes, desenvolve-se o regime relativo à casa de morada de família, à transmissão do direito ao arrendamento, condicionando-se o regime de acesso às prestações por morte previstas nas alíneas f), g) e h) do artigo 3.° do diploma à obtenção de uma sentença judicial que reconheça o direito a alimentos da herança do falecido,, nos termos do disposto no artigo 2020." do Código Civil, e no caso de não ser reconhecido tal direito com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens, de sentença proferida em acção declarativa interposta, com essa finalidade contra a instituição competente para a atribuição de pensões.
6 — Convirá agora pormenorizar-se as soluções dos dois projectos de lei, cotejando-as com as disposições legais que já se aplicam às uniões de facto.
Regime de bens da união de facto
O projecto de lei do Partido Ecologista Os Verdes estabelece a possibilidade de as pessoas unidas de facto estabelecerem por acordo qualquer dos regimes de bens do casamento.
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O projecto é omisso sobre o momento em que tal acordo deve ser estabelecido. E quando é que tal acordo produz efeitos. Desde o início da coabitação? Quando se tiverem cumprido os dois anos?
Quando as pessoas já tiverem atingido os dois anos de coabitação?
Quando estejam prestes a atingir esses dois anos? Depois de os terem atingido?
A questão não será de somenos importância, já que têm de acautelar-se direitos de terceiros.
Ora, se durante a coabitação for celebrado, por exemplo, um acordo adoptando o regime de comunhão geral de bens, se a pessoa que tiver adquirido determinado imóvel tiver contraído uma dívida, uma vez que a união de facto não é registada, colocam-se ao credor algumas dificuldades em sede judicial. Desde logo em relação às pessoas a demandar. E depois em relação à forma de obter a separação de meações, no caso de a dívida não ser comunicável. A celebração do acordo durante a coabitação poderia vir a configurar-se muitas vezes como um meio de tornar mais difícil a execução de dívidas.
Embora o projecto de lei remeta para regulamentação, e esta será seguramente uma das matérias dependentes dessa regulamentação, a lei deveria desde logo precisar alguns aspectos relacionados com o regime de bens,
De qualquer forma convém salientar que é facultativa a adopção de um regime de bens, e que o projecto de lei mantém em vigor para a união de facto, regimes legais que já lhe sejam aplicáveis — v. corpo do artigo 3.°
Ora, o regime do enriquecimento sem causa — artigos 473.° e seguintes do Código Civil — aplica-se à união de facto, conforme tem vindo a ser decidido jurisprudencialmente.
Assim, se determinada pessoa vivendo em união de facto tiver contribuído para a aquisição de determinado bem que esteja na titularidade do outro membro da união de facto, tem o direito a ser indemnizada, desde que prove o enriquecimento deste à custa do seu empobrecimento.
Nesse sentido veja-se um recente Acórdão do Supremo Tribuna] de Justiça de 8 de Maio de 1997, processo n.° 690/ 96 — 2." Secção —, de que se transcreve o sumário:
Sumário
I — Tendo o recorrente e a recorrida vivido maritalmente durante quase 16 anos e comprado um andar com os proventos comuns dos dois, parece que terá havido, na pendência dessa situação marital, uma economia comum.
II — No entanto, foi sempre uma economia comum de facto, que não jurídica, porque a possível realidade de juntarem dinheiro conseguido por ambos não significa, ou não tem a consequência, de cada um deles comungar, em termos de direito, no dinheiro do outro.
III — Não está, portanto, em jogo o eventual «deve» e «haver» relativo a esse período de vivência marital, que por isso é aqui totalmente irrelevante.
IV — O que interessa é saber com quanto dinheiro a autora, ora recorrida, entrou efectiva e concretamente para ta) aquisição do andar, pois é essa a medida do seu empobrecimento e consequente enriquecimento do recorrente.
Ora, o projecto de lei apresentado por Deputados do Partido Socialista carece de um acautelamento inequívoco
da possibilidade de o empobrecido lançar mão do recurso às acções de enriquecimento sem causa.
Com efeito, o projecto, tal como se diz no artigo 1.°, regula a situação jurídica das pessoas de sexo diferente que vivem em união de facto. Regula com carácter taxativo. Portanto, tudo o que na lei anterior se aplicasse às uniões de facto, que no diploma não ficasse consagrado, Ficaria revogado por este diploma.
E nada se dispondo quanto aos bens — ou melhor es-tabelecendo-se apenas quanto a bens um direito real de habitação por cinco anos relativamente à casa de morada de família, e o direito a preferência na venda ou arrendamento da mesma — ficando expresso que da legislação em vigor apenas se manterá o que consta do artigo 2020.° do Código Civil, e o que consta das leis em matéria de segurança social, de pensões por acidentes de trabalho — com restrições como adiante se anota — e em matéria de pensões por preço de sangue e por serviços excepcionais prestados ao País — a jurisprudência futura recusaria a aplicação do regime do enriquecimento sem causa, com base num diploma que se apresenta como um estatuto das pessoas vivendo em união de facto.
Casa de morada de família
O projecto de lei do Partido Ecologista Os Verdes nada dispõe a tal respeito.
E não estando claro no projecto, se, no caso de acordo relativamente ao regime de bens, se trata de uma comunhão indivisa ou de uma compropriedade, sempre se coloca a questão de saber se tal regime torna possível garantir em caso de ruptura da união de facto, o direito à habitação da pessoa mais carenciada.
Por outro lado, o projecto de lei não dá resposta aos problemas daquelas pessoas que, em caso de morte daqueles com quem coabitaram em condições análogas às dos cônjuges, se vêem desalojados pelos herdeiros destes da casa, que foi a casa de morada de família e que só se encontrava na titularidade do de cuius.
Já o projecto de lei n.° 527/VII estabelece, apenas para os casos de morte de membro da união de facto, proprietário da casa de morada do casal, que o membro sobrevivo tem direito real de habitação sobre a mesma pelo prazo de cinco anos e direito de preferência na sua venda ou arrendamento. Desde que não sobrevenham ao falecido descendentes ou ascendentes que com ele vivessem e pretendam continuar a habitar a casa, ou no caso de disposição testamentária em contrário.
Suscita dúvidas o regime estabelecido, nomeadamente quanto ao direito de preferência na venda ou no arrendamento.
Este direito de preferência existe só enquanto se mantém o direito real de habitação?
Por outro lado, o direito real de habitação a prazo também fica excluído se os descendentes do falecido forem descendentes do sobrevivo?
Estando o regime do direito real de habitação previsto nos artigos 1484.° e seguintes do Código Civil, e não estando excluído da aplicação às uniões de facto o artigo 1487.°, por que moüvo ficam excluídos do direito a usar da casa de morada de família os filhos casados que coabitem com o titular do direito real de habitação?
Será justo que através de disposição testamentária se retire 'o direito de preferência na venda ou no arrendamento?
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Direito ao arrendamento em caso de ruptura da união de facto
No projecto de lei dos Deputados do Partido Socialista prevê-se apenas a transmissão do arrendamento por acordo, tal como acontece nos casos de divórcio ou de separação judicia) de pessoas e bens, ou, na falta de acordo, apenas quando haja filhos do casal e apenas quando tal for necessário aos interesses destes filhos.
Tem sido controvertida na jurisprudência a questão de saber se a pessoa que tiver vivido em união de facto com o inquilino constitui familiar deste para o feito previsto na alínea c) do n.°2 do artigo 64.° do RAU [outrora alínea c) do n.° 2 do artigo 1093.° do Código Civil]. Isto é: para o efeito de não se verificar falta de residência permanente do inquilino quando üver havido ruptura da união de facto e na casa fique apenas o outro membro do casal.
Citam-se dois acórdãos que consideraram que, nesses casos, não se verifica falta de residência permanente, porquanto, segundo essa jurisprudência, esse membro do casal é familiar nos termos do disposto na legislação sobre arrendamento urbano.
No acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Fevereiro de 1975, in Boletim do Ministério da Justiça, n.° 244, p. 310, defende-se que:
I — Com a expressão «familiares», constante da alínea c) do n.° 2 do artigo 1.093." do Código Civil, o legislador não quis dizer coisa diferente do que se dizia no n.° 3 da alínea a) do artigo 69.° da Lei n.° 2030, de 22 de Junho de 1948, ou seja, as pessoas que constituem o agregado familiar do arrendatário.
II — As pessoas que constituem tal agregado são todas aquelas que por virtude de vínculos de natureza familiar, contratual e moral estão ligadas ao arrendatário e vivam habitualmente com ele em comunhão de mesa e habitação.
Hl — Tem de considerar-se familiar do arrendatário, para os efeitos da alínea c) do n.°2 do artigo 1093." do Código Civil, tal como os seus serviçais (artigo 1040.°, n.°3), a mulher com quem ele vive maritalmente há 17 anos; pois que também quantq a ela tem obrigações, embora naturais por o seu cumprimento não ser judicialmente exigível.
rv — A permanência desta mulher na casa arrendada impede assim a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento na alínea í) do n.° 1 do referido artigo 1093.°, por força do disposto na alínea c) do n.'° 2 do mesmo preceito.
Por seu turno, um acórdão da Relação do Porto de 1994 estabeleceu o seguinte:
I — Ao cônjuge a que alude a alínea c) do n.° 2 do. artigo 64.° do Regime do Arrendamento Urbano deve ser equiparada a pessoa que vivia com o arrendatário em união de facto.
Ora, face ao que consta do projecto de lei, dúvidas mais insistentes se colocariam sobre se a pessoa vivendo com o arrendatário em união de facto poderia continuar a ser considerado familiar deste. Tendo em conta, nomeadamente, o que consta do regime de transmissão do arrendamento por ruptura, a que nos referiremos, Registando-se desde já que o projecto apenas permite a transmissão do arrendamento por ruptura quando houver filhos e quando tal for necessário atendendo aos interesses dos filhos do casal.
Uma mulher que não tivesse filhos do companheiro poderia ser considerada familiar para efeitos de legislação sobre arrendamento urbano?
Transmissão do arrendamento por morte Projecto de lei n.B 414/VII
Prevê-se que o regime seja igual ao das pessoas unidas pelo casamento.
Isto quer dizer que em caso de morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a posição contratual, a pessoa vivendo em união de facto por mais de dois anos ou, independentemente da duração, se o casal tiver descendência comum, passa a ocupar o primeiro lugar na ordem das transmissões previstas no artigo 85.° do RAU.
Projecto de lei n.B 527/VII
O que a este respeito vem proposto carece de melhor explicitação.
Na verdade, tal como se encontra previsto no projecto de lei, para que possa considerar-se um casal em união de facto é necessário que nenhum deles seja casado, ou que, pelo menos, sejam separados judicialmente de pessoas e bens.
O n." 1 do artigo 85." do RAU estabelece a transmissão do arrendamento em primeiro lugar para o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto.
Quer dizer que, neste caso, ainda que o inquilino viva em comunhão de cama, mesa e habitação com outra pessoa, que não o seu cônjuge, não vive em união de facto, pois é casado.
Assim sendo, como pode prever-se (como se faz no projecto de lei — v. n.° 2) que caso o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, ou de facto, não pretenda a transmissão, a pessoa vivendo em união de facto (que não existe juridicamente) é equiparada ao cônjuge?
Compreende-se que se quis situar em melhor lugar na ordem das transmissões — logo a seguir aos descendentes — as pessoas vivendo em união de facto (reduzindo--se simultaneamente de cinco para dois anos a duração da união de facto).
A solução não foi, no entanto, feliz.
Pensões resultantes de acidentes de trabalho
Projecto de lei n.° 414/VII
Propõe-se que os direitos previstos para os cônjuges em relação às prestações devidas por acidentes de trabalho sejam alargados às uniões de facto.
Tendo em conta que já foi publicada a nova lei de acidentes de trabalho acima referenciada (embora ainda não regulamentada), a proposta significa que, nos termos do projecto de lei do Partido Ecologista Os Verdes, as pessoas em união de facto ficam com direito em caso de morte às prestações a que têm direito os cônjuges, independentemente de preencherem os requisitos necessários para terem direito à pensão de alimentos a exigir da herança do falecido.
O projecto de lei não faz referência às pensões devidas por morte decorrente de doença profissional.
Contudo, como no corpo do artigo 3." se estabelece que
os membros do casal beneficiam dos direitos constantes
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das várias alíneas sem prejuízo de outros direitos, está salvaguardada a aplicação do que consta da lei de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Aliás, a proposta da alínea b) do artigo 3.° do projecto de lei coincide com o que já consta da lei aprovada na presente legislatura sobre acidentes de trabalho e doenças profissionais, que não faz depender dos requisitos do direito a alimentos da herança do falecido o direito às prestações por morte.
Projecto de lei n.° 527A/II
Prevê-se apenas o direito a prestações por morte do trabalhador nos casos de acidentes de trabalho, e não de doenças profissionais. E mesmo assim — v. artigo 6.° n.° 1 — condicionado ao direito a alimentos da herança do falecido nos termos do artigo 2020." do Código Civil. Isto é: o sobrevivo membro do casal terá de demonstrar que:
a) Que necessita de uma pensão de alimentos;
b) Que não tem entre as pessoas que em relação a ele estão obrigadas à prestação alimentícia quem lha possa prestar.
Tendo sido a lei de acidentes de trabalho e doenças profissionais — Lei n.° 100/97, de 13 de Setembro — aprovada já nesta legislatura, estranha-se que se proponha uma tal redução dos direitos das pessoas vivendo em união de facto.
o
Regime de férias, feriados, faltas, feriados c licenças dos funcionámos da administração pública
Ambos os projectos de lei prevêem que se continue a aplicar o regime já hoje existente para os funcionários da administração púb/ica quanto a férias feriados e faltas, propondo-se ainda no projecto de lei n.° 527/Vn que também o regime de licenças aplicável aos cônjuges se alargue às pessoas em união de facto.
Regime de férias, feriados e faltas aplicável por efeito de contrato individual de trabalho
Q projecto de lei n.°414/VII prevê apenas a aplicação às pessoas em união de facto do regime de faltas aplicável aos cônjuges.
.0 projecto de lei alarga tal aplicação também ao regime de férias.
Regime do IRS
Ambos os projectos de lei propõem que se aplique às pessoas em união de facto o mesmo regime aplicável aos cônjuges.
Adopção
Apenas o projecto de lei n.° 527/VII prevê para as uniões de facto o mesmo regime das pessoas casadas.
Será, no entanto, de ponderar soluções de outros países que estabeleceram a possibilidade de adopção conjunta, sem coarctar o direito à adopção apenas por um dos membros.
O projecto de lei ao fazer aplicar o artigo 1979° do Código Civil pode representar para pessoas em união de facto a impossibilidade de adoptar sozinha, por via do n.° 3 do actvgo 1979.°
Protecção na eventualidade de morte do beneficiário do regime da segurança social ou da Caixa Geral de Aposentações
Ambos os projectos de lei propõem a manutenção do que já se encontra legislado.
Pensão de preço dc sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País
Apenas o projecto de lei n.° 527/VII prevê a equiparação das pessoas em união de facto às pessoas ligadas pelo vínculo matrimonial.
Meios processuais necessários ao exercício dos direitos consagrados em cada um dos diplomas
Projecto de lei n.°414A/ii
O projecto remete para legislação especial a regulamentação da lei, nomeadamente quanto aos meios processuais necessários, nos quais se incluirão, nomeadamente, a forma de acordar quanto ao regime de bens e a forma de exercer o direito aos benefícios na eventualidade de morte, a receber do Centro Nacional de Pensões ou da Caixa Geral de Aposentações.
Relativamente às pensões por acidentes de trabalho, o diploma não necessita de regulamentação, dado que esse direito será exercido nos tribunais do trabalho, como acontece com os cônjuges. E, recorde-se, as reparações devidas por acidentes de trabalho são sempre fixadas nos tribunais do trabalho.
Projecto de lei n.8 527/VII
Para além da regulamentação necessária à execução do diploma, que nos termos do artigo final compete ao Governo, o projecto de lei regulamenta já a forma de aceder aos benefícios resultantes da eventualidade de morte, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei, às pensões por morte resultantes de acidentes de trabalho, às pensões de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestado, ao País.
Fá-lo no artigo 6.°, onde se prevê como forma de aceder aos direitos consagrados nas alíneas f), g) e h) do artigo 4.°
Propõem os apresentantes do projecto que tais direitos só possam ser concedidos se o sobrevivo obtiver sentença judicial em acção proposta contra a herança do falecido, nos termos do artigo 2020.° do Código Civil, que lhe reconheça o direito a alimentos.
.Munido dessa sentença seguir-se-á o processo administrativo para as pensões a receber da Caixa Geral de Aposentações ou do Centro Nacional de Pensões.
Relativamente às pensões por morte decorrentes de acidente de trabalho, o processo do tribunal do trabalho aguardará pelo tempo necessário a que seja proferida sentença no tribunal judicial.
Se a pessoa sobreviva propuser a acção nos termos do artigo 2020." do Código Civil mas não obtiver o reconhecimento do direito a alimentos apenas por inexistência ou insuficiência dos bens da herança, mas provando a necessidade de alimentos, e a impossibilidade de os obter dos seus familiares obrigados a alimentos, segue-se nos tribunais do trabalho a acção contra a seguradora e nos outros tribunais (administrativos ou comuns? — o projecto de lei não resolve esta questão) a acção destinada a obter a sentença declarativa que lhe confira o direito às prestações, proposta contra a entidade obrigada às prestações.
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Desde logo resulta deste regime que ficam em desvantagem as pessoas mais carenciadas vivendo em união de facto. De um lado temos o sobrevivo que é carenciado de alimentos. Do outro lado temos uma herança sem bens, ou com bens manifestamente insuficientes. E é o membro sobrevivo desta união de facto que ainda tem de ir propor uma outra acção, que levará mais uns anos para aceder às prestações da segurança social ou da Caixa Geral de Aposentações.
Enquanto nas uniões de facto em que o falecido deixe bens suficientes para pagar a pensão de alimentos, o sobrevivo depois de lhe ver ser garantida pensão de alimentos por sentença judicial, depois de a começar a receber, tem logo acesso às prestações por morte daquelas entidades.
Depois do Decreto Regulamentar n.° 1/94, de 18 de Janeiro, a jurisprudência tem sido fértil em decisões relativamente à forma de aceder às prestações por morte devidas pela segurança social ou pela Caixa Geral de Aposentações.
O diploma acolhe as soluções da jurisprudência mais burocratizante que passou a exigir duas acções, uma proposta contra a herança do falecido, outra, logo a seguir, contra a entidade que deve pagar tais prestações.
Mas jurisprudência há que se tem pronunciado de outra forma. Por forma a pôr fim ao calvário das pessoas que, em manifesta carência económica, necessitam das pensões de sobrevivência.
Citaremos o seguinte acórdão proferido no recurso de revista n.° 772/98 — 2.° Secção — relator: conselheiro Costa Marques:
I — O direito à pensão de sobrevivência será atribuído logo que o interessado obtenha, sentença judicial que lhe reconheça o direito a alimentos nos termos do artigo 2020.° do Código Civil.
O direito à pensão de sobrevivência é uma consequência dessa decisão.
II — Mas, em tal acção apenas importa que se vise o reconhecimento do direito a alimentos que o artigo 2020.° do Código Civil concede a determinadas pessoas, verificados que sejam certos requisitos cumulativos, e não também a fixação de uma prestação de alimentos a pagar pela herança aberta por óbito do membro da união de fado.
JJJ — Daí que a acção tenha de ser proposta contra o Centro Nacional de Pensões, por ser a entidade titular do interesse relevante em contradizer, e não contra a herança aberta por óbito do membrq da união de facto, que nenhum interesse tem em contradizer enquanto lhe não for exigida uma prestação de alimentos.
Como se vê, neste acórdão entendeu-se que a acção a interpor deveria ser apenas uma, contra a entidade que deveria processar os benefícios por morte.
7 — Direito comparado:
Em Outubro de 1997, a Divisão de Estudos de Legislação Comparada do Senado francês elaborou um relatório (http://ww w .casti .com/FQRD/texts/partenership/france-senate-97-lc28-fr.html) donde consta a legislação de vários países a respeito das uniões de facto.
Ainda que resumidamente, e socorrendo-nos também do texto de algumas leis, enunciam-se as soluções de alguns dos ordenamentos jurídicos estrangeiros:
Bélgica
Em 19 de Março de 1998 foi publicado no jornal oficial — Monitor Belga — o diploma aprovado pela Câmara dos Representantes da Bélgica.
Em síntese, tal diploma atribui efeitos jurídicos a uma nova forma de coabitação, para além do casamento — a coabitação lega) — vida comum de duas pessoas (não importando o sexo) tendo feito uma declaração de vontade de coabitar dessa forma, declaração a remeter à administração comunal da residência comum.
Fica proibida a constituição desta coabitação legal se uma das pessoas é casada, ou se se encontra já ligada por outra forma de declaração legal, e se qualquer das pessoas não dispõe de capacidade legal para contratar.
A coabitação legal termina pelo casamento de uma das pessoas, pela morte ou por ruptura, bastando para tal que uma das partes remeta à administração comunal declaração de que põe fim à coabitação.
Estipula-se o dever de assistência das pessoas vivendo em coabitação legal que ficam obrigadas a contribuir para as despesas da vida comum nà proporção dos seus recursos.
Estabelece-se a solidariedade na responsabilidade das dívidas contraídas por qualquer dos coabitantes para proveito comum do casal e dos filhos que educam.
Relativamente aos bens, só serão próprios aqueles relativamente aos quais possa ser feita a prova de que apenas pertencem a um dos membros do casal, considerando-se comuns todos os restantes.
O diploma regula ainda a adopção de medidas provisórias relatívãmente à residência comum, à pessoa, aos bens, relativamente aos filhos, e às obrigações legais e contratuais dos membros do casal, em caso de ruptura da coabitação legal.
Remetendo para o Código Judiciário a resolução das mesmas questões a título definitivo.
Dinamarca
As uniões de facto homossexuais são reguladas pela Lei n.°372, de 1 de Junho de 1989, que visa as uniões de facto homossexuais estáveis, embora se aplique também a duas pessoas do mesmo sexo, qualquer que seja a natureza das suas relações, que registem a sua união de facto no registo civil.
A lei assimila largamente as uniões ao casamento, sujeitando-as para serem válidas, aos mesmos requisitos do casamento — idade, capacidade, impedimentos, etc.
As uniões de facto beneficiam dos mesmos direitos fiscais, patrimoniais, sociais e sucessórios.
A lei prevê a forma de ruptura da união de facto, nas mesmas condições que fundamenta o divórcio nos casamentos, sendo, no entanto, através de um processo administrativo.
A lei exclui, de forma expressa, dos direitos da união de facto:
A adopção conjunta de uma criança; O exercício, por cada um dos membros da autoridade parental.
Esta lei teve, no entanto, aplicação limitada.
Em Janeiro de 1996 pouco mais de 3000 pessoas tinham registado a união de facto.
Relativamente às uniões de facto heterossexuais, não existe nenhuma lei quadro que enuncie o seu estatuto.
No entanto, as uniões de facto heterossexuais beneficiam do mesmo regime do casamento em matéria de segurança social, impostos e alojamento.
A união de facto heterossexual não cria, no entanto, nenhuma comunhão de bens, nem confere direitos sucessórios.
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Contudo, os tribunais pronunciaram-se muitas vezes em sentido contrário, quando lhes parecia necessário impedir situações de extrema carência de um dos membros do casal, por falecimento do outro.
Espanha
Em 29 de Novembro de 1994, os Deputados do Partido Socialista apresentaram um projecto de resolução recomendando ao Governo que apresentasse um projecto de lei para as uniões de facto. O projecto de resolução foi aprovado pela maioria dos Deputados.
Em 29 de Abril de 1997, os Deputados rejeitaram, por uma maioria muito curta (163-161) obtida no 3.° escrutínio, duas propostas de lei do Grupo Socialista e da Iniciativa pela Catalunha, visando estabelecer para as uniões de facto heterossexuais e homossexuais os mesmos direitos decorrentes do casamento.
Alguns dias mais tarde a maioria dos Deputados aprovou a constituição de uma subcomissão, proposta pela Comissão de Justiça e do Interior, encarregada de estudar a situação jurídica das uniões de facto.
A situação jurídica das uniões de facto, em Espanha, é sobretudo resolvida jurisprudencialmente, sendo muito heterogénea a jurisprudência.
Entretanto, uma lei de Novembro de 1994 veio estabelecer a possibilidade de o membro sobrevivo do casal ficar sub-rogado nos direitos do titular do alojamento comum.
Finlândia
Em 28 de Maio de 1996 foi apresentada uma proposta de lei sobre as uniões de facto homossexuais.
Depois de ter sido examinada pelo Parlamento em sessão pública, a proposta baixou à Comissão de Leis, que em 17 de Junho de 1997 propôs ao Parlamento a rejeição da proposta de lei e propôs que o Parlamento recomendasse ao Governo a preparação de um projecto de lei visando suprimir as discriminações legislativas de que são vítimas as uniões de facto homossexuais.
O Parlamento em Setembro de 1997 adoptou a proposta da Comissão.
A proposta de lei apresentada em 1996 era o seguimento de uma outra proposta apresentada já em 1992 pela Comissão de Assuntos Familiares. Proposta tendente a conferir aos casais homossexuais que tivessem registado a sua união os mesmos direitos decorrentes do casamento, apenas com uma excepção: a possibilidade de adoptar conjuntamente uma criança.
A união de facto registada podia ser dissolvida através de sentença judicial.
Islândia
Em 4 de Junho de 1996 o Parlamento aprovou um projecto do Governo permitindo aos casais homossexuais que registassem a sua união. A lei entrou em vigor em 27 de Junho de 1996.
A lei tem as mesmas disposições da lei dinamarquesa, mas prevê também que as pessoas que tenham feito registar a sua união, possam partilhar a autoridade parental
Noruega
A Lei n.°40, de 30 de Abril de 1993, que entrou em vigor no d\a \ de Agosto desse mesmo ano, é muito se-
melhante à lei dinamarquesa tanto no que concerne às condições como às consequências jurídicas da união registada.
A lei norueguesa não exclui, no entanto, que duas pessoas que tenham registado a sua união possam partilhar a autoridade parental. Permite também que a ruptura da união de facto possa ser apreciada pelo juiz.
Holanda
Em Julho de 1997 o Parlamento aprovou uma lei proposta pelo Ministério da Justiça permitindo aos casais homossexuais que não se podem casar e aos casais heterossexuais que não se querem casar que registem a sua união.
Entretanto, foi designada uma comissão para apresentar um relatório sobre as implicações jurídicas, internas e externas da legalização dos casamentos homossexuais.
Antes da lei aprovada em 1997 os casais heterossexuais e homossexuais podiam outorgar no notário um contrato estabelecendo, nomeadamente, as suas relações jurídicas em caso de ruptura, assim como direitos sucessórios.
Estes contratos, especialmente os celebrados por casais homossexuais, foram contestados nos tribunais pelos familiaresc-.que obtiveram ganho de causa.
A actual lef holandesa, aplicável aos casais hetera e homossexuais, ao contrário das leis escandinavas, não comporta nenhuma condição de nacionalidade. Dois estrangeiros podem igualmente registar a sua união de facto desde que tenham uma autorização de residência válida.
O registo da união de facto depende do cumprimento dos mesmos requisitos exigidos para o casamento e não pode ter lugar sem a publicação dos editais.
A lei modifica uma centena de leis preexistentes para alinhar os regimes jurídico, fiscal, social e sucessório das uniões registadas pelo regime do casamento.
A ruptura da união de facto pode ter lugar por acordo, ou através de intervenção judicial em caso de litígio.
Os membros do casal não partilham a autoridade parental.
A adopção conjunta pelos casais homossexuais está vedada.
Suécia
A lei de 1987 sobre as relações patrimoniais entre os membros de uma união de facto heterossexual aproxima esta união de facto ao casamento no que concerne ao direito patrimonial.
Nos termos desta lei, se os membros do casal não fizerem uma convenção em contrário, o património doméstico — alojamento e mobiliário — que tenha sido adquirido para a utilização em comum deve ser partilhado em partes iguais no caso de separação, qualquer que seja o proprietário dos referidos bens.
No caso de falecimento o membro sobrevivo tem direito a uma quantia duas vezes superior à calculada nos termos da lei sobre segurança social.
A mesma lei prevê que o direito ao arrendamento do alojamento comum se transmita em caso de necessidade.
A lei de 1987 relativa às uniões de facto homossexuais aplica a estas uniões o regime constante da Jei referida para as uniões de facto heterossexuais.
A lei de 23 de Junho de 1994 sobre uniões de facto do mesmo sexo entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1995.
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É semelhante à lei dinamarquesa. No entanto, a lei sueca prevê a intervenção facultativa do juiz para o registo da união, e a intervenção obrigatória do juiz para declarar a dissolução da união de facto por ruptura.
Estados Unidos
Em Setembro de 1996 o Presidente Clinton assinou a lei sobre a defesa do casamento, que define, ao nível federal, o casamento como a união entre um homem e uma mulher, impedindo, desta forma, o acesso dos casais homossexuais às prestações atribuídas pelo Estado Federal aos casais resultantes do casamento.
A lei permite o não reconhecimento por um Estado da lei de outro Estado que autorize os casamentos de homossexuais.
Hawai
Em 5 de Março de 1993, o Tribunal Supremo do Estado do Hawai no caso Baehr versus Lewin decidiu que recusar o casamento civil a pessoas do mesmo sexo constituía uma discriminação e era contrário à consumição do Estado, a menos que este provasse que havia um interesse superior na sua proibição.
Com efeito, a Constituição do Hawai proíbe toda a discriminação sexual.
Tendo a decisão baixado ao tribunal inferior, este rejeitou em 3 de Dezembro de 1996 todos os argumentos avançados pelo Estado para justificar a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em Julho de 1997 entrou em vigor a lei sobre uniões de facto, que estabelece para as pessoas que não se podem casar uma série de direitos normalmente reservados às pessoas casadas. Em matéria sucessória, fiscal e social, nomeadamente.
O Parlamento do Hawai adoptou uma emenda à Constituição que previa que o casamento ficasse reservado a pessoas de sexo feminino.
Esta emenda devia ter sido submetida a referendo, desconhecendo-se se tal referendo já se realizou até à data.
Como reacção contra a possível legalização dos casamentos entre homossexuais no Hawai, numerosos Estados dos Estados Unidos apressaram-se a modificar a lei sobre o casamento, para o reservar a pessoas de sexo diferente, ou para impedir o reconhecimento de casamentos celebrados num Estado onde os requisitos do casamento fossem diferentes.
No mês de Julho de 1997 a situação era a seguinte:
25 Estados tinham adoptado uma lei comportando aquelas disposições;
23 Estados tinham rejeitado uma lei dessa natureza; em 5 destes Estados estava em curso o exame de uma nova lei;
Em 2 Estados nenhum texto de lei tinha sido apresentado;
Em 6 Estados-üma proposta de lei permitindo o casa-Yfte.t\\o mre pessoas do mesmo sexo unha sido apresentado e rejeitado.
Nos Estados Unidos da América são numerosas as circunscrições onde se passam certificados de concubinato a casais hetero e homossexuais. Estes documentos
permitem nomeadamente aos interessados aceder aos benefícios de sistemas de protecção social criados pelas grandes empresas. Calcula-se que um quarto de grandes empresas com mais de 5000 assalariados reconhecem estes certificados.
Gronelândia
Adopção da lei sobre uniões de facto registadas.
Hungria
1995 — legalização da Common-Law Marriage para as pessoas do mesmo sexo, mas não do casamento civil.
\ República Checa
1998 — o Parlamento rejeita a proposta de lei sobre união de facto registada por uma maioria de três votos.
Catalunha
30 de Junho de 1998 — o Parlamento regional vota e adoptou a primeira lei dos países do sul da Europa sobre uniões estáveis hetero e homossexuais.
Parlamento Europeu \
\
Sobre uniões de facto foram aprovados o Relatório Roth (26 de Janeiro de 1994) e o Relatório Pailler (17 de Fevereiro de 1998).
França
Depois de uma primeira rejeição a Assembleia Nacional francesa aprovou em 9 de Dezembro de 1998 o Pacto Civil de Solidariedade.
O Pacto Civil de Solidariedade pode ser celebrado entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes para organizarem a sua vida em comum.
A lei sujeita a registo no tribunal, o PACS.
Será no contrato celebrado que são reguladas as relações entre os outorgantes.
A lei altera várias disposições do Código Civil, do Código Geral dos Impostos e do Código da Segurança Social, por forma a aproximar em determinadas matérias o regime do PACS ao regime do casamento.
Assim e concluindo, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias delibera emitir o seguinte
Parecer
Os projectos de lei analisados encontram-se em condições de ser apreciados pelo Plenário da Assembleia da República.
Palácio de São Bento, 3 de Março de 1999. — A Deputada Relatora, Maria Odete Santos. — O Deputado Vice-Presidente da Comissão, Guilherme Silva.
Nora. — O relatório foi aprovado, com os votos a favor do ps, do PCP e do CDS-PP e a abstenção do PSD. O parecer foi aprovado por unanimidade.
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PROPOSTA DE LEI N.º 194/VII
(GARANTE UMA MAIOR IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NA PARTICIPAÇÃO DE CIDADÃOS DE CADA SEXO, NAS LISTAS DE CANDIDATURA APRESENTADAS NAS ELEIÇÕES PARA A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA E PARA O PARLAMENTO EUROPEU QUANTO AOS DEPUTADOS A ELEGER POR PORTUGAL)
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Relatório
O Governo apresentou à Assembleia da República uma proposta de lei que tem por objecto garantir uma maior igualdade de oportunidades na participação de cidadãos de cada sexo nas listas de candidatura apresentadas nas eleições para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu.
Essa apresentação foi efectuada nos termos da alínea d) do n.° 1 do artigo 197." da Constituição da República Portuguesa e do artigo 130.° do Regimento da Assembleia da República.
A proposta vertente foi aprovada no Conselho de Ministros de 25 de Junho de 1998, tendo baixado às 1." e 12.° Comissões, por despacho de S. Ex.° o Presidente da Assembleia da República, em 6 de Julho de 1998, para emissão dos respectivos relatórios e pareceres.
A discussão, na generalidade, desta iniciativa foi agendada para a reunião plenária de 4 de Março.
I — A questão em debate
25 anos após a revolução de Abril verifica-se, em Portugal, um chocante contraste entre a escassa participação política das mulheres e a evolução global positiva da sua situação, tanto no plano do estatuto jurídico como no quotidiano da vida económica, social e cultural.
Em cada vez mais áreas tem-se vindo a assistir a alterações sensíveis dos desequilíbrios tradicionais na participação. Em poucos anos, a uma velocidade que surpreende muitos observadores da nossa sociedade, a presença feminina tornou-se dominante em sectores de actividade outrora reservados a homens.
Porém, no plano da participação política não só não se verifica tendência similar como persistem antiquíssimas discriminações, sucessivamente renovadas, gerando um défice de representação que afecta a qualidade do sistema político e empobrece a vida pública portuguesa.
Sobre a existência desse défice e os seus malefícios existe hoje um vastíssimo consenso nas instituições e na sociedade.
Nenhuma força política ergue entre nós o ignominioso estandarte da desigualdade e estão desde há muito enterradas as velhas teses do Estado corporativo, que ditavam como «natural» o destino subalterno da mulher e como «desejável» o seu confinamento entre paredes do lar, sob a autoridade firme do «chefe de família», concebido como emanação doméstica do ditador que governava o «Portugal amordaçado».
Mas que medidas devem ser adoptadas para alterar a anómala situação que persiste em matéria de participação política? Em que planos e a que níveis? Em particular, como deve o legislador posicionar-se, na sua esfera de competência própria, com vista a contribuir para a mudança necessária, rumo a uma sociedade liberta de discriminações?
Sobre esta questão não existe consenso e durante muito tempo faltou mesmo uma clara formulação de alternativas susceptíveis de alimentar o debate público.
Portugal tem acompanhado desde há anos, com intensificação gradual na década de 90, o debate internacional sobre o tema. O Estado Português assumiu sucessivos compromissos internacionais no que diz respeito à eliminação de múltiplas formas de discriminação [o Tratado de Amsterdão que a Assembleia da República aprovou, para ratificação, no dia 6 de Janeiro de 1999, veio consagrar a igualdade entre homens e mulheres como princípio fundamental da ordem comunitária. O artigo 2.° dispõe expressamente que a Comunidade tem como missão «promover a igualdade entre homens e mulheres». Para alcançar este fim o artigo 3.° sublinha que na realização de todas as acções a Comunidade terá por objectivo eliminar a desigualdade e promover a igualdade entre homens e mulheres. A igualdade tornou-se, assim, num dos princípios do Tratado e um dos objectivos de acção da União. Este deverá ser capaz de reflectir a igualdade em todas as suas políticas. No título respeitante à política social são igualmente adoptadas disposições precisas para promover a igualdade entre homens e mulheres (artigo 137.°). Verifica-se, assim, que se até à Cimeira de Amsterdão a questão da igualdade estava nos tratados circunscrita à questão salarial e laboral, agora evoluiu-se para um catapultar da igualdade como missão da União. A introdução da igualdade no Tratado é, por isso, de uma enorme importância jurídica e política. A igualdade entre homens e mulheres está agora contemplada numa norma de direito comunitário primário, de um nível jurídico superior às regras comunitárias de direito derivado, pelo que tem de ser respeitada e reflectir-se em todas as demais normas comunitárias. Nos termos do Tratado, os Estados membros terão mesmo o direito de implementar a discriminação positiva nos casos em que os factos revelem claramente que não existe verdadeira igualdade de oportunidades entre homens e mulheres] e criou estruturas encarregadas de velar pela igualdade de oportunidades.
Por outro lado, graças aos esforços de muitas organizações sociais, de forma autónoma ou em conjugação, foi também lançado em Portugal o debate sobre a «democracia paritária», que um meticuloso trabalho de elaboração, no âmbito do Conselho da Europa, permitiu configurar como estádio superior de uma democracia avançada e reinventada (cf. Maria Regina Tavares da Silva, Democracia Paritária, Um Conceito Novo ou Um Novo Olhar sobre a Democracia, colecção Ditos & e Escritos, n.° 6, 1993, edições da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Ministério do Emprego e da Segurança Social, Maria de Lourdes Pintasilgo, «La Démocratie paritaire: une nouvelle intelligence dans les rapports sociaux» in Les enjeux de la Grande Europe — Le Conseil de l'Europe et la Sécurité démocratique, Srasbourg, La Nuée Bleue et le Conseil de l'Europe, 1996).
Todos esses esforços foram, no entanto, insuficientes para modelar e executar com êxito uma estratégia de resposta eficaz à situação de défice participativo diagnosticada.
II — A revisão constitucional e o novo impulso ao combate à discriminação
1 —No processo de revisão constitucional de 1996--1997, o problema foi longamente debatido, tendo conduzido a alterações especificamente destinadas a dar novo impulso ao combate ao défice de participação na vida política.
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A questão foi introduzida no debate por uma proposta do PS tendente a aditar ao artigo 48.º um novo número do seguinte teor:
2 (novo) — A lei assegurará a não discriminação em função do sexo no acesso aos cargos políticos, visando um equilíbrio justo de participação entre homens e mulheres.
Debatida na primeira leitura da CERC (cf. anexo i, parte i). a proposta não reuniu consenso bastante.
No quadro das negociações bipartidáfias entre o PS e o PSD tendentes a viabilizar uma maioria de revisão a questão foi considerada, tendo sido desencadeado um processo bilateral de estudo de uma solução normativa susceptível de reunir consenso, o que veio a acontecer na fase final do processo negocial.
A solução esboçada foi apresentada à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, que a debateu, gerando-se um consenso alargado (cf. anexo i, parte n).
Discutida em Plenário, a nova redacção do artigo 109.° reuniu amplo consenso, obtendo votação favorável do PS, PSD, PCP e Os Verdes e a abstenção do CDS-PP.
2 — A reformulação do artigo 109.° não pretendeu dar expressão a qualquer «doutrina oficial para a igualdade», nem se limitou a selar contributos de qualquer das muitas entidades ouvidas pela Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. A insusceptibilidade de identificação da nova norma com uma específica inspiração é bem evidenciada pela análise dos debates em Plenário, durante o qual foram evocadas tanto as teses da «democracia paritária» (entendidas de maneira não idêntica pelas Deputadas Natalina Moura e Eduarda Azevedo e pelo Deputado Luís Sá), como as declarações finais da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres, feita em Pequim (1995). É igualmente perceptível o eco de elaborações doutrinais preparadas no âmbito do Conselho da Europa e da Declaração de Atenas, a que a Assembleia da República se associou em 1993.
Afirmou a Deputada Natalina Moura (PS):
A nova redacção conferida ao artigo 109.°, que flui do acordo de revisão constitucional celebrado entre o Grupo Parlamentar do PS e o Grupo Parlamentar do PSD, ao consagrar a condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, é um exemplo vivo do reforço da participação política e da promoção da igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e da não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos. A consagração da obrigação de a lei promover a igualdade entre homens e mulheres no exercício de direitos cívicos, bem como a não discriminação em função do sexo, representa, assim, mais um importante patamar na defesa e na promoção dos direitos das mulheres e da igualdade de oportunidades.
A consagração de tais direitos está, em termos de inserção sistemática e da opção legislativa, bastante correcta e adequada, dado que o artigo 13.°, enquanto cláusula genérica, já pressupõe a igualdade na aplicação do direito, sendo a base constitucional deste princípio a igual dignidade social de todos os cidadãos.
Contudo, este preceito não deve ser encarado como o único artigo garante da igualdade. Nem tudo o que respeita a esse ideal está concentrado e plasmado no artigo 13° A Constituição concretiza em muitos preceitos o princípio da igualdade.
Não podemos subestimar a importância do artigo 12.°, que plasma a participação directa e activa na vida política como princípio objectivo da organização do poder político e como componente essencial do sistema constitucional democrático.
A formulação agora proposta para o artigo 109.° vem ao encontro das declarações finais da rV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre as Mulheres, realizada em Pequim, em Setembro de 1995, onde estivemos presentes, integrando a delegação governamental. Nesta Conferência pretendeu-se, entre outras coisas, eliminar a discriminação do género e promover uma nova cooperação de mulheres e homens no século xxi.
Ora, nas relações entre homens e mulheres, o exercício da cidadania plena exige, para além de um tratamento de não discriminação jurídica, política e social, que se garanta a aplicação de medidas positivas destinadas a corrigir as limitações de base social e cultural de que as mulheres são ainda alvo no tempo presente.
Mas a promoção da igualdade, em sede de revisão constitucional, não se cingiu somente às inovações e mais-valias introduzidas no artigo 109.° Foram também atingidos estes objectivos últimos através de alterações aos seguintes artigos, os quais — sublinhe-se — obtiveram maioria qualificada em sede da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional e do Plenário: no artigo 9.° passou a considerar-se tarefa fundamental do Estado a promoção da igualdade entre homens e mulheres, bem como a igualdade de oportunidades; o artigo 26." passa a consagrar a protecção legal contra quaisquer formas de discriminação; o artigo 59° passa a prever a consagração do direito à conciliação da actividade profissional com a vida familiar; no artigo 67.° refere-se expressamente o direito a uma maternidade e paternidade conscientes; registe-se ainda que o artigo 81.°, alínea b), passa a consagrar a promoção da justiça social e o assegurar da igualdade de oportunidades. Isto ocorre ainda — e bem! — quando na Cimeira de Amsterdão se atingiram também resultados positivos.
É de elementar justiça que as mulheres participem na vida política ao lado e em plano de igualdade com os homens, como protagonistas e não na rectaguarda. Enquanto tal não acontecer, de forma explícita ou subtil, a filosofia do poder, a linguagem e as regras do jogo político continuarão a ser definidas pelos homens.
A plena democracia pressupõe que as relações de poder entre homens e mulheres estejam equilibradas. Enquanto tal princípio não for atingido, a plena democracia será uma mera sombra de si mesma.
O Grupo Parlamentar do PS vota, assim, favoravelmente as alterações introduzidas ao artigo 109." e congratula-se com o facto de o texto constitucional, na área dos direitos das mulheres, poder contribuir mais e melhor para este justo equilíbrio.
Em nome do PSD, a Deputada Eduarda Azevedo declarou:
Além de constituir um sistema de governo e de organização e funcionamento da sociedade, a democracia é também uma filosofia e um sistema de valores, cujo fundamento radica no respeito dos direitos da pessoa e dos seus títulos de cidadania. Não existindo um modelo ideal de democracia, a sua construção é
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um processo evolutivo, contínuo e persistente, que deve ter em atenção a realidade viva e concreta do mundo em que vivemos.
Nesta óptica, começa a generalizar-se a ideia de que não é correcto falar em democracia em termos neutros, uma vez que os seres humanos são homens e mulheres, iguais em direitos e dignidade, que devem gozar das mesmas oportunidades de realização. É claramente uma nova noção de democracia, decorrente da constatação daquela dualidade e da consciência renovada dos direitos das mulheres enquanto parte integrante, inalienável e indivisível dos direitos humanos.
Até há pouco, a teoria democrática desconhecia a dimensão masculino-feminino. Hoje, esta nova maneira de olhar a Humanidade impede que se continue a falar de democracia em termos abstractos e exige que, retirando-se daí todas as ilações, a verdadeira democracia seja não só representativa e pluralista mas também paritária.
Começa a ser evidente que é incompleta uma democracia sem a representação e participação de mais de metade da humanidade. Daí que se imponha «democratizar a democracia».
Situando-se aqui a verdadeira essência da democracia paritária[ as políticas públicas de promoção da igualdade de oportunidades para homens e mulheres devem estimular a, participação de uns e outras em todos os sectores da vida cívica, política, económica, social e cultural das sociedades.
Em Portugal há ainda uma «invisibilidade quase absoluta da mulhen> no exercício de funções nos escalões superiores de direcção, tanto na esfera do aparelho político e da Administração, como das estruturas empresariais e da administração das empresas.
Certamente que pesa a herança cultural, que sempre privilegiou, através de mitos e estereóüpos, o exercício do poder na rectaguarda, retirando ou diminuindo a apetência pelo exercício do poder visível.
No plano político, o ideal moderno de democracia e de cidadania é claramente universalista, postulando, na sua opção pela dimensão humanista do agente social, a capacidade civil e política de todos, homens e mulheres, como outrora reivindicou a separação de poderes ou o sufrágio universal. Paralelamente, atendendo ao papel —tantas vezes decisivo — das mulheres na construção dos regimes democráticos, é natural e inevitável o sentimento de que, em democracia, deve ser igual a participação efectiva de ambos os sexos na vida política.
Numa reflexão sobre política e democracia constata-se, porém, que é ao nível da esfera pública que mais se faz sentir a exclusão das mulheres relativamente aos órgãos de tomada de decisão ou, pelo menos, a ausência de uma partilha real do poder entre os dois sexos. Isto independentemente da proclamação da igualdade formal. Existe um fosso efectivo entre a igualdade proclamada e a prátíca vivida.
Não obstante, é pacífico que, após uma evolução lenta, as mulheres adquiriram já no presente século direito à igualdade política, afirmando-se como cidadãs de corpo inteiro.
Hoje, está em causa a criação de uma nova ordem social, em que a identidade feminina possa realizar-se tanto ao nível privado como público, no interesse da sociedade no seu todo e para dar resposta adequada aos interesses e às necessidades dos povos.
Assim, como uma das apostas democráticas do próximo século, ò PSD propõe que a futura Constituição política portuguesa assuma o compromisso de o Estado Português promover a participação política efectiva, em termos paritários, de homens e mulheres.
Em nome do CDS-PP usou da palavra o Deputado Nuno Abecasis:
Ao contrário dos oradores anteriores, não me vou congratular mas, sim, lamentar o retrocesso na nossa Constituição. Julgo que os cidadãos são homens e mulheres e os senhores entendem que é preciso dizer que as mulheres também são cidadãos. E digo isto com
o à vontade de ser membro de um partido que tem uma secretária-geral, que é uma mulher, que tem uma presidente do grupo parlamentar, que é uma mulher, e sabendo que estou num país da Europa, onde, na minha escola, hoje, há muito mais mulheres do que homens.
Em toda a universidade há muito mais mulheres do que homens, e com o à vontade de ter sido quem primeiro nomeou directoras municipais em Portugal, quando ninguém Unha coragem de o fazer, e porque entendo que as minhas colegas Deputadas são iguaizinhas a mim, não precisando de quotas para se afirmar, porque têm qualidade mais do que suficiente.
Os senhores entendem o contrário! Gostam de pôr etiquetas! Gostam de ter uma Constituição que é um catálogo de supermercado, mas eu não gosto! Por isso não me congratulo com essa posição, pois acho que mais uma vez estamos a andar para trás. Não somos um país do terceiro mundo! Às mulheres portuguesas não precisam de nada disto para se afirmar, porque já se afirmaram!
Atentem, por exemplo, na função pública e em quantos órgãos directivos femininos e masculinos aí existem! Então, Srs. Deputados, daqui a algum tempo e pela mesma razão, talvez queiram alterar a Constituição para defender os homens. Nessa altura, como agora, estarei contra.
O PCP, através do Deputado Luís Sá, exprimiu a posição seguinte:
Quero congratular-me, em nome do Grupo Parlamentar do PCP, com o facto de ter sido possível a alteração deste artigo em termos que podem vir a constituir uma bandeira na luta pela igualdade de homens e mulheres.
Recordo-me que, no dia 1 de Fevereiro de 1995, ouvi no parlamento paritário, realizado na sala do Senado, neste mesmo edifício, o secretário-geral do PS, hoje Primeiro-Ministro, adiantar uma proposta bastante mais ousada, que, na altura, teve manchetes de primeira página e de aberturas de telejornais, que era a proposta de quotas obrigatórias de participação das mulheres em eleições.
Esta proposta foi para a «gaveta», fez o seu papel na época; entretanto, neste momento, é aprovada uma proposta que creio que é mais sensata, o que não significa que implique menos obrigações na perspectiva de apontar para o empenho efectivo dos órgãos do poder político e da generalidade dos agentes políticos no sentido de garantir cada vez mais a democracia paritária, que é nosso objectivo, o fim de qualquer tipo de discriminação, seja de que natureza for, em relação
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à mulher, sobretudo num campo que deveria ser aquele em que a discriminação devia ser menos possível, que é exactamente o campo da participação política.
3 — A reforma operada pela 4.° revisão, no que especificamente diz respeito ao reforço da participação política de cidadãos e cidadãs, pode sintetizar-se nos termos seguintes:
a) Foi incluída entre as tarefas fundamentais do Estado, sob proposta de Os Verdes e dos Deputados
do PS e PSD, a de «promover a igualdade entre homens e mulheres» [artigo 9.°, alínea h)]\
b) Reformulou-se o artigo 112.° (109.°, depois de renumerado em redacção final), que passou a ter a seguinte redacção:
A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos.
c) Premeditadamente, a nova directriz foi aditada ao título i da parte ia da Constituição (por se ter concluído que era redutora a proposta inicial do PS, que optava pela inserção de uma norma de reforço no artigo 48.°);
d) O artigo 109.° constitui excepção expressa às regras gerais do artigo 13.° Essa excepção vale para as questões de cidadania. Quanto às demais, o combate à desigualdade é, sem dúvida, tarefa do Estado, mas sem credencial especial (e logo dentro de limites mais apertados);
é) A formulação encontrada para o artigo 109." confere novas dimensões ao anterior artigo 112.°, mas beneficia, desde logo, do alcance próprio deste: inserção na parte in da Constituição, com o estatuto de princípio geral aplicável a todos os níveis de organização do poder político, definição da participação (igual) como condição e instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático, articulação directa com a nova tarefa fundamental do Estado prevista no artigo 9.", alínea h)\
f) O segmento aditado obriga a ler a nova luz a norma já existente, na qual não deixou de inserir uma referência a «homens.e mulheres» (postos lado a lado). Vale, todavia, sobretudo pelas duas dimensões que enuncia: promoção da igualdade no exercício de (todos os) direitos cívicos e políticos/promoção, em especial, da não discriminação no acesso a cargos políticos;
g) A introdução da nova expressão «direitos cívicos» apela à noção de cidadania no sentido mais amplo. A menção a cargos políticos é também lata e engloba todos aqueles a que cm se possa aceder, a qualquer título, em qualquer nível da organização política do Estado (desde que tal gere relações políticas e não de emprego público) e na organização do sistema partidário (sem lhe impor um modelo único, nem limitar desnecessariamente a liberdade política);
h) A norma constitucional é, por isso, susceptível de concretizações filiadas em muito diversas concepções, a adoptar de acordo com o princípio maioritário, embora dentro de um quadro delimitado;
i) A delimitação feita pela norma constitucional não serviu para fixar vias eternas (imunes ao tempo e à evolução social), nem meios únicos para atingir ' o resultado pretendido. Tendo-se querido eliminar a dúvida sobre a possibilidade constitucional de medidas de «acção positiva» promotoras de um efectivo exercício de direitos em igualdade, deixou-se a norma constitucional aberta à imaginação concretizadora do legislador e à sua responsabilidade e dever de decidir.
rn — A primeira tentativa de regulamentação legal do artigo 109.°
Dando resposta a reivindicações apresentadas pelas organizações não governamentais do conselho consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, que flertavam instantemente para a necessidade de dar execução à nova norma constitucional (cf. anexo n), o Governo veto a incluir na sua proposta de revisão da lei eleitoral (proposta de lei n.° 169/Vn, artigo 17°) uma primeira tentativa de regulação da matéria, com base numa versão preliminar das sugestões de um grupo de peritas e peritos entretanto nomeado.
Sublinhava-se na exposição de motivos da proposta de lei n.° 169/VII:
Aguarda-se agora que as organizações representadas neste conselho apresentem os seus comentários escritos, posto o que o grupo de trabalho apresentará o seu relatório final. As soluções acolhidas no artigo 17.° desta proposta procuram corresponder, nesta sede e neste momento, às recomendações preliminares. Ao longo do processo de apreciação parlamentar viremos a beneficiar das conclusões finais que então sempre poderão dar lugar à alteração do ora proposto no artigo 17.°
Não estando concluída esta audição, não seria curial o Governo introduzir, desde já, alterações às recomendações do grupo de trabalho.
Por outro lado, a eficácia do mecanismo proposto pelo grupo de trabalho carece de regulamentação na lei de financiamento dos partidos políticos. Tal como em outras matérias, não se procede em sede de lei eleitoral à regulamentação do que cabe à lei especial.
Do mesmo modo, outras recomendações que não cabem na lei eleitoral também não foram acolhidas nesta proposta. Estas matérias serão, após a conclusão definitiva dos trabalhos em curso, objecto de iniciativa legislativa do Governo.
Assim, o que aqui se acolhe é um mecanismo que, estabelecendo como garantia mínima para a igualdade de oportunidades no acesso ao mandato parlamentar a obrigação, sob pena de rejeição das listas, de apresentação nos círculos plurinominais de um mínimo de 25% de candidatos de cada sexo, estipula ainda uma obrigação de resultado, sancionada pela penalização financeira do partido cujos grupos parlamentares não tenham um mínimo de 25% de eleitos de cada sexo.
Tratando-se de uma garantia mínima, é previsto que os partidos cujos grupos parlamentares tenham mais de 33% de eleitos de cada sexo sejam «premiados» em sede de financiamento.
Da articulação destes dois mecanismos resulta que o grupo de trabalho não se contenta com a inclusão de um mínimo de 25% de candidatos nos círculos plurinominais, antes desejando que os eleitos excedam os 33%. Deste modo, a exclusão de qualquer obriga-
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ção quanto aos círculos uninominais limita-se a deixar cada partido organizar as suas listas nestes círculos, sendo que sobre eles recai o ónus da penalização se o número de eleitos for inferior a 25%, limiar que o mero cumprimento da obrigação imposta quanto aos círculos plurinominais é insuficiente, por si só, para alcançar.
A apreciação desta proposta de lei em sede parlamentar corre, assim, em simultâneo com a apreciação pública das recomendações do grupo de trabalho, cujas conclusões não deixarão, por certo, de ser tidas em conta na apreciação desta proposta na especialidade.
A norma proposta pelo Governo nessa sede e nessa circunstância era do seguinte teor:
Artigo 17°
Promoção da igualdade no acesso e exercício do mandato parlamentar
1 — Os partidos políticos organizarão as suas listas por forma a alcançar entre os eleitos um mínimo de 25% de cidadãos de cada sexo.
2 — Nas listas concorrentes aos círculos plurinominais terão de ser apresentados um mínimo de 25% de candidatos de cada sexo, colocados na respectiva ordenação em posição elegível de acordo com os resultados alcançados nas últimas eleições a que o partido haja concorrido no respectivo círculo eleitoral.
Após a rejeição da proposta de lei n.° 169/VI1, e tendo em conta as conclusões definitivas do relatório que entretanto fora ultimado pela comissão encarregada de estudar o alcance do quadro constitucional, o Governo apresentou a proposta de lei ora em apreço e determinou o aprofundamento do estudo dos indicadores de participação na vida política.
IV — As conclusões e recomendações da Comissão nomeada pelo XIII Governo para estudar «A questão da igualdade de participação política» e os resultados da recente investigação sociológica sobre o tema.
1 — Uma comissão de especialistas — composta pelos Profs. Doutores Jorge Miranda, Vital Moreira, Maria Luísa Duarte e Maria Lúcia Amaral e pela Dr.° Leonor Beleza —, designada por despacho do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros de 21 de Janeiro de 1998, levou a cabo uma cuidadosa identificação dos diversos problemas a que o legislador deve dar resposta e formulou recomendações. O trabalho realizado foi editado em livro (Democracia com mais Cidadania, edição PCM--INCM, Julho de 1998) e disseminado electronicamente.
A reflexão realizou-se a partir de relatórios temáticos:
«Igualdade entre homens e mulheres e participação política feminina—a identificação de um problema», por Lúcia Amaral;
«Acções positivas de promoção do acesso das mulheres aos cargos políticos — direito comparado e prática política», por Luísa Duarte;
«Igualdade e participação política das mulheres», por Jorge Miranda;
«O. artigo 109.° da Constituição da República Portuguesa e a igualdade entre homens e mulheres no exercício dos direitos civis e políticos», por Vital Moreira;
«Medidas para a promoção da igualdade na vida políca», por Leonor Beleza.
A Comissão pôde, assim, formular as suas conclusões:
A evolução global do estatuto das mulheres em Portugal, quer no que respeita às normas constitucionais e legais quer mesmo no plano dos factos quanto à participação real e efectiva nos mais variados sectores, tem sido contrariada, ao nível da intervenção política, por uma quase estagnação em termos quantitativos;
A situação, no que respeita à ocupação de cargos políticos, tem vindo a ser caracterizada por uma persistente resistência na prática a uma partilha equilibrada, que não tem acompanhado as modificações em domínios muito importantes como a educação, a formação profissional, o emprego, a saúde, cujos indicadores indiciam claramente a existência de muitas mulheres portuguesas preparadas, informadas, competentes e economicamente independentes de quem se poderia/deveria esperar uma muito maior contribuição no domínio, decisivo para o bem-estar colectivo, da intervenção política;
Do ponto de vista da feminização da população portuguesa, a situação é ainda mais preocupante: constituindo as mulheres a maioria, recebem, de facto, ao nível da participação política, um tratamento de minoria discriminada, indiciando uma marginalização nos processos de decisão política que prejudica uma razoável e equilibrada representação de todos;
Verifica-se, assim, não só que a realidade actual não garante às mulheres uma efectiva igualdade de oportunidades no acesso aos cargos políticos, mas também que a sociedade portuguesa tem vindo a desperdiçar as capacidades, as experiências, as sensibilidades e as contribuições do grupo maioritário das cidadãs num grau que já não encontra justificação plausível;
Não se ignoram as causas da situação existente, que radicam em comportamentos baseados em valores e concepções tradicionais e ultrapassados e, sobretudo, numa divisão do trabalho que torna pesada às mulheres a conciliação das responsabilidades familiares e domésticas, consideradas suas, com os novos papéis sociais que querem e devem poder assumir;
Já não prevalece, no entanto, na sociedade portuguesa, uma atitude consciente e racionalizada de afastamento das mulheres dos postos de decisão, sendo pelo contrário assumido pela generalidade da população que as mulheres portuguesas devem ter acesso a qualquer actividade a que aspirem e que estejam em condições de desempenhar, em igualdade com os homens, nomeadamente no que respeita a cargos de decisão política;
Existe assim, de facto, e arrasta-se uma situação que não tem justificação no direito, nas qualificações, ■ nas capacidades, nem nas concepções racionalizadas dos portugueses e das portuguesas;
Este problema que enfrentamos foi e ainda é conhecido, embora em graus diferentes, em todos os países, e em particular naqueles que constituem democracias e, mais em particular ainda, nas democracias ocidentais e europeias;
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A experiência de outros países demonstra que só a tomada de medidas especificamente conducentes ao acréscimo da participação feminina levou, de facto, a resultados palpáveis, sobretudo em países do norte da Europa, e tais medidas são insistentemente recomendadas e legitimadas pelas organizações internacionais que têm estudado este domínio e dirigido propostas às entidades que podem tomar aquelas medidas;
A experiência de outros países mostra também que têm tido particular êxito medidas adoptadas por partidos políticos, hoje generalizadas nos países com maiores taxas de participação feminina, mas que nalguns, onde tal não aconteceu, se tomaram ou se estão a tomar medidas de carácter legal, incluindo na Constituição, para fazer acelerar uma evolução que de outra forma tem tardado;
Reconhece-se que o comportamento e as atitudes dos partidos, também neste domínio, são muito importantes, e que é desejável que em Portugal se intensifiquem igualmente esforços no sentido de, quer na sua actividade interna quer na sua actuação exterior, garantir uma participação feminina à medida dos direitos, das aspirações e das capacidades das mulheres portuguesas;
A Constituição da República Portuguesa, nos termos resultantes da revisão de 1997, não só reconhece agora como tarefa fundamental do Estado «promover a igualdade entre homens e mulheres» [artigo 9°, alínea h)), como, no domínio da participação política dos cidadãos, determina que «a participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos» (artigo 109.°);
Tais disposições constitucionais legitimam a tomada de . medidas específicas conducentes a uma igualdade de facto no estatuto das cidadãs e, no domínio da participação, política, vão mais longe, criando para o legislador a obrigação de tomar tais medidas;
Não só não há assim, constitucionalmente, obstáculos à adopção positiva de medidas que conduzam a uma participação acrescida de mulheres na vida política, como há o imperativo constitucional de que tais medidas sejam tomadas e de que o sejam por via legal;
Tal necessidade não depende de qualquer modificação do sistema eleitoral e abrange o exercício em geral «dos direitos cívicos e políticos»;
A Constituição não especifica que medidas devam ser tomadas, deixando, assim, liberdade ao legislador ordinário na escolha de tais medidas, mas não a liberdade de não adoptar nenhumas;
Existe, assim, uma incumbência dirigida ao legislador ordinário, com base nos princípios constitucionais e alicerçada numa situação.de facto injusta.
Com base neste conjunto de considerandos, a Comissão formulou as seguintes recomendações:
1 — A lei deve passar a incluir a formulação de objectivos mínimos de participação dos cidadãos de cada um dos sexos nos cargos políticos electivos.
2 — No que respeita às eleições para a Assembleia da República, é um objectivo razoável mínimo uma participação a nível dos 25 %, sensivelmente o dobro do nível actual de feminização, devendo premiar-se uma participação acima de 33 % para incentivar um patamar mais perfeito de partilha.
3 — Aquele objectivo deverá ser prosseguido actuando simultaneamente ao nível das candidaturas e ao nível dos resultados obtidos, por forma a ser-se mais eficaz; naquele primeiro nível, entende-se que só deverá ser formulado para candidaturas em círculos plurinominais, já que em círculos uninominais (caso venham a ser
adoptados) se julga desadequado que a lei faça directamente exigências em relação a conjuntos parciais ou ao conjunto total das candidaturas, quer por razões de princípio, quer por razões processuais.
4 — O objectivo mínimo visado poderá ser prosseguido da seguinte forma:
Em candidaturas de lista, será fundamento de rejeição da lista a não inclusão de um mínimo de 25% de candidaturas de cada um dos sexos;
Os partidos que obtiverem grupos parlamentares com participação de Deputados de cada um dos sexos em percentagem inferior a 25% serão penalizados por cada Deputado em falta para atingir aquela percentagem;
Os partidos que obtiverem grupos parlamentares com participação de Deputados de cada um dos sexos em percentagem superior a 33% serão premiados por cada Deputado do sexo sub-representado acima daquela percentagem;
O prémio mantém-se, como é óbvio, no caso de igual representação dos dois 'sexos (50%--50%).
5 — Por forma a permitir razoavelmente a cada partido o comportamento adequado a obter os resultados mínimos, já que lhe não é possível prever a forma como votarão os cidadãos, entende-se que aquele resultado mínimo é atingido se, caso o número e a distribuição dos votos fosse igual ou equivalente ao da última eleição para a Assembleia da República a que o partido tenha concorrido, o referido partido tiver no mínimo 25% de Deputados e 25% de Deputadas.
6 — A penalização pelo resultado não se aplica a partidos novos, nem a partidos que obtenham grupos parlamentares com três ou menos Deputados, mas é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de coligação.
7 — A penalização dos partidos deve ser formulada por forma a que tenha efeitos equivalentes, quer se trate de partidos que apoiam o Governo, quer de partidos da oposição.
8 — A penalização não deve atingir os direitos essenciais dos partidos políticos, mas deve ser suficientemente eficaz, pelo que se propõe que se situe ao nível dos direitos dos partidos no domínio da subvenção anual que recebem do Estado e eventualmente das isenções fiscais.
9 — Uma parte da Comissão entende que poderia também a penalização situar-se, em relação ao conjunto nacional de candidaturas, caso haja circunscrições uninominais (já que em relação às plurinominais são re-
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jeitadas as candidaturas que não atinjam a exigência mínima), em limitações nos tempos de antena durante a campanha eleitoral.
10 — A maioria da Comissão rejeita, porém, limitações em tempos de antena fora de campanha porque atingiria de maneira muito diferente os partidos que apoiam o Governo e os que não o apoiam.
.11 — A lei deve ainda determinar que, em termos a regulamentar pela Assembleia da República, esta organize os seus trabalhos por forma a permitir, na medida do possível, que os Deputados possam compatibilizar o exercício do mandato com as responsabilidades familiares que tenham.
12 — Em sede legal, há também que esclarecer que os Deputados (como todos os titulares de cargos políticos) têm os mesmos direitos de protecção na maternidade e na paternidade que os cidadãos que têm uma actividade profissional, determinando que as faltas são justificadas nos mesmos termos e que as licenças dão lugar a substituição em termos a esclarecer, específicos destas situações e diferentes dos existentes para quaisquer outras!
13 — A solução proposta foi directamente pensada para as eleições para a Assembleia da República, mas deverá, no entanto, ser adoptada, com as necessárias adaptações, para as eleições para os outros cargos políticos (excepto, como é evidente, para a Presidência da República), sendo particularmente fácil adaptada às eleições para o Parlamento Europeu.
14 — Deverão ainda ser adoptadas regras legais com objectivos quantificados, à semelhança do que fazem outros países europeus, para a composição em termos equilibrados por indivíduos dos dois sexos no que respeita a comissões e outros organismos colegiais de designação oficial, como importante medida de eficácia indirecta no que respeita ao acesso a cargos políticos.
15 — Medidas legais de conteúdo semelhante poderão considerar-se justificadas também quanto a cargos dirigentes no interior dos partidos políticos.
A proposta de lei n.° 194/VII veio dar expressão a al- • gumas destas recomendações, em termos que merecerrt adiante uma mais detida referência.
2 — Importa também assinalar que um estudo encomendado pela PCM a uma equipa de sociólogos do ISCTE e recentemente publicado permitiu sistematizar dados frequentemente invocados de forma dispersa e aprofundar o diagnóstico da situação portuguesa, inserindo-a no contexto internacional e apreciando cenários de aplicação das medidas legais propostas (publicado em Fevereiro de 1999, sob o título As Mulheres na Política, edição PCM-INCM. A investigação foi da responsabilidade de José Manuel Leite Viegas e Sérgio Faria).
Sintetizando as conclusões apresentadas em sucessivos capítulos, o estudo salienta como «pontos fundamentais condicionadores de acções futuras», os seguintes:
A percentagem de mulheres eleitas, por qualquer dos partidos políticos, para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu é bastante baixa, muito embora a situação seja análoga em outros países da Europa do sul;
A composição dos órgãos nacionais dos partidos políticos revela uma estrutura ainda mais discrimina-dora para as mulheres do que a observada para a As-
sembleia da República, evidenciando as dificuldades de realização de carreira política nos partidos por parte das mulheres;
Quando se desce do nível nacional para os níveis regional e local aumentam as dificuldades de participação política feminina o que revela a importância dos factores sociais e culturais;
Sendo consensual nos partidos políticos a aceitação de medidas tendentes à eliminação dos obstáculos formais a uma maior participação da mulher na esfera pública, e na política em especial, já o mesmo não se poderá dizer relativamente à criação de medidas activas incentivadoras da participação política feminina nos órgãos de poder político, que suscita reservas de diversa ordem no interior dos partidos;
As posições dos partidos relativamente à maior participação política feminina não revelam empenhamento forte e explícito, circunscrevendo-se a actuações pontuais e informais na altura da elaboração das listas de candidatura; no único caso em que existem normas explícitas, isto é, no PS, são deficientemente concretizadas.
Seguidamente, com vista a avaliar a possibilidades de mudança o estudo procede à inventariação dos factores de incentivo e os de resistência, afirmando os autores:
Os valores já atingidos de participação feminina no mercado de trabalho e, muito especialmente, a integração das mulheres no sistema de ensino, em particular no nível superior, são factores inquestionáveis de favorecimento, a prazo, do aumento de participação política feminina. De facto, na ausência destas condições, qualquer medida regulamentar, ainda que cumprida, arriscava-se a ter efeitos indesejáveis. (Mas logo se adverte: «Os efeitos da integração no mercado de trabalho, nas condições existentes, não são, contudo, susceptíveis de uma interpretação linear. É certo que essa integração possibilita o contacto directo com os problemas e a lógica de funcionamento da esfera pública que se vão expressar, num segundo momento, na área política. No entanto, existem encolhos neste processo. A menor percentagem de mulheres em cargos directivos e de chefia — lugares privilegiados de enquadramento estratégico dos problemas e de exercício . de poder nas instituições — constitui um óbice à canalização de recursos para a área política.»)
No campo político, a existência de um sistema" eleitoral proporcional constitui um factor favorável, ainda que os seus efeitos já se tenham em grande parte esgotado.
Considerando «de difícil ordenação» os factores desfavoráveis, os autores entendem que «os condicionantes culturais se sobrepõem aos estritamente políticos ou legais» e relembram que em matéria de «mobilização cognitiva (para a política)» e de «distância ao poder», os valores destas variáveis são «bastante inferiores para as mulheres do que para os homens», ao mesmo tempo que subsistem antigas representações sociais sobre os papéis de homens e mulheres na sociedade.
E alertam:
Tudo indica que a razão da menor disponibilidade das mulheres para os problemas sociais e políticos deriva do acréscimo da tarefas a nível doméstico, em particular na educação dos filhos.-Embora o quadro legal defina, actualmente, iguais responsabilidades dos
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cônjuges, e as instituições, nomeadamente os tribunais, tendam a implementar essa disposições, a prática corrente na família, na maioria dos estratos sociais, bem como nas empresas, tem subjacente a divisão tradicional dos papéis sexuais. Ora, este acréscimo de trabalho para as mulheres, que não é susceptível de ser
alterado directamente por decreto, retira-lhes disponibilidade de tempo para se envolverem nos problemas da comunidade e, por consequência, na acção política.
Por outro lado, «o baixo nível de salários, particularmente em alguns sectores sociais, associado às deficiências das infra-estruturas sociais públicas de apoio à família, quer no campo da saúde, quer na área educacional e de guarda das crianças, são factores de agravamento da sobrecarga doméstica das mulheres que lhes retiram disponibilidades para a acção comunitária e política».
Quanto ao domínio estritamente político; o estudo conclui que este «funciona como factor desfavorável a inexistência de normas ou de critérios de aceitação tácita sobre o equilíbrio, em termos de género, das nomeações para comissões consultivas ou executivas de nomeação política. Estes lugares poderiam constituir um viveiro de experiência técnica e de gestão canalizável para o campo político».
Na parte final do documento, desenham-se cenários de impacte futuro dos diversos tipos de medidas aventadas para eliminar discriminações e assegurar a igualdade. (No primeiro cenário, designado por «cenário A — actuação avulsa», a aprovação de legislação como a proposta pelo Governo «não é acompanhada nem seguida de outras medidas, integrando-se nas dinâmicas sociais e políticas
existentes, actuando como mais uma factor interventon>. No «cenário B — actuação integrada», as medidas propostas «são acompanhadas de outras tendentes a potenciar os factores favoráveis e a minimizar os desfavoráveis». Os autores alertam para os inconvenientes do primeiro cenário e para as vantagens dp segundo.)
V — O debate suscitado pela proposta de lei n," 194/VII
Além do debate académico e científico, a apresentação da iniciativa legislativa governamental' veio suscitar um vivo debate público, bem espelhado nos órgãos de comunicação social.
Não cabendo no âmbito do presente relatório uma inventariação das peças essenciais dessa discussão, justifica-se, no entanto, destacar que a Comissão para a Paridade, Igualdade de Oportunidades e Família realizou na Sala do Senado, nos dias 26 e 27 de Janeiro de 1999, uma audição parlamentar tendo em vista a preparação do debate na generalidade, e o melhor conhecimento das posições dos partidos e organizações sociais.
Nessa audição estiveram presentes os membros do grupo de trabalho que efectuou o estudo sobre o artigo 109.° da Consumição da República Portuguesa (cf. transcrição integrai dos respectivos depoimentos no anexo ni) e foram ouvidas numerosas outras entidades e personalidades:
Governo;
Bastonário da Ordem dos Advogados;
Representante da ONU em Portugal;
Presidentes ou secretáriòs-gerais dos partidos políticos
com assento parlamentar; CIDM; CITE;
Conselho consultivo das ONG; Associações cívicas;
Representantes de órgãos de comunicação social; Diversas personalidade públicas. [A lista completa revela bem a importância do «retrato de situação»
feito no decurso dos dois dias de depoimentos e
debates, bem como a urgência da sua transcrição e publicação. Foram sucessivamente ouvidas as seguintes entidades: Governo: Ministro dos Assuntos Parlamentares (Dr. António Costa); Secretario de Estado da Presidência do Conselho de Ministros (Dr. Vitalino Canas); Alta-Comissária para as Questões da Igualdade e da Família (Dr. Joana de Barros); bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. António Pires de Lima; representante da ONU em Portugal, Dr. Carlos Santos; representantes dos partidos políticos com assento parlamentar (presidentes ou secretários-gerais): PS — engenheiro António Guterres; PSD — Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa; CDS/PP —Dr. Paulo Portas; Os Verdes — Dr. Fernando Pezinho e Manuela Cunha; organizações sociais: CJDM — presidente da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres, Dr." Ana Braga da Cruz; CITE — presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, Dr." Maria do Céu Cunha Rego; conselho consultivo das ONG, Dr.° Maria Alzira Lemos, Ana Coucello e Margarida Medina; outras associações cívicas: Fórum Justiça e Liberdades, Civitas, Sedes; comunicação social: rádios: TSF (Dr. Carlos Andrade), Antena 1 (Dr. João Coelho), RDP (Francisco Sena Santos) e Rádio Renascença; jornais: Público (José Manuel Fernandes), Diário de Notícias, Jornal de Notícias (José Leite Pereira), Expresso (Dr. Fernando Madrinha); televisões: RTP (Dr." Fernanda Mestrinho), SIC (Dr." Helena For-jaz), TVI (Dr. José Pedro Barreto); revistas-. Máxima (Dr.° Madalena Fragoso), Elie (Helena Mascarenhas), Visão (Daniel Ricardo), Cosmopoli-tan (Dr.° Margarida Pinto Correia); personalidades públicas: engenheira Maria de Lourdes PintasiJgo, Prof. Doutor Freitas do Amaral, Dr.a Maria de Jesus Serra Lopes, D. Januário Torgal Ferreira, Prof* Doutora Teresa Beleza, Dr. António Vitorino, Dr." Maria de Carmo Romão, Dr. Menéres Pimentel, Prof." Doutora Ana Nunes de Almeida, Dr." Teresa Féria, Dr.a Ana Vicente, engenheiro Jardim Gonçalves, Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz, Dr.* Regina Tavares da Silva, Prof." Doutora Lígia Amâncio, Doutor António Barreto, Prof. Doutor Augusto Santos Silva.
No debate assim tornado possível tiveram expressão diversificada três grandes tipos de posições:
A— Reivindicação de medidas legais tendentes a situar em patamares mais exigentes e elevados as metas quantitativas e demais medidas propostas pelo Governo;
B — Adesão à proposta governamental, quer sem reservas de fundo quer com reservas — de fundo ou de pormenor — quanto ao seu conteúdo e fundamentação;
C — Rejeição da via de lei, preconizando-se designadamente modalidades de auto-regulação partidária, sem adopção de quaisquer medidas legais \et\-
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dentes a assegurar a igualdade de participação política.
Publicam-se em anexo ao presente relatório as transcrições (ainda só muito parcialmente concluídas), bem como outros documentos já dispon/veis, a partir dos quais é possível aferir com precisão os argumentos utilizados e os termos exactos das posições assumidas pelos intervenientes:
Anexo TV: posição das organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres representadas no conselho consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres;
Anexo V: posições assumidas por dirigentes partidários que compareceram perante a Comissão ou enviaram depoimento escrito: António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas e Carlos Carvalhas.
VI —Do conteúdo e alcance da proposta de lei n.° 194/V11
A proposta de lei apresentada pelo Governo pode ser sintetizada nos termos seguintes:
a) A proposta abrange as eleições para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu, não sendo aplicável às eleições locais e à eleição das assembleias legislativas das regiões autónomas;
b) Visa-se uma participação a nível dos 33,3%, cerca do triplo do nível actual de feminização;
c) Pretende-se que esse objectivo seja cumprido não apenas ao nível das candidaturas, mas também ao nível dos resultados, pelo que se fixam regras quanto à composição das listas e quanto à ordenação nas listas;
d) Para se atingir o objectivo fixado estabelece-se uma meta intermédia de 25% nas primeiras eleições após a data entrada em vigor da lei;
e) Será fundamento de rejeição da lista a não inclusão, na primeira e segunda eleições após a entrada em vigor da lei, de um mínimo de 25% de candidaturas de cada um dos sexos. A partir da terceira eleição, a percentagem exigida passará a ser de 33,3%;
Noutro plano:
Garante-se às Deputadas suspensão do-mandato por gravidez, nos termos da lei geral;
Autonomiza-se uma norma específica concernente à suspensão do mandato de Deputado ou Deputada, aquando do nascimento de um filho, conferindo também aqui exequibilidade a uma nova norma constitucional.
A proposta não consagra incentivos nem sanções de carácter pecuniário, afastando-se nesse ponto das recomendações da Comissão de peritas e peritos que participou nos trabalhos preparatórios.
Os grupos parlamentares com assento na Comissão reservaram as suas posições de voto para o debate. Os documentos publicados em anexo ao presente relatório espelham os pontos de vista muito diversificados que as medidas propostas suscitam e aprofundam.a sua análise.
. Nestes termos, a Comissão de Assuntos Constitucionais, "Direitos, Liberdade e Garantias é do seguinte
Parecer
A proposta de lei n.° 194/VII encontra-se em condições consütucionais regimentais de subir a Plenário.
Assembleia da República, 3 de Março de 1999. — O Deputado Relator, José Magalhães. —; O Deputado Presidente da Comissão, Alberto Martins.
Nota. — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade (PS, PSD. CDS-PP e PCP).
ANEXO I
Os debates sobre a questão da igualdade na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Parte I — Debate na primeira leitura (acta n.°24 — reunião de 18 de Setembro de 1996)
O Sr. Presidente (Vital Moreira): — [...] Passamos ao artigo 48.°, para o qual há uma proposta de aditamento do PS, um novo n.° 2, que é do seguinte teor:
A lei assegurará a não discriminação em função do sexo no acesso aos cargos políticos, visando um equilíbrio justo de participação entre homens e mulheres.
Tem a palavra a Sr.3 Deputada Elisa Damião.
A Sr." Elisa Damião (PS): — Sr. Presidente, a nossa proposta visa garantir uma maior democratização do sistema político pela promoção da participação das mulheres na vida política. Consideramos que é uma medida positiva que não colide com outros aspectos da Constituição e que deve ser consagrada — as modernas constituições têm dado a este aspecto bastante relevo. A promoção da participação das mulheres na vida política é um indicador, civilizacional importante que penso que a Constituição deveria consagrar.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
• O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Sr. Presidente, primeiro, queria pedir um esclarecimento: a redacção é um hocado enviesada porque, por um lado, começa por dizer, na primeira linha, que a lei assegura a não discriminação — o que,' aparentemente, não é nada, porque é evidente que a discriminação já está proibida noutras sedes da Constituição, e é, em princípio, algo a que o legislador ordinário nunca pode acorrer, a menos que haja situações expressas que decorram do princípio da igualdade, situações de discriminação positiva ou outras —, mas depois, na segunda linha, diz-se, ou parece ser essa a formulação pretendida pelos proponentes, que a lei tem de assegurar «um equilíbrio justo de participação entre homens e mulheres». Embora não se perceba muito bem o que é que isso quer dizer, a pergunta que dirijo ao PS é se, com esta proposta, pretende o PS que fique o legislador ordinário obrigado — porque isto, colocado assim, é um comando da Constituição — a aprovar uma qualquer )egis)ação que re-
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edite, eventualmente, aquela promessa do secretário-geral do PS, quando estava na oposição, do estabelecimento legal de quotas na formação de listas para cargos políticos, ou coisa que o valha. De outra forma, sem uma explicitação correcta do PS de qual é que deve ser a atitude do
legislador ordinário face a um preceito deste tipo, temos alguma dificuldade sequer em discutir a bondade ou a nossa' não aceitação do princípio.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Elisa Damião.
A Sr.a Elisa Damião (PS): — Sr. Presidente, há muitos preceitos constitucionais que são princípios, que não estão, infelizmente, cumpridos na sociedade e não deixam, por isso, de ser objectivo da nossa «Magna Carta». Este é um princípio orientador, não obriga a nenhuma legislação especial, a não ser onde exista, de facto, discriminação objectiva, e está em curso a apreciação de, pelo menos, um diploma em que a lei tem sido insuficiente para garantir a discriminação no acesso ao emprego. Portanto, parece-nos que esta medida positiva, como princípio enunciador, é indispensável para uma Constituição moderna.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Isabel Castio.
A Sr.0 Isabel Castro (Os Verdes): — A minha pergunta é muito concreta e é a seguinte: qual é o sentido para o PS, do «justo equilíbrio de participação»? De que é que isto é sinónimo, no entendimento da Sr.° Deputada, considerando, apesar de tudo, que isto seria algo a definir em termos da lei. Depois de me responder a isto, gostaria de dizer mais algumas coisas.
A Sr." Elisa Damião (PS): — Sr.° Deputada, o justo equilíbrio é permitir que as mulheres estejam representadas no sistema político de acordo com a sua representação na sociedade. Não me parece que haja outro tipo de justiça. É evidente que há bloqueios culturais, sociais e económicos que a Constituição já refere e que têm de ser ultrapassados. Este preceito constitucional visa enquadrar medidas para ultrapassar esses bloqueios. Se há 51% da população portuguesa feminina, é justo que ela se sinta representada no sistema político.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra a Sr." Deputada Odete Santos.
A Sr." Odete Santos (PCP): — Sr. Presidente, de facto, a redacção é um tanto dúbia em relação àquilo que a lei deveria conter, mas devo dizer que não me parece que isto acrescente grande coisa àquilo que já está no artigo 48.°, em minha opinião. Aqui já está assegurado, no n.° 1, um direito fundamental à igualdade—já nem só o princípio da igualdade.. E, no n.° 1, já está reforçado aquilo que consta do artigo 13.° da Constituição da República. Não vou entrar aqui na discussão das quotas ou não quotas — se calhar, isso ficará para outra ocasião —, mas já tive ocasião de dizer, na quinta-feira passada, que o sistema de quotas provou, nos países nórdicos, que não assegura rto trabalho e na sociedade a igualdade das mulheres. E, pelas estatísticas que as nórdicas mostram sobre as questões do trabalho e da igualdade no trabalho, verifica--se que a discriminação existe na sociedade dos países nórdicos, apesar do sistema das quotas. Fundamentalmen-
te, o que me parece, é que aqui seria de consagrar, novamente, o princípio da igualdade e da não discriminação em razão do sexo e que, mais do que isso, temos, no n.° 1, o direito fundamental à igualdade. Por isso, vamos pensar
melhor nesta formulação, como é óbvio, mas parece-me
que não irá adiantar grande coisa.
O Sr. Presidente: — Sr." Deputada Odete Santos, permita-me que lhe diga o seguinte: imaginando que uma maioria governamental, parlamentar, enveredasse pela solução tipo quotas mínimas de participação feminina, sem uma norma destas, essa solução não enfrentaria, desde logo, objecções de índole constitucional? Independentemente de saber se a solução é boa ou não, isto é, admitindo que uma maioria parlamentar, no futuro, esta ou outra, viesse a.encarar como boa a solução de quotas mínimas de participação feminina, quotas mínimas de Deputadas, por exemplo...
A Sr." Odete Santos (PCP): — E poderia ser interessante!
O Sr. Presidente: — Mas essa solução não enfrentaria, desde logo, objecções de constitucionalidade, a não haver uma norma desta natureza?
A Sr.° Odete Santos (PCP): — Penso que enfrentava objecções de inconstitucionalidade, como é óbvio. Mas, porque nós pensamos que a igualdade não se faz através de um diploma legal ou de um princípio constitucional que aponte em direcção às quotas, pensamos que a garantia da igualdade, na representação política, está lá — o que falta é a concretização de direitos sociais que levem a essa igualdade na representação política. Falta, na prática!
O Sr. Presidente: — Eu não sou tão definitivo sobre a questão da constitucionalidade, mas creio que é um problema que deve ser enfrentado.
Peço ao Sr. Deputado Barbosa de Melo que me substitua por algum tempo na presidência desta reunião, dado que preciso de me ausentar por uns momentos.
Tem a palavra a Sr." Deputada Elisa Damião.
A Sr." Elisa Damião (PS): — Sr." Deputada Odete Santos, é verdade que os problemas sociais não estão resolvidos nas sociais-democracias do Norte, mas eu gostaria de lhe perguntar se considera que não foi um avanço, para o estatuto das mulheres, o facto de, por exemplo em países como a Noruega e a Suécia, o Governo ser, obrigatoriamente, constituído por 50% de mulheres. E se considera que isso não teve impacte, por exemplo, noutro tipo de legislação que protege a mulher. Também outros preceitos constitucionais, como o direito à habitação, o direito à educação e o direito à saúde, não se concretizam pelo facto de estarem na Constituição — nós encaramos esta orientação da mesma forma que os outros preceitos, como já referi. Gostaria que a Sr." Deputada me dissesse se conclui que os sistemas das democracias do Norte foram maus para o estatuto da mulher ou não contribuíram para a sua melhoria.
A Sr." Odete Santos (PCP): — Sr." Deputada, a essa questão, a resposta é simples: o sistema das quotas trouxe repercussões altamente favoráveis para uma certa classe de mulheres nas democracias no Norte, ou seja, classe média e classe média alta. Mas não trouxe em relação à genera-
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lidade das mulheres às outras classes economicamente menos favorecidas — e isso é o que as nórdicas dizem nas estatísticas! Acessos à chefia da função pública — têm as percentagens, mas queixam-se de que o sistema das quotas não resolveu, para a generalidade das mulheres, os problemas. Aí está aquilo que também se passa, de alguma maneira, em relação as críticas que têm sido formuladas relativamente ao movimento feminista norte-americano: é que todos os raciocínios e as defesas, até em relação ao caso da interrupção voluntária da gravidez e às posições assumidas pelo movimento feminista norte-americano, partem de concepções da classe média — aliás, nos EUA, da classe média branca. Por isso, a minha resposta está dada: não vejo que esse sistema de quotas, e a prática revela-o, embora tenha em atenção uma classe de mulheres, não tem as outras, que continuam desprotegidas.
A Sr." Elisa Damião (PS): — Prefere a ausência do sistema?
A Sr.° Odete Santos (PCP): — A ausência de quotas?
A Sr." Elisa Damião (PS): — Não, a ausência de qualquer orientação.
A Sr." Odete Santos (PCP): — Não, Sr.a Deputada. Acho que o artigo 13.° da Constituição e variados outros direitos, nomeadamente na questão do direito ao trabalho, já têm as garantias para que a mulher possa participar na vida política. Já que me fez essa pergunta, direi que não será, com certeza, com a lei da polivalência e da flexibilidade!
A Sr.° Elisa Damião (PS): — Não sei o que é.que uma coisa tem a ver com outra.
Entretanto, assumiu a Presidência o Sr. Deputado Barbosa de Melo.
O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): — Tem a palavra a Sr.* Deputada Isabel Castro.
A Sr.° Isabel Castro (Os Verdes): — Sr. Presidente, nós temos, para nós, que mais do que definir, como está no artigo 13.° da Constituição, a não discriminação em razão do sexo, importa, por aproximação, caminhar no sentido de dar conteúdo àquilo que é essa não discriminação já consagrada. Quando digo isto, digo que — e estava no nosso projecto — deve, em nosso entendimento, ser uma tarefa fundamental do Estado, a promoção da igualdade entre mulheres e homens, à qual, aliás, parece-me, o Partido Socialista não foi receptivo nos termos do nosso projecto, tal como o propomos. É que pensamos que mais do que definir um direito importa promovê-lo. Agora, temos para nós que a promoção da igualdade entre mulheres e homens é qualquer coisa extremamente diversa, complexa e multidisciplinar, que não se esgota, em nosso entendimento, na estrita lógica da partilha de cargos políticos.
A partilha de cargos políticos, para nós e no nosso texto constitucional, é a valorização das organizações autónomas de mulheres e a sua participação como parceiras sociais, é o seu direito de tempo de antena, porque, para nós, a participação dos cidadãos e os seus direitos não se colocam só em termos de cargos políticos, mas têm a ver também com a participação cívica, têm a ver com os direitos individuais, considerando os múltiplos aspectos.
A Sr.° Deputada Odete Santos colocou as questões em termos do direito ao trabalho. É evidente que isso é parte integrante.
Quanto à questão das quotas, quando perguntei o sinónimo, considerei que isto para nós é uma questão importante.
Os Verdes são um pequeno partido, mas, como sabem, Os Verdes portugueses, como os outros partidos verdes, são partidos onde a presença das mulheres é muito forte. E nós, apesar do que alguns nossos colegas de outros países defendem, não temos o sistema das quotas. Pensamos tratar-se de uma questão artificial e digamos que é uma questão que, de algum modo, escamoteia o facto ou as razões pelas quais as mulheres não participam politicamente. Não participam, se calhar, porque a participação política não é particularmente atractiva nos moldes em que a cultura política tradicional está definida, não é uma possibilidade efectiva porque a sociedade não está assim organizada e porque há múltiplos constrangimentos que não favorecem efectivamente a participação na vida cívica e, portanto, na participação política enquanto parte integrante dessa vida cívica.
Pensamos que isto é uma faca de dois gumes porque, por hipótese, o sistema das quotas pode vir a ter um objectivo perverso que é ó de as pessoas não serem escolhidas em função da sua competência mas serem escolhidas em função exclusivamente do género. E, a título de exemplo, podia dizer que, neste momento, Os Verdes têm duas Deputadas e pelo sistema das quotas tinham de ter obrigatoriamente um homem se a paridade fosse obrigatória.
Se calhar, na sua proposta, não é a paridade em termos de quota de 50% que está no seu horizonte porque aquilo que conheço da posição do Partido Socialista, do seu se-cretário-geral, hoje Primeiro-Ministro, era uma posição perfeitamente frouxa, pois era qualquer coisa em torno de vinte e 25% que, julgo, é uma questão perfeitamente sem sentido.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Mas é aberto ao diálogo!
A Sr." Isabel Castro (Os Verdes): — Não sei se é aberto ao diálogo. Mas não digo. que as mulheres socialistas se revejam nessa proposta. E julgo que a Sr.° Deputada Elisa Damião, com certeza, concluirá, e, se calhar, partilhará da minha opinião, que se, num determinado universo de pessoas, as mulheres estiverem maioritariamente — e não tem de ser 51% porque são 51% da população — no exercício de um determinado cargo, que pode ser político ou não, no plano institucional ou outro, para o que há mais mulheres vocacionadas, não vejo porque é que elas não têm de estar maioritariamente. E podem não estar nessa proporção dos 51 ou 49%, pois podem estar noutra se, nesse caso, assim fizer sentido, do mesmo modo que a inversa também é válida.
Portanto, julgó que este é um artigo que devia ser visto como parte integrante de todo um conjunto de outros que deveriam estar no texto constitucional e em relação aos quais não vi a abertura do Partido Socialista.
De qualquer modo, julgo que uma formulação destas tem o perigo de poder, nalguns casos, mais do que atingir o objectivo que todos temos — e julgo que é o que está implícito na proposta do Partido Socialista —, pode reduzir e não estabelecer o direito de participação, sendo a igualdade para nós não um jogo de números, não a manipulação numérica, mas, sim, efectivamente a.qualificação,
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a capacidade, a competência que as mulheres lêm e, de acordo até com a sua vivência histórica, provavelmente têm-na em muitas situações, numa proporção que não tem directamente a ver com aquilo que é o seu peso demográfico.
A Sr." Elisa Damião (PS): — Concluindo, só as mulheres de Os Verdes são competentes, as dos outros partidos não!
A Sr.° Isabel Castro (Os Verdes): — Não, não é isso. E se é essa a sua leitura, então, nós estivemos a brincar com a discussão, Sr." Deputada. Não é isso o que eu lhe disse. Portanto...
A Sr.a Elisa Damião (PS): — Disse o que acabei de lhe dizer!
Á Sr." Isabel Castro (Os Verdes): — Não, a Sr." De: putada está a desvirtuar o sentido do debate e, então, nesse caso, escusamos de perder tempo a tentar discutir...
O Sr. Presidente: — Gostaria de chamar a atenção para o centro da questão que estamos a discutir. Primeiro, estamos a falar de cargos políticos visto que é esta a proposta, e não de outras funções sociais ou económicas; segundo, o que estamos aqui a discutir, no fundo, é a bondade porque a fórmula que está apresentada resulta já claro que não está feliz. É uma fórmula infeliz. O que estamos a discutir é no sentido de saber se a Constituição deve autorizar a lei a seguir por um sistema de quotas, repartição entre homens e mulheres no acesso aos cargos políticos. É a discussão sobre o sistema de quotas. Aliás, os espíritos congregaram-se à volta desta ideia, que é a ideia nuclear. A fórmula, esqueçamo-la.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Relativamente a isto, concordo com aquilo que o Sr. Presidente agora acabou de dizer. No entanto, chamava apenas à atenção, não com o intuito de fazer perder tempo, permitirido-me significar que, de facto, e do meu ponto de vista, o texto que aqui está é rigorosamente o contrário — e daí o meu pedido de esclarecimento inicial — daquilo que o Partido Socialista, pelos vistos, pretende. É que o que nele consta, com toda a franqueza, é que a lei assegura que não pode haver discriminação quando aquilo que o PS pretende é precisamente que a lei assegure uma discriminação positiva:
Portanto, o que se pretende é rigorosamente o contrário daquilo que dele consta. Mesmo na segunda parte onde diz «o equilíbrio justo», se é a discriminação positiva que querem, têm de falar num «equilíbrio quantitativo» porque «equilíbrio justo» é aquele que decorre exactamente do facto de «ser eleito quem for escolhido» e não numa lógica quantitativa porque essa põe de parte a lógica abstracta e de justiça. É, portanto^ uma preocupação de resultado e não uma preocupação de justiça.
Mas, enfim, o Sr. Presidente já referiu, e bem, que, face a um esclarecimento dado pela Sr." Deputada, a intenção do Partido Socialista não é rigorosamente a que consta da proposta.
Quanto àquilo que é a proposta do Partido Socialista e, portanto, o resultado que o Partido Socialista pretende obter, queria deixar como nota que o Partido Social-De-mocrata não concorda, como nunca concordou, com essa
lógica. De facto, como já foi dito, nomeadamente pela Sr.° Deputada Isabel Castro e pela Sr.° Deputada Odete Santos também, o problema de discriminação das mulheres não pode nem deve minimamente ser reconduzido à questão dos cargos políticos. Diria até que, do meu ponto de vista, fazê-lo é contraproducente para os objectivos que temos porque dá a imagem errada, profundamente negativa, de que aquilo que apenas estaria a preocupar o legislador constituinte era assegurar determinado tipo de posições e de divisão do poder às mulheres, quando não é nada disso que está cm causa e reconheço também que seguramente não é isso que está no espírito da Sr.a Deputada que fez a proposta.
Todavia, haveria, de facto, esse perigo ao reduzir isso aos cargos políticos. O PSD sempre objectou o princípio das quotas para cargos políticos como também para cargos públicos, como já foi aqui referido, embora não seja o contexto da proposta que está sobre a mesa, e também já foi referida a situação dos cargos de chefia na Administração e por aí fora.
O PSD objecta e, por princípio, é contra essas formas de discriminação positiva desse tipo que se pretendam introduzir, quer na legislação ordinária quer, por maioria de razão, na Constituição.
Portanto, da parte do PSD, não vemos com simpatia qualquer proposta neste sentido, o que não quer dizer que o PSD entenda — aliás, já foi dito isto nesta Comissão a propósito de outros artigos em discussão — que, quando o n.° 1 deste artigo diz «todos os cidadãos», como é evidente, tal expressão quer significar, aqui como em todas as outras sedes em que o conceito é utilizado na Constituição, tanto os portugueses como as portuguesas.
Portanto, do nosso ponto de vista, está perfeitamente assegurado o interesse e a validade política de todos os cidadãos, sejam portugueses ou portuguesas, nos cargos políticos e na vida política. Isso mesmo está fora de causa. Pensamos é que soluções que apontem para a obrigatoriedade de estabelecimento de discriminações positivas sob o ponto de vista legal são erradas, são contraproducentes, não resolvem o fundo do problema e, do nosso ponto de vista, criam até uma visão distorcida daquela que é a questão para a qual temos todos de saber encontrar soluções em termos de comunidade.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados, há uma chamada de atenção que o Sr. Presidente já fez, e que é óbvia, de que nós estamos a discutir os direitos de participação política e o que está aqui colocado é precisamente a proposta do Partido Socialista, neste caso, relativamente aos direitos de participação política. E, a partir daqui, há uma realidade que está esgotada, e que é óbvia, de que a Constituição consagra no artigo (3." e neste próprio artigo, como já foi dito, o princípio da igualdade dos cidadãos e das cidadãs perante a lei, uma igualdade jurídica que não tem limites, passe a expressão, sendo certo que mesmo os direitos fundamentais não são direitos absolutos. Mas digamos, a igualdade jurídica, a igualdade plena entre homens e mulheres é inquestionável.
O outro dado da realidade é que a igualdade real — e aqui o âmbito em que estamos a tratar é novo —, no caso da participação política, não existe. Mesmo naqueles países que foram apontados como exemplo, onde as mu-
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lheres têm uma grande participação e acção cívica e uma grande inserção na vida social e administrativa, como é o caso dos países nórdicos, onde, ao que sei, a percentagem máxima, mesmo nesses parlamentos, anda à volta de 40%, o que significa que, na vida política geral, a questão da participação política das mulheres real, a igualdade real e não a igualdade jurídica, ainda não está garantida. Porquê? Por razões civilizacionais, culturais, sociais e outras.
Portanto, o propósito do Partido Socialista nesta proposta era um objectivo moderno, civilizacional. Hoje, a igualdade real entre homens e mulheres constitui um grande debate cultural e político e perpassa todos os aerópagos internacionais onde se discutem direitos humanos e direitos fundamentais. Não há nenhuma grande instância internacional onde o problema da igualdade real entre os sexos não se ponha. E porquê? Porque ela não existe. E em Portugal muito, menos.
Portanto, neste domínio, qual é o nosso objectivo? Concordo que a redacção não é, de facto, feliz, mas o que se pretende é, efectivamente, uma discriminação positiva. E a ideia também do «justo» não me parece ser a ideia mais luminosa. Mas, o que se pretende é abrir a possibilidade de o Estado, de a lei, assegurar algumas medidas de favor de discriminação positiva para estimular a participação das mulheres, garantir condições em que elas possam participar mais, como têm direito mas a realidade não vem permitindo, seja por intermédio de uma nova forma de tratamento das mulheres, ao nível dos media — um dos grandes debates modernos de hoje é sobre os media e as mulheres, a todos os níveis, não só ao nível dos costumes, mas ao nível da participação política.
O problema das quotas é um aspecto, apenas. Evidentemente que quando esta questão se discutiu, muitos de nós entenderam que, sem uma abertura constitucional, dificilmente as quotas podiam ser aplicadas nas diversas instâncias sem o risco de inconstitucionalidade. E não é só o problema das quotas mas também da representação. Por exemplo, discute-se, hoje, nas instâncias internacionais se não deve ser estimulado (não. participação à força) que nos diversos órgãos colectivos, sejam sindicatos, associações políticas, associações culturais, clubes recreativos, partidos políticos, não deva tentar-se favorecer que as mulheres, nos órgãos de direcção, estejam em número correspondente à percentagem que intervém nesses órgãos. Há, por exemplo, uma associação que tem 20% de mulheres e nas suas direcções não tem nenhuma. Esta, por exemplo, devo dizer, foi uma recomendação votada por unanimidade no Conselho da Europa, que é o clube das democracias mais avançadas da Europa e porventura do mundo.
Portanto, a ideia da nossa proposta é uma ideia de abertura, de não comprometimento com uma regra fixa e rígida, mas de dizer isto: igualdade jurídica, igualdade dos cidadãos perante a lei, que está na Constituição, mas, porventura, deve-se abrir aqui uma porta para que o Estado e a lei permitam algumas medidas equilibradas de favor para garantir estes objectivos de igualdade na participação política ou melhores condições de participação na vida política, por parte das mulheres.
É um preceito que, da forma como está, não é preciso... As críticas que foram feitas, a meu ver, são adequadas, mas dever-se-ia abrir aqui uma porta. É um grande a\erta civilizacional e cultural aquele que nós apresentamos.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Ruben de Carvalho.
O Sr. Ruben de Carvalho (PCP): — Sr. Presidente, penso que há talvez uma advertência, desde já, a fazer relativamente à forma de andamento do debate. É que não há aqui, penso eu, nenhum diferendo de opiniões sobre a necessidade de tomar pedidas que assegurem uma valorização da presença da mulher na sociedade, a eliminação de toda e qualquer discriminação, etc. Não é isso que aqui está em causa. Aí, estamos todos de acordo. O que está em causa é a maneira de o atingir e a forma de o fazer e a bondade de este dispositivo contribuir ou não contribuir para isso. Esta a primeira questão.
A segunda questão — e como o Sr. Deputado Barbosa de Melo assinalou, a nossa ver, com toda a justeza — é que o facto de esta redacção ser um tanto ou quanto «or-torrômbica» não é casual. O problema é que esta redacção serve para não dizer uma coisa que quer dizer, ou seja, como o próprio debate acabou por revelar, está aqui muito em concreto uma possibilidade orientada e dirigida em relação a uma determinada solução, em jeito de dizer-se: haja possibilidade constitucional de se estabelecer um sistema de quotas. A situação é tão simples quanto isto. É claro que, para não dizer isto, arranja-se uma fórmula um bocado arrevezada e que acaba por ser contraditória em relação aos próprios objectivos procurados.
A nossa reserva em relação à medida e nomeadamente à questão dos cargos políticos e do estabelecimento de medidas discriminação positiva em relação aos cargos políticos, Srs. Deputados, é que nos parece como que começar um edifício pelo telhado.
Não está em causa que se tomem medidas relativamente à igualdade de oportunidades em relação a homens e mulheres no todo da sociedade. Mas não nos parece que a medida mais adequada e prioritária seja fazê-lo ao nível do poder político sem que isso seja sustentado por uma intervenção e uma realidade, na base da sociedade e no tecido social e naquilo que é determinante e que explicite, que dê suporte e sustentação a uma medida desse género.
Pior é que pensamos que começar por esse telhado pode acarretar o risco que sempre acontece que é o de o telhado cair em cima de nós e acabar por ser negativa uma medida que não corresponde, no fundo, a uma realidade e que é tomada como um privilégio, como o estabelecimento de uma medida de privilégio para determinadas camadas e para determinadas áreas da população e não sentidas pelo conjunto das mulheres, conforme, aliás, á minha camarada Deputada Odete Santos já frisou e é reconhecido nos próprios países onde estas medidas foram tomadas.
Portanto, pensamos que nem na forma nem no fundo se trata de uma medida adequada a atingir um objectivo que, enquanto objectivo, naturalmente subscrevemos.
O Sr. Presidente: — Para um pedido de esclarecimento, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): — Devo dizer que a questão das quotas não é a decorrência estrita deste preceito. E devo ainda dizer, a título pessoal, que estou contra as quotas, mas defendo a representação adequada. E este preceito corresponde ao que penso sobre esta matéria.
Mas, devo dizer-lhe que esta última parte do «edifício a começar pelo telhado» a ouvi com surpresa, quando é
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certo que ao nível das instâncias internacionais, seja a ONU, seja a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, seja a Organização de Segurança e Cooperação Europeia, seja a UEO, esta questão da participação política faz parte, em todas as estas organizações, onde estão os diversos países da Europa e do mundo, como um dos debates fundamentais e decisivos da actualidade — a participação política das mulheres.
Penso que nenhum de nós tem a pretensão de ver os outros como errados e nós estarmos certos na vanguarda das questões políticas que devem ser discutidas, hoje em dia, na sociedade portuguesa.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Ruben de Carvalho.
O Sr. Ruben de Carvalho (PCP): — Não será propriamente um pedido de esclarecimento, mas, em todo o caso, o que devo dizer-lhe, Sr. Deputado, é que não me parece que haja paralelismos a fazer, com tanta simplicidade, em relação a medidas que podem ter a sua bondade em sede de um Parlamento Europeu ou de uma instância internacional e aquelas que se aplicam na regulamentação constitucional de um país e de uma sociedade no seu conjunto.
Pode haver uma medida inteiramente legítima para ser aplicada numa organização, numa estrutura onde tenha inteiro cabimento e que seja aplicada a esse nível e em sede de uma organização e de uma estrutura. Mas já será completamente aberrante no caso de ser aplicada a um todo social que tem outro tipo de características que não tem uma estrutura que é finita, limitada, com dinâmicas, histórias e enquadramentos completamente diferentes. O facto de uma medida, que eu até posso subscrever, ser tomada, por exemplo, ao nível da UEO não passa por isso a ter bondade ao nível de normativos constitucionais de funcionamento de uma sociedade. Bem pelo contrário, pode até ser inteiramente contraditório. E a nosso ver é.
Ou seja: esse mesmo princípio vertido para um normativo ao nível de toda uma sociedade deixa o normativo suspenso relativamente a uma sociedade que lhe não dá sustentação, o que, como1 é óbvio, não acontece ao nível de uma estrutura que é limitada e não tem de ter fatalmente o mesmo tipo de base social de sustentação, de legitimidade e de eficácia quanto à tomada.
O Sr. Presidente: — Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.° Deputada Isabel Castro.
A Sr." Isabel Castro (Os Verdes): — Sr. Presidente, vou referir-me a duas questões. Em primeiro lugar, penso que o Sr. Deputado Alberto Martins situou a questão como penso que ela tem de ser colocada. Esta discussão, para nós, só faz sentido enquanto parte integrante não só de um direito mas de formas de o corporizar.
E a questão que coloco, e que julgo que não foi entendida pelo Sr. Deputado do Partido Socialista que fez a apresentação do diploma, tem a ver com o facto de me parecer que aquilo que está implícito nesta formulação, que porventura terá de ser modificada porque não terá sido a mais feliz, mas aquilo que aqui está pode ter efeitos perversos, designadamente quando dirigida a universos distintos porque 4 evidente que ao fazer leituras, t\os termos feitos pelo Sr. Deputado, não faz sentido. E uma norma deste tipo poderia, por exemplo, inconstitucionalizar partidos que, de acordo com o universo específico que têm,
não garantem, nesta lógica, a tal igualdade e, portanto, é essa interferência e é esse aspecto perverso que, penso, não faz sentido, motivo por que, julgo, esta formulação tinha que ser diferentemente traduzida naquilo que é, no fundo, sinónimo ou não do justo, naquilo que é ou não a tradução do pensamento que está implícito a esta proposta de uma participação em igualdade que se quer promover e que, do nosso ponto de vista, não se circunscreve ao exercício de cargos públicos ou políticos, mas a um universo mais alargado como, penso, consensualmente todos concluirão ter de ser atingido.
O Sr. Presidente: — Para uma intervenção, tem a palavra a Sr." Deputada Elisa Damião.
A Sr.° Elisa Damião (PS): — Se bem entendi, a Sr.° Deputada que me precedeu admite que podem ser constitucionais partidos em que não estejam representados ambos os sáxos.
A Sr." Isabel Castro (Os Verdes): — Entendeu mal.
A Sr." Elisa Damião (PS): — Partidos só de mulheres ou partidos só de homens. Não sei se isso é constitucional.
Retomando a reflexão que o Sr. Presidente fez há pouco, diria que esta formulação pode não ser perfeita, mas, sem um indicador deste tipo, não é possível estabelecerem-se medidas de acção positiva. E lembro a decisão dos juízes comunitários, a propósito dos programas, que, por acaso, se faziam para a promoção da imagem da mulher e do emprego, que foram considerados sob o ponto de vista da legislação comunitária impraticáveis porque feriam os princípios da igualdade.
Portanto, as medidas de «acção» positiva foram postas em causa no concreto, com programas concretos, nomeadamente em relação ao emprego, ao nível da construção europeia. E eu pergunto se sem uma norma destas é possível manter medidas de acção positiva, sejam elas para homens ou para mulheres, naturalmente.
O Sr. Presidente: — Não há mais inscrições mas também já temos colhida a opinião geral sobre esta matéria. Pessoalmente, lembraria aos circunstantes que foi a segunda vez que ouvi discutir este problema em profundidade nesta Câmara. A primeira foi aquando da realização do chamado Parlamento Paritário, onde ouvi notáveis mulheres portuguesas a oporem-se vivamente ao princípio da quotização, como VV Ex."5 se recordarão, e em nome da dignidade da mulher ouvi este argumento também produzido por pessoas bem ligadas a meios internacionais e com grande experiência internacional.
Não se trata aqui, nesta matéria, obviamente, de discutir ou de limitar a tomada de medidas que promovam a participação da mulher na vida social, em toda a linha. O problema que se discute e se discutiu aqui é o problema de saber se a lei pode contingentar a participação em razão dos sexos nos órgãos políticos e nos cargos políticos.
De qualquer maneira, a discussão fez-se e apura-se o seguinte resultado: a proposta do PS, no seu núcleo, não acolhe, pelo menos para já, a adesão das outras forças políticas. Contou com a oposição do PSD, do PCP e de Os Verdes. Mas a oposição é a este tipo de medida e não ao princípio filosófico e prático de que é preciso promover, por todos os modos, um aumento da participação da mulher na vida pública, social e política portuguesa.
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Parte II — Actas da segunda leitura (reunião n.° 102, de 5 de Junho de 1997)
O Sr. Presidente (Jorge Lacão): — Passamos agora ao artigo 112.° [renumerado em redacção fina) como 109.°] Quanto a este artigo há uma proposta comum, é a única proposta que submeteremos a votação, uma vez que proposta do PSD de eliminação do artigo 12.°, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes confirmará, perdeu o sentido, uma vez que a matéria está agora tratada numa nova reponderação sistemática.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): — Como se lembraram nós retiramos a proposta que apresentámos em sede de artigo 48.° e na qual nós exprimíamos o nosso empenhamento em que haja na Constituição uma norma que na nossa redacção originária aludisse à obrigação de a lei assegurar a não discriminação em função do sexo no acesso aos cargos públicos, visando aquilo a que nós chamávamos o equilíbrio justo de participação entre homens e mulheres.
O debate da primeira leitura e depois o debate bilateral realizado entre o PS e o PSD conduziu-nos a uma nova redacção, a qual está expressa na proposta que têm entre mãos, a qual tem duas componentes muito importantes.
Para além do facto de ser uma norma constitucional em que, de acordo com vária sugestões feitas, designadamente pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, pelas Mulheres Socialistas e por outras organizações que se nos dirigiram, se fazer uma découpage na alusão a homens e mulheres no preceito constitucional e por isso se fala na «participação directa e activa de homens e mulheres na vida política». A norma obriga o legislador a dois tipos de actividades. Por uma lado, a obrigação de a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos. E em segundo lugar, uma obrigação de combate à discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos.
Esta concepção e esta solução jurídica não se identifica nem pretende intervir na famosa polémica sobre quotas ou não quotas no acesso a cargos públicos, não implica uma exigência de uma solução específica para realizar este objectivo, mas é inequívoca quanto ao objectivo e é inequívoca quanto às duas direcções.
As duas direcções são:
a) Promoção da igualdade — políticas activas de promoção da igualdade homem/mulher, nos diversos domínios em que a vida cívica e política se desdobra;
b) E em segundo lugar, combate às discriminações, aí onde elas existam, visando, por isso mesmo, o tal equilíbrio justo de que falávamos e cujo espírito é assim preservado neste texto.
Cremos que é um momento importante, e é sem dúvida nenhuma um salto qualitativo na consagração da luta pela igualdade entre homens e mulheres no quadro constitucional, e a Constituição resulta assim substancialmente enriquecida nesta sua dimensão tão importante.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.
O Sr. Luís Sá (PCP): — Sr. Presidente, gostaria de fazer uma pergunta ao Sr. Deputado José Magalhães, eventualmente a outros proponentes. E que vai no seguinte
sentido: estou inteiramente de acordo que se tenha erri
conta na própria linguagem, designadamente na linguagem constitucional, a preocupação de ter presente, reforçar o princípio da igualdade de homens e mulheres ou de cidadãos e cidadãs.
E a questão que queria colocar era exactamente isto: se não era preferível dizer, em vez de «homens e mulheres», «cidadãos e cidadãs» ou «cidadãs e cidadãos», conforme se preferir?
Este termo «homens e mulheres» pode inculcar eventualmente que existe uma determinada idade a partir da qual se é homem e mulher, da qual depende a participação na vida política.
Não é certamente esta a intenção dos proponentes, mas o problema pode eventualmente colocar-se. Não vou falar agora com o parêntesis do parlamento das crianças, mas podemos eventualmente questionar se uma ou um adolescente são homens ou mulheres. A partir de que idade é que se é homem ou mulher? É evidente que há uma idade para votar, mas é evidente também que há muitas outras formas de participação para além do voto. Uma fórmula como «cidadãos e cidadãs» talvez resolvesse o problema sem criar qualquer equívoco.
Que recordo, designadamente, uma fórmula com ampla consagração, se assim não for, pelo menos que fique uma declaração da parte dos proponentes de que ao adiantarem esta proposta de alteração têm presente uma ideia de larga participação e sem qualquer espécie de limites.
A fórmula que actualmente está na Constituição de «cidadãos», creio eu, que é uma fórmula rica, tal como a entendemos, não é uma cidadania em que há direitos diferenciados conforme classes ou grupos, etc, é uma cidadania que pressupõe igualdade, mas creio que é uma fórmula rica e que a forma de ter em conta esta preocupação
de igualdade eventualmente era a fórmula «cidadãos e cidadãs» e não a fórmula «homens e mulheres».
De resto queria chamar a atenção para que a proposta não abranja a epígrafe e na epígrafe a questão que está colocada é exactamente a participação política dos cidadãos, que no futuro poderia ficar, segundo a minha proposta, «dos cidadãos e cidadãs».
O Sr. Presidente: —Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): — Não por acaso se manteve na epígrafe a alusão a cidadãos, e depois no texto do articulado se faz a découpage «homens/mulheres». E assim se consegue preservar o espírito originário do preceito, fazer a distinção entre essas duas metades do mundo que aparentemente têm vocação de eternidade e simultaneamente não excluir ninguém, uma vez que suponho que o Sr. Deputado também não considerava que formas de participação de pessoas que ainda não atingiram a cidadania estejam excluídas por esta norma constitucional, não estão hoje e não estarão nesta redacção.
Não há perda nenhuma de conteúdo, há conjugação harmoniosa entre a epígrafe e o articulado e, nesse sentido, Sr. Presidente e Srs. Deputados, houve a preocupação da maximização de conteúdos virtuosos.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.
O Sr. Luís Sá (PCP): — Nós partilhamos, obviamente, das preocupações que constam desta proposta.
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Julgamos, no entanto, que a preocupação em homenagem ao princípio da igualdade entre sexos, de discriminar dentro de determinadas categorias as várias componentes
que é inteiramente aplicável à ideia de cidadãos, que é
evidente que corresponde a homens e mulheres, mas recordo por exemplo que numa das situações que neste momento tem sido muito referida, por exemplo a francesa, não há provavelmente nenhum político que se refira a esta categoria sem dizer «cidadãs e cidadãos».
Exactamente porque se entende que há que superar no plano da linguagem determinados hábitos que eventualmente poderiam ter subjacente períodos em que por exemplo a mulher não unha direito de voto, a mulher não tinha determinados direitos.
De facto não os tinha, e às vezes mesmo o direito também não os tinha e é por isso mesmo que em coerência com esta preocupações, creio que se justificaria, insisto, alterar igualmente a epígrafe, e continuo a pensar, não deixarei de votar no sentido em que votaremos por causa disso, mas continuo a pensar que a formulação «cidadãos e cidadãs» era mais feliz que a formulação «homens e mulheres».
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Ferreira.
O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): — Nós pensamos que os objectivos, as finalidades e as preocupações desta proposta estão plenamente acolhidas já no artigo 13." da Constituição. Da mesma forma que a concretização das formas pelas quais o povo exerce o poder que nós discutimos no artigo anterior também já estava consagrado no artigo dos princípios fundamentais, em função do qual o CDS-PP acabou por retirar a sua proposta.
Penso que faria todo o sentido que estabelecendo já o artigo 13.° da Constituição a impossibilidade de qualquer pessoa ser prejudicada ou beneficiada a qualquer título e por qualquer razão na vida pública, inutiliza completamente esta proposta conjunta do PS e do PSD, pelo que nós a achamos absolutamente redundante, face ao que já está estabelecido, aliás, com maior nobreza no artigo 13.° e para muito mais situações que não apenas a da participação política dos cidadãos.
Portanto, consideramos esta proposta absolutamente inútil do ponto de vista do valor acrescentado à Constituição, que do nosso ponto de vista não é absolutamente nenhum.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): — Sr. Presidente, para dizer que do nosso ponto de vista, esta proposta vai mais longe e bem do que está no artigo 13.° da Constituição.
O artigo 13.° prevê um princípio geral da igualdade em termos de dignidade social, e aquilo que se prevê aqui é mais, para além de se referir especialmente à participação política e designadamente à participação no acesso a cargos políticos, o que se prevê aqui é mais do que não discriminação, o que se prevê aqui é que a lei deve promover a igualdade de ambos os sexos no exercício de direitos cívicos e políticos.
E, portanto, do nosso ponto de vista esta proposta tem um valor acrescentado evidente relativamente àquilo que está já no artigo 13.°, que naturalmente é bom.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, vamos passar à votação da proposta conjunta de novo n.° 2 para o artigo 112.°, apresentada pelo PS e PSD.
Submetida à votação, obteve a maioria de dois terços necessária, tendo-se registado votos a favor do PS, do PSD e do PCP, sem votos contra e com a abstenção do CDS-PP.
É a seguinte:
2 — A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos poííticos.
Versão provisória, aguardando revisão dos oradores.
ANEXO II
«O verso e o reverso» (declaração publicada no Diário de Notícias, de 12 de Dezembro de 1997)
Para uma democracia autêntica
O verso
Em Portugal as mulheres constituem:
Mais de metade da população: 52%;
Mais de metade dos eleitores: 53%;
Quase metade da mão-de-obra do mercado formal de emprego: 48%;
Mais de metade dos trabalhadores intelectuais e científicos: 51,4%;
Mais de metade dos quadros técnicos intermédios: 51%; •
Quase metade dos quadros técnicos superiores da Administração Central: 45%;
Quase dois terços dos trabalhadores da administração central: 65,1%
Mais de dois terços dos agentes de ensino: 73%;
Dois terços dos estudantes universitários;
A maioria dos contribuintes;
80% dó consumo decorre de compras efectuadas por mulheres ou de aquisições por elas directamente decididas;
O trabalho não remunerado executado pelas mulheres põe ao dispor da comunidade uma riqueza estimada em cerca de 40% do PIB.
O reverso
No Conselho de Estado apenas tem assento uma única mulher;
Na Assembleia da República em cada 100 Deputados 88 são homens e apenas 12 são mulheres;
No Parlamento Europeu em 25 Deputados portugueses 23 são homens e apenas 2 são mulheres;
No Governo em 58 membros 52 são homens e apenas 6 são mulheres;
No poder local em cada 100 autarcas 94 são homens e apenas 6 são mulheres;
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Nos partidos políticos em cada 100 dirigentes nacionais 90 são homens e apenas 10 são mulheres;
Nas confederações sindicais em cada 100 dirigentes nacionais 84 são homens e apenas 16 são mulheres;
Nas confederações patronais em cada 100 dirigentes nacionais 91 são homens e apenas 9 são mulheres;
Na administração central em cada 100 directores-gerais 89 são homens e apenas 11 são mulheres;
No Conselho Económico o Social em 50 conselheiros apenas 2 são mulheres;
No Conselho Nacional de Educação em 56 conselheiros apenas 12 são mulheres;
No Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em 22 conselheiros apenas 3 são mulheres;
No Conselho Superior do Desporto em 22 conselheiros existe uma única mulher;
No que respeita aos rendimentos do trabalho, para trabalho igual, por cada 1000$ ganhos pelos homens, as mulheres auferem somente 761$.
Esta situação constitui um dos principais factores de descredibilização do poder democrático, de degradação da qualidade da decisão política e de enfraquecimento dos laços de solidariedade democrática nas comunidades.
Assim, é urgente:
1 — Que os partidos políticos procedam à efectiva realização do princípio da igualdade de oportunidades entre mulheres e homens no que respeita, quer ao acesso aos respectivos cargos dirigentes, quer à sua estruturação interna, quer ainda à organização das suas actividades, nomeadamente com vista ao aumento da participação políüca das mulheres.
2 — Que os órgãos de soberania, em coerência com as resoluções e recomendações das organizações internacionais que em nome de Portugal aprovaram e ratificaram, promovam as medidas legais adequadas à efectiva garantia de aplicação das orientações naqueles documentos contidas.
3 — Que ao princípio constitucional do equilíbrio na representação política seja dado cumprimento, nomeadamente e desde já na lei eleitoral aquando da sua próxima revisão no quadro da Assembleia da República através de uma disposição que garanta a efectividade deste preceito constitucional.
Associação das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas— Aliança para a Democracia Paritária — Associação Ana de Castro Osório — Associação de Antigas Guias — Associação Convergência—Associação das Mulheres Agricultores Portuguesas — Associação das Mulheres Empresárias em Portugal — Associação das Mulheres Que Trabalham em Casa — Associação de Mulheres Socialistas — Associação dos Cônjuges dos Diplomatas Portuguesas — Associação de Mulheres contra a Violência — Associação Guias de Portugal — Associação Mulher Migrante — Associação Nacional de Empresárias — Associação O Ninho — Associação para a Promoção das Mulheres e Famílias de Minorias Étnicas — Associação para o Planeamento Familiar — Associação Portuguesa de Cultura Desenvolvimento — Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres — Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias — Associação Portuguesa de Mulheres Juristas — Clube Começar de Novo — Comissão de Mulheres da CGTP-IN — Cruz Vermelha Portuguesa — Departamento de Mulheres do PS — Departamento de Mu-
lheres da UDP — Federação de Mulheres Empresárias e Profissionais de Portugal — GEDESE — Grupo de Estudos para o Desenvolvimento Sócio Económico — GRAAL — Intervenção Feminina (IF) — MÁTRIA — Associação para o Desenvolvimento Cultural da Mulher — Movimento Democrático de Mulheres — MDM — Movimento Esperança e Vida — Movimento para a Emancipação Social das Mulheres Portuguesas (UMAR} — Mulheres do CDS--PP — Mulheres Portuguesas Sociais-Democratas — Organização das Mulheres Comunistas — Rede de Mulheres Autarcas Portuguesas (REMA) — Reviver (Associação de Solidariedade Social para a Recuperação de Mulheres Toxicodependentes) — Soroptimist International — União Noelista Portuguesa.
ANEXO III
Comissão para a Paridade, Igualdade de Oportunidades e Família
Audição parlamentar sobre a proposta de lei n.° 194/VII
1 — Depoimento do Prof. Doutor Jorge Miranda: [...] Suponho que não vale muito a pena fazer uma longa digressão porque os estudos que o grupo realizou estão publicados num livro chamado Democracia com mais Cidadania [...] Eis o primeiro ponto que gostaria de salientar: a questão que está em causa não é uma questão que diga só respeito às mulheres; mas é uma questão que interesse a todos independentemente do sexo. E, desde logo, interessa a todos porque a ideia da participação política das mulheres é uma ideia inerente à ideia democrática e a democracia é, para todos, mais participação, mais igualdade, que hão-de significar mais democracia.
Em segundo lugar, porque não sabemos se, a médio ou longo prazo, o problema da participação que, hoje, se põe em relações às mulheres não irá pôr-se em relação aos homens. E, por outro lado ainda, como é sabido, a proposta de lei não distingue entre homens e mulheres mas fala em sexos e, por conseguinte, não está directamente feita em razão deste ou daquele sexo, embora saibamos que, na prática, o problema hoje tem que ver com as mulheres.
Vou fazer, pois, uma intervenção muito curta, apenas para salientar aqueles aspectos que me parecem fundamentais.
Em primeiro lugar, no plano jurídico-constitucional, julgo que tanto eu como o Prof. Vital Moreira, e outras pessoas que têm reflectido sobre a matéria, demonstramos que, depois da revisão constitucional de 1997, há uma imposição no sentido do estabelecimento, por via legislativa, de medidas tendentes a uma igualização ou, pelo menos, a uma aproximação da participação de ambos os sexos no exercício de cargos políticos.
Até 1997, o princípio da igualdade era geralmente entendido no sentido apenas de igualdade formal. O sentido do artigo 13.° era esse. Nem toda a gente assim pensava. Eu próprio não pensava dessa maneira, mas o entendimento corrente era de que o princípio da igualdade constante do artigo 13.° da Constituição se reduzia à igualdade perante a lei e não admitiria, por conseguinte, medidas de carácter positivo tendentes a assegurar uma aproximação de participação política entre homens e mulheres. Era o entendimento corrente e, de resto, a história do preceito apontaria nesse sentido.
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Pessoalmente, julgo que poderia dar-se outra interpretação, mas, repito, era essa a interpretação corrente.
Em 1997, houve duas importantes modificações constitucionais: por um lado, ao artigo 9.° foi aditada uma
alínea dizendo que passava a ser incumbência ou tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre homens e mulheres — promover, e não simplesmente estabelecer ou regular— e, por outro lado, no artigo 112.°, passado depois a 109.°, foi especificamente feita referência à igualdade de participação de homens e mulheres no sistema político e à eliminação de quaisquer formas de discriminação.
Foi isso que ficou estabelecido em 1997.
A única interpretação que me parece possível, tendo em conta estas novas normas e o confronto com as normas anteriores, é de que o legislador ordinário está obrigado a adoptar medidas positivas no sentido do reforço da participação de ambos os sexos no exercício de cargos políticos.
Há uma imposição legiferante a partir de 1997. Por conseguinte, a não serem adaptadas medidas, verificar-se-á uma inconstitucionalidade por omissão.
A revisão constitucional já foi há quase ano e meio e há uma inconstitucionalidade por omissão desde essa altura.
De resto, deve dizer-se, a Assembleia da República — permitam-me que também o diga— tem sido muito pouco diligente em concretizar as novas normas constitucionais vindas da revisão de 1997. Nem. sequer, tanto quanto sei, fez a adaptação do seu Regimento às novas normas constitucionais.
Congratulo-me com o facto de agora a Assembleia da República ir tomar posição sobre este problema.
Portanto, em termos jurídico-constitucionais, julgo que
a proposta de lei que é agora apresentada — e que, de
resto, é mais modesta do que a recomendação que tinha sido formulada pelo grupo de trabalho — dá exequibilidade às novas normas constitucionais.
Há alguns argumentos não já de natureza estritamente jurídica, mas de natureza política ou jurídico-política que têm sido esgrimidos contra a adopção de medidas como aquelas que constam da proposta de lei.
Há, essencialmente, quatro argumentos que têm sido apontados contra as medidas do género daquelas que constam da proposta de lei.
Em primeiro lugar, o princípio da unidade da representação política; em segundo lugar, o princípio da liberdade de associação ou da liberdade de candidatura; em terceiro lugar, o princípio democrático; em quarto lugar, a ideia de que deveria ser preferida a auto-regulação partidária em vez de uma qualquer imposição por via legislativa.
Vejamos esses quatro argumentos.
Em primeiro lugar, o princípio da unidade da representação política. Diz-se ou pode dizer-se que o estabelecimento de um sistema de quotas ou de algo parecido —de resto, na minha opinião, aquilo que consta da proposta não é especificamente um sistema de quotas—, põe em causa a unidade da representação política.
A grande conquista do Estado representativo moderno é a unidade do povo como titular da soberania. Os Deputados representam todo o povo e não representam regiões e muito menos pode haver Deputados que representem este ou aquele sexo. Haver quotas ou algo parecido poderia conduzir a um fraccionamento da representação política, poderia quebrar, em última análise, o princípio da soberania nacional.
Contra este argumento pode aduzir-se, em primeiro lugar, que o problema que consta da proposta de lei não tem que ver com a unidade de representação, não tem que ver com a titularidade dos poderes dos Deputados, mas
tem que ver apenas com condições ou requisitos de elegibilidade ou, mais especificamente, mais rigorosamente, tem que ver, com candidaturas. É a nível de candidaturas que se dá a intervenção, mas os candidatos, porventura, uma vez eleitos, continuam a representar todo o povo e não representam este ou aquele sexo, tal como os candidatos que provenham desta ou daquela classe ou desta ou daquela categoria profissional ou desta ou daquela faixa etária não representam uma classe, uma categoria profissional ou uma faixa etária, continuam a representar todo o povo.
Ainda pode, em segundo lugar, referir-se é que há uma diferença fundamental entre homens e mulheres, entre os sexos e qualquer situação de classe, situação profissional, faixa etária, geração, condição regional. É que a diferença de sexo trata-se de algo inerente à natureza humana. Através de uma maior participação de todos os sexos ou de uma aproximação da participação de ambos os sexos, no fundo, consegue-se obter uma maior unidade da representação política.
Um segundo argumento tem que ver com à liberdade de associação partidária e com a liberdade de candidatura.
Pode dizer-se — e já tenho ouvido e lido — que estabelecer por via legislativa a obrigatoriedade de os partidos apresentarem candidatos em razão dos sexos é uma intervenção que põe em causa o princípio da liberdade de associação e o princípio da liberdade de candidatura. Mas isso, a meu ver, esquece dois pontos: em primeiro lugar, que os partidos não são associações quaisquer, que
os partidos, embora não sejam pessoas colectivas de direito
público, têm um estatuto constitucional devido à sua intervenção privilegiada no moderno Estado representativo, na vida política. Os partidos têm um estatuto específico, um estatuto que lhes confere direitos, um estatuto donde também podem provir obrigações, ónus e, nessa perspectiva, é perfeitamente admissível que a Constituição, que, de resto, reserva aos partidos a apresentação de candidaturas à Assembleia da República estabeleça determinadas regras a respeito dessas mesmas candidaturas.
A liberdade de candidatura partidária deve ser entendida no contexto constitucional e legal.
O terceiro elemento tem que ver com a ideia de que o estabelecimento de quotas ou de medidas parecidas iria pôr em causa a-própria liberdade dos eleitores, o próprio princípio democrático. Os eleitores seriam constrangidos a votar em candidatas ou candidatos por imposição legislativa, não tendo a possibilidade de escolher aqueles ou aquelas que considerassem mais idóneos.
A resposta a este argumento encontra-se, a meu ver, em dois planos: em primeiro lugar, não pode esquecer-se de que, de acordo com o sistema eleitoral que temos e que tem sido criticado mas que ainda não foi alterado, os cidadãos não escolhem directamente candidatos mas escolhem, sim, listas de candidatura. E, portanto, a sua liberdade, à partida, também já se encontra, por essa via, condicionada. O problema seria diferente se fôssemos adoptar um sistema maioritário com sufrágio uninominal.
Mas, sobretudo e em segundo lugar, a realidade é que o próprio princípio democrático tem de sofrer limitações, o princípio democrático não é um absoluto, dentro de um Estado de direito democrático, o princípio democrático é um princípio a par de outros, tem de se compaginar com
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outros princípios e pode dizer-se que esse princípio da livre escolha dos candidatos é um princípio que não pode sobrepor-se totalmente ao princípio da máxima participação política de ambos os sexos.
De resto, o próprio princípio democrático, para defesa e preservação da própria democracia, tem limites constitucionais. Basta pensar, por exemplo, na limitação dos mandatos do Presidente da República. E eu, há muito, também defendo que devia haver limitação dos mandatos relativamente aos titulares de todos os órgãos políticos a
nível nacional, regional e local.
Também poderia dizer-se que impedir uma determinada pessoa de se ser candidato pela terceira vez consecutiva à Presidência da República é uma limitação ao princípio democrático. E, de certa maneira, é. Mas é uma limitação para defesa da própria democracia.
Estabelecer determinadas percentagens ou quotas, como se diz, relativamente à participação política dos sexos é uma medida no sentido do reforço da democracia, no sentido do reforço da participação democrática.
O quarto e último argumento tem que ver com a auto--regulação.
Não seria melhor esperar que os partidos, livremente, tendo em conta transformações de mentalidades, transformações sócio-culturais, eles apresentassem candidaturas com equilíbrio da representação de ambos os sexos? Certamente que sim. O que acontece é que até agora isso não se verificou. O que acontece é que, até este momento, os partidos não foram capazes de fazer essa auto-regulação a nível de candidaturas. É natural que, mesmo que não houvesse esta proposta de lei, a tendência fosse já nesse sentido.
Há manifestações positivas de como isto se vai verificando a nível de composição de órgãos políticos dos partidos, a nível de composição do Tribunal Constitucional, a nível de maior participação de mulheres em órgãos das autarquias locais. Há sinais positivos, mas, a meu ver, insuficientes.
Por conseguinte, determinadas medidas terão de ser adaptadas com vista ao estabelecimento desse maior
equilíbrio entre ambos os sexos.
E permitam-me que refira algo que aconteceu há dias na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, uma Faculdade onde presentemente há cerca de 70% de alunas, de raparigas. A proporção, neste momento, é essa. Há dias foi eleita a assembleia de representantes e verificou-se que, enquanto que ao nível dos docentes e dos funcionários se fez um equilíbrio, quase a paridade de ambos os sexos, com grande espanto meu verifiquei que, a nível dos estudantes, para 20 estudantes com assento na assembleia de representantes, só havia 3 raparigas. Isto numa Faculdade onde concorreram às eleições quatro listas, quatro candidaturas. Numa Faculdade, enfim, onde seria de esperar que houvesse maior sensibilidade destes problemas, verifica-se que, embora tendo .70% de raparigas, em 20 representantes, só 3 são raparigas.
Ora, isto é uma prova de como a auto-regulação pode, muitas vezes, não ser satisfatória.
É evidente — e isto para terminar — que aquilo que se propõe só vale, só tem sentido, a título provisório, a título transitório ou a título temporário. Aquilo que se espera é que o dinamismo da vida social, política e cultural leve a que o equilíbrio se estabeleça, mas o que parece é que é necessário um certo impulso num certo momento para que venha a conseguir-se a médio prazo esse equilíbrio.
2 — Depoimento da Dr.° Leonor Beleza:
Gostaria de fazer algumas reflexões sobre esta questão.
Andou bem o Sr. Prof. Jorge Miranda em ir avisando que o sistema sobre o qual nós trabalhamos no grupo de trabalho e, aliás, os termos em que a proposta de lei formula esta questão, não estão dinamizados, no sentido de que não dizem que tem de haver um certo número de mulheres porque pode ser que, um dia, as coisas se ponham de outra maneira.
A verdade é que isto hoje ainda não é assim. Estamos muito longe ou, pelo menos, as pessoas sentem muito pouco que o problema se possa colocar a curto prazo e não é seguramente por acaso que esta sala está, embora muito pouco cheia, em todo o caso, muito pouco cheia de mulheres a assistir.
Sr. Professor, de facto, hoje, na sociedade portuguesa ainda somos largamente as mulheres quem discute estas questões e ainda elas estão excessivamente pouco vistas como questões que pertencem a todos e que interessam a todos por muito que nós saibamos que as coisas não são bem assim.
Quem sou eu para me atrever a discutir o que quer que seja em relação ao que o Sr. Prof. Jorge Miranda disse sobre a leitura da Constituição.
Neste domínio e não é sobretudo sobre isso que quereria dizer algumas coisas embora me pareça — e suponho que ninguém terá retirado nem seria possível retirar daquilo que o Sr. Prof. Jorge Miranda disse — que a única forma de cumprir o artigo 109." da Constituição seja com uma iniciativa legislativa desse tipo. Suponho que não era isso que disse e também não julgo que possa ser retirado isso do artigo 109.° da Constituição.
Agora, que ele acrescentou alguma coisa em relação àquilo que anteriormente lá estava, isso tenho eu própria poucas dúvidas que acrescentou.
Gosto de dizer que, no que respeita ao estatuto das mulheres na sociedade portuguesa, há um mundo que separa aquilo que vivemos hoje daquilo que acontecia, por hipótese, no momento do 25 de Abril. Isto só para situar no tempo as coisas e para situar, de facto, um momento
que foi de enorme viragem em relação a muitos dos aspectos que nos interessam: as leis foram radicalmente modificadas em relação aquelas que aprendi na Faculdade de Direito e, na prática, muitas coisas se modificaram muito.
Não quero lembrar muita coisa, a maior parte das coisas estão ditas no livro que contém as propostas dos membros do grupo em relação a esta questão e ainda recentissimamente a Comissão para a Igualdade dos Direitos das Mulheres publicou uma actualização sobre a situação das mulheres em Portugal referida a 1997. Comparando isso e o que se passava no 25 de Abril, é fácil verificar tanta diferença no domínio do emprego, no domínio da educação e em variadíssimos domínios e até na apreensão pública generalizada que as pessoas têm sobre qual é o papel das mulheres ou, pelo menos, naquilo que estão dispostas a aceitar em relação ao papel das mulheres.
Eu própria posso dar um exemplo pessoal que estava aqui há bocadinho a referir. O Sr. Prof. Jorge Miranda disse que a Faculdade de Direito tem 70% de mulheres alunas. Ora, eu ainda entrei na Faculdade no tempo em que as meninas se sentavam à frente e os meninos atrás e as meninas eram bastante menos que os meninos e eu fui a primeira rapariga, na altura era muito jovem, a ser convidada para assistente da Faculdade de Direito de
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Lisboa, exactamente nas mesmas condições em que os rapazes da mesma idade eram convidados. Tinha havido duas mulheres docentes antes de mim mas nenhuma delas tinha sido convidada no momento em que o curso tinha terminado, pelo simples facto de ter classificações para
isso, como acontecia com os rapazes.
Hoje, o panorama da Faculdade de Direito é radicalmente diferente e porventura até talvez seja difícil explicar às jovens alunas é aos jovens alunos de hoje como é que as coisas eram nesse tempo, que foi há bastantes anos, um bocadinho antes do 25 de Abril.
Esta questão da participação das mulheres na vida política é uma questão em que há uma dose enorme de diferença entre o discurso político e a prática, como estamos todos, enfim, fartíssimos de saber. Ninguém diz, em teoria, quando discursa, que não é muito bom que as mulheres participem. Todos os líderes políticos, todos os responsáveis políticos dizem sistematicamente isso e, na prática, é seguramente o aspecto em que vimos ocorrerem menos modificações, nestes 20 e tal anos, período em que, noutros domínios, se deram grandes modificações na sociedade portuguesa.
Por outro lado, há alguns aspectos, até do discurso político-social que, do meu ponto de vista são altamente perturbadores ou contrários a essa ideia da igualdade. E saliento, em particular, como se gosta na actividade política de se referir que se fazem grandes sacrifícios pessoais e familiares para se poder ter uma actividade política intensa.
Talvez não seja uma consciência que adquiri muito depressa, mas hoje, quando oiço isto, estou a ouvir: cá esta uma boa maneira de dizer que há uns que podem e outras para quem isto é muito complicado porque é evidente que estamos num domínio privilegiado da compatibilização entre os vários aspectos da vida das pessoas, estamos num domínio privilegiado onde não é possível ir muito longe
sc as pessoas não puderem, simultaneamente, ter uma vida
familiar razoavelmente preenchida, uma vida profissional, social e de intervenção política razoavelmente preenchida.
E esta é uma questão nuclear de alteração de comportamentos, de alteração de atitude, de alteração de valores, numa sociedade. E acho que uma sociedade é tão mais democrática, tão mais civilizada, quanto mais vir os vários níveis de participação social dos indivíduos como necessariamente compatibilizáveis para equilíbrio de todos e equilíbrio da sociedade em geral e até para uma coisa que cada vez mais as sociedades vão seguramente sentir que é a necessidade de se manterem as próprias sociedades, isto é, de continuar a haver famílias, de continuar a haver filhos, de continuar a haver mulheres disponíveis para simultaneamente fazerem tudo aquilo que a realização hoje lhes pede: a realização pessoal, familiar, profissional, política, etc.
Estamos a falar de qualidade da vida em sociedade, estamos a falar de qualidade da democracia, estamos a falar de enriquecimento da democracia, enfim, estamos a falar de uma coisa que me irrita particularmente que é qualquer ideia de que as mulheres fazem melhor. Não é nada disso. Não estou a falar de coisíssima nenhuma, as mulheres são tão capazes de fazer bem como de fazer mal, como os homens são capazes de fazer bem e de fazer mal. O problema também não é uma questão de competência, de valor, do que quer que seja porque também é um disparate, como é evidente, pensar que os homens têm mais competência, mais valor para falar de política do que as mulheres têm.
É evidente que não é assim, é evidente e basta olhar para a representação política que tem existido, que existe, para aqueles e para aquelas que fazem política para se perceber perfeitamente que não é nada disso de que a gente está a falar.
Há, portanto, um discurso oficial permanente a que temos assistido e há uma prática que é diferente a que
também temos assistido.
Julgo, hoje, e cada vez mais — aliás, há dias publiquei umas pequenas palavras num jornal diário — que o problema já não é só de compatibilização entre os vários aspectos da vida das pessoas, porque cada vez mais a gente vê mulheres e, em particular, mulheres jovens com altas qualificações académicas, em termos de educação, assumirem vidas profissionais muito complicadas de compatibilizar com aspectos da vida familiar.
E também olhando para os números, para a evolução da natalidade, da taxa de fertilidade em Portugal, vemos que há coisas que estão a acontecer. Vemos que, cada vez mais, as mulheres estão dispostas a fazer outras coisas.
O que não temos visto é estruturas partidárias cada vez mais dispostas a receber mais mulheres. E isso perturba--me particularmente, devo dizer, em relação às juventudes partidárias. Julgo que há aqui um entrosamento entre esta questão e uma outra que é a da renovação "do pessoal político, a da vontade dos cidadãos em geral e, em particular, dos cidadãos a quem reconhecemos mais qualidade em quererem fazer política.
Ora bem, nesta situação, com estas dificuldades, com esta enorme diferença entre a participação na vida política das mulheres e o que já é hoje a participação na vida social das mulheres em tantas outras coisas, fazer o quê?
A Constituição, do meu ponto de vista, é hoje mais exigente. Não diz necessariamente «faz-se isto ou faz-se aquilo», mas diz «tem de se fazer alguma coisa».
Não discuto do ponto de vista da legitimidade
constitucional o estabelecimento dc mínimos quantitativos
de participação das mulheres em órgãos de participação política. Não discuto a questão do ponto de vista da legitimidade constitucional. Tenho alguma dúvida em relação à questão de uma necessária ordenação nas listas de uma maneira ou de outra, mas não vou pôr a questão do ponto de vista da legitimidade constitucional. E acredito que, num determinado momento, pode ser necessário que a lei faça exigências deste tipo.
A minha reflexão ainda vai noutro sentido e vai sobretudo no sentido daquilo que com mais eficácia temos visto fazer noutros países. E volto à questão que o Sr. Prof. Jorge Miranda levantou da auto-regulação partidária.
Em Portugal já houve uma tentativa e essa tentativa não teve resultados ainda muito visíveis. Tem havido discursos oficiais, a questão hoje está a ser falada e, do meu ponto de vista, excessivamente em cima de eleições que, como sabem, vão ter lugar este ano. Porventura, esta grande proximidade já de eleições dificultará um pouco as coisas, e há uma certa tradição entre nós de não mudar as regras sobre as eleições, em cima da respectiva realização.
Mas, pela primeira vez, em Portugal — ainda excessivamente apenas entre mulheres — estas questões estão a ser discutidas de uma maneira mais activa e mais participada.
Apesar de saber que até agora isso não resultou senão em termos muito limitados, preferia ainda que os partidos fizessem, de uma maneira mais ou menos entendida entre eles, um esforço de auto-regulação neste domínio. Reparem que é aos mesmos partidos a quem cabe, na Assembleia
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da República, votar ou deixar de votar esta proposta de lei ou qualquer outra de sentido parecido, que cabe apresentar listas de candidaturas à Assembleia da República ou ao Parlamento Europeu, no nosso sistema.
Eles têm o exclusivo da apresentação das candidaturas. E, portanto, podem escolher actuar de uma maneira ou da outra. Escolher obrigar através de lei a funcionar de uma determinada maneira ou escolher internamente actuar de uma outra determinada maneira.
Julgo que, neste momento —e em particular porque estamos muito perto de eleições —, preferia ainda imaginar que seja possível que os partidos políticos sejam capazes de nas eleições deste ano demonstrar um comportamento qualitativamente diferente daquele que aconteceu no passado.
Estou a falar da minha preferência pessoal, mas não tenho dúvidas que, a não ser possível ir mais longe nisto, é'legítimo do ponto de vista constitucional e é legítimo do ponto de vista dos princípios da razoabilidade, daquilo que é aceitável, que o legislador vá mais longe do que até agora, se é que foi a algum sítio neste domínio em termos de exigências do que quer que seja.
Não tenho dúvidas de que está aqui'em causa uma questão de qualidade da democracia representad va, uma questão de enriquecimento da democracia representativa. Não porque as mulheres fazem melhor e os homens fazem pior, mas porque um povo que tem mais de 50% das mulheres entre si não pode verdadeiramente senür-se, do ponto de vista substancial, razoavelmente representado por órgãos de representação política onde, como hoje na Assembleia da República, as mulheres são apenas 12% daqueles que intervêm.
E como todos aqueles que temos andado muitos anos a falar e a estudar estas questões, se um número muito elevado, hoje, de mulheres eleitoras, em todos os países, já introduziram modificações muito importantes naquilo que é politicamente relevante e naquilo com que os políticos têm de se preocupar quando tomam decisões políticas, ainda estamos muito longe de uma modificação qualitativa ocorrer também ao nível da representação, o que sabemos só acontece com um nível razoavelmente mais elevado de mulheres nos órgãos de representação política.
Parece-me perfeitamente legítimo que se tomem medidas destinadas a que se avance neste sentido. Neste momento e a esta distância de eleições, preferia que os partidos políticos portugueses ainda fossem capazes de, através de medidas internas, as segurar uma modificação substancial na representação de mulheres no Parlamento Europeu e na Assembleia da República do que aquela com que podemos contar hoje.
3 — Depoimento da Prof.' Doutora Lúcia Amaral:
Gostaria de introduzir a minha perspectiva sobre este tema e a minha participação,, com muito gosto, na comissão de trabalho que elaborou o estudo, contando, se me permitem e se não é fastidioso, uma pequena história, uma petite histoire pessoal.
Prestei há pouco tempo provas de doutoramento na Universidade de Lisboa, em Direito,- e estava a assistir às minhas provas uma tia minha com mais de 70 anos que, como todas as mulheres da sua idade ou a esmagadora maioria das mulheres da sua idade e da sua geração, não teve acesso a uma instrução superior, nunca viveu fora de casa, nunca participou na vida social, económica ou cultural. E assistia às minhas provas.
No fim, quando me cumprimentou calorosa e muito simpaticamente, disse-me uma coisa que me embaraçou,'
de uma forma extraordinária, e que me deixou estupefacta. Disse-me: «Menina, agora compreendo porquê é que o direito é só para homens.»
Deixou-me, de facto, embaraçadíssima e estupefacta porque, aos olhos da minha tia, eu tinha-me comportado naquelas provas como um homem, isto é, ela associava aos homens o calor do debate, que é próprio da nossa área cultural e científica, o dramatismo da prova, que é próprio da vida universitária, e, portanto, a combatividade que eu tive de exprimir.
Ela não associava, psicológica, cultural e afectivamente, tudo isto à feminilidade e, portanto, tinha partido do princípio de que eu tinha revelado uma nova faceta para ela desconhecida. E uma faceta algo perturbadora para a minha própria identidade, que implicava uma qualquer alteração de género.
Permito-me contar esta pequena história pessoal apenas para vos recordar que o problema de que estamos a tratar é um problema de uma complexidade humana imensa. Humana para mulheres e para homens, que tem implicações de representações culturais e psicológicas, que transcendem em muito a questão específica da representação política, mas que, de algum modo, o domínio do poder, o domínio da participação nos órgãos de representação política é o domínio onde todas estas questões parecem de forma «progressística».
E contada esta pequena história, conto também, se me permitem, a minha história de participação no grupo de redacção e a minha história da mudança de perspectivas sobre esta questão.
Quando comecei a trabalhar, com muito gosto, sob a presidência do Prof. Jorge Miranda e em colaboração com a Dr." Maria Leonor Beleza, com o Prof. Vital Moreira e com a Prof.* Luísa Duarte sobre esta questão, tinha, em relação ao tema, tão feio, e ao nome, tão feio, das quotas uma posição de rejeição total. E a minha posição de rejeição total, para além de questões de indignidade ou de humilhação pessoal, que para o caso não interessam minimamente, o meu princípio de rejeição baseia-se, fundamentalmente, no seguinte: eu estudo e ensino Direito Constitucional e sei que o pensamento reaccionário francês do século xix, que quis combater tudo aquilo que a Revolução Francesa gerou no património do constitucionalismo moderno e que fez aquilo que nós, hoje, somos e que explica que, aqui, hoje, nós estejamos a conversar o pensamento reaccionário francês, pela mão de um dos seus grandes próceres, Joseph de Maistre, que costumava rir-se do artigo 1° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que diz que «todos os homens nascem livres e iguais em direitos», dizendo: «Homem, ser humano, nunca tal vi. O que eu conheço é franceses, ingleses, russos e alemães.»
Se nós hoje aqui estamos e se vivemos da forma como vivemos, é precisamente porque conseguimos o grau de abstracção que permite que nos concebamos como seres humanos que num determinado território formam um povo que elege e que é eleito. O que a mim me custava era admitir que essa conquista civilizacional que implica uma recusa de concretização, da distinção entre o género humano, fosse para a mais alta e nobre função que é a função de eleger, negada pela divisão do povo entre homens e mulheres, com consequências políticas.
Era isso que mais me custava porque, de algum modo, isso implicava um recuo na capacidade de abstracção que fez a nossa riqueza civilizacional.
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Não tinha a menor dúvida sobre a legitimidade constitucional como o Prof. Jorge Miranda e a Dr.° Leonor Beleza também disseram. O problema sob o ponto de vista de direito positivo não se coloca porque o artigo 109." autoriza que se faça essa distinção e coloca a realização da igualdade substancial entre homens e mulheres como o princípio constitucional que conflitua e que autoriza a limitação do princípio da indistinção, no povo que elege, entre homens e mulheres e, portanto, da indistinção do cidadão. Autoriza que no conceito de cidadão se faça essa distinção e, portanto, não é sob o ponto de vista de direito positivo que o problema se coloca. O problema a mim colocava-se sob o ponto de vista dos princípios, parecia-me que era uma cedência má, que era o primeiro reconhecimento de que podíamos deixar de ser um povo para passarmos a ser uma espécie de um conglomerado de fracturas.
Portanto, era esta a minha posição de início e era esta fundamentalmente a razão pela qual eu achava o mecanismo das ditas quotas uma coisa insustentável.
Mudei de ideias. Mudei de ideias quando vi e quando percebi que há duas coisas mais insustentáveis e mais feias.
Em primeiro lugar, a grande razão para fealdade e coisa perfeitamente insustentável. Somos uma sociedade que teve uma intensidade de mudança em 24 anos perfeitamente singular no quadro europeu. É preciso não esquecer que, de acordo com estatísticas do Eurostat, nós estamos em primeiro lugar, à frente dos países escandinavos, quanto à intensidade de participação feminina no ensino universitário superior, estamos em terceiro lugar em todos os países da União Europeia quanto à intensidade de emprego feminino, quanto à intensidade de participação das mulheres na vida económica, na vida social e na vida cultural.
No domínio da representação política, pouco ou nada mudámos. Durante a década de 80, chegou a haver no Parlamento menos mulheres do que aquelas que havia na Assembleia Nacional a 24 de Abril de 1974. Isto quer dizer alguma coisa. De todo o modo não é uma situação normal, não é normal viver assim.
Em segundo lugar, não é normal, nem salutar, viver numa sociedade onde a política e os políticos são uma actividade e uma classe desprestigiada e desprestigiante. Algo corre mal, algo vai mal, num país que se governa ou que se quer governar desse modo e é preciso mudar, é preciso reformar e é preciso começar por algum lado.
Há, portanto, dois indícios de que algo vai mal na nossa sociedade e nos nossos institutos de representação política. E, por isso, pareceu-me mais importante tentar, em nome do interesse de todos, em nome do interesse público e em nome da democracia, reformar o que vai mal, fazer alguma coisa e não se deixar afectar excessivamente por questões de princípios. A história encarrega-se de os fazer, de os modelar, de os limar, de os transformar.
Pareceu-me também que, sendo as quotas uma coisa indiscutivelmente feia, paieceu-me por tudo isto um corrector histórico, transitório, indispensável. E pareceu--me também que é talvez urh dever cívico fazer alguma coisa e não deixar que a coisa se faça pelo decurso do tempo, que me parece que não é certo que funcione como corrector.
4 —Em resposta a perguntas de Deputadas e Deputados, foi declarado o seguinte:
a) Pela Sr.° Prof." Doutora Lúcia Amaral: Em primeiro lugar, suponho que todo o grupo de trabalho estabeleceu uma ligação entre este estudo que fez com proposta de resolução do problema da participação
feminina nos órgãos do poder, com o problema mais vasto da saúde e da qualidade da nossa democracia e também com o problema mais vasto da inevitável reforma das nossas instituições políticas.
E para mim claro e suponho que o será também para os outros membros do grupo que as duas questões estão indissoluvelmente ligadas, por várias razões.
Sob o ponto de vista jurídico, é claro que a revisão de 1997, que introduziu a autorização constitucional para que este mecanismo fosse consagrado em lei, a revisão de 1997, tem um sentido global e uma justificação e uma razão de ser global e a sua razão de ser global é a de reformar a Constituição de modo a atalhar a um processo que todos nós verificamos de erosão das instituições representativas e que é um processo que pode ser fatal e perigoso.
Há diversas formas de atalhar esse processo de erosão das instituições representativas, sendo que uma delas pode ser a de aproximar mais intensamente o representante do representado. E a maior participação feminina nas instâncias últimas de decisão política tem que ver com essa maior aproximação entre o representante e o representado e é um remédio essencial para atalhar esse processo de erosão das instituições representativas que existe e que tanto existe que foi reconhecido pelo legislador de revisão.
Poder-se-á discutir se esta, nomeadamente a concreta medida das quotas, é ou não a boa solução. Agora, ela não é introduzida para satisfazer interesses parcelares. Houve no debate público argumentos apresentados que me causaram alguma indignação, como se esta medida viesse satisfazer interesses das mulheres ou interesses de grupos. Não é nada disso. Nós o que estamos a cuidar é do interesse público. E esta é uma medida de interesse público. Só assim ela é pensável. E é uma medida de interesse público porque, antes do mais, se justifica constitucionalmente como uma forma de melhorar a qualidade de representação política. E melhorá-la, tornando-a mais próxima do mundo que é a sociedade que visa representar.
Em segundo lugar, esta questão é muitíssimo importante e, por isso, foi tantas vezes colocada. Mas, por que é que o problema existe? Por que é que a sociedade portuguesa mudou no domínio da economia, no domínio da cultura, no domínio das mentalidades? Por que é que as mulheres estão por todo o lado e não estão na política?
Sr.a Deputada, tenho alguma dificuldade em lançar-me por estes caminhos porque são meras intuições e tenho muita dificuldade em aderir a generalizações e lugares comuns. Mas, de facto, o que a vida me tem ensinado é que as mulheres são um bocado diferentes no domínio da ambição. Realmente, os filósofos medievais falavam em libido dominandi, em prazer de dominar, e falavam só para os homens porque, obviamente, as mulheres nem ficavam no seu universo de indagação.
Portanto, é evidente que quando eles falavam em libido dominandi, como um dos grandes pecados da humanidade, o prazer, o gosto de mandar, estavam a pensar só no gosto dos homens de mandar. A verdade é que eu acho que talvez esse gosto seja masculino, não sei, mas talvez essa ■ libido seja masculina ou talvez seja porque as mulheres ainda não tiveram ocasião de a exercer. Não faço a menor ideia.
Por uma coisa ou pela outra, sinto uma libido diferente nas mulheres, isto é, sinto que a nossa ambição é realmente muito mais a ambição de mudar, de ter um projecto, do que de alcançar o poder pelo poder. Talvez seja nota
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generalização abusiva, mas sinto-o, quotidianamente, na minha vida. É muito difícil dizer que há formas femininas de ver as coisas. Fala-se hoje de uma literatura feminina, não sei se se poderá falar de uma política feminina. Não faço a menor ideia. Mas é um pouco como as bruxas: «Non creo que las ay, pero que las ay las ay.» Talvez noutra... mas que há uma diferença, há. De onde é que ela vem, não sei.
Seria, no entanto, muitíssimo salutar —para voltar ao primeiro ponto — para que mude a imagem dos políticos, sobretudo para que quem representa esteja mais próximo do representado, que déssemos uma oportunidade para quem' tem um estilo diferente porque tem, tentássemos um pouco mudar as coisas.
b) Pela Sr." Dr." Leonor Beleza:
Se me permitem, gostava de voltar ainda a esta questão de saber porque é que há ainda tão poucas mulheres na política, para o que já tentei ensaiar um pouco uma explicação.
Ouvi uma vez um homem, o Dr. Albino Aroso, que provavelmente todos sabem bem quem é, dizer que «a realização das mulheres era assim uma espécie de uma mesa com vários pés porque era o pé da família, o pé da sociedade e o pé da profissão e o pé mais não sei de onde, e aquilo que as mulheres sentiam como a sua realização era, porventura, mais exigente e tinha mais pés do que, porventura, aconteceria com muitos homens (sem ofensa para ninguém)». Isto é, a ideia de que a carreira é muito importante para os homens e não é muito importante para as mulheres, talvez não a visse bem assim. A carreira é seguramente muito importante para muitos homens, mas o que acho é que as mulheres além da carreira, se calhar, precisam de outras coisas e como a explicação é dada por um homem, eu transmito-a porque me pareceu que ele tem, sob muitíssimos aspectos, uma enorme felicidade na forma como vé estas coisas e na forma como entende os problemas das mulheres. E quando ouvi esta explicação, achei que ele estava exactamente a acertar, não tanto porque as mulheres não têm ambição de carreira e não querem ter uma carreira política, ou profissional, distinguir--se, prestigiar-se, o que quer se seja, mas é porque —e não sei bem porque — eu acho que as mulheres mais dificilmente se sentem realizadas se não correrem bem várias coisas ao mesmo tempo.
Acho que isto, depois, também tem muitas consequências: a organização do tempo e a noção de que não há tempo a perder se calhar é uma coisa diferente. E toda a gente que já fez política sabe que a política se perde tantas vezes no tempo e nas horas e nas reuniões que não são à hora que era para ser e que começam agora mas que deveriam ter começado duas horas antes e que sabe Deus a que horas é que acabam e em que se pode combinar, de repente, modificar completamente o programa que estava previsto para o dia a seguir e que o que não muda são outras horas a que as pessoas estão sujeitas e a que a vida das pessoas está sujeita.
Outro dia, ouvi uma mulher exprimir, com muita graça, que quando uma mulher precisa de sair do emprego a uma certa hora para fazer uma coisa qualquer, para ir buscar um filho, concretamente, convém dizer que é porque «tenho o carro na garagem a arranjar e tenho que o ir buscar» porque isso é bem visto, isso não levanta problemas nenhuns. Mas ir buscar o filho é uma coisa, de facto, pouco condizente com o estatuto profissional e/evado. ír buscar o carro que está na revisão, enfim, é uma coisa aceitável e compreensível.
O exemplo é um pouco por brincadeira, mas acho que a diferença está, talvez, mais nisto e talvez nos sintamos com mais dificuldades quando estamos a trabalhar e sabemos que o filho está a espera que a gente o vá buscar ou que não fez não sei o quê ou que tem um exame e que precisa de ajuda ou qualquer outra coisa. E quando
está a tratar do filho está a pensar que, no outro lado, era preciso dizer que ... Tenho essa experiência pessoal de como é muitas vezes difícil conciliarmos na nossa cabeça simultaneamente as coisas todas que nos são pedidas para que sintamos que está a fazer aquilo que tem de fazer. Ou então, estamos culpadas porque, se calhar, é mais verdadeiro.
Acho que esta é uma parte da história. É evidente que a história da conciliação e do que ainda é larguissimamente pedido às mulheres na sociedade portuguesa, em termos de responsabilidades familiares, é um obstáculo «eficacíssimo» a que se façam muitas outras coisas. E evidente. As coisas mudaram muito, as mulheres têm acesso à educação, têm acesso ao emprego, têm acesso a mais não sei quê, mas espera-se sempre delas que governem a casa, que assegurem que toda a gente em casa come, que os meninos vão para o colégio, que fizeram os deveres e por aí fora.
Isso espera-se, normalmente, das mulheres e ainda se espera muitíssimo mais das mulheres do que dos homens. Há, aqui, de facto, um ponto... E é por isso que eu dizia que o discurso da prevalência das responsabilidades políticas e profissionais sobre as familiares e dos imensos sacrifícios pessoais e familiares que faço para andar nesta vida é um discurso profundamente eliminador das mulheres na vida política.
Quando, na maior das calmas, se diz que «a minha família, coitada, é que perde imenso com isto»!... E que as mulheres não se podem dar ao luxo de deixar de fazer isso, nem lhes passa pela cabeça dar-se a esse luxo, por muito que, quando têm uma intervenção política pesada, de facto, tenham de comprometer outras coisas. Por muito que o façam. Mas não é um discurso, acho eu, que as mulheres facilmente olhem como positivo e acho até que é um discurso que as elimina com uma grande facilidade da vida política.
Ora bem, eu acho que há duas coisas que acontecem: há muitas mulheres a quem não passa pela cabeça meter--se na vida política. Muitas vezes eu vi fazer esforços para que haja mais mulheres nas listas e vi muitas mulheres a dizer que não querem e há inúmeros obstáculos na vida político-partidária a que haja renovação do pessoal político e que, nomeadamente, essa renovação se faça por via das mulheres.
Tenho, como sabem, uma experiência político-partidária de há muitos anos e sei como é que é feita a escolha das pessoas que se apresentam a determinados cargos, designadamente a cargos efectivos.
Essa escolha é participadíssima de alto a baixo nos partidos, isto é, os partidos têm estruturas concelhias, e depois distritais e depois nacionais e essas escolhas passam por essas estruturas todas e até acontece que, quando as eleições estão relativamente próximas, a vida interior partidária é, de uma maneira mais oculta ou mais aberta, orientada para essas escolhas e que, quando se chega relativamente pefto das eleições, há muita escolha já feita e escolhas a vários níveis. As pessoas são muitas vezes eleitas para as estruturas locais porque, em (roca, se sabe que vão indicar Fulano, Beltrano e
Sicrano.
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A vida partidária é feita disto e é por isso que é tão difícil aos partidos, até mesmo quando o querem fazer de cima, dizerem «as coisas são desta maneira». É que há
inúmeras estruturas, pequenos mecanismos. Todos os
partidos praticam quotas informais, todos os partidos consideram inadmissível que as listas de candidatos não tenham jovens, mas já não lhes faz nervoso nenhum que os jovens sejam todos do sexo masculino. Mas, repito, consideram inadmissível que não haja jovens.
Nas listas partidárias, em cada círculo, tem de haver uma repartição equilibrada das várias zonas desse círculo, nomeadamente nos grandes círculos eleitorais. É preciso que cada concelho se sinta razoavelmente representado. E os concelhos sentem-se suficientemente representados se houver candidatos que venham de lá. E também não lhes faz nervoso que sejam todos homens.
As quotas informais sempre existiram nos partidos políticos. São praticadas nos partidos políticos. Mas, ainda não houve suficiente força para que essas quotas informais também sejam praticadas em relação às mulheres.
Julgo que aqui há um mecanismo em dois sentidos: há, muitas vezes, mulheres que não querem; há, muitas vezes, estruturas partidárias variadíssimas que usam dos mecanismos mais visíveis ou mais ocultos ... Porque, reparem: quando se pensa fazer uma lista para um determinado distrito, para um determinado.círculo eleitoral, há aqueles que já lá estavam, aqueles que já são os que foram candidatos por esse distrito. Ora, o primeiro problema é saber--se se são aqueles ou outros. Se aqueles que já lá estão são, na sua enorme maioria, homens e se se trata de colocar mulheres na lista, as modificações são muito maiores, não é verdade? E portanto, os mecanismos de inércia dificultam imensamente que haja substituições.
Não sei se as mulheres têm menos ou mais ambição. Acho que numa assembleia, como são as realizadas nos partidos políticos, onde estas coisas se discutem e onde, normalmente, estão muito poucas mulheres, é capaz de ser mais complicado que se faça ouvir o barulho da ambição dessas mulheres. E capaz de ser mais complicado. E toda a gente que estuda estas coisas sabe que a partir de um certo nível de participação das mulheres nessas assembleias as coisas se modificam — fala-se normalmente à volta dos 30 % —, quer em termos de práticas porque passa a ser menos necessário explicar-se que se vai buscar o carro que está na garagem porque as pessoas percebem todas bem que os meninos não podem ficar abandonados na escola ou em casa ou onde quer que seja até à tantas. Há uma maior dose de aptidão e de capacidade e disponibilidade para perceber essas coisas, como também, se calhar, se considera mais normal que as mulheres exprimam as suas ambições várias com a mesma liberdade com que, se calhar, os homens são capazes de as exprimir.
Tendo a acreditar que há coisas que são diferentes entre as mulheres e os homens. Tendo a acreditar isso. Mas também há mulheres que funcionam de uma maneira e há homens que funcionam de outra e o que é extremamente diminuidor, se calhar, é que é capaz de haver muito menos mulheres com a mesma liberdade de exprimir publicamente a sua ambição que os homens sentem. E isto, se calhar, resulta de um mecanismo muito complicado.
Mas, acho que há um conjunto de coisas que explicam estas dificuldades todas e que, hoje, como também dizia a Dr.º Lúcia Amaral, já não é só uma história de dificuldade de conciliar todas as coisas porque há inúmeras mulheres profissionais em campos onde as conciliações são muitíssimo complicadas. Acho que há uma questão de
prestígio da política, de prestígio dos políticos, de desejo
de fazer uma vida política encarada como um factor de
realização pessoal e não um factor de exposição excessiva e de uma série de problemas que, porventura, se não
arranjam numa outra vida qualquer.
E este é um problema em que se cruzam.duas coisas diferentes, que é a falta de participação das mulheres e a necessidade absoluta de que a vida política e os políticos encontrem meios de renovação e meios de chamar os melhores de cada sociedade a participar.
Acho que isto é muito complicado e não tenho mais do que ensaiar respostas para estas coisas. A única coisa que posso dizer é que já vi muita coisa: já vi, muitas vezes, direcções partidárias, ao mais alto nível, tentar impor às listas apresentadas por direcções partidárias a outros níveis uma maior participação de mulheres e levantarem-se milhares de dificuldades, como: «Então o concelho X fica sem ter alguém!? Então, a Jota fica sem ter ninguém!? Então, o não sei quê de ninguém!? E não há vozes ainda, nem dentro nem fora dos partidos, que digam: «Então, e as mulheres!?»
Oiçam uma coisa: se nalgum país nórdico algum partido se atrevesse a apresentar listas eleitorais sem mulheres, estava votado ao fracasso porque as pessoas não votavam. Esta é uma questão entre os partidos e a sociedade em geral. Não quero dizer que as culpas são daqui ou dali. É entre a percepção que os partidos têm do que é que a sociedade espera deles e entre a forma como os partidos, também, por dentro, estão dispostos a fazer as coisas avançarem.
Repito, a escolha dos candidatos na Assembleia da República e no Parlamento Europeu é, hoje, entre nós, exclusivamente uma escolha dos partidos. São os mesmos partidos que têm, na Assembleia da República, de votar ou deixar de votar leis num ou noutro sentido. Más os partidos também funcionam em função da percepção que têm 'sobre o que a sociedade exige ou deixa de exigir.
Desculpem-me mas gostava de ver as mulheres portuguesas fazerem um pouco mais de barulho, se calhar, e irem um pouco mais longe em acharem estranha esta coisa de os partidos continuarem a achar que podem apresentar listas compostas só de homens.
Como é que uma maior visibilidade da participação das mulheres em certos órgãos políticos pode levar à maior participação das mulheres em geral? Bom, acho que aqui há um efeito de demonstração e de normalidade que se vai instalando que também empurra para uma maior normalidade noutras coisas.
O grupo de trabalho funcionou em cima da hipótese da Assembleia da República, mas a questão põe-se a muitíssimos outros níveis. Provavelmente, era impossível pensarem, de repente, fazerem exigências a todos os níveis da participação política. Aquilo que nos foi dado que pensássemos foi, basicamente, da Assembleia da República, mas, enfim, o grupo teve consciência de que o problema se punha a muitos outros níveis. Isso está escrito nos documentos que existem.
É provável que se na Assembleia da República houver um número mais substancial de mulheres Deputadas, mais mulheres se disponham a ser autarcas, se disponham a participar nas estruturas partidárias, e que os partidos também sintam a maior necessidade de fazer isso. Há aqui, enfim, efeito que nos pede demonstração recíproca que possa vir, de certa maneira, a acontecer.
Por fim, só mais um pequeno problema que tem a ver com a questão das listas e dos resultados.
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É claro que as coisas são diferentes em relação aos partidos que têm maior representação parlamentar e aos partidos que têm menos representação parlamentar e aos círculos eleitorais grandes e aos círculos eleitorais pequenos, sobretudo com o titulo do mecanismo que está proposto na proposta de lei para assegurar alguma igualdade de resultados porque a questão da ordenação nas listas, que é, enfim o tipo de medida aqui proposta, funciona de uma maneira muito diferente consoante as perspectivas do número de Deputados que cada partido tem ou, enfim, a capacidade de eleição de cada partido em cada círculo eleitoral. Isto é, pode ter eficácia nos círculos eleitorais grandes, para os partidos que elegem muitos Deputados; tem dificilmente eficácia, ele próprio, para os círculos eleitorais grandes para os partidos que elegem poucos Deputados e provavelmente nenhuma nos círculos eleitorais muito pequenos onde nenhum partido pode eleger muitos Deputados.
Agora, isto tem a ver com os mecanismos que são estabelecidos e é uma simples reflexão em relação a isso.
c) Pelo Sr. Prof. Jorge Miranda:
Vou fazer uma intervenção muito curta, por um lado, por causa da falta de tempo e, por outro, porque muitos dos pontos que foram tocados nas intervenções dos Srs. Deputados já foram objecto de resposta por parte da Sr." Prof. Lúcia Amaral e da Dr.° Leonor Beleza.
Começaria por este último ponto que a Dr.° Leonor Beleza referiu.
Os partidos, as direcções partidárias têm vontade de promover maior participação das mulheres nas listas de candidatura e não conseguem por razões que foram aqui também magnificamente expostas. Mas isso, a meu ver, é um motivo para que haja uma intervenção legislativa.
É um pouco também o que acontece na universidade. Falo por experiência própria. Há muitas problemas em relação aos quais não se conseguem soluções satisfatórias se se confiasse só no princípio da autonomia universitária. Falo contra mim. Há tendências corporativas extremamente fortes nas universidades. Toda a gente sabe. Há medidas \egis\at\vas que toda a gente considera que seriam altamente convenientes para melhoria do sistema de ensino e que não são adaptadas porque se invoca contra elas o princípio da autonomia.
Já o saudoso Prof. Miller Guerra dizia há 30 anos que as universidades não se auto-reformam. E realmente isto, penso, tem-me mostrado isso. Se o legislador não intervier através da imposição de determinadas providências ou através da criação de novas universidades, não se consegue a reforma.
É um pouco também o que acontece com muitos dos problemas que se põem a nível dos partidos porque também há tendências corporativas a nível dos partidos.
Uma coisa que me causa imenso espanto é o facto de, em Portugal — e suponho que é o único país —, as juventudes partidárias constituem verdadeiros grupos parlamentares. Não conheço nenhum outro país (mas talvez esteja enganado) em que haja juventudes partidárias que funcionam com uma enorme autonomia, como se tem visto.
Ora bem, há quotas para as juventudes partidárias, para os municípios, etc, e os partidos não conseguiram ainda estabelecer uma representação adequada das mulheres, o que é um sinal de que a auto-regulação não é suficiente. Isto tem que ver com a reforma do sistema político de que falou a Prof.* Lúcia Amaral.
Realmente, este é um dos pontos de reforma do sistema político. Até diria, se me permitem, que esta legislatura que vai agora terminar, abriu com a ideia de uma reforma
do sistema político, fez-se uma reforma constitucional aparentemente em nome da reforma do sistema político. Esta é talvez a única medida legislativa da reforma do * sistema político que se vai fazer.
Vamos perder essa oportunidade? É a pergunta que aqui deixaria formulada.
Sobre «democracia paritária» e o motivo por que se afastou a ideia de democracia paritária, diria que se afastou a ideia de democracia paritária, conforme se lê no preâmbulo da proposta de lei, porque a democracia paritária poderia apontar para um fraccionamento da representação política e da titularidade do poder no povo e, portanto, para um fraccionamento da Assembleia.
Não se vai dizer que o povo português é formado por homens e mulheres, simplesmente no sentido de dois povos: um povo português masculino e um povo português feminino. Não há dois povos portugueses, há um só povo português. A ideia de paridade poderia inculcar essa ideia de uma divisão, de uma separação.
Ora, não se trata, como também se diz na proposta de lei, de segregar mas, pelo contrário, de integrar.[...]
anexo rv
Posição comum das organizações não governamentais do Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.
Sobre a proposta de lei n.° 194/VH, que visa garantir uma maior igualdade de oportunidades na participação de cada sexo nas listas de candidatura apresentadas às eleições para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu quanto aos Deputados a eleger por Portugal.
Ao longo dos mais de 20 anos de actividade conjunta, as organizações não governamentais de defesa dos Direitos das mulheres representadas no Conselho Consultivo da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres têm desenvolvido uma acção permanente com vista ao aumento da participação política das mulheres. Todavia, confrontaram-se com um discurso de intenções político que, sendo quase sempre favorável a este objectivo, nunca se traduziu em alterações significativas do status quo.
Assim sendo, a iniciativa legislativa do Governo introduz uma mudança qualitativa no tratamento político desta matéria que se entende ser de saudar.
Em finais da década de 80, o Conselho da Europa, fundamentando-se na dualidade intrínseca e concreta mulheres-homens da humanidade, produziu um contributo importante para a doutrina que suporta a acção neste domínio ao introduzir no debate um novo conceito, o conceito de democracia paritária, que enunciou nos seguintes termos:
o conceito de democracia paritária implica a plena integração da mulher, em pé de igualdade com o homem, em todos os níveis e em todos os aspectos do funcionamento de uma sociedade democrática a qual deverá ser realizada através de estratégias multidisciplinares. [Cf. o mandato do Grupo de Especialistas sobre Igualdade e Democracia citado no respectivo Relatório Final de actividade — Conselho da Europa, 1995.]
Relativamente à participação política, consolidou-se um consenso em torno de um' patamar mínimo de representa-
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ção de mulheres e homens, o chamado limiar de paridade. Definido em 40% de representação mínima para ambos os sexos, considerou-se que este é o limiar a partir do qual a realização da democracia paritária é exequível e preconizou-se uma estratégia de metas quantitativas progressivas até que a paridade passe a constituir um princípio tão estruturante do ordenamento das sociedades democráticas como o sufrágio universal, a separação de poderes e o primado da lei.
Não se trata, portanto, de quotas, ou seja, de medidas especiais temporárias, destinadas a corrigir desequilíbrios circunstanciais ou efémeros ou a promover categorias sociais ou grupos minoritários, mas antes da aplicação de uma medida de forma real e permanente.
Na sequência do debate sobre o aprofundamento da democracia, empreendido pelo Conselho da Europa, e cujas conclusões são um assinalável contributo para o avanço da doutrina, as organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres tomaram consciência de que a exclusão de mais de metade da população do efectivo exercício da cidadania, sendo uma violação dos direitos humanos, constitui igualmente um grave défice democrático, cujas repercussões atingem não apenas as mulheres, elas próprias, mas a sociedade no seu conjunto e a qualidade de vida das pessoas e da comunidade.
De facto, a disparidade entre o avanço permanente da participação das mulheres em quase todos os domínios da sociedade e a estagnação da sua participação nas instâncias de decisão política é, a todos os títulos e cada vez mais, inaceitável. Dirigindo-se as leis e as políticas a todos sem excepção, poderá legitimamente interrogar-se se a ausência das mulheres nas estruturas de poder não resulta na inadequação da decisão às realidades concretas, no aprofundar do fosso entre eleitos e eleitores e, porventura, no agravar do perigoso descrédito das instituições democráticas junto da opinião pública.
Reafirmando a sua unanimidade em torno do conceito da paridade, tal como é definido pelo Conselho da Europa, as organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres consideram que a proposta de lei em audição apenas serve parcialmente este conceito. Antes tratando-se de medida paliativa à sub-representação das mulheres, como se o poder político, no seu exercício legislativo, estivesse dividido entre, por um lado, a sua má consciência de actor privilegiado do sistema e, por outro, os preconceitos dominantes.
De facto, a «Exposição de motivos» que sustenta o articulado não só omite os argumentos dos textos de referência sobre esta matéria como enferma de vários equívocos, dos quais o mais grave diz respeito à definição de democracia paritária, sobre a qual levanta uma suspeição inteiramente infundada, baseada em pressupostos absurdos, num verdadeiro processo de intenções tanto mais despropositado quanto nem as organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres nem as personalidades que advogam a realização de uma democracia paritária jamais se pronunciaram por forma a autorizar a dedução das conclusões apresentadas. Sugere-se a leitura do documento do Conselho da Europa atrás citado que desenvolve o conceito de democracia paritária em termos totalmente opostos aos da proposta de lei.
Sobre esta matéria, as organizações não governamentais defesa dos direitos das mulheres entendem manifestar a sua enorme perplexidade, tanto maior quanto o responsável governamental pelo dossier da lei eleitoral se pronunciou
frequente e publicamente dentro dos mais correctos parâmeuos doutrinários, (v. intervenção do Ministro dos Assuntos Parlamentares na sessão plenária da Assembleia * da República de 14 de Janeiro 1998), e chamam a atenção para o mau serviço que se presta ao debate generalizado na sociedade sobre o aperfeiçoamento da democracia quando se recorre a uma terminologia consagrada, como «democracia paritária», para lhe atribuir uma definição errónea, sobre ela emitir juízos abusivos e dela se deduzirem ilações absolutamente despropositadas.
Uma mais rigorosa fundamentação do articulado da proposta de lei teria, porventura, evitado a polarização de uma polémica em torno da questão das quotas.
Ainda relativamente à proposta de lei, as organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres entendem qué:
1 — Quanto ao âmbito, não se encontra fundamento para a sua não aplicação às Assembleias Regionais e aos órgãos colectivos do poder local o que poderá vir a conduzir à impugnação das listas apresentadas a estes órgãos por omissão inconstitucional. Acresce que esta exclusão de aplicação vem, afinal, contradizer o discurso político até agora dominante que entendia ser salutar exigir às mulheres o cumprimento de um percurso político que exactamente se iniciaria no poder local. Salutar exigência, à qual, de resto, a maioria dos actuais quadros políticos nacionais foi até agora poupada...
2 — Quanto às metas percentuais preconizadas, há que considerar que, não estando prevista uma obrigação de resultados, a atribuição dos mandatos, decorrentes do escrutínio dos votos validamente expressos, determinará a constituição de órgãos de decisão que, nem mesmo no quadro limite mais favorável de aplicação desta lei, beneficiarão de uma participação feminina a um nível mínimo gerador de massa crítica relevante, ou seja, um terço. Isto é, para a presente proposta de lei, não só o limiar de paridade não constitui um objectivo a prosseguir, como nem em 2007, esgotada a vigência, o nível mínimo de massa crítica estará garantido!
Ao estabelecer um calendário tão distendido no tempo e metas tão tímidas quase se poderia afirmar, sem perigo de incorrer em injustiça, que a geração que actualmente detém o poder não aspira a partilhá-lo no seu horizonte de vida política!
3 — Quanto às disposições visando estender às Deputadas e aos Deputados os direitos já consagrados na lei geral no que respeita à maternidade e paternidade, considera-se correcta a sua extensão; todavia, não se entende:
Alcance do n.° 1. do artigo 3.°, de cuja formulação se podem deduzir aplicações que a lei geral não consagra;
Por que não se recorre ao rigor dos conceitos que a própria lei geral consagra e, ao invés de se referir apenas a maternidade, não se refere maternidade/paternidade.
4 — Por último, ao não estar prevista nesta proposta de lei uma disposição que, finda a sua vigência, garanta a continuidade dos esforços legislativos no sentido da igualdade de oportunidades no acesso aos cargos políticos conforme os comandos constitucionais, esta lei esgota-se num resultado final para o fim da 1." década do próximo milénio, que, a verificar-se — 33,3% nas listas de candidatura, que se traduziriam grosso modo em cerca de 25%
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dos mandatos —, nos manteria seguramente na cauda dos países com os quais permanentemente nos queremos comparar.
Em face de quanto antecede e manifestando a sua decepção relativamente às insuficiências legislativas do presente diploma, as organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres exortam a Assembleia da República a aperfeiçoar o presente diploma em sede de debate parlamentar por forma que ele possa constituir um contributo decisivo para:
Efectivo exercício da cidadania feminina, pela superação da sub-representação das mulheres nos níveis de decisão política;
A adequação das políticas e da produção legislativa ao universo a que se dirige;
A aproximação dos eleitos aos eleitores;
A credibilidade e prestígio das instituições democráticas; e para
O aperfeiçoamento e o aprofundamento da democracia.
As organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres, considerando que urge transpor para a lei ordinária o imperativo constitucional consagrado no artigo 109.°, entendem de igual modo urgente que o Governo acompanhe a presente iniciativa legislativa da definição e execução noutros domínios de políticas e de medidas concretas que contribuam também para o aumento da participação política das mulheres.
Finalmente, as organizações não governamentais de defesa dos direitos das mulheres manifestam a sua determinação em continuar a promover todas as acções ao seu alcance para a realização de uma verdadeira democracia, a democracia paritária, nos termos em que foi de facto definida pelo Conselho da Europa.
Lisboa, 26 de Janeiro de 1999. — As Organizações Não Governamentais de Defesa dos Direitos das Mulheres Representadas no Conselho Consultivo da Comissão para .a igualdade e para os Direitos das Mulheres: Aliança para a Democracia Paritária — Associação das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas — Associação Ana de Castro Osório — Associação de Antigas Guias — Associação dos Cônjuges dos Diplomatas Portugueses — Associação Convergência — Associação Guias de Portugal — Associação das Mulheres Agricultoras Portuguesas — Associação de Mulheres contra a Violência —Associação das Mulheres Empresárias em Portugal — Associação Mulher Migrante — Associação das Mulheres Que Trabalham em Casa—Associação de Mulheres Socialistas — Associação Nacional das Empresárias — Associação O Ninho — Associação para o Planeamento da Família — Associação Portuguesa de Cultura e Desenvolvimento — Associação Portuguesa de Estudos Sobre as Mulheres —Associação Portuguesa a Mulher e Desporto — Associação Portuguesa de Mulheres Empresárias — Associação Portuguesa de Mulheres Juristas —Associação para a Promoção das Mulheres e Famílias de Minorias Étnicas — Comissão de Mulheres da UGT—Comissão Nacional de Mulheres da CGTP-IN,— Cruz Vermelha Portuguesa — Departamento de Mulheres do PS — Departamento de Mulheres da UDP — Federação de Mulheres Empresárias e Profissionais de Portugal — Grupo de Estudos para o Desenvolvimento Sócio-Económico — GRAAL — GRAM — Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas — Intervenção Feminina —
MATRIA —Associação para o Desenvolvimento Cultural da Mulher — Movimento Democrático de Mulheres — Movimento Esperança e Vida — Mulheres do CDS-PP — Mulheres Portuguesas Sociais Democratas — Organização . de Mulheres Comunistas — Rede de Mulheres Autarcas Portuguesas — REVIVER — Associação de Solidariedade Social para a Recuperação de Mulheres Toxicodependentes — Soroptimist International — União de Mulheres Alternativa e Resposta — União Noelista Portuguesa.
ANEXO v
Posições assumidas por dirigentes partidários
1 —Engenheiro António Guterres (secretário-geral do Partido Socialista): a) Intervenção inicial:
O 25 de Abril modificou profundamente Portugal, e a Constituição da República deu expressão a essas mudanças históricas.
Tantos anos depois, resta ainda que a igualdade de direito se transforme em igualdade de facto. Em certos campos tal já acontece: as nossas jovens universitárias excedem já os seus colegas. Mas há uma área em que o progresso é nulo — o acesso a cargos políticos.
A presença de mulheres nos mais altos órgãos do Estado é extremamente reduzida e, preocupação maior ainda, ela é-o, significativamente, ao nível do exercício do poder político em termos locais. Se verificarmos o que hoje se passa no País, na generalidade das juntas de freguesia e das câmaras municipais, notamos que há também um número muito reduzido de mulheres no exercício de funções públicas decorrentes do voto popular.
Todos temos consciência de que se existe uma verdadeira igualdade perante a lei, as condições objectivas de funcionamento da nossa economia e da nossa sociedade, por um lado, e um conjunto de preconceitos ou, até se quiserem, de valores enraizados na nossa cultura não só não são favoráveis à participação e à intervenção política das mulheres como dificultam a igualdade de facto nos outros domínios de intervenção económica, social e cultural na vida portuguesa.
Todos temos consciência de que na nossa cultura mediterrânica há uma certa tradição do primado da presença do homem no espaço público e do primado da presença da mulher no espaço privado. E uma herança que, naturalmente, está ainda muito fortemente enraizada na nossa cultura. Todos temos consciência também de que, fruto dessa herança e das condições objectivas de algum atraso económico e social em muitos domínios, é extremamente difícil para muitas mulheres portuguesas compatibilizarem as responsabilidades objectivas, que assumiram no plano da vida familiar e em outros planos da mesma natureza, com a possibilidade de exercício de funções políticas, sobretudo num país em que esse exercício das funções políticas se caracteriza, distintamente do exercício de outra funções profissionais, pelo grau extremamente aleatório de utilização dos tempos.
Nós ainda vemos uma política que se faz muito à custa de reuniões nocturnas, fins-de-semana constantemente ocupados. Não introduzimos ainda na vida política —ao contrário do que, aliás, acontece noutros Estados —■, a regularidade de funcionamento das vidas profissionais normais. É um dado, de facto, objectivo, que importa
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progressivamente ir corrigindo. Porventura, em 1975 seria mais acentuado do que é hoje, mas ainda hoje é muito assim e penso que todos nós, que temos responsabilidades a nível partidário, sabemos que o é, em face do número de reuniões nocturnas sucessivas em que temos de estar
presentes, o número de fins-de-semana constantemente ocupados.
Por outro lado, temos também de ter consciência — e não quereria, de maneira nenhuma, transformar este debate numa sessão de propaganda de acções do Governo em matéria de política social — que, independentemente dos progressos que possamos reconhecer, quer o queiramos ou não fazer, que possam existir, neste momento, em relação a todo um conjunto de mecanismos de apoio, no plano social, nos equipamentos sociais, nas políticas sociais, desde um pré-escolar ao acompanhamento das pessoas mais idosas, a verdade é que, na sociedade portuguesa, tal como ela hoje existe, há ainda um enorme défice de apoio à vida familiar, défice esse que, com a nossa tradição cultural e as nossas circunstâncias objectivas, é, em grande parte, suprido pelo sacrifício assumido, aliás' com grande dignidade e de uma forma inteiramente voluntária na maior parte dos casos, de muitas mulheres que poderiam exercer funções políticas, não tendo uma sobrecarga adicional e não a partilhando normalmente com os homens como seria desejável. A verdade é que isso se traduz, para muitas mulheres, numa enorme dificuldade de compatibilizar esse assumir de responsabilidades com o exercício de certo tipo de funções e, em particular, de funções de natureza política.
Por outro lado, devo dizer-lhes, com inteira sinceridade, que os partidos políticos se constituíram em factor condicionador dessa participação. Os partidos políticos lidam com questões de poder e uma das coisas mais difíceis de alterar, dentro de um sistema de poder, é o próprio sistema de poder ou a identidade daqueles que exercem o poder dentro das estruturas.
Isto é particularmente significativo naquelas organizações que, pela sua natureza própria, têm a ver com a essência do exercício do poder político. Como é evidente, não estamos a criar partidos políticos do zero, mas estamos a viver partidos políticos que têm uma história, que têm uma carga, que estão, de alguma forma, com as suas próprias funções já preenchidas a todos os níveis de militância por pessoas que, com grande generosidade muitas vezes, mas também com algum egoísmo — é necessário dizê-lo — desempenham essas funções.
Originariamente os nossos partidos políticos têm uma fortíssima carga masculina ao nível do seu funcionamento a todos os escalões da sua vida. Acho que isso é particularmente nítido nos partidos políticos em relação a outras formas de associativismo e é particularmente relevante por isso mesmo.
Relevam para explicar a actual situação a persistência — ainda que, esperemos, não permanente e progressivamente diminuída — de valores culturais que acentuam o predomínio da mulher no espaço privado, em contraste com o predomínio do homem no espaço público, as dificuldades objectivas que decorrem das nossas deficiências no plano social e no plano económico de apoio às estruturas familiares e os sacrifícios que, com a repartição desigual que existe na nossa sociedade das responsabilidades nesse domínio entre mulheres e homens, os sacrifícios que isso tem imposto à generalidade das mulheres portuguesas.
Por outro lado, o carácter e a natureza específicos dos partidos políticos e a sua tradição histórica, a forma como nasceram, como se desenvolveram, como hoje existem, fazem que, na prática, seja muito difícil nos partidos políticos, naturalmente, fazer surgir um maior grau de responsabilidade das mulheres no exercício de funções políticas dentro dos partidos e nos órgãos do Estado onde se fazem representar.
Do meu ponto de vista, este facto — e creio que este é
um facto e que esta anomalia é a mais nítida nas questões de desigualdade entre mulheres e homens na sociedade portuguesa, muito mais nítida do que desigualdade a outros níveis da vida económica, social e cultural no País — não deixa de constituir, em minha opinião, aquilo que é um gravíssimo défice de cidadania, de exercício de cidadania, uma desigualdade objectiva entre mulheres e homens naquilo que é o cerne da nossa vida democrática. Independentemente do mandato constitucional, breio que existe em todos nós uma responsabilidade política no sentido de procurar combater esse défice.
É evidente que o combate a esse défice se pode fazer de muitas maneiras. Diria mesmo que tem de fazer-se em muilas áreas de intervenção na sociedade. E todas as que referi — como o vencer de preconceitos culturais, um maior equilíbrio na atribuição das responsabilidades ao nível da família, as políticas do Estado no sentido do apoio a essa mesma família, nomeadamente nas áreas que mais sobrecarregam a vida familiar nos tempos de hoje—, tudo isso é indispensável prosseguir com grande determinação para que a igualdade de direitos dê lugar a uma verdadeira igualdade de facto e para que no núcleo duro onde é mais difícil essa igualdade manifestar-se, ou seja, na vida política, ela também possa ter uma maior oportunidade.
Mas acontece que, no plano político, o País não perde apenas por existir um défice de cidadania e um défice de igualdade. Penso que o País perde também porque o carácter excessivamente masculino nos órgãos de decisão política faz que a qualidade das decisões políticas seja, do meu ponto de vista, menor do que se tivéssemos uma mais equilibrada distribuição desses órgãos de decisão política.
Esse é o testemunho pessoa) que posso, aliás, transmitir ao fim de muitos anos de experiência política.
Na dinâmica de um qualquer grupo, seja esse grupo um governo, uma comissão parlamentar, uma câmara municipal, na dinâmica de um qualquer grupo, a qualidade da decisão e a qualidade da execução dessa mesma decisão política melhoram quando, de alguma forma, para essa decisão contribuem, de forma equilibrada, as diversas componentes daquilo que é hoje a essência da natureza humana. E isso, do meu.ponto de vista, só é possível com uma presença muito mais equilibrada de mulheres e homens nesses órgãos de decisão e nesses órgãos de execução política.
É que, sendo iguais perante a lei e exigindo nós uma igualdade e até uma paridade de facto na sociedade portuguesa, é indiscutível que com todos os cambiantes de natureza pessoal que existem na personalidade de todos nós, existe um contributo feminino que, do meu ponto de vista, é essencial, em termos de peso relativo significativo para que as decisões sejam decisões humana e politicamente mais justas e equilibradas e para que essas decisões possam ser, humana e politicamente mais bem aplicadas na sociedade portuguesa.
Com a plena consciência de que existe um défice sério de cidadania e de igualdade, ao nível do exercício das
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funções políticas, com a plena consciência que desse défice resulta, para além da mácula do princípio da igualdade, uma menos boa qualidade e capacidade de decisão, um menos bom funcionamento dos órgãos políticos que se enriqueceriam com um contributo mais equilibrado de ambos os sexos.
Com consciência das enormes dificuldades gerais para a concretização da igualdade de facto na sociedade portuguesa e que essas dificuldades gerais são particularmente sentidas ao nível do funcionamento dos órgãos do poder político e das estruturas que suportam o seu preenchimento e que são, em particular, os partidos políticos, penso que, sem que isso nos desresponsabilize da necessidade de actuar em todas as outras áreas indispensáveis para que a igualdade se concretize, é necessário introduzir alguma ruptura que obrigue as pessoas, de alguma forma, a quebrar este círculo vicioso.
E a minha consciência de que essa ruptura é necessária aumenta com o facto de eu verificar que, ao contrário do que se poderia esperar, nós temos mais dificuldade em fazer impor uma presença significativa de mulheres ou em as mulheres fazerem impor uma presença significativa de si próprias nos órgãos partidários, sendo a dificuldade maior ao nível da base do que ao nível da cúpula.
E se isto é assim, isto quer dizer que estamos perante um fenómeno que não tem tendência a autocorrigir-se, de uma forma rápida e automática. Estamos perante algo que é um núcleo duro de resistência, que corre o risco de, numa sociedade como a nossa, não digo de se perpetuar, mas, pelo menos, de se prolongar, com as características actuais, por muito tempo, o que é, do meu ponto de vista, altamente indesejável.
Não sou, naturalmente, favorável por princípio a medidas de discriminação e entendo, aliás, que qualquer legislação que se aprove neste domínio não deve assumir em si própria uma forma discriminatória mas uma forma de afirmação de condições iguais para qualquer dos sexos. Nem me parece que a designação que habitualmente se dá àquilo que está em causa nesta («legislação de quotas») seja uma designação correcta. O que está em causa não é preencher uma quota mas estabelecer um mínimo indispensável de participação.
A palavra quota, de alguma maneira, dá a ideia de que se tem como objectivo enquadrar, numa espécie de ghetto, um conjunto de pessoas que ocupam aquela área. Não é isso que está em causa. O que está em causa é caminhar para uma verdadeira paridade de participação e aquilo que me parece fundamental é apenas dar um empurrão inicial. Não é por isso estabelecer um sistema mas dar um empurrão inicial, sem o qual tenho muito medo que condições mínimas de igualdade, já para não falar de paridade nos órgãos políticos de decisão, levem ainda muito tempo a concretizar-se, em Portugal.
E é nesse sentido que me parece extremamente positivo que, à semelhança do que acontece ou aconteceu noutros países, em que esse empurrão, aliás, veio a revelar-se eficaz e a tornar-se desnecessário a partir de uma certa altura, eu sou efectivamente adepto de que situações desiguais não se podem tratar de uma maneira formalmente igual e que há aspectos formais de igualdade que, na prática, não fazem mais do que confirmar e acentuar desigualdades. E a igualdade que nos importa é uma igualdade substancial e não uma igualdade formal.
Por isso, parece-me extremamente útil que a lei, no cumprimento, aliás, de um princípio constitucional, possa obrigar as estruturas- políticas a respeitarem um mínimo de equilíbrio na intervenção política-de homens e mulheres na vida política portuguesa. Um mínimo de equilíbrio, repito.
E, como digo, não me parece sequer que a designação de quotas seja uma designação minimamente adequada ao que está em causa neste aspecto. O que está em causa é a lei obrigar, vencendo resistências que todos reconhecemos serem muito complexas, a que as estruturas, de alguma forma violentando a sua maneira natural de proceder até hoje, possam criar condições de um mínimo de equilíbrio na participação de mulheres e homens na vida política portuguesa.
Devo dizer, aliás, que considero que o facto de algumas forças políticas dizerem hoje que estão contra o princípio legal mas que vão respeitá-lo na prática é já de si a prova de que valeu a pena introduzir esta legislação e de que valeu a pena introduzir este debate porque, porventura, se ele nunca tivesse sido introduzido nestes termos, não seria necessário respeitá-lo na prática.
E aqueles que entendem que devem respeitar, na práüca, esse princípio estão, no fundo, a reconhecer que têm de fazer um esforço para o fazer, visto que, no passado, assim não aconteceu e assim, hoje, não acontece na generalidade dos órgãos.
Estou a reconhecer uma dificuldade. Devo dizer-vos, com a experiência que tenho de direcção de um partido político, que essa dificuldade é real, não vou escamotear as questões, é uma dificuldade real impor tal orientação às estruturas do partido político não tanto até na elaboração de uma lista para o Parlamento Europeu mas, seguramente, muito mais na elaboração de listas, por exemplo, para órgãos de poder autárquico. Aí está em causa uma mudança sociológica muito mais profunda nas próprias estruturas, enquanto uma lista para o Parlamento Europeu se pode, de alguma forma, facilmente compor, através de uma decisão política ao mais alto nível, desde que haja consciência política para tal.
Por isso, entendemos que este é um primeiro passo, que é um passo necessário, diria infelizmente necessário, mas necessário, que é um passo desejável, que não pode, de maneira nenhuma, ser assumido como um anátema, seja para quem for, a não ser para com a sociedade que não foi capaz de resolver este problema por outra maneira até hoje. De facto, não pode ser assumido, de maneira nenhuma, por qualquer anátema, mas como um contributo que a auto-organização da sociedade política se dá para cumprir um objectivo de cidadania e para melhorar a qualidade das suas decisões.
Nesse sentido, devo dizer-vos que, com alguns anos de experiência, batendo-me por este conceito e com muitas derrotas, no passado, nesta luta — e devo confessá-lo com toda a sinceridade —, com muitas derrotas nesta luta, repito, sou francamente favorável, diria mesmo entusiasticamente favorável, à introdução de medidas como aquelas que, neste momento, estão em consideração, independentemente agora da sua modelação, da sua forma, de contributos de enriquecimento os mais variados que para ela podem ser dados.
Como disse, o simples facto de, mesmo aqueles que hoje se manifestarem contrários a estas medidas, dizerem, publicamente, que as vão respeitar na prática é, porventura, a maior homenagem que podem prestar a elas próprias e à sua necessidade.
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b) Declarações do engenheiro António Guterres em resposta a perguntas:
Devo dizer que estou totalmente de acordo com o conceito de democracia paritária e com o caminho para esse conceito. Admito que o preâmbulo [da proposta de lei] possa estar redigido de forma infeliz e se era esse o facto quem tem de se penitenciar sou eu. Confesso que, neste momento, não tenho sequer presente qual é o texto exacto do preâmbulo, como é também compreensível, mas a lógica è essa. Isro é. Isto não é apresentação de uma quota, entendida como um fim em si, isto é um estímulo cuja lógica é a de integrar a nossa sociedade política no conceito de democracia paritária. E é, portanto, um passo, se quisermos, um pontapé de saída.
A Sr.* Deputada Eduarda Azevedo pergunta-me que compromisso é que eu assumo em relação ao PS.
Acho que, se me permite, a sua pergunta é muito interessante, mas foge à questão essencial do problema, isto é, a questão essencial do problema é saber se a lei deve ou não deve consagrar este princípio para criar mecanismos que, de alguma forma, violentam as lógicas de funcionamento interno dos partidos políticos. E, em minha opinião, a lei deve.
E o que lhe posso dizer, nesta matéria, com toda a sinceridade, é que me baterei — não vou assumir um compromisso em nome do PS, até porque o PS tem um funcionamento descentralizado e já lá irei a esta questão — no PS por esse cumprimento. Mas não vou aqui assumir um compromisso que compete ao partido, no seu todo, assumir ou não, porque há, infelizmente —e este é um dos dramas desta questão —, uma contradição objectivamente um bem democrático, que é o carácter descentralizado de funcionamento dos partidos, e o cumprimento deste objectivo de caminhar para a democracia paritária.
Isto é, o PS, todos o sabem, tem uma estrutura estatutária de funcionamento muito descentralizada que leva, por exemplo, a que a escolha de grande número de candidatos a Deputados seja da responsabilidade de órgãos distritais, como a escolha de candidatos locais seja da responsabilidade de órgãos concelhios. E a possibilidade estatutária de intervenção da direcção nacional do PS é muito limitada pela sua própria natureza. E isto, do meu ponto de vista, é bom, esta descentralização é boa.
Sou contra partidos de aparelho em que haja uma direcção que comande e essa direcção imponha a toda a estrutura as regras de funcionamento que, num dado momento, lhe apetece ter. Acho que a descentralização, acho que a distribuição de poder no seio de uma estrutura partidária é uma garantia de democracia no próprio poder que esse partido exerce na sociedade, em que a descentralização é um valor, independentemente, agora, das formas como ela é assumida.
Aquilo que me parece importante garantir é a coexistência de mecanismos profundamente descentralizados de funcionamento dos partidos, que acho desejáveis, com garantia do caminho para a paridade, que também me parece desejável, notando eu, com sinceridade, em relação à análise do meu próprio partido, que quanto mais descentralizada é a decisão mais difícil é fazer cumprir este preceito. Isto é, uma lista que eu faça não tenho problema nenhum em.organizá-la assim, mas tenho a maior dificuldade em garanür que — não vou agora dizer nenhum concelho nem nenhum distrito — o concelho ou o distrito tal organize a lista desta maneira, a não ser impondo-lhe, antiestatutariamente e antidemocráticamente
na lógica de funcionamento do meu partido, embora admita que noutros partidos seja diferente, e que o líder tenha o direito de fazer as listas em toda a parte e que ninguém se preocupe com isso. Acho, porém, isso uma perversão da vida democrática e acho que isso é altamente indesejável e acho que a descentralizarão do funcionamento de um partido é positiva e o que me parece importante é arranjar uma maneira de facilitar a compatibilidade de um objectivo de descentralização com um objectivo de caminho para a democracia paritária.
Em política social, é evidente que há questões que são decisivas. A questão mais decisiva tem a ver com a compatibilização da realidade de mãe com o exercício de uma função política.
Como sabe, a minha mulher era psiquiatra de formação analítica e há uma coisa que, hoje, muitos aceitam como um dado e que é este: é que o nosso equilíbrio, ao longo da vida, depende muito da forma como se estabelece a relação precoce entre a mãe e o filho. Inclusivamente, penso que este tipo de análise ultrapassa hoje aquilo que foi, no seu tempo, um maior predomínio das concepções relacionadas, enfim, com a perspectiva edipiana. Hoje, penso que há um certo consenso no sentido de sublinhar a importância da relação precoce entre a mãe e os filhos.
Esta concepção logo em si cria um grave problema de conciliação de muitas coisas que desejaríamos conciliar. Agora, independentemente disto —e isto o Estado não resolve nem tem nenhuma maneira de se substituir (isso seria monstruoso e houve exemplos monstruosos de tentativa de substituição desta realidade) — há, depois, no exercício da maternidade, naturalmente, uma preocupação essencial, que foi assumida como uma prioridade, de uma forma muito clara, pelo Governo com o desenvolvimento do ensino pré-escolar. E com o desenvolvimento do ensino pré-escolar numa dupla vertente, garantindo que o ensino pré-escolar público que não era de horário completo o pudesse ser por razões óbvias que têm a ver com a disponibilidade dos homens e das mulheres. Mas, nós sabemos, pela natureza das coisas, que, infelizmente, na nossa sociedade, têm mais a ver com a disponibilidade das mulheres do que dos homens. Também não vale a pena escamotear esta realidade sociológica, digamos assim.
E, por outro lado, de assegurar ao ensino pré-escolar existente em instituições de solidariedade social um conjunto de garantias e exigências, como de qualidade, de nível pedagógico, etc, uma vez que elas cumpriam. No. essencial, os problemas da ocupação de tempo mas muitas não tinham ou não asseguravam uma verdadeira qualidade no seu funcionamento para além dos problemas salariais, -etc.
Portanto, há aqui uma preocupação muito grande de expansão da rede e ao mesmo tempo de adequação da rede ao cumprimento desta fórmula.
O mesmo poderia dizer em relação àquilo que tem sido a expansão a um nível inferior ao do ensino pré-escolar, mas essa não pelo Estado mas pelas mais diversas associações, com um grande investimento de apoio a essas associações no que diz respeito à existência, ao desenvolvimento e à multiplicação de creches, como preocupação muito grande que temos tido em relação às associações de pessoas idosas. E dou um exemplo: já foram fechados 58 lares, em que havia pessoas idosas numa situação perfeitamente degradante, e a sociedade, hipocritamente, convivia com isso, naquilo que era uma abdicação das responsabilidades familiares e ao mesmo tempo uma abdicação de responsabilidades do Estado. E
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a fiscalização continua a agir no sentido de fechar esses lares, o que implicou a criação de um programa, «Idosos em lar», para encontrar lugares para essas pessoas, naturalmente.
E, no fundo — sem criar números —, temos hoje um aumento de investimento muito apreciável naquilo que são as prioridades das políticas sociais de apoio e de enquadramento da vida familiar, como políticas sociais particularmente relevantes para dar à mulher maiores oportunidades de intervenção.
Agora, o que é interessante é verificar que, independentemente das deficiências que existem no plano social, tem sido relativamente possível às mulheres caminhar para uma verdadeira igualdade de oportunidades, num certo número de áreas, de forma progressiva, quando essas áreas se adequam ao funcionamento e à vida normal de uma família. É o caso da Administração Pública, por exemplo. Porque tem horários, porque tem regras, porque as coisas são... E, portanto, aí, nota-se um progresso gigantesco.
Na vida política, como há pouco disse e infelizmente pelas suas características ainda é muito atípica, a verdade é que há um handicap muito grande, nomeadamente para quem quer exercer as funções de mãe ou de pai. E, hoje, digo-o, com particular conhecimento de causa, «ou de pai» na sociedade portuguesa. Porque também há uma coisa que é evidente: é que há uma tradição de ausência dos pais no processo de educação dos filhos que é altamente negativo na sociedade portuguesa e que, naturalmente, a sociedade tende a escamotear, mas que é um problema real que é a desresponsabilização dos pais do seu papel de pais, no seio da família. Acho que este é um outro dado.
Ora, a vida política é, de facto, uma vida que não tem estado organizada de uma forma normal, digamos assim, em termos do que é o quadro normal de funcionamento de uma vida familiar, o que causa particulares dificuldades de intervenção às famílias.
A questão que foi colocada pela Sr. Deputada sobre as quotas, mais uma vez gostaria de dizer que não vejo esta questão como uma questão de quotas. Não se trata de definir um canto para arrumar umas pessoas, mas trata-se de dar uma pedrada no charco e abanar a estrutura. E é nessa lógica que gostaria de ver este problema.
O Sr. Deputado Rui Carreteiro fala de mais-valia eleitoral.,Vou ser inteiramente objectivo nisto. Não é para mim óbvio que exista uma mais-valia eleitoral proporcional ao número de mulheres que existam nas listas. Isso não é para mim nada óbvio. Aliás, a maioria das sondagens de opinião que conheço acerca desta questão não é sequer favorável à iniciativa do Governo. Isto é, o Governo não tomou esta iniciativa por ela ser popular. O Governo éstá, aliás, convencido de que esta iniciativa não é popular maioritariamente na sociedade portuguesa e de que não existe necessariamente uma mais-valia eleitoral pelo facto de ter mais mulheres numa lista para Deputados. Isto pela própria lógica de funcionamento da sociedade portuguesa. Esta é a minha convicção, embora gostasse muito que assim não fosse.
O problema, portanto, não pode ser visto em termos de se saber o que é que se ganha e o que é que se perde em termos eleitorais porque, aí, não sei se ganhamos ou se perdemos. Perderemos até ... Mas não é isso que está em causa. O que está em causa é saber se o conceito de democracia paritária é um conceito justo ou não é — em minha opinião ele é justo — e saber se esta medida é ou não é minha convicção, embora uma medida necessária ou,
pelo menos, muito útil, no caminho para esse conceito. Acho que é.
E, por isso, independentemente de saber se ele é popular òu impopular, se ele confere ou não confere uma mais--valia eleitoral, devo dizer-vos, com toda a sinceridade, que tenho as maiores dúvidas de que seja popular e que tenho as maiores dúvidas de que, no estado actual da sociedade portuguesa confira uma mais valia-eleitoral, mas acho que devemos caminhar neste sentido. É a minha profunda convicção.
Sobre «compensação», devo dizer que, aí, sou frontalmente contra. Acho que essa seria a maior subversão que nós poderíamos ter. É que se alguma coisa acho que é essencial na vida política é que a vida política seja, e desejavelmente todos nós gostaríamos que fosse e infelizmente todos nós reconhecemos que não é, a dedicação das pessoas à mais nobre das causas, que é o governo da polis. E por isso, transformar a vida política numa funcionalização das pessoas, acho que seria uma perversidade que, em meu entender, anularia qualquer efeito positivo que pudesse ter em termos de consagração mais fácil do princípio da paridade.
E por que é que há tão poucas mulheres no Governo, nas câmaras do PS, nas listas para Deputados, eu vou a todos os lados? E por todas as razões, que estamos a discutir, é por reconhecermos que há um problema que o colocamos em cima da mesa.
Há duas maneiras de encarar esta situação: a primeira é não reconhecer que há um problema. Também é uma maneira e seria, porventura, a mais cómoda. Fingíamos que o problema não existia. A segunda é reconhecer que há um problema. E eu devo dizer, humildemente, que reconheço que esse problema existe e que ele existe no PS. Existe no PS e há no PS uma resistência da estrutura do PS a que isto seja assim. Há esta resistência.
Se outros acham que não a têm, se outros acham que é tudo fácil e que não têm estes problemas, óptimo, fico felicíssimo. Desejaria que o PS fosse rapidamente contagiado por essas boas tendências que se venham a verificar noutras forças políticas. No PS tenho este problema e confesso que o tenho. Se eles não têm só tenho que os felicitar por isso. E fico muito satisfeito por isso acontecer e ficará, então, provado que o PS é um resíduo, digamos, de uma coisa histórica que, graças a Deus, já desapareceu da sociedade portuguesa e, portanto, somos nós apenas que mantemos este problema. E óptimo para a sociedade portuguesa e, já que assim é, peço que nos ajudem a resolver este nosso problema uma vez que os outros já o não têm. E, portanto, só facilitará seguramente uma atitude de alguma condescendência para connosco e de alguma bondade para connosco, ajudando-nos a resolver um problema que já resolveram todos tão facilmente.
Tenho dúvidas que isto seja assim tão simples como eu agora estive a caricaturar.
A Sr_° Deputada Luísa Mesquita coloca o cerne do problema. E o cerne do problema é, no fundo, a questão da igualdade. O que é que é a igualdade? E esta é uma questão muito complexa, muito complexa. E em que medida é que é preciso assumir comportamentos desiguais para garantir resultados de verdadeira igualdade. E uma questão, de facto, real. E não se coloca apenas em relação a esta questão, embora ache que não devamos misturar esta discussão com outras discussões na sociedade portuguesa porque acho que isso seria o pior serviço que poderíamos prestar a esta discussão. E estou inteiramente de acordo com a Sr.° Deputada Celeste Correia quando separou esta
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questão de outras questões que existem ou que poderiam existir na sociedade portuguesa.
É que esta, se quisermos, é uma questão constitucional da sociedade. Quer dizer, independentemente de manifestações que possam ocorrer, a verdade é que a generalidade das famílias portuguesas é constituída por homens e por mulheres e os outros órgãos da nossa sociedade tendem a ser constituídos por homens e por mulheres e, portanto, esta é uma questão verdadeiramente estrutural da nossa sociedade. Não quero, digamos, ir agora a precedentes bíblicos, mas, do meu ponto de vista, há uma paridade do homem e da mulher na construção do mundo, se quisermos assim, e na existência do mundo e, por isso, é essa questão fundamental ou é a essa questão que eu aqui gostaria de dirigir-me, independentemente de outras que possam sê-lo.
Agora, devo dizer o seguinte.- à medida que vou envelhecendo, vou, enfim, aumentando a capacidade de análise sobre os problemas da sociedade e há um princípio geral que, cada vez, em mim se enraíza mais: é de que é necessário ter muitas vezes instrumentos aparentemente desiguais para garantir uma igualdade substancial. E esta é uma questão decisiva. A grande questão, que foi muito bem posta pela Sr.° Deputada, é o cuidado de evitar que esses instrumentos surjam como lógicas de anatemização ou de menorização.
Mas, já agora que estamos a falar com muito à-vontade e com muita franqueza, gostaria de dizer, em relação a isto, o que decorre da minha experiência.
Acho que há uma grande resistência das mulheres que triunfaram na política em relação a princípios deste género que, em minha opinião, é uma resistência um pouco perversa e que é a de dizer «se eu triunfei sozinha por que é que outros hão-de ter instrumentos de outra natureza Não queria fazer nenhum paralelo, mas o paralelo que vou fazer é grotesco e aceito que o seja, mas faz-me lembrar alguma manifestação e de maneira nenhuma a quero pôr até porque conheço a Sr.° Deputada e sei que está nos antípodas desse pensamento. Mas, faz-me lembrar uma certa lógica de raciocínio que diz o seguinte: «qualquer filho de uma família pobre tem a oportunidade de triunfar na vida como qualquer filho de uma família rica, desde que trabalhe». Isto ouve-se muito e sabemos que estatisticamente não é assim. É assim, em muitos casos, felizmente, mas estatisticamente não é assim. Há circunstâncias objectivas que tornam mais difícil certas caminhadas. Pronto. Não estou a estabelecer nenhum paralelismo entre as duas situações. Não é o caso. Agora, que há circunstâncias objectivas que tornam mais difíceis certas caminhadas, há. E que às vezes não é fácil remover essas circunstâncias objectivas todas elas de uma só vez e rapidamente, também creio que é verdade. Daí, a utilidade de medidas desta natureza. Agora, reconheço integralmente que isto não é uma questão óbvia e que as dúvidas que levanta são dúvidas perfeitamente legítimas. Isto não é uma questão óbvia nem esta medida é, se quisermos, uma medida inteiramente natural, que decorra, digamos, da normal resposta aos problemas tal como eles se põem na sociedade. Na minha convicção profunda, ela é uma medida, senão necessária, pelo menos extremamente útil para alcançar um objectivo que me parece muito desejável e que vejo, sinceramente, muito difícil de ultrapassar. 2 — Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (presidente do PSD): a) Intervenção inicial: Entendo que, por regra, a finalidade das audições de comissões parlamentares é de ter aqui presentes outros que não os líderes partidários, uma vez que, pela lógica das coisas, os partidos têm os seus representantes naturais, que são os Deputados, e para cada lei que é elaborada se, por sistema, se recorre ao convite aos líderes partidários para virem aqui depor, colocam-se os Deputados numa situação um pouco desagradável e os próprios líderes partidários, uma vez que há Deputados eleitos com a missão de desempenharem essa função. Não têm os líderes partidários de vir aqui, numa posição tutelar ou paternal ou patriarcal, dizer o que pensam os partidos, sendo certo que a palavra decisiva pertence aos Srs. Deputados e aos grupos parlamentares. Além de que, para o funcionamento do Parlamento, imagino o que seriam audições destas a propósito de todas as leis e sendo certo que é uma matéria muito importante, há tantas outras matérias importantes em todos os domínios da legislação parlamentar. Dito isto, em qualquer caso, vim na sequência de uma conversa com a St." Presidente, no fim-de-semana, porque podia haver o risco de se entender que a razão por que não vinha era substancial e não procedimental. E, portanto, podia dizer-se que o presidente do PSD fugia a dizer o que pensava enquanto presidente do PSD sobre esta matéria e não estava presente por ter dúvidas sobre a generalização desta metodologia de contacto entre líderes partidários e a Assembleia da República. Dito isto, penso que todos estaremos de acordo —é pelo menos essa a posição do PSD — e estou tanto mais à vontade quanto o grupo parlamentar já deliberou sobre esta matéria, tanto que o que venho aqui dizer venho dizê-lo com o à-vontade de o grupo parlamentar, livremente antes, ter deliberado o que pensava e como votava sobre esta matéria, mas penso que estamos todos de acordo quanto a um problema que existe em Portugal e quanto à necessidade da sua solução. Para o PSD, e penso que para os portugueses em geral, há um problema que é o da injustamente reduzida participação das mulheres na vida política e cívk/à portuguesa. É um facto, é um facto a nível das autarquias, é um facto a nível da vida política nacional em órgãos electivos e não electivos, é infelizmente um facto a nível mesmo da Administração Pública Portuguesa. Mais: é um facto chocante quando comparado com o que se passa noutros aspectos da vida portuguesa. Já não falo no que se passa nas universidades, já não falo no que se passa na vida económica e financeira, já não falo no que se passa na vida social, em tantos aspectos. Está a demorar a chegar à política o relevo do papel da mulher, que já começa a existir ou já existe francamente noutros sectores da vida social. Há qualquer coisa de errado no sistema político, há qualquer coisa de errado na vida dos partidos políticos, há qualquer coisa de errado no funcionamento das instituições. E acabam todos eles por funcionar por um princípio que tem que ver, naturalmente, com o peso decisivo de quem lá está, como instituições e como máquinas e como realidades, pensadas sobretudo para a participação dos homens e com o papel mais acentuado da participação dos homens. A meu ver e na óptica do PSD, isto não se relaciona necessariamente com uma posição sistemática dos políticos
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(homens portugueses) contra a participação das mulheres, mas tem que ver com uma realidade que é a inércia no funcionamento do sistemas e das instituições. Quem está luta pela sua permanência, pela sua sobrevivência e, nessa base, porque aquilo que está é uma certa realidade, e essa realidade não facilita, normalmente, a mudança para o futuro.
Há, portanto, um problema e há um desejo de solução. Penso que, aí, o que defende o PSD é o que defendem os portugueses em geral, no sentido de que deve haver a criação de condições para que a mulher portuguesa possa participar muito mais na vida política e haja, portanto, um contributo mais diversificado, mais enriquecido e mais complementar na participação a nível das instituições. Essa é a grande meta, esse é um grande objectivo.
Sendo esse um grande objectivo, a dúvida que se coloca é apenas quanto ao caminho para se chegar lá, isto é, não vejo ninguém na sociedade portuguesa que diga que não deve haver um reforço do papel da mulher e, portanto, as condições de participação da mulher na vida política e administrativa portuguesa. Mais, a última revisão constitucional, à sua maneira, nos limites do direito e nos limites da Constituição, criou condições acrescidas para que, com imaginação e de formas diversas, os agentes políticos pudessem, com recurso ao direito ou sem recurso ao direito, com recurso ao direito formal ou com recurso ao direito informal, avançar nesse sentido.
Penso que foi esse o sentido de uma alteração importante da vida na Consütuição, alteração a que não é alheio o bom contributo, naturalmente, de todos os que votaram este preceito e de vários que participaram na sua feitura. E penso que é possível recordar historicamente, embora isso valha o que vale, o elemento histórico na interpretação. É possível recordar a participação de elementos do PSD na preparação desse dispositivo constitucional.
Portanto, quanto ao fim, quanto àquilo que hoje é um problema em Portugal, a escassa participação política da mulher, e quanto ao objectivo que é a criação de condições para o reforço dessa participação, penso que o que defende o PSD não anda longe daquilo que defendem todas as forças políticas, económicas e sociais portuguesas.
Abre-se aqui, apenas, uma diferença de caminho. E a diferença de caminho é entre considerar-se que a solução está na previsão de quotas com uma regulamentação relativamente precisa na lei ou entender-se que se pode chegar a esse objectivo por via da vontade e da actuação dos agentes políticos. E já estou a afunilar a questão porque, em rigor, para ser justo, deveria tratá-la num âmbito muito mais amplo. Criar condições para o reforço da participação política da mulher não é apenas intervir na fase final do processo de apresentação de candidaturas, mas é criar condições económicas, sociais, culturais globais para que isso seja possível.
Isso começa na legislação do trabalho, passa pela legislação social, mas passa por comportamentos sociais, comportamentos económicos, comportamentos culturais na sociedade portuguesa. Nós temos muito a mentalidade francesa, que é a de pensar que se resolvem as coisas com a lei. E já devíamos ter a experiência, que vem do regime político anterior, de saber que essa é uma ideia fixa dos juristas, que adoram a lei e estão no seu papel, mas não está provado que a modificação das condições sociais comece e acabe na mudança da lei.
Ê até está provado que os juristas foram muitas vezes longe de mais na ideia de concentrarem tudo ou reduzirem tudo ao papel motor da Constituição ou da lei. Se há coisas que humildemente estamos a apreender no convívio com outras sociedades é que outras sociedades conseguiram dar passos históricos fundamentais, também no papel da mulher, sem intervenção da lei.
Os agentes políticos, num determinado momento, assumiram que deveriam desempenhar esse papel motor sem necessidade de lei. E essas transformações sem necessidade de lei são sempre mais duradouras, mais profundas, mais sentidas do que a intervenção facial ou nominativa através da lei.
Dito isto e indo apenas à fase final do processo, portanto partindo do princípio de que tudo o resto, todas as outras condições para o reforço do papel de intervenção política da mulher, não está em debate porque está em debate apenas o problema das candidaturas e da participação em sentido restrito, devo dizer que, em nome do Partido Social-Democrata, a nossa preferência vai claramente para a responsabilização e a autovinculação dos partidos políticos, sem necessidade de dependência de lei.
Entendemos que isto é mais profundo, é mais sincero, é mais convicto e que é absurdo que os mesmos partidos não assumam, por si mesmos, essa vontade própria de fazer a mudança e precisem de recorrer, eles, os mesmos e não outros, à votação de uma lei para se auto-imporem aquilo que, por sua livre vontade, não querem fazer. E parece que em termos de vontade política tem mais força que eles o façam por uma determinação própria, não recorrendo ao subterfúgio da lei.
Por isso, a nossa inclinação vai claramente para as determinações unilaterais de cada partido ou, se for caso disso, o entendimento entre partidos políticos sem necessidade de lei para, nas próximas eleições, nomeadamente nas próximas eleições legislativas, haver um reforço significativo, para não dizer muito significativo, da participação da mulher na vida política e parlamentar, portuguesa.
Digo isto muito à vontade, uma vez que na comissão permanente do meu partido há 50% e na comissão política, dependente da candidatura que apresentei há mais de 25%, a directora do jornal oficial é mulher, a principal responsável pela relações internacionais é mulher, nos nomes propostos para o Tribunal Constitucional havia uma mulher, no nome único proposto para o Conselho de Fiscalização dos SIS existe uma mulher e, portanto, não é uma ideia da última hora que não tenha que ver com um procedimento político que corresponda àquilo que entendo, como presidente do PSD, que deve ser adoptado.
Portanto, também não tenho problema nenhum em dizer que faz parte das minhas determinações que os critérios de feitura de listas, nomeadamente para a Assembleia da República, a submeter a conselho nacional do partido, haja uma indicação expressa que atinja aquele objectivo, que outros pretendem atingir por via de lei, sem necessidade de dependência de lei.
É essa a nossa posição, é esta a posição do grupo parlamentar, é 'esta também a posição global do partido, ou seja, perante a proposta apresentada e sem embargo da boa vontade que certamente a alimenta e do desejo sincero que existe atrás dela de atingir o mesmo objectivo, nós preferimos, claramente, atingir esse objectivo por outra via sem esta lei, sem necessidade da lei, mas já com efeitos visíveis a partir das eleições do ano de 1999.
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E era tudo, Sr. Presidente. Não podia ser mais sintético.
b) Declarações do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa em resposta a perguntas:
Os comentários que fiz, de ordem genérica, sobre o papel da lei foram comentários de uma grande humildade vindos de um jurista. Normalmente, os juristas dizem exactamente o contrário e acreditariam piamente na mitificação da Constituição e da lei e acreditariam —e foi assim que comecei quando tirei o meu curso e depois comecei a ensinar e depois a prática mostrou-me como a realidade era diferente desse sonho —, imenso que resolver os problemas do País era resolvê-los na Constituição ou na lei. E, depois, vamos aprendendo que não, que é muito mais complicado e que, às vezes, as leis em vez de favorecer complicam a resolução de problemas, sobretudo porque substituem a vontade das instituições a uma aparente vontade para cidadão ver.
Quanto a este caso concreto, a pergunta que coloca é se aqui não pode a lei desempenhar um papel motor, como a alteração da Constituição representa. Ora, eu vejo a questão ao contrário. Acho que a alteração da Constituição ocorreu porque estava amadurecida na sociedade portuguesa já, agora, em 1997, mas não há 10 anos, não há 15 nem há 20 anos, uma evolução psicológica, cultural, social, no sentido do reconhecimento da importância do reforço do papel da mulher na vida política.
Não foi, neste caso, a Constituição à frente dos factos, mas foi a Constituição a consagrar uma evolução da vida na sociedade portuguesa. Que demorou tempo, infelizmente, temos de o reconhecer.
E penso o mesmo da lei. Penso que, aqui mesmo, sendo possível, e repito a minha ideia, sendo possível, porque acho que é possível, a manifestação de vontade dos agentes políticos, é mil vezes preferível — até hoje o digo não como presidente do partido mas digo-o como jurista — ao recurso à lei quando ela não é necessária. É que aqui a lei nem teria sequer um papel percursor porque não é necessário. Penso que, muito mais, no fundo, pode, na sequência deste debate e de predeterminações anteriores, haver uma modificação do posicionamento partidário em relação a esta questão, independentemente e sem necessidade da aprovação da lei.
Quanto à paridade, é evidente que é um grande debate feito em França, nomeadamente, mas não só, a paridade no sentido de que é um facto nas sociedades contemporâneas. Primeiro, é um facto social que o peso da mulher é um peso enquanto eleitora quantitativamente igual ou superior ao do homem, mas que se deseja que seja qualitativamente —e é esse o sentido da paridade — idêntico à sua expressão quantitativa.
Entendo a paridade neste sentido. Há uma realidade social com uma certa composição e essa realidade com essa composição deve projectar-se na composição dos órgãos do poder económico, social, político e cultural.
Mas, aqui, recordaria que, por exemplo, países que, normalmente, são apontados como paradigmáticos de capacidade de modificação social, como os países nórdicos, precisamente, deram os passos que deram sem necessidade de lei e a Bélgica, que tem uma lei, não consegue, apesar da (ei, dar passo nenhum significativo no sentido visado.
Quanto ao objectivo, que é o reforço da participação da mulher na vida política portuguesa, parece que estamos todos e acordo. A diferença reside no caminho. E o facto de existir um artigo esse artigo, como disse, representa o acolhimento de uma evolução da vida na sociedade
portuguesa, é um artigo que interpreto assim: é um artigo que abre a porta para medidas de toda a natureza, formais e informais, direito formal e direito informal, de decisões políticas, administrativas e leis. E até impõe se forem necessárias.
Precisamente aquilo que, agora, se discute é se é necessário e se a vontade partidária não é suficiente para prescindir dessa necessidade.
O artigo da Constituição, como nenhum artigo da Constituição, vai impor um caminho se ele puder ser trilhado de outra forma ou vai impor à força uma lei se essa lei «não» for. indispensável. E o grande debate é precisamente sobre se é ou não é indispensável, neste momento, perante o estado actual do sistema partidário, uma medida legislativa desta natureza.
É esse o debate. Não é se a Constituição abre ou não a porta, porque abre, e se legitima ou não, porque legitima. Mas é de saber se legitimando e abrindo a porta, se é necessário esse caminho ou se não é indispensável. Porque se não for indispensável, prefiro não recorrer à lei.
Nós entendemos, enquanto partido, e entendo eu, enquanto presidente do partido, que de duas soluções, ambas atingindo o mesmo objectivo, é sempre preferível aquela que não recorre à lei. Infelizmente não é a tradição em Portugal. A tradição é de se recorrer à lei mesmo quando não é necessário. O que eu digo é: não sendo necessário, então é preferível não recorrer à lei.
E, por isso, a proposta alternativa. E quando perguntam: mas que proposta alternativa? A proposta alternativa é de autovinculação. E a autovinculação pode atingir esse objectivo, até mais generosamente, porque não está limitada por aqueles metas. E, se pode atingir esse objectivo, pergunto por que é que essa alternativa não há-de ser considerada com mais vigor social, com mais vigor político, com maior densidade, com maior profundidade?
O Sr. Deputado José Magalhães recordou alguma* estatísticas. Aliás, mesmo de acordo com essas estatísticas, o partido com maior taxa de inscrição de mulheres é o PSD. Em qualquer caso, actualizando os dados e relativamente àqueles órgãos que têm funções executivas e de minha directa responsabilidade, que são, como é público e notório, a comissão permanente e a comissão política nacional, numa a percentagem é de 50% e, na outra, é mais de 25%.
Estou a falar, portanto, não de órgãos do tipo assembleia tipo parlamentar, mas estou a falar dos órgãos executivos de escolha directa e de maior proximidade em relação à liderança.
Depois, o Sr. Deputado, aliás com a fogosidade e a capacidade oratória que lhe é reconhecida, deu quase a entender que o artigo da Constituição representava uma inversão na história programática do PSD.
Penso que não é verdade em termos de princípios proclamados. Temos de convir que é verdade em termos de prática quanto a todos os partidos políticos portugueses.
E, portanto, não é uma inversão que se diga, de repente, que há uma inversão de princípios. Desde o início do seu nascimento que o PPD, depois PSD, teve essa matéria como muito cara. Há que reconhecer que o PSD, como outros partidos, foi um longo processo de evolução cultural até ser possível chegar a uma comissão permanente de 50% de mulheres, para encurtar razões. Mas chegou-se, de uma forma indiscutível, inquestionável e, provavelmente, há 10, 15 ou 20 anos não seria. As coisas são como são.
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Portanto, em relação ao Sr. Deputado José Magalhães, a questão que se coloca é de o preceito constitucional vincular ou não vincular. É evidente que, como todos os preceitos constitucionais vincula a um determinado objectivo e proporciona ao poder político e administrativo a faculdade de, se necessário, para prosseguir esse objectivo editar as medidas tidas por indispensáveis.
A questão que coloco é que se for possível chegar lá sem necessidade da lei, isso é uma tão grande vitória democrática para Portugal. Muito maior se for possível por decisão unilateral de cada um dos partidos ou por consenso entre partidos, tanto faz uma coisa ou outra. E se for possível, chegar já. Não estou a falar para daqui a 100 anos, estou a falar das eleições de 1999. Se me permitem então precisar esse ponto, quando há bocado disse que apresentava o conselho nacional, não era o conselho nacional de 2007 ou de 2010, mas é o conselho nacional de daqui a uns meses.
Apresentar, de facto, como um critério, porque todos sabemos, depois, de outros critérios quanto a jovens, quanto a sócio-profissionais, etc., e tal. Mas como critério relevante e decisivo esse — e estou a falar de decisões deste ano — e se isso puder ser feito pelos' vários partidos, cada um por si ou pactuando com os outros, que grande vitória democrática que é ter-se poupado mais uma lei onde não era necessária.
Penso, e estou à vontade para o dizer porque fazia parte da minha predeterminação publicitada antes de haver a proposta de lei do Governo. Portanto, não é uma ideia subsequente à proposta de lei do Governo.
Quanto à Sr.° Deputada Sónia Fertuzinhos e à questão que levanta quanto ao funcionamento dos partidos, que se relaciona com uma questão depois colocada pela Sr.° Deputada Maria José Nogueira Pinto, e que tem muito a ver, tal como é tratada na proposta de lei, com o processo de feitura de listas, uma vez que esta proposta de lei diz respeito às listas para o Parlamento Europeu e às listas para a Assembleia da República e não às listas autárquicas nem às múltiplas matérias, como sejam nomeações da Administração Pública, como sejam outras questões.
Assim, tem a ver com o processo de feitura das listas e, por isso, é que disse que é muito importante o grau de empenho na liderança no momento da feitura das listas nos órgãos decisivos sobre as feituras das listas.
No caso do PSD, para aqueles que não sabem, um ou outro recordar-se-á, de há mais ou menos tempo, o processo é o seguinte: à, em primeiro lugar, uma recolha de posições de base pela comissão política distrital, que submete a uma assembleia distrital, e vêm normalmente os nomes em número x que é pedido pela direcção nacional, por ordem alfabética, e, claro, se não existirem determinados critérios, vêm sem a ponderação desses critérios, mas se houver, previamente, esses critérios determinados pelo conselho nacional vêm de acordo com esses critérios e, depois, vão à comissão política nacional. E a comissão política nacional tem aí um trabalho intenso de relacionamento com as estruturas distritais até tomar a sua decisão e levar a um conselho nacional.
Por sua vez, o conselho nacional, aprova as listas.
Aquilo que disse e penso não estar no plano da inconfidência partidária, porque é de interesse público óbvio, o que disse foi que, antes do início deste processo, haverá um conselho nacional ao qual a direcção do partido apresentará os critérios a que deve obedecer o processo daí por diante, nomeadamente na fase local, que já percebo
que é aquela em que se podem suscitar maiores problemas em relação a uma questão como esta.
Não é essa predeterminação de critérios. Temos fronteiras definidas quanto ao elenco que surge e, depois, a própria comissão política nacional e o próprio conselho nacional, na execução desses critérios, têm um papel de juiz naquilo que é submetido no final a decisão interna do partido.
E, portanto, dir-se-á: as bases gostam mais ou menos; as estruturas locais gostam mais ou menos. E eu diria que aqui há uma problema de liderança. Só que eu gostaria de não resolvido o problema de liderança do PSD, neste particular, através de uma lei votada na Assembleia da República. Quer dizer, não gostaria de colocar a questão assim porque eu não sou capaz, no meu partido, de fazer vingar tantos por cento de mulheres nas próximas listas. Deixem-me, aqui, cobrir com uma justificação que é a de haver uma lei que tenho de cumprir e chegar ao pé dos órgãos do partido e dizer-lhes «tenho muita pena, isto não sou eu, imagem, os Deputados votaram isto». Mas, por sua vez, dirão, tudo feito num contexto muito especial, teve que ser, isto é uma questão...
Acho que é correspondente mais àquilo que penso e àquilo que acho que, neste momento, pensam os principais partidos políticos no sistema político português, acho preferível assumirem que têm essa vontade, vão levar por diante essa vontade, e levam-na independentemente da lei votada na Assembleia da República.
Depois, a Sr.a Deputada Manuela Augusto, considerou pouco imaginativa esta fórmula. Eu diria o contrário: em Portugal o que é pouco imaginativo é fazer-se leis.
Tal o número de leis e tal a banalização da lei, a grande coragem e a grande imaginação, dizem os teóricos destas coisas, é substituir a lei por outra forma de auto-regulação ou da regulação entre instituições sem necessidade de lei, deixando a lei para os casos em que é imprescindível, em que é fundamental.
Aumenta a cotação da lei, banaliza menos a lei e dá mais força às instituições. E o problema em Portugal é um problema de institucionalização, como é natural numa democracia tão jovem. Essa institucionalização pode socorrer-se da lei em muitos casos mas não pode fazer da lei um abuso, uma utilização abusiva porque, depois, o que acontece é que a banalização da lei convida à fraude à lei e aquilo que parecia muito feliz e muito impositivo, acaba por ser esvaziado na sua aplicação^
A Sr.° Deputada Luísa Mesquita levanta um conjunto de questões interessantíssimo que daria para outro debate e que, acho, não é menos oportuno que este. Aliás, eu é que levantei e, portanto, a Sr.° Deputada limitou-se apenas a pegar na minha palavra, obviamente. Não posso deixar de concordar com o que diz. Parece-me evidente que o problema da não participação política da mulher, em Portugal, tem que ver com as condições da vida da mulher, em Portugal. Da mulher na família, da mulher no trabalho, da mulher nas estruturas económicas, sociais e culturais. E tem que ver até com um problema de mentalidade, obviamente, que está a mudar muito aceleradamente.
Penso que uma das grandes mudanças deu-se, precisamente, no plano do sistema de ensino. Quando, hoje, tenho no 1." ano da Faculdade de Direito de Lisboa 80% de alunas mulheres e quando as licenciaturas, os que chegam ao fim do curso, são, na maioria, e numa maioria crescentemente esmagadora, mulheres, isso que significa
que o País mudou muito em relação àquilo que eram os
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bancos da mesma Faculdade e das escolas há 10, 15 ou 20 anos atrás.
Infelizmente, esta mudança não tem chegado ao mesmo ritmo a outros domínios da vida social. E, por isso, há necessidade de um amplo debate e decisão sobre essa matéria, um amplo debate sobre a paridade, em muitos aspectos da complementaridade na família, na vida económica e social, no acesso aos sistemas sociais e no domínio do trabalho.
Agora, isto também não pode servir para álibi para que, de imediato, não se dêem passos no sentido da participação política. Por isso é que eu não andei com grandes angústias e quando metade da comissão permanente (do PSD) é formada por mulheres, é porque entendi que só assim é que havia a garantia de que em todas as decisões o peso das mulheres era representativo.
Não ia esperar que houvesse um longo processo económico, social e cultural antes de chegar a esse momento.
Por isso é que digo que estão amadurecidas as condições para que nestas eleições haja, por vontade do sistema político, dos agentes políticos, e de acordo com uma autovinculação, a garantia de um aumento significativo da participação das mulheres nas listas, nomeadamente de Deputados.
Quanto à Sr." Deputada Maria José Nogueira Pinto, a primeira questão sobre se há ou não há dificuldade de entrada das mulheres nos partidos, acho que hoje o problema, de facto, não é um problema de dificuldade. Era a seguir ao 25 de Abril, indiscutivelmente. Era durante muitos anos. Era porque havia um contexto cultural e um contexto social, que não devemos ignorar, que, para as mulheres mais velhas — as mais novas, não muitas das recém-licenciadas ou universitárias, muitas se empenharam na vida política—, mas as mais velhas, de facto, não se empenharam e não se empenharam não porque os partidos as ostracizassem mas porque havia, de facto, uma dificuldade cultural em perceber a nova realidade que surgia.
Hoje, porém, o problema é outro. O problema que hoje acho, mas que tem a ver com a reforma global dos partidos, é que há em muitos sectores da opinião pública reticências quanto à utilidade do seu papel e quanto à utilidade de ser militante. E que as mulheres, em muitos casos, primeiro porque são a maioria da população e, segundo, porque, de facto, muitas vezes, sentem com mais acuidade este aspecto, vêem com reticências e com críticas os partidos e os políticos como funcionam.
Permitam-me também dizer o seguinte, que é uma questão sobre a qual tenho pensado -muito: em matéria de reforma dos partidos, também aí, a Constituição como a lei podem ajudar mas não são um factor determinante. O factor determinante passa pela vontade dos próprios partidos. E essa vontade dos partidos tem mudado no tempo. E acho que, neste momento, as coisas não são ocasionais e a política faz-se pela vontade daqueles que a protagonizam. Respeito muito o fenómeno de massas mas acho que a liderança é um aspecto fundamental na transformação das instituições. E o que é facto é que, se bem percebo, neste momento, ñas instituições político--partidárias existentes, à primeira vista, há lideranças empenhadas nesta modificação. Há. Podia não haver, mas há. E que não precisam de lei para o fazer.
É que, se realmente não houvesse, se olhássemos para as várias forças partidárias e disséssemos: alguém põe em causa o reforço do papel da mulher? Ninguém. Alguém põe em causa que esse reforço deve ser imediato? Nin-
guém. O que significa que, havendo isso, grande desconfiança existe na capacidade de liderança dos partidos políticos para entender que essa capacidade deve ser delegada na votação de uma lei que trave, que sirva de sucedâneo. Acho que é um atestado de menoridade à capacidade de liderança do sistema político e dos partidos políticos, francamente. Acho que é um atestado de menoridade pensar que eles não vão lá se não com uma votação de uma lei.
Quanto à segunda dúvida: se não há um problema pelo número pequeno de mulheres, em termos de escolha por mérito. Essa é uma questão que não tem sido muito tratada. É uma questão que, honestamente, deve ser colocada em cima da mesa. O problema existe — e estou à vontade porque o meu partido pelas estatísticas é o que tem mais mulheres percentualmente nos partidos portugueses e mesmo assim são muito menos do que os homens, enquanto militantes. E é evidente que, quanto menor for o universo base de escolha, maior é a disputabilidade sobre se a escolha é feita por mérito ou não. E se, ao menos transitoriamente, durante um período de tempo, não terá de haver escolhidas que o são, ao menos em tese, por um grau de exigência inferior ao grau de exigência em relação aos homens.
Mas, isso não é culpa das mulheres mas, sim, do sistema estabelecido. Isso é evidente, isso é inevitável. Mas isso em todos os sistemas em que é necessário introduzir uma transição, é inevitável que se a base da escolha, supondo-se que são só militantes, porque há hipóteses de independentes, é mais apertada, se se for para essa base de escolha, naturalmente a capacidade de escolha é também mais apertada.
Agora, não retiraria daí a conclusão que, penso, a Sr." Deputada também não retira, de ser um argumento desfavorável a que haja, de imediato, já para o ano eleitoral de 1999, o avanço da vontade dos partidos políticos de, com independentes e com militantes, procederem ao reforço do papel das mulheres.
Depois, a proposta de lei é tímida ou não é tímida? Se olharmos para a composição da população portuguesa, é sempre possível dizer que é tímida e que o faseamento podia ser mais acelerado. Simplesmente, a questão que leva à nossa divergência não é de ser mais ou menos tímida. É como digo, na comissão permanente tenho 50% de mulheres e na comissão política nacional tenho mais de 25% de mulheres.
Agora, a questão não é de ser tímida ou de não ser tímida, a questão é do caminho. Nós entendemos que o melhor caminho é o da autovinculação. Esse é o melhor caminho. E comparando a proposta com aquilo que existe hoje, aí, a proposta já não é tão tímida assim.
Agora, aqui aproveito para dizer o seguinte: como disse o Sr. Deputado José Magalhães, o imperativo constitucional permite várias soluções legais. Porém, nós preferimos a solução não legal. Mas, dentro da solução legal havia várias outras hipóteses. Por exemplo, uma solução premiai, isto é, em vista da solução punitiva, que é a de dizer «tem de atingir estas metas se não é punido assim», diria o contrário, isto é, «se atingir estas metas é premiado desta maneira».
Naturalmente, premiado, normalmente, como imaginam... A punição é a punição que, como percebi, é através do financiamento partidário. E, portanto, o que significa que essa era outra forma teoricamente possível.
Permitam-me, agora, dizer que, a todas essas fórmulas, nós preferimos a fórmula muito simples: nas eleições de
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Outubro deste ano, haverá, nos lugares de lista correspondentes a Deputados do PSD um número de mulheres que, no mínimo, atinge, e pode até ultrapassar, as metas que esta lei fixava, mas não por imposição da lei. Mas porque o partido diz que deve ser assim e porque vai ser assim. E tão importante é que seja assim que não é necessário esperar pela concretização legal.
Depois, mais duas outras questões muito rápidas. A primeira: razões reais dc afastamento da política. Há ou não uma certa obnubilação Acho que sim. É evidente, isto aplica-se em relação à mulher e em relação ao homem. Mas também se aplica em relação à mulher, em Portugal, sem dúvida.
Quanto aos cinco grandes problemas, pergunta-se se está ou não nos cinco grandes problemas nacionais o chegar ou não a Deputado. É evidente que se olharmos para os inquéritos de opinião, veremos que as mulheres, como os homens, têm problemas instantes que não têm a ver directamente com â participação política. São problemas de saúde, problemas de segurança social, problemas de trabalho, de emprego e por aí fora.
Agora, também daí, não inferiria, como não infere, penso, a Sr." Deputada, que o facto de não estar nas prioridades o não chegar ou chegar a Deputado, que isso significa que seja pouco importante haver representação política acrescida das mulheres. Porque aí, digo o que já disse atrás: «sem haver um reforço da participação política das mulheres, é impossível que tudo o resto mude, nomeadamente a maneira de ver e de fazer a política».
Acho que, neste momento, a sociedade portuguesa e o sistema político amadureceram as condições para ir lá sem lei. As lideranças partidárias, a dar fé ao que cada uma delas disse e diz, chegam já sem necessidade de lei. Eu acho que é de fazer fé nas lideranças partidárias — e não estou a falar só na minha, mas estou a falar em mais quatro, pelo menos —, de fazer fé em todas elas, acreditar em todas elas e acreditar que quando elas dizem que querem, querem mesmo. E que, querendo mesmo, vão comprometer-se publicamente a reforçar já, nas próximas eleições, a participação de mulheres na composição das Estas para o Parlamento Europeu e para a Assembleia da República, independentemente da votação da lei.
Como última nota e com uma vantagem adicional, é não se abrir o precedente de votar uma alteração à lei eleitoral a poucos meses da realização de eleições.
Era um princípio clássico deste Parlamento não se mudar a lei eleitoral em nenhum aspecto a três, quatro ou cinco meses da realização de eleições. Acho que é um bom princípio e é assim que se deve manter. E isto porque, agora, estamos perante o problema das quotas das mulheres, mas, amanhã, pode haver outro problema que seja considerado igualmente importante e que justifique a mudança da lei eleitoral, qualquer que seja a maioria e qualquer que seja o Governo, em ano de eleições.
3 — Dr. Paulo Portas (presidente do CDS-PP): a) Intervenção inicial:
Começaria por me referir à especial legitimidade que, em termos práticos, concretos e efectivos, assiste ao CDS--PP, nesta matéria.
Creio ter sido o CDS-PP o primeiro partido a ter uma mulher como secretário-geral; creio ter sido o CDS-PP o primeiro partido a ter uma mulher como líder parlamentar; creio ter sido o primeiro partido a ter uma mulher como candidata à presidência do partido.
Quando eu estive nesta Casa, que muito respeito, entrei num grupo parlamentar que tinha 4 mulheres em 15 Deputados, ou seja, o CDS-PP tem a especial autoridade e legitimidade de poder dizer que, designadamente nesta legislatura, esteve acima das quotas que nos propõem, sem precisar de nenhuma quota para lá chegar.
Há, nesta matéria, em todo o caso, posições a corrigir, designadamente do ponto de Yista da estrutura' partidária.
Mas, a nosso ver, a representação das mulheres em qualquer instituição política, seja nas instituições soberanas do País, seja nas instituições partidárias, é algo que advém da convicção e não de uma obrigação legal.
Também vos queria dizer que não vim para esta audição dar qualquer espécie de opinião ou palpite pessoal. Tivemos o cuidado de, há 10 dias, reunir com as mulheres dirigentes do partido, que 'exercem funções ou parlamentares ou autárquicas ou que são presidentes distritais ou que são presidentes concelhias, e devo dizer-vos que a opinião das mulheres dirigentes do CDS-PP é extremamente favorável ao reforço da participação feminina na política e não apenas no Parlamento, mas é desfavorável ao método que nos propõem, ou seja, a obrigação legal de estabelecer quotas, que são, como, aliás, seria qualquer quota, arbitrárias e aleatórias na sua dimensão.
A título daquilo que é a minha posição enquanto presidente do partido, queria também dizer-vos o seguinte: reconheço que existe um problema de correcta representação da realidade, mais do que discriminação, da participação das mulheres na política; o modelo que nós queremos seguir no CDS-PP tem por referência «aquilo que foi conseguido por José Maria Aznar sob a sua direcção no Partido Popular espanhol.
Chamo a vossa atenção que o PP espanhol, em seis anos, certamente numa sociedade tão ou mais marialva do que a portuguesa, conseguiu, sem nenhuma quota, sem nenhuma obrigação legal, ter cerca de 40% de mulheres na sua direcção política, quatro ministras, acaba de candidatar uma mulher à presidência do Senado Espanhol e, facto que escapou aos proponentes desta lei, seis das sete maiores câmaras municipais governadas pelo PP em Espanha são governadas por mulheres do PP. A presidente da Câmara de Sevilha é uma mulher do PP; a presidente da Câmara de Valência é uma mulher do PP; a presidente da Câmara de Cádis é uma mulher do PP; a presidente da Câmara de Málaga é uma mulher do PP; a presidente da Câmara de Saragoça é uma mulher do PP.
E isto não implicou nenhuma imposição legal, implicou uma convicção profunda, que eu partilho e que a direcção do partido também partilha, de que enquanto as estruturas partidárias e os postos institucionais não tiverem um equilíbrio, que não tem que ser obviamente rígido, entre uma representação masculina e uma representação feminina, haverá obviamente um défice de observação da realidade.
Não deixaria de vos dizer também que há uma visão especial da geração a que eu pertenço sobre este assunto e que, de resto, em certo sentido, pelas transformações que foi sofrendo, o PP, como alguém dizia e bem, é um partido histórico da democracia portuguesa, mas, em certo sentido, novo. É, portanto, um partido onde a mobilidade é relativamente fácil de atingir. As pessoas têm menos currículo partidário, o que não quer dizer que tenham menos currículo pessoal, que têm menos antiguidade, em certo sentido, quando nos partidos, como todos sabemos, a antiguidade é posto.
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E é por isso que, na geração a que pertenço, o problema que está aqui colocado é um problema que parece estranho. Na minha geração é perfeitamente normal que uma maioria de mulheres esteja na universidade, ou que uma maioria
de mulheres esteja na magistratura. Persistem — e cu sou o primeiro a afirmá-lo — problemas naquilo que toca à igualdade de oportunidades; continua a ser verdade que para fazer, uma carreira uma mulher tem que fazer talvez o dobro do esforço. O que já não persiste certamente na minha geração é uma cultura de discriminação activa, face às mulheres. Pelo contrário. E devo dizer que me sinto muito tranquilo com isso e muito satisfeito porque acho que realmente não se entra no século XXI com conceitos medievais.
Portanto, para nós, este problema que aqui é colocado, certamente no espírito de gerações que passaram e que lutaram —e bem. a meu ver— pela igualdade jurídica entre a mulher e o homem, este problema é-nos estranho, porque para nós, naturalmente do ponto de vista geraciona não há nenhum problema, não há rigorosamente nenhum problema, nem nenhum preconceito face t ascensão das mulheres na política ou em qualquer outra profissão.
Chamaria, aliás, a vossa atenção para o seguinte, que me parece importante, embora provavelmente difícil de passar para a opinião pública: é muito fácil colocar o problema como se fosse um problema das mulheres com o Parlamento, mas talvez seja interessante colocar o problema do Parlamento com as mulheres. Se se quer estabelecer um rígido controlo do acesso das mulheres ao Parlamento, talvez seja de ter a humildade e, a meu ver, a vantagem e a inteligência de reflectir sobre a imagem que o Parlamento dá de si próprio às mulheres que poderiam candidatar-se a esta função. •
E sem entrar em sociologias comuns, mas partindo do pressuposto de que há na visão da política do Estado e dos fenómenos públicos, por parle das mulheres, um especial sentido prático, uma especial procura de resultados, talvez fosse de perguntar se a imagem que o Parlamento tem —que é rigorosamente o que está em causa, porque curiosamente as quotas não se aplicam a mais nada que não seja ao Parlamento —, o toma atractivo, do ponto de vista da ocupação de um período de quatro anos para mulheres que estão a construir o seu prestígio profissional, o prestígio da sua carreira, seja ela académica, seja de que natureza for.
É muito fácil colocar o problema como sendo «o Parlamento expulsa as mulheres em certo sentido», mas talvez seja interessante colocar o problema «porque é que as mulheres se interessam menos pelo Parlamento do que pela magistratura, pela universidade, por uma carreira profissional em sentido estrito». E acho que se se fazem audições para discutir o problema das quotas, acho que se deve ter a humildade e a vantagem intelectual de discutir o problema inteiramente e não apenas do lado que convém.
Em que é que nós discordamos da solução proposta, muito embora reconhecendo — e depois verão por quê — que ela visa resolver um verdadeiro problema com uma solução deficiente?
Em primeiro lugar, porque me parece manifesto que — e foi o que ouvi dizer às mulheres dirigentes do partido e não estou, portanto, aqui a transmitir outra opinião que não seja institucionalmente aquela que elas transmitiram — não me parece nem lhes pareceu que esta fosse a prioridade das prioridades.
E embora não seja argumento definitivo o dizer que há coisas mais importantes pará fazer, em todo o caso, talvez
não seja de insistir tanto naquilo que tem um estrito valor simbólico e insistir mais no que tem um valor substantivo e real, ou seja, saber que imagem é que, aliás, o Parlamento dá de si próprio quando está, do ponto de vista,.
pelo menos, do Governo, mais interessado em garantir as quotas de participação na Assembleia da República do que a, efectivamente, resolver problemas tão verdadeiros e tão quotidianos como uma rapariga que procura o seu primeiro emprego e a quem lhe perguntam se tenciona engravidar e não lhe dão o emprego porque ela não responde «não».
Talvez seja mais interessante perguntar se está resolvido ou se continua por resolver o problema da compatibilidade entre o direito a uma profissão, a uma carreira e a um emprego e o direito, e não só o dever, à família, à maternidade, etc...
Talvez seja de perguntar por que é esta Assembleia é mais lesta na questão das quotas parlamentares — e friso bem que o que aqui vem proposto são quotas parlamentares e suponho que o Governo não se lembra de fazer quotas no Governo — e, por exemplo, ao fim de oito anos não se lembrou ainda de regulamentar a lei sobre os maus tratos às mulheres.
Talvez haja, no quotidiano, na realidade e na prática efectiva das coisas problemas mais importantes, não do ponto de vista simbólico mas do ponto de vista efectivo, do que aquele de que estamos aqui a tratar. Por outro lado, reconhecemos que este argumento é, para nós, ponderoso mas não é um argumento definitivo porque o não se tratar das coisas mais importantes não quer dizer que se proíbe de tratar das menos importantes.
Há em todo o caso nesta proposta algo que nos parece dificilmente compatível com o princípio democrático, ele próprio. E nisto não vai nenhuma acusação de menor democraticidade a quem propõe. O que nos parece é que há uma liberdade de auto-organização dos partidos políticos, há uma soberania dos seus militantes na escolha das listas de Deputados seja para a Assembleia da República, seja para o Parlamento Europeu, que fica objectivamente condicionado do ponto de vista legal.
Portanto, há uma interferência legal no direito de auto-organização dos partidos políticos e sobretudo na soberania dos seus militantes.
Como vos disse, por decisão própria, por convicção, o CDS-PP trouxe para o início desta legislatura muito mais do que a quota que a nova maioria agora propõe. Mas foi a liberdade do CDS-PP que decidiu esse valor, foi a nossa liberdade como partido político, que é igual à de qualquer de vós, que decidiu estar muito acima de uma quota e, portanto, nós vemos com muita dificuldade que nos queiram impor, por lei, aquilo que nós somos capazes de decidir livre e convictamente.
E há um outro problema que não é menor: é o de uma certa redução da liberdade de escolha política que, a meu ver, pode levar à distorção dos critérios essenciais para o recrutamento político.
Sou o primeiro a dizer e a promover isso dentro do meu partido: as mulheres como os homens devem estar na política por convicção e nunca por obrigação. É o mérito, a vontade, a competência, que devem contar, e não é uma quota, aliás, aleatória, a meu ver, em certo sentido, humilhante porque trata as mulheres como uma minoria, não considerando que elas são efectivamente uma maioria, em termos sociológicos.
Não é uma quota que deve determinar o acesso das mulheres ao Parlamento. Repito, aquilo que aqui está em causa é apenas o acesso das mulheres ao Parlamento como
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se o Parlamento esgotasse a vida pública ou esgotasse a política ou como se a coragem da nova maioria não chegasse ao estabelecimento de quotas dentro do Governo.
Portanto, acho que se corre, aliás, um risco se este princípio for aprovado, que é o de lançar uma suspeição — que considero humilhante e desagradável— sobre as mulheres que vierem a ser Deputadas para preencher uma quota. Eu acho que o único princípio que deve legitimar o acesso à política, seja de uma mulher seja de um homem, é o da sua competência, o do seu mérito, O do seu valor e o da sua vontade e da sua ambição.
Mais: este princípio arrisca-se — mas aí já estamos em considerações muito profundas do ponto de vista da observação que cada um de nós faz da política— a promover uma certa forma de carreirismo partidário e a agravar a funcionalização dos Parlamentos. Para mim, o Parlamento é uma representação da nação e foi por isso que sempre me opus ao agravamento das incompatibilidades. Não quero que aqui estejam apenas as pessoas que aqui podem estar porque não têm mais nada que fazer, mas quero que aqui estejam operários, catedráticos, empresários, trabalhadores, comerciantes, enfim-, uma representação nacional o mais alargada possível.
Este princípio das quotas vai favorecer uma coisa que, se tivermos consciência do que é vida partidária, todos nós reconhecemos como um problema que é a ideia de que se faz uma carreira política subindo, degrau a degrau, da juventude partidária para o partido sénior e que, depois, há uma quota que ajuda a promover essa carreira partidária, quando eu acho que o essencial é qualificar o Parlamento com — se me permitem — pessoas que provaram na vida civil, na vida real, o seu prestígio intelectual, o seu prestígio moral, o seu prestígio académico, o seu prestígio profissional.
Não é definir quotas funcionais, é abrir os parlamentos a uma maior representação da realidade, incluindo das pessoas que têm provas dadas na sua vida não política ou não parlamentar. Acho que as quotas acentuam a funcionalização da vida interna dos partidos e, depois, as consequências que isso tem sobre as assembleias.
Finalmente, chamaria a vossa atenção para a exiguidade do princípio das quotas face a outro fenómenos da vida pública: por que é que há-de haver quotas na Assembleia da República e não quotas na Presidência da República? Não é mais nem menos. Porque é quer há-de haver quotas na Assembleia da República e não no Governo? Por que é que para quem defenda outro sistema eleitoral, como por exemplo o sistema de círculos uninominais, como é que se aplica o princípio das quotas a esses círculos?
E, sobretudo, facto para mim mais surpreendente, se é efectivamente verdade que há uma especial visão da política e do Estado pelo olhar feminino da política e do Estado, por que é que, de todo este quadro de possibilidades, estão ausentes as autarquias locais, onde a visão da proximidade do poder e dos resultados que o poder permite é maior do que a visão que a imagem deste Parlamento transmite?
Acabei de vos enunciar um conjunto de posições e de dúvidas e, repito, não caricaturo nem zombo deste problema quanto tenho visto por aí fazer, porque acho que o problema é verdadeiro. Porém, tenho enormes dúvidas quanto à solução que lhe querem dar.
E, sobretudo, estou aqui com a autoridade de quem, no CDS-Parüdo Popular, sempre defendeu e continuará a defender que sem quotas nós sejamos capazes e seremos,
certamente, de exceder os vossos 25%. E não precisamos de nenhuma lei para que as representações políticas do CDS-PP sejam representações com uma forte presença feminina.
Também não temos —permitam-me a crítica— esse problema ideológico sobrante que é o de quem já não acredita na luta de classes, querer agora transformá-la permanentemente numa luta de quotas.
b) Respostas do Dr. Paulo Portas a perguntas:
Agradeço todas as perguntas, embora faça uma precisão que é devida ao respeito que tenho à audição para que me convocaram e aos militantes do meu partido, que é, obviamente, esta: eu não respondo, aqui, sobre aquilo que é da soberania dos militantes do meu partido.
E não lhes pedindo que não coloquem em dúvida a minha palavra, falo em nome de um partido que já resolveu, por vontade própria e por convicção, aquilo que vocês querem resolver por quotas.
Portanto não me impressiona nada a citação dos artigos constitucionais que fazem, pelo seguinte: é que o princípio a que nós obedecemos é o de criar todas as condições para uma verdadeira representação da sociedade nas actividades parlamentares, o que significa uma forte participação feminina crescente e que deve continuar a crescer e isso foi feito com a nossa liberdade e não por imposição de quem quer que seja.
Os senhores podem não concordar com este princípio, mas têm que o respeitar.
Não podem acusar o CDS-PP de não ter a autoridade, repito, de ter tido uma secretária-geral mulher, uma líder parlamentar mulher, uma candidato à presidência do partido mulher, 4 deputadas em 15, acima da vossa quota, e não queiram transferir para o País inteiro um problema que é de outros partidos e manifestamente do Partido Socialista.
Vocês estão a fazer uma lei para resolver o problema do Partido Socialista, porque nós, no CDS-PP, já resolvemos, há muito tempo, o problema da dignidade da participação das mulheres nas listas eleitorais, de forma crescente e acima das vossas quotas. E este princípio não. deixarei escapar nesta discussão.
Por outro lado, relativamente à comparação que fiz com o PP espanhol, que é o exemplo que nós queremos seguir, só posso dizer à Sr.° Deputada do Partido Socialista, que me fez a interrogação, que saiba que o PP espanhol para resolver este problema começou por não definir quotas e chegou lá com bom senso, com capacidade de resistir a qualquer espécie de preconceito no recrutamento político, e começou por resolver o problema da participação eleitoral das mulheres, sem estabelecer quotas.
Chamo, aliás, a vossa atenção que o actual candidato a presidente do Governo do Partido Socialista Operário Espanhol é contra a normativização das quotas eleitorais. Disse-o, há três dias, o Sr. José Borrell, cuja citação posso enviar-vos.
Chamo ainda a vossa atenção para o seguinte: tentei, de uma forma que me parece muito interessante para o conteúdo do debate, dar a perceber a opinião que eu ouvi do CDS-PP. Não ouvi apenas as mulheres, como hão-de compreender, mas quis ouvir as pessoas que, no partido, têm representação dirigente: chegaram à presidência de concelhia, chegaram à presidência de distritais, chegaram a mandatos parlamentares por via do seu mérito, da sua vontade, da sua ambição, e nao por serem muflieres ou porque o partido tivesse uma quota para mulheres ou para
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homens. E quis ouvir, obviamente, a opinião delas e não me parece que venha daí nenhuma espécie de delito ou
de crime. Pelo contrário, parece-me tentar perceber melhor as coisas.
E ouvi, em várias circunstâncias, e tenho lido as pessoas que têm comentado este assunto que o problema pode também ser um problema da actividade parlamentar com as mulheres porque pode dar-se o caso — acho que quem aqui está... eu já cá estive e tenho orgulho nisso — de a imagem que o Parlamento transmite de si próprio não tenha a eficiência, nem o sentido prático na resolução das coisas, ou dê a .si próprio um espaço exagerado ao que é retórico, ao que é estritamente formal que, muitas vezes, afaste, não por quotas nem sequer por preconceito, muitas mulheres de disputarem um lugar nesta Casa.
E acho que as pessoas devem ter a noção daquilo que há a corrigir no próprio funcionamento parlamentar para que aconteça esta coisa um pouco estranha que é a «carreira parlamentar» tomar-se menos atractiva do que outras carreiras que as mulheres disputam livremente e em que vencem, de resto, se quiserem analisar o assunto de um ponto de vista de quotas.
Portanto, chamei apenas a atenção, porque o problema pode não ser apenas unilateral, de que o Parlamento pode ter alguma responsabilidade que não é estritamente legal quanto à escassez de interesse que se possa verificar por estar aqui quatro anos, em vez de estar quatro anos numa empresa, quatro anos numa faculdade, quatro anos num sindicato, quatro anos a lutar seja pelo que for, por valores, por convicções, por interesses, por carreiras. Talvez haja aí um problema e eu acho que o Parlamento devia ter av sinceridade de não querer apenas analisar a parte mais fácil do problema.
E, finalmente, os próprios horários de funcionamento da política são horários tendencialmente masculinos. Talvez seja interessante ver algumas consequências práticas de que o horário de funcionamento da política, que muitas vezes
é noctívago e ao fim-de-semana, e qual é a consequência disso sobre quem tenha mais responsabilidade a que tem de atender, por direito e não só por dever.
E não ir para esta solução, que julgo que está na moda, com certeza. E não é por outra razão que, a meu ver, o Governo se lembrou deste assunto, agora.
E esta solução está na moda porque estabelece uma quota e fica o problema aparentemente resolvido. E sobretudo fica o problema do Partido Socialista resolvido. Mas esta Câmara tem uma capacidade e um dever de representação que excede, apesar do carácter maioritário do Partido Socialista, os dramas internos do Partido Socialista. E repito uma coisa: nós, o CDS-PP não precisamos de quotas porque sempre tivemos e mantemos uma atitude valorização da participação feminina que deixa as vossas quotas a uma distância considerável.
Mas, em todo o caso, agradeço imenso terem-me convocado e não saio daqui senão com mais informação do que aquela que tinha.
4 — Declaração à Comunicação Social de Carlos Carvalhas, secretário-geral do PCP (remetida à Comissão da Paridade, em substituição de depoimento oral):
Hl V\ojft uvn generalizado reconhecimento de que persiste um défice de participação política das mulheres — aos vários níveis — dos seus centros de decisão. Défice de participação em igualdade que é também muito evidente noutros importantes domínios da sociedade portuguesa.
O PCP entende que o aumento da participação política das mulheres deve ser encarado tanto na perspectiva do reforço da presença activa nos centros de decisão política como da intervenção das cidadãs eleitorais nas tomadas de decisão nos órgãos de poder político que ajudaram a eleger.
Este reforço impõe um processo dinâmico em que sejam concretizadas estratégias de acção que comprometem os diferentes intervenientes, que de forma conjugada têm de intervir neste processo — os partidos, o poder político, a sociedade.
Nestas estratégias de acção têm de ser incluídas medidas de combate a preconceitos e atitudes discriminatórias do papel das mulheres em todos os domínios da esfera pública e privada, associadas à concretização de políticas de promoção da igualdade de direitos e de oportunidades na vida económica, social, política e cultural e ao avanço na solução de problemas (há uma gritante falta de creches, infantários e estruturas de apoio à terceira idade...) que tanto pesam e criam dificuldades a uma maior participação das mulheres na vida política e sobretudo às mulheres trabalhadoras de menores rendimentos.
A proposta do Governo de imposição de uma quota obrigatória de 25% de mulheres nas listas para o Parlamento Europeu e Assembleia da República com a penalização e exclusão dos que não cumpram este requisito não é, na opinião do PCP, a solução adequada para ultrapassar a défice de participação das mulheres aos vários níveis de decisão (muitas mulheres consideram mesmo a quota humilhante) e representa um grave precedente de ingerência legislativa na vida interna dos partidos e uma limitação à intervenção eleitoral de partidos legalmente constituídos.
E uma proposta que gera falsas expectativas quanto ao alcance e eficácia dos seus resultados, penaliza exclusivamente os partidos e desresponsabiliza outros
intervenientes neste processo e, em especial, o Governo.
Por outro lado, não deixa de ser muito revelador do carácter fundamentalmente cosmético da proposta do Governo que ela se ocupe de quotas obrigatórias para um universo de 25 Deputados ao Parlamento Europeu e 230 à Assembleia da República, mas ignore completamente o universo de 40 000 eleitos do poder local.
E o governo do PS procura desvalorizar as consequências nefastas para as trabalhadoras de medidas que se propõe levar por diante, como a anunciada intenção de limitar os dias de férias em função do número de faltas dadas legalmente, ou a de alargar a trabalho a tempo parcial, entre outras.
Estas medidas acentuariam as desigualdades das trabalhadoras, nas quais se incluem as jovens, que, sendo uma parcela crescente da população activa, continuam a não ter garantias de igualdade de oportunidades no acesso ao emprego, no tratamento e progressão na profissão, na valorização de sua mão-de-obra e justa retribuição.
As opções fundamentais deste governo repercutem-se, ainda, na manutenção de discriminações e condiciona a participação em igualdade de muitos milhares de mulheres na vida social, política, cultura) ou desportiva.
O PCP está claramente à frente dos restantes partidos no esforço de contribuir para uma maior participação política das mulheres.
Recordamos que, nas eleições legislativas de 1995 a& mulheres foram 22% dos nossos candidatos e corresponderam a 26,7% dos eleitos pela CDU, coligação
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que integra o PCP e os seus aliados (4 mulheres em 15 Deputados).
No Grupo Parlamentar do PCP, com 13 Deputados, foram eleitas 2 mulheres (15%) e no Grupo Parlamentar do Partido Ecologista Os Verdes foram eleitas 2 mulheres (100%).
No PS as mulheres representam 12,5% dos seus Deputados, no PSD, 8%, e no CDS-PP, 20%.
Nas autarquias importa recordar que — considerando o conjunto dos órgãos autárquicos— no mandato de 1993--1997, as mulheres eram apenas 7,5% dos eleitos.
Na CDU correspondiam a 14,5% dos seus eleitos, no PS, 7,2%, no PSD, 6,7%, e no CDS-PP, 5,7%.
Não obstante estes dados, o PCP não está satisfeito com os resultados até agora, por si, obtidos,
Neste quadro, a posição do PCP sobre esta matéria define-se em torno de quatro ideias fundamentais e indissociáveis:
1." O PCP pronuncia-se contra a proposta de lei do Governo e considera que este a deve retirar da Assembleia da República;
2.° Recordando que, nas últimas eleições legislativas, a percentagem de mulheres candidatas nas listas da CDU ascendeu a 22%, o PCP assume o compromisso público de nas próximas eleições para o Parlamento Europeu e para a Assembleia da República, assegurar um significaüvo reforço da participação de mulheres nas listas, o que corresponderá obviamente a uma percentagem superior à que a proposta de lei do Governo (25%) pretende impor para as eleições deste ano e de 2003;
3.° O PCP desafia as outras forças políticas a assumirem publicamente compromissos similares, assim
se poupando ao desprestígio de só por imposição de uma lei serem capazes de fazer o que deveria estar ao seu alcance por decisão própria, voluntária e soberana; 4.° O PCP apela a todos os cidadãos e a todos os eleitores, designadamente aos que justamente consideram que é necessário aumentar a participação das mulheres na vida política para que acompanhem a forma como os diversos partidos concretizam ou não os compromissos que assumirem, integrando também este elemento no processo de formação da sua opção de voto.
Como se vê, a posição do PCP não se resume a um simples não à proposta de lei do Governo.
Sem esquecer os problemas e condicionantes de fundo, a posição do PCP comporta convictamente a ideia de que cabe aos partidos darem sinais a testemunhos de que querem promover avanços na participação feminina na vida política que, por sua vez, favoreçam uma dinâmica de mais largo fôlego.
Mas é sobretudo a proposta da passagem do terreno da imposição autoritária por lei para o terreno da responsabilização e empenho voluntário dos partidos.
E também a proposta da passagem do terreno da imposição administrativa para o terreno — seguramente eficaz — da pressão dos movimentos de opinião e da sanção ou prémio em termos eleitorais.
Nota. — o relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade (ps, psd, pcp e cds-pp).
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