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II SÉRIE-A — NÚMERO 176

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crime deixou de existir, mas apenas que o direito penal deixa de ter motivos para intervir1.

O que nem sempre é verdade. E não é verdade para os crimes que atentem contra a liberdade e contra a

autodeterminação sexual, uma vez que, nestes crimes, o surgimento de uma denúncia pode ocorrer anos ou

décadas mais tarde, quando já se encontrem reunidas condições sociais de independência financeira e,

também, familiar, que permitam à vítima ter mais liberdade na decisão de denunciar estes crimes.

Uma vez que grande parte destes casos ocorre precisamente no meio familiar2, a independência familiar tem

ainda maior importância.

Ora, como os nossos jovens saem de casa, em média, entre os 33 e os 34 anos, o prazo de 23 anos afigura-

se insuficiente uma vez que, até estas idades, não têm os jovens portugueses independência económica e

financeira e logo, familiar, para denunciarem certos crimes que ocorreram no seio da família3.

Mais especificamente, o Manual da rede CARE, da APAV — Associação Portuguesa de Apoio à Vítima,

elenca como fatores que podem influenciar a efetivação da denúncia: i) a maturidade da vítima para diagnosticar

ou verbalizar a violência que lhe foi imposta; ii) a proximidade com a pessoa agressora, que não raras vezes só

permite que as vítimas se apercebam mais tarde das situações a que foram obrigadas e, por último, iii) a eventual

repercussão económica resultante da denúncia.

Importa, ainda, lembrar que as denúncias podem motivar outras vítimas da mesma pessoa agressora a virem

narrar às autoridades as situações que vivenciaram, bem como a permitir a identificação de eventuais

testemunhas e de novas provas dos factos.

Neste caso particular e excecional, deve aceitar-se o alargamento do prazo de prescrição, por se tratar de

um crime que leva normalmente décadas até que as vítimas tenham o tempo interior necessário, e sempre

subjetivo, para revelar a violência a que foram sujeitas.

Lembramos ainda que a maioria dos agressores são adultos com uma perturbação grave de personalidade4,

e que estes têm dificuldade em assumir a prática de um ato criminoso, pelo que a reincidência é comum,

perpetuando a conduta criminosa. Prova disso é o relatório estatístico do projeto CARE, da APAV, relativo ao

período compreendido entre 2016 e 2021, ao indicar que indicar que, em 55,6 % do total de situações

acompanhadas, os crimes ocorriam de forma continuada.

Ora, se a estabilização jurídica dos factos é inegavelmente um interesse jurídico relevante, o interesse da

vítima em proceder à denúncia num momento que respeite e vá ao encontro dos seus próprios «tempos»

também o é, pelo que se impõe, neste caso concreto, a ponderação de um equilíbrio entre estes interesses.

No que se refere a crimes sexuais, a justiça tem vários problemas que têm de ser resolvidos com um conjunto

de medidas vasto e alargado mas que acreditamos começar com uma intervenção legislativa cirúrgica a nível

penal, que agora apresentamos e que visa endereçar os factos, a título de exemplo, relatados pelo Relatório

Anual de Segurança Interna, relativo ao ano de 2021, que nos revela que o crime contra a liberdade e

autodeterminação sexual que regista maior percentagem é o abuso sexual de crianças (36,3 %).

Segundo o Conselho da Europa, uma em cada cinco crianças é alvo de alguma forma de violência sexual5.

Os pedidos de ajuda à rede CARE, da APAV, por parte de vítimas de idade muito próxima ou já após os 23 anos

de idade, inviabilizam o procedimento criminal e convém lembrar que 16 % dos pedidos de apoio entre 2016 e

2021 foram-no por pessoas com 18 ou mais anos de idade e destes, 37 % tinham 23 ou mais anos de idade, o

que nos leva a concluir que a legislação atual se encontra desadequada da realidade.

Dado o exposto, é de considerar o prazo de denúncia e consequentemente de prescrição como relevante,

até pelo cumprimento da Diretiva 2011/93/UE que inclui, no seu artigo 15.º, n.º 2, que «Os Estados-Membros

tomam as medidas necessárias para permitir a ação penal […] durante um período suficiente após a vítima ter

atingido a maioridade e proporcional à gravidade do crime em causa».

Neste sentido, urge endereçar a problemática da baixíssima taxa de apresentação de denúncia nestes

crimes6 e, mesmo quando as há, muitas vezes as denúncias fazem-se depois de o procedimento criminal já se

encontrar prescrito. O resultado da legislação atual é a impunidade do infrator, a não realização da justiça e a

1 ZIPF, Heinz; MAURACH, Reinhart; GÖSSEL, Karl Heinz – Derecho Penal. Trad. de la 7a ed. alemana, por Jorge Bofill. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994. Parte General, 2. 2 Relatório Anual de Segurança Interna, de 2021 3https://ec.europa.eu/eurostat/documents/4031688/15191320/KS-06-22-076-EN-N.pdf/7d72f828-9312-6378-a5e7-db564a0849cf?t=1666701213551 4 Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa – Relatório Final, p.77. 5 https://www.europewatchdog.info/en/instruments/campaigns/one-in-five/ 6 Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa – Relatório Final, p. 199.

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