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Sábado, 3 de Maio de 2003 II Série-B - Número 41
IX LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2002-2003)
S U M Á R I O
Petições (n.os 34/VII (1.ª), 57/VIII (2.ª) e 22/IX (1.ª):
N.º 34/VII (1.ª) (Apresentada pela Comissão de Lesados pela Tracção):
- Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
N.º 57/VIII (2.ª) (Apresentada por Manuel João da Silva Ramos e outros, solicitando que a Assembleia da República legisle sobre o "crime rodoviário" de modo a punir criminalmente todos os comportamentos de que, por acção ou omissão, resultem objectivamente perigo de lesão para a vida e integridade física dos utentes das estradas e dos peões):
- Parecer e conclusões da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
N.º 22/IX (1.ª) (Apresentada pelo Arquitecto Nuno Teotónio Pereira, pelo Prof. Dr. Diogo Freitas do Amaral e outros, sobre o direito à arquitectura e revogação do Decreto n.º 73/73, de 28 de Fevereiro):
- Relatório final da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
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PETIÇÃO N.º 34/VII (1.ª)
(APRESENTADA PELA COMISSÃO DE LESADOS PELA TRACÇÃO - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, S.A.)
Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
I - Introdução
Ao abrigo do exercício do direito de petição previsto na Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/93, de 1 de Março, os peticionários vêm apelar à Assembleia da República para que desenvolva as iniciativas que julgue adequadas, por se sentirem vítimas de possível fraude praticada pela empresa Tracção - Sociedade de Automóveis, S.A.
Trata-se de uma petição em nome colectivo, uma vez que cerca de 2000 particulares lesados decidiram constituir uma plataforma de orientação e defesa comuns, em reunião de 5 de Novembro de 1995, que denominaram "Comissão de Lesados pela Tracção" - a signatária da presente petição.
Encontrando-se reunidos os requisitos formais e de tramitação constantes do artigo 9.º da Lei n.º 43/90, citada, encontrando-se especificado o objecto da petição, e não ocorrendo nenhuma causa de indeferimento liminar, foi a mesma admitida por Despacho, de 10 de Outubro de 1996, do Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
A admissão foi comunicada pelo ofício n.º 5372, de 18 de Outubro de 1996, desta Comissão.
Existe ainda, no expediente da petição, duas cartas dos peticionários, de 20 de Novembro de 1996 e de 10 de Março de 1997.
II - Do objecto, motivação e conteúdo da iniciativa
A situação de facto subjacente à apresentação da petição tem a ver com o facto de a Tracção, S.A. celebrar contratos de Aluguer de Longa Duração (ALD) de veículos automóveis com particulares, e contratos-promessa de compra e venda dos mesmos que, entretanto, adquirira por contrato de locação financeira.
No entanto, e dado o incumprimento, por parte da Tracção, S.A., das suas obrigações perante as sociedades financeiras, começaram estas a exigir dos particulares a entrega dos veículos, pelas vias judiciais.
Com efeito, e ao abrigo dos artigos 21.º (Providência cautelar de entrega judicial e cancelamento do registo) e 24.º (Disposições finais) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho (Altera o regime do contrato de locação financeira) [Este diploma revogou o Decreto-Lei n.º 171/79, de 6 de Junho, que anteriormente disciplinava esta espécie contratual] foram deferidas providências cautelares de entrega judicial de veículos, o que, no entender dos visados - que pagaram na totalidade, ou perto disso, o preço dos veículos alugados e prometidos comprar e vender - os prejudica substancialmente, na medida em que os impede de invocar o direito de retenção dos veículos.
Ainda segundo os peticionários, existem decisões judiciais que se pronunciam pelo abuso de direito e má-fé das locadoras e seguradoras, mas a morosidade dos tribunais e os expedientes dilatórios utilizados por algumas das empresas envolvidas não ajudam à defesa dos direitos dos particulares. A isto acresce o facto de muitas das viaturas apreendidas já terem sido alienadas pelas locadoras a terceiros, mesmo antes de ser conhecida a decisão judicial dos processos pendentes.
Nestes termos, os peticionários apelam à Assembleia da República, como já se referiu, que adopte as iniciativas que julgue adequadas.
III - Comentários
Objectivamente, as questões que os peticionários trouxeram à apreciação da Assembleia da República são questões de natureza civil, a dirimir no foro judicial.
Não deixará, contudo, de se aferir se existe alguma possibilidade de intervenção da Assembleia da República que, não ferindo as competências de outros órgãos de soberania, não deixe de atender, de alguma forma, às questões suscitadas pelos peticionários.
O Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho [Posteriormente alterado pelos Decretos-Leis n.os 265/97, de 2 de Outubro, e 285/2001, de 3 de Novembro], teve por objectivo "introduzir significativas alterações no regime jurídico do contrato de locação financeira, visando adaptá-lo às exigências de um mercado caracterizado pela crescente internacionalização da economia portuguesa e pela sua integração no mercado único europeu".
Esta reforma do regime jurídico do contrato de locação financeira reflecte igualmente a necessidade de "actualização das leis especiais reguladoras de vários tipos de instituições de crédito e dos diplomas que disciplinam contratos que constituam o objecto da actividade dessas sociedades", na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras). Deste modo, "a reforma introduzida no regime jurídico do contrato de locação financeira visa, fundamentalmente, harmonizá-lo com as normas dos países comunitários, afastando a concorrência desigual com empresas destes países e a consequente extradição de actividades que é vantajoso que se mantenham no âmbito da economia nacional" [Preâmbulo do diploma].
A disposição legal que permite a entrega judicial do veículo, expressamente referida pelos peticionários, é o artigo 21.º, que é do seguinte teor:
"Artigo 21.º
(Providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo)
1 - Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo, de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo.
2 - Com o requerimento, o locador oferecerá prova sumária dos requisitos previstos no número anterior.
3 - O tribunal ouvirá o requerido sempre que a audiência não puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 2, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
5 - A caução pode consistir em depósito bancário à ordem do tribunal ou em qualquer outro meio legalmente admissível.
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6 - Decretada a providência e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, o locador pode dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7º.
7 - No caso previsto no número anterior, o locatário tem direito a ser indemnizado dos prejuízos que sofrer se, por decisão transitada em julgado, a providência vier a ser julgada injustificada pelo tribunal ou caducar.
8 - São subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de Processo Civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma.
9 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos contratos de locação financeira que tenham por objecto bens imóveis".
Com a publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, foi dada uma nova redacção ao artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, do seguinte teor:
"Artigo 21.º
(…)
1 - (…)
2 - (…)
3 - (…)
4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada.
5 - (…)
6 - (…)
7 - (anterior n.º 8)
8 - O disposto nos números anteriores é aplicável a todos os contratos de locação financeira, qualquer que seja o seu objecto".
Das acções judiciais a que os peticionários se referem, conhece-se apenas aquilo que atrás ficou consignado, não o respectivo conteúdo (partes, causa de pedir, pedido).
Os peticionários levantam a questão de o deferimento das providências cautelares requeridas ao abrigo da atrás transcrita disposição legal lhes retirar o direito de retenção dos veículos.
A este propósito, é de referir que o n.º 4 desta disposição prevê a possibilidade de o tribunal exigir que o locador preste caução adequada.
Na redacção original do preceito, parecia ser a forma de a lei assegurar um efeito útil à decisão que julgue procedente o recurso da decisão que tenha decretado a providência, ou de garantir os direitos do locatário, caso a mesma caduque nos termos previstos na lei geral. E isto porque, de acordo com o n.º 6 da mesma disposição, uma vez decretada a providência, e independentemente da interposição de recurso pelo locatário, pode o locador dispor do bem, nos termos previstos no artigo 7.º do diploma, ou seja, vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro.
Na redacção do Decreto-Lei n.º 265/97, citado, a eliminação do n.º 7 original parece inculcar que a caução eventualmente prestada se destinará a garantir os direitos do locatário, em caso de disposição do veículo por parte do locador, e em qualquer circunstância, nomeadamente, em caso de improcedência da acção declarativa intentada pelo locador.
Sobre a questão do direito de retenção, há a referir que o mesmo será de considerar afastado, atento o disposto na alínea d) do artigo 756.º do Código Civil, quando seja prestada caução suficiente. Parece seguro concluir, portanto, que em caso de decretamento da providência de entrega judicial do veículo, quando precedida da prestação de caução pelo requerente, não pode haver lugar à invocação do direito de retenção.
Recorde-se que a prestação de caução não é sempre obrigatória, o que, de alguma forma, dificilmente se compaginará com a possibilidade, que a lei igualmente confere ao requerente, de dispor do veículo entregue.
É aqui que, no entendimento do relator, se poderá encontrar espaço para uma intervenção da Assembleia da República, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º da Lei n.º 43/90, no sentido de tornar obrigatória a prestação de caução em caso de decretamento da providência prevista no artigo 21.º do Decreto Lei n.º 149/95, citado.
Quanto à outra questão suscitada pelos peticionários, a de muitas das viaturas apreendidas já terem sido alienadas pelas locadoras a terceiros, independentemente do desfecho das pendências existentes [Recorde-se que se trata de uma afirmação constante de uma carta dos peticionários de 10 de Março de 1997, pelo que é de considerar que algumas dessas pendências estarão já definitivamente resolvidas], já atrás se viu que essa possibilidade é perfeitamente legal, face ao disposto no n.º 6 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95.
IV - Conclusões
Pelo exposto, propõe-se que se informe os peticionários que, na sequência da apreciação da petição n.º 34/VII (1.ª), entendeu a Assembleia da República que as questões nelas postas à sua consideração são de natureza civil e, portanto, deverão ser dirimidas no foro judicial.
No entanto, e ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º da Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 6/93, de 1 de Março, foi elaborada, para ulterior subscrição pelos Deputados ou grupos parlamentares o projecto de iniciativa legislativa que se encontra em anexo ao presente relatório.
Assembleia da República, 2 de Abril de 2003. - O Deputado Relator, Nuno Teixeira de Melo - A Presidente da Comissão, Assunção Esteves.
Anexo
PROJECTO DE LEI N.º /IX
ALTERA O DECRETO-LEI N.º 149/95, DE 24 DE JUNHO
Exposição de motivos
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, introduziram-se significativas alterações no regime jurídico do contrato de locação financeira, com três intuitos principais: em primeiro lugar, o de actualizar as leis especiais reguladoras de vários tipos de instituições de crédito e dos diplomas que disciplinam contratos que constituam o objecto da actividade dessas sociedades, na sequência da aprovação de um novo regime jurídico aplicável
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às instituições de crédito e sociedades financeiras; em segundo lugar, introduzir significativas alterações no regime jurídico do contrato de locação financeira, visando adaptá-lo às exigências de um mercado crescentemente internacionalizado; em terceiro lugar, harmonizar este regime jurídico com as normas dos países comunitários.
Uma das alterações introduzidas no regime jurídico do contrato de locação financeira foi a criação de uma providência cautelar de entrega judicial do bem locado e cancelamento do registo de locação - inicialmente restrita aos contratos de locação financeira que não tivessem por objecto bens imóveis, esta providência cautelar foi posteriormente estendida a todos os contratos de locação, independentemente do seu objecto, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, ao artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho.
O n.º 4 deste artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95 prevê a possibilidade de o tribunal exigir que o requerente da providência preste caução adequada em caso de decretamento da mesma. Compreende-se esta previsão legal se tomarmos em conta que a disposição permite ao requerente da providência dispor do veículo que lhe tenha sido judicialmente entregue por via da mesma, nomeadamente vendendo-o, dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro.
No entanto, trata-se de uma mera faculdade, na discricionariedade do tribunal, pelo que é perfeitamente possível conjecturar que, em caso de recurso da decisão que decretou a providência cautelar que venha a ser julgado procedente, ou em caso de caducidade da mesma, ou, ainda, em caso de improcedência da acção principal, a não imposição da prestação de caução ao locador venha a redundar em diminuição de garantias do locatário, que deixará, em qualquer dos aludidos casos, de beneficiar de um meio expedito de se ressarcir dos prejuízos causados pela apreensão do veículo, e se verá obrigado a recorrer aos meios normais para se ressarcir de tais prejuízos.
Impõe-se, por isso, tornar obrigatória a prestação de caução por parte do locador nos casos em que seja decretada a providência de entrega judicial do veículo e cancelamento do registo de locação.
Resta referir que a presente iniciativa legislativa foi suscitada pela questão trazida ao conhecimento da Assembleia da República através da petição n.º 34/VII (1.ª), da autoria da "Comissão de Lesados pela Tracção", na qual se apelava à Assembleia da República que desenvolvesse as iniciativas que julgasse adequadas perante a situação ali relatada.
Nestes termos, os Deputados signatários apresentam o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.º
O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, e pelo Decreto-Lei n.º 285/2001, de 3 de Novembro, passa a ter a seguinte redacção:
"Artigo 21.º
(…)
1 - (…)
2 - (…)
3 - (…)
4 - O tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1.
5 - No caso previsto no número anterior, o tribunal exigirá ao locador que preste caução adequada.
6 - (anterior n.º 5)
7 - (anterior n.º 6)
8 - (anterior n.º 7)
9 - (anterior n.º 8)".
Artigo 2.º
O disposto na presente lei aplica-se imediatamente a todos os procedimentos cautelares pendentes, intentados ao abrigo do artigo 21º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 2 de Outubro, e pelo Decreto-Lei n.º 285/2001, de 3 de Novembro.
Assembleia da República, 2 de Abril de 2003. - Os Deputados: Nuno Teixeira de Melo (CDS-PP) - Assunção Esteves (PSD).
Nota 1: O relatório foi aprovado por unanimidade, estando ausente o PCP, o BE e Os Verdes.
Nota 2: A petição n.º 34/VII (1.ª) não foi publicada, na altura da sua apresentação, dado que não continha as assinaturas exigíveis.
PETIÇÃO N.º 57/VIII (2.ª)
(APRESENTADA POR MANUEL JOÃO DA SILVA RAMOS E OUTROS, SOLICITANDO QUE A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA LEGISLE SOBRE O "CRIME RODOVIÁRIO" DE MODO A PUNIR CRIMINALMENTE TODOS OS COMPORTAMENTOS DE QUE, POR ACÇÃO OU OMISSÃO, RESULTEM OBJECTIVAMENTE PERIGO DE LESÃO PARA A VIDA E INTEGRIDADE FÍSICA DOS UTENTES DAS ESTRADAS E DOS PEÕES)
Parecer e conclusões da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações
Parecer
O peticionado "crime rodoviário"
1 - No exercício do direito previsto sob a norma do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e nos termos previstos na Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, um significativo grupo de cidadãos peticionou à Assembleia da República, em 2001, que legisle no sentido de definir e punir o designado "crime rodoviário".
2 - A neocriminalização pretendida, sob a epígrafe de "crime rodoviário", refere-se, no contorno da petição, aos comportamentos activos ou omissivos de que resulte objectivamente perigo de lesão para a vida e integridade física dos utentes das estradas e dos peões.
3 - A petição caracteriza comportamentos que pretende ver criminalizados, referindo-se a: a) projectar, construir e manter (não conservar tecnicamente mas aparentemente não alterar, não corrigir ou não vedar à circulação) vias de trânsito que "potenciem" acidentes de viação; b) não instalar sinalização adequada nas cidades e estradas;
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c) não instalar passadeiras, passeios e equipamentos adequados à protecção de peões; d) não substituir em 90 dias todos os "obstáculos perigosos existentes nas vias de circulação portuguesas (dando o exemplo dos prumos dos rails)".
4 - A petição identifica o universo potencial de agentes do crime que pretende tipificar, designando responsáveis técnicos e políticos, responsáveis autárquicos, responsáveis de empresas públicas ou privadas concessionárias de estradas e auto-estradas, e ainda os ditos responsáveis pela supervisão de ruas, estradas e auto-estradas. Isto é, parece pretender integrar no pretendido tipo criminal o requisito de autoridade decorrente do exercício directo de funções públicas por titular de órgão ou funcionário, ou do seu exercício delegado, ou considerar tal oficialidade funcional como elemento agravante do tipo criminal.
5 - A petição fundamenta a iniciativa nos danos irreparáveis de todo o tipo resultantes de "mais de 25 000 mortes na estrada nos últimos dez anos".
6 - O "bem jurídico" a proteger pela pretendida norma incriminadora não aparece suficientemente indicado e fundamentado. Mas parece ser ele o da segurança rodoviária, como interesse comum da comunidade (que é o bem jurídico identificável na exegese de outras normas incriminadoras em vigor relativas à criação de perigo), ou um direito comum à vida e à integridade física dos utentes do sistema de circulação viária, entendido em sentido amplo (como decorre da densificação interpretativa de outras normas penais).
O movimento associativo promotor da petição
7 - A petição, entregue em Abril de 2001 e acrescentada de novas assinaturas em Outubro de 2001, foi organizada pela Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, com sede na Av. 5 de Outubro, 142 - 1.º D.to, 1050-061 Lisboa, sob a consigna de "Direito à Vida: contra o crime rodoviário em Portugal".
8 - A iniciativa foi secundada por uma carta comum das associações cívicas promotoras de segurança rodoviária, que pretendeu convocar para uma mudança de consciência e atitude face à segurança rodoviária um largo grupo de autoridades políticas, administrativas e civis, sem a proposta de nenhuma medida concreta.
9 - A Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados afirma como seu objecto social: a) "promover o fim da guerra civil nas estradas portuguesas, advogando um pacto social que valorize a segurança e a cidadania nos transportes; b) defender os direitos humanos e cívicos de transeuntes portugueses (condutores, passageiros ou peões); c) mediar conflitos entre os cidadãos e o Estado e entre interesses particulares e colectivos; d) exigir dos poderes públicos e dos agentes políticos, financeiros e económicos, em matéria de segurança, fiscalização e regulamentação rodoviária".
10 - A Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados tem tomado diversas iniciativas públicas no quadro do seu objecto social. Mantém presentemente uma campanha de informação pública, com o apoio do Automóvel Clube de Portugal e da Prevenção Rodoviária Portuguesa. Tal campanha decorre sob o conceito comunicacional "Propostas contra a Guerra Civil nas Estradas", com a "assinatura" (pack shot) "Não mate, não morra. Pela Paz nas Estradas".
11 - É por isso previsível que retome junto da comunicação social os temas das suas propostas de acção, entre os quais tem mantido quanto se refere à matéria da petição em análise.
12 - A mesma associação fez já à Assembleia da República o reparo sobre a sua omissão de querer legislar sobre o "crime rodoviário". Refere-o no parecer que enviou à Assembleia sobre o projecto de documento sobre segurança rodoviária (Resolução da Assembleia da República n.º 36/2001), e que aquela associação tornou público no seu sítio na Internet.
13 - A associação que promoveu a petição mantém contactos regulares com associações análogas de outros países (mesmo de países que comparam favoravelmente com Portugal em termos de sinistralidade rodoviária), e diversas campanhas e iniciativas (como a que corre presentemente) tem iniciativa ou oportunidade comum. Muitas estão federadas na FEVR-Fédération Européenne des Victimes de la Route.
14 - Não localizámos nas propostas produzidas por outras associações congéneres em outros países, nem em propostas de diversos organismos de prevenção rodoviária, nem em diversos planos governamentais de segurança rodoviária, propostas de neocriminalização análogas.
A sinistralidade rodoviária e o "bem jurídico" que se pretende proteger
15 - No contexto da análise da pretendida criminalização, interessará ter em conta alguns aspectos da sinistralidade rodoviária, considerados objectivamente, ainda que com profundo respeito pelos valores éticos e humanos em causa.
16 - Na caracterização extensa feita no Relatório sobre Sinistralidade Rodoviária relativa a 2001, organizado pela Direcção-Geral de Viação, é observável uma melhoria da situação em comparação com o ano anterior, embora no contexto de um quadro grave de sinistralidade.
17 - Tal evolução, positiva no médio prazo, fez-se com um quadro normativo sancionatório constante.
18 - A sinistralidade rodoviária, e a sua evolução anual, devem ser apreciadas tomando em conta as grandes tendências de períodos longos e a circunstância de em Portugal estar ainda a aumentar o designado índice de motorização (número de veículos por habitantes). Tal ponderação deve ser tida em conta quando se comparem os valores absolutos anuais de sinistralidade.
19 - A evolução favorável (ainda que insuficiente) de alguns indicadores de sinistralidade aparece mitigada pelo facto de o índice de motorização do País não ter ainda atingido uma fase de maturidade.
20 - A evolução do número de condutores, entendidos aqui como pessoas habilitadas a conduzir, segue tendência análoga à do índice de motorização, ou apresenta uma correlação com aquele, crescendo acima do que resultaria da evolução do balanço demográfico ou da alteração natural da sua estrutura etária. Retenha-se por referência que o número de encartados aumentou quase 7% em 2001.
21 - Alinha também com esta tendência a evolução do total de "combustível rodoviário" consumido, em resultado
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principalmente da evolução do parque automóvel (já que o consumo médio por viatura não se agravará ou reduzirá mesmo).
22 - As comparações internacionais devem ter em conta os dados demográficos comparáveis e também a intensidade de circulação, considerando a relação entre veículos e quilómetros de vias e a densidade populacional.
23 - A "ASIRT-Association for Safe International Road Travel" (Associação particular americana com sede em Potomac), referenciada no sítio da ACA-M na Internet, é contundente ao considerar Portugal como o País da União Europeia com mais elevada taxa de mortalidade na estrada. No entanto, tal consideração aparece apenas referida a partir de alguns indicadores parcelares e usando, consoante o indicador, diferentes países de comparação.
24 - A situação é seguramente má, mas precisa de ser enquadrada sob referências estatísticas sólidas e objectivas, cientificamente avaliadas e circunstanciadas.
25 - O observatório da OCDE sobre acidentes de tráfego (IRTAD - International Road Traffic and Accident Database) faculta, relativamente a um amplo número de países, indicadores relativos à extensão da rede viária total, rede de auto-estradas, superfície geográfica e parque automóvel total (segregando veículos de duas rodas e veículos de passageiros). Indica ainda a informação sobre tipo de acidentes, considerando o tipo de via de ocorrência e o meio de locomoção. Tal base permite análises ainda incompletas mas mais estruturadas do que a que resulta da "pesquisa acrítica dos piores indicadores".
26 - A análise da estrutura do parque automóvel, e designadamente a relação entre o número de veículos de duas rodas (considerando ou não ciclomotores) e o número de veículos de passageiros, faz evidenciar uma correlação entre aquela estrutura e o número e tipo de acidentes, sendo superior a sinistralidade e os seus efeitos humanos em países com maior peso de veículos de duas rodas.
27 - A selecção de tais indicadores, em tão qualificado observatório como é o da OCDE, evidenciará que será apropriado que as análises e comparações sobre a sinistralidade rodoviária em Portugal, que é sem dúvida grave, sejam contextualizadas, tendo em conta a evolução do parque automóvel e a sua estrutura, a evolução da rede viária e o seu tipo, e considerando períodos largos de observação.
28 - No contexto da iniciativa da petição em análise, justificar-se-á anotar que cerca de 68% dos acidentes registados em 2001 ocorreram dentro de localidades. Foi dentro de localidades que se verificaram também 43% dos casos de morte e 58% dos casos de ferimentos graves. Daqueles casos de morte em localidades, metade ocorreu em vias nacionais ou municipais atravessando as localidades, e outra metade terá ocorrido em acidentes de tráfego local (onde avultarão os casos de atropelamento).
29 - Caberá notar, a propósito dos acidentes em agregados populacionais, que o traçado do sistema viário real corresponde a um fenómeno longo de aculturação (a organização do território e vias de comunicação é um dos elementos mais estáveis da organização de um país), não seguindo apenas as regras técnicas.
30 - Em matérias de causas diagnosticadas, o observatório nacional da DGV atribui à velocidade excessiva 25% dos acidentes mortais ou causadores de feridos graves. Mas arruma em causas não identificadas e em causas não definidas mais de 32% dos acidentes com vítimas.
31 - Isto é, na simplicidade dos items estatísticos, reconduzem-se ao comportamento ou à contingência dos condutores parte significativa dos acidentes com danos corporais.
32 - Outra parte importante não é referenciada, por falta de conclusões seguras ou porque tal não resulta das circunstâncias imediatas dos acidentes registados. Não sendo por isso possível, nem legítimo, prospectivar outras causas sem investigação adequada.
33 - São também os condutores as vítimas mais frequentes dos acidentes de viação graves: em mais de 70% dos casos a posição de vítima respeita aos condutores dos veículos intervenientes.
34 - O ranking de vias de maior sinistralidade grave (construído a partir de uma ponderação de resultados de acidentes e não da sua relação com o número de veículos utilizadores), apresentado no citado relatório, faz aparecer a Auto-Estrada A1 em primeiro lugar. Mas não será seguramente esta a via que apresentará mais erros de concepção ou construção, ou a cujas características se deva reprovar ser causa óbvia de acidentes ou potenciar a sua ocorrência…
35 - As autoridades de países cuja sinistralidade é mais frequentemente cotejada favoravelmente com a sinistralidade portuguesa, consideram por sua vez que os seus indicadores estão em desvantagem em relação a outros países de sua referência. É, por mero exemplo, o caso da França e da Suécia.
36 - É evidente e positivo um processo recorrente de comparação e cooperação a nível internacional. No entanto, raramente se comparam, além dos resultados, as circunstâncias, as causas, as políticas e os programas efectivos de organização e estrutura da circulação rodoviária.
37 - Rara e dificilmente se estuda ou compara a relação entre o quadro sancionatório e a sinistralidade. Mas sabe-se que o quadro sancionatório (contra-ordenacional ou penal) de diferentes países europeus, que comparam favoravelmente connosco em termos de sinistralidade, não é nem mais duro, nem mais abrangente, nem substantivamente diferente. Isso poderá evidenciar que o agravamento ou alargamento do quadro sancionatório não determinará necessariamente uma redução da sinistralidade.
38 - Mesmo relativamente a países mais permissivos quanto aos limiares das taxas de alcoolemia sancionadas por lei, se podem verificar indicadores de sinistralidade menos negativos, quando comparados com a situação portuguesa. Sem com isso interferir em discussão feita e arrumada sobre o tema, apenas se pretende evidenciar que o agravamento das molduras sancionatórias, de per si, não alcançará inverter a situação da sinistralidade rodoviária.
39 - Ao contrário, parece ter efeito importante na sinistralidade quer a fiscalização preventiva sobre condutores e veículos, quer acções preventivas não sancionatórias orientadas para situações de risco potencial. Como provavelmente teria efeito se a fiscalização das autoridades se exercesse de pleno direito sobre vias, sinalização, iluminação e demais elementos do ambiente rodoviário.
O actual quadro sancionatório penal
40 - O quadro sancionatório actual apresenta um vasto regime e âmbito contra-ordenacional.
41 - O dispositivo normativo vigente criminaliza expressamente: a) "o atentado à segurança de transporte rodoviário" (290 CP);
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b) "a condução perigosa de veículo rodoviário" (291 CP); c) "a condução de veículo em estado de embriaguez" se superior a 1,2g/l (292 CP); d) "o lançamento de projéctil contra veículo" (293 CP); e e) "a embriaguez e intoxicação" (295 CP, em conexão com um facto ilícito típico). Em relação a todos estes tipos criminais, a doutrina identifica a segurança rodoviária como bem jurídico a proteger pelas normas incriminadoras.
42 - Diversos tipos criminais contra a vida ou contra a integridade física (previstos nos Capítulos I e II do Título I da Parte Especial do Código Penal) completam a moldura expressamente aplicável à circulação em meio rodoviário.
43 - O homicídio e a ofensa à integridade física são também puníveis por mera negligência (137 e 148 CP, dependendo o procedimento de queixa no caso de ofensa à integridade física).
44 - Também os tipos criminais previstos sob os artigos 290.º, 291.º, 292.º e 295.º, todos do Código Penal, se preenchem por mera negligência.
45 - O Código Penal define ainda alguns ditos "crimes de perigo comum" (de perigo comum concreto ou abstracto) entre os quais os de "infracção de regras de construção, dano em instalações, e perturbação de serviços" (277 CP), identificando expressamente (277/1, alínea a) no âmbito de actividade profissional a infracção de "regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação".
46 - A norma penal não consente nenhuma interpretação analógica, mas a doutrina nacional e estrangeira (invocável porque se desenvolveu em relação a disposições paralelas) tem considerado que por "construção" se entende toda a actividade relacionada com o ofício de construir, com respeito necessário pelas leges artis cujo incumprimento possa fazer surgir um perigo para terceiros. Tem-se defendido e entendido que a "construção" identificada no tipo criminal inclui também, não só construções em altura mas ainda construções subterrâneas, pontes e a abertura de estradas. (V. por todos Comentário Conimbricense ao Código Penal).
47 - A referência no normativo penal a regras técnicas, não pormenorizadas ou não indicadas de forma precisa e fixadas por fonte sem "autoridade penal", como as que decorrem do citado artigo 277.º do Código Penal, convoca um melindroso problema de sindicância da sua legalidade (face ao rigoroso princípio da legalidade da norma penal nulla poena sine lege praevia et stricta), só apreciável em concreto.
48 - As ditas "normas penais em branco", porque se reportam a uma estatuição complementar não penal, suscitam ainda problemas específicos de definição do tipo incriminador, e de tratamento do erro como causa de justificação (16 e 17 CP), exigindo-se para a aplicação da norma penal um quadro técnico de referência sólido, preciso e cientificamente demonstrado.
49 - Parece não existir um extenso corpo de regras construtivas ou de organização do sistema de circulação que se considerem explícitas no ordenamento jurídico nacional, que estejam sólida e definitivamente demonstradas, ou que integrem inequivocamente as leges artis das profissões que concorrem para a organização, concepção, construção e manutenção do sistema de circulação rodoviária. Parece antes que, aqui e em todo o Mundo, muitas regras têm natureza experimental (rails, "separadores", "cruzamentos e rotundas",...).
50 - No entanto, e no que se considere aplicável, o dispositivo do artigo 277.º do Código Penal parece definir uma moldura de acção penal, necessariamente restritiva, parcialmente aplicável às situações visadas pela petição em comentário.
51 - E se algumas das situações que a petição pretenderia criminalizar não têm tido tratamento penal será, certamente, porque quem tem de promover a acção penal entende (provavelmente com razão) que esta ultima ratio do ordenamento jurídico tem de ser ponderadamente utilizada, com respeito pelos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República Portuguesa.
52 - O direito penal moderno é um direito penal do facto e não do agente. A sanção penal não deve ser orientada para o potencial agente, a menos que as circunstâncias do seu estatuto lhe atribuam poderes e responsabilidades, que devam fazer agravar o enquadramento penal. O arremesso da ameaça penal, com a função primeira de prevenção geral do ilícito penal, deve ser feito criteriosa e prudentemente, sem banalizar o instituto.
53 - O objectivo louvável e unânime de intervenção construtiva e estruturante na prevenção do acidente rodoviário e na limitação das suas consequências, e a responsabilização pelas acções ou omissões que pervertam ou frustrem tal objectivo, não tem de ser prosseguido necessariamente pela acção penal. Não parece ser aqui necessário nem eficiente alargar a intervenção da ultima ratio do ordenamento, além do quadro sancionatório em vigor.
54 - Nem parece que o não alargamento do quadro penal possa ser considerado como contrário ao desiderato de todos os intervenientes de fazer implementar medidas preventivas que reduzam os acidentes.
O quadro sancionatório civil
55 - O direito sancionatório, se entendido de forma ampla, inclui ainda a sanção disciplinar (se o comportamento a sindicar violar norma laboral ou o estatuto de serviço público) e a sanção civil, em que avulta o instituto da responsabilidade civil. O ordenamento jurídico nacional propicia amplas vias de acção em um e outro domínio, se se pretender e dever sancionar comportamentos que, por acção ou omissão, se devam entender como ilicitamente geradores de danos por culpa ou risco.
56 - Na falta intercalar de legislação específica (prevista por proposta de lei em preparação ou já em discussão) sobre a "responsabilidade das entidades públicas", o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa legitima, segundo entendimento fundamentado da doutrina, já sufragado por alguma jurisprudência, o recurso aos tribunais judiciais para sancionar civilmente acções e omissões do Estado, seus órgãos e agentes, incluindo autarquias, que gerem responsabilidade extra-contratual (além do dispositivo antigo e incompleto do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967), incluindo a responsabilidade por actos legislativos ou regulamentares, ou pela sua omissão.
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57 - O direito civil propicia já amplos meios de acção com fundamento na responsabilidade contratual ou extra-contratual de particulares, qualquer que seja a forma de intervenção na concepção, construção, revisão, manutenção ou organização do sistema rodoviário, ou em caso de acidente.
58 - Existe já em Portugal um extenso lote de seguros obrigatórios de responsabilidade civil, diversos dos quais têm aplicação directa ao ambiente rodoviário.
Orientação dos planos de segurança rodoviária - Um olhar breve
59 - O Plano de Segurança Rodoviária que a Assembleia da República considerou na sua Resolução n.º 36/2001, se cumprido e implementado, não será menos eficiente por falta do pretendido mecanismo penal proposto pela petição em apreciação.
60 - Importantes documentos internacionais ou estrangeiros sobre segurança rodoviária não apostam excessivamente no mecanismo penal para dar eficácia ao sistema rodoviário, além do que é fundo jurídico comum em diferentes países como Portugal.
61 - O importante documento da OCDE "Safety on roads - What's de vision?" sugere a estruturação de planos e metas considerando o sistema rodoviário como um todo (comportamento humano e não apenas condutores, veículos, estradas e ambiente rodoviário).
62 - O documento enfatiza também o alargamento do tratamento de dados, considerando adicionalmente informação de acidentes sem vítimas, exposição ao risco, factores causais directos e associados, condições de mobilidade, situações de quase colisão, comportamentos dos utentes das vias e agentes do sistema, caracterização dos diferentes tipos de utentes e seus comportamentos.
63 - O mesmo documento realça ainda a importância da cooperação, e a permuta de informação e experiência, porque são comuns os problemas e normalmente coincidentes as soluções.
64 - São critérios de validação dos Programas de Segurança Rodoviária sugeridos pela OCDE: a)custo/benefício social; b) custo/efectividade; e c) análise multi-critérios.
65 - Os estudos e orientações da ECMT - European Conference of Ministers of Transports, regularmente feitos e publicados desde pelo menos 1974 com o apoio da OCDE, alinham na mesma orientação (utilizadores vulneráveis, álcool, velocidade, veículos pesados, cintos de segurança, crianças, iluminação, comunicação e informação).
66 - As recomendações do Parlamento Europeu sobre segurança rodoviária ("Priorities in EU road safety"- doc A5-0381/2000, segundo texto provisório aprovado em 18 de Janeiro de 2001), centram a sua atenção na segurança dos veículos, no comportamento dos utentes (condução, álcool, velocidade e cintos de segurança) e na qualidade de uma base de dados prospectiva.
67 - Refere ainda a recomendação do Parlamento Europeu as regras sobre iluminação de veículos (automóveis e duas rodas) e regras específicas de limitação de velocidades para veículos de particular risco (transporte de passageiros e veículos pesados).
68 - O Parlamento Europeu recomenda ainda, com relevo, a elaboração de guide lines, com base na best practice conhecida, no que respeita ao design das vias de circulação e ao tratamento dos "pontos negros". Refere-se ainda à ampla informação sobre condições de circulação e aos riscos específicos de certas vias, orientada para os seus potenciais utilizadores.
69 - São convergentes as recomendações do ETSC - European Transport Safety Council, formado por iniciativa de instituições alemãs e holandesas, e agrupando instituições vocacionadas para a segurança rodoviária de muitos países europeus (mas sem a participação de nenhuma instituição pública ou privada portuguesa).
70 - Já em 2002, a Prevenção Rodoviária Portuguesa identificava em Mesa Redonda sobre segurança rodoviária, promovida conjuntamente com a Associação Portuguesa de Seguradores, os seguintes objectivos prioritários: a) melhorar as condições de segurança das infra-estruturas; b) melhorar o comportamento dos utentes; c) melhorar a visibilidade dos veículos; d) melhorar a eficácia da sinalização; e) melhorar o socorro às vítimas.
71 - O notável trabalho que o Parlamento do Reino Unido tem feito em acompanhamento dos Planos de Segurança Rodoviária (referimo-nos principalmente a relatório de Julho de 1999 do "Parliamentary Advisory Council for Transport Safety" sobre "Road Traffic Law and Enforcement:a driving force for casualty reduction") orienta-se predominantemente para o conhecimento (melhor informação), o pleno uso de tecnologias, o uso efectivo do dispositvo penal contra os comportamentos de risco de condutores, no quadro do direito em vigor, mas sem iniciativas de neocriminalização.
72 - Orientação semelhante às recomendações da OCDE tem o notável e amplo programa australiano para a promoção da segurança rodoviária. ("The Austroad Safety Program", integrando um plano estratégico para o horizonte de 2001 a 2010 e, na versão que conhecemos, um Plano de Acção para 2001 e 2002.
73 - São objectivos estratégicos do programa australiano a melhoria do comportamento dos utentes da estrada, a melhoria da segurança das vias, melhorar a segurança de veículos e mecanismos de protecção, uso de tecnologias para reduzir o erro humano, melhorar a equidade entre os utentes das estradas, melhorar a estrutura de serviços médicos de tratamento e recuperação de danos corporais, melhorar a investigação sobre segurança rodoviária e encorajar alternativas ao uso de veículos automóveis.
74 - O "Australian Transport Council" é um organismo misto, incluindo numerosos departamentos públicos, mas também associações privadas (automóveis clubes, federações de ciclistas, concessionários de auto-estradas, federações de transportadores), organismos profissionais (Ordem dos Médicos, Organizações de Socorros,...), que asseguram um largo contributo técnico e social, coordenam iniciativas e alcançam um largo consenso político, social e civil.
Conclusões
75 - A segurança rodoviária é um tema predominantemente social e técnico, susceptível de amplos consensos, nacionais e internacionais, públicos e civis. Deve suscitar acção, coordenação, cooperação e eficácia, investimento e metodologia técnica e científica.
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76 - A criminalização potencial dos agentes políticos e administrativos, além do que resulta do amplo quadro sancionatório actual, parece poder ter efeitos mais restritivos do que dinamizadores, limitando as iniciativas de quantos devem ter intervenção e acção na remodelação da estrutura do sistema.
77 - Tal iniciativa, porque dirigida principal e desnecessariamente ao aparelho político do Estado e aos seus agentes e funcionários, retiraria consensos a uma área técnico-social de necessária e fácil acção transversal na sociedade.
78 - A iniciativa de criminalização peticionada poderia afectar fundamentos principais do ordenamento penal nacional (por falta de referência bastante ao que devam ser as regras técnicas a usar) e por utilizar, com pretenso objectivo de dinamização de uma política de segurança rodoviária, o que é e parece dever continuar a ser a ultima ratio de protecção do ordenamento jurídico.
79 - Não se vê que a iniciativa viesse acrescentar eficácia a um Plano de Segurança Rodoviária, nem iniciativas análogas são referenciadas ou referenciáveis em outros países ou lugares.
80 - Os mecanismos actuais de sanção política, disciplinar, civil, contra-ordenacional e penal parecem ser suficientes, se conjugados com um bom Plano Nacional e com uma atitude interventiva de todos os participantes públicos e civis.
81 - Os documentos estrangeiros ou internacionais genericamente mencionados, e outros que não cabiam na economia da presente análise, bem como as inúmeras propostas e planos nacionais nesta área, permitem que, em apoio de iniciativas do Governo e dos Organismos do Estado, o Parlamento possa desenvolver uma acção informada, esclarecida e interveniente, como acontece no caso do Parlamento do Reino Unido que citámos.
82 - Uma orientação virada para a acção retirará razão de ser a qualquer crítica que se pretendesse endereçar ao Parlamento por omissão na pretendida criminalização.
83 - Enquanto medida de incriminação, parece que a iniciativa, movendo-se em área legislativa de competência reservada relativa da Assembleia da República (artigo 165.º CRP) e versando sobre matéria de limitação de direitos, liberdades e garantias teria de ser objecto de lei ou de autorização legislativa, analisada em especialidade na respectiva Comissão Especializada Permanente da Assembleia.
84 - Se a matéria for antes considerada como uma de muitas propostas da sociedade civil para a reflexão e acção no domínio da prevenção e segurança rodoviária, não merecendo no entanto iniciativa legal específica nem nenhuma proposta favorável da comissão especializada permanente com competência na área de transportes, a sua análise em Plenário poderá ser associada à discussão de outras matérias em agenda no domínio da segurança rodoviária sobre as quais é possível encontrar soluções consensuais. Mas tal matéria regimental e política está necessariamente fora do âmbito do presente parecer e comentário.
A petição está em condições de subir a Plenário.
Assembleia da República, 26 de Fevereiro de 2003. - O Presidente da Subcomissão de Segurança Rodoviária, Mota Andrade.
Nota: O parecer e conclusões foram aprovados por unanimidade.
PETIÇÃO N.º 22/IX (1.ª)
(APRESENTADA PELO ARQUITECTO NUNO TEOTÓNIO PEREIRA, PELO PROF. DR. DIOGO FREITAS DO AMARAL E OUTROS, SOBRE O DIREITO À ARQUITECTURA E REVOGAÇÃO DO DECRETO N.º 73/73, DE 28 DE FEVEREIRO)
Relatório final da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações
I Nota prévia
1 - A presente petição, subscrita por 54 839 cidadãos, tem como primeiros peticionantes o Arquitecto Nuno Teotónio Pereira e o Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral.
2 - Por Despacho de S. Ex.ª o Presidente da Assembleia da República, a petição foi remetida a esta Comissão para emissão do competente relatório e admitida a 7 de Janeiro de 2003 e também remetida à 4.ª Comissão de Poder Local, Ordenamento do Território e Ambiente para emissão de um parecer.
II Objecto e motivação
1 - Considerando que "A arquitectura é um elemento fundamental da história, da cultura e do quadro de vida" de cada país, "que figura na vida quotidiana dos cidadãos como um dos modos essenciais de expressão artística e constitui o património de amanhã" Resolução do Conselho da União Europeia de 12 de Fevereiro de 2001.
2 - Considerando que o Conselho apelou aos Estados-membros no sentido de assegurar um melhor conhecimento e promoção da arquitectura e da concepção urbanística, bem como sensibilizar os cidadãos para a cultura arquitectónica, urbana e paisagística.
3 - Que os objectivos legais são diariamente comprometidos pela manutenção; na prática, de um diploma legal obsoleto, o Decreto n.º 73/73, de 28 de Fevereiro.
4 - Os peticionantes apelam à Assembleia da República para que tome as medidas legislativas que se impõem com vista à revogação do Decreto n.º 73/73, de 28 de Fevereiro, salvaguardando o princípio de que os actos próprios da profissão de arquitecto competem exclusivamente a arquitectos.
5 - Por outro lado, apelam para que a Assembleia da República solicite ao Governo a definição, de modo compatível com a reserva da actividade de arquitecto aos arquitectos, do regime da qualificação profissional exigível aos restantes agentes no sector da construção, contribuindo-se desse modo para a regulação imprescindível de um sector de actividade de importância vital para o País.
6 - A alteração legislativa que preconizam consubstancia-se na revogação do Decreto n.º 73/73, de 28 de Fevereiro, que instaurou um regime transitório segundo o qual foram autorizadas pessoas não qualificadas a assinar projectos de arquitectura.
III Enquadramento histórico e legal
1 - No foral dos anos sessenta, início dos anos setenta, Portugal vivia uma época de forte pressão populacional, com acentuado êxodo rural e grande crescimento das cidades de Lisboa e Porto e das suas áreas metropolitanas. Por outro lado, em 1969, eram cerca de 500 os inscritos no então Sindicato Nacional dos Arquitectos.
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2 - Hoje, em Portugal, quer do ponto de vista social quer do ponto de vista deste sector profissional específico, a situação é claramente diferente. Existem cerca de 10 000 cidadãos inscritos na Ordem dos Arquitectos, e outros tantos frequentam licenciaturas reconhecidas na área da arquitectura, onde a oferta aumentou consideravelmente.
3 - É também significativa a diferença daquilo que hoje é exigido do ponto de vista arquitectónico. Existe em Portugal um profundo interesse pelas questões relacionadas com a renovação urbana e começa-se a perceber a existência de uma exigência crítica cada vez maior no que diz respeito à qualidade das construções. Isto exige que se faça uma credibilização dos profissionais deste sector.
4 - Na Constituição Portuguesa está consagrado o direito à habitação e urbanismo e ao ambiente e qualidade de vida.
5 - O Estado, através do Decreto-Lei n.º 176/98, de 3 de Julho, criou a Ordem dos Arquitectos, reconhecendo assim a necessidade de defender o interesse público e de salvaguardar as vantagens que o exercício desta profissão pode proporcionar à colectividade.
6 - Importa também referir que o exercício profissional da arquitectura está regulado pela Directiva Comunitária 85/384, de 10 de Junho de 1985, que determina que "a criação arquitectónica, a qualidade das construções, a sua inserção harmoniosa no ambiente circundante, o respeito das paisagens naturais e urbanas bem como do património colectivo e privado são do interesse público".
7 - Por diversas vezes encontramos em outros diplomas referências directas ou indirectas ao Decreto n.º 73/73:
O Decreto-Lei n.º 205/88, de 16 de Junho, refere no preâmbulo a necessidade de se proceder a uma revisão do Decreto n.º 73/73 "por se encontrar inadequado às actuais exigências de qualidade e rigor por que se deve pautar a qualificação oficial a exigir aos técnicos responsáveis pelo projecto de obras".
No Decreto-Lei n.º 292/95, de 14 de Novembro, pode ler-se que "um desenvolvimento urbano sustentável não pode ser dissociado das preocupações de melhoria da qualidade de vida nos meios urbanos, de adequado enquadramento das edificações no espaço envolvente e da existência de zonas de recreio e lazer. (...) No limiar do século XXI não é aceitável que voltem a surgir zonas urbanas descaracterizadas, massificadas e sem qualidade. (...) Há que ter em consideração que, nos últimos anos, tem aumentado o número de cursos, ministrados nas instituições de ensino superior portugueses, conferentes de especialização nas áreas do planeamento urbanístico e do urbanismo em geral".
O Decreto-Lei n.º 167/97, de 4 de Julho, aprova o regime de implantação de empreendimentos turísticos, dispondo que "os estudos e projectos de empreendimentos turísticos devem ser subscritos por arquitecto ou por arquitecto em colaboração com engenheiro civil, devidamente identificados".
No Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, sobre o licenciamento de obras particulares, objecto de alterações pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho, podemos ler que "só podem subscrever os projectos os técnicos que se encontrem inscritos em associação pública de natureza profissional e que façam prova da validade da sua inscrição aquando da apresentação do requerimento inicial" e que "os técnicos cuja actividade não esteja abrangida por associação pública podem subscrever os projectos para os quais possuam habilitação adequada, nos termos do disposto no regime da qualificação profissional exigível aos autores de projectos de obras ou em legislação especial relativa a organismo público oficialmente reconhecido".
IV Contributos recebidos
1 - Os dois primeiros subscritores da petição, a convite da relatora, foram recebidos em audição, no dia 30 de Janeiro de 2003, na qual foi discutido e esclarecido com alguns Deputados da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações e da Comissão de Poder Local, Ordenamento do Território e Ambiente, também convidados para o efeito, o teor e as razões desta petição.
2 - Desta reunião resultaram os contributos de duas visões embora conducentes a uma lógica comum, baseadas em aspectos distintos:
- Aspectos da vivência da profissão de arquitecto, como sejam:
A qualidade de vida, na perspectiva da qualidade de construção e da organização do espaço;
A questão social relacionada com o desempenho da profissão;
A perspectiva de defesa e protecção do consumidor;
Aspectos relacionados com questões de direito, como sejam:
A coerência do sistema;
O controlo profissional e deontológico no exercício da profissão;
As directrizes comunitárias, perspectivadas na qualidade da arquitectura, da paisagem e do urbanismo;
O direito à arquitectura;
A situação transitória, na perspectiva de direitos adquiridos, sob o ponto de vista jurídico e sob o ponto de vista político-social.
V Conclusões
1 - O objecto da petição em causa tem fundamento e a sua concretização trará benefícios para a qualidade de vida de cada cidadão e da sua comunidade.
2 - O direito à arquitectura é uma consequência lógica, dos direitos à habitação e urbanismo e ao ambiente e qualidade de vida, consagrados na Constituição da República Portuguesa.
3 - A manutenção do regime transitório consagrado pelo Decreto n.º 73/73 implica a existência de uma incoerência técnico-profissional e jurídica, com uma demissão do Estado no que respeita à regulação do sector da construção e da qualidade arquitectónica, para a protecção do ambiente e do património, impedindo o exercício da profissão de arquitecto num ambiente de concorrência legal.
4 - A manutenção deste decreto é incompatível com a Directiva 85/384, de 10 de Junho de 1985, e com o Decreto-Lei n.º 176/98, de 3 de Julho, comprometendo a coerência de todo o sistema, sendo urgente um novo regime de qualificação
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profissional no domínio da construção, para a regulação de um sector de actividade de importância vital para o País.
5 - Importa, por último, reflectir também sobre a posição dos profissionais com outras qualificações, que actualmente salvaguardados pelo Decreto n.º 73/73, podem subscrever projectos de arquitectura, a quem deve ser conferido um tempo de adaptação e a possibilidade de serem reencaminhados para as tarefas que, de acordo com as respectivas qualificações, estão materialmente aptos a desempenhar.
6 - Não havendo direitos adquiridos nem expectativas legítimas a proteger, deverá, no entanto, recomendar-se que seja definido um período razoável de transição, para reencaminhamento dos profissionais reconhecidos pelo Decreto n.º 73/73.
7 - Sendo a presente petição subscrita por mais de 4000 cidadãos, deverá a mesma ser debatida em Plenário da Assembleia da República, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 43/90, de 10 de Agosto, na redacção da Lei n.º 6/93, de 1 de Março, pelo que somos do seguinte parecer:
Parecer
Que se remeta a presente petição ao Sr. Presidente da Assembleia da República para efeitos de agendamento da sua apreciação em Plenário, devendo ser dado conhecimento aos peticionantes do presente relatório e do agendamento da discussão da petição, de acordo com o disposto no artigo 8.º do mesmo diploma e do artigo 253.º do Regimento da Assembleia da República.
Assembleia da República, 28 de Fevereiro de 2003. - A Deputada Relatora, Isabel Gonçalves - O Presidente da Comissão, Miguel Anacoreta Correia.
Nota: O relatório final foi aprovado por unanimidade
A Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual.
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