O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 117

Sábado, 30 de Abril de 1994

II SérIe-C — Número 23

DIÁRIO

da Assembleia da República

VI LEGISLATURA

3.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1993-1994)

SUMÁRIO

Presidente da Assembleia da República:

Despacho de nomeação de uma secretaria e de exoneração da mesma de secretária auxiliar do Gabinete.......... 118

Grupo Parlamentar do PCP:

Aviso relativo à exoneração do chefe do Gabinete de Apoio e a sua nomeação a título gratuito 118

Provedor de Justiça:

Recomendação sobre «ressarcimento e compensação de lesões causadas por actos de transfusão de sangue e de produtos seus derivados contaminados por VIH, realizados em estabelecimentos públicos de saúde; benefícios sociais a atribuir a todos os cidadãos portugueses infectados por VIH 118

Página 118

118

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

Despacho

Nos termos do artigo 8.° e do n.° 1 do artigo 10.° da Lei Orgânica da Assembleia da República, nomeio secretária do meu Gabinete Ana Bela Viegas de Carvalho Silva Pinheiro Chaves, que é exonerada, para o efeito, a partir desta data, do lugar de secretária auxiliar.

Palácio de São Bento, 18 de Abri! de 1994. —O Presidente da Assembleia da República, António Moreira Barbosa de Melo.

Aviso

Por despacho de 22 de Abril de 1994 do presidente do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português:

Licenciado Carlos Victor Baptista da Costa — exonerado do cargo de chefe do Gabinete de Apoio do respectivo partido, com efeitos a partir de 1 de Maio de 1994.

Licenciado Carlos Victor Baptista da Costa — nomeado para o cargo de chefe do Gabinete de Apoio do respectivo partido, a título gratuito, com efeitos a partir de 1 de Maio de 1994.

Assembleia da República, 26 de Abril de 1994.— O Secretário-Geral, Luís Madureira.

Recomendação da Provedoria de Justiça sobre «ressarcimento e compensação de lesões causadas por actos de transfusão de sangue e de produtos seus derivados contaminados por VIH, realizados em estabelecimentos públicos de saúde; benefícios sociais a atribuir a todos os cidadãos portugueses infectados por VIH».

Tenho a honra de remeter à Assembleia da República uma recomendação, formulada nos termos do artigo 20.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Estatuto do Provedor de Justiça (Lei n.° 9/91, de 9 de Abril), sobre «ressarcimento e compensação de lesões causadas por actos de transfusão de sangue e de produtos seus derivados contaminados por VIH, realizados em estabelecimentos públicos de saúde; benefícios sociais a atribuir a todos os cidadãos portugueses infectados por VIH», acompanhada de sete documentos complementares.

Queira V. Ex.a, com a celeridade que não deixará de imprimir ao assunto versado, transmitir aos Ex."105 Deputados a especial preocupação manifestada por este órgão do Estado sobre a necessidade de ser encontrada uma solução tão justa e adequada quanto o permita o tempo decorrido, facto que me leva a exercer o poder recomendatório à Assembleia da República, não obstante se encontrarem verificados os pressupostos de aplicação do artigo 38.°, n.° 5, do citado Estatuto.

Do mesmo passo, permito-me onerar V. Ex.*, Sr. Presidente da Assembleia da República, com o cuidado de transmitir a este órgão do Estado as conclusões alcançadas pela Assembleia, a que dignamente preside, bem como se digne ordenar a publicação da recomendação ora remetida no Diário da Assembleia da República (artigo 20.°, n.° 5, da Lei n.° 9/91, de 9 de Abril).

Apresento a V. Ex.", Sr. Presidente da Assembleia da República, os meus cumprimentos.

21 de Abril de 1994.— O Provedor de Justiça, José Menéres Pimentel.

I

Exposição de motivos

1 — Na sequência de uma reclamação apresentada neste órgão do Estado entendi formular recomendação a S. Ex.° o Ministro da Saúde, em 27 de Dezembro próximo passado, sobre o assunto em epígrafe, não obstante a publicação do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, e do Despacho conjunto A-30/93-XJJ (Ministérios das Finanças, da Justiça e da Saúde), de 27 de Agosto de 1993 {Diário da República, 2.* série, de 14 de Setembro de 1993), diplomas estes que pretenderam alcançar uma solução, através da constituição de um tribunal arbitral.

2 — Com efeito, estes dois diplomas cedo se revelaram insuficientes no sentido da obtenção de uma solução geral, justa, célere e adequada, nos termos que enunciarei.

3 — A solução não é geral, tal como sustentei, pois exclui, liminar e injustificadamente, não apenas os cidadãos não hemofílicos que hajam sido contaminados por agentes causadores de sida em consequência de actos terapêuticos, com utilização de sangue ou produtos seus derivados, em estabelecimentos públicos de saúde, como também inclusivamente, portadores de hemofilia contaminados por produtos hemoterapêuticos de origem nacional.

4 — Nada permite sustentar, de forma razoável, um tratamento diferenciado dentro do conjunto das pessoas que tenham contraído o VIH, em idênticas circunstâncias, por actos da responsabilidade da Administração Pública. Se é certo que os hemofílicos constituem um grupo de risco particularmente vulnerável aos agentes causadores de sida, não podem excluir-se sem mais as restantes situações clínicas em que o sangue ou produtos seus derivados fossem condição necessária à respectiva terapia.

5 — A solução não é justa, conforme sustentei a fls. 27 e seguintes da recomendação citada (v. documento n.° 1), porquanto foram impostas duas condições de duvidosa constitucionalidade aos aderentes à convenção de arbitragem vertida pelo Despacho conjunto A-30/93-XII, por força do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho.

6 — A primeira está na exigência de autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade [artigo 3.°, n.° 1, alínea a)]. Sob a aparência de alguma generosidade por parte do Estado legislador, com o intuito de reparar danos irremediavelmente perpetrados pelo Estado administrador, esconde-se a interdição de um eventual recurso futuro para os tribunais comuns (artigo 29.°, n." 2, da Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto).

7 — A segunda reside na imposição de uma limitação máxima às indemnizações a fixar pelo tribunal arbitral [artigo 3.°, n.° 1, alínea d)], concretizada, inexoravelmente, pelo citado despacho conjunto no montante de 12 000 000$ «por cada hemofílico» (cf. artigo 5." da proposta de convenção de arbitragem definida pelo Estado).

8 — Ambas as condições resvalam o domínio da inconstitucionalidade, pois partem de um considerável abuso do poder legislativo. A Lei da Arbitragem (Lei n.° 31/ 86, de 29 de Agosto) exige, nos termos do artigo 1.°,

Página 119

30 DE ABRIL DE 1994

119

n.° 4, a autorização, mediante lei especial, para o Estado e outras pessoas colectivas de direito público poderem celebrar convenções de arbitragem. Este argumento serviu, aliás, de refúgio em defesa do Decreto-Lei n." 237/93, de 3 de Julho, por parte de S. Ex.* o Ministro da Saúde (cf. documento n.° 2, a fl. 3), pese embora o formalismo. Isto é, o Estado teria necessariamente de autorizar por via legislativa a constituição de um tribunal arbitral e, como tal, ser-lhe-ia admitida a inclusão de todo o género de condições, independentemente de reconhecer uma inelutável proeminência da sua posição diante dos lesados e das suas famílias.

9 — Ora, tais condições, para além de dispensáveis, exibem uma das partes no conjunto dos litígios a socorrer-se da via legislativa para limitar as indemnizações que muito provavelmente terá de suportar e, por outro lado, a vedar um eventual recurso futuro à jurisdição comum — sem limite indemnizatório —, escudando-se na aplicação de fórmulas equitativas quando, por via do artigo 344.° do Código Civil, a inversão do ónus da prova sobre o nexo de causalidade permite ir mais longe que uma simples flexibilização dos aspectos probatórios, oferecida pela equidade (cf. Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.° 3831, p. 182).

10 — A solução não é célere, como se pode constatar pela evidência dos factos. Com o devido respeito e a elevada consideração que merece o tribunal arbitral, cuja composição só permite dignificá-lo, não foi até ao presente momento lograda qualquer solução desde a sua constituição, já que o apuramento das regras processuais aplicáveis não viabilizou o melhor resultado nem é previsível, num futuro próximo, que tal venha a suceder.

11 — A solução não é adequada, estou em crê-lo, na medida em que não garante a reparação provisória, nem tão-pouco no caso de serem os lesados sobreviventes os autores, e não os seus herdeiros. Refiro, de resto, que outra inadequação reside precisamente no facto de a convenção de arbitragem ter ficado cingida aos herdeiros legais no caso de falecimento dos lesados, razão pela qual recomendei a S. Ex.* o Ministro da Saúde que fosse conferida legitimidade a todos quantos se encontrem em relação de estreita dependência económica do lesado, para além de ter sugerido um alargamento do conceito de lesado aos indivíduos que tenham sido infectados através dos primeiros lesados, quer no âmbito da prestação de cuidados de saúde, quer por factores inerentes às relações da vida familiar.

12 — A doutrina civilística vem de há longa data discutindo a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais conexos com a morte e, se é certo ter o Código Civil pugnado pela afirmativa (artigo 496.°, n.os 2 e 3), não deixa de conferir-lhe a natureza de compensação, protegendo expressamente todos quantos pudessem exigir alimentos ao lesado, assim como aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural (artigo 495.°, n.° 3). São estes últimos, na verdade, pela sua insuficiência de meios, quem mais preocupará o lesado quanto ao seu destino, à margem do facto de serem ou não seus herdeiros legais. No caso de o lesado ter já falecido, justo seria garantir-lhes adequada tutela, por via de uma solução arbitral que irremediavelmente tardou. Nem se diga, em desfavor da recomendação, que a sucessão testamentária poderia tornear o problema, pois o texto do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, reporta-se, tão-somente, aos herdeiros legais, ou seja, legítimos e legiümários.

13 — Pelas razões enunciadas sumariamente e por outras que mantenho como válidas, remetendo os ilustres Deputados para o confronto com os documentos anexos, sustentei junto do Governo a criação de uma comissão representativa dos valores em presença, a qual, além de estabelecer uma indemnização provisória, fixaria por consenso, posteriormente, o montante do ressarcimento, sem prejuízo do regular funcionamento do tribunal arbitral (expurgado dos vícios apontados), ao qual sempre caberia decidir na falta de acordo. Por outro lado, porque mais consentânea com estes pressupostos, foi objecto da recomendação a forma de renda, nos termos do artigo 567.° do Código Civil, através de um fundo administrado pluralmente, ou seja, não exclusivamente pelo Estado, cujas receitas resultariam em boa parte do exercício do direito de regresso sobre os responsáveis pelo fornecimento de produtos contaminados aos estabelecimentos públicos de saúde.

14 — Do mesmo passo, foi concluída a necessidade de outorgar alguns benefícios sociais e patrimoniais a todos os cidadãos portugueses em estado de seropositividade ou em estados consequentes. Esta conclusão surgiu sem qualquer relação imediata com o ressarcimento dos lesados por actos terapêuticos praticados nos estabelecimentos públicos de saúde. Tais benefícios encontram fundamento na premência de assegurar uma melhor qualidade de vida aos atingidos pelo flagelo da sida, sem excluir, antes pelo contrário, que o mesmo se faça relativamente a outras doenças de cura desconhecida e sempre em obediência à preocupação de salvaguardar a privacidade de todos os doentes, a sua dignidade e a liberdade de aceitarem tais benefícios ou não.

15 — Assim, recomendei o desenvolvimento do princípio do tratamento domiciliário, a realização de programas que garantam a não desintegração social dos doentes e seus familiares, a concessão de crédito bonificado no campo da habitação e da auto-suficiência de transportes e a aprovação de benefícios fiscais, principalmente ao nível dos impostos sobre o rendimento e o património.

16 — Naturalmente, a recomendação de 27 de Dezembro próximo passado surgiu alicerçada na apreciação que este órgão do Estado teve oportunidade de efectuar sobre a utilização de produtos derivados do sangue, designadamente de factor viu, em hospitais públicos. Foi detectado um caso, particularmente grave, de administração, entre 18 de Agosto de 1986 e meados de Setembro do mesmo ano, de um lote importado da Áustria, sem que estivessem certificadas devidamente as características de inocuidade, à luz dos conhecimentos científicos da época e das especiais exigências de cautela que o risco envolvido e um certo mínimo de prudência aconselhariam.

17 — Além de negligente, em face dos sinais de alarme que eclodiram sobre o Ministério da Saúde quanto à qualidade do lote n.° 810 536, da Plasmapharm-Sera, a administração deste lote violou um despacho de S. Ex.° a Ministra da Saúde, ao tempo a Sr. Dr.* Leonor Beleza — Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril—, porquanto se considerou suficiente a idoneidade emprestada ao lote pela marca aposta no rótulo. Meses mais tarde, em Dezembro de 1986, os mesmos conhecimentos médicos que teriam possibilitado a sua retirada oportuna vieram concluir pela não administração do mesmo, verificadas que eram as referências das bandas de Westem-Blot. Ainda assim, só em 10 de Fevereiro de 1987 viria a ser ordenado que se retirasse dos hospitais o lote em causa, quando paradoxalmente estaria já consumido integralmente.

Página 120

120

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

18 — Admitindo, por hipótese, que não tenha sido violado o citado despacho, teria de concluir-se pela insuficiência deste; facto que nunca permitiria ao Estado esquivar--se à assunção de responsabilidades perante os lesados, pois dar-se-ia o caso de uma responsabilidade por omissão em tempo útil de medidas normativas indispensáveis, no mesmo sentido em que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou a República Francesa por Acórdão de 31 de Março de 1992, em circunstâncias muito semelhantes (cf. fl. 25 do documento n.° 1).

19 — Prontamente, S. Ex." o Ministro da Saúde fez cumprir, em 21 de Fevereiro de 1994, o dever de comunicação inscrito no artigo 38.°, n.° 2, da Lei n.° 91 91, de 9 de Abril, embora para justificar o não acatamento da recomendação que lhe fora endereçada em 27 de Dezembro próximo passado (cf. documento n.° 2).

20 — Neste documento sustentou a Administração Pública que no decurso do ano de 1986 terão sido utilizados os meios de controlo considerados eficazes, referindo também que as suspeitas lançadas à época pela Associação Portuguesa dos Hemofílicos (APH) e veiculadas pela imprensa se confinavam a produtos da Plasmapharm-Sera que não o factor viu. A comissão nomeada para adjudicação ter-se-á satisfeito com a garantia de o laboratório austríaco se encontrar submetido a gestão pública e não ter havido, quanto àquela marca, notícia de contaminação de factor viu.

21 —Refutando a argumentação deste órgão do Estado quanto à necessidade de ter ficado registada a ligação entre o lote administrado e o indivíduo que o haja recebido, entende o Ministério da Saúde que apenas se seguiu a prática clínica corrente, confundindo, acrescidamente, aquilo que fora defendido na recomendação sobre a inversão do ónus da prova do nexo de causalidade com a produção de prova, hoje superabundante, da contaminação do lote

"n.° 810 536.

22 — Mais afirma S. Ex.* que o Estado, ao consagrar a solução arbitral, assumiria a responsabilidade pelo risco e acrescenta, no mesmo texto, que a adesão dos hemofílicos à convenção de arbitragem partiu de um acto livre e consensual..

23 — Por fim, escudou-se o Ministério da Saúde em argumentação sufragada pela APH sobre a recomendação, quanto às relações entre a comissão sugerida e o tribunal arbitral, argumentação essa que partia de uma deficiente compreensão jurídica, mau grado persistentes esforços empregues junto daquela respeitada Associação, com vista a esclarecer o alcance, conteúdo e significado de uma solução paralela, extrajudicial, aliás, regida pelo Código de Processo Civil, nos termos gerais.

24 — Verificando que a resposta de S. Ex.* o Ministro da Saúde evidenciava algumas petições de princípio, porventura resultantes de uma menor clareza do texto, decidi contraditar e reenunciar os aspectos mais basilares da recomendação formulada. Assim, em 4 de Março próximo passado, remeti ao Ministério da Saúde esclarecimentos complementares (documento n.° 3), onde pude afirmar não ter encontrado razões suficientes que tornassem vencida ou sequer convencida a posição deste órgão do Estado.

25 — Renovei as considerações efectuadas quanto à insuficiência das garantias retiradas do certificado de qualidade referente ao sempre citado lote austríaco, fundando--me, em boa parte, no relatório do Grupo de Trabalho Sida/ \fe!fcCiÇí!Ácos, cuja nomeação partira do Ministério da Saúde, através de despacho de 23 de Dezembro de 1991

(Diário da República, 2.' série, de 24 de Janeiro de 1992). De novo sustentei «que elementares razões de precaução, ainda quando apreciadas na posição 'de um bom pai de família', em face das circunstâncias do caso (v. artigo 487.°, n.° 2, do Código Civil), exigiam a sustação da administração do produto até ser obtida completa dissipação das menores dúvidas quanto à sua nocividade» (cf. documento n.° 3, a fl. 3). Acrescentei ainda, confortado por transcrição de uma intervenção do Sr. Prof. Machado Caetano, ser o lote em causa indesejado, mesmo à \uz de outras exigências de qualidade autónomas da despistagem do HTV, dado que apresentaria uma excessiva quantidade de fibrogénio.

26 — No que diz respeito à ilegalidade da conduta praticada pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, por violação das regras contidas nos n.os 1 e 4 do Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril, entendeu S. Ex.* o Ministro da Saúde não dever inflectir a posição do provedor de Justiça. Quanto a este aspecto, apesar de não incidir sobre a Administração Pública o ónus da impugnação especificada, não deixarão por certo VV. Ex.", Srs. Deputados, de retirar as devidas conclusões, sendo certo que, em última instância, a decisão sobre a ilegalidade cometida caberá aos tribunais.

27 — A prática clínica da época não pode servir de causa justificativa da omissão administrativa de um registo onde fossem cruzadas as referências lote/doente. «Se era essa a prática clínica da época, configurava-se como descuidada e, como tal, insusceptível de justificar a ilicitude dos actos praticados ao seu abrigo.» (Cf. documento n.° 3, a fl. 5.)

28 — Não ficou sem reacção, também, a parte da resposta sobre as virtualidades do sistema definido a partir do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho. Comecei por reiterar que «o processo alternativo de resolução do litígio, através da constituição de um tribunal arbitral, não é, por si só, objecto de crítica ou reparo na recomendação do provedor de Justiça, excepto no que tardou» (cf. documento n.° 3, a fl. 7). A censura deve-se à posição débil e iníqua em que os aderentes ficaram situados, tal como fora sustentado na recomendação.

29 — Em 22 de Fevereiro próximo passado, S. Ex." o Ministro da Saúde cumpriu formalmente, uma vez mais, o dever de colaboração para com este órgão do Estado, retorquindo às objecções que complementarmente haviam sido enunciadas. Infelizmente, uma vez mais, manteve o não acatamento da recomendação e, embora lançando mão de argumentação melhor desenvolvida sob o ponto de vista sistemático, continuou sem convencer o provedor de Justiça, nem retirar validade às asserções contidas na recomendação de 27 de Dezembro próxima passado.

30 — Afirma S. Ex.": «A análise cega do produto demorou seis meses, era necessário tratar os doentes, o hospital esperou dois meses até receber o certificado de garantia do lote em causa.» (Cf. documento n.° 4, a fl. 3.) É este o cerne da justificação pretendida pela Administração Pública, ao qual não pode deixar de acrescentar-se que o certificado de qualidade reportava-se, em abstracto, à marca e não ao lote em questão.

31 — No tocante ao excessivo volume de fibrogénio, foi retorquido, o que, com o devido respeito, era desnecessário, ou seja, explicar que este elemento nada tem que ver com o HIV. Com efeito, o que fora afirmado era simplesmente que o lote n.° 810 536 nem sequer segundo critérios de qualidade genéricos deveria, alguma vez, ter sido adjudicado.

Página 121

30 DE ABRIL DE 1994

1.21

32 — Por mais uma vez, insiste S. Ex.° em comparar o acto médico de administração de um antibiótico com a administração de sangue ou produtos seus derivados, quando o que está em causa, para o efeito, é apenas a mera operação material administrativa de registo da correspectividade entre o doente e o fármaco ou outro meio terapêutico utilizado — neste caso, sangue e seus derivados.

33 — Finalmente, considera como votada inelutavelmente ao insucesso a comissão proposta; no entanto, socorrendo-se de uma argumentação que remetia para uma compreensão inexacta dos mecanismos processuais correntes, em relação à qual dispenso maiores considerações. Não fica sem registo que o Ministério da Saúde venha agora louvar-se nas posições semipublicamente assumidas pela APH para justificar o reduzido alcance da via encontrada, quando essa mesma Associação não deve nem pode representar os direitos e interesses legítimos dos não hemofílicos lesados. Por outro lado, acresce o facto de a solução conciliatória recomendada complementarmente ter sido adoptada no direito francês, sem que se conheça, antes pelo contrário, qualquer insucesso ou menor eficácia.

34 — A gratificante preocupação por parte do Ministério da Saúde em não discriminar cidadãos portadores de outras doenças incuráveis valerá tanto quanto venham a surgir, em futuro próximo, iniciativas legislativas e administrativas que beneficiem todo o conjunto destes cidadãos, sem esquecer uma preocupação devida também aos que encontraram em actos terapêuticos de administração de sangue em estabelecimentos privados de saúde a contaminação por agentes causadores de sida.

35 — S. Ex.a o Ministro das Finanças dignou-se, cortesmente, mandar responder à recomendação de 27 de Dezembro que lhe houvera sido remetida para conhecimento. Uma primeira resposta, de 19 de Janeiro próximo passado, concluía pela ausência de previsão orçamental específica para suportar o fundo a que aludia a 7." conclusão recomendada, recolhendo apoio em informação prestada pela 12.s Delegação da Direcção-Geral da Contabilidade Pública, que para o efeito fora previamente consultada (cf. documento n.° 5).

36—Em 24 de Fevereiro próximo passado, S. Ex.° veio

pronunciar-se sobre os benefícios propostos genericamente para todos os cidadãos portugueses portadores de HIV (cf. documento n.° 6).

37 — Neste documento, invoca a reserva legislativa parlamentar, elidindo, contudo, os poderes de iniciativa legislativa do Governo junto da Assembleia da República (artigo 170.°, n.° 1.°, da Constituição da República Portuguesa), os quais são, de resto, exclusivos no tocante à diminuição de receitas do Estado no ano económico em curso. Por isso, vi-me no dever de o recordar a S. Ex." o Ministro das Finanças por ofício de 20 de Abril próximo passado (cf. documento n.° 7).

38 — De igual forma, reiterei a posição assumida relativamente aos benefícios fiscais a criar em sede de impostos sobre o rendimento e o património, que considero plenamente justificáveis, atendendo à excepcionalidade das situações visadas e ao imperativo de solidariedade, com vista a garantir uma melhor qualidade de vida do lesado e seus dependentes. Daí a referência, por certo não compreendida, ao imposto sucessório, em que os beneficiários das isenções recomendadas são as pessoas que presumidamente mantêm especiais ligações com os lesados.

II

Conclusões

Face ao exposto, assim como à luz das considerações desenvolvidas na documentação que se faz juntar em anexo, o provedor de Justiça, no exercício do poder que lhe é conferido no artigo 20.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Estatuto, aprovado pela Lei n.° 9/91, de 9 de Abril, entende dever recomendar à Assembleia da República a adopção de providências legislativas dirigidas à prossecução das seguintes finalidades:

1.° Institucionalização de um meio conciliatório

célere e eficaz que promova a atribuição de indemnizações aos lesados — hemofílicos ou não hemofílicos — por actos terapêuticos que hajam envolvido a administração de sangue ou produtos seus derivados, contaminados pelo HIV, em estabelecimentos públicos de saúde, sem prejuízo do regular funcionamento do tribunal arbitral;

2." Reforma das condições impostas pelo Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, no que respeita ao aparente benefício do recurso a juízos de equidade e à limitação ressarcitória, aliás significativamente parca, de 12 000 000$, montante angariado, na melhor das hipóteses, por um chefe de família com alargado agregado familiar. Do mesmo passo, alargamento desta via a cidadãos não hemofílicos, cuja contaminação pelo HTV tenha resultado de condicionalismos semelhantes;

3." Efectivação de um princípio de indemnização provisória aos lesados ou seus dependentes (no caso dos primeiros a atribuir em sistema de renda e progressivamente, de acordo com a evolução da patalogia e as incapacidades conexas);

4." Constituição de um fundo, cujas receitas resultem de subvenções públicas (alimentadas, em parte, pelas quantias obtidas por via do exercício de direitos sub-rogatórios contra o fornecimento de produtos contaminados) e contribuições particulares, a ser administrado com autonomia, por representantes dos diversos valores em presença;

5.° Reconhecimento de direitos ressarcitórios, também, às pessoas que tenham sido contaminadas através dos lesados em estabelecimentos públicos de saúde, quer por via da prestação de cuidados de saúde, quer por actos inerentes às relações familiares;

6." Reconhecimento de legitimidade activa, não apenas aos herdeiros legais como também, aliás preferencialmente, a todos quantos dependessem economicamente de um lesado entretanto falecido;

7.° Concessão a todos os cidadãos atingidos pelo HW dos benefícios sociais e fiscais enunciados na conclusão 17.* da recomendação de 27 de Dezembro próximo passado dirigida a S. Ex." o Ministro da Saúde.

De resto, permito-me sublinhar a importância que confiro aos documentos juntos em anexo, pelos desenvolvimentos e considerações ali registados, bem como recordar aos Ex."105 Deputados, ilustres destinatários da presente recomendação, o rigoroso cumprimento do disposto no artigo 38.°, n." 2, do Estatuto, aprovado pêra Lei n.°9í9i, oe 9 de Abril, sem embargo da comunicação a este órgão do

Página 122

122

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

Estado das medidas eventualmente em curso sobre o assunto versado, em prazo anterior.

O Provedor de Justiça, José Menéres Pimentel.

ANEXOS Documento n.° 1

Recomendação do provedor de Justiça áo Ministro da Saúde

C/c de.S. Ex." o Primeiro-Ministro, da Comissão Parlamentar de Saúde, de S. Ex.° o Ministro da Justiça e de S. Ex." o Ministro das Finanças.

I

Exposição de motivos A) Dos factos

- 1 — Em 31 de Janeiro de 1986 foi autorizada, por despacho da Sr." Secretária-Geral do Ministério da Saúde, a aquisição de lotes de factor viu — um derivado do sangue, largamente utilizado no tratamento de portadores de hemofilia, como factor de coagulação.

2 — Pelo menos desde 1985, foram pretendidas e sugeridas acções que salvaguardassem o acto médico de transfusão de se tornar num veículo difusor da síndrome da imunodeficiência adquirida, em virtude de contaminação de produtos transfundidos pelo agente seu causador.

3 — Assim, organizou-se um concurso exclusivo para este tipo de produtos, acompanhado por uma comissão técnica, da qual fizeram parte médicos especialistas de imuno-hemoterapia.

4 — Tal veio a ser o concurso n.° 15/86, o qual permitiu a adjudicação do produto, em partes iguais, às empresas AVIQUÍMICA e A. Paiva dos Santos, representantes, respectivamente, do laboratório austríaco Plasmapharm-Sera e da empresa Sero.

5 — Apesar das notícias vindas a lume na Áustria e das sucessivas manifestações de apreensão junto das autoridades sanitárias quanto aos produtos comercializados pela Plasmapharm-Sera, foi mantida a adjudicação.

6 — Em 5 de Maio de 1986, viria a ser publicado um despacho da Sr.° Ministra da Saúde de 18 de Abril de 1986, pelo qual foram impostas providências destinadas a «garantir a verificação e subsequente eliminação da eventual possibilidade de serem portadores dos agentes actualmente reconhecidos como causadores da síndrome da imunodeficiência adquirida (sida)» todos os lotes de sangue, seus componentes e fracções terapêuticas {Diário da República. 2." série, de 18 de Abril de 1986).

7 — O mesmo despacho, embora de execução imediata, tolerava um prazo máximo de 90 dias a partir da data da sua publicação para «se encontrar em execução efectiva na totalidade dos serviços» (idem).

% —Foram scAtótadas, pela Associação Portuguesa dos Hemofílicos (APH), informações à Áustria sobre a idoneidade do produto adjudicado em 31 de Janeiro de 1986.

9 — Não obstante a falta de resposta, o produto foi administrado a partir de 18 de Agosto de 1986, no Hospital de São José (HCL), em Lisboa.

10 — Em Dezembro de 1986, o Ministério da Saúde tomou conhecimento da análise efectuada na Áustria, cujo resultado indicava a não administração do produto. Posteriormente (em 1992), mercê de testes realizados em Portugal, porventura através de meios mais sofisticados, provou-se ser o produto susceptível de transmitir a infecção pelo VIH-1.

11 —Contudo, só em 10 de Fevereiro de 1987 viria a ser ordenado que se retirasse dos hospitais o lote em causa (lote n.° 810 536, da Plasmapharm-Sera), quando paradoxalmente já teria sido consumido na sua totalidade.

12 —Por despacho de 23 de Dezembro de 1991 (cf. Diário da República, 2.' série, de 24 de Janeiro de 1992), o Sr. Ministro da Saúde criou um grupo de trabalho incumbido da elaboração de um relatório, cujo objectivo era, entre outros, o de investigar um eventual nexo de causalidade entre a contaminação de cerca de 30 hemofílicos e o lote n.° 810 536 da Plasmapharm-Sera.

13 — Tal relatório foi concluído e entregue ao Sr. Ministro da Saúde em 24 de Junho de 1992, com a designação de Relatório do Grupo Sida/Hemofílicos.

14 — Com a publicação do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, o Estado admitiu a celebração de convenções de arbitragem com cada um dos hemofílicos ou seus herdeiros legais que exijam indemnização por contaminação «pelo vírus da imunodeficiência humana» em estabelecimentos públicos de saúde, através da transfusão de sangue ou de produtos seus derivados.

15 — No preâmbulo deste diploma reconhece-se:

O recurso à importação de medicamentos derivados de plasma humano permitiu salvar e tratar inúmeros doentes e continuará a ser imprescindível à medicina moderna.

Porém, antes da despistagem do vírus da imunodeficiência humana, parte desses medicamentos serviu de seu difusor, designadamente entre os hemofílicos.

16 — Dois aspectos merecem, antes de mais, ser salientados do conteúdo deste diploma. Primeiro, a necessária autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade [artigo 3.°, n.° 1, alínea a)]. Segundo, a vinculação por um limite máximo indemnizatório, como condição da celebração das convenções de arbitragem pelo lado do Estado [idem, alínea d)]. Este limite veio a ser quantificado através da proposta de convenção de arbitragem apresentada pelo Estado (v. infra).

17 — O limite da indemnização, condição da celebra^ ção da convenção, como se referiu, foi fixado na proposta de convenção de arbitragem apresentada pelo Estado e aprovada pelo Despacho conjunto A-30/93-XI1, de 27 de Agosto de 1993 (publicado in Diário da República, 2.' série, n.° 216, de 14 de Setembro de 1993).

B) Discussão e fundamentação

18 — Os doentes submetidos a actos médicos de transfusão de sangue ou de produtos seus derivados têm sido considerados, justamente, como um dos principais grupos de risco no contágio pelos VIH.

19 — Dentro dos chamados grupos de maior risco, este conjunto é, muito provavelmente, aquele sobre o qual menos suspeitas de negligência por parte dos doentes podem recair quanto ao modo de contaminação pelos agentes conhecidos como causadores da sida, porquanto o seu livre

Página 123

30 DE ABRIL DE 1994

123

consentimento para a realização de actos de transfusão é condicionado por razoes clínicas, inclusivamente de estrita sobrevivência, por vezes.

20 — Os portadores de hemofilia destacam-se no interior deste conjunto, sem, no entanto, deverem ser esquecidos todos os restantes indivíduos aos quais são administrados sangue ou produtos seus derivados.

21 — Assim e se é certo que o Estado não se pode furtar, por todos os meios que estejam ao seu alcance, a disponibilizar formas de apoio a todos os contaminados pelos agentes causadores da sida, haverá também de, acrescidamente, ter em conta a situação especial daqueles que se tornaram seropositivos, ainda que acrescidamente, a partir de actos médicos realizados em estabelecimentos públicos de saúde.

22 — Na verdade, pelo menos relativamente aos actos médicos de transfusão realizados em estabelecimentos públicos de saúde, o Estado assume uma posição de garante da idoneidade e qualidade dos produtos administrados. Desta posição de garante resultam deveres de cuidado, cujo cumprimento se traduz quer na produção de normas regulamentares necessárias e adequadas, quer na prática de actos individuais e concretos, quer ainda na realização de operações materiais.

23 — Analisem-se, então, as conclusões relatadas pelo referido Grupo Sida/Hemofílicos, nomeado por despacho ministerial (v. supra), para o efeito de determinar se o Estado cumpriu ou não os deveres de cuidado e diligência a que estava adstrito, em face das circunstâncias de facto, do direito vigente e em função da posição de garante que desempenha.

24 — Pode ler-se a fl. 10, do citado documento, sob o título «Conclusões»:

1) O lote n.° 810 536 da Plasmapharm podia ser susceptível de transmitir a infecção pelo vírus da sida.

2) O produto entrou no Hospital de São José em Junho de 1986 na quantidade de 500 frascos e, a partir de 18 de Agosto do mesmo ano, começou a ser utilizado, presumindo-se que foi administrado até final de Setembro de 1986.

3) O Hospital de São José não administrou o produto sem que tivesse em seu poder o certificado de análise do laboratório produtor, comprovando a negatividade para o vírus da sida.

[...]

5) Sabemos, contudo, que até à data da entrada do mesmo nos HCL, já havia pelo menos 38 hemofílicos seropositivos dos 107 estudados até então [...]

6) Há, todavia, alguns doentes em relação aos quais, embora não possa ser estabelecida uma relação linear entre a administração do produto e a seropositividade, esta eventualidade não se pode excluir. Acresce, ainda, um problema difícil de superar que diz respeito à existência de testes com resultados falsamento positivos e falsamente negativos, o que dificulta ainda mais o estabelecimento da relação causa/efeito, entre a administração do lote e a seropositividade.

[...]

11) A partir de 1987 todos os factores de coagulação e posteriormente todas as imunoglobulinas adquiridas através de concurso da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde passaram a ser testados para o v/rus da hepatite B e da sida no Instituto Português

do Sangue, não tendo sido autorizada a administração de quaisquer produtos cujos resultados mostrassem haver susceptibilidade de transmissão destas infecções.

25 — Em primeiro lugar, cumpre apreciar o cuidado por parte da Administração Pública na aquisição do lote n.° 810 536, cuja nocividade ficou comprovada decisivamente em Dezembro de 1986. Importa, pois, saber se a actuação administrativa se conformou com as normas jurídicas em vigor, ao tempo, e saber também se, nessa actuação, a Administração «empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias» (cf. artigo 493.°, n.° 2, do

Código Civil).

26 — De um lado ou de outro, não pode a actuação do Ministério da Saúde e das autoridades hospitalares ficar isenta de críticas.

27:—Com efeito, no próprio relatório citado é admitido que, apesar de as exigências formuladas quanto ao concurso para aquisição do produto permitirem a salvaguarda contra a transmissão de VIH (fl. 74), o certo é que se faz sustentar, do mesmo passo que «o método estabelecido para o controlo burocrático era criticável» (idem). De modo inequívoco, afirma-se a fl. 71:

Há que salientar, contudo, a incongruência entre as normas estabelecidas e o processo de verificação do seu cumprimento. Concretamente entre a exigência contida no artigo 3.° das «Condições especiais» e a comprovação da condição estabelecida na alínea b) dos novos requisitos.

28 — Por outras palavras: embora se exigisse às empresas concorrentes um certificado do laboratório de origem comprovando a inactivação do HTL VIU, com indicação da metodologia adoptada (v. ofício de 11 de Setembro de 1985), depois, o pedido do certificado de análise ficava na disponibilidade de cada hospital.

29 — Além deste aspecto, o relatório não deixa de enunciar outra censura. A fl. 70 lê-se:

Colocada a questão aos Serviços de Aprovisionamento da Secretaria-Geral, estes referem que o requisito desta alínea b) se reporta à marca e não a cada lote do produto como, em nosso entender, deveria ser.

Daí que nunca se tenha encontrado naqueles Serviços qualquer referência ao lote n.° 810 536.

30 — Mais se afirma no mesmo texto (fl. 70) ser estranho não existirem quaisquer boletins analíticos desse lote, quando é certo haver boletins analíticos relativos a outros lotes.

31 —Em 18 de Agosto de 1986, quando começou a ser administrado o lote n.° 810 536 —eventualmente, só uma parte, pois é admitido terem sido destruídos alguns frascos que compunham o mesmo —, encontrava-se já em vigor o Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril.

32 — Ora, nunca até esta data foi enviado pelo Ministério da Saúde à Provedoria de Justiça documento algum que demonstre ter sido cumprido o disposto nos n.05 1 e 4 do aludido despacho. Tão-só resulta ter ficado assegurada a idoneidade da marca. E repare-se que no mesmo despacho se afirma:

4.1 — Os produtos e fracções estirados do sangue, destinados a serem utilizados para fins terapêuti-

Página 124

124

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

cos, que se encontrem ainda disponíveis nos serviços hospitalares, sem obedecerem aos requisitos indicados, deverão ser substituídos por outros em relação aos quais tenham sido observadas as condições aqui referidas.

33 — A tudo isto devem acrescer as fundadas suspeitas, primeiro levantadas pela imprensa austríaca e veiculadas pela empresa À. P. Santos, sobre a inocuidade de produtos do laboratório em questão (Plasmapharm-Sera), entre o momento da adjudicação (31 de Janeiro de 1986) e o momento da sua administração no Hospital de São José (desde 18 de Agosto de 1986). De novo se recorrerá, para ilustrar as referidas suspeitas, a transcrições do relatório do Grupo Sida/Hemofílicos:

a) Em 20 de Fevereiro daquele ano de 1986, portanto após a aquisição do produto, a APH, em carta datada de 28 de Janeiro, remete ao Dr. Pedro Franco, ao tempo director do Instituto Português do Sangue e membro da Comissão de Escolha da Secretaria-Geral, fotocópias da documentação já apresentada pela firma A. P. Santos ao Serviços de Aprovisionamento da Secretaria-Geral.

Discutida a questão, o Dr. Pedro Franco entendeu que seria de manter a adjudicação, uma vez que não estava em causa nenhum lote de factor viu.

A Comissão defendeu idêntica posição mas com outro argumento: o de que o laboratório estava a ser controlado pelas autoridades estatais, garantia que não podiam ter com os outros. (Fls. 67 e 66.)

b) Em 8 de Maio de 1986 pediu à Comissão Técnica de Escolha que efectuasse uma análise cega a todos os produtos (os da Plasmapharm e outros), proposta que não mereceu acolhimento. (Cf. informação n.° 58, de 18 de Julho de 1986, dos Serviços de Aprovisionamento da Secretaria-Geral). (Fl. 66.).

c) Em 30 de Junho de 1986 a APH escreve ao GTS sugerindo que este Grupo proponha para os hemofílicos medidas idênticas às que foram tomadas quanto aos doentes hemodialisados, previstas no Despacho n.° 11/86, e envia as estatísticas da WH Aids Center onde vem enunciado o número de hemofílicos seropositivos portugueses —o 3.° a nível mundial— manifestando a sua preocupação.

d) Em 21 de Julho de 1986, a APH solicita uma entrevista à Sr.* Secretaria-Geral, que não foi concedida. (Fl. 66.)

34 — Entretanto, fora solicitado, pela APH, um estudo do lote a um laboratório austríaco. Não obstante a falta de qualquer resposta por parte desta entidade, o lote começou a ser utilizado a partir de 18 de Agosto de 1986, garantido a partir da apresentação de um «certificado de qualidade, pe\a firma» (fl. 65).

35 — À luz destes factos, não pode deixar de ser considerada censurável a omissão da Administração de não suspender a administração do lote em causa até serem obtidos todos os esclarecimentos possibilitados, ao tempo, pelos conhecimentos médicos.

36 — E não se afirme que os resultados então obtidos eram satisfatórios, quando, na verdade, poucos meses após, foi possível colher a informação austríaca, na qual eram referenciadas as bandas de Western-Blot que o produto apresentava, aconselhando a não administração do mesmo.

37 — Só a partir do início de 1987, todo o sangue e seus derivados com fins terapêuticos terão passado a ser testados para o vírus causador da sida no Instituto Português do Sangue, deixando de se permitir a administração de produtos cujos resultados, em concreto e por espécie, revelem susceptibilidade de transmissão dos agentes referidos.

38 — Ora, não passa despercebido que a utilização desta metodologia adoptada a partir de 1987 poderia, com largo proveito da saúde pública, ter sido determinada para o ano de 1986, porquanto os conhecimentos científicos não terão progredido extraordinariamente entre os dois anos.

39 — Recorde-se pois, neste contexto e relativamente à responsabilidade civil extracontratual da Administração, o disposto no artigo 6.° do Decreto-Lei n.°48 051, de 21 de Novembro de 1967:

Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.

40 — Posto isto e reconhecendo não ter agido a Administração segundo critérios de diligência e cuidado pressupostos pela actividade de risco em questão, interessa ponderar a questão da determinação de um nexo de causalidade entre a utilização do lote n.° 810 536, a partir de 18 de Agosto de 1986, no Hospital de São José, e os resultados posteriores de seropositividade evidenciados por indivíduos que haviam sido submetidos a actos de transfusão de sangue ou de produtos seus derivados, como é o caso dos factores de coagulação, durante o período em questão.

41 — De acordo com o relatório citado — o qual se reporta, nas suas finalidades e conclusões, exclusivamente a hemofílicos — dos 58 casos tratados no Hospital de São José e referenciados em Junho de 1992, 38 já se encontrariam seropositivados à data do início da administração do lote n.° 810 536. Conclui o Grupo de Trabalho ser «provável que a maioria dos hemofílicos se tenha infectado antes da disponibilidade das técnicas de detecção do vírus e antes das técnicas de inactivação, à semelhança do que aconteceu no resto do mundo» (fl. 9). Todavia, haverá sempre a considerar o facto do agravamento acrescido propiciado por uma segunda inoculação.

42 — Após aquela data, surgiram, pelo menos, 20 hemofílicos tratados em São José com seropositividade para o VIH.

43 — No entanto, com excepção de quatro deles, não existe qualquer exame anterior que demonstre negatividade.

44 — Refira-se também que «restam 42 hemofílicos no Hospital de São José que até Maio de 1992 nunca tinham efectuado a pesquisa para o VIH neste Hospital, por recusarem a realização do teste ou porque não voltaram à consulta» (fl. 9).

45 — A partir destes pressupostos de facto, a demonstração de um nexo de causalidade entre a apontada conduta da Administração e a seropositividade de hemofílicos

Página 125

30 DE ABRIL DE 1994

125

e não hemofílicos que vieram exigir do Estado o pagamento de indemnizações coloca estes últimos numa posição de manifesta fragilidade em relação à qual o provedor de Justiça não pode ser estranho. Isto porque, em princípio, caberia aos lesados «fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado» (artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil), pese embora a equidade segundo a qual julga o tribunal arbitral criado a partir do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho [cf. artigo 3.°, n.° 1, alínea a)].

46 — Neste tipo de casos, vem a doutrina reconhecendo a necessidade de vulnerabilizar o ónus da prova. Como afirma o Prof. Sinde Monteiro («Aspectos particulares da responsabilidade médica, in Direito da Saúde e Bioética, Ed. Lex, 1991, Lisboa, p. 147), «pode entender-se que a 'criação de um risco injustificado' ou o 'agravamento dos riscos' culposamente provocado pelo acto médico são um fundamento válido para aligeirar a prova de nexo causal, podendo conduzir à inversão do ónus».

47 — De acordo com esta ideia, à qual não são de todo alheias motivações de equidade, como reconhece o ilustre autor, o ónus pode recair, em diferentes graduações, mais ou menos, sobre o lesado.

48 — Por outro lado, o artigo 8.° do já citado Decreto-Lei n." 48 051, de 21 de Novembro de 1967, estabelece uma presunção em desfavor do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no caso de se tratar de prejuízos especiais e anormais, estando em causa «serviços administrativos excepcionalmente perigosos» ou «coisas e actividades da mesma natureza», independentemente da licitude da conduta.

49 — Todavia, observe-se que não é objecto desta estatuição o ónus da prova quanto ao nexo de causalidade. A citada norma apenas estabelece uma presunção de culpa do Estado em favor do lesado.

50 — Importará pois, sequencialmente, considerar um facto sobejamente relevante para as questões em apreço. Retomando o relatório sempre citado, pode ler-se, nas conclusões, a fl. 10:

4) No Hospital de São José, à semelhança de todos os outros hospitais do País, não era ao tempo registado na ficha do doente o lote que lhe era administrado, mas, unicamente, as unidades de factor, quer sob a forma de concentrado comercial, quer sob a forma de crioprecipitado, não se sabendo, assim, quais os hemofílicos a quem foi aplicado o produto respeitante ao referido lote.

51 —A impossibilidade de conhecer a quem foi transfundido o produto de determinado lote, exclusivamente determinada pela ausência de quaisquer registos que permitam estabelecer a correlação, cabe por inteiro à Administração Pública, a qual não agiu, uma vez mais, com a prudência e cuidado que a utilização médica de sangue e de produtos seus derivados exige.

52 — A prova do nexo causal por quem invoca o direito a uma indemnização por actos de gestão pública ilícitos tornar-se-ia assim, na situação vertente, demasiado onerosa. ,

53 — Contudo, face a estas circunstâncias, mais que uma vulnerabilização equitativa do ónus da prova (v. supra, n.° 45), mais que uma presunção de culpa por parte do Estado nos termos da responsabilidade objectiva assacada pelo artigo 8." (a qual prescinde da ilicitude do facto gerador de dano, v. supra, n.° 47), beneficiarão os

lesados da regra de inversão do ónus da prova inscrita no artigo 344.°, n.° 2, do Código Civil, onde se dispõe:

Há também inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.

54 — A diferença entre o recurso a esta disposição e aos outros meios mencionados (aliás, o artigo 8." do Decreto-Lei n.°48 051, de 21 de Novembro, de 1967, caso fosse de aplicá-lo, não afastava a regra geral do artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil) constitui uma diferença subtil, mas também substancial.

55 — Com efeito, por esta via, «o ónus da prova do contrário significa simplesmente que se essa prova não for feita nem resultar de outros elementos do processo se tem como assente o facto presumido» (v. Revista de Legislação e Jurisprudência, 106.°, p. 383).

56 — Em resumo e por outras palavras, deve sublinhar--se o posicionamento, em desfavor do Estado, dos seguintes aspectos:

a) A posição débil, de quase sujeição, dos doentes a quem são administrados sangue ou produtos seus derivados com fins terapêuticos, a qual lhes restringe intensamente qualquer domínio de facto sobre os citados actos médicos e sobre os demais actos de gestão pública conexos, impondo, assim, uma necessária cedência da regra geral sobre o ónus da prova, em termos equitativos;

b) O não cumprimento de deveres de cuidado quanto aos riscos inerentes, em concreto, à administração do sempre referido lote de factor vtn, adjudicado pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, em 31 de Janeiro de 1986, indiciando negligência;

c) A representação desses mesmos riscos, por repetidas vezes, pela APH e por outras entidades, junto de órgãos da Administração com competência para determinar a suspensão da utilização do lote n.° 810 536, enquanto não fossem possuídos resultados claramente satisfatórios, em termos de segurança dos indivíduos sujeitos a transfusão, indiciando negligência consciente;

d) A ausência de quaisquer registos a partir dos quais seja possível fixar a posteriori um nexo de causalidade entre a administração de um lote infectado e as lesões sofridas, invertendo o ónus da prova, à luz do artigo 344.°, n.° 2, do Código Civil;

e) O não cumprimento de disposições regulamentares contidas no Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril (Diário da República, 2." série, de 5 de Maio de 1986), nomeadamente, as dos n.os 1, 4 e 4.1.

57 — A tudo isto ainda poderá acrescer a responsabilidade por omissão quanto à não publicação de normas regulamentares ou legislativas que determinassem a aplicação de conhecimentos científicos correntes e comummente tidos por adequados à época. É importante considerar que a utilização do método de pré-aquecimento, em 1986, não seria de desprezar.

58 — Desde finais de 1985 que a comunidade científica chamava a atenção para o método de çc4-aquecrmento,

Página 126

126

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

como um meio preventivo, relativamente eficaz, de evitar a administração de produtos contaminados.

59 — A este propósito, refira-se que em 31 de Março de 1992 a República Francesa veio a ser condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a prestar urna indemnização aos herdeiros de um doente infectado pelo VIH, o qual havia sofrido transfusões várias em estabelecimentos públicos de saúde, baseando-se, para tanto, na omissão normativa de prevenir diligentemente essas situações.

60 — Afirma-se no acórdão:

[...] admitindo mesmo a subsistência de algumas incertezas sobre os hipotéticos efeitos secundários da técnica do pré-aquecimento, nos finais do ano de 1985, a revelação da amplitude da catástrofe sanitária anunciada exigia que autoritariamente fosse posto cobro e sem demora à distribuição de produtos contaminados. [T. N.]

61 — A ideia de responsabilidade do Estado por omissões legislativas ou regulamentares, mesmo fora do âmbito da inconstitucionalidade por omissão, encontra suporte no artigo 22.° da Constituição. Neste sentido, pode afirmar-se, como Rui Medeiros (in Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, p. 353):

Os danos devem ser imputados à Administração quando o órgão ou agente administrativo goza de liberdade na fixação do conteúdo do acto ou regulamento ou pode, inclusivamente, não o emitir. Assim, havendo discricionariedade da escolha ou da decisão, o lesado pode fundamentar o seu pedido de indemnização não só na Constituição, mas também nos preceitos legais que regem a responsabilidade objectiva da Administração.

C) Discussão e fundamentação: análise da solução proposta pelo Decreto-Lei n.8 237/93, de 3 de Julho

62—Mais de sete anos após o início da administração do factor contido no lote n.° 810 536, o legislador reconheceu «que o normal funcionamento dos mecanismos da ordem jurídica não providenciaria de forma adequada a reparação devida aos doentes que tenham sido, eventualmente em estabelecimentos de saúde pública, contaminados pelo vírus da imunodeficiência humana» (cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho). Do mesmo passo, optou «pela colocação à disposição dos hemofílicos, ou seus herdeiros legais, de um mecanismo alternativo ao recurso aos tribunais: a celebração de convenções de arbitragem com o Estado» (idem).

63 — Para além de ser lamentável a demora na procura de uma solução mais adequada, b regime definido pelo Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, revela algumas iniquidades.

64 — Elas resultam, fundamentalmente, de duas das condições que o Estado-legislador impõe ao Estado-administração para poderem ser celebradas convenções de arbitragem.

65 — A primeira está na exigência de autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade [artigo 3.°, n.° U alínea a)\.

66 — Ora, como vimos, o julgamento segundo critérios equitativos permitiria a flexibilização do ónus da demonstração do nexo causal, pressuposto pela responsabilidade civil.

67 — Porém, e como pode ser já observado, a actuação negligente da Administração, ao não registar ou ao não conservar registos dos lotes administrados a cada um dos doentes, faz accionar o mecanismo previsto pelo artigo 344.°, n.° 2, do Código Civil.

68 — Por outro lado, não seria de excluir a aplicação do artigo 494.°, do mesmo Código, o qual garantiria a incisão de juízos de equidade na fixação das indemnizações.

69 — Assim, não se vê como haja necessidade, por parte do Estado, em cingir a celebração de convenções de arbitragem a uma autorização aos árbitros para julgarem segundo a equidade, tanto mais que na falta de indicação em contrário pela convenção de arbitragem, esse meio apenas garantirá «a possibilidade de afastamento, no julgamento do caso concreto, das normas tecidas, não tanto com os fios da estrita justiça, da pura razoabilidade ou da criteriosa igualdade, mas com o cardado da certeza do direito ou da segurança do comércio jurídico» (Prof. Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.° 3831, p. 182).

70 —A tudo isto acresce o facto de, nos termos do artigo 29.°, n.° 2, da Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, a autorização dada aos árbitros para julgarem segundo a equidade envolver renúncia aos recursos para os tribunais judiciais comuns.

71 —Em segundo lugar, a condição assinalada pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea d), do mencionado diploma de 3 de Julho próximo passado, é flagrantemente injusta e, por desventura, inconstitucional.

72 — Afigura-se inaceitável que o Estado, o qual é uma das partes nos litígios a submeter a um tribunal arbitral, possa socorrer-se da via legislativa, por forma a limitar o montante das indemnizações a atribuir.

73 — Trata-se, com efeito, de uma situação de excesso de poder legislativo, admitindo, como o Prof. Gomes Canotilho que:

[...] o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contrariedade, razoabilidade e congruência. [Direito Constitucional, Coimbra, 1991, p. 1026.]

74 — E prossegue o mesmo autor, a este propósito:

Uma consideração especial merecerão as leis medida. O problema do excesso do poder legislativo põe-se com grande acuidade neste tipo de actos legislativos. Sendo as leis simultaneamente disciplina e acto, normação e execução, bem pode acontecer que os poderes legislativos sejam expressamente utilizados para furtar o acto ao controlo contencioso normal [...] [Ob. cit., p. 1027.]

75 — Na verdade, ao impor uma limitação máxima às indemnizações fixadas pelo tribunal arbitral e, ao mesmo tempo, ao inviabilizar o recurso das suas decisões, o Estado está a agir irrazoavelmente e em manifesta incongruência com o objectivo de estabelecer «um meio alternativo» (cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho).

76 — Não está em discussão a legitimidade do Estado para, em abstracto, fixar limites máximos de indemnização por alguns tipos de dano, como o fez nos artigos 508.° e seguintes do Código Civil. Porém, ao invés, nos termos da alínea b) do n.° 1 do artigo 3." daquele diploma, assiste-se a uma utilização do poder legislativo como meio de limitar os poderes de um tribunal perante o qual o mesmo Estado será réu.

Página 127

30 DE ABRIL DE 1994

127

77 — Por fim e ainda no tocante ao disposto no Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, há-de reconhecer-se que este diploma estabelece uma desigualdade de tratamento não fundada, ao restringir a celebração de convenções de arbitragem aos cidadãos hemofílicos ou seus herdeiros legais, deixando à margem, entre outras, todas as restantes pessoas lesadas por transfusões de sangue ou produtos seus derivados realizadas em estabelecimentos públicos de saúde.

78 — Embora os factores de coagulação sejam fundamentalmente administrados a portadores de hemofilia, o sangue e outros seus derivados obtidos por fraccionamento encontram larga aplicação terapêutica em muitas outras situações, as quais exigem do legislador um tratamento tão semelhante quanto possível. De outro modo, estar-se-á em clara violação do princípio da proibição do tratamento discriminatório, contida no artigo 13.° da Constituição.

II

Conclusões

De acordo com o que ficou exposto e em nome da atribuição constitucional que lhe é conferida de conduzir à prevenção e reparação de injustiças (artigo 23.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa), entende o provedor de Justiça fazer uso dos poderes que lhe são confiados pelo seu Estatuto (Lei n.° 9/91, de 9 de Abril), no artigo 20.°, n.° 1, alíneas a) e b), e, como tal, recomendar:

1.° A pública assunção pelo Estado de responsabilidade por administração terapêutica de sangue e produtos seus derivados contaminados por agentes causadores de sida, em estabelecimentos públicos de saúde. Importa reconhecer, nomeadamente, a administração nos serviços do Hospital de São José (HCL) do lote n.° 810 536 (Plasmapharm-Sera) de factor viu, adjudicado em 31 de Janeiro de 1986 pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e obter esclarecimentos sobre a eventual aplicação de outros lotes com a mesma origem. Por outro lado, o Estado não deve refutar liminarmente riscos causados e eventuais lesões produzidas a partir da administração de factores não comerciais, cujas condições de inocuidade não se julgue terem sido suficientemente garantidas.

2.° A criação de um sistema de ressarcimento célere, eficaz e adequado aos valores de solidariedade nacional e de respeito pela dignidade humana que a situação dos lesados faz exigir [cf. Recomendação n.° R(88)4, do Conselho da Europa, sobre as Responsabilidades de Saúde no Domínio da Transfusão de Sangue, adoptada pelo Comité dos Ministros da Saúde em 7 de Março de 1988].

Assim, deverá ser constituída uma comissão perante a qual serão apresentados os pedidos de indemnização por todos quantos demonstrem, tão-só:

t) Terem recebido, por transfusão, sangue ou outro produto seu derivado, em estabelecimentos públicos de saúde nos quais se reconheça terem sido administrados, durante certos períodos, lotes contaminados, importados ou de origem doméstica;

ii) Ser o primeiro resultado conhecido de seropositi-vidade posterior aos períodos durante os quais esses mesmos produtos contaminados tenham sido administrados;

iii) Terem sido as aludidas administrações de produtos contaminados efectuadas em momento posterior ao do conhecimento difundido de

meios de rastreio; poderá apontar-se o início de 1986, sem excluir a possibilidade de outras situações de manifesta negligência em período anterior, já que os deveres de cuidado se tornaram progressivamente mais exigentes com a evolução dos conhecimentos científicos; assim, há-de ser tido em conta o facto de o método de pré-aque-cimento ter merecido ampla divulgação nos meios clínicos e hospitalares a partir de 1984 e sendo certo que apesar das incertezas, indicadas ao tempo, quanto ao sucesso obtido através da sua utilização, as desvantagens eram já tidas por desprezíveis, designadamente porquanto se observava a preservação da actividade coagulante.

3." Todos os requerentes deverão ser provisoriamente indemnizados, na pendência do cálculo das respectivas indemnizações definitivas.

4.° As indemnizações deverão ter em conta a situação económica do lesado e a extensão do seu agregado familiar. Para o efeito, deverá ser aprovada uma tabela indiciária que garanta o respeito essencial pelo princípio da não discriminação infundada.

5.° As somas a atribuir deverão ser calculadas, tendo também em atenção a evolução da doença e as seguintes categorias definidas pelos Centers of Disease Control (EUA), quanto à contaminação pelo VIH:

1) Infecção assintomática;

2) Infecção aguda;

3) Linfadenopatia contínua e generalizada;

4) Outras doenças repercutidas pela infecção;

5) Sida.

(Cf. relatório da Federação Mundial de Hemofilia sobre o estado da assistência financeira em 1991.)

6.° As indemnizações deverão seguir o regime definido para a indemnização em renda pelo artigo 567.° do Código Civil.

7." As indemnizações poderão ser pagas através de um fundo, ao qual será reconhecida personalidade jurídica, autonomia administração e financeira. A sua administração deverá ser confiada a um conselho composto por representantes do Estado, dos lesados, de instituições particulares de solidariedade social e das associações públicas com atribuições no campo da saúde.

8.° As suas receitas terão origem em subvenções públicas, em contribuições das companhias seguradoras e das indústrias farmacêuticas, assim como em somas percebidas a título de sub-rogação nos direitos dos lesados. A falta de obtenção das receitas indicadas em segundo e terceiro lugares não obstará à prestação dos pagamentos.

9." A recomendada criação deste fundo poderá em nada afectar a actividade desenvolvida pelo Fundo de Apoio Social aos Hemofílicos Infectados com o Vírus da Sida, criado por despacho de S. Ex." o Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde de 31 de Julho de 1992 (v. Diário da República, 2." série, de 18 de Agosto de J992).

10.° Apenas no caso de não aceitação pelos interessados da indemnização proposta pela comissão — e após mediação, eventualmente, do provedor de Justiça — se justificará o processo arbitral.

11." A actividade da Comissão deverá desenvolver-se sem prejuízo do regular funcionamento dos mecanismos

Página 128

128

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

criados pelo Decreto-Lei n,° 237/93, de 3 de Julho. Com

efeito, o sistema recomendado pretende constituir, relativamente aos processos em curso, um meio gracioso de composição dos litígios, alternativo mas não excludente, cujo bom sucesso, em cada caso, poderá mover as partes à transacção sobre o objecto da causa e à revogação da convenção de arbitragem.

12.° 0 tribunal arbitral, em todo o caso, não deverá necessariamente apreciar tais recursos segundo juízos de equidade, por forma a deixar subsistir a possibilidade de recurso para os tribunais judiciais comuns.

13.° Em caso algum, deverá o tribunal arbitral ficar cingido por limites máximos na fixação de indemnizações.

14.° O direito ao ressarcimento deverá ser reconhecido, também, a todas as pessoas que foram infectadas através dos lesados por via da prestação de cuidados de saúde ou por consequência de outros factores inerentes às relações familiares.

15.° O direito ao ressarcimento deverá ser reconhecido, ainda, a todos quantos se encontrem em relação de estreita dependência económica do lesado, na proporção dessa mesma dependência.

16." Relativamente ainda aos cidadãos hemofílicos (ou portadores de outras patologias que os situem em relação de estreita dependência da administração de sangue ou seus derivados em estabelecimentos públicos de saúde) que não possam demonstrar a verificação dos pressupostos enunciados na segunda conclusão, deverá, com a maior brevidade, ser instituído um meio de atribuição de compensações semelhante ao facultado a vítimas de acidentes catastróficos ou ao resultante do Decreto-Lei n.° 324/85, de 6 de Agosto (servidores do Estado atingidos por actos de terrorismo), em cujo preâmbulo se invocam «razões de interesse público ou de ordem moral».

Esta via, subsidiária do sistema recomendado, não pode deixar de ser exigida, quanto mais não seja, em nome do princípio constitucional da solidariedade, inscrito na parte final do artigo 1." da lei fundamental.

17." Por fim e relativamente a todos os cidadãos portugueses que se apresentem seropositivos, deverá reforçar-

-se um sistema nacional de entreajuda, o qual visará propiciar os seguintes benefícios sociais:

a) Tratamento domiciliário, com vista a garantir a preservação do ambiente familiar dos doentes e uma melhor qualidade de vida, evitando frequentes deslocações a estabelecimentos de saúde e possibilitando um aproveitamento mais adequado do número de camas hospitalares. Do mesmo passo, contribuir-se-á para a salvaguarda da reserva de intimidade da vida.privada;

b) Realização de programas culturais é de férias, por forma a motivar a plena integração dos doentes

nas diversas comunidades e grupos sociais dos

quais fazem parte;

c) Concessão de facilidades especiais na utilização de transportes públicos (v. g. tarifas reduzidas, direitos especiais de marcação antecipada de lugares), por recurso a esquemas que evitem qualquer forma de exposição involuntária do estado clínico ou mesmo de estigmatização social;

d) Concessão de linhas de crédito bonificado para aquisição de habitação própria e de meio de transporte próprio;

e.) Concessão dos seguintes benefícios fiscais:

i) Isenção de sisa na aquisição de prédio ou fracção autónoma de prédio, bem como de

terreno para construção destinados exclusivamente à habitação;

ii) Isenção de imposto sobre as sucessões e doações nas transmissões a favor de quaisquer beneficiários;

iii) Ao nível do imposto sobre o rendimento a equiparação a deficientes para efeitos de aplicação do disposto no artigo 44." do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 215/89, de 1 de Julho;

iv) A elevação em 50 % do limite às deduções específicas previstas no artigo 25.", n.° 1, do Código do IRS;

v) Elevação em 50 % dos limites de deduções à colecta previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 80.°, n.° 1, do Código do IRS;

vi) Aplicação das tabelas mensais de retenção na fonte específicas para os deficientes titulares de rendimentos do trabalho dependente e de pensões;

v/i) Isenção do imposto automóvel na aquisição de veículos com motores a gasolina ou a gasóleo, com cilindrada respectivamente até 1600 cm3 e 2000 cm3.

Recordo a V. Ex* ser presente recomendação formulada ao abrigo do disposto no artigo 20.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Estatuto, aprovado pela Lei n.° 9/91, de 9 de Abril. Como tal, vincula o seu destinatário ao cumprimento dos deveres contidos no artigo 38.°, n.os 2 e 3, do citado diploma, sem prejuízo da informação a este órgão do Estado sobre todas as medidas eventualmente tomadas quanto aos fins visados, nos termos do artigo 29.°, n.° 4 (idem), paia cujo cumprimento é fixado o prazo máximo de 15 dias.

O Provedor de Justiça, José Menéres Pimentel.

Documento n.8 2

Comunicação do chefe do Gabinete do Ministro das Finanças

Em referência ao ofício n.° 16 665, de 27 de Dezembro de 1993, comunico a V. Ex." o seguinte:

1 —O processo supramencionado foi remetido à 12.' Delegação da Direcção-Geral da Contabilidade Pública para apreciação das recomendações apresentadas por V. Ex.° e que tenham ou possam vir a ter implicações financeiras no Orçamento do Estado.

2 — Na parte ii do processo, respeitante às conclusões, na recomendação. n.° 7, é feita menção à criação de um fundo com personalidade jurídica e regime de autonomia administrativa e financeira, o qual terá como missão o pagamento de indemnizações aos lesados, que as convenções de arbitragem celebradas entre o Estado e cada um dos lesados vierem a acordar (Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho).

3 — Na recomendação n.° 8 é definida a origem das receitas do «fundo», nomeadamente:

a) Subvenções públicas;

b) Contribuições das companhias seguradoras;

Página 129

30 DE ABRIL DE 1994

129

c) Contribuições das indústrias farmacêuticas;

d) Somas percebidas a titulo de sub-rogação nos direitos dos lesados.

4 — Sobre este assunto acrescenta-se que:

4.1 — No orçamento do Ministério da Saúde para o ano em cutso não se encontra nenhuma estrutura orgânica que se identifique com o fundo a que alude a recomendação n.° 7.

4.2 — Contactada a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, a 12.* Delegação da Direcção-Geral da Contabilidade Pública foi informada de que, em princípio, aquele fundo também não irá integrar o Serviço Nacional de Saúde.

19 de Janeiro de 1994. — O Chefe do Gabinete, Mário Patinha Antão.

Documento n.° 3

Resposta do Ministro da Saúde

No seguimento da minha carta de 7 de Janeiro e após um estudo exaustivo da recomendação de V. Ex.*, venho, nos termos do n.° 2 do artigo 38.° da Lei n.° 9/91, de 9 de Abril, informá-lo do seguinte:

1 — Previamente à análise da recomendação importa esclarecer dois pontos:

a) O concurso n." 15/86, levado a efeito na Secretaria-Geral do Ministério da Saúde para aquisição de factor viu, foi o primeiro concurso organizado para este tipo de produtos, sendo convocada uma comissão técnica constituída por médicos de imuno-hemoterapia.

Deste concurso resultou a adjudicação do factor viu, em partes iguais, às empresas AVIQUÍMICA e A. Paiva dos Santos, representantes, respectivamente, do laboratório austríaco Plasmapharm-Sera e da empresa Sero.

Posteriormente à adjudicação, a firma A. Paiva dos Santos secundada pela Associação Portuguesa de Hemofílicos (APH) enviam à Secretaria-Geral recortes de jornais e revistas sobre a retirada do mercado de alguns dos produtos do laboratório austríaco Plasmapharm-Sera.

Constatou-se que não estava em causa nenhum lote do factor viu.

Analisando o processo que levou à aquisição do lote n.° 810 536 da firma Plasmapharm, importa salientar que o produto se encontrava inactivado pelo calor seco, tinha sido efectuada a pesquisa de anticorpo para HIL VIU negativo quando testado em ELISA. Existia ainda certificado de garantia de qualidade.

Nestes termos, e considerando que os critérios de escolha devem ser vistos à luz dos conhecimentos científicos da altura, verifica-se a conformidade das condições exigidas pela comissão de escolha da Secretaria-Geral com os conhecimentos técnico-científicos, nomeadamente as recomendações do Comité de Peritos de Transfusão.

b) O Ministério da Saúde e, mais concretamente, os hospitais actuaram de acordo com a prática clínica da época. Não nos podemos esquecer de que a administração do factor viu a hemofílicos era considerado um acto terapêutico, e essa terapêutica é receitada pelo seu nome químico, não pelo nome comercial e lote (a título de exemplo, se um doente tem como receita tomar um comprimido de Britacil, escreve-se: «Ampicilina 500 mg 6/6 H»).

Não constaria da ficha clínica de cada hemofílico qual o número do lote de factor porque também não teria nem tém o número do lote dos comprimidos ou injecções que está a fazer. Não houve culpa, nem sequer negligência por parte da administração, não existem normas quer no direito interno quer no direito comunitário sobre fichas clínicas, pelo que se não vislumbra como se pode referir que os hemofílicos lesados beneficiariam da inversão do ónus da prova previsto no n.° 2 do artigo 344.° do Código Civil, onde se exige que a parte contrária tenha culposamente tornado impossível a prova do onerado.

Por outro lado, o Estado, em relação ao produto sobre o qual a APH levantou questões, não inviabilizou a prova, existe uma amostra do factor viu, lote n.° 810 536, que pode ser objecto de análise.

2 — Quanto à recomendação importa analisar as várias vertentes apontadas:

a) Assunção pelo Estado de responsabilidade por administração nos serviços do Hospital de São José do lote n.° 810 536 do factor viu. — O Estado ao vir consagrar no Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho, o recurso ao tribunal arbitral, permite uma via alternativa via dos tribunais comuns, via essa que surge e se efectiva sob a égide da Ordem dos Advogados. Esse tribunal arbitral funciona no Centro de Arbitragem Voluntária da Ordem dos Advogados, cujo regulamento prevê no artigo 25.° a renúncia dos recursos. E o Estado utilizou uma medida legislativa porque a Lei da Arbitragem no n.° 4 do artigo 1.° o impõe.

O Estado, ao consagrar a solução acima referida, assume a responsabilidade pelo risco, estabelecendo na convenção de arbitragem que os árbitros julgam segundo a equidade, tendo em conta, entre outros, os critérios da idade e da responsabilidade familiar do hemofílico, que se traduz na evidente flexibilização do ónus da prova.

Este processo alternativo de resolução do litígio resulta numa solução de consenso a que os hemofílicos aderiram.

b) Criação de uma comissão permanente à qual devem ser apresentados os pedidos de indemnização. — A comissão proposta por V. Ex." é menos favorável à resolução célere e eficaz do litígio, como aliás reconhece a Associação Portuguesa de Hemofílicos (APH), conforme parecer enviado a V. Ex.° e que posteriormente me foi remetido. Assim, ao exigir «ser o primeiro resultado conhecido de seropositividade posterior aos períodos durante os quais esses mesmos produtos contaminados tenham sido ministrados», apontando o início de 1986, torna mais difícil a prova de direito, é mais exigente na prova do nexo de causalidade.

c) Isenções fiscais. — Quanto às isenções fiscais, como é do conhecimento de V. Ex.°, tal matéria não é da competência do Ministério da Saúde, é matéria que se deve analisar em sede de enquadramento orçamental, constituindo matéria de reserva de competência da Assembleia da República.

d) Outras medidas são propostas como a «realização de programas culturais e de férias» e a «concessão de facilidades especiais na utilização de transportes públicos». São medidas que se traduzem em discriminação negativa e, como tal, rejeitadas pela APH.

e) Por último, e em relação à criação de um «sistema nacional de entreajuda» proposto por V. Ex.*, importa referir que princípios de solidariedade desde há muito vêm sendo defendidos pelo Governo. Como V. Ex.° reconhece, foi criado um fundo de apoio social aos hemofílicos infectados com o vírus da sida; aberto à contribuição de pessoas singulares ou colectivas para além do Ministério

Página 130

130

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

da Saúde e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, apenas uma entidade privada contribuiu. O custo com o fornecimento dos medicamentos comparticipáveis necessários aos doentes hemofílicos é integralmente suportado pelo Serviço Nacional de Saúde desde que prescritos no seu âmbito e aos seus beneficiários.

Já do Programa do XJJ Governo Constitucional ressalta a preocupação com todos os grupos sociais mais desfavorecidos e de risco. Prevê-se a criação das condições necessárias à melhoria substancial da assistência domiciliária, a implementação dos hospitais de dia e de apoio domiciliário, a abertura de hospitais de continuidade e a dinamização dos já existentes e a aprovação de medidas e criação de estruturas directamente vocacionadas para apoio aos doentes com sida. Todas estas medidas têm vindo a ser progressivamente desenvolvidas pelo Governo.

Porém, de acordo com o princípio da igualdade e da justiça social, se os hemofílicos infectados com sida são um grupo para o qual o Governo olha com particular preocupação, não podemos esquecer todos os outros cidadãos vítimas de doenças crónicas e incapacitantes que à luz das técnicas e dos conhecimentos actuais são incuráveis.

21 de Fevereiro de 1994. — O Ministro da Saúde, Adalberto Paulo da Fonseca Mendo.

Documento n.B 4

Segunda comunicação do chefe do gabinete do Ministro das Finanças

Em aditamento ao ofício n.° 165, de 19 de Janeiro de 1994, deste Gabinete, informo V. Ex." do seguinte:

1 — Nos termos da recomendação de V. Ex.*, são os seguintes benefícios propostos para os cidadãos portugueses portadores do vírus da sida:

a) Isenção de sisa na aquisição de prédio ou fracção autónoma de prédio urbano, bem como de terrenos para construção, destinados exclusivamente à habitação;

b) Isenção de impostos sobre as sucessões e doações nas transmissões a favor de quaisquer beneficiários;

c) Equiparação a deficientes para efeitos de aplicação do disposto no artigo 44." do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 215/89, de 1 de Julho;

d) Elevação em 50 % do limite de deduções específicas previstas no artigo 25.°, n.° 1, do Código do IRS;

e) Elevação em 50 % dos limites de deduções à colecta previstos nas alíneas a), b) e c) do n.° 1 do artigo 80." do Código do IRS;

f) Aplicação das tabelas mensais de retenção na fonte, específicas para os deficientes titulares de Tendimentos de trabalho dependente e de pensões;

g) Isenção do imposto automóvel na aquisição de veículos com motores a gasolina ou a gasóleo, com cilindrada, respectivamente, até 1600 cm3 e 2000 cm3.

2 — Para além da bondade das soluções propostas, importa afirmar que todo e qualquer apoio aos seropositivos por via da atribuição de benefícios fiscais passa pela obten-

ção de autorização legislativa, por se tratar de matéria de competência relativa da Assembleia da República (artigo 106.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa).

3 — Quanto à questão de fundo, parece-nos que a atribuição de benefícios fiscais como forma de apoio aos seropositivos não será a via mais correcta para solucionar a questão do apoio — aliás indiscutivelmente necessário — de que devem usufruir.

4 — A existir alguma iniciativa, ela teria de provir do Ministério da Saúde pela alteração da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.° 341/93, de 30 de Setembro, e que serve de base de referência para efeitos do artigo 25.°, n.° 3, do Código do IRS.

5 — Mesmo no caso da concessão de isenção do imposto automóvel, o não enquadramento dos seropositivos na legislação em vigor (Decreto-Lei n.° 103-A/90, de 22 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.c 259/93, de 22 de Julho), obrigaria a repensar as razões pelas quais os portadores de outras doenças igualmente graves não são contemplados pelo benefícios (v. g. doentes do foro oncológico).

6 — Refira-se ainda, em especial, quanto ao imposto sobre as sucessões e doações, que o facto de se plasmar na lei um benefício nesta sede não importa qualquer isenção para o portador de vírus mas sim para um terceiro. Por isso, não se encontra qualquer fundamento para a proposta.

7 — Termos em que concluímos que a consagração de qualquer benefício terá de ser conduzida e articulada com o Ministério da Saúde, que para tal deverá ter a devida iniciativa.

24 de Fevereiro de 1994.—O Chefe do Gabinete, Mário Patinha Antão.

Documento n.fl 5

Esclarecimentos complementares replicados pelo provedor de Justiça ao Ministro da Saúde

Registo com apreço o bom cumprimento por parte de V. Ex.* do dever de colaboração inscrito no artigo 38.°, n.° 2, do Estatuto do Provedor de Justiça (aprovado pela Lei n.° 9/91, de 9 de Abril), no que respeita à recomendação formulada, em 27 de Dezembro do ano findo, sobre o assunto em epígrafe.

A informação prestada por V. Ex.*, pese embora a refutação de medidas que continuo a julgar essenciais, convida o provedor de Justiça, no entanto, a crer no acolhimento de alguns dos corolários retirados a partir dos factos enunciados e a reconhecer nos desígnios da política de Saúde gratificantes preocupações com a compensação de danos fatalmente irreversíveis, infligidos por actos que se pretendiam terapêuticos e cujas garantias resultavam, em larga escala, de uma presunção de confiança na prestação de cuidados de hemoterapia efectuada nos estabelecimentos de saúde do Estado.

Os esclarecimentos prestados por V. Ex.* não podem, todavia, deixar de merecer algumas retorsões, da parte do autor da recomendação, dado que mantenho como válidas ss conclusões ali alcançadas e porquanto não encontro na resposta de V. Ex.* razões que tornem vencido ou sequer convencido o signatário.

1 — Responsabilidade pela administração ilícita e negligente do lote n.° 810 536 da Plasmapharm-Sera. — Com

Página 131

30 DE ABRIL DE 1994

131

efeito, argumenta V. Ex.*, Sr. Ministro, com a existência de um certificado de qualidade, o qual conferiria segurança bastante para aconselhar a administração do lote n.° 810 536 da Plasmaharm-Sera no Hospital de São José, a partir de 18 de Agosto de 1986. Contudo, jamais tal facto é infirmado na recomendação do provedor de Justiça.

O que está em causa, como é sustentado, é a insuficiência e fragilidade de tal garantia, louvando-me, para tanto, nas conclusões do relatório do Grupo de Trabalho Sida/ Hemofílicos, nomeado pelo ilustre antecessor de V. Ex." Pode ler-se a fl. 70 —dispensando-me de nova transcrição — que a exigência do certificado de qualidade foi entendida pela Administração como reportando-se à marca e não, em concreto, a cada lote do produto a utilizar.

Foram a comissão de escolha nomeada para o efeito e o Instituto Português do Sangue quem, mau grado as suspeitas crescentes sobre a idoneidade da marca, decidiram, ainda assim, manter a adjudicação e não propor que se sustivesse a sua administração. Satisfizeram-se ambos com a omissão de referência expressa, pela imprensa, a lotes de factor viu daquela proveniência e confortaram-se no controlo exercido sobre o lavatório em causa, pelos poderes públicos austríacos. Foi de escassa prudência tal decisão, além do mais, agravada pela recusa em submeter a uma análise cega todos os produtos (da Plasmapharm--Sera e de outros), exposta na informação n.° 58 dos Serviços de Aprovisionamento da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.

Ao ser aduzida a pretensa confirmidade dos critérios de escolha (e de manutenção da escolha) com os conhecimentos científicos ao tempo, restará à Administração Pública justificar o facto de, poucos meses após, ter sido possível referenciar as bandas de Western-Blot que o produto apresentava, desaconselhando a sua administração.

Há-de reconhecer, então, V. Ex." que elementares razões de precaução, ainda quando apreciadas na posição «de um bom pai de família», em face das circunstâncias do caso (v. artigo 487.°, n.° 2, do Código Civil), exigiam a sustação da administração do produto até ser obtida completa dissipação das menores dúvidas quanto à sua nocividade. A metodologia que permitiu referenciar as bandas de Western-Blot não era, certamente, desconhecida nem indisponível para o Ministério da Saúde e para quem foi depositário da confiança na escolha (e na firmeza da sua manutenção).

Inclusivamente, refira-se da passagem que, à parte a questão da contaminação do lote n.° 810 536, foi admitido pelo Prof. Machado Caetano, membro do Grupo de Trabalho Sida/Hemofílicos (constando do relatório sempre citado, a fl. 80) que «o produto não deveria ter sido adquirido, face à existência de grande quantidade de fibrogénio, o que põe em causa a idoneidade do laboratório representado pela AVIQUIMICA (Plasmapharm-Sera)».

Por último, quanto a este aspecto e se dúvidas houvesse quanto ao cumprimento dos deveres de diligência impostos pelas circunstâncias, o certo é terem sido contundentemente violadas disposições contidas no Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril, de S. Ex." a então Ministra da Saúde, designadamente as regras contidas nos n.os 1 e 4. O termo do prazo para a retirada dos produtos e fracções derivados do sangue, ainda disponíveis e que não obedecessem aos requisitos indicados, situava-se em 6 de Agosto de 1986 e não restam ilusões quanto ao início da administração do lote n.° 810536— 18 de Agosto do mesmo ano.

. Ao tomar conhecimento insofismável da contaminação do.lote austríaco, em Dezembro de 1986, ainda assim, o Ministério da Saúde entendeu por bem hesitar na ordem de suspensão, e no momento em que o fez, dois meses após, em 10 de Fevereiro de 1987, já o produto se encontrava irremediavelmente consumido. Suspender a sua administração era já inútil e qualquer alcance retroactivo tornara-se impossível.

2 — A prática clínica da época e sua irrelevância para justificar a omissão de registos pessoais respeitantes à administração de produtos derivados do sangue. — Quando V. Ex." afirma que «o Ministério da Saúde e, mais concretamente, os hospitais actuaram de acordo como a prática clínica da época», em matéria de registo de fichas clínicas, por forma a contraditar a inversão do ónus da prova da imputação do ano, trata-se, permita-me, de uma petição de princípio.

Na verdade, se era essa a prática clínica da época, configurava-se como descuidada e, como tal, insusceptível de justificar a ilicitude dos actos praticados ao seu abrigo. Se essa era a prática clínica habitual, não se vê como admitir a existência e a necessidade de boletins analíticos relativos à generalidade dos lotes e é, no mínimo, desproporcionada a comparação de um acto terapêutico de administração de um factor coagulante com o receituário de um antibiótico. A comparação é tanto menos adequada quanto nem tão-pouco chega a sê-lo. Isto porque o registo da correspectividade entre a administração de um produto e o sujeito a quem foi administrado nada têm que ver com a prescrição clínica de um fármaco. No primeiro caso, trata-se de uma operação material administrativa, no seu sentido mais literal, enquanto no segundo está em causa um acto médico. O denominador comum está, tão--só, na necessidade de se saber quem administrou o quê a quem, quando e como o fez. De resto, bastará a diversidade do risco comportado pela administração de um antibiótico e pela administração de um produto derivado do sangue, para se justificarem cuidados diferentes e ser exigido o cumprimento de deveres de diligência com conteúdo e expressão diversos.

Finalmente, no que diz respeito à inviabilização da prova como pressuposto da estatuição contida no artigo 344.°, n.° 2, do Código Civil, não é a posse de uma amostra que está em questão — isso importa esclarecê-lo. A prova da nocividade do factor viu contido no lote n.° 810 536, se renovada, sempre será superabundante, pois por várias vezes o lote foi analisado com resultados positivos ou que, pelo menos, aconselhavam a sua não utilização (nomeadamente, o resultado obtido pelo Ministério da Saúde em Dezembro de 1986 e no qual se fundou para em 10 de Fevereiro de 1987 ordenar que se retirasse dos hospitais o lote em causa, quando incongruentemente estaria já consumido na totalidade).

3 — Reconhecimento da violação de normas regulamentares e aceitação da violação de um dever de cuidado em regulamentar ou legislar sobre a matéria, em momento anterior ao da aprovação do Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril. — A legalidade das omissões admitidas, no sentido de ter sido desrespeitado o Despacho n.° 12/86 de S. Ex." a Ministra da Saúde, de 18 de Abril (Diário da República, 2." série, de 5 de Maio de 1986), não é objecto de apreciação por parte de V. Ex.°, razão pela qual fica dispensada qualquer réplica por parte deste órgão do Estado. O mesmo sucede relativamente à omissão de medidas legislativas ou regulamentares anteriores que se mostrassem adequadas à efectiva protecção dos bens jurídicos ameaçados pèa aàmi-nistração de produtos derivados do sangue.

Página 132

132

II SÉR1E-C — NÚMERO 23

Fica o provedor de Justiça habilitado a admitir, neste ponto fulcral, a concordancia de V. Ex.*, o que não deixará de ter consequências ao nível da aplicação do regime da responsabilidade civil, extra-contratual do Estado, designadamente para o efeito de a responsabilidade poder ser apurada nos termos dos artigos 2.°, n.° 1, e 6.° do Decreto-Lei n.°48 051, de 21 de Novembro de 1967.

4 — Das limitações impostas aos aderentes à convenção de arbitragem. — O processo alternativo de resolução do litígio, através da constituição de um tribunal arbitral, não é, por si só, objecto de crítica ou reparo na recomendação do provedor de Justiça, excepto no que tardou.

O que não pode deixar de censurar-se é ver em tal meio o resultado de uma «solução de consenso a que os hemofílicos aderiram». É certo haver hemofílicos lesados ou seus herdeiros que aderiram à convenção de arbitragem. Mas é igualmente certo que os não hemofílicos vitimados ou seus herdeiros não aderiram por não terem sido, sem qualquer fundamento, admitidos ao processo alternativo arbitral. Mas o certo é também que aos aderentes foram impostas cláusulas injustificadas irrenunciáveis, sob pena de ficar comprometida a adesão. Impostas, insofridamente, pela parte mais forte, a qual iria ser ré. Este condicionamento é acrescidamente censurável pelo facto de essa parte ser o Estado, vinculado como está a princípios de solidariedade e respeito pela dignidade humana e cujo cumprimento deveria poder ser paradigmático. Não posso escusar-me a reproduzir, a este propósito, as palavras de Pierre Guibentif, quando escreveu que «a observação da produção do direito também mostra que, não raras vezes, esta dá lugar a processos de aprendizagem colectiva, nos quais certos intervenientes se revelam a si . próprios e à restante sociedade» (in Legislação — Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.° 7, 1993).

De nada adianta, assim, a invocação do disposto no artigo 1.°, n.° 4, da Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, pois, nos seus exactos termos, o acto legislativo exigido cinge-se à autorização para celebrar convenção de arbitragem e nada mais impõe. O abuso da função e do poder legislativo está na iniquidade das limitações introduzidas, apontadas pela recomendação e não no simples recurso à via legislativa. Se em indevido sentido foram compreendidas as asserções que a esse propósito formulei —o que me abstenho de presumir—, fica prestado esclarecimento adicional.

5 — Caracterização da comissão de indemnizações proposta; sua intervenção. — Quanto à comissão permanente de indemnização e que é proposta na recomendação, admitindo que por hipótese fosse a única alternativa aos tribunais comuns e fizesse precludir a via concretizada pelo tribunal arbitral, conceda-se que seria discutível — como tudo, de resto — quanto à sua favorabilidade, celeridade e eficácia. O que não poderia afirmar-se era constituir uma solução ímpar nos países da Europa Ocidental, porquanto veio a ser adoptada, designadamente em França (Lei n.° 91-1406, de 31 de Dezembro de 1991), e já não estamos em tempo de, como Pascal, considerar que verdades para lá dos Pirinéus constituem erros para aquém deles. Sublinho, além do mais, que as vias propostas pela recomendação não constituem uma simples importação do sistema francês, desde logo porque em parte alguma é sustentada a e.tót\qão do tribunal arbitral.

Ora, não é possível admitir, nem tão-pouco compreender como possa ser «menos favorável à resolução célere e eficaz do litígio» um meio complementar e paralelo à via arbitral para os que a ela tiveram acesso e como alternativa única aos excluídos pelo Decreto-Lei n.° 237/93, de

3 de Julho, ou seja, os hemofílicos contaminados por produtos de origem nacional e todos os não hemofílicos aos quais haja sido transfundido sangue contaminado ou produtos seus derivados, bem como todas as pessoas que foram infectadas através dos lesados por via da prestação de cuidados de saúde ou por consequência de factores inerentes às relações familiares.

Por outro lado, a discordância manifestada quanto a este aspecto pela APH não pode ser colhida, decididamente, como argumento de auctoritas. Valha a verdade e no texto da Associação ao qual teve V. Ex." acesso, as perplexidades exibidas mais não são que o resultado de uma infeliz compreensão da motivação de direito, à qual o provedor de Justiça é alheio, como o será, certamente, também a própria APH. De resto, sempre caberá o juízo final, nesta matéria, não aos portadores de interesses associativos, mas aos lesados —hemofílicos e não hemofílicos, sócios ou não sócios da APH — e, muito particularmente, a V. Ex.", ilustre destinatário da recomendação formulada.

6 — Ininvocabilidade da reserva de competência parlamentar, por forma a justificar a ausência de medidas a tomar, no domínio fiscal. — Responde V. Ex." às recomendadas isenções fiscais, absolvendo-se da instância, por se tratar de matéria contida na reserva de competência parlamentar. Não ignorará, porém, V. Ex.° nem os poderes de iniciativa legislativa do Governo junto da Assembleia da República (artigo 170.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa), nem por certo, acrescidamente, o exclusivo dessa iniciativa por parte do Governo sempre que esteja em causa a diminuição de receitas do Estado, no ano económico em curso (artigo 170.°, n.° 3, idem).

Furtar-se o Governo a exercer tal iniciativa, não poderá ser compreendido à luz de fundamentos orgânico-for-mais de natureza constitucional, como bem vê V. Ex." Os motivos a invocar terão necessariamente que ser outros, sob pena de ineptidão manifesta.

7 — Ininvocabilidade dos princípios constitucionais da igualdade e justiça social para justificar validamente a não concessão dos benefícios sociais recomendados. — Por fim, no tocante à legítima e louvável preocupação do Governo com outros cidadãos vítimas de doenças crónicas e incapacitantes, incuráveis à luz dos conhecimentos actuais, devo lembrar a V. Ex* que a igualdade e justiça social não se conquistam pelo mínimo de benefícios a conferir a uns para não discriminar outros. Ao invés, as preocupações igualitárias e de justiça social, tal como a Constituição as reconhece, antes impõem o enriquecimento do estatuto de ambos.

Assim, em caso algum será de interpretar restritivamente o texto da recomendação formulada, observando-se no mesmo, ao contrário, um verdadeiro estímulo para uma protecção mais justa e solidária de todos os cidadãos atingidos por doença incapacitante, crónica e incurável.

8 — Conclusão. — Em conclusão, reitero junto de V. Ex." a necessidade de adopção das medidas que foram objecto da recomendação de 27 de Dezembro próximo passado, pedindo-lhe que informe este órgão do Estado sobre a posição assumida face aos argumentos ora aduzidos, bem como sobre as medidas previstas ou a prever que contemplem os restantes lesados por actos de administração de sangue ou produtos seus derivados e que ficaram excluídos pelo Decreto-Lei n.° 237/93, de 3 de Julho. Para esse efeito, permito-me fixar o prazo máximo de 15 dias, nos termos do disposto no artigo 29.°, n.° 4, da Lei n.° 9/91, de 9 de Abril.

O Provedor de Justiça, José Menéres Pimentel.

Página 133

30 DE ABRIL DE 1994

133

Documento n.e 6

Segunda resposta do Ministro da Saúde

Após a minha resposta de 21 de Fevereiro à recomendação de V. Ex.' sobre o «ressarcimento de lesões causadas por actos de transfusão de sangue e de produtos seus derivados contaminados pelo VIH, realizados em estabelecimentos públicos de saúde; benefícios sociais a atribuir a todos os cidadãos portugueses infectados pelo VIH», entendeu o provedor de Justiça emitir um pedido de informação, com nota de urgência, apesar de no mesmo reconhecer a boa colaboração prestada.

Assim, informo V. Ex."

1 — Responsabilidade pela administração ilícita e negligente do lote n.° 810 536 da Plasmapharm-Sera. — Neste ponto entendo conveniente esclarecer V. Ex.°, mais pormenorizadamente, das questões técnicas que estão subjacentes à minha resposta de 21 de Fevereiro.

A obtenção de um produto, como é o caso do concentrado de factor viu, é feita a partir de grandes quantidades de plasma (habitualmente superiores a cerca de 10 000 dadores diferentes), que dão origem a vários derivados. A cada pool de plasma corresponde um lote de um determinado derivado, como por exemplo, concentrado de factor viu, concentrado de factor ix, imunoglobulinas.

Sendo Portugal um país 100% dependente do estrangeiro em derivados do plasma, tem de importar esses produtos através de firmas comerciais seleccionadas em concurso. Relembro a V. Ex.a que no concurso n.° 15/86, levado a efeito na Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e que deu origem à importação do lote n.° 810 536 da firma Plasmapharm-Sera, foi constituída uma Comissão Técnica de Escolha e, pela primeira vez, fazia parte do caderno de encargos a inactivação virai.

A Comissão Técnica de Escolha optou por firmas, de acordo com as condições do concurso, cujo produto possuía o certificado de garantia de qualidade, e se encontrava inactividado para o vírus da sida e a presença de teste ELISA para anti-HTL VIII negativo. E, à medida que os lotes entravam nos hospitais, os serviços responsáveis controlavam a garantia de qualidade em relação a cada um desses lotes, como aconteceu com o lote n.° 810 536, que só foi administrado após os serviços do Hospital de São José terem recebido a respectiva garantia de qualidade.

A Comissão Técnica de Escolha não se satisfez com a omissão de referência expressa pela imprensa. E que não há semelhança no fabrico de soro fisiológico (substância totalmente química) com de factor viu (substância de origem humana). Por outro lado, conforme já constava da minha resposta, é relevante o facto de os recortes dos jornais e revistas terem sido enviados, pela primeira vez, à Secretaria-Geral pela firma A. Paiva dos Santos, firma concorrente da Plasmapharm-Sera no concurso.

A análise cega do produto demorou seis meses, era necessário tratar os doentes, o Hospital esperou dois meses até receber o certificado de garantia do lote em causa.

É ainda necessário ter conhecimento de que a existência de positividade para anticorpos anti-HlV no lote em causa (ainda hoje não concordante, dado que o estudo realizado no Instituto Português do Sangue cm 1992 é indeterminado, tal como havia sido o estudo feito em 1986 na Alemanha) pode não ser traduzida por infecciosidade do produto, uma vez que foi inaclivado para o vírus e a inactivação não remove o vírus, nem tão-pouco os anticorpos, mas destrói a capacidade infectante.

Importa ainda esclarecer que o Prof. Doutor Machado Caetano, quando refere a existência de grande quantidade de fibrinogénio, deve ter pretendido referir-se unicamente à «pureza» em termos de proteínas plasmáticas que contaminam um concentrado de factor viu. Esta classificação de «pureza» divide os concentrados utilizados e a venda no mercado, em concentrados de pureza intermédia, alta pureza e muito alta pureza. Assim, o doseamento de fibrinogénio (um outro factor de coagulação) nada tem a ver com vírus, nem com transmissão de doenças.

Considerando, como já se referiu, que o certificado do lote em causa referia a inactivação para vírus e a presença de teste ELISA para o anti-HTL VHI negativo, que dispomos de informação de um laboratório austríaco, de um alemão e de dois portugueses com resultados positivos e indeterminados, e que mesmo a positividade para os anticorpos anti-HIV não pode ser traduzida por infecciosidade do produto, não entendo como V. Ex.° pode considerar «insofismável» a contaminação do lote n.° 810 536.

2 — A prática clínica da época e sua irrelevância para justificar a omissão de registos pessoais respeitantes à administração de produtos derivados do sangue. — Quanto a este ponto, devo lembrar V. Ex.a de que a sida, descrita em finais de 1981 com uma síndroma que apareceu simultaneamente num grupo com determinadas características comportamentais — homossexuais —, é relatada também, nos Estados Unidos da América em 1982, num boletim de publicação interna de saúde, numa criança transfundida, pelo que foi pela primeira vez posta a hipótese de ser transmissível através do sangue. O posterior aparecimento desta síndroma em hemofílicos tratados com derivados do plasma veio alertar para que talvez houvesse associação com um microrganismo, talvez um vírus que existisse em pessoas aparentemente saudáveis e que seria transmitido pelo sangue. Este agente etiológico chamado HIV, vírus da imunodeficiência humana, foi identificado entre 1983 e 1984. Apesar dos esforços da comunidade científica, somente em 1985 aparecem protótipos de testes para a sua pesquisa, sendo que desde essa data até hoje muitas foram as evoluções empregues nas técnicas de detecção do vírus.

Ora, o que V. Ex.° entende por desproporcionamento e irrelevante na administração de um antibiótico e na de factor viu não o é, uma vez que ambos são actos médicos, e tanto uma como outra podem ser insubstituíveis para tratar com sucesso determinado estado deficitário de saúde. Foi o risco da sida que alertou para a necessidade de registos e a prática clínica deve ser analisada e interpretada à luz dos conhecimentos técnico-científicos de 1986.

Como é certamente do conhecimento de V. Ex.°, existem estudos anteriores à entrada do lote n.° 810 536 no mercado português que provam que grande parte dos hemofílicos (em Portugal tal como em qualquer outro país) já se encontravam contaminados, apresentando seropositividade para anti-HIV. Logo. a prova da infecciosidade do factor viu não será superabundante, as provas não foram destruídas, será sempre necessário demonstrar o nexo de causalidade da seropositividade.

3 — Reconhecimento da violação de normas regulamentares e aceitação da violação de um dever de cuidado em regulamentar ou legislar sobre a matéria, em momento anterior ao da aprovação do Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril. — Neste ponto, informo V. Ex.a de que Portuga! foi dos primeiros países europeus a possuir regulamentação sobre estudo dos dadores, que desde 1986 foram

Página 134

134

II SÉRIE-C — NÚMERO 23

elaborados regulamentos sobre medidas rigorosas de controlo da sida. E, ainda em 1994, a Comunidade Europeia se encontra a tentar uniformizar critérios de interpretação do resultado dos testes que pesquisam os anticorpos HIV.

Finalmente, esclarece-se que não existiu violação do Despacho ministerial n.° 12/86, publicado no Diário da República, 2° série, de 5 de Maio de 1986, pois o produto obedecia às regras do n.° 4 do despacho, conforme as exigências constantes do artigo 3.° das «condições especiais» do concurso n.° 15/86, e posteriormente confirmadas pelo Hospital de São José, antes da administração do produto.

4 — Das limitações impostas aos aderentes à convenção de arbitragem. — O Estado, ao consagrar o recurso ao tribunal arbitral, vem efectivar uma via alternativa aos tribunais comuns. Trata-se de um processo alternativo colocado à disposição dos hemofílicos que entendam constituir-se como parte.

Importa ainda informar que o valor fixado como limite máximo a que pode ascender a indemnização está dentro dos parâmetros dos pedidos, formulados pelos hemofílicos, já apresentados em tribunal.

5 — Caracterização da comissão de indemnização proposta; sua intervenção. — A comissão proposta por V. Ex.° foi rejeitada pela APH, o Estado não «impõe» uma solução que à partida está condenada ao insucesso.

6 — Ininvocabilidade da reserva de competência parlamentar. — Além das razões apontadas na minha resposta, estes benefícios sociais, um porque se tratava de efectiva discriminação negativa dos hemofílicos seropositivos, outros porque totalmente desenquadrados das pretensões dos hemofílicos não tiveram sequer qualquer apoio por parte da APH.

7 — Ininvocabilidade dos princípios constitucionais da igualdade e justiça social para justificar validamente a não concessão dos benefícios sociais recomendados. — Neste ponto, e como V. Ex.° reconhece, os princípios da igualdade e da justiça social consagrados na Constituição para todos os cidadãos levam-me a reafirmar a preocupação do Governo com todos os cidadãos vítimas de doenças crónicas e incapacitantes, protecção essa que se deve traduzir, como é evidente, numa distribuição equitativa dos recursos de que o Estado pode dispor.

Resta-me, Sr. Provedor, dizer-lhe que, quanto às transfusões de sangue, desde 1986 existiam normas de controlo e despiste da sida e foram utilizadas todas as técnicas conforme as legis arts, não tendo sido levado a tribunal nenhum caso de contaminação com o HIV por transfusão de sangue.

22 de Março de 1994.—O Ministro da Saúde, Adalberto Paulo da Fonseca Mendo.

Documento n.fi 7

Esclarecimentos complementares replicados pelo provedor de Justiça ao Ministro das Finanças

Agradeço o envio do ofício n.° 449, de 24 de Fevereiro próximo passado, amavelmente dirigido ao provedor de Justiça pelo chefe do Gabinete de V. Ex.u, cujo conteúdo me permitirá dar como sem efeito o ofício n.° 165, de 19 de Janeiro próximo passado, dado que obedecia ao rigor de uma justificação contabilística, a qual não se afeiçoa a

uma recomendação que, pelos seus lermos e natureza, implicaria alterações orçamentais.

Não posso, contudo, concordar com o raciocínio ali desenvolvido, nem com os fundamentos e conclusões expostos, pelos motivos que passo a referir:

a) Ininvocabilidade da reserva de competência parlamentar, por forma a justificar a ausência de medidas a tomar, no domínio fiscal. — Responde V. Ex.3 aos recomendados benefícios fiscais, absolvendo-se da instância, por se tratar de matéria contida na reserva de competência parlamentar. Não ignorará, porém, V. Ex." nem os poderes de iniciativa legislativa do Governo junto da Assembleia da República (artigo 170.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa), nem por certo, acrescidamente, o exclusivo dessa iniciativa por parte do Governo, sempre que esteja em causa a diminuição de receitas do Estado, no ano económico em curso (artigo 170.°, n.° 3, idem). Sempre se poderá ainda dizer que a quase totalidade das alterações legislativas em matéria fiscal são criadas por decreto-lei, autorizado pela Assembleia da República.

b) Ininvocabilidade dos princípios constitucionais da igualdade e justiça social para justificar validamente a não concessão dos benefícios fiscais recomendados. — No tocante à legítima e louvável preocupação de V. Ex.° com os portadores de outras doenças igualmente graves (v. g. doentes do foro oncológico), permito-me lembrar que a igualdade e justiça social não se conquistam pelo mínimo de benefícios a conferir a uns para não discriminar outros. Ao invés, as preocupações igualitárias e de justiça social, tal como a Constituição as reconhece, antes impõem o reconhecimento do estatuto de ambos.

Assim, em caso algum será de interpretar restritivamente o texto da recomendação formulada — nomeadamente no que concerne à criação de benefícios fiscais —, observando-se no mesmo, ao contrário, um verdadeiro estímulo para uma protecção mais justa e solidária de todos os cidadãos atingidos por doença incapacitante, crónica e incurável.

De acordo com o disposto no artigo 2.°, n.° 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, só o carácter excepcional de uma situação legitima a atribuição de benefícios desta índole, com vista à tutela de interesses públicos exlrafiscais relevantes.

Ora, não poderá negar-se tal carácter excepcional à situação em que se encontram os cidadãos infectados pelo VIH, como não poderá negar-se o mesmo carácter à situação dos cidadãos vítimas de doenças crónicas e incapacitantes, incuráveis à luz dos conhecimentos actuais.

Sem prejuízo do estudo conjunto, pelos Ministros das Finanças, da Saúde e do Emprego e da Segurança Social, de uma alteração à Tabela Geral de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, que considero da maior relevância, não posso deixar de considerar prioritária a consagração legislativa dos benefícios fiscais recomendados —e em especial, quanto aos cidadãos infectados pelo VIH —, alteração essa que é da subida competência de V. Ex.1

Refere V. Ex.° não se encontrar qualquer fundamento para a criação de benefícios fiscais em sede de imposto sobre as sucessões e doações pelo «facto de se plasmar na lei um benefício [...] que não importa qualquer isenção para O portador do vírus mas sim para um terceiro».

Ora, foi justamente este facto que justificou a recomendação da consagração deste benefício. É óbvio que, falecendo, não pode o portador da doença obter qualquer vantagem na atribuição da isenção proposta. É claro que, à imagem do que acontece em relação à figura da indem-

Página 135

30 DE ABRIL DE 1994

135

nização por danos não patrimoniais — designadamente pelo dano morte —, o objectivo que se pretende alcançar é a compensação de um terceiro pelo sofrimento provocado pela morte do portador da doença, o que justamente pode ser obtido através da isenção de imposto sucessório relativamente aos bens que lhe advenham, em consequência da morte daquele.

Por último, e sem prejuízo de uma actuação concertada do Ministério das Finanças com o Ministério da Saúde

sempre que tal se revele necessário, julgo que a competência de V. Ex." em matéria fiscal bastará para que, desde já, seja tomada a iniciativa de fazer consagrar, legalmente, os benefícios fiscais a que venho fazendo referência.

O Provedor de Justiça, José Menéres Pimentel. A Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual.

Página 136

DIÁRIO

da Assembleia da República

Depósito legal n.° 8819/85

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, E. P.

1 — Preço de página para venda avulso. 7$00+IVA.

2 — Para os novos assinantes do Diário da Assembleia da República, o período da assinatura será compreendido de Janeiro a Dezembro de cada ano. Os números publicados em Outubro, Novembro e Dezembro do ano anterior que completam a legislatura serão adquiridos ao preço de capa.

PREÇO DESTE NUMERO 147S00 (iIVA INCLUÍDO 5%)

"VER DIÁRIO ORIGINAL"

porte pago

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×