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Sexta-feira, 3 de setembro de 2021 II Série-A — Número 189
XIV LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2020-2021)
S U M Á R I O
Projetos de Lei (n.os 922 e 923/XIV/2.ª): N.º 922/XIV/2.ª (Altera o Código Penal, reforçando o combate à discriminação e aos crimes de ódio): — Alteração do texto inicial do projeto de lei.
N.º 923/XIV/2.ª (Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira) — Assegura o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa.
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PROJETO DE LEI N.º 922/XIV/2.ª (*)
ALTERA O CÓDIGO PENAL, REFORÇANDO O COMBATE À DISCRIMINAÇÃO E AOS CRIMES DE
ÓDIO
Exposição de motivos
No dia 28 de junho de 2021, o coletivo de juízes do Tribunal de Loures condenou Evaristo Marinho a 22 anos
e 9 meses de prisão efetiva por posse ilegal de arma e pelo homicídio do ator Bruno Candé, dando como provada
a motivação de ódio racial [cfr. a alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º]. No acórdão, ficou estabelecido que «não
restam dúvidas (…) que a raça do ofendido se encontra no fulcro da motivação do comportamento adotado pelo
arguido», e que se verificou «uma maturação do plano criminoso refletida e uma execução calculada e insensível
do crime». Nesta decisão paradigmática, o Tribunal considerou que foi «dada como provada a adoção, por parte
do arguido, de um discurso dirigido ao ofendido assente em juízos discriminatórios» através do uso de
expressões como «preto de merda, vai para a tua terra», «a tua mãe devia estar numa senzala e devias também
lá estar», «anda cá que levas com a bengala! Preto de merda! Eu mato-te!», tendo-se concluído, portanto, que
o arguido agiu determinado, «pela cor e origem étnica de Bruno Candé Marques, pois que na discussão mantida
no dia 22 de julho de 2020, à qual se seguiu a formulação do propósito de o matar, a ele dirigiu as diversas
expressões que acima se mostram descritas, nas quais a tal, em concreto à cor da sua pele, expressamente se
referiu».
Os comportamentos motivados pelo ódio e pela discriminação, pese embora não sejam legalmente tipificados
como condutas criminosas no ordenamento jurídico português, são uma realidade frequente na nossa sociedade
contemporânea. Segundo o Barómetro APAV-INTERCAMPUS sobre Discriminação e Crimes de Ódio (2019)1,
97% dos inquiridos conhece ou já ouviu falar dos conceitos de discriminação, crime de ódio ou violência
discriminatória e 35% afirmou já ter sido vítima ou conhecer alguém que já foi vítima de discriminação, crime de
ódio ou violência discriminatória.
A OSCE (Organisation for Security and Cooperation in Europe) define crime de ódio «como qualquer ato
criminoso, nomeadamente contra pessoas ou bens, no qual as vítimas ou o alvo do crime são selecionados em
razão da sua ligação (real ou percepcionada), laços, afiliação, apoio ou associação reais ou supostas a um
determinado grupo»2. Assim, para que possamos afirmar que nos encontramos perante um crime de ódio, a
infração deverá dizer respeito a um crime à luz do ordenamento jurídico do país onde este ocorreu e o autor/a
terá agido motivado/a por/com base em determinados preconceitos, isto é, o/a agente selecionou
intencionalmente a vítima devido a uma sua característica pessoal que a associa a um grupo social diferente da
do autor (habitualmente com menos poder e em menor número na sociedade de que fazem parte). A sua
instituição integrante, ODHIR (Office for Democratic Institutions and Human Rights) define motivação
preconceituosa como sendo «qualquer ideia pré-concebida negativa, assunções preconceituosas, intolerância
ou ódio dirigidas a um grupo específico que partilha uma característica comum, como seja a raça, a etnia, a
língua, a religião, a nacionalidade, o género, a orientação sexual, ou qualquer outra característica fundamental».
Os crimes de ódio são, portanto, definidos como «crimes de identidade», uma vez que visam um aspeto da
identidade do alvo, seja ele imutável (etnia, deficiência, orientação sexual, género, etc.) ou fundamental (religião,
hábitos culturais, etc.).
O projeto COMBAT – O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e
legislação, levado a cabo de junho de 2016 a abril de 2020, propôs-se a «colmatar um vazio que persiste ao
analisar o racismo em Portugal: o papel da legislação no combate à discriminação racial» e colocando «(…) no
centro do debate a relação entre Estado, direito e sociedade questionando, assim, os limites e possibilidades
das noções de ‘igualdade de tratamento’, de ‘discriminação’ e de ‘ódio racial’ que têm sido mobilizadas na
implementação da legislação e as suas consequências para uma compreensão (ou silenciamento) do contexto
histórico e da dimensão institucionalizada do racismo em Portugal».3
1 Pode ser acedido em: https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Barometro_APAV_Intercampus_DCO_2019.pdf. 2 Em Hate Crimes in the OSCE Region: Incidents and Responses – Annual Report for 2006 | OSCE. 3 Silvia Rodríguez Maeso (coord.), Ana Rita Alves, Sara Fernandes e Inês Oliveira, Caderno de apresentação de resultados do projeto COMBAT – «Direito, estado e sociedade: uma análise da legislação de combate ao racismo em Portugal», junho de 2020, p. 2.
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Nesse sentido, a análise levada a cabo pelo supracitado instrumento de investigação incide, entre outras
realidades, sobre a forma como é criminalizada a discriminação racial, no nosso ordenamento jurídico, e opta
por delinear as fraquezas e insuficiências do Código Penal quanto ao tratamento da discriminação e do discurso
de ódio. Verdadeiramente, a discriminação é criminalizada, de forma explícita, em três preceitos do Código
Penal: no artigo 240.º e, por qualificação, na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º e no n.º 2 do artigo 145.º. O projeto
clarifica que «a qualificação do crime por motivação de ‘ódio racial’ ou ‘gerado pela cor, origem étnica ou
nacional’ está prevista para os crimes de homicídio e ofensa à integridade física. Esta qualificação atende a um
tipo de culpa que revelaria especial perversidade ou censurabilidade, dependendo da ponderação das
circunstâncias nas quais os factos tiveram lugar assim como da atitude do agente nelas expressa».
Concretamente, quanto aos crimes de difamação e injúria, esclarece-se que estes «não estão sujeitos a esta
qualificação [por motivo de ‘ódio racial’]; a injúria racial não está especificamente qualificada no Código Penal
português, como acontece noutros ordenamentos jurídicos, nomeadamente, o brasileiro – cfr. n.º 3 do artigo
140.º do Código Penal brasileiro; em 2018, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a imprescritibilidade do
crime de injúria racial».
Esta lacuna legislativa insere-se, sistematicamente, numa sociedade que nega a experiência quotidiana de
racismo e teima, frequentemente, em qualificar esta forma de violência, inerente à ordem social e cultural, como
uma manifestação de uma «opinião», de uma atitude interna sem sequelas na vida das suas vítimas. Mas a
realidade nacional revela, precisamente, uma proliferação preocupante do discurso de ódio e da discriminação.
De acordo com a European Social Survey4, 52,9% dos Portugueses (em comparação com a média Europeia de
29,2%) considera que há raças ou grupo étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores
que outros e 54,1% mantém a crença de que há culturas melhores que outras5. Cerca de 62% dos portugueses
manifestam alguma forma de racismo6. Paralelamente, a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade,
Rosa Monteiro, afirmou, recentemente, que as queixas por discriminação racial apresentadas na Comissão para
a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) aumentaram 50% em 2020, em comparação com o ano
de 2019. Em 2020, foram apresentadas na CICDR um total de 655 queixas por práticas discriminatórias «em
razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem». A Secretária de Estado
afirmou ainda que estes números «continuam a não ser representativos» e que são «conhecidas as baixas taxas
de denúncias»7.
Verdadeiramente, na legislação portuguesa, o crime de injúria racial só́ pode ser considerado
segundo o disposto no artigo 240.º do Código Penal, que tem como epígrafe «Discriminação e incitamento
ao ódio e à violência». No seu corpo, pode ler-se:
«1 – Quem:
a) Fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à
discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem
étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou
psíquica, ou que a encorajem; ou
b) Participar na organização ou nas actividades referidas na alínea anterior ou lhes prestar assistência,
incluindo o seu financiamento;
é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 – Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da
apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade:
a) Provocar atos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica
ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou
psíquica;
4 Os resultados deste inquérito foram reproduzidos em relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa, que pode ser acedido em: European Web Site on Integration – European Commission (europa.eu). 5 Em: European Social Survey: 62% dos portugueses manifestam racismo | Racismo | PÚBLICO (publico.pt). 6 Em: Expresso | Estudo revela que 62% dos portugueses manifestam alguma forma de racismo. 7 Em Queixas por discriminação racial aumentaram 50% em 2020 – Observador.
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b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional,
ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica;
c) Ameaçar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência,
religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica; ou
d) Incitar à violência ou ao ódio contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica
ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou
psíquica;
é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.»
Ora, deste preceito resulta que o crime de injúria racial só́ terá consagração legal se cumprir, como
previsto em relação às atividades de organização e propaganda, os requisitos de «publicidade» e
«incitação»8. Como também refere a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), «no que concerne ao
tipo de ilícito objetivo constante do n.º 2 do artigo 240.º, este começa por exigir que a conduta seja
tomada publicamente, através de um meio destinado à divulgação. Assim se exclui do âmbito desta
norma qualquer conduta que, mesmo preenchendo uma das alíneas do n.º 2 do artigo 240.º do Código Penal,
ocorra numa interação entre agressor e vítima que não seja em público ou que, tendo lugar em público,
não seja apta à divulgação». Isto é, uma declaração pública injuriosa não será suficiente para que sejam
preenchidos os elementos deste tipo de crime.
Nesse sentido, Teresa PIZARRO BELEZA afirmou que «o principal problema que se coloca em Portugal
nesta sede [a valoração dos comportamentos criminalizados a título de discriminação racial] é o da aplicação
efetiva das estatuições legais. Como em outros campos, as intenções legislativas não parecem ter grande efeito
prático. Os poucos casos publicamente conhecidos de acusação penal por discriminação racial ou
terminaram em absolvição dada a falta de prova de ‘intenção de incitar à discriminação’, ou levaram à
aplicação de uma pena meramente simbólica. (…) Dado que provar a intenção de incitamento à
discriminação envolve, em alguma medida, a prova do carácter racista de uma pessoa, a proteção das
vítimas através da ameaça penal fica diminuída de forma significativa – dado que em poucos casos será́
viável essa prova.»9
Esta complexidade probatória é particularmente inteligível quando consideramos a escassez de processos
que são julgados segundo o previsto no artigo 240.º do Código Penal, especificamente no que respeita à
discriminação racial. A primeira condenação em Portugal, relacionada com o incitamento à discriminação racial
por difamação, ocorreu em 2002 e teve como arguido o Presidente de uma Junta de Freguesia. A decisão, que
condenou o arguido a uma pena suspensa de nove meses de prisão por dois crimes de discriminação racial,
sustentou-se na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 21 de dezembro de 196510,
segundo a qual «a existência de barreiras raciais é incompatível com os ideais de qualquer sociedade humana».
Desde então, a jurisprudência a este respeito é praticamente inexistente. Entre 2017 e 2019 não foi proferida,
em 1.ª instância, qualquer sentença condenatória fundamentada no artigo 240.º do Código Penal11.
Uma paradigmática decisão judicial que revelou as falhas da lei portuguesa no que concerne à consideração
da motivação discriminatória ou de ódio do autor na prática de determinada infração criminal foi a decisão
proferida pelo Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de Sintra em maio de 201912 (e posteriormente
confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa) quanto aos 17 agentes da Esquadra de Intervenção e
Fiscalização Policial (EIFP) da Divisão da Amadora da Polícia da Segurança Pública acusados pelos crimes de
injúria, ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, denúncia caluniosa e falso testemunho, num
caso que ficou conhecido como «o caso da Esquadra de Alfragide». Oito dos arguidos neste processo foram
condenados por estes crimes, tendo apenas um sido condenado a pena de prisão efetiva, e os demais a pena
suspensa. Na sua acusação, o Ministério Público afirmou que, nas 72 horas que estiveram à guarda desta
8 Silvia Rodríguez Maeso (coord.), Ana Rita Alves, Sara Fernandes e Inês Oliveira, ob. Cit., p. 17. 9 Teresa Pizarro Beleza, Desenvolvimentos recentes da legislação portuguesa antidiscriminação, 2003. 10 Pode ser lida em: https://dre.pt/application/file/a/606789. 11 Informação extraída do «Memorando sobre o combate ao racismo e à violência contra mulheres em Portugal» da Comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, março 2021. Acessível em: https://rm.coe.int/memorando-sobre-o-combate-ao-racismo-e-a-violencia-contra-mulheres-em-/1680a1e2ad. 12 Processo 29/15.4PAAMD do Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de Sintra.
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força de segurança, os seis cidadãos negros foram torturados, agredidos, humilhados e injuriados por
todos os 18 agentes da PSP da Esquadra de Investigação e Fiscalização Policial (EIFP) de Alfragide, que
agiram «por sentimento de ódio racial, de forma desumana, cruel e pelo prazer de causarem sofrimento»
às vítimas13. Mas, ainda assim, o Ministério Público acabou por deixar cair as acusações de tortura e
discriminação racial da sua acusação. Para além disso, a decisão de condenação dos agentes desta força de
segurança não revela que foi tida em conta a motivação de ódio e/ou preconceito no cometimento dos crimes.
Isto porque no ordenamento jurídico português a previsão de circunstâncias agravantes por motivação de ódio
(entre outros, racial) ou preconceito não existe, em termos amplos.
Nesta decisão do Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal de Sintra verificamos, então, uma evidente
contradição. Foram dados como provados factos como os seguintes, reproduzidos no próprio acórdão:
«Também nesta ocasião, um agente não identificado dirigiu-se por diversas vezes aos ofendidos nos
seguintes nestes termos: ‘Pretos do caralho, deviam morrer todos!’.»
«Agentes não identificados desferiram bastonadas, socos e pontapés nos ofendidos, ao mesmo tempo que
proferiam as seguintes expressões: ‘Vá, pró caralho! O que é que vocês querem, pretos do caralho? Aqui não
vão entrar!’, ‘Filhos da puta, cabrões de merda, o que é que vieram fazer aqui?’.»
«Quanto ao arguido H. […], dirigiu-se pelo menos ao ofendido R. […], nestes termos: ‘pretos do caralho, vão
para a vossa terra!’.»
Ora, os factos relatados neste excerto podem ser subsumidos ao crime de injúria, cometido através da
reprodução de declarações em que os arguidos fazem referência à percebida origem étnico-racial das vítimas.
No entanto, e como bem refere, em parecer datado de julho de 2020, a Associação Portuguesa de Apoio à
Vítima (APAV)14, «Apesar da condenação, esta decisão judicial reflete alguma insensibilidade dos
magistrados – que não é incomum no sistema como um todo – relativamente a crimes cometidos com motivação
‘racial’, mas também evidentes falhas legislativas que não permitem ao juiz o reconhecimento dessa
motivação em diversos tipos de ilícitos. Essa combinação de fatores acabou por ‘apagar’ da condenação
as matizes racistas (nesse caso específico a afrofobia) do episódio de violência policial dirigido contra
jovens negros».
Segundo o relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa,
publicado a 2 de outubro de 201815, conclui que as normas contidas na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º e no n.º
2 do artigo 145.º do Código Penal “preveem um agravamento da pena para o homicídio e ofensas corporais por
motivos baseados na raça, religião, cor, origem étnica ou nacionalidade, género ou orientação sexual. Contudo,
não existe uma regra geral estipulando que um motivo racista constitui uma circunstância agravante (…). O
artigo 71.º n.º 2 alínea c) do Código Penal, por sua vez, dispõe somente que o juiz «deve considerar os
sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram». A Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), em parecer datado de fevereiro de 202016, indicou, precisamente, como
lacuna legislativa «o caso dos crimes de difamação e injúria (artigos 180.º e 181.º do Código Penal), para os
quais o ordenamento jurídico português não prevê um agravamento da pena no caso de serem praticados com
motivação discriminatória, seja por via de um tipo penal qualificado ou de uma agravante específica. Há que
relembrar ainda que é sempre possível o reconhecimento da motivação por via da aplicação do artigo 71.º do
Código Penal (agravante geral), mas que esse caminho raramente é adotado pelo juiz no momento da aplicação
da pena». Nesse sentido, oferece variadas recomendações, particularmente no que respeita à criação de tipos
penais qualificados para os crimes que mais comumente são cometidos por motivo discriminatório, enumerando,
por exemplo, a violação, as ofensas à integridade física simples, a ameaça, a difamação, a injúria e o dano, ou
a transformação da natureza dos crimes de injúria e difamação quando qualificados por motivação
discriminatória (de particulares para semipúblicos), entre outras.
Procedendo uma análise comparada dos ordenamentos jurídicos europeus, é possível concluir-se no sentido
13 Este excerto da acusação pode ser acedido em: Sentença histórica. Oito agentes da PSP condenados por agressões, injúrias e sequestro (dn.pt). 14 O parecer da APAV pode ser lido em: https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Posicao_APAV_sobre_reconhecimento_motivacao_crimes_odio.pdf. 15 Pode ser acedido em: https://rm.coe.int/fifth-report-on-portugal-portuguese-translation-/16808de7db. 16 O posicionamento público da APAV pode ser lido em: https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Recomendacoes_Politicas_Publicas_Crimes_de_Odio_Fev_2020.pdf.
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de existir uma clara preferência generalizada pela via da não autonomização dos crimes de ódio na legislação
penal. Pelo contrário, vários ordenamentos jurídicos optam pela agravação de todas as ofensas criminais
motivadas por ódio e discriminação. É o caso do Código Penal da Suécia que, na secção 2(7) do capítulo 29
(no capítulo que se relaciona com a determinação das penas) estatui o seguinte: «Na valoração penal, as
seguintes circunstâncias agravantes devem ser especialmente consideradas para além do que é aplicável para
cada tipo de crime (…) se o motivo para o crime for agredir uma pessoa ou um grupo de pessoas em razão da
sua raça, cor, origem étnica ou nacional, crenças religiosas, orientação sexual, identidade ou expressão de
género ou outras circunstâncias agravantes». Em Itália, o legislador italiano aprovou, em 1993, o principal
diploma que se debruça sobre o combate ao ódio, o Ato n.º 205/1993, alterado pelo Ato n.º 85/2006 (Mancino
Act). O artigo 3.º deste instrumento legislativo considera o ódio como uma circunstância agravante no
cometimento de outros crimes, decretando o aumento da medida da pena do crime em casa para até metade.
Na Áustria, o quinto subparágrafo do primeiro parágrafo da secção 33 do Código Penal consagra o motivo
discriminatório por detrás de qualquer conduta que constitua crime como uma circunstância agravante da
infração, suscetível de aumentar a medida da pena que será aplicável ao autor do crime no momento da
condenação.O mesmo se verifica em relação a Malta que, no artigo 83.º-B do seu Código Penal, considera o
ódio como uma circunstância agravante da moldura penal de todas as infrações criminais17, Dinamarca (secção
81 n.º 6 do Código Penal), Finlândia (secção 5 do 6.º capítulo do Código Penal), França (artigo 132.º-76 do
Código Penal) e Espanha (4.º parágrafo do artigo 22.º do Código Penal).
Há também alguns países que optam por um caminho distinto, mas cujo resultado acaba por ser coincidente.
A título ilustrativo, Bélgica, Bulgária, Luxemburgo, Eslováquia e Eslovénia adotam disposições diversas que
consagram agravamentos para tipos de crime específicos que tenham sido praticados com motivação de ódio
ou preconceito18.
Afirmamos, com regularidade, que «racismo não é opinião, é crime», «homofobia não é opinião, é
crime», «transfobia não é opinião, é crime»… Mas estas declarações são apenas parcialmente verdadeiras.
Condutas racistas, homofóbicas ou transfóbicas, por exemplo, serão apenas crimes, na lei penal portuguesa, se
se verificar o cumprimento de apertados requisitos. Se determinado indivíduo difamar ou injuriar pessoa ou grupo
de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação
sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica em público, por meio apto à divulgação, a sua
conduta poderá ser reconduzida ao n.º 2 do artigo 240.º do Código Penal. No entanto, se determinado indivíduo
difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional,
ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica num
contexto privado, ou, mesmo tendo a interação ocorrido em público, tenha lugar em meio não apto à divulgação,
a vítima apenas poderá fazer-se valer da proteção conferida pelo crime de injúria, que não prevê qualquer
agravação das penas quando cometida com motivação de ódio ou preconceito.
Mais, os crimes de difamação e injúria constituem crimes particulares. Ora, a natureza deste tipo criminal
implica que a legitimidade do Ministério Público quanto à prossecução da investigação penal é particularmente
limitada, pois o/a ofendido/a deverá, por um lado, manifestar, clara e expressamente, que tem vontade que
decorra o processo criminal (através da apresentação de queixa), mas também constituir-se como assistente e
deduzir acusação particular (cfr. artigo 50.º do Código de Processo Penal), atos que são particularmente
onerosos para o ofendido/a, pois implicam o pagamento de taxa de justiça e a constituição de advogado, que
(pese embora se consagre o acesso adequado à justiça como um direito fundamental e considerando a
possibilidade, ainda que limitada, de receber apoio judiciário do Estado) pressupõem um suporte material e uma
suficiente estabilidade económico-financeira, bem como disponibilidade emocional para acompanhar e
contribuir, enquanto assistente, no âmbito de um processo penal.
Assim, este projeto pressupõe, adicionalmente, a transformação dos crimes de injúria e difamação em
crimes semipúblicos, quando os factos que se reconduzem ao ilícito criminal tiverem sido praticados
com uma motivação discriminatória, uma vez que, nestas situações, o desvalor das condutas é
particularmente indiscutível, e, estando em causa não apenas um bem jurídico – a honra da vítima, – mas
17 Artigo 83.º-B do Código Penal de Malta: «The punishment established for any offense shall be increased by one to two degrees when the offense is aggravated, wholly or in part, by hatred against a person or a group on the grounds of gender, gender identity, sexual orientation, race, colour, language, national or ethnic origin, citizenship, religion or belief or other opinion (…)».18 Esta análise comparativa foi extraída de: Hate crime recording and data collection practice across the EU | European Union Agency for Fundamental Rights (europa.eu).
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também a vida, a dignidade, a integridade pessoal (física e moral) e a Igualdade entre todas as cidadãos e todos
os cidadãos, independentemente da sua raça, etnia, nacionalidade, cor, religião, sexo, orientação sexual,
identidade de género, deficiência física ou psíquica, entre outras características diferenciadoras, justifica-se uma
mais ampla e vigorosa abordagem criminal que, efetivamente, proteja as vítimas destas formas arbitrárias de
discriminação e assegure o cumprimento dos fins do Direito Penal, concretamente de prevenção geral e de
prevenção especial.
Por fim, importa realçar que a alteração ao artigo 240.º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2017, de
23 de agosto, procedeu, novamente, à alteração do texto originário desta norma, promovendo um alargamento
dos preconceitos determinantes de ódio e acrescentando ao elenco a «deficiência física ou psíquica». Como
aponta a Associação de Apoio à Vítima (APAV)19, esta alteração «veio criar um desfasamento entre os motivos
determinantes do ódio nesta norma e aqueles que constam do artigo 132.º, n.º 2, da alínea f), do Código Penal»,
na qual se refere apenas à determinação do agente «por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem
étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima». Esta
desconformidade entre as duas normas é particularmente relevante quando se tem em conta a remissão levada
a cabo pela alínea e) do artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal para a alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º do mesmo
diploma.
Estas alterações, embora insuficientes, poderão assinalar um compromisso efetivo do legislador em
desmantelar a institucionalização do racismo na sociedade portuguesa e garantir o cumprimento do Plano de
Ação da União Europeia contra o Racismo 2020-202520, que é inequívoco ao estatuir que «embora a luta contra
o racismo exija uma intervenção firme numa multiplicidade de domínios, a proteção oferecida pela lei é
crucial. Um sistema abrangente de proteção contra a discriminação requer, antes de mais, uma aplicação
eficaz do quadro jurídico, a fim de garantir o respeito na prática dos direitos e obrigações individuais.
Implica também assegurar que não há lacunas nesta proteção».
Se a lei, e em concreto a legislação penal, as instituições e os serviços públicos teimam em negar a
naturalização do racismo na sociedade portuguesa, o Estado falhou. Se a lei contribui, de forma ativa ou passiva,
para a opressão de minorias étnico-raciais, da comunidade LGBTQI+, das mulheres, das minorias religiosas,
das pessoas portadoras de deficiência, através da negação, do condicionamento ou do esquartejar das suas
liberdades individuais, o Estado falhou. Se os mecanismos jurídicos que as populações mais vulneráveis têm à
sua disposição para proteger a sua dignidade humana, exercer os seus direitos fundamentais em condições de
igualdade e salvaguardar a sua honra e a sua integridade pessoal são ineficazes, não operam adequadamente,
causam ceticismo, desconfiança ou frustração nas pessoas que devem proteger ou dependem de um
investimento material excessivo para serem desencadeados, o Estado falhou. Para que a lei seja um instrumento
de luta contra qualquer forma de repressão, de assédio, de discriminação ou de ódio, ela deve ser repensada,
reimaginada e rescrita, de forma a que ilustre, verdadeiramente, os desafios coletivos que enfrentamos, na
nossa sociedade contemporânea, e reforce o imperativo constitucional de edificar uma sociedade livre, justa e
solidária.
Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, a Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira
apresenta o seguinte projeto de lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei apresenta a quinquagésima terceira alteração do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
400/82, de 23 de setembro, alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.os 101-A/88, de 26
de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.os 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de
setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de
agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.os 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de
8 de março, pelas Leis n.os 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de 3 novembro, pelo Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.os 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de
19 Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Manual ÓDIO NUNCA MAIS – Apoio a vítimas de crime de ódio, 2018. Disponível em: Projeto ÓDIO NUNCA MAIS – formação e sensibilização no combate aos crimes de ódio e discurso de ódio (apav.pt). 20 Acessível em: A Union of Equality: EU anti-racism action plan 2020–2025 | Comissão Europeia (europa.eu).
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fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de
setembro, 40/2010, de 3 de setembro, 4/2011, de 16 de fevereiro, 56/2011, de 15 de novembro, 19/2013, de 21
de fevereiro, 60/2013, de 23 de agosto, pela Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de agosto, pelas Leis n.os 59/2014,
de 26 de agosto, 69/2014, de 29 de agosto, e 82/2014, de 30 de dezembro, pela Lei Orgânica n.º 1/2015, de 8
de janeiro, e pelas Leis n.os 30/2015, de 22 de abril, 81/2015, de 3 de agosto, 83/2015, de 5 de agosto, 103/2015,
de 24 de agosto, e 110/2015, de 26 de agosto, 39/2016, de 19 de dezembro, 8/2017, de 3 de março, 30/2017,
de 30 de maio, 94/2017, de 23 de agosto, 16/2018, de 27 de março, 44/2018, de 9 de agosto, 101/2019 e
102/2019, ambas de 6 de setembro, 39/2020, de 18 de agosto, 40/2020, de 18 de agosto e 58/2020, de 31 de
agosto.
Artigo 2.º
Alteração ao Código Penal
São alterados os artigos 132.º e 188.º do Código Penal, que passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 132.º
Homicídio Qualificado
1 – ................................................................................................................................................................... .
2 – É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior,
entre outras, a circunstância de o agente:
a) ...................................................................................................................................................................... ;
b) ...................................................................................................................................................................... ;
c) ...................................................................................................................................................................... ;
d) ...................................................................................................................................................................... ;
e) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor da pele, origem étnica ou nacional,
pelo sexo, pela orientação sexual, pela identidade de género ou por deficiência física ou psíquica da vítima;
f) ....................................................................................................................................................................... ;
g) ...................................................................................................................................................................... ;
h) ...................................................................................................................................................................... ;
i) ....................................................................................................................................................................... ;
j) ....................................................................................................................................................................... ;
k) ...................................................................................................................................................................... ;
l) ....................................................................................................................................................................... .
Artigo 188.º
Procedimento criminal
1 – O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular,
ressalvados os casos:
a) ..................................................................................................................................................................... ;
b) ..................................................................................................................................................................... ;
c) Dos artigos 180.º, 181.º e 182.º, quando os factos forem determinados por ódio racial, religioso,
político ou fundamentados na cor, deficiência física ou psíquica, origem étnica ou nacional, sexo,
orientação sexual ou identidade de género da vítima, em que é suficiente a queixa ou a participação.
2 – ................................................................................................................................................................... .
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Artigo 3.º
Aditamento ao Código Penal
É aditado o artigo 71.º-A ao Código Penal, com a seguinte redação:
«Artigo 71.º-A
Agravação por motivos de ódio ou discriminação
Quando os factos praticados forem determinados por ódio racial, religioso, político ou fundamentados na cor,
deficiência física ou psíquica, origem étnica ou nacional, sexo, orientação sexual ou identidade de género da
vítima, as penas são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo.»
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação.
Assembleia da República, 1 de setembro de 2021.
A Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.
(*) O texto inicial foi alterado a pedido do autor da iniciativa em 2 de setembro de 2021 [Vide DAR II Série-A n.º 188 (2021-09-01)].
———
PROJETO DE LEI N.º 923/XIV/2.ª
ASSEGURA O DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO DA IDENTIDADE DE GÉNERO E EXPRESSÃO DE
GÉNERO E O DIREITO À PROTEÇÃO DAS CARACTERÍSTICAS SEXUAIS DE CADA PESSOA
Exposição de motivos
O mês do Orgulho LGBTQI+ é celebrado anualmente em honra do movimento de protesto contra o
policiamento repressivo que impulsionou a luta global pela defesa dos direitos humanos e das liberdades
individuais das pessoas LGBTQI+ e que teve início a 28 de junho de 1969 em Stonewall, Nova Iorque (EUA).
Ora, neste que é um mês de celebração mundial dos Direitos das pessoas LGBTQI+ e precisamente no dia
seguinte ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQI+, o Tribunal Constitucional português, por via do Acórdão n.º
474/20211, pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo
12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa.
A Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto2, que consagra o direito à autodeterminação da identidade de género e
expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa, revogou a Lei n.º 7/2011, de 15
de março3, que, por sua vez, regulava o procedimento de mudança de sexo legal no registo civil e
correspondente alteração de nome próprio. Este diploma alterou o paradigma vigente no ordenamento jurídico
português, segundo o qual o processo de reconhecimento legal da identidade das pessoas trans existia num
vazio jurídico e de enorme incerteza. Isto porque, até então, a mudança de sexo legal e nome próprio apenas
era possível através do desencadeamento de um processo judicial, o que, na prática, significava que uma
1 Em: TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 474/2021 (tribunalconstitucional.pt) 2 Em: Lei n.º 38/2018, 2018-08-07 – DRE. 3 Em: Lei n.º 7/2011, 2011-03-15 – DRE.
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pessoa trans deveria, em tribunal, alegar que o Estado português teria cometido um erro na atribuição e registo
da sua identidade. Os processos eram marcados pela pesada burocracia e pela morosidade. Infligiam
sentimentos de humilhação e vergonha nas pessoas trans, que se encontravam sujeitas a padrões de género
arbitrários e injustificados, a constantes violações à sua intimidade e vida privada e a visões caricaturais do que
deveriam ser os homens e as mulheres trans, o que acabava por provocar a exclusão de muitas pessoas no
acesso ao reconhecimento legal da sua identidade e o atropelo dos seus Direitos Humanos, pela exigência de
tratamentos médicos (incluindo cirurgias genitais) e de esterilização obrigatória4. Assim, esta lei conferiu um
caráter administrativo ao processo de reconhecimento legal da identidade de género, garantindo que os
requerentes (isto é, pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade, residentes em território nacional
ou estrangeiro) poderiam apresentar este pedido em qualquer conservatória do registo civil, que deve ser
acompanhado de relatório que comprove o diagnóstico de «perturbação de identidade de género», elaborado
por uma equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado,
nacional ou estrangeiro. 91% dos participantes no projeto «Lei de identidade de género»: Impacto e desafios da
inovação legal na área do (trans)género, que pretendeu avaliar a implementação e o impacto da Lei n.º 7/2011,
descreveu este avanço legislativo como «importante» ou «extremamente importante».
A Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, transpõe, portanto, um direito fundamental já previsto na Constituição da
República Portuguesa, nomeadamente no seu artigo 26.º, segundo o qual «A todos são reconhecidos os direitos
à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e
reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra
quaisquer formas de discriminação». À publicação desta lei seguiu-se o Despacho n.º 7247/2019, de 16 de
agosto, que visava estabelecer as medidas administrativas essenciais que o Estado assegure «a adoção de
medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do
direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das
características sexuais das pessoas» (cfr. n.º do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto).
Segundo este diploma legislativo, o reconhecimento jurídico da identidade de género pressupõe, então, a
abertura de um procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de
nome próprio, mediante requerimento. Têm legitimidade para requerer este procedimento as pessoas de
nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia
psíquica, cuja identidade de género não corresponda ao sexo atribuído à nascença. As pessoas com idade
compreendida entre os 16 e os 18 anos podem requerer o procedimento através dos seus representantes legais,
devendo o conservador ouvir o requerente, por forma a apurar o seu consentimento expresso, livre e esclarecido,
mediante relatório realizado por qualquer médico inscrito na Ordem dos Médicos ou psicólogo inscrito na Ordem
dos Psicólogos, que ateste a capacidade de decisão e vontade informada da pessoa em causa.
O Acórdão n.º 474/2021 do Tribunal Constitucional, de 29 de junho do corrente, no qual foi declarada a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º
38/2018, de 7 de agosto, surgiu na sequência de um pedido de fiscalização abstrata sucessiva da
inconstitucionalidade das supracitadas normas que não incidiu sobre a configuração e conformação do direito à
autodeterminação da identidade de género, nem sobre o seu «reconhecimento jurídico» através da mudança da
menção do sexo no registo civil por decisão do requerente, mas tão somente sobre as normas dos n.os 1 e 3 do
artigo 12.º, que respeitam a medidas a adotar no plano do sistema educativo. De acordo com os requerentes,
estas disposições legais suscitam duas questões de constitucionalidade: por um lado, levanta-se uma questão
de violação da proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado e da liberdade de programação do
ensino particular, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 43.º, uma vez que os requerentes argumentam que os
preceitos legais em causa refletem uma «particular conceção da identidade de género», de tipo «culturalista» e
«construtivista», denominada, pelos próprios, como «ideologia de género»5. Por outro lado, há uma questão de
violação «da exigência de precisão ou determinabilidade das leis», bem como do «princípio da reserva de lei
parlamentar», uma vez que «o artigo 12.º, n.os 1 e 3, não oferece uma medida jurídica apta a fixar orientações
com densidade suficiente para balizar a adoção pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da
igualdade de género e da educação das medidas administrativas a adotar no prazo de 180 dias».
4 Em A Lei da Identidade de Género – Avaliação da implementação e do impacto da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, que regula o procedimento de mudança de sexo legal no registo civil e correspondente alteração de nome próprio da ILGA Portugal. 5 Acórdão n.º 474/2021 do Tribunal Constitucional, p. 11.
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O Tribunal Constitucional adotou parte desta argumentação, concluindo pela inconstitucionalidade das
supracitadas normas pela violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República
Portuguesa, que estabelece a reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de
direitos, liberdades e garantias. Citando o Tribunal Constitucional, a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, «tem por
objeto único o regime do exercício de determinados direitos fundamentais com essa natureza; regula uma
matéria nova que tem provocado debate público — o exercício desses direitos por crianças e jovens nos
estabelecimentos de ensino; reenvia para simples despacho ministerial a sua regulamentação; e as soluções
que se impõem nesse domínio, como revela o conteúdo do despacho [n.º 7247/2019, de 16 de agosto], têm um
âmbito geral e uma vocação de permanência perfeitamente compagináveis com a sua inclusão numa lei. Neste
contexto, é muito elevado o nível de exigência quanto à extensão da regulação legal e muito estreito o espaço
que pode ser reenviado ao poder regulamentar (…)».
Torna-se relevante destacar que, e não emitindo aqui um juízo de opinião sobre os fundamentos que estão
por trás da decisão proferida, a decisão que consta no acórdão redigido pelo Tribunal Constitucional na
sequência do pedido de fiscalização abstrata sucessiva da inconstitucionalidade das normas do artigo 12.º da
referida lei, por incidir sobre um aspeto meramente formal ou processual de um diploma legal, não implica a
inconstitucionalidade deste diploma, como um todo, e não coloca em causa a garantia do direito à identidade de
género e de expressão de género, nem questiona a proibição da discriminação nos estabelecimentos de ensino,
como é ademais destacado na carta aberta6 redigida por um conjunto de associações e coletivos da sociedade
civil, bem como subscritores individuais, e dirigida aos Deputados da Assembleia da República sobre a urgência
de iniciar o processo legislativo dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, e avançada na
sequência do supracitado acórdão do Tribunal Constitucional. Esta carta expressa um apelo: «as pessoas trans,
não-binárias, intersexo e em questionamento já se sentem demasiado vulneráveis para que a tranquilidade,
proteção e segurança em ambiente escolar, e ao longo do processo educativo, que lhes foram asseguradas por
via legislativa, não sejam imediatamente concretizadas, de acordo com as respectivas expectativas. As
comunidades educativas já fizeram um enorme esforço de adaptação e preparação para implementar as
medidas preconizadas que se destinam, tão-somente, a reduzir e, desejavelmente, acabar com a discriminação
em ambiente escolar e preparar as pessoas discentes para a diversidade e a inclusão».
De igual forma, a Estratégia para a igualdade de tratamento das pessoas LGBTIQ 2020-20257 da União
Europeia reconhece que «A discriminação contra as pessoas LGBTIQ [lésbicas, gays, bissexuais, transgénero,
não binárias, intersexuais e queer] persiste em toda a UE. Para muitas, ainda não é seguro, na UE,
demonstrarem afeto em público, assumirem a sua orientação sexual, identidade de género, expressão de género
e características sexuais (em casa ou no trabalho), ou seja, serem simplesmente elas próprias sem se sentirem
ameaçadas. Um número significativo de pessoas LGBTIQ encontra-se também em risco de pobreza e exclusão
social. Nem todas se sentem seguras para denunciar agressões verbais e violência física à polícia» e determina
que é necessário «dar voz às pessoas LGBTIQ e congregar os Estados-Membros e intervenientes a todos os
níveis num esforço comum para combater eficazmente a discriminação contra as pessoas LGBTIQ».
O discurso da Presidente da Comissão Europeia no debate sobre o Estado da União, a 16 de setembro de
2020, fortalece, sobretudo, este imperativo de Igualdade e Não-Discriminação. Ursula von der Leyen afirmou:
«Não pouparei esforços na construção de uma União de igualdade. Uma União onde podemos ser quem somos
e amar quem quisermos – sem medo de recriminações ou discriminações. Porque ser o que somos não é uma
questão de ideologia. É a nossa identidade. E ninguém pode privar-nos dela». Assim, o Estado português tem
como responsabilidade primordial assegurar a efetividade deste plano de ação, através da criação das
condições necessárias para que crianças e jovens lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e com outras
identidades não normativas (LGBTQI+) beneficiem do acesso a oportunidades e direitos em condições de
igualdade e de uma eficaz proteção legal face à repressão, assédio e preconceito.
Mais ainda, é importante referir que se tem verificado, a nível nacional, uma tendência crescente no número
de denúncias de discriminação e violência contra pessoas em função da sua orientação sexual, identidade ou
expressão de género e características sexuais. Em junho de 2020, a ILGA Portugal divulgou os dados recolhidos
pelo Observatório da Discriminação Contra Pessoas LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e
outras identidades) em 2019. O relatório adiantou que, neste ano, verificou-se uma subida de 4% nas denúncias
6 Carta aberta pede urgência na regulação da autodeterminação da identidade de género. 7 Em: EUR-Lex – 52020DC0698 – EN – EUR-Lex (europa.eu).
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feitas pelas próprias vítimas, constituindo estas a maior fonte dos registos (43,27%). No total, o Observatório da
Discriminação Contra Pessoas LGBTI+ registou 171 denúncias neste ano.
Os dados transcritos evidenciam a necessidade de erradicar os estereótipos, a discriminação e a violência
direcionadas a pessoas em resultado da sua orientação sexual, identidade ou expressão de género e
características sexuais e garantir a todas as crianças e jovens a preservação da sua integridade emocional e
física, a sua liberdade, a sua identidade, e a sua independência, num espaço de enorme centralidade nas suas
vidas como é a escola. É, pois, indispensável proceder à regulamentação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, o
quanto antes e a tempo do ano letivo 2021/2022, garantindo a superação deste impasse, que resultou do referido
Acórdão do Tribunal Constitucional. Esta iniciativa legislativa visa, portanto, essa mesma regulamentação,
levando a cabo uma primeira alteração à Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, uma vez que, por estarmos perante
matéria que diz respeito a direitos, liberdades e garantias, é aos Deputados da Assembleia da República a quem
cabe a competência para a regulamentação das medidas que assegurem o exercício do direito à
autodeterminação da identidade e expressão e do direito à proteção das características sexuais das pessoas
em contexto escolar.
Para além disso, procede-se a uma transposição parcial do Despacho n.º 7247/2019, de 16 de agosto, que
visava estabelecer as medidas administrativas essenciais que o Estado assegure «a adoção de medidas no
sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à
autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características
sexuais das pessoas» (cfr. n.º do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto), mantendo o seu alcance e
configuração gerais (de forma a facilitar a sua implementação, pelos estabelecimentos escolares, e diminuir a
incerteza e indefinição que seriam inevitáveis caso fosse adotado um diploma inteiramente novo), mas
introduzindo relevantes alterações, como a criação de gabinetes multidisciplinares de apoio às crianças e jovens,
bem como a implementação de medidas concretas para combater todas as formas de violência, bullying e
exclusão social de jovens lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e com outras identidades não normativas
(LGBTQI+), para integrar, nos materiais educativos e currículos escolares, imagens e modelos de
representatividade e visibilização das várias orientações sexuais, identidades e expressões de género e das
diferentes configurações de estruturas familiares e para adotar uma linguagem inclusiva, que promova a
Igualdade, entre outras medidas.
Assim, reforça-se a ideia de que os estabelecimentos escolares devem ser locais onde as crianças e jovens
podem aprender em segurança, potencializar a sua criatividade, desenvolver a sua agência intelectual e
consciência social, estabelecer relações interpessoais baseadas na aceitação, na tolerância e no respeito pelo
outro, traçar projetos de vida e encontrar apoio, incentivo e reforço positivo.
Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, a Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira
apresenta o seguinte projeto de lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei procede à primeira alteração da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à
autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características
sexuais de cada pessoa, e à aprovação da regulamentação necessária à implementação do disposto no número
1 do seu artigo 12.º, na redação dada pela presente lei.
Artigo 2.º
Alteração à Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto
O artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 12.º
1 – A Assembleia da República deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis
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de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género
e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através
do desenvolvimento de:
a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género,
expressão de género e das características sexuais;
b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável
desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que
não se identifica com o sexo atribuído à nascença;
c) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das
características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar,
assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem
transições sociais de identidade e expressão de género;
d) Formação adequada e de natureza contínua dirigida a docentes e demais profissionais do sistema
educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de
género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como
processo de integração socioeducativa.
2 – ................................................................................................................................................................... .
3 – A Assembleia da República aprova a regulamentação necessária à implementação do disposto no n.º 1.»
Artigo 3.º
Regulamentação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto
É aprovada, no anexo I à presente lei, a regulamentação necessária à implementação do disposto no n.º 1,
do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto.
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Assembleia da República, 3 de setembro de 2021.
A Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.
Anexo I
Regulamentação necessária à implementação do disposto no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018,
de 7 de agosto
(a que se refere o artigo 3.º da presente lei)
Artigo 1.º
Objeto
O presente anexo estabelece as medidas administrativas que as escolas devem adotar para efeitos da
implementação do previsto no n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à
autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características
sexuais de cada pessoa.
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Artigo 2.º
Medidas administrativas
Considerando a necessidade de garantir o exercício do direito das crianças e jovens à autodeterminação da
identidade e expressão de género e do direito à proteção das suas características sexuais, e no respeito pela
singularidade de cada criança e jovem, devem ser adotadas em cada escola medidas que, promovendo a
cidadania e a igualdade, incidam sobre:
a) Prevenção e promoção da não discriminação;
b) Combate a todas as formas de violência, bullying e exclusão social;
c) Mecanismos de deteção e de intervenção sobre situações de risco;
d) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das
características sexuais das crianças e dos jovens;
e) Formação direcionada sobre os temas da orientação sexual, identidade e expressão de género e proteção
das características sexuais, dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo, com um caráter
contínuo.
Artigo 3.º
Prevenção e promoção da não discriminação
Para efeitos de prevenção e eliminação de quaisquer formas de discriminação em função da identidade e
expressão de género e da proteção das características sexuais das crianças e jovens em meio escolar, as
escolas desenvolvem, entre outras, as seguintes medidas:
a) Promoção, em articulação com associações, coletivos e formadores que integrem a comunidade
LGBTQI+, ações de sensibilização e formação certificada, de natureza contínua, dirigidas às crianças e jovens
e alargadas a outros membros da comunidade escolar, incluindo pais/mães, encarregados de educação e/ou
representantes legais, de forma a garantir que a escola seja um espaço de inclusão, liberdade e respeito, livre
de qualquer pressão, agressão ou discriminação;
b) Disponibilização de recursos públicos de informação objetiva, de forma visível e acessível a toda a
comunidade escolar, sobre o que constituem situações de discriminação e que serviços de apoio estão
disponíveis para as vítimas, de forma a contribuir para a promoção do respeito pela autonomia, privacidade e
autodeterminação de crianças e jovens que realizem transições sociais de género e de crianças e jovens com
identidades não normativas;
c) Integração, nos materiais educativos e currículos escolares, de imagens e modelos de representatividade
e visibilização das várias orientações sexuais, identidades e expressões de género e das diferentes
configurações de estruturas familiares;
d) Divulgação e promoção, com base nas orientações normativas nacionais e internacionais aplicáveis, de
uma linguagem inclusiva, que promova a Igualdade entre toda a comunidade escolar.
Artigo 4.º
Mecanismos de combate à violência, bullying e exclusão social
Para efeitos de combate à violência, bullying e exclusão social e outras formas de tratamento discriminatório
ou degradante em função da orientação sexual, identidade e expressão de género ou características sexuais
das crianças e jovens em meio escolar e assegurando a prevalência de uma lógica reparadora e não punitivista,
as escolas desenvolvem, entre outras, as seguintes medidas:
a) Criação de mecanismos seguros de denúncia de qualquer situação de violência, bullying (incluindo o
cyberbullying) e exclusão social, que privilegiem a privacidade e a proteção e que se centrem no bem-estar das
crianças e jovens afetados e no seu processo de reajustamento e superação emocional da situação negativa;
b) Disponibilização de formação contínua e recursos informativos, direcionados para o público escolar,
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pessoal docente e não-docente, bem como para as/os mães/pais, encarregados de educação e representantes
legais, sobre os efeitos do bullying e do cyberbullying na vida dos jovens e suas famílias, bem como sobre os
meios de proteção disponíveis, as entidades às quais é possível recorrer em caso de violência e assédio
(incluindo-se o assédio online) e a importância de adotar uma linguagem digital não-violenta, que assente no
respeito pela dignidade da pessoa humana.
Artigo 5.º
Mecanismos de deteção e intervenção
1 – As escolas definem canais de comunicação e deteção, identificando o responsável ou responsáveis na
escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou
expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença.
2 – A escola, após ter conhecimento da situação prevista no número anterior ou quando a observe em
ambiente escolar, deve, com o prévio consentimento da criança ou jovem e em articulação com os/as pais/mães,
encarregados de educação ou com os representantes legais, promover a avaliação da situação, com o objetivo
de reunir toda a informação e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de
garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem.
Artigo 6.º
Condições de proteção da identidade de género e de expressão
1 – Tendo em vista assegurar o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e
jovens, que realizem transições sociais de identidade e expressão de género, devem ser conformados os
procedimentos administrativos, procurando:
a) Estabelecer a aplicação dos procedimentos para mudança nos documentos administrativos de nome e/ou
género autoatribuído, em conformidade com o princípio do respeito pelo livre desenvolvimento da personalidade
da criança ou jovem em processo de transição social de género, conforme a sua identidade;
b) Adequar a documentação de exposição pública e toda a que se dirija a crianças e jovens,
designadamente, registo biográfico, fichas de registo da avaliação, fazendo figurar nessa documentação o nome
adotado, de acordo com o previsto no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, garantindo que o
mesmo não apareça de forma diferente dos restantes alunos e alunas, sem prejuízo de nas bases de dados se
poderem manter, sob confidencialidade, os dados de identidade registados;
c) Garantir que a aplicação dos procedimentos definidos nas alíneas anteriores concilia a vontade expressa
dos/das pais/mães, encarregados de educação ou representantes legais da criança ou jovem e o bem-estar
físico e emocional, autonomia e segurança da criança ou jovem.
2 – No âmbito das medidas conducentes à adoção de práticas não discriminatórias, devem as escolas emitir
orientações no sentido de:
a) Assegurar o direito da criança ou jovem a utilizar o nome social por si escolhido em todas as atividades
escolares e extraescolares que se realizem na comunidade escolar, sem prejuízo de garantir, em todo o caso,
a adequada identificação da pessoa através do seu documento de identificação em situação que o exijam, tais
como o ato de matrícula, exames ou outras situações similares;
b) Promover o fim da realização de atividades diferenciadas por género, entendendo que não existem
atividades próprias do espaço de ensino que justifiquem essa segregação;
c) Nos casos em que prevaleçam atividades diferenciadas por sexo, o assegurar de ambientes que permitam
que se tome em consideração o género autoatribuído, garantindo que as crianças e jovens possam optar por
aquelas com que sentem maior identificação;
d) Ser respeitada a utilização de vestuário no sentido de as crianças e dos jovens poderem escolher de
acordo com a opção com que se identificam, entre outros, nos casos em que existe a obrigação de vestir um
uniforme ou qualquer outra indumentária diferenciada por sexo.
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3 – As escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de
banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade,
segurança e conforto.
Artigo 7.º
Formação
As escolas devem promover a organização de ações de formação certificada, de natureza contínua, dirigidas
ao pessoal docente e não docente, em articulação com os Centros de Formação de Associação de Escolas
(CFAE) e com as associações, coletivos e formadores que integrem a comunidade LGBTQI+, de forma a
impulsionar práticas de efetivo respeito pela diversidade de expressão e de identidade de género e das
características sexuais das crianças e jovens, que permitam pôr fim aos estereótipos e comportamentos
discriminatórios.
Artigo 8.º
Gabinetes de Apoio Multidisciplinar
1 –As escolas devem implementar gabinetes multidisciplinares que, em articulação com pessoas estudantes,
pais/mães, encarregados de educação e/ou representantes legais da criança ou jovem, assegurem a avaliação
da situação e procedam ao encaminhamento da pessoa estudante para os serviços adequados, conforme as
necessidades demonstradas na situação, nomeadamente serviços de apoio psicossocial, serviços de apoio
administrativo para alteração de documentos de identificação, serviços de saúde, entre outros.
2 –A privacidade da criança ou jovem deve ser respeitada em todo o processo de apoio.
Artigo 9.º
Confidencialidade
As escolas devem garantir a confidencialidade dos dados das crianças e jovens em todo o processo.
A DIVISÃO DE REDAÇÃO.