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Segunda-feira, 7 de Novembro de 1988 II Série - Número 55-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 53
Reunião do dia 28 de Julho de 1988
SUMÁRIO
Procedeu-se à discussão dos artigos 267.° a 272.°, 292.° a 299.° e 277.° a 283.° e respectivas propostas de alteração; da proposta de artigo novo - artigo 283.°-A - apresentada pelo PCP; dos artigos 284.° e 285.° e respectivas propostas de alteração; e da proposta de artigo novo - artigo 285.°-A - apresentada pelo PCP.
Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do Presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Jorge Lacão (PS), Miguel Galvão Teles (PRD), Alberto Martins (PS), Maria da Assunção Esteves (PSD), Almeida Santos (PS), Costa Andrade (PSD), Vera Jardim (PS), António Vitorino (PS), Carlos Encarnação (PSD) e Sousa Lara (PSD).
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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 11 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos iniciar os nossos trabalhos com o artigo 292.°, sob a epígrafe "Direito constitucional anterior", relativamente ao qual o PSD apresenta uma proposta de alteração em que elimina o segmento "não ressalvadas neste capítulo". Isto traz água no bico e teremos que ver o que é que significa. O PSD passa ainda para este artigo os actuais 293.° e 294 por razões sistemáticas. No seu artigo 292.°, sob a epígrafe "Direito anterior", o PRD reproduz o actual artigo 292.° no n. ° 1. No n. ° 2 mantém a formulação do actual artigo 293.°, com excepção da expressão "direito ordinário anterior", que altera para "direito anterior". Por fim, no n.° 3, estabelece que "é atendível a vigência passada do direito anterior à Constituição, ainda que não haja sobrevigorado, salvo se a isso se opuser a ordem pública daquela resultante".
Mais eis que chega o nosso Presidente! Podemos assim voltar ao artigo 267.º...
Neste momento, assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, retomemos o artigo 267.°, sob a epígrafe "Estrutura da Administração", relativamente ao qual foram apresentadas propostas de alteração pelo CDS, pelo PCP, pelo PS e pelo PSD. Iríamos começar por solicitar ao PCP uma justificação sucinta da sua proposta.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Ao propor a explícita, expressa, embora económica, consagração da noção de administração aberta, o PCP visa introduzir não uma inovação absoluta, não um corte com o texto constitucional no sentido de um radical aperfeiçoamento, de uma radical mutação, mas uma fórmula de evolução coerente, lógico daquilo que flui das noções decorrentes dos artigos 267.° e seguintes da Constituição. De facto, a ideia de abertura da Administração é já uma ideia constitucional, faz parte do património definitório da própria Administração Pública nos termos em que ela surge no texto da Constituição, plasma-se em diversos princípios e mesmo em verdadeiros e próprios direitos subjectivos dos cidadãos que lhes garantem já a possibilidade de conhecimento de informações vitais para que possam exercer os seus direitos ou, em qualquer caso, ter conhecimento daquilo que a Administração faz ou projecta fazer.
Não obnubilarei que, no caso da proposta do PCP, se trata de dar um passo em frente. A consagração directa, nesta ou noutra formulação (uma vez que o PS tem igualmente uma proposta em sentido similar), de uma solução deste tipo representaria uma considerável benfeitoria.
O Sr. Presidente: - V. Exa. está-se a referir à proposta do PS para o artigo 268.°, n.° 1, não é verdade?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exactamente, Sr. Presidente.
Acreditamos, na verdade, que não é possível, em Portugal, uma verdadeira e própria reforma administrativa - objectivo que não me parece susceptível de ser abandonado - sem profundas mutações que atinjam um aspecto de cerne na actividade administrativa: o secretismo indébito. É indispensável uma reforma que consiga a simplificação na organização de procedimentos, que consiga a humanização das relações entre a Administração e os cidadãos e que conceda aos cidadãos concretos direitos de acção e de intervenção e novas garantias processuais. Sem a adopção dessas medidas e sem um impulso muito decidido a partir dos órgãos de soberania, a Administração portuguesa não só não pode modernizar-se como corre o risco de continuar a prestar todos os dias um tributo bastante pernicioso ao velho modelo napoleónico, militarizado, burocratizado, fechado, com as adicionais desvantagens da versão portuguesa que herdámos claramente da ditadura e que não fomos capazes de transformar em segmentos e aspectos fundamentais. Esse modelo, afastado e postergado pela Constituição da República, sobrevive largamente nos factos e resiste com bastante sobranceria a algumas mudanças que por toda a parte, repito, por toda a parte, vêm marcando as sociedades modernas e marcaram, também, nitidamente a sociedade portuguesa neste século.
Entendemos, como é evidente, que a solução a adoptar nesta matéria passará muito por normas a aprovar em sede de lei ordinária. De resto, devo dizer que algumas normas inseridas numa perspectiva de humanização, de reforço do conhecimento, de alguma transparentização (por vezes misturada com uma ideia de propaganda lamentável) têm vindo a ser adoptadas embora desinseridas de uma perspectiva global de reforma administrativa e adoptadas sem partirem da Assembleia da República como órgão de soberania - o que lhes diminui muito o alcance e o impacte, o prestígio e a eficácia - e, por outro lado, com um carácter restrito do ponto de vista financeiro e técnico, o que desde logo torna modesto o esforço real que, por vezes, é altissonante nas palavras. O Governo do PSD, sabe-se, emitiu em determinados momentos resoluções (refiro-me, designadamente, às resoluções n.ºs 6, 31 e 36/87) sobre as relações entre os serviços e os cidadãos, e há hoje uma acrescida difusão de informações, designadamente através de órgãos de comunicação social. Proliferam os telefones de atendimento ou de informação especializada, os serviços de relações públicas, os serviços de contacto directo especial com os cidadãos em determinadas áreas. Isto acontece em determinados segmentos da Administração mas não acontece noutros, como é o caso dos tribunais, por exemplo, matéria que se nos afigura particularmente importante.
As iniciativas que referi não têm a ver com a adopção de um verdadeiro e próprio conjunto de medidas de abertura da Administração Pública, medidas essas que teriam de passar por vários patamares, desdobrando-se numa pluralidade larguíssima de vertentes.
Tivemos ocasião, no preâmbulo do projecto de lei n.° 33/V, apresentado pelo PCP, tendente à garantia do acesso aos documentos de Administração, de expender, com carácter sistematizado, um plano de medidas
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cujo carácter integrado deveria ter a virtualidade de produzir esse efeito de abertura. Neste momento e nesta sede, apenas sublinharia que a cláusula apresentada pelo PCP em sede de revisão constitucional não resolverá tudo, apenas será um sinal, um sinal positivo.
Não gostaríamos que tivesse o destino que teve o positivo sinal contido no artigo 267.°, n.° 4, na parte referente ao processamento da actividade administrativa. Impressiona, na verdade, que, tantos anos após a entrada em vigor da Constituição, continue puramente letra morta a imposição constitucional dirigida ao legislador ordinário no sentido da elaboração da respectiva lei de enquadramento. Foi só em 1979 que a Assembleia da República aprovou (aliás por unanimidade nessa circunstância) um projecto do PCP sobre o processo administrativo não contencioso. No entanto, a respectiva aprovação final foi inviabilizada pela ocorrência da dissolução da Assembleia, e a iniciativa, apesar de sucessivamente renovada, nunca deu origem à publicação de uma lei.
Por outro lado, o próprio projecto de código de processo administrativo gracioso, divulgado em 1980 a nível governamental (e que suscitou uma enormíssima polémica que três anos depois conduziu a uma segunda versão, que não foi, de resto, menos questionada) não teve qualquer sequência. Aquilo a que se assiste é, pelo contrário, à proliferação de condutas as mais diversas, à multiplicação de padrões distintos para segmentos que deveriam ter padrões comuns. Mais ainda, com a evolução das autonomias regionais verifica-se uma cesura entre os padrões de comportamento da Administração Pública nas regiões autónomas e os padrões de comportamento da Administração Pública no continente. Pode dizer-se que a Administração Pública, que deve obviamente ter em conta a organização do Estado, sofre neste momento mais do que as desigualdades decorrentes daquilo que é a natural diferenciação entre administrações que têm no topo entidades diferentes: sofre uma diferenciação de estilos e de padrões francamente anormal, ainda que, repito, não sejamos homogeneístas e entendamos que deve haver especificidades. A situação actual parece, contudo, exceder tudo o que são parâmetros razoáveis, estando a Administração Pública em muitos aspectos confinada a ser a administração pública do continente, e isso é insuportável num Estado unitário.
Vinham estas considerações a propósito das disfunções reinantes e da necessidade geral de abertura. Face à ingência da tarefa, a proposta do PCP é verdadeiramente modesta, mas não despicienda. Que se consagre que "a lei garante a todos o acesso aos documentos e arquivos da Administração Pública e assegura a informação regular e objectiva dos cidadãos sobre os actos da Administração", visa potenciar, sublinhar e desenvolver duas vertentes constitucionalmente consagradas: a primeira, a ideia de que o acesso aos documentos e arquivos da Administração Pública não se há-de poder fazer apenas na base do interesse pessoal e directo dos cidadãos, podendo existir outras situações que não apenas as situações de estudo, de carácter científico, que legitimem o acesso aos documentos e arquivos de Administração Pública. Pode ser extremamente positivo (e não será característica portuguesa singular a consagração de uma norma deste tipo), que, como instrumento adicional tendente a potenciar o exercício individual e até colectivo de direitos, se consagre uma nova noção de legitimidade e se aponte para esta abertura com fronteiras mais dilatadas, a que se chama nas experiências internacionais que sobre a matéria podemos conhecer administração aberta. A ideia da open administration, ou na expriência canadiana e francesa de uma administração aberta com limites (uma administração por mais aberta que seja não pode deixar de ter limites em algumas franjas, em algumas áreas, em alguns segmentos), é extremamente enriquecedora do quadro actual.
Gostaria de sublinhar que, como é evidente, a aprovação de uma norma deste tipo exigirá legislação ordinária. A essa legislação ordinária de desenvolvimento caberão muitas das tarefas meritórias a que se dá abertura por esta fórmula. A primeira é a consagração legal da transparência como regra e do segredo como excepção, o que, não representando inovação na nossa ordem jurídica, fará sem dúvida acrescer a garantia legal dos direitos dos administrados e tornará mais clara, desde logo, a revogação das normas de direito ordinário anterior à Constituição que contrariem o modelo não secretista por ela consagrado.
A jurisprudência e a doutrina têm sublinhado (mas tarda a ser entendido e aplicado) que essas normas secretistas que herdámos do passado não podem apenas ser interpretadas de maneira conforme à Constituição, não podem ser salvas quanto à vigência, não é esse o poder que os tribunais têm. É preciso reconhecer que a Constituição derrogou essas normas e instituiu para a situação criada novas normas, normas de abertura, normas assentes no direito fundamental à informação, normas que são directamente aplicáveis por força do artigo 18.° da Constituição e não apenas normas programáticas. Este entendimento será potenciado pela aprovação de uma norma constitucional sobre administração aberta, o que será bastante importante. Ainda há dias recebi em resposta ao meu requerimento n.° 931/V a seguinte informação: "continuam em execução as instruções sobre a segurança das matérias classificadas anexas à Portaria n.° 19 810, de 19 de Abril de 1963" (sic). De acordo com o programa do XI Governo, há intenção de rever tais instruções "no sentido de actualizar as disposições existentes". O n.° 3 do capítulo i do Programa do Governo dá conta dessa intenção ao referir expressamente: "há agora que elaborar e implementar um conjunto de normas nacionais de segurança de matérias classificadas". Tal não ocorreu, porém. Reina o mais completo pandemónio na distinção entre o que sejam normas em vigor e normas superadas... A aprovação de uma cláusula deste tipo tenderá a impulsionar uma redefinição positiva dos próprios critérios de classificação dos documentos da administração, pondo cobro a aberrações como esta de que vos falei.
Por outro lado, esta consagração constitucional, expressa, explícita, directa, da Administração aberta clarificará as regras através das quais a Administração Pública deve facultar o acesso aos seus documentos, acentuando, designadamente, a ideia de que a autorização dos superiores hierárquicos, o poder de autorizar o acesso passou a ser vinculado e perdeu o carácter discricionário que tinha sob o regime anterior, na medida em que o administrado pode opor à Administração um direito constitucional e legalmente estabelecido, direito esse que, no caso da aprovação desta norma (que esperamos), seria largamente reforçado.
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Em terceiro lugar, uma norma deste tipo obriga à releitura, a nova luz, dos próprios deveres dos trabalhadores da função pública, sobre os quais vêm impendendo verdadeiramente absurdas proibições de relacionamento com os cidadãos e com os órgãos de comunicação social. É que a "nova mentalidade" secretista coexiste com o charme e simpatia dos prospectos e desdobráveis coloridos: a vozearia combina-se com a opacidade em relação às verdadeiras informações, às informações úteis para se saber do que é que verdadeiramente a Administração Pública está tratando.
Essa situação absurda é, evidentemente, contrariada por uma opção do tipo desta que propomos.
Dela decorre - e esse é o último aspecto - um novo conceito de legitimidade para requerer e obter os documentos da Administração.
Deixaria de lado, Sr. Presidente, todas as questões respeitantes aos arquivos públicos, embora a matéria seja objecto de uma menção nesta cláusula, que é, evidentemente, extremamente económica e que supõe o desenvolvimento pelo legislador ordinário - sublinho isso de novo. É que a problemática dos arquivos da Administração Pública carece de um enquadramento legal exaustivo e geral com ulteriores especificações correspondentes à diversidade das realidades existentes. E neste ponto não caberia à Constituição - parece-nos, mas estamos abertos a outras considerações, como é óbvio - edificar a matriz de um regime dos arquivos de Administração Pública capaz de os defender, preservar e impossibilitar certos fenómenos como os que hoje ocorrem, de delapidação e destruição, e, por outro lado, de restrição do acesso em condições que são particularmente chocantes, porque nenhuma razão de Estado, nenhum interesse relevante legitima certas soluções proibicionistas, "malthusianas" que vêm sendo adoptadas correntemente.
Não tratámos do acesso aos arquivos com pormenor pois não caberia fazê-lo nesta sede. Em todo o caso, é uma matéria que nos preocupa extremamente e que nos parece que exigiria, noutro terreno, no terreno da lei ordinária, medidas eficazes: algumas estão a ser gizadas, algumas estão a ser pensadas. Há certos casos particularmente importantes. Tivemos a ocasião de discutir alguns deles a propósito de um outro artigo já nesta revisão constitucional, refiro-me aos arquivos de Marcello Caetano, de Salazar e aos arquivos da ex-PIDE/DGS, mas há outros, como o arquivo do ex-Ministério das Colónias, incluindo os arquivos dos respectivos serviços de informações e outros de carácter similar.
Toda a problemática co-envolvida nessa área, bem como na dos arquivos nacionais, do próprio arquivo da Torre do Tombo e dos próprios arquivos parlamentares, merece outras providências. O Ministério dos Negócios Estrangeiros tomou recentemente medidas de enquadramento do regime aplicável a esta matéria - medidas essas que são extremamente lamentáveis. Não as vou examinar nesta sede. Não gostaria, porém, de deixar de lhes fazer alusão, porque significam um caminho de restrição de acesso, fixam prazos absurdos, condicionam o acesso a autorizações burocráticas de directores-gerais e secretários-gerais que agem segundo critérios que a lei não define e, logo, com possível arbítrio. Por outro lado, não têm matriz geral que os enquadre. É a esta deriva que está sujeita neste momento toda a problemática dos arquivos públicos em
Portugal. Devemos, pois, estabelecer uma cláusula que aponte para a garantia do acesso aos arquivos, o que representa um alerta em relação à necessidade de defesa desses bens desse património público (de resto não se pode ter acesso a uma coisa que não existe e, em Portugal, por demais deixaram de existir certos arquivos cuja consagração e defesa seria preciosa para a preservação do património de todos nós). É, de facto, este o nosso voto e será nesse sentido que nos empenharemos.
Quanto à segunda componente, que é a garantia aos cidadãos de uma informação regular e objectiva sobre os actos da Administração, assistimos nos últimos anos a um surto - de resto, sem precedentes - de práticas de actos tendentes a transmitir aos cidadãos informações ou mensagens. Porém, essas mensagens - digo-o francamente - são má propaganda na maior parte dos casos, publicidade paga pelo Estado a favor de um governo e não tanto informação regular e objectiva dos cidadãos sobre actos da Administração. Há um desvio propagandístico que a Assembleia da República procurou contrariar através de uma norma ínsita no Orçamento do Estado num dos exercícios pretéritos - norma essa tendente a disciplinar o uso da publicidade institucional e a controlar o conteúdo das mensagens para que se atenham a esse exacto âmbito e sentido. Em todo o caso, essa tentativa, embora tenha conseguido ser plasmada no terreno da lei ordinária, não foi efectivada no terreno da prática. A lei foi, de facto, violada (e está-o a ser neste momento, ainda que não tenha sido revogada formalmente). Não foi verdadeiramente um êxito no controle das práticas da Administração.
Acontece, porém, que ninguém, em boa razão, deixará de poder aderir à ideia, que o PCP propõe, económica, sucinta e polissémica, de que a informação regular e objectiva do cidadão deve ser assegurada pelo Estado. E deve sê-lo pelos meios próprios. Não curou o nosso preceito de desenvolver em que é que se traduziam esses meios. No entanto, não pode a Constituição fazer isso. Não lhe cabe fazer aquilo que deve ser feito pelos órgãos de soberania, em função de resultados que podem ser contingentes, mas são resultados. Isso tivemos, também, em conta!...
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, foi feita uma exposição sucinta, como também uma apreciação problemática de outros projectos e da situação actual, o que, aliás, compreendo.
Tem, agora, a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O PS deseja apresentar uma proposta de alteração, muito simples, ao n.° 1 do artigo 267.°, cuja fundamentação decorre, em boa parte, de um debate já travado a propósito da natureza das organizações populares de base.
Como dizia o Sr. Deputado Vera Jardim, tratou-se de actualizar um conceito, porventura tendo em vista o que foi designado por "erisipela" relativamente à reacção negativa a este mesmo conceito. Assim, o PS visa alterar o dito conceito para "organização de moradores", entendido como uma das formas de participação democrática na gestão da Administração Pública.
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Todavia, devo dizer que, enquanto ontem as organizações populares de base tinham uma natureza claramente territorial porque se referiam à participação no Poder Local, trata-se agora de organizações que, porventura, não têm um cariz de organizações territoriais. Se assim é, então a alteração, que o PS propõe, terá um alcance restritivo de tal ordem que poderá, ao próprio partido proponente, suscitar alguma reflexão quanto ao sentido da sua própria formulação. Diria, para clarificar, que na versão originária "organizações populares de base" estariam compreendidas, para além das organizações de moradores, outras formas de organização, como as de trabalhadores, admitindo a sua possibilidade de participação em formas de administração indirecta. Assim sendo, uma, de duas soluções, se poderia adiantar: ou ficar a norma na sua versão originária, ou outra solução, que não nos escandalizaria nada, traduzida na supressão da referência nos termos em que o PSD a propõe, na medida em que sempre se admitirá, para além das associações públicas, a existência de outras formas de representação democrática na qual estariam naturalmente compreendidas as organizações populares de base, quer as de âmbito territorial, quer as que revestissem outra natureza. É, portanto, esta uma questão menor e a melhor solução que resultar do debate é certamente aquela que acabaremos por admitir.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, justificaria, desde já, as duas propostas de alteração apresentadas pelo PSD e, de resto, aproveitaria também para, muito rapidamente, me pronunciar sobre, a exemplo do que fez o Sr. Deputado José Magalhães, a questão em geral.
Ora, a nossa alteração relativa ao n.° 1 do artigo 267.° decorre do posicionamento geral que tivemos em relação às organizações populares de base tidas como uma manifestação de um princípio colectivista marxista. É evidente que, se houver associações de moradores ou outras associações populares de base que não estejam dentro da orientação de precipitar ou concretizar esse princípio, vê-las-emos com interesse, na medida em que podem significar um reforço da estrutura da sociedade civil e, por isso mesmo, tivemos o cuidado de manter a expressão final "ou outras formas de representação democrática", porque permite que haja variadas maneiras de poder intervir e, nesse aspecto, acolhê-las-emos de muito bom grado.
Entretanto, o que não gostaríamos era de continuar a deixar uma marca de tipo ideológico. Foi, pois, nesse sentido apenas que, por coerência com aquilo que propusemos noutros lados da Constituição, sugerimos a supressão do inciso "organizações populares de base".
Quanto ao n.° 4 do artigo 267.°, a respectiva alteração tem mais em vista uma precisão do ponto de vista teórico, e, porventura, ela não é indispensável. Foi introduzida nesse preceito no sentido de admitir uma certa flexibilização na maneira como a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações, que lhes disserem respeito, deverá ser tomada. Não é, pois, uma questão muito importante. A nossa interpretação é que o texto constitucional já permite essa flexibilização, como, aliás, decorreu das propostas de procedimento administrativo gracioso que foram já apresentadas, quer aquelas que tive ocasião de ser o principal autor material, quer aquelas que o PCP levou a Plenário da Assembleia da República.
No respeitante "à proposta apresentada pelo PCP, como, aliás...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - ... às do artigo seguinte, penso que podíamos discuti-las melhor, porque a epígrafe desse artigo 268.° refere-se aos direitos e garantias dos administrados, não tendo muito em conta a estrutura da Administração. Portanto, julgo que seria preferível guardar-mo-nos para esse artigo 268.° aquando da apreciação da proposta do PCP, que, aliás, não é muito diferente de propostas apresentadas por outros partidos.
Gostaria ainda de dizer que este artigo 267.° evidencia bem que os problemas que em matéria de Administração Pública se colocam não se suscitam em sede constitucional. Acontece que os artigos da Constituição estão pensados, de uma maneira geral, de uma forma correcta. Apontam para orientações que me parecem úteis, mas que não têm, em muitos casos, sido implementados. Existe, de facto, um grande desfasamento entre aquilo que a Constituição preconiza e o que é a nossa realidade administrativa. Recordo-me que já em tempos tive oportunidade de sublinhar, num artigo publicado numa revista, que enquanto o direito constitucional e a estrutura constitucional sofreram uma modificação radical após o 25 de Abril, e ainda bem, pois não poderia deixar de ser assim, a Administração Pública foi algo que permaneceu, dando azo a que um célebre brocardo de um jurista alemão tivesse uma aplicação directa em Portugal. Hoje, notam-se já, e felizmente, alguns ventos de mudança, mas no respeitante às questões ligadas à estruturação de modo a evitar a burocratização e a aproximar os serviços das populações, à participação dos interessados nas decisões administrativas e no procedimento administrativo, infelizmente ainda estamos muito longe de concretizar na realidade prática aquilo que são as directrizes constitucionais. Isto revela, aliás, que temos também de ter algum cuidado. Não é que, neste caso, tenhamos sido exagerados - penso que o não fomos -, mas noutros casos, quando tentamos no nível constitucional introduzir reformas que não conseguimos obter no nível de legislação ordinária, devemos ter uma certa prudência de pensar que talvez essa não seja a estratégia sempre mais aconselhada. Em Portugal não é o caso, pois essa estratégia parece-me, felizmente, correcta, não tendo, contudo, sido ainda implementada.
No entanto, quando há propósitos demasiado ambiciosos, como foram, aliás, os que ontem foram referidos pelo CDS quando pretendeu introduzir alguns princípios - e por que não outros? - a propósito da actividade administrativa, teremos de levar em consideração a prudência cautelar que aconselha a sermos mais morigerados.
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Suponho, pois, que esta matéria está dilucidada, os pontos de vista estão expendidos e não existem questões muito importantes que sejam novas. O problema mais significativo é o da chamada administração aberta, que foi exposto pelo PCP e será discutido a seguir.
Poderíamos, assim, passar ao debate do artigo 268.°, onde de pleno poderemos então considerar essa questão.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, V. Exa. fez uma alusão em relação às propostas do PSD, mas em relação ao n.° 4 do artigo 267.° nada disse, se bem me apercebi.
O Sr. Presidente: - Não fiz uma alusão mas, sim, de que se tratava de um certo excesso de precisão jurídica, porque a maneira como está redigido o actual n.° 4 pode interpretar-se de duas formas. Pessoalmente, interpreto-o de uma forma que é a de dar a latitude suficiente - aliás, fi-lo ao escrever o articulado do projecto do Código de Processo Administrativo Gracioso - no sentido que é evidente que há alguns actos nos quais a intervenção dos administrados será muito diferente de outros. Não tem sentido, em todos os casos em que haja uma referência ou, como destinatário, um administrado - e são a maioria dos casos -, exigir um tipo de participação intensiva como parece pressupor uma certa leitura do n.° 4 do artigo 267.° E digo isto porque não é assim em nenhum procedimento administrativo que conheço regulado por lei ou mesmo não o sendo. E daí o ter-se escrito na altura, atendendo a uma preocupação desse tipo, a proposta de alteração desse n.° 4 do artigo 267.°, da autoria do PSD.
No entanto, devo dizer-lhe que entendo que se trata de uma precisão jurídica motivada por uma preocupação cautelar mas que não é uma questão obviamente fundamental. Essa é já a interpretação dada à latitude da participação do cidadão, a qual não pode ser admitida em relação a todos os actos que tenham uma referência aos cidadãos. De facto, isso não teria sentido. Há, inclusivamente, muitos actos claramente processuais antes do acto final em que isso não poderia ser. Isso é compreensível sempre que exista uma decisão final que implique com situações jurídicas dos cidadãos, sejam elas conformadas com direitos subjectivos ou com interesses legítimos ou legalmente protegidos, mas isso não significa que, a propósito de todos os actos da Administração Pública, em que muitos deles não são definitivos e executórios, de acordo com a terminologia tradicional portuguesa, mas, sim, meramente preparatórios, é óbvio que o tipo de participação que é pedido aos administrados pode ser o mais diverso. Não se justifica até, em alguns casos em certas fases do processo, essa participação, embora se justifique noutras.
Portanto, há algo que não significa, nem pode significar, uma diminuição da protecção jurídica que os administrados devem ter, pois essa deve ser completa, mas quer dizer que não há uma interpretação cega que crie dificuldades inultrapassáveis na regulamentação do procedimento administrativo.
Assim, como já disse, a Constituição deve ser interpretada de uma maneira hábil e não de uma forma que crie dificuldades intransponíveis que nenhum valor jurídico justifique. E digo isto porque, tal como ontem ao referirmos o problema da igualdade, existem aspectos na actividade administrativa que não têm nada de secretismo ou de diminuição das garantias, mas que, pura e simplesmente, evitam burocratizar mais a actividade da Administração. De facto, os valores fundamentais da participação dos cidadãos colocam-se quanto àqueles actos que implicam já uma diminuição da situação final ou, até, da instrumental ou processual anterior, mas que têm repercussões importantes na decisão final. Isso, repito, é uma solução que essa disposição da Constituição já permite. Houve alguma preocupação em sublinhar esse ponto. Não é um problema suficientemente importante para nós, pelo que se essa alteração suscitar dificuldades poderemos abdicar dela porque este é o nosso entendimento e, além disso, a questão não se revela suficientemente relevante. Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, a explicação de V. Exa. foi muito clarificadora, mas, apesar de tudo, suscitou-me a dúvida que decorre até de algumas interpretações doutrinais quanto a este n.° 4 do artigo 267.°
De facto, é dito por alguns autores que a um legislador ordinário nesta matéria cabe assegurar a participação dos cidadãos e não apenas regulamentá-la. Fiquei com a ideia, depois da exposição do Sr. Presidente, de que se estaria mais no terreno da regulamentação e não numa leitura mais ampla de assegurar a participação dos cidadãos, tudo isto sem prejuízo das inerentes dificuldades que V. Exa. apontou.
Por conseguinte, a minha dúvida consiste em saber se esta precisão técnico-jurídica a que aludiu não terá em si o risco de uma diminuição das possibilidades de participação. Devo dizer que tenho alguma dificuldade em concretizar o horizonte desta participação.
O Sr. Presidente: - Não é essa a intenção, nem pode ser, porque, inclusivamente, o problema complicado é que, na realidade actual, esta regra não está a ser cumprida em muitas decisões administrativas - e não me refiro àquelas que têm características sancionatórias típicas. Por exemplo, no caso do processo disciplinar, há uma jurisprudência firme do Supremo Tribunal Administrativo no sentido de considerar como uma única nulidade insuprível do processo a falta de audição do arguido.
Mas, aparte esses casos típicos e, designadamente, fora do caso dos processos sancionadores em que o infligir uma sanção leva a que a jurisprudência e a própria Administração sejam sensíveis à necessidade de que ninguém deva ser julgado e apreciado sem ter uma possibilidade de se defender - e, aqui ou além, a Administração Pública, num ou noutro caso, esquece essa regra, mas, quando a questão é suscitada em tribunal, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem sido extremamente clara e firme -, a verdade é que os processos administrativos são multiformes e têm múltiplos aspectos e que muitos deles não desembocam num acto administrativo. São, no fundo, eles próprios, apenas uma fase instrutória que nem sempre se integra em questões que desemboquem num acto definitivo e executório.
E o problema que se põe é o de regular isto, em termos de dizer que, sempre que haja um problema que tenha em consideração um particular, este terá de ser
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notificado e ouvido ou, pelo menos, de ter essa possibilidade, o que pode significar, em múltiplos aspectos, uma complicação adicional e relativamente inútil. Isto é, as razões verdadeiramente importantes para a participação dos interessados são, em primeiro lugar, o facto de se dar garantias de defesa ao administrado, pois este pode, ainda antes de a decisão ser tomada, explicitar o seu ponto de vista e explicar à Administração que ela parte de matéria de facto que é errada ou que, por exemplo, não considerou determinados factos que deveriam ser objecto de ponderação por sua parte. Este é um ponto.
Outro aspecto - e este do ponto de vista da Administração - é que, ao decidir em diálogo com o cidadão, esta tem melhores hipóteses de os seus actos serem compreendidos e realizados. É um pouco a mesma razão que justifica a fundamentação dos actos administrativos, havendo aqui uma argumentação no sentido de convencer o administrado e, portanto, de facilitar o acatamento da decisão ou dos direitos e deveres que decorrem da prática do acto administrativo que, por sua natureza, é um acto unilateral. Significa também, obviamente, que o acto administrativo deixou de ser aquele acto de concretização da soberania, numa situação individual, que foi típico da Administração Pública do século XIX.
Há, portanto, aqui apenas um propósito que, até pelas perguntas que estão a ser formuladas, me leva a pensar que não valerá a pena insistir muito nisto. Decorre da natureza das coisas que não tem sentido estar a pedir que a Administração notifique os administrados ou os particulares quando pratica determinados actos, por exemplo, de tipo estatístico. Não tem sentido. Pode ter sentido facultar-lhes o conhecimento após a anotação - e isso é um problema que vamos ver a seguir -, mas um acto estatístico que não esteja inserido num processo, que é uma anotação estatística, não tem grande sentido. Agora, se essa anotação, soit disant, estatística tiver implicações, por exemplo, de ordem fiscal, já é completamente diferente. Mas isso depende das situações e, portanto, o princípio norteador há-de ser o da defesa dos interesses legítimos e dos direitos dos administrados e hão todo e qualquer acto de administração, seja este um acto interno ou externo ou que esteja inserido ou não num procedimento que desemboque num acto administrativo.
Trata-se, a meu ver - e repito -, de uma formulação em que os juristas são um pouco receosos de uma interpretação da Constituição feita sem atender a esta questão, que, todavia, me parece óbvia, e daí não termos dado grande importância a esta circunstância. No entanto, queríamos deixar este ponto suficientemente dilucidado, pois, quando se regula o procedimento administrativo, essa questão tem importância, mas não pode ser uma aplicação cega e terá de ser norteada pelo princípio superior da salvaguarda dos interesses legítimos e dos direitos subjectivos dos cidadãos.
Srs. Deputados, passaremos agora ao artigo 268.° Neste artigo há uma proposta do CDS, uma do PCP, uma outra do PS, uma do PSD e uma do PRD. Todas elas são propostas de alteração ou de aditamento relacionadas com os direitos e garantias dos administrados, havendo também - como foi referido há pouco - a proposta do PCP relativa ao acesso aos documentos e arquivos da Administração Pública, que já foi justificada pelo Sr. Deputado José Magalhães.
Penso que a poderemos discutir, em sede deste artigo, não só porque, do ponto de vista sistemático, isso é mais justificado, como ainda porque existem propostas com objectivos similares, designadamente por parte do PS, do CDS e do PRD.
Assim, começaríamos por pedir uma fundamentação ao PCP.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não se tinha convencionado que se ia discutir a administração aberta?
O Sr. Presidente: - Vamos discutir tudo, Sr. Deputado.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que seria melhor discutirmos primeiro a administração aberta e depois o resto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto.
O Sr. Presidente: - Então, vamos fazê-lo.
Nesse caso, uma vez que o CDS não está presente, solicitaria ao PS o favor de apresentar a sua justificação.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - A justificação do PS tem pontos de grande pertinência com as considerações que, a este propósito da ideia da administração aberta, já foram formuladas anteriormente na apresentação de proposta similar pelo PCP. A ideia básica que preside a esta proposta é a de garantir uma abertura da Administração Pública, a sua transparência e racionalização, o que se traduz na possibilidade de acesso generalizado dos cidadãos aos documentos da Administração e, naturalmente, em termos gerais, numa maior democraticidade. Ora, tal implica e envolve uma volta de 180 graus, em tudo o que tem sido a prática da nossa Administração Pública, instituindo a ideia da transparência como regra e o segredo como excepção.
Nesta proposta é feita uma leitura harmoniosa entre três valores fundamentais, como sejam: o direito à informação, que é um direito básico incluído já nas disposições constitucionais que vimos na parte inicial; a salvaguarda do direito à vida privada e, depois, sobretudo a partir do colóquio de Gratz, do Conselho da Europa de 1976, o direito ao bom governo. Ora, a nossa prática constitucional e política tem apontado, sobretudo, para a prevalência da ideia do direito ao bom governo e creio que, na prática administrativa e jurisdicional, há um pouco a ideia de que os princípios de justiça, imparcialidade e eficiência devem, sempre,prevalecer sobre o direito à informação dos cidadãos.
É esta conciliação de interesses que, nalguma medida, aqui colocamos nesta proposta, sendo certo existir uma ideia precisa de que o direito à informação tem de definir, desde logo, os seus limites - e daí a ideia de que as maiores virtualidades da nossa proposta, embora o continente em que ela se situe seja coincidente com o do PCP. No nosso caso, o direito à informação tem os limites da defesa da segurança e a defesa do Estado, a investigação criminal e a intimidade das pessoas.
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É certo que, quanto à investigação criminal e à intimidade das pessoas, sempre se poderá dizer que estes limites já estão contidos na Constituição. Quanto à segurança e à defesa do Estado, já será mais difícil encontrar estas restrições no texto constitucional de forma precisa. E, daí, o ter-se definido um princípio e, desde logo, as excepções a esse mesmo princípio.
Aliás, a solução que adoptamos é similar, na sua redacção própria, a uma solução já hoje contida na Constituição Espanhola de 1978. Não se trata de uma simetria absoluta, mas é um tipo de regras de regulação similar ao direito de acesso aos documentos da Administração que se aponta no nosso projecto. Creio que esta ideia do arquivo aberto ou da administração aberta é uma ideia que começa a ganhar consistência na doutrina portuguesa, recordo particularmente um texto muito conhecido do Prof. Barbosa de Melo que diz que o princípio do arquivo aberto é um instrumento do direito à informação, hoje incluído por muitos no catálogo dos direitos fundamentais do cidadão. Há também, já bastante difundida na literatura administrativa portuguesa, a ideia de, com prudência e ponderação, se admitir a ideia do arquivo aberto. Julgo que esta ideia, compaginada com as normas, leis e regras do processo administrativo gracioso, seria uma solução decisiva para a reforma da Administração Pública portuguesa.
Diria, por último, que esta disposição constitucional implica, necessariamente, uma lei ordinária que defina quais são os arquivos e registos escritos e, porque não são apenas os documentos escritos da Administração que este preceito admite, ainda a definição dos gráficos sonoros, informáticos, visuais e outros, ou seja, uma lei ordinária muito precisa a este título, implicando, eventualmente, a criação de um organismo capaz de classificar os documentos; ora, a nossa proposta na forma como é apresentada tem todas essas virtualidades de remissão.
Finalmente, ao admitir-se a possibilidade do não acesso aos documentos da Administração, admitir-se-ia a regra do indeferimento tácito, que, aliás, tem já tradição na nossa lei ordinária. É para este último ponto que remetemos: se não houver a possibilidade do acesso, o cidadão terá sempre, havendo este indeferimento tácito no prazo de 30 dias, a possibilidade do recurso contencioso. Em síntese, a lógica da nossa proposta é a de conciliar o direito à informação, o direito à vida privada e a eficiência governativa.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, pensamos que esta matéria do acesso aos arquivos e registos administrativos é algo em que se tem vindo a registar uma evolução muito acentuada nas administrações públicas modernas...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, o PRD ainda existe!
O Sr. Presidente: - Peço desculpa. Tem toda a razão, o PRD ainda existe. Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O PRD apresentou também uma proposta relativa à administração aberta e não poderia deixar de o fazer por razões várias, designadamente porque, se houve acontecimento político em Portugal que trouxe ao debate e à consciência pública os problemas relacionados com a administração aberta, foram as últimas eleições presidenciais, através, particularmente, do candidato que apoiámos - e eu particularmente. O que é certo é que as derrotas eleitorais não "matam" as ideias.
Em todo o caso, devo dizer que a nossa proposta procurou ser extremamente prudente, talvez excessivamente prudente, porque, é evidente, conhecemos o país em que vivemos e sabemos quais são as outras formações partidárias com que temos de contar e os seus respectivos interesses. Devo dizer que há uma lacuna na proposta do PRD, que gostaria que fosse suprida, que é a não referência específica a arquivos. Seria rezoável fazer tal referência, embora de uma forma vaga...
O Sr. Presidente: - Foi por isso que eu, há pouco, não considerei o PRD. É que estávamos a discutir este problema dos arquivos.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas não se trata só de arquivos, trata-se da administração aberta!
O PRD foi extremamente cuidadoso, na medida em que permitiu o acesso aos processos, deixando à lei os casos que sejam absoluta ou relativamente reservados e, portanto, permitindo uma certa margem de manobra ao legislador na definição dessa reserva. Creio que é difícil delimitar constitucionalmente os casos e os critérios de reserva. O PS tenta fazê-lo com a referência à segurança, à defesa do Estado, à investigação criminal e à intimidade das pessoas, mas há outros domínios, por exemplo os da política externa, onde a reserva ou o segredo se justificam ou não, consoante o caso. Nós estamos dispostos a tentar encontrar uma fórmula constitucional definidora de critérios um pouco mais ampla do que a do PS e com a maleabilidade suficiente para que o legislador ordinário não seja forçado a defraudar a Constituição.
Em resumo, diria que é indispensável consagrar constitucionalmente o princípio da administração aberta e que, nas condições vigentes em Portugal, é necessária alguma prudência nesse domínio.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, efectivamente, penitencio-me por não ter dado, desde logo, a palavra ao PRD. Em todo o caso, nesta matéria da administração aberta, como dizia há pouco, registou-se uma grande evolução nas administrações públicas dos países com pluralismo político e, eventualmente, após a Perestroika, teremos manifestações também nesse sentido na União Soviética - esperemos que assim aconteça, pois isso é importante para a salvaguarda dos interesses e dos direitos dos cidadãos soviéticos -, mas o fenómeno é relativamente recente e, sobretudo no pós-guerra, dá-se nos países da Europa Ocidental, nos EUA, no Canadá, etc.
Penso que precisaríamos de ter um impulso constitucional nesse sentido, mas que teremos de o fazer com muita prudência porque, na realidade, esta matéria, como outras, depende também muito da cultura administrativa como um aspecto da cultura cívica, nos termos da civil culture e não de cultura cívica em termos de civismo, e a verdade é que isto representa uma mutação significativa nos hábitos tradicionais de secretismo da Administração Pública, que era cultivada por
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si, muitas vezes sem atender a nenhuns aspectos instrumentais ou funcionais, ou porque isso significava algum poder para os funcionários ou autoridades, ou porque as pessoas tinham a noção de que os problemas do Estado estavam por natureza rodeados de um certo secretismo. E isto, independentemente, até, da consagração de fórmulas democráticas em termos formais na Constituição ou nas leis. Esse secretismo, ou melhor, essa propensão para o secretismo, existiu em Portugal quer durante a monarquia quer durante a 1.ª República, e depois, mas com um carácter mais acentuado e com uma lógica diferente, sob a ditadura.
Portanto, a ideia que temos é a de que esta norma proposta pelo PS, pelo PCP e pelo PRD é uma norma que deve ser encarada numa perspectiva favorável, embora tenhamos que ver até onde e como, porque os problemas da formulação são extremamente importantes.
Diria que, sem que isso seja um juízo definitivo, a norma actual da Constituição já é muito importante, mas não tem sido devidamente aplicada, o que deve ser sublinhado. O direito a ser informado sobre os processos que digam respeito aos cidadãos já existe. É evidente que isto também tem que ser interpretado com algum cuidado. É justamente por isso que as cautelas que o Partido Socialista coloca podem não ser suficientes, mas são indiciadoras dessa preocupação realista que tem que existir.
Concretamente no que diz respeito à proposta do PRD tenho a seguinte dúvida: compreendo melhor o acesso aos arquivos quando os processos estão concluídos. A formulação que está aqui pode ter um alcance sobre o qual tenho algumas dúvidas. Isto é, vamos aceitar que em relação a procedimentos administrativos que estão a correr e relativos a destinatários individualizados seja facultado o acesso a terceiros pela simples circunstância de o requererem, sem nenhuma justificação? Isso pode colocar questões que são completamente diferentes das que se põem quando o acesso é feito em relação a arquivos. Isto é, os arquivos dizem, em princípio, respeito a problemas que estão julgados, que estão decididos, que estão arrumados. Muitas vezes até já passou algum prazo sobre isso. É claro que reconheço que o aspecto fiscalizador, que, de algum modo, pode propiciar uma norma deste tipo, pode ser importante, mas temos de atender a esta questão da legitimidade do conhecimento por parte de terceiros em relação a processos que estão a decorrer e em que existem diversas informações. Suponhamos um processo em matéria económica, em que o requerente é obrigado a fornecer informações, que são sigilosas e importantes em matéria do seu negócio, e em relação ao qual a Administração está vinculada. Poderá permitir-se, na base da administração aberta, a um terceiro e até, eventualmente, a um concorrente o acesso a esta matéria? A formulação tal como está feita, e muito embora fale em privacidade - mas é uma coisa um pouco diferente da questão que ponho -, levanta dúvidas.
Tem a palavra, Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, creio que esse é o aspecto mais inovador e mais positivo da proposta do PRD. E esse aspecto é o que diz respeito ao direito ao conhecimento das decisões e do andamento dos processos, mesmo que o cidadão não seja directamente interessado. A ressalva está na expressão "relativamente reservados". A lei que concretizasse o princípio teria de discriminar processos e estabelecer reservas relativas. Por exemplo, num processo de licenciamento em matéria económica poderia e deveria estabelecer-se que tal licenciamento ficaria reservado até à decisão ou mesmo para depois dela. Esse limite seria imposto através da noção de reserva relativa.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, mas o problema é este: é que, porventura, havendo - como me parece indispensável que haja - essa reserva relativa, não sei se justifica esta formulação. É que, na maior parte dos casos, é justamente nesse tipo de processos em que uma fiscalização por uma acção popular, não no contencioso administrativo, mas numa fase anterior, seria mais interessante.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, aí entraria o jogo da reserva relativa. O direito de acesso teria aí uma importante função preventiva: evitaria certos entorses que frequentemente se verificam na Administração ou torná-los-ia muito mais difíceis. É por isso que nós admitimos expressamente a reserva relativa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é evidente que a compatibilização com os segredos tem que ser feita. Tem que ser feita, tanto com o segredo de Estado, como com o segredo profissional...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - E com o segredo dos particulares, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - [...] e com o segredo científico, com o segredo comercial, com o segredo industrial, etc., tal como são tutelados legalmente. É uma questão da lei ordinária.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, é evidente que isso é uma questão da lei ordinária, mas também é importante a forma como concebemos o funcionamento da Administração Pública e dos procedimentos e até o papel que cabe à fiscalização da Administração Pública por parte dos particulares.
Há aqui três coisas completamente distintas.
Uma é a de assegurar o acesso à informação dos cidadãos em relação àqueles processos que lhes digam respeito. Isso já está previsto no n.° 1 do artigo 268.° Essa matéria é clara, precisamos é de a implementar.
Por outro lado, existe um segundo ponto que é muito importante e sobre o qual existe uma lacuna na lei, e até normas ordinárias e práticas administrativas que são contrárias, e que é o de garantir a quem tenha algum interesse nisso o acesso aos arquivos públicos e aos arquivos administrativos.
Há um terceiro ponto que sobressai da proposta do PRD e que é o seguinte: admite-se que mesmo em relação a processos que não estejam ainda na situação de arquivo, estejam in itinere, haja a possibilidade de conhecimento por parte de cidadãos, incluindo pessoas colectivas, interessados como terceiros.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou em relação a interesses difusos, Sr. Presidente.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sobretudo, associações de defesa da moralidade administrativa.
O Sr. Presidente: - Esta é uma matéria que tem muita delicadeza. Gostaria de sublinhar essa delicadeza porque esta publicização da fiscalização como uma espécie de acção popular dada aos cidadãos na fase pré-contenciosa, no procedimento administrativo, tem as suas vantagens, mas também tem os seus inconvenientes. Pode-se dizer que isso é um problema de regulamentação do sigilo. O sigilo é o aspecto mais aparente, mais claro, mas há outros pontos que não podem, pura e simplesmente, ser considerados sigilosos, mas em que importa ter alguma atenção. Já agora permitia-me observar um deles: fala-se aqui na actividade administrativa e na Administração Pública. VV. Exas. sabem muito bem que hoje, cada vez mais, a Administração Pública também actua por processo de direito privado. Será que VV. Exas. querem estender os mesmos princípios aos processos de direito privado? Esta questão é-me suscitada pela redacção do PRD. Isso pode ocasionar outro tipo de questões. Se não for assim, poderá haver um incitamento à utilização dos procedimentos de direito privado por parte da Administração. Há ainda outros casos em que as pessoas colectivas de direito privado são, indubitavelmente, pessoas colectivas que integram a Administração. Noutras circunstâncias, o grau de participação dos privados na Administração pode dificultar muito a sua qualificação como integrando ou não a Administração Pública em sentido subjectivo organizatório. Esta não é uma questão tão teórica como isso porque o problema já se tem colocado nalguns países onde justamente a fiscalização da actividade administrativa exercida por processos de direito privado é uma matéria da ordem do dia. Penso, por exemplo, nas célebres reuniões anuais dos professores de direito público alemão.
Preferia trabalhar numa hipótese do tipo daquela que é aventada pelo Partido Socialista. No entanto, temos que ponderar se não se deverão introduzir alguns outros elementos a ter em consideração na parte restritiva ou, em alternativa, uma fórmula eventualmente mais genérica e cometendo depois à lei ordinária a possibilidade de disciplinar mais em pormenor este aspecto. Penso que isto é preferível a uma formulação que aponte tão directamente, como o faz o PRD, para uma viragem de 180 graus em matéria de acesso aos processos administrativos por parte de terceiros.
Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, insistiria em que essa é a grande novidade no projecto do PRD. A intenção não é apenas a da transparência, mas também a da moralização da Administração - essa seria a peça essencial. Descobrir-se depois, anos passados, que certos processos não foram transparentes não resolve normalmente nada. A função preventiva do acesso à Administração decorreria essencialmente da possibilidade de acesso na fase de andamento dos processos.
É evidente que temos exacta consciência dos melindres que um regime destes coloca. Por isso fomos tão abertos na definição dos limites: o acesso será possível
em tudo aquilo que não seja por lei, absoluta ou relativamente, reservado. Isto significa que a lei haveria de delimitar os casos, designadamente para protecção não da intimidade administrativa, mas de legítima confidencialidade. É o caso, por exemplo, dos particulares que lidam com a Administração e que apresentam, por hipótese, um processo peculiar ou relativamente original que seja protegido. A nossa flexibilidade na remissão para a lei e na abertura e amplitude com que pretendemos que o legislador se possa mover é a contrapartida de irmos ao ponto de admitir que haja acesso durante o processo administrativo, que permita explicar, por exemplo, por que é que se comprou um tipo de avião, e não outro. E óbvio que, se os processos se puderem tornar públicos e se generalizar em Portugal aquilo que é fundamental e que é a constituição de organização de defesa da moralidade administrativa, as coisas não se passarão como, algumas vezes, se suspeita que se passam.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, mas quando se fala em organizações que zelam pela moralidade administrativa está-se a fazer algo de muito importante e que é circunscrever o círculo dos legitimados a algumas entidades que podem encontrar-se submetidas a regras muito particulares.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, não excluiria que se previsse isso.
O Sr. Presidente: - Isso, por exemplo, sem resolver integralmente as dificuldades...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não pretenderia com isso que estas faculdades fossem usadas por concorrentes.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, aí quando existem ilegalidades já há meios técnicos.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, refiro-me não aos concorrentes, mas, sim, a concursos por competidores na zona. Não excluiria que isso se limitasse assim.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, uma questão ao Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, depois desta explicação que deu, preferindo, nos termos da proposta do PRD, a elaboração de uma cláusula geral de publicidade em detrimento da solução - como o faz a proposta do PS - da precisão dos domínios aos quais não se aplica o princípio da publicidade, que era a seguinte: entende que nesse domínio do acesso aos documentos da Administração a Constituição é aberta e a legislação ordinária não está limitada a poder colmatar essa zona? Esta referência do PRD, tal como está expressa, pode ser nalguma medida inútil porque a lei ordinária pode existir e resolver o problema, sem se adiantar nada com esta precisão constitucional.
Vozes.
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O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
O Sr. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de me pronunciar sobre as propostas do Partido Comunista, do Partido Socialista e do Partido Renovador Democrático, mais concretamente sobre o problema da transparência da Administração e do acesso dos cidadãos aos seus documentos e arquivos.
A primeira questão que se colocou com estas propostas - e que foi claramente sublinhada pelo Sr. Deputado José Magalhães - foi a da criação de um novo conceito de legitimidade. Isto é, no âmbito do acesso dos cidadãos à informação da Administração criou-se um alargamento da noção de legitimidade em relação àquela que vem delimitada no âmbito do contencioso administrativo. As três propostas comportam um sentido de legitimidade que extravaza o nexo de interesse directo legítimo ou de direito subjectivo que está na base do acesso aos tribunais administrativos.
A primeira questão que se coloca aqui é exactamente a da concatenação da legitimidade no âmbito do contencioso com esta legitimidade que aqui se abre no âmbito das propostas. A questão é esta e o Sr. Presidente referiu-se a ela muito claramente. É o problema do acesso de terceiros a processos que não lhes dizem directamente respeito. As fórmulas das propostas são excessivamente abertas e comportam um certo sentido de legitimidade, com alguns tónus moderadores - é o caso das propostas do Partido Socialista e do Partido Renovador Democrático -, mas que nem por isso deixam de causar algumas preocupações.
Esta ideia de legitimidade aberta a terceiros, isto é, a possibilidade do acesso dos cidadãos à Administração em processos em relação aos quais não há aquele nexo de titularidade de direito ou de interesse legítimo, choca ou não com a eficácia da Administração? Mais: choca ou não com a razão de ser do próprio acesso à informação? Parece-me que o problema do alargamento da noção de legitimidade exige uma pergunta num outro nível e que é a seguinte: o problema do acesso é um problema com vista à defesa de direitos ou é um problema com vista ao controle da Administração? Se é um problema com vista à defesa de direitos, é muito importante que se mantenha este nexo de titularidade e que se ponham alguns freios no alargamento da legitimidade ou na criação da nova noção de legitimidade, como, aliás, referia o Sr. Deputado José Magalhães. É que em meu entender o controle da Administração não é uma incumbência directa dos cidadãos. Faz-se no âmbito do controle inter-orgânico pelos tribunais administrativos e mesmo através do controle difuso de normas no âmbito do controle da constitucionalidade.
O interesse da informação visa directamente a salvaguarda dos direitos dos cidadãos e nessa medida exige uma conformação concreta no âmbito da legitimidade destes no acesso à Administração. Essa questão é fundamental. Há que saber se ò problema da legitimidade deve estar ou não no seu âmbito de acordo com a função que desenvolve o acesso dos cidadãos à Administração nestes dois sentidos que referi e que são os seguintes: ou a defesa de direitos ou controle da Administração ou as duas coisas.
Pretendia deixar claro que, em meu entender, há aqui um choque desnecessário entre o alargamento do conceito de legitimidade e a necessária eficácia da Administração, o necessário arredar de um certo caos no seu funcionamento e, de certo modo, um necessário acautelar da necessidade que tem a Administração, no âmbito da defesa clara dos direitos dos administrados, de desenvolver a sua finalidade de defesa do interesse público. Há de facto margens de abertura muito grandes deixadas pelas presentes propostas: não foi só a do PRD, no meu entender, que o fez - e o Sr. Deputado Rui Machete referiu-se também, aliás, às outras - o PS põe alguns limites, o PCP põe muito menos, põe tão poucos que a lei fica aqui com a possibilidade de criar um novo conceito de legitimidade desfasada do próprio interesse que ele pretende preservar. Para dar um exemplo concreto, o número proposto pelo PCP não acautela a diferença entre os actos administrativos de eficácia externa e actos administrativos de eficácia interna. Haveria um acesso em bloco, indiscriminado, desnecessário, de quaisquer cidadãos a quaisquer processos relativamente a quaisquer interesses, o que, no nosso entender, é excessivo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A Sra. Deputada estava a fazer do preceito a mesma leitura feita em relação ao preceito do actual artigo 267.°, n.° 4, quanto à participação dos cidadãos na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito...
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É totalmente diferente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sra. Deputada. Evoco o debate que aí tivemos com o Sr. Deputado Rui Machete sobre esta matéria e a reflexão que foi feita quanto à delimitação do alcance desse normativo. Ninguém sustenta que conduza à necessidade de sentar ao lado do administrador o cidadão para que este acompanhe, a par e passo, tudo o que lhe diga respeito, em todos os momentos da formação da decisão, incluindo em todos os momentos que antecedem, naturalmente, a publicitação da decisão. Não há ninguém na doutrina, não há ninguém na jurisprudência que interprete o preceito nesses termos, tal como não haverá ninguém que interprete como V. Exa. fez um preceito como este que o PCP apresenta. Obviamente pode ser melhorado e, nesse sentido, a sua intervenção é uma contribuição, mas é insustentável que o nosso texto implique que, ao lado do Ministro da Defesa Nacional, sentemos o cidadão interessadíssimo em saber o que é que vai acontecer às relações com os EUA em geral, à estação de rastreio de Almodôvar em concreto, para dizer ao Ministro: "Não, não, eu quero saber tudo o que tu estás a preparar sobre esta matéria, e, designadamente, o que consta da última mensagem contida em disquette entre a Administração americana e o teu Ministério. Diz-me imediatamente porque o artigo 267.°, n.° 5, aprovado na revisão constitucional garante-me o acesso a todos os documentos, incluindo naturalmente todos os suportes computadorizados."
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, não resisto a dizer que a experiência revela que, por vezes, há requerimentos desse tipo.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - E a experiência revela qual é o seu destino, Sr. Deputado.
A Sr." Maria da Assunção Esteves (PSD): - Se me permite, creio que é preciso pôr muito tempero para entender que esta interpretação não pode chegar a esses factos, porque pode. Ò que o Sr. Deputado tem aqui no n.° 5 dá perfeitamente para essas hipóteses bizarras que adiantou...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas V. Exa. conhece seguramente a legislação francesa e canadiana. Não apareceu nunca nenhuma criatura avestruzesca a sustentar que ela conduzisse a essa colocação do cidadão "no colo" da Administração, para lhe ouvir da boca e do ouvido, directamente, tudo o que é o arfar íntimo da preparação das decisões. Não há ninguém que o sustente! Claro que a norma pode ser redigida em termos da acautelar, ao milímetro, mesmo a preocupação mais inquieta do coração mais estremecido, é óbvio... Parece-me, contudo, que V. Exa. está a fazer uma interpretação absolutamente ad terrorem de um preceito que tem fronteiras. V. Exa. coloca-o como se ele se situasse na estratosfera, sem fronteiras nenhumas...
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Temos que a fazer. Aliás, o Sr. Deputado foi bastante cauteloso e, de certo modo, timorato, quando no n.° 5 se referiu a um novo conceito de legitimidade, porque sabia perfeitamente que isso iria ser desbravado aqui. Estamos a fazer leis ou a revê-las e temos de ter todos os cuidados com as consequências últimas a que determinadas fórmulas de redacção podem de modo laxista conduzir. É melhor evitar esse laxismo e ver até que ponto é que esta franqueza toda do n.° 5 proposto pelo PCP pode levar em matéria de acesso, desnecessário, porque não conexo com os seus interesses, dos cidadãos à Administração.
Era isto que eu pretendia dizer e, aliás, o Sr. Deputado interrompeu-me quase no fim da minha intervenção.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pretendia fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, com vista a situar qual possa ser a margem de novidade e qual a margem de consolidação decorrente da proposta do PRD.
Actualmente, a lei de processo dos tribunais administrativos, na sequência de uma tormenta evolução (refiro-me ao Decreto-Lei n.° 267/85, de 16 de Julho), veio prever nos artigos 82.° a 85.° um mecanismo novo que se chama a intimação para consulta de documentos e passagem de certidões. Nos termos desse mecanismo, nos casos em que isso vise permitir o uso de meios contenciosos ou administrativos, as autoridades públicas são obrigadas a facultar a consulta de documentos ou processos e a passar certidões a requerimento do interessado ou do Ministério Público num determinado prazo, salvo em matérias secretas ou confidenciais. Decorrido esse prazo, o requerente pode, dentro de um mês, pedir ao tribunal administrativo de círculo a intimação da autoridade para satisfazer o pedido. O processo tem um carácter urgente e, ao que agora importa, podem considerar-se matérias secretas ou confidenciais apenas aquelas em que a reserva se imponha para a prossecução do interesse público especial relevante, designadamente em questões de defesa nacional, segurança interna, política externa ou para tutela de direitos fundamentais dos cidadãos, em especial o respeito da intimidade da vida privada e familiar. Qual é a margem de inovação que o texto do PRD comporta? Tenho alguma dificuldade em ver que haja alguma margem de inovação.
O Sr. Presidente: - Em relação à solução actual?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Em relação à Lei de Processo dos Tribunais Administrativos.
O Sr. Presidente: - Oh, Sr. Deputado!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - O PRD, das duas uma: ou mantém a mesma noção de legitimidade ou altera a noção de legitimidade e, nesse caso, altera-a nos mesmos termos que o PCP. só que sem o benefício de consagração de uma cláusula como aquela que consta do número que tenho vindo a citar do nosso projecto n.° 2/V.
O Sr. Presidente: - V. Exa. interpreta a proposta do PCP em relação ao artigo 267.°, n.° 5, como abrangendo obviamente aquilo que é dito na proposta do PRD?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sim, é evidente...
O Sr. Presidente: - Então a proposta do PCP é muito mais perigosa do que eu tinha pensado. Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)
[...] um pouco pela argumentação da Sra. Deputada Assunção Esteves, por uma questão de ordem lógica da proposta.
Creio que há aqui três níveis, e reconheço que talvez a proposta do PRD não tenha feito a distinção tão clara quanto possível entre dois níveis.
Há um primeiro nível, hoje coberto pelo n.° 1 do artigo 268.°, que é o direito de acesso dos interessados - dos titulares de direito subjectivo ou de interesse legítimo, ou seja, aqueles que teriam legitimidade para interpor recurso contencioso do acto - aos processos administrativos graciosos que lhes digam respeito. É a matéria - e agora respondo também ao Sr. Deputado José Magalhães - hoje coberta pela Lei do Processo dos Tribunais Administrativos. Aqui creio que não há controvérsia, pois já está consagrado na Constituição, estando esta norma repetida no nosso projecto (retomámos o n.° 1 do artigo 268.° e acrescentámos algo). Tendo-se mantido esse ponto, não há, pois, novidade nenhuma.
Há depois dois outros níveis: o acesso aos registos ou arquivos e às decisões tomadas - a fórmula não é talvez muito feliz -, domínio em que penso haver coincidência entre as propostas do PS, do PCP e o espírito da proposta do PRD, embora reconheça que
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neste ponto deveria estar melhor formulada. Neste caso, não se trata da salvaguarda de interesses ou direitos dos cidadãos enquanto administrados; trata-se essencialmente da salvaguarda do direito à informação e eventualmente de uma função de moralização administrativa. Mas o direito que está aqui em causa não é obviamente o direito do administrado enquanto administrado: é o direito à informação dos cidadãos em geral...
O Sr. Presidente: - Uti civis.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - E aí reconheço que talvez fosse preferível fazer aqui (como o PS fez, embora não concorde exactamente com a delimitação que estabelece) a indicação genérica dos critérios que podem excluir o acesso a registos e arquivos.
Há um terceiro ponto - é esta a novidade do projecto do PRD -, que consiste no acesso dos cidadãos, não enquanto administrados, a processos em curso. E é isto que é a verdadeira Administração aberta - o resto não é!
O Sr. Presidente: - Também é...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Isto é que é a verdadeira Administração aberta em todo o sentido...
O Sr. Presidente: - À escandinava.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - À escandinava, se quiser. E, digamos, a transparência dos processos administrativos no seu curso. Não se trata essencialmente do direito à informação, embora este possa estar presente; trata-se sobretudo de reconhecer a publicidade da actividade administrativa in itinere como instrumento de moralização administrativa. E aí, sim, reconheço que os limites têm de ser particularmente cuidadosos, ou melhor, reconheço que a liberdade de o legislador ordinário definir limites tem de ser particularmente ampla.
Reconheço que na nossa proposta talvez devêssemos ter distinguido estes dois últimos níveis. Em todo o caso, o ponto de novidade - e adiro aqui fundamentalmente à solução do PS, embora acrescentasse aos critérios referidos pelo menos certos sectores da política externa com certos limites, ou os interesses do Estado nas relações externas, mais precisamente, e os direitos fundamentais das pessoas - é este último, que não tem nada a ver com questões de legitimidade; trata-se da publicidade in itinere da actividade administrativa como forma de moralização administrativa.
Respondendo agora ao Sr. Deputado Alberto Martins, creio que neste momento não há nada na Constituição que proíba o legislador ordinário de estabelecer isto mesmo. Ou seja, não é necessário alterar a Constituição para que o legislador ordinário possa consagrar isto; trata-se, sim, de o estabelecer ao nível constitucional, em vez de o fazer ao nível ordinário, ainda que esta consagração ao nível constitucional se entenda como não executória por si própria e mesmo que se adopte uma fórmula pela qual se deva entender que a consignação de uma regra constitucional deste tipo não é exequível ou não é aplicável senão uma vez
entrada em vigor uma lei que defina o regime de execução. É evidente que há um impulso constitucional e que haverá inconstitucionalidade por omissão se o legislador não o fizer, etc. Nesse caso a situação muda substancialmente. Mas hoje nada impede o legislador ordinário de estabelecer um regime destes. Ou não é assim?
O Sr. Presidente: - Nessa matéria, é.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É um tema em discussão: Não digo, é óbvio, que tenha de ser assim...
O Sr. Presidente: - Para dizer a verdade, não é nada óbvio mesmo...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Era desejável que fosse assim, era desejável sobretudo que pudesse ser assim!
O Sr. Presidente: - Para dizer a verdade, tenho algumas dúvidas nalguns pontos, mesmo em termos de desejabilidade; não quanto necessariamente a que a Administração proceda sempre correctamente e com transparência...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - Mas tenho grandes dúvidas em que se justifique a atribuição ao cidadão qua tale de uma actividade de fiscalização directa da Administração Pública. Isso significa um certo grau de publicização hoc sensu das relações entre os cidadãos e a Administração Pública que pode conduzir, por uma via relativamente ínvia, ao enfraquecimento de situações subjectivas de direito público dos particulares face à Administração. É uma via mais difusa do que aquilo que hoje já de algum modo resulta, numa certa interpretação da acção pública, do papel do Ministério Público ao poder recorrer de actos administrativos com incidência nas situações jurídicas desses particulares quando os particulares não o fazem. E isso é algo que se, por um lado, protege a legalidade, por outro, enfraquece a chamada legalidade subjectiva. Se bem que esta questão tenha os seus "quês", não é assim tão óbvia, embora reconheça que é um ponto extremamente importante. E é evidente que quando se cita o exemplo escandinavo não podemos também esquecer que a Administração escandinava é muito diferente, na sua conformação e na sua cultura, da estrutura napoleónica da nossa Administração, muito embora a estrutura napoleónica da nossa Administração não seja, ao contrário do que diz o Sr. Deputado José Magalhães, necessariamente militarizada no sentido depreciativo em que ele usou a expressão - isso é outra história.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Estava a pensar no caso português em particular, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Depois do debate que estamos a travar, porventura não virei trazer nada de
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novo. Porém, esta matéria é na verdade uma daquelas matérias que pela sua natureza tornam o sentido deste debate bastante fluido, para não dizer movediço, dado que as restrições a fazer têm de ser bastante bem ponderadas. O impulso dado por algumas propostas é, nalguns aspectos, significativamente diverso e é isso que eu gostaria de voltar a sublinhar.
Enquanto o PS, no seu n.° 1 do artigo 268.°, admite que o direito de acesso se faça a arquivos e registos com as excepções consignadas neste mesmo número, comparando esta proposta com a do PCP, verifica-se que o direito de acesso que o PCP propõe é, sem excepção, a documentos e arquivos e portanto a todos os processos pendentes, o que configura um direito de acesso não apenas aos directamente interessados sobre processos em vias de decisão mas também a terceiros. Cria-se, assim, uma legitimidade genérica para o acesso, e - aqui permito-me dizê-lo - para devassa do processo administrativo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, temo que a sua linha de raciocínio o conduza ao inferno, porque a lógica da Administração aberta é precisamente essa que parece repudiar. De facto, a abertura da Administração aos próprios interessados é um fenómeno que 1976 captámos constitucionalmente, na sequência de uma evolução que vinha muito de trás e que passava por uma luta contra o secretismo que protegia a Administração em relação aos próprios directissimamente interessados. O desafio, a "parada" moderna, a reflexão inovadora cifra-se em saber do acesso dos outros, do acesso dos grupos de cidadãos dos grupos de consumidores, dos grupos dos moradores, dos grupos dos atingidos, por exemplo, por uma medida administrativa de instalação de uma central nuclear no seu distrito. Essa é que é a novidade relevante, a eclosão desses processos que dizem respeito a interesses difusos, a interesses de terceiros... Por exemplo, tenho imenso interesse em saber o que é que a sociedade Estoril Sol está a congeminar para a área do Estoril. Obviamente, não posso saber tudo (como Deputado - está visto - não posso saber quase nada). Mas é evidente que como cidadão tenho imenso interesse em saber algumas coisas. Entende V. Exa. que isso é "uma devassa"?
Vozes.
É que isso faz-nos perder nos labirintos de uma pirâmide de secretismo, em que V. Exa. vai de recuo em recuo até ao Estado napoleónico, e adora! E isso é o contrário da reflexão moderna, não digo, sequer, no pensamento socialista europeu, mas no pensamento democrático comum, comezinho, tal qual foi há pouco invocado pelo Sr. Deputado Alberto Martins, quando evocava o famoso colóquio de Graz. Essa evolução é hoje partilhada por muitas famílias políticas europeias, com excepção naturalmente daquelas que estão dominadas pelas tempestades neo-liberais ou que andam "em parafuso", em busca de identidade.
O conjunto das preocupações que o Sr. Deputado revela em relação a terceiros são respeitáveis na medida em que ninguém propõe o que receia. Se V. Exa. tiver o cuidado de ler, por exemplo, por gentileza, numa tarde destas, o Projecto n.° 337 V do PCP, em que se explicita com abundância de conceitos, de noções, de
cautelas, de salvaguardas, em que é que se traduz o direito de acesso, encontrará aí, por exemplo, uma tentativa, razoável e equilibrada de delimitar os contornos desse acesso, que não pode ser total, como é evidente, Sr. Deputado Jorge Lacão.
Mas, para uma solução normativa ser interessante, para "rebentar" com o conceito tradicional de legitimidade, tem de permitir que terceiros, assim entendidos, tenham acesso a certas informações, com salvaguarda de outros valores, como é óbvio. Mas é acesso de terceiros, e isso não é "devassa", é a alma mesma da Administração aberta. Era apenas isto que eu gostava que o Sr. Deputado pudesse ter em consideração porque, de contrário, recua ao século XIX.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - O Sr. Deputado José Magalhães, como se viu, precipitou-se. Referi-me à proposta do n.° 5 do artigo 267.° e qualifiquei-a como abrindo para uma lógica de devassa da actividade administrativa, e mantenho essa afirmação, na medida em que a proposta do PCP não é compensada com quaisquer princípios restritivos. Ora o princípio da transparência, até para ter credibilidade, tem que ser compensado com algumas cautelas restritivas. Uma delas será o princípio da reserva em atenção à natureza das matérias que estiverem sob apreciação. A outra implica, em atenção à confidencialidade e à necessidade de proteger interesses legítimos de terceiros. Não tendo o PCP curado de aflorar o sentido das restrições a fazer, naturalmente fica susceptível de receber o tipo de críticas que lhe fiz.
Se o Sr. Deputado José Magalhães reflectir na diferença e no cuidado que vai entre a proposta do PCP e aquela que o PS apresentou verificará que o direito apresentado pelo PS, sendo mitigado, é duplamente mitigado em atenção a um princípio de reserva, face à natureza objectiva de certas matérias e por outro lado à necessidade de garantir certo tipo de confidencialidade, em atenção às pessoas. Diria que a proposta do PS até vai demasiado longe, porque quando o PS refere que o direito de acesso é excepcionado nas matérias relativas à segurança e defesa do Estado e à investigação criminal e à identidade das pessoas, esta regra de excepção porventura é, ela própria, demasiado ampla. Não está demonstrado que todas as matérias relativas à segurança e defesa do Estado afectem necessariamente a segurança e a defesa do Estado. Isto significa que também o PS está em condições de reflectir sobre o sentido da sua proposta e verificar que, sobretudo naqueles documentos que fazem história, que tiveram ligação com matérias de segurança e defesa do Estado, o princípio da restrição não deve manter-se só em atenção à sua natureza, mas apenas elas afectarem efectivamente a segurança e a defesa. Isto conduzirá a que o PS, ele próprio, possa ponderar um sentido mais flexível para a sua própria proposta.
Como vê, Sr. Deputado José Magalhães, não estamos a reflectir à luz do princípio da arcana praxis, mas, bem pelo contrário, na tentativa de um impulso constitucional que caminhe efectivamente no sentido da administração aberta.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, fico muito satisfeito, mas gostaria de formular uma pergunta ao Sr. Deputado Jorge Lacão, depois do almoço.
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O Sr. Jorge Lacão (PS): - Depois do almoço? Formule já.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, se bem percebi, o Sr. Deputado considera absolutamente imprescindível que se estabeleça a excepção na própria definição da regra. V. Exa. não considera que se possa estabelecer a proclamação da administração aberta sem a seguir dizer que a administração é aberta ma non troppo e que, portanto, há segredo de Estado, há imperativos e valores relacionados com a segurança, com a investigação criminal e intimidade das pessoas, que devem ser respeitados. É evidente que isso flui de outros compartimentos da Constituição e, portanto, a materialização desses valores constitucionais pode fazer-se nesta sede, ou não...
O único problema é que isso não se faça em termos tais que esvazie de sentido e de conteúdo o próprio normativo e a própria proclamação. É essa a única preocupação que nos rege. Gostava de dizer na formulação desses valores que é preciso ter muito cuidado. A alusão à "segurança do Estado" é qualquer coisa que não figura nas leis posteriores ao 25 de Abril e ce n'est pas par hazard ...
Vozes.
... Suponho que pesa nisso a memória da "polícia de segurança e defesa do Estado". A substituição dessa noção pela noção de segurança interna foi operada por boas razões...
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Resolve-se facilmente com a precisão conceptual de segurança interna e do Estado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso é desejável a todos os títulos, como é óbvio, por todas as razões. De qualquer das formas, nunca devia figurar como cláusula num preceito deste tipo e menos ainda introduzir-se por esta via a noção na Constituição. Nesse caso, a boa, boa intenção, conduzia a um péssimo, péssimo resultado. Valeria mais o efeito decorrente da restrição do que o bem decorrente da consagração da noção de Administração aberta. Creio que essa cláusula seria desastrosa e para isso gostaria de alertar.
V. Exa. dissocia-se das noções de arcana praxis e ainda bem, porque seria aberrante, em pleno ano de 1988, repor por qualquer via essa bafienta noção. Alertava-o só para o facto de, ao fixar uma restrição, ser preciso ter cuidado, senão deixam entrar pela clarabóia aquilo que muito bem quiseram excluir, a pontapé, pela porta principal. Está de acordo com a reformulação da proposta?
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Rapidamente, Sr. Deputado. O princípio restrito que o PS referiu pode ser compensado não exclusivamente em relação às matérias, mas quando essas matérias efectivamente afectem os valores que importa proteger. E neste caso os valores que importa proteger, estamos facilmente de acordo em precisá-los conceptualmente e distinguir a noção de segurança interna da noção de defesa interna do Estado.
O Sr. Presidente: - Suponho que podemos considerar encerrada esta discussão/dilucidação sobre a Administração aberta. Iremos depois prosseguir.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ficámos com dúvida sobre a posição do PSD ...
O Sr. Presidente: - Não ficámos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Suponho que esta não é a questão-chave que impede o acordo entre o PS e o PSD. Em todo o caso, é uma questão importante e honrada.
O Sr. Presidente: - Não ficámos. Eu explicitei que a ideia da Administração aberta tem a nossa concordância de princípio. É uma questão de formulação que é extremamente interessante. Prevenimos contras as dificuldades da inovação que o PRD apresentou e que compreendemos os seus intuitos nobres, mas parece que não podemos acompanhar as formulações apresentadas. Ficámos também esclarecidos que a proposta do PCP englobava as inovações do PRD; portanto, também não a acompanhamos, e isso foi um esclarecimento muito útil por parte do PCP porque inicialmente a formulação não era tão clara. Resta-nos dizer que haverá que afinar aspectos importantes da proposta do PS, mas que o PSD admite, em princípio, ir mais além do que daquilo que está hoje estritamente consignado no artigo 268.°, n.° 1.
Srs. Deputados, está suspensa a reunião.
Eram 13 horas e 5 minutos,
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.
Eram 16 horas.
O Sr. Presidente: - Prosseguimos a análise do artigo 268.° O problema é que nesta matéria não há propostas de alteração, a não ser a do CDS, que não está presente, e a do PCP, que também ainda não está presente. Há uma proposta do PS complementar daquilo que propôs em matéria de Administração aberta. Solicitava ao PS uma breve justificação, querendo, para depois passarmos a outros números. Tem um n.° 5, de aditamento. É o silêncio. Não, o que sugeria é que falasse sobre o silêncio.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Creio que já fiz a explicitação disso. Direi que é uma medida de defesa, relativamente ao princípio do indeferimento tácito, admitindo a possibilidade do recurso contencioso. A proposta exprime-se por si mesma, na sua clareza.
O Sr. Presidente: - Tenho algumas dúvidas e que são estas. Em primeiro lugar, a lei ordinária já trata, de uma maneira clara, do chamado indeferimento tácito. Por outra parte, a consagração do indeferimento tácito, constitucionalmente limitada a estes aspectos relativos ao direito de os cidadãos serem informados, portanto à recusa do acesso aos arquivos e registos administrativos, parece-me que vem, afinal de contas, a traduzir-se em algo que pode ter um significado involuntariamente negativo. Quer dizer, compreendo que o
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PS se preocupe em assegurar uma protecção jurisdicional contra a denegação de um direito fundamental, mas ela, de algum modo, já existe pela circunstância de, seja pela fórmula que está neste momento na Constituição, seja pela fórmula que o PSD preconiza ou a fórmula que o PCP adianta, se vir garantir o recurso contencioso contra actos da Administração Pública e para protecção de um interesse legítimo ou de um direito.
Ora bem, mesmo que se admita que o indeferimento tácito não é um acto, o que do ponto de vista dogmático me parece correcto, mas do ponto de vista do funcionamento se poderia passar por cima, a verdade é que sempre se diria que um direito constitucionalmente garantido, como é este, tinha a tutela, se não lhe fosse dada a defesa do recurso, da propositura da acção, por se tratar de um direito subjectivo, que lhe é reconhecido pela própria Constituição.
Quer dizer: no fundo, e em suma, julgo que, por um lado, se se pretendesse consignar constitucionalmente a ideia da recorribilidade do indeferimento tácito, essa consignação estaria feita de uma maneira demasiado circunscrita. Por outro lado, penso que a preocupação de defesa é inútil, porque já existem outros mecanismos de defesa suficientemente amplos para assegurar esse aspecto com que o PS se preocupa. Estas eram as minhas observações iniciais, que não são questões do princípio, são questões de pura técnica.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Devo transmitir a minha opinião, dizendo que me parecem razoáveis as considerações que apresentou.
O Sr. Presidente: - Iremos ver em sede de redacção, depois.
O Sr. Alberto Martins (PS): - É uma solução de garantia temporalizar o exercício do direito e não mais do que isso. Mas, de facto, a lei ordinária já resolve essa questão.
O Sr. Presidente: - A lei ordinária resolve por um lado e a Constituição garante por outro. Através, sobretudo, da possibilidade da defesa, por via de acção, ou do recurso, de um interesse legalmente protegido ou de um direito, isso está plenamente ressalvado, mesmo que se admitisse que o acto tácito não é um acto, por uma interpretação dogmática correcta, como penso que ela é.
Enquanto o PCP não chega iremos avançando. O PSD propôs um desdobramento do n.° 3. Este desdobramento tem, por um lado, uma supressão da qualificação dos actos administrativos como definitivos e executórios. Isto é, faz-se recair directamente a recorribilidade do acto na circunstância de ele lesar os direitos ou interesses legalmente protegidos. Isto não é uma modificação tão substancial como à primeira vista parece, mas o que se pretende é evitar algo, que foi muito nítido da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, e também um pouco na dogmática portuguesa, mas sobretudo na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, e que foi o de, ao formalizar excessivamente as características da definitividade e da executoriedade do acto, como nessa altura se entendia, acabar por diminuir as garantias de defesa do administrado, reduzindo as possibilidades de recurso contencioso. Isto é, ao aceitar que o acto definitivo e executório é um tipo rigorosamente definido por notas de carácter formal, veio-se a excluir a recorribilidade em relação a actos que não obedeciam a esse tipo assim rigorosamente definido, quando na realidade se verifica...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] isto resolve um disparate que o Supremo sistematicamente cometeu, embora um ilustre conselheiro me tenha dito que tinha muita pena de não ter seguido, em certa altura, uma das minhas alegações e que estava à espera do próximo recurso para o fazer. Trata-se da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo - que, a meu ver, era completamente destituída de fundamento -, baseada na noção de acto definitivo (diria que numa certa confusão quanto ao conceito de actos definitivos), que consistia em recusar recurso contencioso da suspensão preventiva em processo disciplinar. Era para isso invocado o argumento de que não se tratava de um acto definitivo. Não era definitivo num sentido, mas já o era noutro. Julgo que essa ainda é a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que, aliás, não tem o mínimo sentido, porque o interesse é lesado.
v O Sr. Presidente: - É porque, no fundo, o problema é este. É muito curioso que, do ponto de vista da jurisdição administrativa, cada vez é mais relevante a questão do interesse protegido, do interesse legítimo ou do direito subjectivo que é feito valer em juízo. No fundo, repare, por exemplo, na incongruência que existia em problemas deste tipo. Dizia-se: o acto nulo não produz efeitos, portanto, por definição, não é um acto executório. Em todo o caso podia-se, interpor um recurso de um acto nulo.. É claro que aí o Supremo Tribunal Administrativo nunca tirou as ilações formalistas...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Teve sensatez.
O Sr. Presidente: - Teve sensatez e seguiu o Manual do Dr. Marcello Caetano. Mas isto significa que, na realidade, os problemas, quando surgem situações marginais o tribunal tem sido sensível, e bem, e quando se afere todos os aspectos da defesa do interessado, é à sua situação subjectiva, e não ao problema do acto. É cada vez mais trasladado o ponto de incidência do acto para a situação subjectiva que é feita valer em juízo, como ela se conformar.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O risco que esta formulação pode criar é o de se vir eventualmente a discutir se pode continuar a existir recurso hierárquico necessário.
O Sr. Presidente: - Exacto.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas creio, apesar de tudo, que a jurisprudência interpretará isso com a sensatez necessária. Podia tentar-se aqui retocar a fórmula para esse efeito sem falar de acto definitivo, mas...
O Sr. Presidente: - O problema, efectivamente, é esse; aliás, há pouco o Dr. Costa Andrade, em con-
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versa comigo, salientava essa dificuldade, o que significa que mesmo os jus-penalistas, quando são bons, são sensíveis a esses aspecto do direito administrativo; é que pode entender-se que aí não há ainda uma afectação, porque, se houver, a questão pode colocar-se em termos diferentes, por exemplo nos chamados actos de duplo efeito, ou em determinados actos que não são típicos de duplo efeito mas que são actos normativos nuns aspectos e actos administrativos noutros. E o ponto decisivo é obviamente o da situação subjectiva do particular. Quer dizer, mesmo a impugnação directa dos regulamentos (iremos tratar disso daqui a pouco) é admitida quando eles produzem efeitos, como actos administrativos, isto é, sem interpositio de um acto de aplicação na situação subjectiva do particular, seja ela qualificada como de direito subjectivo ou de interesse legítimo.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É o célebre caso da cooperativa de leite da Madeira. Sim, talvez se pudesse acrescentar qualquer fórmula dizendo, por exemplo, "sem prejuízo de a lei poder fazer depender de recurso hierárquico ou de reclamação..."
O Sr. Presidente: - Pode ser uma sugestão útil.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que isso valeria a pena ser considerado na redacção final.
O Sr. Presidente: - Depois, o n.° 4, que, repito, é um desdobramento do n.° 3, destina-se apenas a evitar que se especifique que esta defesa directa do interesse legalmente protegido ou do direito seja feita, como diz a Constituição, pela via do recurso. Já o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais fala em acção. É uma querela que tinha justificação na altura em que havia uma grande distinção entre o recurso e a acção. Neste momento ela vai cada vez mais perdendo a sua relevância e a Constituição não tomava neste capítulo nenhuma posição, falava no acesso ao contencioso, deixando para a lei ordinária o saber se isso era por um recurso ou por uma acção.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sugeriria, mais uma vez, um ponto de redacção: que se retocasse ou se tentasse substituir esta fórmula do acesso ao contencioso, porque pode eventualmente ser interpretada no sentido de o contencioso só pode ser contencioso administrativo. Parece que na Constituição não devemos decidir se este meio da tutela não poderá ser realizado através dos tribunais judiciais.
O Sr. Presidente: - Mas repare que o que estava no n.° 3 era: "É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade (...) bem como para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido". A ideia é: sem prejuízo de outros meios de tutela existentes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O acesso à via jurisdicional, por exemplo.
O Sr. Presidente: - Mas é que o acesso à via jurisdicional, se for dito nestes termos, pode significar um recuo em relação ao que já existe.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - V. Exa. conhece o assunto bem melhor do que eu.
O Sr. Presidente: - A minha ideia é esta: estou inteiramente de acordo que não prejudique a possibilidade de outros meios de tutela, e isso pode ser dito! Agora, se retirarmos a ideia de que é um recurso contencioso, isto, que já foi uma vitória enorme e que ainda está timidamente consagrada, será completamente destruído. Não diz bem: é outro recurso qualquer, é outro meio...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Concedo, concedo!
O Sr. Presidente: - E acaba-se por perder.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Estou convencido!
O Sr. Presidente: - Depois disto, tínhamos o projecto do PCP, mas vamos, talvez, deixá-lo para quando o PCP estiver presente, dado tratar-se do seu projecto. Sendo assim, proponho a discussão do artigo 269.° "Regime da função pública".
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - É uma questão de pura redacção, de acordo com a ideia de que se pretendia aqui manter a redacção, que é mais tradicional, de referir "os funcionários e agentes do Estado" e não "trabalhadores da função pública".
O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso já foi uma batalha da primeira revisão.
O Sr. Presidente: - A matéria está dilucidada?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Está dilucidadíssima.
Uma voz: - São contrários?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Somos contrários em princípio.
O Sr. Presidente: - São contrários! Portanto, remetemos para aquilo que foi dito na primeira revisão. Nesta sede, está dilucidado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O mesmo se passa em relação ao artigo 271.°
O Sr. Presidente: - No artigo 271.° é exactamente a mesma coisa?! Não é precisamente a mesma coisa, não!
O Sr. Almeida Santos (PS): - É conexionar o actual artigo 271.° com o artigo 22.° Lá se diz: "praticadas no exercício e por causa do exercício". É também uma questão formal, um alinhamento de forma, mais nada.
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No artigo 22.° visa-se essa expressão num caso absolutamente paralelo. Não se compreende por que é que num caso se diz "praticadas no exercício e por causa dele" e no outro não se diz.
O Sr. Presidente: - Refere o artigo 271.°?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sim. Também é uma questão formal, é só para dizer que não vale a pena estarmos a perder muito tempo com isto.
O Sr. Presidente: - Está bem! No artigo 270.°...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)
(...) no artigo 271.° falámos em "funcionários". Lembro-me que foi uma discussão...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Exacto. Vocês quiseram corrigir depois e nós já não deixámos.
O Sr. Presidente: - Portanto, estas matérias estão esclarecidas com a leitura das actas da anterior revisão.
A seguir temos o artigo 270.°, em relação ao qual há uma proposta do PSD a propósito das restrições ao exercício de direitos, em que, como vêem, se diz: para além do "pessoal dos quadros permanentes em serviço efectivo que integre as estruturas das Forças Armadas e das forças de segurança". É uma...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Abrangendo o pessoal civil das Forças Armadas?
O Sr. Presidente: - Não, eu suponho que a ideia base...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, é para abranger o Sindicato da Polícia.
O Sr. Presidente: - A ideia base é para abranger a GNR e a PSP, ou mais exactamente aquilo que for considerado como militarizado, porque, como sabem, existe neste momento uma profunda discussão, não quanto à GNR, que se entende dever ser militarizada, mas porque se admite a "civilização" da PSP. Isto é, a discussão não é puramente política, mas também técnica de saber se a PSP, a exemplo do que acontece noutros países, caso da Espanha, não pode aproximar-se muito mais do estatuto dos funcionários civis, digamos assim, enquanto a GNR manterá a sua estrutura de corporação militarizada. Isso é um problema delicado, que tem vindo à baila a propósito das questões sindicais, mas não só, e que nós não decidiríamos aqui que corporações eram ou não militarizadas, mas aquelas que fossem consideradas militarizadas teriam o mesmo estatuto, em termos de restrição do exercício de direitos que têm os militares.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A instituição militarizada já hoje!
O Sr. Presidente: - Não, as forças de segurança.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não são militarizadas.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - As forças de segurança, mesmo que não sejam militarizadas.
O Sr. Presidente: - Tem razão.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Nesse ponto reservo a minha posição para momento ulterior, pois não conheço o assunto suficientemente. Esta proposta não me atrai. Mas reservo a minha posição...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Nós não propusemos nada porque também estamos numa posição altamente dubitativa. Neste momento não há nenhuma abertura. Pode ser que haja noutro, depois se verá.
Risos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, se V. Exa. tem demorado um pouco mais, tínhamos a revisão feita, talvez não toda, mas, enfim, já quase!
Risos.
Devo dizer-lhe o que já fizemos. Vimos os artigos 269.°, 270.° e 271.°, porque não havia artigos que o PCP tivesse proposto, e porque era uma simples dilucidação só das intenções das diversas propostas, e cada um ou remeteu para posições que tinha tomado anteriormente, ou, de uma maneira muito sucinta, explicitou a fundamentação das suas novas redacções.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O artigo 271.° ainda não discutimos...
O Sr. Presidente: - Não, o 271.° não.
O Sr. Almeida Santos (PS): - São só questões de linguagem.
O Sr. Presidente: - Analisámos também, explicámos, as propostas do PSD quanto ao artigo 268.°, e agora iríamos retomar o 268.° quanto à proposta do PCP. E também não discutimos as propostas da ID referentes ao artigo 271.°-A e 272.°, por não estar presente.
E, portanto, se V. Exa. quisesse, retomávamos o artigo 268.° Evidentemente que não obstaríamos a que, se tivesse algo de extremamente importante, se pronunciasse em matérias não apenas referentes ao artigo 268.°, mas recomeçaríamos neste, por ser o que nos falta de momento ver e terem VV. Exas. apresentado uma proposta.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me uma pergunta.
O Sr. Presidente: - Com certeza. Faça favor.
Pausa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Se foi começado o debate dos artigos 269.° e 270.°, exporia brevemente a nossa posição sobre essas matérias, antes de fazermos esse retorno.
O Sr. Presidente: - Ouviremos certamente as suas sucintas declarações. Tem V. Exa. a palavra.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Apenas solicitava, Sr. Presidente, que pudesse, caso entenda, proceder a uma sucinta informação sobre se há alguma inclinação de qualquer bancada no sentido de acolher as propostas do PSD nesta matéria?
O Sr. Presidente: - Não houve essa manifestação. Houve dúvidas, remeteu-se para uma ponderação em sede de redacção, ou houve manifestação...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Na parte do artigo 268.°?
O Sr. Presidente: - Não, não, na parte do artigo 269.°, e...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Quanto ao artigo 269.°, eu disse que foi uma disputa que já tivemos aquando da primeira revisão, não vendo razão nenhuma para reabrir esta disputa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, sobre a primeira matéria, não diria outra coisa! O PSD espalhou pelo seu projecto de revisão constitucional aquilo a que nós, PCP, vimos chamando aberturas para um outro Estado, que qualificamos de autoritário. Vemos esses afloramentos nas propostas do PSD sobre as matérias relacionadas com o segredo do Estado. Vemo-los, também, em relação a estes dois temas que aqui estão ora introduzidos: por um lado, a diminuição daquilo que em matéria de trabalhadores da função pública foi adquirido na primeira revisão e, por outro lado, a tentativa de regresso à noção de funcionários e agentes do Estado. Parece-nos um regresso indesejável, desde logo porque é proposto por aqueles mesmos que em matéria de política da função pública vêm praticando uma série de restrições, discriminações e outras formas de forte lesão dos interesses e dos direitos dos trabalhadores da função pública, que merecem o nosso combate concreto, e, naturalmente, a rejeição em todos os domínios, incluindo o domínio constitucional.
Devo dizer, aliás, que em matéria de trabalhadores da função pública tal qual são designados na Constituição, o Governo do PSD tem vindo a adoptar medidas que minam, em larga medida, o alcance fundamental do preceito contido no actual n.° 2. Embora o PSD aqui se limite a restaurar a designação originária da Constituição nesta matéria, o PSD no aparelho de Estado vem incumprindo o preceito na sua outra componente, na componente onde ele proíbe que alguém seja prejudicado ou beneficiado em virtude do exercício de quaisquer direitos políticos previstos na Constituição, nomeadamente por opção partidária.
Ó acesso à função pública, o acesso nas condições legais, está a ser perturbado pelo facto de, ladeando as regras sobre concurso público, estar a ser sistematicamente utilizado na função pública a entrevista pessoal como forma de subalternizar os juízos e consequências da avaliação dos currículo e das provas prestadas pelos candidatos. As leis ordinárias minam as regras sobre o acesso em função das qualidades; a entrevista do chefe leva à opção por determinados candidatos em detrimento de outros com base em juízos que, implicam discriminações de carácter político e a valoração em função da qualidade política, da cor política, e não da qualidade profissional, da competência para o acesso à função pública. Aliás, as condições de certos concursos já apontam, elas próprias, para certos perfis que só servem para certos candidatos, que por sua vez têm certa coloração. Isto acontece por demais na função pública, tal qual o PSD a imagina: alaranjada, maciçamente alaranjada e assente em mecanismos que acabam por valorizar perfidamente a opção partidária (isto é, a opção partidária laranja) em detrimento das demais coisas que precisamente a Constituição quis arredar através deste preceito. Mas, obviamente, esta é uma questão que transcende o âmbito da alteração normativa proposta pelo PSD. Trata-se de uma prática que inverte os objectivos constitucionais e que viola esta disposição constitucional; é tão grosseira que violaria, até, a redacção proposta pelo PSD.
Opomo-nos à alteração da norma vigente pelas mesmas razões que o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco evidenciava. Não se justifica que se regresse à redacção primitiva da Constituição.
Em relação ao aspecto suscitado pelo artigo 270. °, é conhecida a história normativa deste preceito. Aquilo que o PSD visa é alargar o número de casos de cidadãos com estatuto diminuído. Opomo-nos, naturalmente, a esse alargamento. Com que razões? As que decorrem da nossa própria posição em relação aos processos legislativos concretos, em que esta questão veio a ser abordada ao longo dos anos em Portugal. A experiência tida em relação às forças de segurança, designadamente em relação à PSD, o lamentável episódio do Regulamento Disciplinar da PSP e do contencioso co-envolvido, o lamentável episódio da obstrução à constituição da associação sindical da PSP, a escandalosa retenção dos respectivos estatutos (que cria, de resto, uma situação extremamente relevante em termos de apuramento de quais são os mecanismos através dos quais é possível defender, do ponto de vista procedimental, direitos consagrados) - tudo isto, Srs. Deputados, desaconselha que se consagre a opção que o PSD propõe.
Gostaria, Sr. Presidente, já agora, e a talhe de foice, de perguntar qual foi a inclinação registada nas diversas bancadas em relação a esta tendência perversa do PSD, em matéria de alargamento de restrições ao exercício de direitos, originando criação de mais cidadãos com diminuição de direitos quanto ao exercício?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, retirando-lhe o qualificativo de perverso, a inclinação não sei se foi perversa ou não, foi pouco receptícia à proposta do PSD.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Congratulo-me com esse facto, Sr. Presidente, e gostaria de juntar...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - É uma congratulação perversa!
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... a essa não inclinação a não inclinação do PCP, por todas as razões que enunciei.
O Sr. Presidente: - É um desequilíbrio!
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, é uma solidão do PSD que me parece positiva.
O Sr. Presidente: - Vamos então voltar ao artigo 268.° E o PCP pode continuar no uso da palavra, se quiser.
Em todo o caso, eu proporia que começássemos por discutir o n.° 4, visto que é autónomo em relação ao n.° 5, e talvez valesse a pena discutir o artigo número a número, porque porventura poderemos mais rapidamente chegar a conclusões. A não ser que prefira explicar tudo em conjunto, mas penso que era mais útil começar pelo n.° 4, arrumá-lo, e depois prosseguir.
É o n.° 4 proposto pelo PCP (suponho que é do PCP): "É igualmente garantido, nos temos da lei, o direito de impugnar directamente a validade de regulamentos que afectem direitos ou interesses." É do PCP, não é?
O Sr. José Magalhães (PCP): - É inequivocamente do PCP, Sr. Presidente!
O Sr. Presidente: - Não, o número a seguir é inequivocamente do PCP; este poderia não ser. Mas, enfim, vamos em frente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, eu dizia inequivocamente porquê precisamente aqui se aplica um princípio contrário à ideia sectária subjacente às palavras de V. Exa. Se alguma coisa se pode alegar nesta matéria, é que o PCP se faz porta-voz daquilo que tem sido sustentado a muitas vozes, e positivamente, a vozes policolores, neste domínio. O esforço que em Portugal, ao longo dos anos, foi feito no sentido de suprimir as limitações que vinham pendendo tradicionalmente em relação ao contencioso administrativo - e em particular em tudo o que diz respeito à impugnação directa de regulamentos - é um esforço partilhado por múltiplos sectores. Congratulamo-nos, aliás, com esse facto.
Na primeira revisão constitucional, procurou-se avançar em relação à suspensão de algumas das limitações existentes nesta matéria. Esse debate foi um debate fecundo. Em todo o caso, parece-nos que a experiência entretanto adquirida, legitima e exige que se dê um passo em frente. É esse passo em frente que o PCP propõe através desta proposta.
O Sr. Presidente: - Penso que a proposta do PCP é uma proposta que naturalmente representa um aumento das possibilidades de impugnação directa dos regulamentos, mas pessoalmente tenho dúvida dê que nós possamos dá-lo.
Isto é, como VV. Exas. se recordarão, durante muito tempo só se puderam impugnar os regulamentos locais. Os regulamentos da administração central só se poderiam impugnar apenas alguns tipos de regulamento e não outros, e de uma maneira indirecta. O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais deu um passo significativo em frente, distinguindo duas coisas, mantendo obviamente a solução para os regulamentos locais, em que a impugnabilidade é completa. Aí atende-se menos ao regulamento do que ao acto que lhe dá origem, e o acto é impugnável, e com ele o regulamento. Portando, as posturas e os regulamentos municipais são livremente impugnáveis.
Em relação aos regulamentos da administração central, acabou-se com a distinção de regulamentos que fossem do Governo e outros que o não fossem e caminhou-se no sentido de permitir que os regulamentos que fossem directamente aplicáveis, e, portanto, sem haver um interpositio de um acto administrativo de aplicação, fossem directa e imediatamente impugnados por quem se encontrasse em situação de legitimidde para o fazer. Isto significa que na prática se atende aos efeitos directos relativamente a situações subjectivas dos particulares, e nessa medida se tratam os regulamentos como quaisquer outros actos que produzam esses efeitos. Isso parece-me uma medida extremamente positiva e tem a vantagem de já existir.
Para além disso, não se aceitou a impugnação directa do regulamento, tratando-o como um acto normativo que fosse objecto de uma impugnação qua tale, mas admitiu-se, com maior largueza, a possibilidade de um recurso incidental, e por esta via conseguir-se a anulação do regulamento, sendo caso disso. Esta foi uma fórmula, aliás inspirada de algum modo nas técnicas da fiscalização da constitucionalidade que foram utilizadas para o Tribunal Constitucional, escolhida por evitar algo que pareceu perigoso, pois podia provocar a paralisia da acção administrativa pela possibilidade de uma impugnação directa por um círculo muito vasto de destinatários do acto. Principalmente em regulamentos da administração central esse círculo pode coincidir praticamente com todos os cidadãos, ainda por cima, embora fosse admissível que houvesse restrições, podendo lançar-se mão de institutos tão eficazes e tão céleres como o da suspensão de eficácia do acto, neste caso do regulamento.
Deste modo, mantenho essa posição, que me parece ser uma posição de prudência. Ainda não conheço casos de impugnação de regulamentos suficientemente numerosos para permitir tirar desde já uma lição desta experiência inovadora. Penso que ela encerra aspectos promissores, e que se justifica darmos tempo ao tempo, para que nesta matéria se faça uma certa estabilização da jurisprudência que exista, e depois, se for caso disso, irmos para a consagração de uma acção directa contra os regulamentos. Aliás, de uma maneira ou de outra, essas são as lições que nos dá o direito comparado, por vias muito diversificadas, mas que procuram todas elas ser prudentes.
Por conseguinte, a minha opinião pessoal, tendo naturalmente simpatia em relação aos intuitos de protecção da legalidade e dos cidadãos que são manifestados louvavelmente nesta proposta apresentada pelo PCP, é a de que ainda é cedo para caminharmos afoitamente para uma solução deste tipo, e aliás não sei se essa será a solução em concreto mais conveniente. Isso depende de uma experiência que está por realizar.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que foi extremamente positivo que rastreasse a evolução recente do direito positivo. Tivemo-la bem presente, precisamente para medir qual deveria ser a boa dimensão da cláusula constitucional a adoptar.
Se V. Exa. reparar bem, verificará que a cláusula constitucional proposta recebe e dá cobertura plena ao regime vigente. Remetendo-se aqui para a lei, à qual caberá definir os limites, o âmbito, a dimensão e a
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natureza da garantia, tudo o que o Sr. Presidente acabou de exprimir como exigências de prudência é susceptível de ser assegurado no terreno legal.
De resto, o problema que se pode colocar neste momento até é o inverso. Haverá que pensar se e em que medida o legislador ordinário não estará desconfortado pela inexistência de uma cláusula constitucional expressa, clara e directa, atinente a toda esta matéria...
O Sr. Presidente: - Mas é justamente esse princípio que eu ignoro. A minha ideia não é a de que se tornasse necessário haver uma garantia constitucional expressa deste tipo para que se pudesse consagrar o regime que se consignou.
Neste sentido, não vejo que exista algo de limitativo a que o legislador ordinário possa estabelecer esquemas de fiscalização de legalidade de normas inferiores à lei. Por isso, tenho dúvidas quanto à utilidade deste preceito. O que é que ele acrescenta? Se houvesse essa carência eu compreenderia, significaria dar um apoio ao legislador ordinário, mas não é o caso. Nunca ninguém impugnou, inclusivamente do ponto de vista da constitucionalidade, aquilo que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais preconizou. Pelo contrário, registou-se não somente um aplauso geral, como o reconhecimento de que isso era algo que o legislador ordinário já deveria ter feito há mais tempo.
Assim, dar-lhe uma garantia constitucional apenas para aquilo que neste momento existe parece-me francamente desnecessário, porque nunca foi discutido, e também não vejo que corra riscos de vir o legislador ordinário a dar um passo atrás. Julgo que esse problema não existe.
Por outro lado, se se vai consignar esse ponto na Constituição, embora remetendo para a lei, é naturalmente com o intuito, que, repito, compreendo, de ir um pouco mais além, até porque esta matéria já tem sido discutida. É aí que eu discordo. Esta minha posição cautelar não é acompanhada por toda a gente, reconheço-o! Há juristas que navegam numa linha de pensamento próximo do PCP e que preconizam ir mais além. Respeito naturalmente essa posição.
De resto, nestas matérias nem sequer se trata de questões ideológicas ou fideístas. Trata-se, sim, de soluções que são mais aconselháveis dentro dos condicionalismos próprios do funcionamento da Administração Pública ex nunc.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sem dúvida, Sr. Presidente. Por exemplo, a analise do estudo que sobre esta matéria vem sendo feita pelo Prof. Gomes Canotilho leva directamente à consideração de que o grau de satisfação perante o quadro legal instituído é baixo. Entende-se que seria necessário...
O Sr. Presidente: - Ir mais além!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, precisávamos de reforçar os meios disponíveis. Mas repare, Sr. Presidente, que o legislador ordinário não fica vinculado a uma meta que não seja aquela que lhe tracemos aqui mesmo, na medida exacta em que remetemos para a lei. A nossa proposta é, em certo sentido,
aberta, e quiçá excessivamente aberta, uma vez que admite patamares maiores e menores. Apenas se visa consagrar inequivocamente uma ideia: a de que há impugnação directa da legalidade dos regulamentos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, conhecendo V. Exa., como eu conheço, o pensamento do Prof. Gomes Canotilho, compreendo que o PCP tenha sido muito prudente na sua proposta, porque evidentemente que se não fosse esse o caso a rejeição liminar à ideia de avançar desde já para algo vinculativo em termos de impugnação directa dos regulamentos seria muito mais fácil. Trata-se, portanto, de um empurrão no sentido de um avanço, e que significa claramente um conselho ao legislador para ele não ser tão tímido.
Ora, o que digo é que não me parece que no nível constitucional este conselho deva ser dado neste momento. Não estou a dizer que não possa progredir-se algo mais, se as circunstâncias o aconselharem, no nível da legislação ordinária. Na minha perspectiva, deu-se um passo importante. Alguns consideram-no tímido, mas penso que foi um passo possível na altura, visto que se está a caminhar no desconhecido. Talvez se possa ir mais adiante, porque a matéria dos regulamentos é vasta, a sua tipologia permitirá fazer algumas distinções, e mesmo no que diz respeito ao esquema de anulação pela via da impugnação incidental também se poderão fazer progressos.
Parece-me, porém, que, se vamos admitir a consignação constitucional, a qual não é necessária, isso significa um conselho amigo ao legislador ordinário de deixar-se de timidez e avançar corajosamente num caminho, retirando-lhe algumas restrições que a prudência aconselha.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, nós dizemos ao caminhante: "Caminha!" Entender o caminhante PSD que isto quer dizer "caminha a correr" é verdadeiramente uma interpretação forçada. Em todo o caso, há, realmente, caminhantes aos quais não se pode dizer nada!
O Sr. Presidente: - Não é uma palmada nas costas dada por um companheiro no legislador ordinário, mas, sim, pelo seu superior hierárquico. É diferente. Mas, enfim, suponho que estamos entendidos.
Vozes.
Sr. Deputado, poderíamos passar à apreciação do n.° 5 da proposta apresentada pelo PCP relativamente ao artigo dos procedimento colectivos. Aqui é que o PCP está verdadeiramente como peixe na água. Aliás, isto basicamente consiste nas class actions. Retiro a minha observação acerca do colectivo.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Quando debatemos a acção popular, precisamente a partir de uma proposta do PS e de propostas do PCP, pudemos avaliar o espaço que entre nós está por preencher para garantir a defesa de certos interesses e de certos direitos, em particular quando são colectivos e difusos. É preciso mudar profundamente a visão que se tem das relações
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entre a Administração Pública e os cidadãos. É necessário concebê-las, hoje, tendo em atenção a natureza que elas hoje revestem - cada vez menos bipolarizadas, ou pelo menos não polarizadas em termos de números, envolvendo não apenas um cidadão, um administrado, mas uma pluralidade deles -, desenvolvendo-se em condições em que há uma difusão real de interesses e em que a acção ou é colectiva ou não é nada, ou é conjugada ou tem pouca valia.
Esse novo quadro, que entre nós como noutros sistemas jurídicos se verifica, exige que seja ultrapassado, e em nosso entender rapidamente, o quadro incompleto e de certa forma inepto que entre nós se regista.
Temos uma pletora de direitos; eis uma verdade inquestionável. Temos uma malha extremamente rica, e, por vezes até, densa constitucionalmente de definições e de garantias. Temos um catálogo, que além de ser largo é susceptível de ser constantemente enriquecido pela vigência no direito interno de normas de direito internacional, qualquer que seja a sua natureza.
No entanto, como se sabe, a bateria de meios processuais, de meios procedimentais existente e praticável é claramente insuficiente. Por outro lado, há um bloqueamento quase total do funcionamento da dimensão processual da garantia dos direitos, dada a situação das máquinas judiciais, o grande défice de meios de apoio ao acesso ao direito em todas as suas dimensões. Porém, sente-se, também, a falta de meios de defesa próprios, específicos.
Quando se pensa em procedimentos colectivos perante a Administração Pública, está-se a pensar em meios de tipo novo, que permitam instituir formas organizadas de relacionamento entre a Administração e os cidadãos. Muitos desses meios deveriam estar previstos na própria lei de procedimento administrativo, qualquer que seja a designação que entendamos dever dar-lhe.
Assim, embora a sede própria para enquadrar toda essa matéria seja a nunca por demais encarecida (e, aliás, inexistente) lei sobre o processamento da actividade administrativa, a consagração como direito novo do direito a procedimentos colectivos perante a Administração Pública e a especificação das áreas em que isso pode ser vital parece-nos pertinente e importante, ainda que a norma que propomos seja extremamente modesta.
De facto, elencam-se três áreas: defesa do ambiente, qualidade de vida e património cultural. Não se adianta - uma vez que a definição dos moldes, dos termos, das condições, cabe ao legislador ordinário - em que é que se deve desdobrar e se tipifica esse conjunto de procedimentos colectivos a que se alude.
O futuro do relacionamento entre os cidadãos e a Administração Pública é, sem dúvida, um "campo de imaginação" que está por congeminar em todas as suas dimensões. Em todo o caso, ao abrir-se uma janela na Constituição para uma realidade em movimento estar-se-á fazendo uma adequação do texto constitucional ao futuro. Creio que isso é de boa prudência. Não devemos pensar o futuro somente virado para determinados horizontes. Neste caso é de sublinhar até o carácter plural das soluções que ficam viabilizadas...
Claro que, movendo-nos nós, como nos movemos, no terreno da concisão e da prudência, também não se colhem receios ou vontades de não caminhar "depressa demais", uma vez que o sentido da marcha,
o seu ritmo, as suas modalidades e a amplitude dos seus benefícios ficam sinalizados. Temos consciência disso. Embora não gostemos do legislador-ordinário-que-há, gostaríamos que ele pudesse marchar dentro de limites, ainda que muito largos, traçados por uma Constituição que, neste ponto e com este texto, ficaria claramente aberta ao futuro. Fazemos votos de que isso seja possível.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, gostaria de referir que é evidente que esta matéria carece de alguma reflexão no tempo que medeia entre esta primeira volta e a volta da votação. De qualquer modo, não estamos contra a ideia de que os interesses difusos devam ser corporizados em instituições que os representem e por essa via se autorize, uma legitimidade que de outro modo não aconteceria.
Como o Sr. Deputado sabe, em Itália houve um célebre caso em matéria de ambiente, que foi o caso da "Itália Nostra", que abriu perspectivas à possibilidade de interposição de recurso sem ser por via da acção popular, a qual também não existia, para defesa do ambiente.
Esta foi uma questão que foi muito discutida no Conselho de Estado italiano e em relação à qual acabou por fazer vencimento a legitimidade da associação ecologista, e isso gerou uma viragem importante. Cito o caso italiano porque na Alemanha as coisas passaram-se de uma maneira diferente e, digamos, num condicionalismo que não é facilmente transponível para o nosso país.
Em todo o caso, a via que tem sido escolhida também, agora, em França é muito mais no sentido de admitir a legitimidade de instituições que corporizam interesses difusos do que no sentido de, sem mais aquelas, permitir que os cidadãos dispersos se reunam e realizem, mediante um recurso colectivo, essa defesa dos interesses difusos.
Ao longo da análise que temos vindo a fazer na Comissão temos vindo a deparar com quatro tipos de processos. Um deles é no sentido da consignação alargada do instituto da acção popular, mas uma acção popular em que o actor popular é individualmente considerado, isto é, não é um expoente de uma class action ou de um universo.
Outra via é a que agora referi, ou seja, de instituições que corporizam e personalizam interesses difusos, e que é uma via que penso que foi insuficientemente explorada, que a Constituição dá aberturas para ela e em relação à qual, em princípio, não somos contrários a vê-la fortalecida.
Existe uma terceira via menos clarificada, que é o reforço da acção pública do Ministério Público. Devo dizer-lhe que aí, em princípio, a minha posição, pelo menos a título pessoal, é negativa. O Ministério Público já tem um conjunto contraditório de funções. Deve manter-se basicamente como agente do Estado e como defensor da legalidade sem que isso influencie as situações jurídico-individuais. Não deve acabar por ser um promotor do interesse geral, seja de interesses difusos, seja de interesses de pessoas que perderam condições para recorrer ou não têm ainda condições de legitimidade ou já não as têm para interpor os recursos.
A quarta perspectiva aparece próxima ou é similar daquilo que se designa por class actions no direito americano.
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A minha ideia é que nesta matéria há que marchar também com cautela. Não estão suficientemente exploradas as vias da personificação de interesses difusos, seja no campo da defesa dos consumidores, seja no campo do ambiente, seja no campo da qualidade de vida e do património cultural, que são zonas privilegiadas e em que é relativamente simples que a lei venha facilitar e tipificar as formas de acção colectiva personalizada que hão-se traduzir essa defesa e, portanto, dar-lhe essa legitimidade. Terei alguma relutância em consignar desta forma, tão indefinida quanto aos seus contornos, a possibilidade de os cidadãos agirem, em termos de procedimento colectivo, para defesa destes interesses difusos hoc sensu, sem nenhuma limitação do ponto de vista da legitimidade. Reconheço que é um ponto extremamente interessante. Posso eventualmente admitir que, num ou noutro caso, a maturação dos processos venha a permitir dar esse passo, mas também nesse ponto não deve ser o legislador constituinte a fazê-lo, mas, sim, o legislador ordinário.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendo, Sr. Presidente, que a altura seja má para abordar estes temas interessantes. Há épocas em que os interesses são outros. Não creio que seja este o tema que tira o sono aos negociadores do acordo PS/PSD.
Gostaria somente de realçar que o PS não foi, nesta matéria, mudo em relação a alguns afloramentos do problema. Porém, não foi claro nem exprimiu ideias avançadas e transparentes quando a este ponto. Digo isto, sobretudo, porque o PS não distinguiu entre a acção popular clássica e o direito a verdadeiros e próprios procedimentos colectivos ou difusos ou interesses públicos latentes, como também pode ser o caso. É uma problemática totalmente nova, em relação à qual não desesperamos que o PS, no processo de revisão constitucional, venha ainda a adquirir algum interesse.
Gostaria também de dizer que as propostas do PS sobre, por exemplo, o artigo 66.°, em matéria de defesa do ambiente, nos merecem toda a simpatia, mas não dão resposta a esta problemática.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas o melhor é traduzi-la já na acção popular.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado. A acção popular é uma coisa que tem a ver só com um dos meios de intervenção dos cidadãos. Acontece, porém, que os procedimentos colectivos têm a ver com a intervenção dos cidadãos junto da Administração Pública sem a mediação dos tribunais...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Só que aqui está somente previsto o princípio e nada mais!... De facto, a lei teria de referir quais eram os outros meios além da acção popular.
Portanto, não somos contra um princípio genérico. Contudo, esta formulação só abre a porta para que a lei refira o que é que está para além da acção popular. VV. Exas. ainda não disseram quais são os instrumentos factuais de defesa dos direitos e garantias dos administrados, ou seja, o que é que se pode incluir dentro desta moldura. Qual é o retrato?
O Sr. José Magalhães (PCP): - De qual das molduras, Sr. Deputado? Da moldura do artigo 66.°?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, é a do n.° 5 do artigo 268.°
De facto, este articulado, na redacção dada pela vossa proposta de aditamento, refere a expressão "procedimentos colectivos perante a Administração Pública para defesa...". Sabemos que nela cabe a figura da acção popular por nós proposta.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado, o problema está nesse ponto. Aí é que a intervenção do Sr. Presidente foi interessante, tendo em vista o desnatar dos meios colocados ao serviço dos cidadãos e a definição de qual é o âmbito próprio de cada um desses meios e qual pode ser o interesse da sua gestão em concreto.
Acontece que o artigo 66.° é uma amálgama, pois prevê todos os meios, desde uma honesta e simples petição (qualquer cidadão pode alertar as entidades competentes para o facto de, por exemplo, estarem a rebentar com a Igreja do Carmo!) até à verdadeira e própria acção junto dos tribunais...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Diga-me em que é que, no seu entendimento, pode traduzir-se este novo n.° 5 do artigo 268.° que não seja a acção popular. E formulo-lhe esta questão a fim de raciocinar em concreto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, isso é elementar! Pergunto-lhe: perante quem é que a acção popular se exerce?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Perante os tribunais, Sr. Deputado!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Deputado, mas os procedimentos colectivos não se exercem obrigatoriamente perante os tribunais como tais. Podem (e devem, prima fade) exercer-se perante a Administração Pública, ela própria.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Até o direito de petição!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esses procedimentos não são mero direito de petição, são mais do que isso: um verdadeiro e próprio procedimento.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não sendo um direito de acção popular, nem um direito de petição, o que é que, então, será?
O Sr. José Magalhães (PCP): - É um direito a desencadear junto da Administração Pública um verdadeiro e próprio conjunto de actos articulados tendentes à obtenção de um efeito jurídico...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Como é que se desencadeia? Formulo-lhe estas questão porque sou um prático e, essencialmente, um advogado!...
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Desencadeia-se através de um acto inicial, cuja designação fica inteiramente ao cuidado do legislador ordinário, e a que, por mi m, nunca chamaria "petição", por causa das confusões...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não vamos discutir o nome!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, a hora não será propícia, mas a verdade é que há um conjunto autónomo de procedimentos colectivos e toda uma rica problemática em torno deles erigida e fruto de alguma maturação, designadamente da parte dos administrativistas...
O Sr. Almeida Santos (PS): - V. Exa. é tão inteligente, responda concretamente ao seguinte: se não é a acção popular nem a petição colectiva que estão previstas nesse novo articulado, o que é que então será?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Repito: é um procedimento colectivo, Sr. Deputado, matéria essa que, felizmente, ao contrário do tema da posse útil, não é tão difícil de deslindar como isso!
O Sr. Almeida Santos (PS): - V. Exa. demonstrou que sou impenetrável à sua clarividência! Fiquei, pois, convencido de que sou incapaz de perceber as coisas óbvias!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi o contrário, Sr. Deputado. Eu é que não facilitei! De facto, a culpa é toda minha!
O Sr. Almeida Santos (PS): - V. Exa. disse que a petição colectiva não é uma petição colectiva, mas, sim, um procedimento colectivo. V. Exa. está, com certeza, a brincar comigo!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - São felizes os exemplos que o Sr. Presidente trouxe à colação, com base na experiência italiana e da RFA, e asseguro-lhe que não há brincadeira nenhuma coenvolvida. A questão é das mais sérias...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Esta altura não é bom momento para discutirmos esta temática, mas, de qualquer modo, explique-me melhor qual a especificidade que tem o procedimento difuso perante a Administração.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tenho todo o gosto, Sr. Deputado, se for essa a circunstância.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Desejo somente sublinhar que o Sr. Deputado José Magalhães teve dificuldade em explicar que este n.° 5 do artigo 268.° da proposta do PCP não seja claramente um menos em relação à consagração do direito de acção popular que o PS estabelece em matéria de ambiente, qualidade de vida e património cultural. E, como é um menos, tentou pela argumentação diminuir o alcance das propostas apresentadas pelo PS, para valorizar a circunstância de o PCP referir a consagração deste procedimento colectivo junto da Administração Pública.
Ora, a verdade é que o direito de acção popular se dirigirá, nos termos da lei, junto de quaisquer entidades, designadamente da Administração Pública, e, para efeitos jurisdicionais, junto dos tribunais. Este alcance mais vasto do direito de acção popular, configurado pelo PS, é insusceptível de ser questionado, como o Sr. Deputado José Magalhães pretendia. Tivemos já oportunidade de definir o largo alcance da nossa proposta, e não vale a pena que, a destempo, o Sr. Deputado José Magalhães venha a querer retirar-lhe o alcance.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que valerá a pena, noutra circunstância e noutro momento, aprofundar o debate desta matéria, afastando qualquer espírito de "concurso nacional para saber quem é que protege mais e melhor os cidadãos".
De facto, há institutos muito diferentes para atingir o objectivo referido, designadamente em matéria de ambiente. A norma ínsita no artigo 66.° comporta não um meio, mas uma pluralidade de meios, que vão desde os mais elementares e de impacte menor (a começar pelas simples representações) até aos maiores, que serão os judiciais. Portanto, o facto de o PCP propor nessa matéria que se faça uma ênfase em relação a um meio não significa que subestimemos os demais! Pretendemos, ao invés, que todos existam! Saudamos como positivas as propostas do PS. Entendemos que a proposta apresentada pelo PS em relação ao artigo 66.° é meritória e positiva a todas as luzes.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - E esgota completamente...
O Sr. José Magalhães (PCP): - E não substitui, infelizmente, a expressa, directa, clara e enfática afirmação da importância do direito a procedimentos colectivos. Não é, pois, contraditória com ela. Mas não a absorve. Tomara eu que a absorvesse! Há uma diferença! Limitei-me a chamar a atenção de VV. Exas. para ela!
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, poderíamos agora passar ao debate do n.° 6 do artigo 268.°, na redacção dada pela proposta de aditamento do PCP. Talvez o Sr. Deputado José Magalhães possa fazer a apresentação simultânea dos n.ºs 6 e 7, a não ser que prescinda, o que é também uma hipótese.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, posso depreender do seu silêncio que concorda comigo que é óbvia a justificação apresentada pelo PCP em relação ao n.° 7 do artigo 268.°?
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Desculpe-me, Sr. Presidente, mas estava a trocar impressões com a bancada do PS sobre um aspecto relacionado com o debate anterior.
O Sr. Presidente: - Está obviamente desculpado, Sr. Deputado!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação ao n.° 6 do artigo 268.°, visa-se aperfeiçoar um dos segmentos do preceito, dando continuidade ao trabalho a que se abriu portas na primeira revisão constitucional.
É evidente que a lei ordinária nesta matéria - e o Sr. Presidente poderá testemunhar isso - foi, mais do que prudente, amputadora de algumas das virtualidades do instituto, em que se depositou alguma esperança na primeira revisão constitucional. Em qualquer caso, seja qual for o juízo a fazer sobre os limites da solução constante da legislação ordinária, e qualquer que venha a ser a sua projecção futura, o aperfeiçoamento dos termos em que a Constituição faz a delimitação dos contornos do instituto parece-nos desejável. Não é, de resto, ambiciosa a formulação proposta. Parece-nos, no entanto, rigorosa e, além disso, exprime mais ricamente aquilo que deveriam ser as condições em que pode haver lugar à aplicação e efectivação deste direito consagrado, de novo, na primeira revisão constitucional.
O Sr. Presidente: - Essa explanação respeita ao vosso n.° 6 do artigo 268.° V. Exa. não pretende agora apresentar o n.° 7, uma vez que este tem alguma relação com o número anterior?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Sendo assim, dir-lhe-ia, em relação ao n.° 6, o seguinte: julgo que VV. Exas. apresentaram uma formulação que já referi há bocado no respeitante ao vosso n.° 3. De facto, este n.° 3 refere que é garantido aos interessados recurso contencioso contra quaisquer actos administrativos lesivos dos seus direitos ou interesses, independentemente da sua forma, mas não se apõe nele o qualificativo de actos administrativos definitivos e executórios. Aliás, o PSD procede do mesmo modo, e tive ocasião de explicar as razões por que o fazia.
Quanto a este novo n.° 6, não tenho dúvidas quanto aos vossos propósitos, que são, aliás, louváveis, mas já as tenho sobre se aquilo que pretendem atingir o será mediante esta redacção que está consignada no vosso projecto de revisão constitucional. E porquê? Porque o actual n.° 3 do artigo 268.° visa um objectivo muito claro e importante, que é o de abrir o contencioso administrativo à defesa dos direitos e interesses legítimos naquilo que é um contencioso de plena jurisdição.
Ora, quando se deixa de fazer uma menção ao contencioso, corre-se o risco de poder interpretar no sentido de que os tribunais competentes são outros e de se fechar essa via do contencioso, o que penso que seria muito mau. E muito mau a dois títulos: por um lado, coarctava-se algo que foi timidamente consagrado no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como o Sr. Deputado José Magalhães agora referiu, e que não corresponde já inteiramente fiel ao pensamento do actual legislador constituinte; por outro lado, corre-se o risco de, ao remeter para uma jurisdição que não seja necessariamente a administrativa, ver-se, afinal de contas, diluir o problema da defesa dos interesses legalmente protegidos. E digo isto porque estes interesses só têm sentido na medida em que se inscrevem de algum modo numa relação com o poder administrativo. Fora disso existem, evidentemente, interesses protegidos consignados no Código Civil, mas que estão muito próximos da ideia das expectativas jurídicas e não têm o mesmo tipo de temática e a mesma importância daqueles interesses legítimos que estão numa relação com o poder administrativo. Portanto, por esses dois aspectos pode perder-se uma garantia extremamente importante, e que é um passo de alto significado no caminhar para o contencioso de plena jurisdição.
Além disso, quando se refere a expressão "vise direitos fundamentais" na proposta de aditamento de um novo n.° 6 ao artigo 268.°, é óbvio que estes têm de ser defendidos. Porém, o problema é que os direitos fundamentais já têm, por via do artigo 18.°, uma defesa muito clara. Pode perguntar-se se com esse sublinhar não se estará a enfraquecer as outras situações subjectivas que não têm o mesmo tipo de protecção constitucional. Penso que com esta formulação podem eventualmente perder-se, de um modo involuntário, coisas que já estão adquiridas no nível constitucional e que falta traduzir na legislação ordinária. Sei que não é essa - e não estou a fazer bluff - a intenção da proposta do PCP, mas dá-me a sensação de que a maneira um pouco prolixa como foi traduzida no texto pode conduzir a esse resultado. Além disso, como o PCP não confia no actual legislador ordinário, isso, então, ainda é pior, ou seja, os resultados podem ainda ser mais perversos. Se, ao invés, confiasse, mesmo com um cheque em branco não seria grave! Assim, aconselharia vivamente o PCP a ponderar esse aspecto!
O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão, Sr. Presidente, é saber qual seria a margem de risco nessa matéria. E V. Exa. tem alguma dificuldade em ver qual é a margem de risco, mesmo depois da exposição que acabou de fazer. Se na primeira revisão se visou caminhar, embora com passo curto, para algum contencioso de plena jurisdição, e se a decepção decorrente da lei ordinária tolheu algumas das esperanças mais fundas de alguns dos autores da solução, uma redacção como aquela que é proposta só poderia alargar e não restringir. Isso faz-se ao conceptualizar mais perfeitamente: primeiro - diz-se -, trata-se de verdadeiras e próprias acções e não de recursos como tais (faz-se assim uma requalificação aperfeiçoadora, de resto tendo em conta aquilo que a própria lei ordinária neste ponto estabelece), por outro lado, definem-se os casos em que o legislador ordinário deve consagrar a existência em concreto dessas acções. Como é que isso pode enfraquecer outras situações subjectivas protegidas constitucional e legalmente?! Só através de um raciocínio do tipo "o reforço de protecção deste direito torna mais débeis os demais". Mas para isso era preciso que efectivamente houvesse uma debilitação e eu creio que as "debilitações por confronto ou por inveja" não são propriamente um fenómeno a ter em conta nesta sede...
Sublinho que a margem dada ao legislador ordinário fica intacta num ponto e mais definida noutro. Fica intacta porque só ele poderá estabelecer em que con-
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dições é que este direito à interposição de acções é reconhecido, que tipos de acções são consagradas, qual é a sua específica tramitação, quais são as regras sobre legitimidade, quais são os tipos de direitos fundamentais cuja tutela é assegurada através deste meio e quais são os que ficam de fora, quais são os casos em que se entende que a malha de demais meios contenciosos não é bastante para assegurar a efectiva tutela, e por aí adiante...
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, suponho que não vale a pena discutir isto, porque estamos de acordo quanto ao fundo; trata-se de uma questão de redacção. Mas, por exemplo, defendi num artigo que escrevi sobre esta matéria que uma das formas de salvar a constitucionalidade do Estatuto e da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais era uma interpretação correctiva, atendendo à tutela efectiva. Aliás, verifico aqui com prazer que o PCP concorda comigo nesta matéria. O problema reside em que, se a ideia da tutela efectiva não é consubstanciada em critérios objectivos, vai-se permitir a denegação de acções, dizendo que a tutela efectiva é suficientemente assegurada por via do contenciçso recurso dos actos administrativos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas em que situação é que estamos hoje?!
O Sr. Presidente: - Mas a situação de hoje muda-se pelo legislador ordinário. O erro de perspectiva é pensar que, como o PCP tem desconfiança no que diz respeito ao legislador ordinário, aproveita agora o legislador constitucional para fazer uma tarefa de legislador ordinário. Não pode ser! Penso que é um erro de perspectiva; ou, enfim, o PCP está condicionado, acantonado na sua estratégia, a utilizá-la, mas nós não estamos e, portanto, não temos essa perspectiva. Acho claramente preferível dizer, como aliás se diz no nosso projecto, que os administrados têm acesso ao contencioso para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e têm-no independentemente do problema da tutela efectiva. Quanto muito, aceito que possa haver uma correcção crítica, como o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles há pouco fazia: talvez seja positivo referir "sem prejuízo de outros tipos de tutela que possam existir, designadamente noutras jurisdições", porque pode haver situações subjectivas que sejam susceptíveis de ser feitas valer quer no contencioso administrativo quer fora do contencioso administrativo - e eu isso aceito. Mas não gostaria de consagrar a tutela dessas situações. É esse, digamos, o meu problema. Essa correcção - eu direi que é uma questão de redacção - aceito-a perfeitamente, porque a ideia não é limitativa; trata-se de acrescer.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas a formulação do PS é debilitadora! Parecendo abrir portas para alargamentos, é menos rigorosa, menos precisa, menos específica do que a actual formulação constitucional. Assim, acaba por conceder ao legislador ordinário uma margem de decisão que lhe permite, eventualmente, uma opção por uma gama de meios de defesa eventualmente inferior à actualmente existente...
O Sr. Presidente: - Não, francamente não penso isso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Há esse problema. Se lhe aditar o "sem prejuízo", é óbvio que não. Mas é necessário aditar o "sem prejuízo"!
O Sr. Presidente: - Mas já lhe disse que isso é uma correcção que nós aceitamos. Não estou a fazer uma defesa da minha dama em relação à redacção, mas sim a procurar encontrar uma fórmula que garanta da maneira mais clara e sem perversidades algo que se me afigura extremamente importante. E não há divergências, isto é, nenhum dos partidos que apresentou propostas diverge quanto a isto, pelo que não se justifica terçarmos armas por algo que não está em jogo; o que se justifica é encontrar uma redacção melhor. As coisas estão postas e é inútil atardarmo-nos sobre isto.
Nenhuma das redacções é perfeita, poderá haver alguns aperfeiçoamentos, e creio que o aperfeiçoamento da redacção proposta pelo PSD garante suficientemente, sem prejuizar se será um recurso ou uma acção - normalmente, creio eu, será uma acção, por razões ligadas ao problema da prova e pelo facto de o tribunal não ter de ver a realidade que aprecia através do diafragma do acto administrativo e dos seus vícios. Consequentemente, é uma possibilidade de fiscalização sem ser por recurso que a lei ordinária terá de disciplinar, porque também não se justifica que se recorra indiferentemente ao acto ou à acção; é necessário encontrar uma justa medida. Ora, afigura-se-me muito difícil que seja o legislador constitucional a fazê-lo; deve dar uma indicação de que não seja um problema de diminuição de tutela. V. Exa. põe a tutela efectiva, o que pode ser um caminho, que, como já referi, usei em termos de interpretação correctiva da Constituição, e aceito que, eventualmente, seja assim. No entanto, a verdade é que, ao dividir, como dividiram, o n.° 3 - aliás nós também o fizemos - , mas não retomando a ideia do recurso contra o acto (porque essa estava cá no n. ° 3), torna-se menos claro. Mas trata-se de um problema de redacção e suponho que neste momento não vale a pena ir mais longe do que isto, no sentido de que existe grande convergência no que respeita aos valores fundamentais a proteger.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Espero que sim, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Também eu. Quanto ao n.° 7, suponho que V. Exa. poderá apresentar o mérito dos autos, visto que ele é claríssimo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O n.° 7, Sr. Presidente, é um sinal de modernidade, creio.
O Sr. Presidente: - É ... Está a pensar na fiscalização da velocidade dos automóveis...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sim, estou a pensar na jurisprudência do Tribunal Constitucional, de resto contraditória nessa matéria. Mas penso que o preceito é susceptível de ser lido e aplicado a campos muito diversos, que não tantos quantos os que, numa sociedade organizada como esta, são caracterizados pela utilização de meios tecnológicos, contra os quais ou
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perante os quais os cidadãos são postos em situação de manifesta inferioridade, se lhes não forem garantidos determinados direitos, determinados meios de defesa, que permitam opor à "verdade de máquina" a falência das máquinas e à "verdade absoluta medida por meios técnicos" a verdade absoluta susceptível de ser infirmada por meios técnicos também. É um direito elementar! A efectivação desse direito depara com dificuldades enormes, decorrentes de limitações de carácter material e das desigualdades entre os cidadãos, e até entre o cidadão, por mais abonado que seja, e a Administração Pública omnipotente.
A definição de uma norma geral em que se estabeleça a contraposição entre, por um lado, uma obrigação de garantia de fiabilidade de actos e, por outro lado, um direito subjectivo, constitui uma conjugação extremamente positiva para enfrentar aquilo que pode ser uma verdadeira praga na vida dos cidadãos, atingindo pessoas individualmente tomadas ou mesmo categorias inteiras de cidadãos.
Não se é excessivamente específico na definição dos contornos da figura proposta. Alude-se, em geral, aos "interessados", e fala-se num direito de obter a verificação dos aparelhos utilizados para apurar os factos "apenas em relação a determinados casos", ou seja, aos casos que possam constituir infracção e envolver sanções (a utilização de aparelhos para todos os efeitos é um facto banal, normal, e rodeia-nos por todos os lados, como bem se sabe). São essas as situações limite em que a questão pode ser mais relevante. Trata-se, naturalmente, de instituir um meio através do qual a sanção ilegal, a sanção injusta ou a sanção assente num erro ou numa viciação possa ser objecto de combate adequado.
O Sr. Vera Jardim (PS): - É o combate do PCP à sociedade concentracionária.
O Sr. José Magalhães (PCP): - De facto! É o combate do PCP contra as sociedades concentracionárias, assentes na utilização de meios tecnológicos contra os cidadãos sem possibilidade de resposta e de defesa. Creio que é um objectivo susceptível de ser largamente partilhado, e longe de nós excluirmo-nos dele! Só alguns obcecados de concentrações inconfessáveis é que poderiam eventualmente defender o contrário. Não creio que isso aconteça nesta Comissão...
O Sr. Presidente: - Tem razão, em tempos de Perestroika assim é. Mas o problema não é esse...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não sei a qual é que o Sr. Presidente se refere...
O Sr. Presidente: - Eu vou explicar-lhe qual é o meu problema. Não é o problema concentracionário nem o problema da Perestroika, mas outro: penso que, uma vez mais, estamos a colocar fórmulas extremamente detalhadas ao nível da Constituição. Se bem que este princípio seja, em meu entender, correcto, ele resulta já, todavia, de um princípio mais geral, perfeitamente justificado, se é que não se encontra já em vigor - e eu penso que sim - ao nível da legislação ordinária. Caso contrário, iríamos enxamear a Constituição de uma série de normas - a este propósito existem em muito campos - muito importantes, sem dúvida, mas cuja relevância não é tal que justifique a sua inclusão na Constituição. A circunstância de se tratar de normas inovadoras e de terem um toque tecnológico que lhes dá um certo hit torna-as, evidentemente, atractivas. Porém, não penso que por essa circunstância devamos ceder à tentação de as incluir na Constituição. Digamos, pois, que estou de acordo com o princípio, mas não com a sua inclusão na Constituição, porque na verdade estamos a rever a Constituição e não a elaborar uma lei em matéria de infracções disciplinares ou de infracções em matéria penal...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou estradal...
O Sr. Presidente: - Ou estradal.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou comercial ...
O Sr. Presidente: - Ou comercial.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Está a ver os domínios todos em que esta norma tem aplicação, tão genérica que ela é...
O Sr. Presidente: - Não, estou a ver que teríamos de fazer algumas normas de especialização em matéria comercial, etc.... E isso constitui realmente uma visão regulamentar da Constituição que eu não acompanho.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
Vozes
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas que extraordinária forma de reagir às inovações, sobretudo quando o PS propõe tantas alterações menos inovadoras e não "regulamentarias"...
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, isso está previsto no Código Penal e no capítulo "Direitos, liberdades e garantias". É o caso do artigo 26.°, por exemplo, que diz respeito ao direito à identidade pessoal, à capacidade, etc. Com este tipo de normas quase não precisamos de tribunais para aplicar a Constituição. De facto, o que acontece, como o Sr. Deputado José Magalhães frisou, é que já se têm levantado destes problemas no Tribunal Constitucional. Deixemos os tribunais aplicar a Constituição! Caso contrário, vamos concretizando o que é uma pecha do legislador português, que eu não gostaria que fosse uma pecha do legislador constitucional. Não podemos meter tudo na lei, tornando os tribunais órgãos de aplicação quase automática das leis. Os tribunais têm de ter alguma maleabilidade e penso que já temos na Constituição uma série de princípios (desde logo, o artigo 26.°), expressos no capítulo "Direitos, liberdades e garantias", que são por si suficientes para cobrir situações como esta. É evidente que o Sr. Deputado José Magalhães poderá dizer que não conferem o direito a obter a verificação dos aparelhos... Mas nesse caso direi que essa não é já uma matéria com dignidade constitucional, mas sim uma matéria de lei ordinária. Tenhamos alguma confiança no legislador ordinário, Sr. Deputado José Magalhães. Sr. Deputado, peco-lhe alguma confiança e não toda! Não lhe estou a pedir muito!
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O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. pretende ainda discutir esta matéria?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é evidente que a matéria é eminentemente discutível e é discutível até ao infinito. Não tencionaria ir a esse último limite, agora...
O Sr. Presidente: - Até ao infinito gostaria que não fosse.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, haveria apenas que ponderar se há um excesso quando se propõe uma norma inovadora. O "excesso" é na ideia, em si, ou no conteúdo, na formulação? Neste caso, a demonstração a fazer - e não creio que tenha sido feita, mas poderemos reflectir sobre isso - é que já decorre tudo isto da Constituição...
O Sr. Presidente: - Não é bem assim, Sr. Deputado...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Que em relação aos radares estamos conversados, é verdade, estamos. O Tribunal Constitucional já o fez, embora com uma jurisprudência ziguezagueante. Os domínios são muitos e é evidente que a Constituição não pode pretender absorver tudo. Em todo o caso, temos de ponderar qual é a margem de enriquecimento possível.
Nesta matéria, os perigos são razoavelmente grandes e serão crescentes. De forma alguma acredito que não tenda a proliferar o uso de meios tecnológicos os mais diversos (sendo possíveis estados de fiabilidade duvidosos) para apurar factos susceptíveis de serem voltados contra os cidadãos.
A atenção constitucional em relação a isso poderá ser extremamente meritória. A formulação parece-nos extremamente secundária. Em todo o caso, não se diga que "está consumido". Essa demonstração não foi aqui feita...
O Sr. Presidente: - Penso que não foi esse o problema da consumpção, mas sim o de não se justificar que o legislador constitucional legisle sobre todas as matérias. O legislador constitucional legisla sobre princípios fundamentais em normas abertas, havendo depois muitos desenvolvimentos e aspectos verdadeiramente inovadores que são formulados pelo legislador ordinário e que, por exemplo, neste caso até constam de legislação em matéria penal. Não é um problema de já estar contido, em termos de como se, na caixa de Pandora, tudo lá estivesse feito. Contudo, penso que aqui há uma visão completamente divergente daquilo que deve ser a Constituição neste capítulo e as coisas estão claras: nós discordamos, não é grave nem é dramático...
Srs. Deputados, falta-nos referir que a ID, que não está presente, propôs a constitucionalização da Alta Autoridade contra a Corrupção - percebe-se qual é o intuito.
Passaremos agora ao artigo 272.°, sob a epígrafe "Polícia", preceito relativamente ao qual o PCP apresentou uma proposta de aditamento de um n.° 3. Quer o PCP justificar a sua proposta?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O nosso n.° 3 reproduz uma norma hoje constante da Lei de Segurança Interna, norma essa que foi objecto de intensíssimo debate na fase final da respectiva votação na especialidade. Nela diz-se alguma coisa que parece inteiramente óbvia, mas eu lembraria aos Srs. Deputados, em particular ao Sr. Deputado Vera Jardim, que tem particular renitência em relação a algumas destas coisas e alguma propensão para as considerar puramente "regulamentares", este facto: há certos "regulamentos" que, constando da lei, podem merecer ser elevados à categoria de Constituição. É que com esse gesto "alquímico" ganham uma força normativa e uma importância que não têm em sede de lei ordinária.
A matéria da segurança interna foi objecto de uma discussão intensa. Não nos reconhecemos no desfecho, mas reconhecemo-nos em alguns dos aspectos desse desfecho, sendo um deles precisamente a consagração legal desta norma.
Há neste projecto de revisão constitucional do PCP outros momentos em que afloram conteúdos adquiridos nesse processo de debate cuja importância me dispenso de sublinhar. Em todo o caso, sendo a formulação taxativamente, palavra a palavra, reprodução da Lei de Segurança Interna e tendo atrás de si o labor de reflexão, que foi, de resto, comummente partilhado pelas forças que a aprovaram e pelas forças que a reprovaram, entendemos que pelo menos este ponto deveria ser objecto de solidificação na sede própria. Ora a sede própria é verdadeiramente esta.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tenho a consciência de que a aprovação desta norma seria de utilidade reforçadora.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Obviamente confirmativa, uma vez que seria inconcebível que a actividade de garantia de segurança interna não se fizesse em estrita observância dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e de todos os demais princípios do Estado de Direito democrático.
O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, seria inconcebível.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Muitíssimos são e aplicáveis em muitas dimensões, muitos aspectos e muitas circunstâncias! Em todo o caso, constam da lei. Dir-se-ia que era "inconcebível" que a Lei de Segurança Interna tivesse de dizer isso. Mas se os Srs. Deputados tiverem o cuidado de a ler, a lei quis dizê-lo! E ainda bem!
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
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O Sr. Vera Jardim (PS): - A minha pergunta era um pouco a que o meu camarada de bancada Almeida Santos colocou: o Sr. Deputado conhece algumas actividades policiais, de investigação, etc., que se possam fazer sem estrita observância dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a não ser as relativas às excepções consagradas na Constituição? Isto é um princípio que temos de aceitar para tudo e a consagração aqui deste princípio específico pode, inclusivamente, criar alguma confusão. Porque, então, pode-se dizer: "Alto!": Isto não é dito, por exemplo, para as actividades de investigação ou para a polícia...
Vozes.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Até cria este problema, embora admita que ele também seja longínquo... Mas, repito, o que pergunto é isto: o Sr. Deputado conhece alguma actividade que se possa fazer sem estrita observância dos direitos, liberdades e garantias do cidadão e demais princípios do Estado de direito democrático?
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. concebe, porventura, que a prevenção dos crimes num Estado de direito democrático se possa fazer de outro modo que não seja "com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos"?!
O Sr. Vera Jardim (PS): - É evidente que não posso!
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. não pode conceber isso? V. Exa. entende que as medidas de polícia podem ser outras que não as previstas na lei? Que a Polícia deve poder inventar medidas de polícia "a granel" e como entenda? E que possam ser utilizadas além do estritamente necessário? É evidente que não! Se assim é, Sr. Deputado, V. Exa. acaba de demonstrar que os n.ºs 2 e 3 do actual artigo 272.° são absolutamente "dispensáveis", "horríveis" ao mesmo título que esta norma que o PCP propõe! É um absurdo a sua argumentação!
Risos.
O Sr. Presidente: - Já lá vamos!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Era também para fazer uma pergunta. O problema que aqui se põe é de legislação constitucional e a pergunta vai, portanto, nesse sentido. A proposta do PCP tem, naturalmente, duas partes. Em primeiro lugar, tem uma parte que é um limite, "em estrita observância dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e demais princípios do Estado de direito democrático". A pergunta é: qual o sentido da "estrita observância dos direitos, liberdades e garantias"? Esse "estrita" tem o sentido de absolutização, de intangibilidade absoluta, ou, pelo contrário, essa observância deve entender-se com as limitações próprias dos princípios do Estado de direito democrático, princípios de solução de interesses conflituantes? Há alguns sacrifícios previstos no próprio artigo 18.° É possível, à luz do artigo 18.°, impor alguns sacrifícios aos direitos fundamentais para salvaguarda de outros valores constitucionalmente tutelados. A minha
pergunta é a seguinte: quando fala em "estrita observância" tem em conta também que essa estrita observância já deve ser interpretada de acordo com as qualificações que resultam dos demais princípios do Estado de direito democrático, inclusive o artigo 18.°, ou não? Se o "estrita" se deve interpretar em conjugação com os demais princípios do Estado de direito democrático, então uma das partes da norma ou é inútil ou esses princípios são, eventualmente, conflituantes entre si.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Só para rejeitar este acrescentamento proposto pelo PCP. O que o PCP aqui faz é mais do que repetir a Lei de Segurança Interna, é repetir o que o artigo 18.° consagra no n.° l, quando diz que "os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades púbicas e privadas". Esta incidência directa dos preceitos sobre direitos, liberdades e garantias faz prescindir de qualquer consideração noutro lugar da Constituição, sobre a vinculação imediata das entidades, quer públicas, quer privadas, à Constituição.
O que o PCP está aqui a fazer é, no fundo, uma redundância: o acrescentamento ou a parte final do n.° 3. O que o PCP está a fazer é aquilo que em matéria de política legislativa se revela de todo inconveniente, porquanto se cria aqui uma espécie de movimento circular. Isto é, parte-se do artigo 18.°, n.° 1, da Constituição para a Lei de Segurança Interna, que, segundo o Sr. Deputado, diz exactamente o que aqui está a ser transposto, e a partir daí volta-se à Constituição, noutro lugar, com os efeitos perversos que pode ter. Efeitos perversos esses que são, primeiro, a dúvida sobre a própria interpretação do n.° 1 do artigo 18.°, e, segundo, o saber se, nesse caso de dúvida, terá de se explicitar, em todas as situações e mais algumas, a vinculatividade imediata das entidades públicas e privadas aos preceitos relativos a direitos, liberdades e garantias. Há, portanto, aqui um partir da Constituição e um regresso à Constituição que é um regresso deslocado, inconveniente e com efeitos de política legislativa da mais incorrecta. Era isto que queria deixar claro.
Risos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Dir-lhe-ia, Sr. Deputado José Magalhães, que não posso estar contra uma coisa destas, mas ponho-lhe o seguinte problema. Existindo uma norma que nos diz que em matéria de direitos, liberdades e garantias só há as excepções previstas na Constituição e para garantia de outros valores fundamentais; se há uma norma especial só para a segurança interna, sem salvaguarda desta ressalva, pode parecer que neste caso, sobretudo aplicando aqui pela primeira vez o conceito de observância estrita, pode pôr-se o problema de saber-se se, neste domínio, para a segurança interna é só isto e mais nada. Não há excepções, porque a regra, lá atrás, é que pode ter excepções, embora excepções previstas na Constituição. E nalguns casos diz "nos termos da lei". Será que a
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lei não pode dizer mesmo mais nada do que diz a Constituição em termos de direitos, liberdades e garantias, ainda que seja num dos casos em que a Constituição remete para a lei, ainda que seja para defesa de outros valores? Sinceramente, custa-me um pouco estar aqui a semear a repetição de valores que já estão no lugar próprio, sobretudo com o reforço da palavra "estrita" e sem vir acompanhado com as ressalvas que estão lá atrás. Porque há uma norma especial em relação à norma geral. A norma geral diz aquilo. Mas, em matéria de segurança interna, aí é que não há nada, é estrita e acabou. Custa-me aceitar esta consequência. Se admite isto, bastava que dissesse "sem prejuízo do disposto no artigo 18.°". A ser assim, já estava de acordo. Gostava de o colocar perante esta minha reserva. Porque quando há uma norma genérica, mas vem uma específica que não refere os condicionantes da genérica, parece que a específica é só no âmbito da regra específica, e não queria que se tirasse essa conclusão.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, é V. Exa. reservatário nesta matéria. Há uma reserva, V. Exa. é reservatário.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que há um movimento circular.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Circular, mas no último momento há uma transfiguração do primeiro momento. É que isto já não é bem o artigo 18.°, quando se passa da Lei de Segurança Interna para a Constituição.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sra. Deputada, aqui há um equívoco quanto ao conteúdo do movimento. A descrição de V. Exa. é exacta. Mas não foi realmente esse objecto, que julgou divisar, que incrustámos na Lei de Segurança Interna. Não foi esse objecto que transfegámos. A disposição da Lei de Segurança é de exegese relativamente complexa. Admito que a sua elevação a nível constitucional coloque, como, de resto, se vê, problemas adicionais. Em todo o caso, tal qual figura na lei, a solução em nada vem bulir com o aparelho constitucional atinente a toda a problemática dos direitos, liberdades e garantias, incluindo a sua restrição, incluindo a sua limitação, que pode fazer-se nos casos previstos na Constituição e só nesses. A lei é relevante para aferir isso, porque define alguns dos casos em que essa constrição, restrição, limitação, compressão, se pode verificar em nome dos interesses da segurança interna.
A nossa tarefa aqui não é essa, é a de definir uma cláusula geral que nesta sede - política de segurança interna, polícias - adquira um significado. E que significado? O comando é dirigido ao aplicador, a todos os aplicadores. Refere-se aos sistemas de segurança interna nas suas múltiplas componentes. Não se diz ao aplicador nada que implique contradição com as obrigações, limitações e imposições constitucionais quanto, designadamente, à restrição de direitos. É evidente que o artigo 18.° é ressalvado. É evidente que as actividades de restrição só podem apurar-se segundo a forma, segundo o processo, nos casos, nos termos e com os limites do artigo 18.°!
O que está aqui em questão não é isso, que é da competência exclusiva, mas exclusiva do legislador, concretamente da Assembleia da República. O que está aqui em causa é o critério com que essa actividade de segurança interna é desenvolvido, mesmo nos casos em que se traduz em cumprir a lei restritiva, como acontece com a prevenção dos crimes. Não se trata de estabelecer limitações: trata-se de enquadrar certas condutas, certas actividades úteis para prevenir crimes. Estas actividades não se podem traduzir na limitação de direitos, são de pura prevenção. Neste caso toda a problemática das actividades chamadas de "garantia de segurança interna" deve fazer-se segundo um critério geral, um princípio, traduzido na ideia da estrita observância. Vinca-se a necessidade de uma particular cautela, a obrigação de cumprimento estrito de toda a malha de direitos, liberdades e garantias e de outros princípios do Estado de direito democrático, embora o legislador não vá tão longe que absolutize.
Com isto respondo a uma interrogação do Sr. Deputado Costa Andrade. É evidente que a avalição deste conceito de estrita observância, tal como o conceito de
mente indeterminados, tem exigências próprias.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, não é bem assim. O conceito de bónus pater familiae e outos análogos são conceitos normativos e deixam uma certa margem de flexibilidade. V. Exa. usou aqui todo um conjunto de qualificações possíveis, mas que alteram o sentido da proposta: É o caso, por exemplo, de "particular cuidado" ou de "especial cuidado". Mas "estrita" ou quer dizer alguma coisa em especial ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. conhece perfeitamente o conceito de "estrita necessidade", não conhece?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas é que o conceito de necessidade é um conceito que, sendo absoluto, é relativo...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Há, em rigor, dois conceitos, o de necessidade e o de observância ...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - É relativo ao fim, ao passo que aqui "estrita observância", sem mais,...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, no conceito de "estrita necessidade" há dois conceitos, o de "necessidade" e o de carácter "estrito" dessa necessidade: um acto pode ser "necessário", mas não "estritamente necessário". É que, em certos casos, pode ser dispensável. Um acto podia ser necessário e até desejável mas não "estritamente necessário": nesse caso a entidade pública não está obrigada a praticá-lo. Não se é obrigado a atravessar pela rua fora uma velhinha, com um sorriso: basta atravessá-la, na altura própria, de preferência, e não contra a sua vontade. A qualificação de "estrito" não é, portanto, irrelevante, é um critério para aplicador. A medição deste critério não se faz naturalmente ao metro e envolve algumas dificuldades, mas consagrá-lo é sinalizar uma preocupação da Constituição em relação a esta matéria particularmente sensível.
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É esta a nossa intenção! Não se visa fazer através disto a "revolução suprema" da protecção dos cidadãos contra as actividades indevidas de segurança externa, até porque essas actividades seriam desde logo inconstitucionais, por força de outros preceitos da Constituição.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.
O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Vamos dar por terminada a discussão deste artigo. Vamos saltar por sobre a fiscalização da constitucionalidade e até da revisão constitucional, na medida em que lá se encontra o famigerado artigo 290.°, que vai necessitar da presença do Sr. Deputado Rui Machete, e passamos a discutir as disposições finais e transitórias, artigo 292.°
Há uma proposta do PSD no sentido de incluir aqui o actual artigo 293.° e o actual artigo 294.°, sem alteração de redacção, e que ficariam a constituir os novos n.ºs 2 e 3 do artigo 292.° Neste elimina a expressão "não ressalvadas neste capítulo", e daí a seguinte redacção: "As leis constitucionais posteriores a 25 de Abril de 1974 são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do disposto no número seguinte."
O PRD, por seu turno, mantém o actual artigo 292.° como n.° 1. No n.° 2 também transfere para este artigo o artigo 293.°, menos o qualificativo "ordinário". O n.° 3 diz: "É atendível a vigência passada do direito anterior à Constituição, ainda que não haja sobrevigorado, salvo se a isso se opuser a ordem pública daquela resultante." Seria, no meu entender, um novo elemento de interpretação.
O PSD quererá justificar a sua proposta?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Relativamente a esse facto está também a mudança de epígrafe. Não há dúvida de que a expressão "direito anterior" é mais adequada, pois o que fica não é só direito constitucional anterior. O direito anterior ainda abrange não só matéria de direito constitucional mas também matéria não constitucional. O que há de relevante na nossa proposta é retirar a expressão "não ressalvadas neste capítulo". Isso tem a ver com a nossa proposta. Portanto, também esta é uma proposta derivada da eliminação do artigo 296.°, relativo ao estatuto de Macau.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - E também com a vossa eliminação da lei sobre despedimentos.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Aí talvez não seja, porque essa não é lei constitucional.
O Sr. Presidente: - O n.° 2 não se refere ao direito constitucional.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sim, mas nós tiramos a ressalva. Isto tem a ver com Macau.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A primeira alteração por nós proposta, que corresponde à introdução da noção de direito ordinário, justifica-se por si própria, porque já hoje o direito de que fala o artigo 293.° é o direito ordinário. Não tenho aqui o texto inicial da Constituição, mas a redacção do actual artigo 293.° era completada, no texto inicial, com uma disposição, no artigo 292.°, que dizia que as disposições da Constituição de 1933 ressalvadas pela Lei n.° 3/74, etc.., deixavam de vigorar. Daí entender-se que o direito que subsistia era o direito ordinário, sem necessidade de fazer qualificativos. Como essa disposição específica relativamente à Constituição de 1933 foi abolida, por inutilidade, na revisão de 1982, parece evidente que se deve entender que o direito ressalvado no artigo 293.° é o direito ordinário.
Quando ao n.° 3, salvo o devido respeito, ele é uma "flor". Isto é a síntese de um artigo que escrevi e corresponde a um problema que se suscita e que é teoricamente autónomo relativamente ao problema da sobrevigência. Nós partimos do princípio de que a Constituição funda de novo a ordem jurídica.
O Sr. Presidente: - É o conceito de atendibilidade.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Exacto, Sr. Presidente. Há aqui um duplo problema: a questão que se coloca não é apenas a da sobrevigência do direito passado, mas também a de saber até que ponto temos de atender ou não à vigência passada do direito passado. Por exemplo: a Constituição, no artigo 36.°, proibiu a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos. Entendeu-se, mesmo antes da reforma de 1977 do Código Civil, a que V. Exa. presidiu, que as disposições do Código Civil que estabeleciam a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos, designadamente em matéria sucessória, tinham deixado de vigorar. Isso não significa que a vigência passada dessas normas não seja atendível e que, portanto, tais normas não devam aplicar-se aos factos que, segundo as regras do direito transitório, se situem num domínio anterior ao da entrada em vigor da nova Constituição.
Este problema suscita-se igualmente para as normas constitucionais, e até foi discutido no Tribunal Constitucional. A minha ideia é a de que as inconstitucionalidades verificadas no período de vigência da Constituição de 1933 têm de ser aferidas, dentro de certos limites, pela Constituição de 1933, sob pena de suceder o disparate, a que a certa altura o Tribunal Constitucional chegou, de entender que as normas que eram constitucionais face à Constituição de 1933 - caso das taxas dos organismos de coordenação económica - eram inconstitucionais face à Constituição de 1976, mas que acabariam por se constitucionalizar, por ausência de norma constitucional. A Constituição de 1976 não podia aplicar-se sem retroactividade; a Constituição de 1933 também não se lhes aplicava, porque não se podia jogar na inconstitucionalidade; essas normas, que eram inconstitucionais face às duas Constituições, acabavam por valer e por se tornar eficazes por ausência de norma constitucional aplicável.
A ideia geral é ver o problema à semelhança daquele que se coloca em matéria de direito internacional privado, ou seja, da conformidade da lei estrangeira com a ordem jurídica actual. No fundo, é tratar isso um pouco em termos semelhantes aos de direito internacional privado, aplicando o conceito que hoje já está tratado pela doutrina - direito transitório e ordem
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pública - e reconhecendo que a vigência do direito passado é atendível e que as questões que, segundo os critérios do direito transitório, nesse período se localizem são decididas segundo o direito anterior; só assim não sucede se o direito anterior for incompatível com a ordem pública decorrente das normas constitucionais. É o que se passa, designadamente, com as normas anteriores totalmente aberrantes em face das normas constitucionais vigentes, como é o caso da garantia administrativa.
A ideia é, portanto, a de em relação à sobrevigência do direito anterior autonomizar o problema da atendibilidade da sua vigência no seu tempo próprio, na sua vigência passada. Este problema não é privativo do direito existente à data da entrada em vigor da Constituição, mas também do direito que antecedeu este e o outro, sem outro limite no regresso ao passado que não seja o da praticabilidade das soluções.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, compreendemos e parecem-nos perfeitamente pertinentes os argumentos utilizados pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles. No entanto, não tenho horizonte teórico para lhe dar, neste momento, uma resposta cabal.
Vozes.
O Sr. Presidente: - A nossa posição é a de que tudo depende do significado do conceito de atendibilidade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, qual é a epígrafe do artigo?
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) ... na colectânea Os 10 Anos da Constituição.
O Sr. Presidente: - É evidente que, quer no domínio da interpretação e aplicação das leis, quer no domínio da constitucionalidade, temos de admitir que uma inconstitucionalidade que existiu e que deixou de existir, ou que não existiu e passou a existir, pode ter alguns elementos atendíveis. O mesmo se passa em relação à vigência de uma lei ordinária.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O problema é exactamente igual, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Portanto, o conceito de atendibilidade não me mete nenhuma espécie de medo. Hoje já somos vítimas dele, na medida em que não há nenhum acórdão que não faça a história de tudo o que se passou desde Afonso Henriques, tirando sempre daí consequências. "Se isto foi assim, deixou de ser, voltou a ser é porque" ... Em princípio, não somos contra isso. Há que analisar esta matéria com mais cautela e com algumas preocupações tecnicistas. Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, quando entra em vigor uma nova Constituição, o problema que classicamente se coloca é o da sobrevigência do direito anterior. Parte-se do pressuposto de que a nova Constituição refundamenta tudo. O que digo é que esse problema não é o único e que o facto de não se distinguir a sobrevigência da atendibilidade pode gerar inúmeras confusões. Mas o problema não é o único: há também o problema de a nova Constituição reconhecer como vigente no passado e com eficácia jurídica o direito precedente, mesmo que não tenha sobrevigorado. Isto é, reconhece-se que o passado não é uni mero facto, que no passado houve uma vigência jurídica, atendível e com consequências.
O Sr. Presidente: - De facto, isso tem consequências. Sobretudo há aqui a ressalva à não existência de sobrevigência, o que prova, portanto, que isso se coloca para lá de qualquer argumento que se possa retirar do conceito de sobrevigência. Tem a ressalva de que não se oponha a isso a ordem pública resultante da nova lei.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, vamos igualmente ponderar as implicações desta proposta, embora a cláusula limitativa que consta da parte final do preceito seja susceptível de originar enormes dificuldades de interpretação.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Origina a aplicação do conceito de ordem pública proveniente do direito internacional privado, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sei isso, Sr. Deputado. Só que a noção é tortuosa e tudo isso se passa no campo do direito interno. No caso concreto, o que está em causa não são as relações com qualquer direito internacional, mas sim com o direito de uma ordem derrubada, com uma ordem em relação à qual houve uma ruptura política, económica, social. Portanto, isto acontece em múltiplas dimensões, os campos de afrontamento são enormes, são viscerais, são radicais, e em que a sobrevigência pode suscitar melindrosos problemas...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não é a sobrevigência que suscita dificuldades, Sr. Deputado. O que está aqui em causa é exclusivamente a aplicação do direito passado. Isto é: o que está em causa não é uma questão de sobrevigência, não é a questão de o direito anterior continuar a sobrevigorar porque essa é resolvida pelo n.° 2.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Certo, Sr. Deputado.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - No n.° 3 o que está em causa é a aplicabilidade do direito passado aos
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factos que, segundo as regras de direito transitório, pertençam a esse direito passado. O que isto introduz é uma limitação na aplicação do direito passado, mesmo a factos passados. Reconhece a aplicabilidade geral, mas depois introduz a limitação da ordem pública.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A cláusula da ordem pública tem dificuldades de destrinça. Por exemplo, o Sr. Deputado diz: "Não se interprete isso como querendo dizer que os membros de corpos repressivos que estavam protegidos pela garantia administrativa podem beneficiar, a qualquer título, dela [...]"...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas essa é a função da ressalva, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse é o caso da garantia administrativa, que, a todas as luzes, repugna face à própria ideia do derrube do fascismo. Outros casos haverá em que a aplicação da cláusula poderá suscitar dificuldades muito maiores. Se pensarmos menos no direito público e mais em áreas de direito civil não sei a que resultados é que poderemos chegar...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O caso que se suscitou nos tribunais foi o dos filhos ilegítimos. O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o direito sucessório constante do Código Civil anterior à reforma de 1977 era aplicável a todas as heranças abertas até ao dia 25 de Abril de 1976. Esta questão merece, sem dúvida, ponderação.
Q Sr. José Magalhães (PCP): - Sem dúvida nenhuma, Sr. Deputado, merece toda a ponderação! Interrogo-me sobre qual é hoje o interesse de uma norma deste tipo. A que tipo de factos é que esta solução normativa é hoje susceptível de ser aplicada, no momento em que já decorreram imensos anos sobre os eventos a que estamos a fazer referência e no momento em que estamos a discutir as questões da segunda revisão constitucional?
O Sr. Presidente: - Pelos vistos, há três "teses de doutoramento" sobre esse assunto, mas o que nós não sabemos é o que é que vão tirar daqui.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Essas teses não me preocupam, Sr. Presidente. Preocupa-me mais o que possa ocorrer junto dos tribunais...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Disso não tenho medo, Sr. Deputado. No fundo, era a primeira Constituição que tratava deste tema.
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O que está em causa é um interesse teórico.
Vozes.
O Sr. António Vitorino (PS): - Desde que fique consagrado na epígrafe do artigo "Norma Miguel Galvão Teles".
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o PSD não nos explicitou a sua proposta de alteração. Suponho que oferecerá o mérito do Sr. Deputado Miguel Galvão Teles para uma parte da problemática, mas seguramente não o poderá fazer para a última.
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Refiro-me ao n.° 3.
O Sr. Presidente: - O PSD já se manifestou, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. Refiro-me à própria norma apresentada pelo PSD.
O Sr. Presidente: - Creio que já se manifestou, Sr. Deputado. Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... disse que era o artigo 294.° transposto para aqui, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso significa que os Srs. Deputados do PSD são insensíveis às normas respeitantes à aprovação dos estatutos definitivos?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, podemos considerar essa situação em sede de revisão...
O Sr. Presidente: - Em qualquer caso, esta regra mantém-se.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sei isso, Sr. Presidente. O que me suscita verdadeira perplexidade nesta proposta do PSD é que ela faz uma amálgama, que considero indesejável.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, o Sr. Deputado Costa Andrade já disse aqui que o PSD não se bate pela solução sistemática.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Fico muito feliz com isso, Sr. Presidente.
Esta ideia de meter juntos o direito fascista e o estatuto das regiões autónomas parece-me de mau gosto...
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, nem com essa esforçada defesa dos segmentos recuados consegue resolver o problema da má companhia.
Vozes.
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O Sr. Presidente: - O n. ° 2 já se refere ao direito anterior à Constituição.
Srs. Deputados, vamos passar ao artigo 293.°, em relação ao qual há uma proposta do CDS.
O CDS não está aqui presente para justificar a sua proposta. É óbvio que isto está ligado ao sucesso da sua proposta sobre leis orgânicas. É, pois, uma proposta consequente!
O PSD elimina este artigo porque o transfere para o artigo anterior. O mesmo se diga em relação ao artigo 294.°
Quanto ao artigo 294.°, há ainda uma proposta do CDS, que refere o seguinte:
1 - O estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira estará em vigor até ser promulgado o estatuto definitivo, pelo prazo máximo de dois anos.
2 - Se, no prazo de um ano, a Assembleia Regional não cumprir o disposto no n.° 1 do artigo 228.°, a Assembleia da República tomará a iniciativa de elaborar e aprovar o estatuto definitivo.
O PS também apresenta uma proposta para este artigo, que refere o seguinte:
1 - O estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira continua em vigor até à data da entrada em vigor do correspondente estatuto definitivo.
2 - Dentro de seis meses a contar da entrada em vigor da lei de revisão constitucional, a Assembleia Regional da Madeira enviará à Assembleia da República, para discussão e aprovação, uma proposta de estatuto definitivo daquela Região, após o que, em caso de incumprimento, o direito de iniciativa caberá à própria Assembleia da República.
É, pois, uma proposta semelhante à do CDS. Não se refere o estatuto dos Açores, pois este já não existe.
O prazo que estabelecemos no n.° 2 é mais rigoroso do que aquele que está previsto na proposta do CDS.
A ID estabelece na sua proposta o prazo de um ano. Portanto, são dois anos para o CDS, seis meses para o PS e um ano para a ID. A eternidade é para o PSD!!!
Risos.
Nós não ultrajaremos a nossa inteligência justificando esta nossa proposta.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, não nos parece que se deva ultrapassar o campo das sanções políticas e atingir o domínio de uma sanção constitucional com o teor que está aqui referido. É esta a nossa opinião sobre esta matéria!
O Sr. Presidente: - Mesmo no caso de uma tão clara imunidade às sanções políticas, como é o caso do Sr. Presidente do Governo Regional?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não estamos predispostos para, neste momento, tomar uma posição sobre esta matéria, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Mas não pensam que é indigno manter uma situação destas, sobretudo quando estamos perante o desafio claro de que ele nunca proporá outro estatuto definitivo?
Pausa.
Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, este n.° 2 do artigo 294.° é um verdadeiro ultimato constitucional. Aliás, não é só um ultimato constitucional, é mais do que isso: é uma norma absurda, uma vez que o n.° 1 do artigo 228.° não comete à Assembleia da República a iniciativa para efeito de elaboração dos projectos dos estatutos político-administrativos das regiões.
O Sr. Presidente: - Se cometessem não precisávamos desta norma, Sra. Deputada.
A Sra. Mana da Assunção Esteves (PSD): - Mas aqui uma verdadeira admissão constitucional - aliás, inconveniente - de duas normas que se contradizem entre si. Portanto, a veemência política com que este ultimato sai dos seus autores fá-los chocar os princípios que impõem que, nomeadamente a nível do texto constitucional, não pode haver o choque de competência que se vislumbra entre o artigo 294.° e o artigo 228.° É um verdadeiro choque de competências!
O Sr. Presidente: - Sra. Deputada, o que acontece é que se conferiu uma prerrogativa, e a omissão constitucional é claramente abusiva. Assim, ou ficamos com uma norma destas ou continuaremos passivamente perante uma situação flagrante e até provocatória de omissão constitucional.
Pensamos que é indigno que os Açores tenham um estatuto como têm e a Madeira continue a ter o mesmo estatuto só por birra do Sr. Presidente do Governo Regional da Madeira. Se nós soubéssemos que havia qualquer outra razão respeitarmo-la-íamos. Só que a única coisa que está em causa é uma birra pessoal do Presidente do Governo Regional da Madeira. Provavelmente, ele vai continuar a fazer essa birra. Nós não vamos pactuar com isso! Vocês assumem a responsabilidade sozinhos e nós vamos fazer todo o barulho que pudermos a este respeito. Não tenham a menor dúvida quanto a isso!
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, gostaria de responder à Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves. Por muito brio e por muito bem que lhe fique a defesa das cores partidárias, de facto, rotular o n.° 2 do artigo 294.° como um ultimatum constitucional, que é legítimo naturalmente, pressupunha também, por uma questão de paridade de razões, qualificar-se o significado político da omissão da iniciativa legislativa da Assembleia Regional da Madeira, como mais do que um ultimatum, como urna verdadeira declaração de guerra, na medida em que todos
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nós temos consciência de que estamos perante uma situação que lamentavelmente caiu no plano do afrontamento interinstituições. Porque a lógica que preside à nossa proposta não é a lógica da bravata política, é a lógica da consolidação das autonomias regionais, e não vale a pena também escamotear essa outra vertente do problema. É que nós podemos hoje, conscienciosamente, dizer que a autonomia regional dos Açores se encontra num estádio de maior consolição jurídico-constitucional do que a autonomia regional da Madeira, pela simples razão de que a autonomia regional dos Açores assenta num estatuto definitivo aprovado nos termos da Constituição, enquanto a autonomia regional da Madeira assenta num instrumento técnico-jurídico muito mais frágil, muito mais falível e muito mais vulnerável à evolução da situação política e à alteração eventual e hipotética em termos mesmo radicais, da maneira como as forças políticas nacionais encaram as autonomias regionais.
Portanto, atacar a nossa proposta para o artigo 294.° como uma ofensa às regiões autónomas é, em meu entender, inadmissível. O que se trata é de uma proposta que tem como objectivo fundamental chamar a atenção de que quem não cumpre a obrigação constitucional de apresentar o estatuto definitvo vulnerabiliza pelas suas próprias mãos as autonomias regionais. Este é o primeiro ponto que gostava de deixar claro. Mas há um segundo ponto.
Se o que causa "engulho" é o facto de se criar aqui uma norma de conflito de competências, que nem o é verdadeiramente, é uma norma de resolução de um conflito de competências, fazendo caducar a competência de iniciativa legislativa reservada da assembleia regional em benefício de uma iniciativa da Assembleia da República (AR) pelo transcurso de um prazo, gostaria de dizer que o prazo é ajustável, se é isso que causa "engulhes" aos Srs. Deputados do PSD. Neste contexto, por que é que o PSD não considera a hipótese de, no artigo da Constituição referente à inconstitucionalidade por omissão, artigo 283.°, instaurar um sistema de fiscalização da omissão desta iniciativa legislativa? Isto é, um mecanismo de fiscalização que contemplasse a situação resultante da ausência de iniciativa legislativa da assembleia regional da Madeira, em matéria de estatuto político-administrativo. Já não estaríamos então perante um conflito de competências, já não seria sequer um conflito a resolver por via política mas seria, sim, um conflito entregue à fiscalização do Tribunal Constitucional.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais da oradora.) [...] porque se há quem faça uma alternativa à actual redacção do artigo 294.°, é o PS. E como essa alternativa comporta uma distorção ao artigo 228.°, então por que é que o PS não faz essa deslocação, e aí nós poderemos discutir se aceitamos ou não essa nova formulação da inconstitucionalidade por omissão, ou da ilegalidade, como lhe chamou?
Mas o que me parece inconveniente é a proposta que temos, e nos é apresentada, sofrer, de facto, de um vício que distorce todo o âmbito e toda a intenção contida no artigo 228.° Portanto, isso não é um ónus que nos cabe a nós, que estamos quietos...
O Sr. Presidente: - Sra. Deputada, posso fazer-lhe uma pergunta simples, e sem interromper o seu discurso?
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sim, faça favor.
O Sr. Presidente: - Qual é a vossa solução para este problema?
Talvez nós possamos contemplar outra. Por exemplo, eu dou-lhe uma: que até ao fim da Revisão Constitucional, no momento em que tivermos de votar este problema, apareça uma proposta de estatuto da Madeira na AR. Retiramos a nossa proposta imediatamente. Não estamos aqui para criar conflitos, de maneira nenhuma. Ou nos dão uma proposta melhor ou aprovam a nossa, ou aceitam uma proposta do tipo da que enunciei.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Neste momento só estamos autorizados a apelar para a sanção política. Não temos, neste momento, nenhuma outra possibilidade. De resto, a solução que o Sr. Deputado António Vitorino aventou da inconstitucionalidade por omissão colocar-nos-ia na mesma, pois não resolveria o problema em termos de espécie. Suponhamos que a decisão do Tribunal Constitucional (TC) não era de omissão, não era aplicável. Quid júris? Aplicava-se-lhe o crime de responsabilidade?
O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Deputado, desculpe, não! Mas é que estou a colocar-me exactamente na vossa lógica, é que tratava-se de uma sanção política mas jurisdicionalizada. Não era um conflito interinstituições, não era um conflito entre órgãos do poder político, era uma decisão do TC, que vincula, nos termos que nós sabemos restritos, qualquer órgão legislativo, e também a assembleia regional da Madeira. Só isso e nada mais!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Certo. A sanção política persiste com ou sem decisão do TC. Do ponto de vista da sanção política, se a assembleia legislativa da Madeira está em dívida, aquela persiste independentemente da fieira do TC.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Antes de mais, diria que o PRD não propôs nada em relação ao artigo 294.° devido à filosofia geral que seguiu de não mexer em nada que dissesse respeito às regiões autónomas. No entanto, devo confessar que sempre que se trata de questões relativas às regiões autónomas tenho uma certa reserva. E digo isto porque sou defensor da autonomia das regiões, com os seus limites próprios. Sei que há "birras" sobre isto, mas quando se discute o assunto e não há meios para o solucionar temos de revelar algum cuidado.
Devo dizer que as propostas do CDS e do PS me lembram uma proposta que fiz a propósito da inconstitucionalidade por omissão, sabendo embora que não viria a ser aprovada: propusemos a inconstitucionalidade por omissão e também que, verificada esta, se a assembleia legislativa ou o governo, o órgão legislativo
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competente, no prazo fixado pelo Presidente da República, não emitisse as medidas legislativas para cumprir a Constituição, o Conselho da Revolução podia substituir-se ao órgão competente e fazer ele próprio a legislação. Isto estava previsto no projecto do Pacto MFA/Partidos. É evidente que não foi aprovado, mas fazia parte do jogo ...
Uma voz: - Bens velhos tempos!
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas reparem que é o mesmo sistema, a mesma lógica...
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Isso não era a legitimidade da legalidade, era a legitimidade da revolução!
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Está bem, era a legitimidade da revolução. Mas isto caiu!
Devo, aliás, confessar que quando se declarou a violação da constitucionalidade por omissão no projecto do Pacto não conhecia a Constituição jugoslava e achei muita piada àquilo. É evidente que criar uma figura de controle da violação da constitucionalidade por omissão, quando se fez o projecto do Pacto, era coisa para cair em troca de outra. E caiu efectivamente por considerações de prudência que, salvo o devido respeito, penso serem aplicáveis neste caso. Pergunto: alguma vez a Assembleia da República teria coragem de fazer o estatuto da Região Autónoma da Madeira? E se o fizesse?
Vozes.
E se não cumprisse?
O que digo é isto: há evidentemente da parte das regiões autónomas, particularmente da Madeira, em certos casos e em certas circunstâncias, comportamentos que qualificaria de excessivos. Mas quando fazemos as grandes ameaças temos depois que as levar até ao fim. Peço - já não estou a discutir partidariamente - que reflictam sobre quais seriam as consequências numa situação destas, como é a de estabelecer esta possibilidade de a Assembleia da República se substituir à assembleia regional na preparação do estatuto, como forma de ameaça. Mas as ameaças, quando não produzem efeito, têm de ser concretizadas. E depois?
Diria que estamos numa zona extremamente perigosa. Desde logo a Madeira pode dizer: "Fazer um estatuto definitivo é um direito nosso. Fazemo-lo se quisermos, até porque já temos um estatuto provisório." Esse estatuto provisório, aliás, foi feito com intervenção da Madeira, mas quase nenhuma. Na elaboração do estatuto provisório a Madeira foi muito preguiçosa: os Açores apresentaram um projecto (recordo-me disso porque participei nesse processo, o que também aconteceu com o Dr. Almeida Santos) e a Madeira copiou o projecto dos Açores. Depois foram feitas umas alterações e ambos os estatutos - o dos Açores e o da Madeira - foram aprovados por decreto-lei.
Outra situação a considerar é, por exemplo, a de a Madeira dizer: "Temos um estatuto provisório (bom ou mau) e normalmente o estatuto definitivo seria até mais favorável à autonomia do que o provisório. E pode-
mos sempre dizer que o estatuto é um problema de auto-organização, que a Região Autónoma da Madeira só se auto-organiza se quiser e se não quiser não o faz." Mas não excluiria a hipótese de se ir ao ponto de fixar um prazo. Nessa altura - no caso de fixação de um prazo - não se trataria de ilegalidade por omissão, mas de inconstitucionalidade por omissão, e poderiam funcionar os mecanismos gerais da fiscalização da constitucionalidade. É extremamente perigoso tudo o que vá para além disso, porque depois tratar-se-ia de ameaças constitucionais que não há meios para pôr em prática. E quando se trata de relações de poder institucional, entre o Estatuto e as suas estruturas, as coisas começam a tornar-se muito melindrosas. Prefiro aturar umas "birras" a criar situações irreversíveis! E aí - não está presente o Sr. Deputado Carlos Encarnação, que se honrou de o seu partido ter obtido a maioria em ambas as regiões autónomas - cabe ao PSD um papel político muito importante e a obrigação política estrita de "compor" as coisas que se têm passado.
Mas, como já referi, sempre que se trata destas questões, não me inclinaria para ameaças que posteriormente não concretizamos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - É só para formular uma pergunta simples, que é esta: Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, não acha que, colocando a questão em termos de ameaça, é uma interpretação unilateral e redutora do sentido da proposta do PS? Não se trata de uma ameaça na realidade!
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Ponha "ameaça" entre aspas! O que quero dizer é que se reporta à criação de um mecanismo de substituição que ou a Assembleia da República usa e pode conduzir a uma situação gravíssima, ou a Assembleia da República não usa e os partidos que inserirem isto na Constituição não ficam em boa situação. Mas, de qualquer modo, reitero a palavra "ameaça" (entre aspas!).
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, tem a palavra.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A questão da eterna provisoriedade do estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira constituiu-se num melindrosíssimo problema, cujo agravamento se verifica quotidianamente. Não se trata de uma casualidade, nem de um evento por todos indesejado, mas tornado inevitável. Trata-se do resultado de uma deliberada e obstinada vontade política, armada por um pensamento autonômico, aplicada pelo zelo de um cento de pretores, sustentada, contra toda a oposição, na Assembleia Regional da Madeira, sustentada por meios legítimos e por meios ilegítimos (têm sido não admitidos ou truncados todos os projectos tendentes a dar o tiro de partida para a elaboração de um estatuto definitivo na Região Autónoma da Madeira)!
Parafraseando uma declaração do Presidente do Governo Regional da Madeira, que, aludindo à revisão constitucional, disse há tempos, e vem insistindo todos os dias de manhã, à tarde e à noite ("a revisão
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constitucional é um caso perdido"), quase se poderia dizer que "o estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira é um caso perdido". Só que, tal como a primeira afirmação é falsa, a segunda, se fosse verdadeira, seria a assunção pelo PSD da total impossibilidade de fazer cumprir a Constituição num dos vectores e numa das dimensões em que ela é fundamental para defender a unidade do Estado e para garantir a regularidade do funcionamento dos próprios elementos integrantes da estrutura do Estado de direito democrático. Ano após ano o PSD, que tem maioria absoluta na Assembleia Regional da Madeira, inviabilizou a apresentação na Assembleia da República de uma proposta de estatuto definitivo. Gorada a hipótese de o fazer aprovar na mesma altura em que foi aprovado o estatuto definitivo da Região Autónoma dos Açores (gorada porque o diploma era tão recheado de inconstitucionalidades que não passou ao crivo do órgão de controle próprio em funções à data), não mais se logrou qualquer tentativa legislativa.
Isso é produto exclusivo e integralmente susceptível de ser devolvido à responsabilidade do PSD. Mais: a responsabilidade partidária é tão grande, é tão descomunal, que aquilo que se verifica verdadeiramente é um sacrifício por parte do PSD, enquanto estrutura nacional, à orientação feudalizante, fechada, renitente e de rebelião institucional do PSD regional da Madeira. Nenhum chefe nacional do PSD teve até hoje condições políticas, vontade política e determinação política para pôr ponto final a este episódio caricato, que deslustra as próprias instituições autonômicas e mancha o relacionamento entre uma região autónoma e a República.
O Presidente do Governo Regional da Madeira tem a seguinte filosofia: "antes estatuto provisório que qualquer cheiro de estatuto definitivo". A ideia de que o actual estatuto, por ser provisório, é o melhor (por ser o que menos legitimidade tem é o que mais favorece os projectos e pretensões de quem tem da autonomia a noção que o PSD/Madeira tem) é um facto insofismável que deve ser ido em conta para analisar a situação institucional e política criada. O Dr. Alberto João Jardim e os "chefes" do PSD regional entendem que essa é a melhor malha de protecção, no momento em que se batem por uma "autonomia em roda livre" (aquilo a que chamam uma autonomia progressiva mas que tem como azimute o transcender as próprias fronteiras da Constituição e o embarcar num esquema que suas excelências se recusam a rotular "et pour cause". Esse projecto aventureiro tem de ter um exame responsável por parte de todas as forças empenhadas na apreciação desta questão, incluindo por parte do PSD.
Ora, o PSD, nesta matéria, adoptou uma posição profundamente hipócrita: recusou o projecto vindo da Assembleia Regional da Madeira, recusou as pretensões apresentadas pelos chefes locais do PSD, recusou-se a transformar o seu projecto de revisão constitucional na albergaria geral de propostas disfuncionais em relação aos quadros constitucionais, quanto à autonomia, mas manteve completo silêncio quanto a esta questão fulcral.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador) [...] e, nessa parte, em que a hipocrisia se relaciona com o silêncio, qual é a diferença?
Em que é que o PCP foge à acusação de eventual hipocrisia em relação ao problema, confrontando-nos nós com o silêncio sepulcral do projecto do PCP para dar resposta a esta questão? Se à hipocrisia do PSD se contrapõe a sinceridade e a vontade de resolver os problemas da parte do PCP, então pergunto: quais são as iniciativas do seu projecto de revisão constitucional para fugir a essa questão? Gostaria de saber, ainda, se o apoio de hipocrisia e a posição de Catão não releva, agora aí, de uma hipocrisia dobrada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Costa Andrade, e bem preferiria até que as coisas fossem como o Sr. Deputado as descreve, porque seria, talvez, menos grave.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Eu não descrevi. Apenas perguntei.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado perguntou, mas fê-lo estabelecendo uma grelha imputativa, em que emitiu um juízo político critico no caso de se confirmar a hipótese que o Sr. Deputado desenhava no ar. Ora, essa hipótese assenta num exercício que me parece, acima de tudo, criticável: o Sr. Deputado fez deliberada confusão entre o silêncio daqueles que podem fazer e não o fazem e o bem distinto silêncio daqueles que, postos perante um problema cuja resolução é extremamente intrincada, se coíbem de adiantar soluções cuja eficácia é mais do que dúbia. O nosso silêncio tem este último significado, Sr. Deputado Costa Andrade.
O silêncio do PSD é o silêncio de quem, tendo meios políticos e responsabilidades políticas nacionais e regionais, não usa nenhum desses meios para desbloquear a situação (pelo contrário, pela acção lá e pelo silêncio cá, mantém um bloqueio). Aí é que está o segredo da actuação do PSD - por isso é que falo de hipocrisia, de duplicidade ou de triplicidade. A vossa postura traduz-se nisto: nenhum esforço para o desbloqueamento da situação na Região Autónoma da Madeira; nenhum esforço para levantar as peias e as cangas que têm impedido até agora que apareça essa famosa proposta. Ela que apareça! Na Assembleia os senhores têm maioria e, neste momento, o estatuto nem sequer é aprovado por dois terços! Poderá vir a sê-lo, talvez. No entanto, neste momento, não o é. Mas, mesmo nesse contexto, de todos o mais desejado pelo PSD, de todos o mais seguro e de todos o mais "em família" - não há nenhum impulso vosso para pôr cobro à anomalia. Já nem aludo à ausência de esforços para efeitos de consenso aprovador. Para ser correcto, a aprovação de um estatuto definitivo devia ser como aconteceu, aliás, no caso dos Açores, largamente sufragada. E pode sê-lo, pois não é difícil reunir à volta das autonomias um consenso alargadíssimo, bastando que para tal haja vontade política e que a plataforma seja, como é óbvio, a nossa Constituição e não outra Constituição de outro país, de outro quadro.
O PSD impulsiona esse bloqueio lá e aqui cala-se. Esse silêncio é um silêncio cúmplice e é a revelação da natureza real da operação que o PSD conduz e de que tem de assumir a responsabilidade. Não pode fugir a isso!
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O Sr. Costa Andrade (PSD): - E não chamará o PCP na ajuda da assunção da responsabilidade, posso prometê-lo! O PSD arca-la-á sozinho.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, tem vocação para os monopólios...
No caso concreto, porém, a situação criada não é uma querela doméstica. Não é uma daquelas cenas de pancada em que o Sr. Dr. Jardim vem a Lisboa para se avistar com essa figura conspícua, inóspita e, aliás, antipática que é o Ministro Cadilhe para ouvir dizer: "não há mais um tostão". Não é isso! Não estamos aqui a discutir os maravedis de que S. Exa. precisa para fazer a próxima campanha eleitoral na região autónoma.
O que aqui estamos a discutir é se esse diploma de carácter basilar para as autonomias regionais, que é o estatuto político-administrativo, pode ser aprovado, como a Constituição manda desde as suas origens, ou se continua a ser bloqueado. Esse caso duradouro digno do Guiness Book no capítulo referente à resistência ao cumprimento da Constituição vai ser encerrado com um hanpy end ou não vai ser encerrado? A questão é essa.
Isso me conduz à resposta à interrogante e percuciente questão do Sr. Deputado Costa Andrade: "porquê a não apresentação pelo PCP de uma proposta desta matéria"?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - E com isto entramos em discussão de revisão constitucional. É que até aqui estivemos a discutir as aventuras do Presidente do Governo Regional, que não me dizem respeito - como legislador constituinte, não me dizem respeito!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, se as aventuras e desventuras daquele que é o principal responsável pelo bloqueio na apresentação, precisamente, das iniciativas legislativas que poderiam pôr fim a esta situação não interessam para este debate, este debate é, verdadeiramente, um debate abstracto, surrealista e desinteressante.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Repito, Sr. Deputado, que em sede de revisão constitucional não me interessam.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah! O que isso quer dizer é que o debate não lhe interessa em absoluto! Percebo perfeitamente porque o debate é altamente incómodo para o PSD. Mas há melhores maneiras de desconversar!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, que ideia! Gostamos muito de o ouvir! Incómodo?! Por amor de Deus! Estamos deliciados, embora apressados! Pode continuar.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Claro! Passo ao exame das boas e das más soluções.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas se viesse a resposta à minha pergunta eu agradecia.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, pedia-lhes um esforço de síntese, pois estamos a demorar muito tempo com este artigo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em qualquer caso, não conseguiremos nunca demorar tanto tempo como a Região Autónoma da Madeira demorou para apresentar uma proposta. Seremos seguramente mais breves!
Uma voz: - Muito bem!
Risos.
O Sr. Presidente: - Começava a ter dúvidas, mas ainda bem que me tranquilizou!
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão é, basicamente, esta: colocado perante esta situação, o legislador, em sede de revisão constitucional, teria tantas hipóteses quantas as que, curiosamente, estão colocadas, neste momento, perante nós, no que diz respeito às alterações ao artigo 294.°
Primeiro, poderia fixar um prazo, prazo esse susceptível de ser ultrapassado - sabemo-lo. Segundo, o legislador ordinário poderia estabelecer um prazo e uma sanção política traduzida na perda do monopólio e da iniciativa legislativa que neste momento recai a favor da assembleia regional respectiva. Terceiro, pode imaginar uma sanção complexa e articulada, traduzida na caducidade do estatuto e a criação de um vazio legislativo. Esta última hipótese seria encarada como verdadeiramente divina pelos promotores da teoria da autonomia progressiva e sem limites: passariam a encontrar aí a carta de alforria suprema, traduzida na vinculação directa pela Constituição - e apenas pela Constituição. Sendo esta tão omissa em relação a muitos aspectos cruciais, gerar-se-ia uma situação de anomia verdadeiramente perfeita para determinado tipo de orientações. É evidente que essa situação seria, também, evidentemente, causa de instabilidade institucional e lançaria uma situação de pavor político institucional, jurídico, etc.. Seria um verdadeiro terramoto, de consequências imprevisíveis.
Evidentemente que há, também, a hipótese de se recorrer, em mais suave, ao mecanismo da fiscalização da omissão da prática de um acto legislativo, não se decretando perda do monopólio. Só que aí - como o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, de resto, documentou com alguma lembrança histórica que me apraz sublinhar - o que ocorre é que o mecanismo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, se foi imaginado em determinados termos, foi consumado em termos bastante mais débeis, tendo sido, depois disso, alterado na 1.ª Revisão Constitucional. Não sei o que seria aplicado a esta matéria. O que há de típico nesta fiscalização da inconstitucionalidade por omissão é que ela não tem nenhum efeito jurídico directo e se limita a uma constatação e a uma verificação do tipo "Digo-te que a lei que tu querias não existe; digo-te que a iniciativa que tu desejavas não existe e digo-te isto quantas vezes for necessário", o que ocorrerá sempre que o Presidente desencadeie o processo e o Tribunal reúna para considerar a situação e conclua que a situação se continua a verificar.
A conversão do Tribunal Constitucional numa espécie de corvo do Edgar Allan Poe que, em vez de dizer never more, diria continua a haver Constituição e a não haver estatuto, daria ao Tribunal Constitucional o papel do gajeiro que, do alto do mastro, grita "não há terra
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à vista". Seria, verdadeiramente, tornar supliciante e insustentável o papel deste Tribunal e ainda mais impor tente o papel da República e dos outros órgãos de soberania envolvidos, para conseguir o efeito jurídico-político almejado. Esse é um risco real!
Outro aspecto relevante é que nenhum partido propõe que, além de haver um prazo para a Assembleia da República assumir as competências que seriam até então monopólio da Assembleia Regional da Madeira, esta seja constrangida e obrigada a fazer a sua aprovação propriamente dita. E ainda que fosse constrangida a fazer a aprovação, ficariam em aberto todas as hipóteses decorrentes da questão da aplicação, o que suscita toda a explosiva problemática da capacidade de aplicação dos instrumentos jurídicos.
Em todo o caso, como os ovos de Mofina Mendes, não vale a pena estar a pensar no resultado último quando o próprio resultado primeiro não é logrável. Ó PSD, que tem maioria absoluta na Assembleia da República neste momento e que não deixaria de a ter caso nós aprovássemos, por exemplo, o artigo 294.° na redacção do PS aprovaria o estatuto que entendesse ou não coisa nenhuma, até, eventualmente...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas, Sr. Deputado, quem é que lhe disse - e isto faz parte da suas condições - que nós não aprovaríamos uma proposta como a do PS?
A única coisa que eu disse - e mantenho - é que, neste momento, não estamos em condições de ir além da sanção política.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, se V. Exa. me diz que, neste momento, o PSD não está em condições, nem em "descondições", que não diz não, nem diz sim, eu, evidentemente, interrompo a intervenção a benefício do conhecimento da posição do PSD...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, Sr. Deputado. Faça favor de acabar que nós queremos responder.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É que, nessa altura, poderei raciocinar mais instruído, confortado com a vossa posição, em vez de estar a ser obrigado a imaginar o raciocínio que o PSD é suposto fazer nesta matéria, juntando os dados que temos sobre o, aliás intrincado, "pensamento laranja". V. Exa., provavelmente, tem o pensamento íntimo do Dr. Alberto João Jardim dentro do bolso! Poderá facultar-mo?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, pedia-lhe que explicitasse, com a profundidade e com o rigor que lhe for possível, as propostas do PCP para resolver este problema.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A posição do PCP sobre esta matéria, Sr. Deputado Costa Andrade, é a de que este é um escândalo institucional ao qual é preciso pôr cobro por meios institucionais adequados.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Escândalo esse a que só hipocritamente se pode responder com o silêncio do PCP, que nos traz aqui um texto que não dá solução nenhuma.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, o silêncio resulta da prudência numa matéria em que, à falta de lisura política do PSD, as soluções - que passei agora mesmo em revista - são todas más. Todas, absolutamente todas!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - E o melhor é não fazer nada, que foi o que fez o PCP, irmanando-se na proposta do PSD!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado, se estamos irmanados em alguma coisa é no objectivo de fazer com que acabe esta situação absolutamente absurda de choque, de resistência à aplicação da Constituição e de conflito institucional alargado! V. Exa. não esteve na abertura dos trabalhos da Assembleia Regional da Madeira na altura em que o chefe do Grupo Parlamentar do PSD, pura e simplesmente, debitou para a acta diatribes sobre o "colonialismo constitucional"!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Estou-me nas tintas para isso!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Se V. Exa. se está nas tintas, faça favor! Mas o melhor é encomendar um tira-nódoas!
O Sr. Presidente: - Penso que este tipo de discussão já não conduz a nada, Srs. Deputados.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - O PCP aparece aqui a zurzir o silêncio do projecto do PSD, sendo certo que ele próprio não traz proposta nenhuma.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, se tivéssemos maioria na assembleia regional, não só havia proposta, como havia proposta e estatuto.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas nós, aqui, somos legisladores constituintes. Não estamos na assembleia regional!
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Neste momento - e insisto neste ponto porque penso que a discussão está um pouco deturpada - a Região Autónoma da Madeira não tem obrigação constitucional de fazer o seu estatuto definitivo. Constitucionalmente uma faculdade. Podemos convertê-la em dever ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Constitucionalmente é uma faculdade?!
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É, pura e simplesmente, uma faculdade. À Região Autónoma da Madeira tem o poder de fazer ou não o seu estatuto definitivo, mas não tem a obrigação de o fazer. Tem o estatuto provisório, que poderá permanecer provisório; não tem o dever de fazer o definitivo, embora tenha o poder de o fazer em alguma altura. E evidente que não partilho das razões que levam a Região Autónoma a tomar esta atitude, que penso serem graves
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porque correspondem a criar aquilo que tem de se evitar de vez, ou seja, uma situação de contestação permanente do sistema. O que é grave em não fazer o estatuto definitivo é dizer: "Não fazemos o estatuto definitivo porque o quadro constitucional não nos convém."
Eu diria que estas matérias - salvo o devido respeito e independentemente de questões com uma pessoa ou com um partido - são excessivamente graves e constituem domínios onde, se se põe a bola a rolar, nunca se sabe onde é que ela pára. Faria um apelo ao PSD no sentido de tentar resolver internamente o problema, pois trata-se, em parte, de um problema interno. Ou melhor: nem sequer é um problema interno, porque o PSD é, digamos, a única força com capacidade para resolver esta questão de uma forma calma.
Chamaria apenas a atenção para o facto de esta ser uma zona extremamente complicada, onde temos as nossas convicções, mas onde a prudência de actuação é fundamental. É este o meu ponto de vista.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, estamos num processo de revisão constitucional e também nós constatamos que há, neste momento, o inadimplemento de uma faculdade com um certo coeficiente de dever da parte de uma assembleia legislativa. É este apenas que nos interessa como legisladores constituintes, pois não curamos aqui dos custos com que, zelosamente, o Sr. Deputado José Magalhães se preocupa, ou seja, os custos que o PSD está a pagar por causa dos problemas relacionados com as regiões autónomas. Que o PCP e o Sr. Deputado José Magalhães deixem essa questão de parte porque nós assumimos os nossos custos e pagá-los-emos. Esses problemas são nossos. Estamos confrontados com esta situação de inadimplemento e com ela também se confrontou o PCP, com força e com veemência. A intervenção que acabámos de ouvir revela particular interiorização e força. O PCP, pelos vistos, dormirá muito mal por causa deste inadimplemento. O PCP não dorme! Nós também temos algumas preocupações.
E para responder a esta preocupação dissemos - e esse foi o início da nossa intervenção no debate - que neste momento não víamos outra saída que não a sanção política, no que, afinal, também não estamos sós, descontadas, naturalmente, as formas terapêuticas de intervenção por relações intrapartidárias. E o PCP, que não dorme - diz o Sr. Deputado José Magalhães -, o que é que traz ao debate? Nada! O PCP não traz nada! Mas o PCP não dorme com o problema. Nós ainda temos algum descuido porque ainda dormimos alguma coisa; temos alguma preocupação, mas vamos dormindo. A nossa solução ainda é uma solução compatível com quem vai dormindo alguma coisa. Agora a posição do PCP é a de quem não dorme. E quem não dorme o que é que traz? Nada! E se quem dorme e faz...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Antes isso que um pesadelo, Sr. Deputado!
Risos.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Nós não temos pesadelos, Sr. Deputado! Estamos extremamente felizes, como, aliás, se nota, e não temos a angústia dos nossos custos! O Sr. Deputado é que os vai tendo. Nós temos a felicidade dos simples porque não pensamos nisso!
Não posso deixar de, em nome do meu partido, fazer aqui um protesto muito vincado não à argumentação do Sr. Deputado, mas, sim, à qualificação de hipocrisia. Não podemos aceitar isso! Se essa acusação tivesse alguma pertinência, era em relação ao gajeiro ou ao vigia da noite que não dorme a olhar para a madeira e que chega aqui ao processo de revisão constitucional e não traz nada!
O Sr. José Magalhães (PCP): - E o comandante que está à ponte e que pode mudar o rumo do navio, também não é responsável? Está V. Exa. a olhar para a Estrela Polar, Sr. Deputado Costa Andrade?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador..)
[...] nessa altura, estamos a dormir.
O Sr. Presidente: - Vamos acabar com as imagens. Eu fazia uma breve síntese porque penso que este problema é efectivamente muito sério e as palavras do Sr. Deputado Galvão Teles foram uma chamada de atenção a cada um de nós, para que pondere o que há de sério nisto.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Se o Sr. Presidente me permite, eu queria subscrever essa observação,
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado, mas eu também subscrevo essa afirmação!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Está no seu direito, Sr. Deputado. Mas por que é que há-de vir atrás de mim?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não é atrás é ao lado, Sr. Deputado!
O Sr. Presidente: - Vamos ver se encontramos uma saída para isto. Porque, se não encontrarmos, isto vai dar um belo espectáculo no Plenário no momento em que passarmos por este nível de água. Vai até dar um espectáculo que talvez até não convenha ao País, porque, enfim, temos que pensar um pouco na velha Pátria que já sofreu prejuízos demais.
Não há dúvida de que o principal responsável é o Presidente do Governo Regional da Madeira. Tem razão, em parte, o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, quando diz que esta obrigação constitucional não tem prazo. O facto de não ter prazo não quer dizer que deva ser cumprida na eternidade, que possa ser cumprida daqui a 100 anos. É evidente que há aqui um pecado de omissão, embora não uma omissão formalizada.
Para evitarmos este "bate-papo" que, já se vê, vai dar um excelente momento de debate parlamentar com todas as consequências, nós temos que ser razoáveis e a razoabilidade, aqui, consiste em quê? Consiste em ver se encontramos uma solução. Diz o Sr. Deputado Costa
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Andrade que isto só tem sanção política. Eu acho que isto não tem é solução política. Pois até acontece que o Presidente do Governo Regional da Madeira consegue que a opinião pública da Madeira se esteja "marimbando" para o estatuto definitivo, nem sabe praticamente o que isso é.
Eu até compreendo - se querem que vos diga - que, de algum modo, esta situação actual convém ao PSD. E convém ao PSD, porquê? Porque sempre que se discutiram estatutos autonômicos havia uma oposição que era o bode expiatório de não querer levar a autonomia além de um certo ponto. Agora era impossível, porque VV. Exas. estão sozinhos e têm maioria para aprovarem o nível de autonomia que quiserem. E, como o vosso nível de autonomia enquanto partido nunca dará satisfação ao Dr. João Jardim, é evidente que isso vinha a dar uma polémica directa entre VV. Exas. e o Dr. João Jardim. Não obstante, têm de reconhecer que sempre tivemos, enquanto oposição, uma posição cooperante, porque todos os estatutos foram discutidos com o PS, com o PCP e com o CDS, na oposição (com o CDS nem sempre, mas com o PS sempre) e sempre tivemos uma posição altamente colaborante - a prova disso é que ainda há inconstitucionalidades no Estatuto dos Açores e ainda nenhum de nós as arguiu. Podemos fazê-lo quando quisermos e serão declaradas inconstitucionais (não temos dúvidas nenhumas). São, no entanto, inconstitucionalidades que não são graves - o PCP tem fechado os olhos, nós (PS) também - na altura votámos contra, mas depois não nos indignámos, porque não são inconstitucionalidades que ponham em causa interesses fundamentais do País.
O que é que poderia ser uma solução meio-termo (e eu coloco esta interrogação ao Sr. Deputado Costa Andrade)? Era fazer-se o que fez a Constituição originária que fixou um prazo, nas disposições transitórias, para ser elaborado o estatuto provisório - prazo de que eu fui vítima e o Sr. Deputado Galvão Teles, numa primeira fase, também. Era fixar aqui um prazo para o estatuto definitivo, sem ameaças, sem deferir o direito para a Assembleia da República. E uma solução intermédia que me parece absolutamente pertinente e razoável. Dizer: "Dentro do prazo de..." - e VV. Exas. fixem o prazo que quiserem, que seja depois das próximas eleições regionais, para que não tenham esse "bate-papo", a que eu me referi há pouco, antes das eleições. E com certeza vão ter um mau momento com o governo regional; ele há-de querer sempre mais autonomia do que aquela que o Partido, PSD nacional, há-de querer - é óbvio - e que nós havemos de querer - também é natural. Mas hoje já temos o paradigma dos Açores, isto é, de algum modo, a tarefa está facilitada. Porque o que é que se espera que venha a ser o estatuto da Madeira? É o dos Açores com as adaptações necessárias. Que adaptações podem vir a ser essas? Duas ou três, não são precisas mais nenhumas. O problema, hoje, nem sequer é difícil. Portanto, o que é que eu pensava? Era que, de algum modo, nos entendêssemos, no sentido de que ficasse aqui uma norma transitória dizendo: "Dentro de um ano, um ano e meio, dois anos, a Assembleia Regional da Madeira apresentará à Assembleia da República um projecto de estatuto definitivo" - sem sanção, sem transferir o direito para a Assembleia, porque aí insinua-se o melindre para que chamou a atenção o Sr. Deputado Galvão Teles. Parece-me que esta era uma boa solução. Pensem nela, e, na altura oportuna, digam-nos o que é que pensam (não vale a pena dizerem agora, porque VV. Exas. nunca foram colocados perante isto e é evidente que o partido se tem de pronunciar). VV. Exas. diriam que conquistaram isto de nós, nós votaríamos isso, o "bate-papo" do Parlamento deixava de se fazer em termos agressivos porque tinha sido encontrada uma solução consensual. Ó PCP também colaborava, estou certo, porque ele também tem uma visão institucional acerca deste problema do estatuto da Madeira ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Seguramente, Sr. Presidente. Se houver vontade política do PSD - é evidente que esse factor é relevante.
O Sr. Presidente: - Tenho a certeza de que, nesse caso, a Madeira cumpre o prazo. Se não cumprir, então aí coloca-se um problema de inconstitucionalidade por omissão manifesto. O próprio Presidente da República terá de ter aí uma palavra, dizer que as instituições não estão a funcionar normalmente, até pode dissolver o órgão, se quiser. Enfim, para tudo isso há soluções. Assim sendo, penso que esta era uma boa solução, tirando o aspecto mais antipático da nossa proposta que é retirarmos a quem tem a iniciativa essa iniciativa. Tirando isto, tal como fez a primeira Constituição, que marcou um prazo para o estatuto provisório, marca-se agora um prazo para o estatuto definitivo. A menos que o Dr. João Jardim, colocado perante esta "ameaça" (que é uma ameaça entre aspas, mas que é uma ameaça soft), diga: "Não, não eu não prefiro mandar para aí um projecto de estatuto antes de vocês votarem isso, e vocês discutam isso já depois das eleições." Também não tem problema nenhum, o que é preciso é que se encontre uma saída.
Como vêem, estamos abertos a soluções ..
Vozes.
É um problema que está acima do interesse dos partidos. Quanto ao artigo 295.°...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me que lhe faça só uma pergunta. Vejo-o extremamente bem encaminhado, mas qual é a ideia que o Sr. Presidente faz da sequência dos trabalhos, incluindo horários e temáticas?
O Sr. Presidente: - O nosso Presidente Rui Machete, "autoritariamente", exigiu sessão nocturna. De modo que têm de ter paciência e estar cá. Interromperemos às 20 horas para recomeçar às 22 horas - portanto, temos ainda uma hora. E bom que acabe com uma sessão nocturna, talvez se possa inclusivamente eliminar a sessão de amanhã, se for até bastante tarde. Quando o nosso Presidente voltar, regressaremos à matéria que estávamos a discutir (a Administração Pública já acabámos) e entraremos na fiscalização da constitucionalidade e na revisão da Constituição - que também não é matéria tão complexa como parece porque grande parte das propostas dependem da aprovação ou não aprovação do que se propôs lá atrás. E deixaríamos para Outubro os primeiros doze artigos, se
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não pudermos acabar isso, o que me parece uma ambição difícil, mas também são artigos que só devem ser discutidos depois de discutido tudo o mais.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sim, mas ainda há o referendo.
O Sr. Presidente: - Também vamos ao referendo.
O artigo 295.° é extremamente simples. Diz o PS: "Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas" - é o tal problema da distinção entre a criação em abstracto e instituição em concreto - "subsistirá a divisão distrital no espaço por elas não abrangido" - porque pode parecer que, desde que se crie a primeira e a segunda região administrativa, desaparecem os distritos. Não é o caso - eles vão subsistindo onde não estiver concretamente instituída uma região. Portanto, nos distritos não abrangidos pelas regiões não constituídas continuará a existir o distrito.
O PSD elimina aqui a referência ao conselho constante do actual n.° 3 ("... assistido por um conselho, representar o Governo...") Não nos lembrámos de "matar" este conselho. Nem somos muito a favor, nem muito contra.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não sei se "matámos" se fizemos certidão de óbito.
O Sr. Presidente: - Talvez. Ele também já não existe. Curiosamente, o PSD não mantém o actual n.° 2.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse é que é o interesse da proposta do PSD.
O Sr. Presidente: - Penso que terá sido por lapso, não?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não sei, Sr. Presidente. Temos grande curiosidade em saber isso.
O Sr. Presidente: - Vocês não vão "matar" a assembleia deliberativa, não?
Vozes.
Esta assembleia tem funcionado - mal, mas tem funcionado. Tirar-lhe o consultivo acho bem, agora a assembleia! Vejam lá isso, porque parece-me que terá sido lapso da vossa parte. Senão era voltar ao governador civil de antigamente. Tem de ter um controle qualquer.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Confesso que não sei. Vou ver...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Receio bem, Sr. Presidente, que a ideia seja essa.
O Sr. Presidente: - Dá a impressão de que não terá sido.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Confesso que não tenho ideia neste momento...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Quererá restaurar o poder dos governadores civis...
Vozes.
... com uma natureza de sátrapa e dono dos subsídios!
O Sr. Presidente: - Nós não seríamos muito favoráveis a isso. De qualquer modo, o problema hoje é mais vosso do que nosso, mas estamos a fazer uma Constituição para o futuro e não só para o presente.
A ID, no n.° 2, diz: "À medida que cada região for instituída serão extintos os órgãos dos distritos cujas áreas sejam totalmente absorvidas pela região." No fundo é uma proposta correspondente à nossa, embora a nossa tenha maior economia de palavras. No n.° 3 diz: "Se a área de um distrito for absorvida parcialmente por uma região..." - partiríamos, portanto, os distritos ao meio - "... a competência e composição dos órgãos distritais serão adaptadas em conformidade". Talvez valha a pena pôr cá isto, depois veremos.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria só de fazer uma observação. É evidente que a importância desta disposição diminui, face à perspectiva que temos de que o processo de regionalização é para impulsionar e não para marcar passo.
Recordo que, na primeira revisão, o PCP apresentou uma proposta tendente a eliminar alguns dos aspectos de distorção que caracterizam o regime de funcionamento das assembleias distritais, cuja democraticidade pretendíamos ver reforçada. Procurámos, simultaneamente, alterar o perfil de competências do governador civil, com vista a suprimir-lhe alguns dos contornos que hoje tem. Não reeditámos essa proposta, precisamente pela perspectiva de que os distritos estão para acabar, são para acabar, e as regiões são para instituir!
Compreendemos, nessa perspectiva, a proposta apresentada pelo PS porque, como é evidente, é de admitir que a instituição concreta não seja simultânea, seja progressiva, seja diferenciada. O PS, através desta proposta, corrobora que admite que a instituição concreta seja diferenciada, progressiva, não simultânea - simultânea será a criação legal embora a vossa redacção seja obscura, como ontem pudemos apurar. Subsistirão, pois, na parte do território continental ainda não regionalizada, as divisões existentes na proporção correspondente.
O Sr. Presidente: - Claro.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, a vossa proposta é uma norma perfeitamente razoável e correcta, que tem como pressuposto, de resto - o que é positivo -, a progressão do processo regionalizador.
Quanto à proposta do PSD, ela suscita realmente o grande problema que, há pouco, foi evocado. Lapsos há muitos e toda a gente os pode praticar, mas há lapsos muito grandes. Este é um lapso muito grande, porque conhecemos, todos, o património de debate que há sobre os governadores civis, em Portugal, e as posições especiosas do PSD a esse propósito.
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O Sr. Costa Andrade (PSD): - Comecei por dizer que não partia do princípio de que fosse lapso. Portanto, dou como boa a proposta que está aqui. Simplesmente...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Falece a justificação.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Falece-me - e é lamentável não saber todas esta coisas - a justificação para esta proposta de alteração. Portanto, peço a compreensão da Comissão para esta deficiência...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Certamente!
O Sr. Presidente: - Muito bem.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, por razões que têm a ver até com a organização do nosso trabalho, tenho algum interesse em, antes de discutirmos Timor e Macau, justificar uma proposta de eliminação ao artigo 299.° É só alterar a ordem de dois artigos.
O Sr. Presidente: - Muito bem. Então passamos para o artigo 299.° É muito fácil porque os senhores passam uma norma transitória para o próprio texto da Constituição, não é?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, Sr. Presidente. Nós eliminamos pura e simplesmente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não!
O Sr. Presidente: - Passam o artigo 299.° para o n.° 4 do artigo 51.°
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Dignificam e estabilizam o preceito. É curioso.
O Sr. Presidente: - O que aliás eu compreendo. E estamos de acordo. Os senhores eliminam o artigo 299.° mas passaram-no para o n. ° 4 do artigo 51.°, onde, aliás, está melhor, porque é uma norma transitória que já durou tanto tempo e continua a ter a mesma justificação que teve na origem, justifica-se plenamente que passe para o local em que a colocaram. Votaremos esta eliminação aqui e a votação lá. "Não podem constituir-se partidos que, pela sua designação ou pelos seus objectivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional." É a mesma linguagem, só que deixa de ser uma norma transitória e passa a ser uma norma não transitória.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, Sr. Presidente. Peço imensa desculpa, mas houve engano na transmissão. Referia-me ao artigo 298.°
O Sr. Presidente: - Ah, muito bem! Queria referir-se à vossa eliminação do artigo 298.°
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Quero, desde já, adiantar que não nos bateremos se sobremaneira por essa eliminação. Por outro lado, há algumas razões que jogam a favor e outras contra a eliminação deste artigo.
Trata-se de uma norma transitória e nós devemos questionar até quando é que vamos manter na Constituição uma norma como esta, que hoje já não tem significado prático nem conteúdo normativo. Portanto, o seu valor é apenas simbólico, em nome de uma certa ideia - e também ela contestável - de imprescritibilidade de certos crimes. Nós pronunciamo-nos pela eliminação. Confesso, Sr. Presidente, que também não será por aqui que, do nosso ponto de vista, se deixará de fazer a revisão constitucional. Parece-nos que esta norma hoje já não tem conteúdo. Mantemos isto pró memoriam, uma memória de resto algo controversa, mais pelo teor das soluções normativas do que pelas consequências práticas. De resto, sempre foi minha convicção pessoal que o julgamento dos crimes cometidos pelos agentes da PIDE/DGS deveria ter sido feito com base no Código Penal então vigente, designadamente com base em incriminação de homicídio, de ofensas corporais de carácter privado, etc. Ter-se-ia, talvez, logrado alguma justiça. A verdade é que se optou por uma via que, do nosso ponto de vista, cria alguma susceptibilidade do ponto de vista dos princípios de direito universal nesta matéria. De todo o modo, confrontados hoje com esta solução, será que vale a pena mantermos isto, ou, pelo contrário, o deveremos eliminar? Algumas razões jogam a favor da eliminação, desde logo a transitoriedade. Será já tempo de prescindirmos disso? Talvez. Por outro lado, o teor das próprias soluções em si, das próprias leis, não me parece que tenha sido inteiramente correcto. A verdade é que não efectivaram a verdadeira responsabilidade criminal dos agentes da PIDE/DGS.
Penso que foram benignamente sancionados, mas penso que a lei também teve alguma responsabilidade nisso. Por outro lado, a manutenção pode ainda louvar-se num certo valor simbólico. Vale a pena? É uma consideração que pomos à Comissão, embora o nosso input para a Comissão fosse no sentido da eliminação.
O Sr. Presidente: - Diz que não se bate pela eliminação, além de um certo ponto. Nós não nos batemos pela manutenção, além de um certo ponto. Estamos na posição inversa. A minha convicção é a de que isto já não tem significado. Por outro lado, se ainda tem algum, deixará de tê-lo no dia em que se aprovar a lei de revisão, porque a prescrição de todos estes crimes está a cair, como é óbvio.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - São imprescritíveis.
O Sr. Presidente: - É isso! ... De qualquer modo diria - e é essa a nossa proposta - que o Presidente da Comissão oficie à Procuradoria-Geral da República perguntando se esta norma, além do valor simbólico - que sobre esse só a nós compete ajuizar -, tem ainda algum valor ou algum significado jurídico. Se ela disser não, acabou-se, está encerrado. Escusamos de ter aqui este pró memoriam, que ainda por cima é recordar uma coisa triste. É esta a nossa posição. Não estamos empenhados em que isto permaneça, nem empenhados em que isto não permaneça. Não faz cá falta, mas também não faz cá mal nenhum.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - A história da conservação desta norma constitucional e do processo de elaboração de normas legais, bem como de aplicação de normas legais para incriminação e julgamento de agentes e responsáveis da ex-PIDE/DGS, é, porventura, um dos mais lamentáveis episódios da construção do Estado de direito democrático em Portugal, da efectivação de justiça em relação ao regime fascista e de punição daqueles que mais directamente agiram por forma a aplicar uma Constituição injusta e opressiva e uma armadura jurídico-legal e jurídico-penal persecutória e violadora de todos os direitos humanos. Essa punição é exigência de qualquer regime democrático que suceda ao derrube de uma ditadura fascista como esta que tivemos em Portugal.
Verificam-se vicissitudes que aqui não reproduzirei, mas não poderei deixar de referir algumas. A solução aprovada, recebida na Constituição em condições que têm problemas específicos, foi plasmada, depois, em leis ordinárias, que deram origem a episódios sem conta; foi apreciada em debates parlamentares e instâncias de controversa fiscalização, suscitou melindrosos problemas de articulação com as instituições militares, de articulação entre ordens e estruturas, de articulação entre órgãos de soberania de natureza e extracção muito diversa. A muito se assistiu: a utilização abusiva de faculdades de atenuação; não julgamento e não incriminação de muitos e muitos agentes, muitos e muitos responsáveis; claudicação na aplicação de penas nos poucos casos cometidos a julgamento; exaltação ou reconhecimento da valia de alguns desses agentes e responsáveis; relevantização de serviços prestados (como se se tratasse de um ofício como outro qualquer - o do tercionário). Tudo isso, que está recheado de episódios lamentáveis, diria mesmo negros, da nossa vivência democrática e do funcionamento de um determinado segmento da administração da justiça em Portugal, não deveria terminar em absolvição total. Há cicatrizes cuja persistência não é apenas simbólica!
Como o Sr. Deputado Costa Andrade sublinhou, desses crimes não deixará de haver memória e essa memória não é apenas a que em nós, homens e mulheres, sobrevive. É também a memória jurídico-penal decorrente do facto de esses crimes não serem prescritíveis.
Nesse sentido, quaisquer que sejam as vicissitudes, quaisquer que sejam os episódios que possamos evocar, quaisquer que sejam as injustiças praticadas no processo de praticar justiça, qualquer que seja, até, o acinte que decorre do facto de o Governo do PSD medalhar, neste momento, e atribuir pensões chorudas a alguns dos responsáveis pelas actividades de perseguição e de repressão - qualquer que seja esse património negro, esta norma não deve desaparecer da Constituição!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Era só uma pergunta muito rápida. Pela sua intervenção, Sr. Deputado José Magalhães, dá impressão de que V. Exa. - e não discuto, pois fui muito dubitativo na minha tomada de posição, mas parto do princípio de que temos que acabar com esta norma ou, pelo menos, de que esta norma é transitória e o legislador constituinte sempre o pretendeu assim - lhe retira esse carácter. É verdade? E, portanto, mantém-se a ideia da transitoriedade?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, a norma está nas disposições finais e transitórias da Constituição.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Esta é final.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Os crimes em causa, como V. Exa. teve ocasião de sublinhar, são imprescritíveis. Naturalmente, as leis da vida determinam os limites a partir dos quais a norma esgota a sua finalidade. Ainda aí, essa norma não deixaria de ter uma função. Mas creio que estamos longe desse limite, ainda aí.
Por outro lado, o que nos preocupa é também o significado inocentizador, o significado limpa-memória, instilador de amnésia cívica, que uma operação deste tipo pode assumir.
Não estou a dizer que seja esse o propósito de V. Exa. Estou a dizer que esse significado não é de excluir e gostaríamos que ele não fosse incluído, a nenhum título.
O Sr. Costa Andrade (FSD): - Sr. Deputado José Magalhães, ao estabelecer uma conotação com o sentido da nossa proposta, V. Exa. - honra lhe seja feita - fez-me a justiça de afirmar que essa não seria a minha intenção. E eu pretendia dizer, também em nome do PSD. que essa não é a nossa intenção. Sempre que se confrontou com este problema, o PSD foi, desde que o conheço, sempre a favor da punição exemplar dos crimes cometidos pelos responsáveis da PIDE/DGS. O PSD sempre entendeu que esses crimes deviam ser punidos e, como todos os portugueses e todos os democratas, experimentou uma certa frustração pela não efectivação dessa punição exemplar. De facto, essa punição não foi feita.
Também entendemos que talvez não se tenham seguido os caminhos mais correctos para se efectivar essa responsabilização.
Algumas fraquezas e algumas controvérsias que enfermavam a própria legislação que foi aprovada talvez tenham tirado à justiça muita da sua tensão e muita da sua força para a efectivar.
A retroactividade, mesmo tratando-se de situações extremas, é altamente questionável e, do meu ponto de vista, ilegítima.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, Sr. Deputado Costa Andrade, como é que a lei devia ser, se não retroactiva?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Era fácil, estou convencido. Não fui perseguido e não fui vítima de inflicções por parte da PIDE, mas dou como bons os relatos dos democratas mais directamente atingidos, que foram vítimas de ofensas corporais, de cárcere privado, de homicídio, de todo um conjunto de crimes contra o património, etc.. Esses crimes eram suficientes para, à luz da consciência jurídica do povo português, serem mais facilmente efectiváveis. No entanto, isto pertence ao passado. Do nosso ponto de vista, elimine-se ou mantenha-se essa norma, pensamos que os tempos já estarão maduros para prescindirmos dela. De facto, em nosso entender, o artigo 298.° é uma norma transitória, que não pode ter o sentido - não o tem do ponto
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de vista do PSD - de qualquer atitude ou de qualquer conotação de inocentação ou de absolvição dos crimes cometidos pelos torcionários, pelos agentes ou responsáveis da PIDE/DGS. Vale a pena continuarmos com este fardo, já sem conteúdo prático, na Constituição? É uma pergunta e apenas isso.
Por outro lado, as próprias controvérsias que a legislação gerou dão-nos também ânimo neste sentido. De todo o modo, nós também remetemos para a Comissão: se se estabelecer um consenso neste sentido, daremos o nosso contributo para reforçar essa convicção; se se entender que os tempos ainda não estão maduros para prescindirmos desta norma, deixá-la-emos por mais uns tempos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso tem implicações em relação a processos concretos. V. Exa. apercebe-se disso?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não sei se tem. Não sei se ainda há algum. Agi na convicção de que já não há, mas isso talvez seja bom...
O Sr. Presidente: - A minha convicção é que já não tem efeito prático, porque eu já fiz essa pergunta, pessoalmente, ao procurador-geral e este disse-me que não tinha estudado o problema, mas a sua convicção era que não tinha. O próprio procurador-geral tem a mesma ideia genérica, mas uma coisa é fazer-lhe a pergunta não oficial e outra é fazer-lhe a pergunta oficialmente.
Penso que se deveria oficiar à Procuradoria-Geral da República, no sentido de esta dizer se a referida norma tem algum efeito prático, ou não. Se não tiver, fica só o problema da simbologia, que é um problema político e, aí, vamos entender-nos com certeza.
Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Independentemente de aceitar, como plausível, a sua sugestão, não quereria deixar de trazer um testemunho de natureza pessoal e a minha posição, também de natureza pessoal, relativamente a esta matéria. E por uma razão simples: participei na extinção da PIDE/DGS e na elaboração e execução dos primeiros processos que foram elaborados em relação aos seus agentes. Por isso tenho alguma razão moral para poder dizer que esta norma, nesta altura, pode perfeitamente deixar de constar do texto da Constituição.
Em primeiro lugar, nós não devemos e nem ganhamos nada em estar aqui a reconstituir o ambiente da época que levou às concessões que crimes tão hediondos tiveram que sofrer em relação à sua forma de punição. Não ganhamos nada porque, se calhar, também entrávamos nalgumas páginas negras da nossa história, depois do 25 de Abril, e na transigência ou na colaboração de algumas forças políticas perante situações com as quais foram perfeitamente co-responsabilizados. Não queria aqui lembrar nem queria aqui falar na atenuação que teve de haver, em casos especiais, e na conformação que teve de haver de legislação primitiva em relação, por exemplo, à colaboração com as Forças Armadas de elementos da PIDE/DGS, na especial protecção que alguns deles foram objecto, em relação a outros. Tudo isto pertence ao nosso passado, que gostaria de ver perfeitamente enterrado e não repetido.
O que eu podia, de facto, dizer nesta altura é que estes crimes são imprescritíveis, fundamentalmente pela natureza das ofensas e pela natureza dos direitos violados. Esta norma é uma norma de natureza histórica e a consciência da existência desses crimes, a consciência da sua reprovação, não ficará, como é evidente, por esta norma existir na Constituição. Esta norma, com este significado, pouco aduz em relação à questão fundamental. Pensamos que os tempos já vão de feição para que nós, definitivamente, enterremos esta norma, que nenhuns efeitos úteis tem, que nenhuns efeitos práticos tem e que nada acrescenta em relação ao juízo histórico sobre o que se passou e sobre a intervenção destes cidadãos que aqui se mencionam e que cometeram tais crimes em relação ao povo português.
Em resumo, gostaria de dizer que a minha posição, mais uma vez vou repeti-lo, é no sentido de fazer cair esta norma e no sentido de aceitar por boa a sugestão que o Sr. Presidente acabou de dar quanto à verificação da sua validade.
O Sr. Presidente: - Penso que podemos dar por encerrada esta discussão. Iríamos agora ao artigo 296.° "Estatuto de Macau".
Em relação a este artigo, há uma proposta do PCP no sentido de acentuar a transitoriedade da nossa administração em Macau: "Enquanto estiver sob administração portuguesa, o território de Macau rege-se por estatuto adequado à sua situação especial." Os n.ºs 2 e 3 não acrescentam nada. Há um n.° 4, novo, que diz: "Compete ao Presidente da República e à Assembleia da República praticar os actos relativos ao território de Macau previstos no respectivo estatuto." Isto é, redistribuía pela Assembleia e pelo Presidente a competência que hoje está centrada apenas no Presidente, na alínea h) do artigo 137.°
O PS também, e em atenção à transitoriedade superveniente da administração de Portugal em Macau, diz: "O território de Macau, enquanto se mantiver sob administração portuguesa, rege-se por estatuto adequado à sua situação especial." Manterá os actuais n.ºs l, 2 e 3 como n.ºs 2, 3 e 4. E acrescenta um novo n.° 5, que diz: "O estatuto de Macau e as leis que aprovarem as respectivas alterações são leis paracons-titucionais." Relaciona-se com a existência, ou não, de leis paraconstitucionais. E o n.° 6 afirma que "compete ao Presidente da República praticar, como actos próprios, os actos relativos ao território de Macau previstos no respectivo estatuto."
O PSD elimina, pura e simplesmente, o artigo 296.°
O PRD também tem uma frase contemplativa da transitoriedade, dizendo: "... enquanto este se mantiver nos termos internacionalmente acordados".
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino, para defender a proposta do PS, dado ele ter disto um particular conhecimento.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, muito sucintamente para dizer que o n.° 1 é a recuperação do que hoje dispõe o artigo 5.° da Constituição, à luz da lógica decorrente do facto de se viver uma situação de termo a prazo da administração portuguesa em Macau. Os n.ºs 2, 3 e 4 recuperam na íntegra os actuais n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 296.° da Constituição, mantendo assim a natureza materialmente constitucional do Estatuto Orgânico do Território de Macau,
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aprovado pela Lei n.° 1/76, de 7 de Fevereiro, alterado pela Lei n.° 53/79, de 14 de Setembro, e mantendo também a regra, que a Constituição já hoje consagra, sobre as normas a observar para as alterações do Estatuto Orgânico de Macau ou da sua substituição. Isto é, uma reserva de iniciativa legislativa da Assembleia Legislativa de Macau, a obrigatoriedade de se proceder à audição do Conselho de Estado e a reserva de competência da Assembleia da República para aprovação das respectivas alterações. No n.° 3 mantemos também a norma que define os termos de comparticipação da decisão da Assembleia da República e das opiniões da Assembleia Legislativa de Macau face a uma eventual alteração do Estatuto Orgânico. Sujeitámos, no n.° 5, o Estatuto de Macau e as leis de alteração ao regime das leis paraconstitucionais, porque entendemos que nesta fase, em que a acção da administração portuguesa de Macau já tem implicações na edificação do que, após 20 de Dezembro de 1999, se passará naquele território e atendendo também que a própria declaração conjunta luso-chinesa sobre o futuro de Macau foi objecto de aprovação por unanimidade na Assembleia da República, entendemos que as alterações ao estatuto de Macau devem ser objecto de um alargado consenso e nesse sentido tendemos a equiparar as alterações do Estatuto Orgânico do Território de Macau às leis paraconstitucionais na lógica do nosso projecto.
O n.° 6 confere ao Presidente da República a competência para praticar, como actos próprios, os actos relativos ao território de Macau previstos no respectivo estatuto. Eliminámos no correspondente artigo relativo à competência do Presidente da República tal referência. Desde já adianto que nos parece mais correcto que a referência seja feita não apenas ao Presidente da República mas também à Assembleia da República, na medida em que há actos que têm a ver com o Parlamento e que estão previstos no Estatuto Orgânico do Território de Macau.
Esta última questão é particularmente relevante, na medida em que todos nós temos que ter em conta os novos desafios que são colocados à presença administrativa portuguesa em Macau pela assinatura do tratado internacional que vinculou Portugal e a República Popular da China à observância de um período de transição iniciado em 15 de Janeiro de 1988 e que culminará em 20 de Dezembro de 1999, com a transferência da soberania sobre Macau para a República Popular da China. É uma declaração conjunta, é um tratado internacional que postula a necessidade de introduzir alterações na dinâmica político-legislativa do território de Macau. Nesse sentido, há transformações que têm que ser adoptadas pelo Estado Português, que permitam à administração portuguesa de Macau corresponder mais eficientemente aos desafios dessa mesma transição político-administrativa e à progressiva preparação dos habitantes locais para o exercício das funções de auto-administração que estão contidas no anexo 1 da declaração conjunta a que já fiz referência. Essas transformações a que me estou a referir são de natureza política e jurídica e devem ser orientadas no sentido da progressiva ampliação das competências políticas e legislativas dos órgãos de governo próprio do território de Macau, isto é, do Governador e da Assembleia Legislativa de Macau, o que pressupõe naturalmente a redefinição do quadro de repartição de competências legislativas entre os órgãos de soberania da República e os órgãos de governo do território de Macau. É uma tarefa que só pode ser feita em termos de grande ponderação, de grande prudência, de profunda meditação e de consensos alargados e que não pode ignorar as implicações que decorrem, no plano internacional, da vinculação do Estado Português à declaração conjunta luso-chinesa sobre o futuro de Macau. Nesse sentido, há que compreender a relevância dos instrumentos de direito internacional criados por essa declaração conjunta, designadamente a relevância da existência de um grupo de ligação conjunto luso-chinês, destinado a proceder à apreciação e à troca de informações sobre as formas de aplicação da declaração conjunta neste período de transição e a relevância que todas as questões da transformação política e jurídica do território têm na óptica do relacionamento bilateral entre Portugal e a República Popular da China, vertente que também não pode ser ignorada.
Isto tudo para esclarecer que, independentemente de reconhecermos pertinência a esta temática, a sua abordagem deve dar origem a uma meditação mais profunda sobre as transformações que podem e devem ser introduzidas no Estatuto Orgânico do Território de Macau nos termos previstos pelo artigo 296.° da Constituição. Mantemos o essencial do normativo constitucional hoje existente, mas pretendemos fazer algumas clarificações, que são, aliás, de pormenor e que sobretudo não põem em causa a manutenção da natureza materialmente constitucional do Estatuto Orgânico do Território de Macau.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, penso que é relativamente fácil justificar a eliminação deste artigo por parte do PSD, na medida em que nos podemos reportar a outros normativos nos quais o PSD acrescenta, altera ou mantém partes deste preceito. É o caso, por exemplo, do artigo 5.° No artigo 5.° alterámos o n.° 4 e dissemos, pura e simplesmente: "O território de Macau, enquanto estiver sob administração portuguesa, rege-se por estatuto adequado à sua situação especial."
O Sr. Presidente: - Sobre isso não há problema, Sr. Deputado.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Isto é, o que nós dizemos no n.° 4 do artigo 5.° é exactamente o que diz o PS no n.° 1 do artigo 296.°, que é uma proposta que altera, portanto, o número existente.
Daqui decorre que o que vier a ser consignado no estatuto vai ou deverá consumir aquilo que está reproduzido nos actuais n.ºs 2 e 3 e eventualmente outras considerações que puderem vir a constituir o essencial da matéria a integrar no estatuto de Macau.
Portanto, no artigo 5.° fazemos uma alteração que nos parece fundamental e na qual englobamos tudo. Tendo em conta o tratado internacional existente, tendo em conta a declaração luso-chinesa, tendo em conta a existência do grupo luso-chinês, tendo em conta a evolução já prevista nesse acordo, pensamos que deste estatuto deveria resultar toda a estrutura e toda a orgânica do novo estatuto de Macau.
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O Sr. Presidente: - O actual deixaria de estar em vigor, Sr. Deputado?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Exactamente, Sr. Presidente.
O que nós propomos em relação aos actos do Presidente da República é o seguinte: mantemos a alínea h), nos termos da qual compete ao Presidente da República "praticar os actos relativos ao território de Macau previstos no respectivo estatuto". Assim, mantemos na alínea h) do artigo 137.° aquilo que o PS dele retirou e que inclui como n.° 6 do artigo 296.°
O Sr. Presidente: - E o formalismo da alteração do estatuto onde é que se previa, Sr. Deputado?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não se previa em sítio nenhum, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Nem quem tomava a iniciativa, Sr. Deputado?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, deixaríamos à legislação ordinária a aprovação do estatuto. Como é evidente, é uma matéria a considerar. A questão de Macau é de tal maneira complexa...
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, retirava-se à Assembleia Legislativa de Macau o direito de proposta?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Parece-me que sim, Sr. Deputado.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - A nossa intenção não é essa, Sr. Presidente. A nossa intenção é a de congraçar dentro do estatuto de Macau a ser aprovado todas as disposições eventualmente actualizadas que aqui constam do artigo 296.° Teremos de analisar essas disposições à luz da nova realidade de Macau.
A eliminação deste artigo tinha não propriamente um efeito de eliminação de tudo quanto estaria dito em relação a Macau, mas teria em conta não só a realidade actual como também as alterações que foram propostas para aquilo que está lá atrás.
O Sr. Presidente: - Parece-me que dessa forma retirávamos à Assembleia Legislativa de Macau o direito de iniciativa.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, compreendo a sua objecção. Só que não era isso que estava no nosso espírito, ou seja, não queríamos cercear esse poder.
Por outro lado, compreendemos que toda esta matéria tem que se reproduzir e rever no estatuto de Macau. Pensamos que é importante que nesse estatuto todas as questões relativas à intervenção dos demais órgãos de soberania, e não só do Presidente da República - como há pouco referiu o Sr. Deputado António Vitorino -, sejam analisadas. Pensamos que a situação de Macau inclui, advoga e recomenda que os vários órgãos de soberania possam intervir na sua vida. Por isso dentro deste estatuto, que tudo deveria congraçar, deveria estar o fundamental daquilo que constituíram as preocupações do Sr. Deputado António Vitorino, preocupações que também me permito neste momento compartilhar.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a preocupação do PCP em relação a esta proposta é a de sublinhar, em termos constitucionais, a transitoriedade da administração portuguesa, honrando-se, assim, os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português nos momentos e através dos instrumentos que aqui foram evocados pelo Sr. Deputado António Vitorino.
Sucede que não opera na proposta do PCP nenhuma alteração essencial do normativo. Há a introdução de um n.° 4, com o conteúdo de que os Srs. Deputados se apercebem, em que à Assembleia da República não caberiam senão os poderes que hoje cabem em função do estatuto que está em vigor, nos termos que são igualmente conhecidos. Na proposta do PCP não há nenhuma alteração do desenho institucional do relacionamento entre o território de Macau e o Estado Português, não há nenhuma alteração dos poderes dos órgãos de soberania nacionais em relação ao território, não há senão o extrair de todas as consequências da declaração conjunta luso-chinesa sobre o futuro de Macau e do tratado livremente celebrado entre as duas partes e que aqui foi aprovado por unanimidade.
Creio que não faz sentido manter no artigo 5.° da Constituição da República Portuguesa, ainda que transformada, uma norma sobre a situação do território de Macau. A deslocação para sede de disposições finais e transitórias é, em si mesma, um acto de clarificação, de ênfase política, o que não é despiciendo. Isso é necessário em função de compromissos assumidos, mas é também positivo na óptica do relacionamento bilateral e na óptica da verdade constitucional das opções que assumimos livremente em nome da República Portuguesa.
Neste caso concreto, as propostas do PSD não podem deixar de ser lidas em face daquilo que esse partido tem vindo a manifestar abundantemente, directa ou indirectamente. O PSD não justificou aqui, minimamente, nem os fundamentos nem as implicações da proposta que nos traz. A verdade é que o PSD elimina os n.ºs l, 2 e 3 do artigo 296.° e reformula o artigo 5.° da Constituição na parte respeitante a Macau. Só que a alteração que propõe implica uma redefinição global não só do actual estatuto do território de Macau, com tudo o que isso implica, como a directa, explícita e total supressão das garantias de uma tramitação própria e de um regime próprio de elaboração, desse instrumento, que é absolutamente fundamental para que se tenham em conta as especificidades próprias da administração portuguesa e as características próprias da autonomia do território.
Se se suprime uma cláusula como aquela que neste momento consta dos n.ºs 2 e 3 deste artigo da Constituição; se se degrada a natureza jurídica dos instrumentos estatutários; se se coloca na disponibilidade do legislador ordinário a definição de tudo isso, inclusive
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das prerrogativas das diversas entidades envolvidas e do regime de tramitação do próprio estatuto de Macau - a consequência será, evidentemente, a de uma inversão de rumo de 180 graus em relação ao actualmente adoptado.
Gostaria muito de saber como é que o PSD compagina isso com a natural prudência que deve reger o Estado Português, a partir do momento em que assumiu livremente compromissos nesta matéria, e assim aceitou que uma determinada especificidade deve ser levada até ao fim e de determinada maneira e não de outra. A voz daqueles que administram o território, em condições, de resto, muito específicas e que são obrigatórias em função dos compromissos que assumimos, deixaria de poder erguer-se com um determinado cunho e com determinadas implicações para ter que se submeter a outras regras, a outros ditames, cujo contexto ou cujos contornos o PSD não nos define.
O PSD reclama para si, através da Assembleia da República, onde tem maioria absoluta, o poder de modular aquilo que hoje está modelado constitucionalmente e em condições que seria livre de ditar. Digo "livre de ditar" e de imediato tenho de constatar que essa liberdade está limitada pelos compromissos internacionais, que têm uma relevância jurídica que não suprime a indispensabilidade de uma mediação constitucional em relação a pontos que são particularmente melindrosos. Este é, acima de todos, melindroso!
É imprescindível que o PSD coloque cartas na mesa. Não se pode aprovar num congresso determinadas coisas, agir publicamente em determinado sentido e na Comissão Eventual de Revisão Constitucional cantar litanias, hossanas e fazer de Branca de Neve. Nós não podemos aceitar essa postura, nem quanto a Macau nem quanto a coisa nenhuma. No caso especial de Macau, em que regem razões que não são apenas nem poderiam ser de cunho interno, essa cautela, essa transparência, tem de ser total!
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, gostaria de fazer duas observações muito rápidas.
A alteração que é proposta pelo PSD não merece o nosso acolhimento porque ela, em face da exposição que foi feita pelo Sr. Deputado Carlos Encarnação, obtém resultados que aparentemente não eram pretendidos pelos seus próprios autores. Na realidade, pensamos que o quadro institucional existente, quer na Constituição da República quer no estatuto orgânico, é um quadro dinâmico, evolutivo, que tem que ser integrado à luz da declaração conjunta luso-chinesa. Há certos patamares que podemos e devemos considerar como adquiridos no relacionamento entre o Estado Português e aquele território sob administração portuguesa, que é o território de Macau. Um deles é o da norma de garantia que o artigo 296.° da Constituição contém em termos de processo de modificação do Estatuto Orgânico do Território de Macau. É uma norma de garantia que, em meu entender, não tem tanto a ver com o relacionamento entre os órgãos de soberania da República entre si, mas tem sobretudo a ver com a consagração clara e inequívoca da autonomia que o Estado Português reconhece a um território sob a administração portuguesa. É uma norma de garantia da autonomia da capacidade de autolegislação do território de Macau, na medida em que se consagra uma reserva de iniciativa legislativa da Assembleia Legislativa de Macau e se consagra também uma espécie de direito de veto resolutivo a essa mesma Assembleia Legislativa face às alterações do estatuto orgânico que venham a ser aprovadas pela Assembleia da República e que não coincidam com a proposta inicial da Assembleia Legislativa de Macau.
A desconstitucionalização destas regras, hoje constantes dos n.ºs 2 e 3 do artigo 296.° da Constituição, como é proposto pelo PSD, resultaria inevitavelmente numa diminuição ipso facto da actual esfera de autonomia do território de Macau. Tal solução teria consequências sob o ponto de vista político, mas também sob o ponto de vista da vinculação internacional do Estado Português à declaração conjunta, porque, no momento em que o Estado Português assumiu um tratado internacional que abriu um período de transição, o qual tende a reforçar cada vez mais a autonomia do território de Macau, a eliminação desta norma de garantia constitucional da autonomia do território iria ao revés dos ventos da história, resultaria em contradição com o significado político da própria declaração conjunta. Portanto, penso que a norma de garantia que é o artigo 296.° é também uma norma importante que ratifica, que conforma e assegura a autonomia do território de Macau, inserida, aliás, numa lógica de acção política inegável que tem o seu início com o próprio 25 de Abril de 74 e com o progressivo posicionamento do Estado Português face à China, em especial o estabelecimento das relações diplomáticas com a República Popular da China, em 1979, e a aceitação, nesse acto do estabelecimento de relações diplomáticas, de que Macau era uma questão a resolver por entendimento entre ambas as partes, através de um tratado internacional, declaração que presidiu às negociações encetadas em 1986 e concluídas com êxito em 1987, e amplamente sufragadas pela Assembleia da República.
Há uma segunda consequência da proposta do PSD que reputo igualmente nefasta, e que é a eliminação do n.° 1, a qual, a proceder, retiraria ao actual Estatuto Orgânico do Território de Macau (ou a qualquer estatuto orgânico de Macau) a natureza de norma materialmente constitucional. Seria uma modificação muito importante, na medida em que há certo tipo de soluções político-jurídicas que hoje em dia têm por base o Estatuto Orgânico do Território de Macau e que carecem de verdadeira e própria cobertura constitucional; e a cobertura que o PSD lhes daria, no artigo 5.° da Constituição, seria insuficiente, em meu entender, para lhes conferir completa conformidade constitucional.
Ouvi com atenção a referência, feita pelo Sr. Deputado Carlos Encarnação, ao facto de se entender que, na actual conjuntura política e na situação decorrente da declaração conjunta luso-chinesa, era necessário prever que vários órgãos de soberania pudessem intervir na vida política e administrativa de Macau. Penso que é uma observação judiciosa e que naturalmente tem a ver com o facto de o Governador de Macau, nos termos do actual Estatuto Orgânico do Território de Macau, ser nomeado pelo Presidente da República. A verdade é que se torna importante sublinhar que esta questão tem de ser vista em dois planos; o primeiro, é que a ligação entre o território de Macau, através do seu Governador, e o Presidente da República é uma
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clara afirmação de que o território está ligado ao mais alto magistrado da Nação e que a dependência do Governador em relação ao Presidente da República assinala esse latíssimo grau de autonomia que torna directa a relação institucional entre o mais alto magistrado de Macau e o Chefe do Estado Português. Pensamos que isso é importante como garantia e até como símbolo da autonomia do território e da natureza nacional do seu estatuto político.
Mas há um segundo aspecto, que me parece importante: é que, nos termos do próprio estatuto orgânico de Macau, o Governador de Macau não é, no território, apenas o representante do Presidente da República; nos termos do estatuto orgânico de Macau, o Governador representa no território todos os órgãos de soberania da República, com excepção dos tribunais, o que significa que, naturalmente, à luz do próprio estatuto orgânico, a lógica política que já hoje existe é a de que haja uma íntima colaboração e uma coordenação intensa entre o Governador de Macau e o Presidente da República, que o nomeia, e o Governo da República, que são órgãos de soberania cuja representação em Macau está delegada no Governador do território.
Nesse sentido, se questões se podem levantar, em meu entender, sobre o problema da articulação e da coordenação das formas de intervenção dos órgãos de soberania da República face ao território de Macau, essas questões têm de ser colocadas essencialmente no plano político, e não no plano institucional, muito menos no plano constitucional. O esforço que há que fazer é o de uma mais decidida articulação e uma mais eficaz coordenação das formas de intervenção dos vários órgãos de soberania no que diz respeito a Macau, com a acção do Governador de Macau - independentemente da questão de o Governador de Macau ser nomeado em exclusivo pelo Presidente da República. O regime da nomeação aparece, assim, como uma fórmula instrumental de designação do Governador de Macau com assinalável relevância na consagração da garantia da autonomia do território mas é uma questão que não deve iludir a questão política fundamental, que é a da necessária articulação entre os vários órgãos de soberania sobre as questões de Macau, que em nada depende do texto constitucional.
Um último apontamento: penso que, naturalmente, haverá lugar a uma futura alteração do Estatuto Orgânico do Território de Macau sobre outras matérias que não a da dependência institucional do Governador de Macau. O que me parece impensável é que essa alteração do estatuto orgânico seja levada a cabo sem reconhecer um peso preponderante e decisivo, desde logo, à própria Assembleia Legislativa de Macau, que, através de um sistema de sufrágio directo e de sufrágio indirecto, e de deputados nomeados, representa as várias componentes da sociedade de Macau. Tal como acho impensável introduzir alterações no estatuto orgânico, sem ter em linha de conta os precisos termos da declaração conjunta e, naturalmente, a necessidade de preservar o clima de confiança e de entendimento que hoje existe entre Portugal e a República Popular da China, e a necessidade de observar o princípio das consultas mútuas e das trocas de informações entre os dois Estados quanto a tudo o que signifique modificar o estatuto político, jurídico e legislativo do território de Macau. Neste contexto, penso que a questão do estatuto de Macau se coloca preferencialmente no plano político e não no plano jurídico-constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Só desejaria fazer uma pergunta ao Sr. Deputado António Vitorino, mas antes queria fazer uma consideração para que a minha pergunta se entendesse também devidamente. Era a seguinte: nós, PSD, de maneira nenhuma queremos diminuir a autonomia do território de Macau, antes pelo contrário; a questão da autonomia, penso eu, não estará em causa porque estamos cada vez mais empenhados em defender essa autonomia - tanto estivemos que o tratado assinado entre a República Popular da China e Portugal é perfeitamente claro a esse respeito, no sentido da evolução futura do território para uma região especial da própria República Popular da China. Não estamos, de maneira nenhuma, interessados em fazer um percurso histórico ao contrário, agora que conseguimos, pelo tratado, um efeito útil e um benefício importante.
Como V. Exa. vê, a maior parte das questões que colocou e suscitou são questões que têm de se resolver, e não vejo outra sede, numa nova formulação do estatuto de Macau.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas porquê?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - É evidente que todas estas questões têm de ser aí dilucidadas, incluindo a intervenção dos outros órgãos de soberania.
Mas eu queria perguntar, fundamentalmente, o seguinte: entenderia o PS (veja esta pergunta apenas como sendo de natureza pessoal) como possível que, sendo certo que a razão da intervenção do Presidente da República na nomeação do Governador se filia única e exclusivamente na ligação ao mais alto magistrado da Nação, de natureza formal - acto praticado pelo Presidente da República, acto de nomeação do Governador do território -, admitiria o PS que, no futuro estatuto de Macau, a indicação do Governador de Macau pertencesse ao Governo da República e a nomeação ao Presidente da República, por exemplo?
O Sr. António Vitorino (PS): - Em relação à questão que colocou em primeiro lugar, sobre o problema da autonomia: pela Constituição da República perpassa a ideia clara de que a autonomia política e administrativa está intimamente ligada à forma de participação das comunidades a quem se reconhece essa autonomia, na elaboração do respectivo estatuto político-administrativo. É inequívoco que o poder de participação das regiões autónomas na elaboração dos estatutos político-administrativos respectivos tem algum paralelismo com o que o artigo 296.° aqui consagra, na medida em que também há uma reserva de iniciativa legislativa para as assembleias regionais - onde diverge é no facto de às regiões autónomas não ser conferido nenhum veto resolutivo quanto às alterações que a Assembleia da República venha a introduzir às propostas inicialmente formuladas. Aí está, desde logo, o distinguo entre regiões autónomas de um Estado unitário, como é o caso do Estado Português, e a relação entre o Estado Português e um território que está apenas sob mera administração - aliás, transitória. Em meu entender, tudo o que signifique diminuição ou lançar, sequer, a incerteza sobre o grau de participação do órgão legislativo próprio do território de Macau, na elaboração ou revisão do seu próprio estatuto orgânico
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significa uma inaceitável diminuição da autonomia. Portanto, pessoalmente nunca apoiaria qualquer alteração que pudesse traduzir-se, directa ou indirectamente, numa redução do actual estádio de autonomia de Macau; pelo contrário, o que entendo é que esse estádio de autonomia actual deve ser ampliado no futuro.
Quanto à segunda questão referente à revisão do Estatuto Orgânico, diria, muito simplesmente, que o actual Estatuto não carece de uma revisão tão profunda quanto se possa pensar. Alguns aspectos pontuais, que têm sido suscitados em Macau, podem vir a ser considerados, como, por exemplo, o aumento do número de deputados da Assembleia Legislativa - em face da. verdadeira explosão demográfica entretanto verificada (o estatuto foi feito em 1976, na altura em que o território não teria sequer 200 000 habitantes - hoje em dia, calcula-se que em Macau residam entre 480 000 a 500 000 pessoas) e o aumento do recenseamento, que justificaria um aumento do número de deputados à Assembleia Legislativa. Outro aspecto a rever pode ser o de se tratar de um Estatuto Orgânico que não contém uma carta de direitos - há quem defenda, por exemplo, que deveria integrar-se na lei fundamental do território uma carta de direitos, inspirada no elenco detalhado de direitos, liberdades e garantias que, nos termos da Declaração Conjunta, serão respeitados na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China após 1999; assunto com alguma relevância, na medida em que a própria Declaração Conjunta consagra uma norma que diz que após 1999 "se manterão em vigor, basicamente inalterados, os normativos legislativos e regulamentares vigentes à data da transferência da administração". Portanto, a consagração de uma carta de direitos, que hoje é despicienda ou desnecessária porque a Constituição da República, pelo menos na parte respeitante aos direitos, liberdades e garantias, se aplica em Macau, pode justificar-se tendo em linha de conta a transferência de soberania em 1999, embora o acordo seja claro quanto à observância de um vasto elenco de direitos na futura Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.
Ainda um outro aspecto que poderia justificar uma revisão, é o da organização judiciária, na medida em que a lógica da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o futuro de Macau pressupõe a edificação de um sistema judiciário autocentrado, próprio e autónomo, e a progressiva autonomização da estrutura judiciária do território, face à actual estrutura judiciária única vigente no ordenamento, jurídico português e que abrange Macau. Desde logo, a questão do recurso das decisões do tribunal de primeira instância de Macau para o Tribunal de Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça, quando a Declaração Conjunta prevê após 1999 a existência de instâncias de julgamento final sediadas no próprio território e que aplicarão o direito local de matriz portuguesa; o que pressupõe, naturalmente, uma rodagem suficientemente significativa do novo sistema judiciário, prévia à transferência da administração em 1999, sob pena de a norma da Declaração Conjunta ficar sem sentido se não forem dados passos imediatos tendo em vista a autonomização da administração da justiça em Macau.
Um último apontamento: creio que a questão da nomeação do Governador é uma falsa questão: o problema fundamental do posicionamento do Estado Português em relação ao território de Macau é um problema de articulação de vontades políticas, não é um problemas de dependências institucionais. Nesse sentido, até lhe diria que, de todos os órgãos de soberania, aquele que, provavelmente, terá uma tarefa de maior amplitude, no sentido da ampliação da autonomia do território de Macau, até será provavelmente a Assembleia da República, a quem compete nos termos constitucionais legislar em matérias particularmente relevantes para a conformação da vida política e jurídica do território de Macau. Portanto, diria que a questão da dependência institucional é uma questão que pode alimentar interessantes jogos florais, a propósito da nossa vida colectiva neste jardim à beira-mar plantado, mas é uma questão que, a 18 000 quilómetros de distância, em Macau, é olhada com aquela prudência, distanciamento e sapiência que faz dos Chineses um povo admirável.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A nossa proposta quanto ao artigo 296.° não tem nada de especial a não ser uma "gralha" no n.° 1: mantinha tudo, acrescentando um novo n.° 1.
Em todo o caso, o que tenho de transmitir é que o PRD reserva a sua posição sobre as disposições constitucionais relativamente a Macau.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - No fundo, a nossa proposta prende-se com a substituição do inciso "independência" pelo inciso "autodeterminação". Vou começar pelo fim, e começo por dizer que um eventual ataque a esta alteração se prende com a interpretação que pode ser dada à própria substituição, no sentido de se poder pensar que o Estado Português desistiu da hipótese da independência de Timor - o que é, obviamente, uma falsa questão, uma vez que a autodeterminação inclui todas as fórmulas possíveis, de entre as quais, como se sabe, a independência.
Esta nossa proposta tem a ver com o processo que seguiu o caso de Timor dentro do universo político português, concretamente dentro da Assembleia da República, que tem uma comissão de acompanhamento e que tem primado pelo grande consenso em torno desta questão. Ao fim e ao cabo, os grandes valores a defender, relativamente a Timor e ao seu povo, são a liberdade, a maioridade política, a possibilidade de o povo decidir do seu destino, de assegurar os seus direitos e de continuar o seu património histórico, económico, cultural e social; portanto, não deveríamos estreitar e inviabilizar um hipótese de solução futura, mantendo a restrição que existe actualmente no n.° 1 do artigo 197.°, configurando apenas a saída pela hipótese da independência. Penso, de qualquer maneira (isto é uma proposta pessoal, minha), que seja possível aditar à nossa proposta presente um "designadamente a independência".
O Sr. Presidente: - Se o PSD faz questão em introduzir a palavra "autodeterminação", o melhor seria usar a formula da ONU, que é "autodeterminação e independência". Concilia tudo, é a fórmula oficial.
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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Foi a que se usou em 1974.
O Sr. Presidente: - Foi com ela que trabalhámos em todo o combate ao colonialismo, durante o processo de descolonização. Era a fórmula clássica da ONU, autodeterminação e independência: já se sabe que é uma autodeterminação que inclui a independência. Com essa, nós, PS, podemos concordar, mas substituir apenas independência por autodeterminação, de maneira nenhuma. Porque isso é, evidentemente, uma redução. Quanto às duas expressões em conjunto, muito bem - essa é a fórmula oficial da ONU, estamos de acordo!
Vamos interromper os trabalhos. Recomeçaremos às 22 horas.
Srs. Deputados, está suspensa a reunião.
Eram 20 horas e 10 minutos.
Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.
Eram 22 horas e 20 minutos.
Srs. Deputados, vamos retomar os nossos trabalhos, prosseguindo a discussão do artigo 197.°, sob a epígrafe "Independência de Timor Leste".
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o grupo parlamentar do PCP não apresentou qualquer proposta nesta matéria, uma vez que considera que não existe aqui nenhuma questão a resolver no plano constitucional. A questão está em cumprir a Constituição e em adoptar as diligências, designadamente na esfera internacional, adequadas para que este desiderato constitucional possa ser cumprido. Pela nossa parte, temo-nos empenhado em tudo o que diga respeito à concecução desse objectivo.
A proposta do PSD, tal qual nos foi apresentada pelo Sr. Deputado Lousa Lara, não tem o significado que inculcaria a sua leitura tal qual a fizemos originariamente. Segundo o Sr. Deputado Sousa Lara nos pôde transmitir, não constituiria objectivo político do PSD suprimir o conteúdo constitucional, mas tão-só conformá-lo com as normas aplicáveis, designadamente no âmbito da Organização das Nações Unidas, para situações similares a esta a que Timor Leste hoje enfrenta - ainda que esta situação seja especial. Trata-se, na verdade, de uma acção de verdadeiro e puro genocídio, não acompanhada de providências que permitam, sequer, o apuramento in loco da dimensão exacta atingida pelo fenómeno, que é evidentemente chocante, não só violar direitos dos povos quanto à sua autodeterminação e independência como também direitos humanos elementares. O Sr. Deputado Sousa Lara teve ocasião de aquiescer a uma sugestão do Sr. Deputado Almeida Santos no sentido de que, neste ponto, a Constituição não fosse amputada de conteúdo, mas conformada com aquilo que é a noção existente em direito internacional e, designadamente, tal qual surge construída no âmbito da Organização das Nações Unidas. Se se tratasse de uma não diminuição de conteúdo, o meu grupo parlamentar poderia ponderar a pertinência da reformulação. A não ser assim, evidentemente, consideramos que a solução constitucional é a mais adequada, importando, tão-só, adoptar providências que permitam cumpri-la.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] Penso que o problema de Timor Leste tem de ser encontrado com dignidade e solidariedade e sem preconceitos partidários. Tenho insistido (sem êxito até hoje) na proposta de se estudarem alguns caminhos no sentido de Portugal prestar ao povo de Timor a solidariedade que lhe deve. Creio que os caminhos não foram estudados, mas que valeria a pena estudá-los - não vou dizer quais são porque não seria correcto.
Compreendo as razões da proposta do PSD, corrigida pelo PS, mas tenho algum receio de que seja entendida como recuo e mal interpretada no exterior. É um ponto sobre o qual me reservarei.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria apenas que não ficasse pairando no ar qualquer equívoco sobre a posição do PSD. Não sei se entendemos bem, todos, aquilo que significava a posição de aquiescência do Sr. Deputado Sousa Lara e se, por outro lado, o próprio processo de debate conduziu à completa clarificação dos pressupostos e implicações da sugestão que foi feita.
Não se trata obviamente de "fechar" o que quer que seja, pelo menos nesta sede Ga seria mania), mas, no caso concreto, conviria que a solução não ficasse a pairar excessivamente, até porque, como se sabe, estão em curso neste momento algumas diligências no âmbito da Comissão Eventual para o Acompanhamento da Situação em Timor Leste. Não há conexão directa entre este debate que estamos a fazer e esse debate que, neste preciso momento, está a ser feito naquela Comissão. Em todo o caso, não gostaria que qualquer inferência perversa fosse feita a partir de um equívoco...
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, pretendia apenas dizer-lhe que da proposta do PSD não pode inferir-se qualquer limitação quanto às saídas possíveis para o Estatuto de Timor Leste. Ao substituirmos a expressão "independência" por "autodeterminação" pretendemos a substituição de um conceito mais estrito por um conceito mais lato no qual o primeiro se engloba. É, pois, neste sentido que a nossa proposta deveria ser entendida.
Compreendemos, porém, que haja algumas objecções a que esta acepção seja admitida, ou seja, compreendemos e aceitamos que haja algumas objecções de princípio, no sentido de que independência é uma coisa e autodeterminação é outra, e que estando actualmente
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consignada na Constituição a expressão "independência" o facto de se alterar para autodeterminação pudesse ser redutor do sentido do preceito constitucional. Mais uma vez reafirmo que não é esse o sentido que lhe quisemos dar na medida em que, quanto a nós, autodeterminação significa um conceito mais rico e mais geral que poderá ser aqui assumido. O conceito de autodeterminação é aquele por que nós fundamentalmente nos batemos desde o princípio em relação à questão de Timor: queremos que o povo de Timor seja ouvido quanto ao seu destino político, queremos que o construa livre e sem sujeição, sem qualquer sujeição a um poder estranho que, designadamente como é o caso nesta altura, ocupe o território de Timor Leste.
Por conseguinte, a questão é fundamentalmente esta: se V. Exa. me diz ou se o PS me diz que talvez seja conveniente reconsiderar a questão por não ser oportuno, por na verdade ser restritivo operarmos esta substituição, que talvez se preste a equívocos, a confusões do ponto de vista internacional, então creio que o PSD estará perfeitamente disposto a reconsiderar a sua proposta no sentido, por exemplo, daquilo que foi avançado pelo Sr. Deputado Almeida Santos e que me parece correcto. O conceito de autodeterminação e independência, filiando-se naquilo que a Carta das Nações Unidas fixa em relação a esta questão, constituiria, em meu entender, uma fórmula exacta e não creio que dessa fórmula nova pudesse inferir-se qualquer redução (antes pelo contrário) do preceito vigente.
Como é evidente, não me pronuncio aqui sobre a questão de Timor na sua substância - fá-lo-ei dentro em breve na sede própria -, pois não estamos aqui para discutir esta questão, que, creio, nos une a todos. De facto, estamos todos de acordo na Comissão Eventual para o Acompanhamento da Situação em Timor Leste e nas posições que para o Mundo inteiro têm partido do País: em todos os fóruns internacionais onde têm estado presentes, os partidos políticos portugueses têm demonstrado uma manifesta coincidência de posições. Assim, não só não me parece que seja este o momento para discutirmos saídas possíveis para a questão de Timor como também não creio que ganhemos algo com isso na medida em que as nossas posições do ponto de vista internacional são perfeitamente coincidentes.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, penso que esta matéria relativa a Timor foi convenientemente dilucidada e foi formulada pelo Sr. Deputado Carlos Encarnação a posição do PSD, com a correcção e precisão indispensáveis a uma matéria deste melindre.
Passaríamos agora, Srs. Deputados, à questão da fiscalização da constitucionalidade com o artigo 277.°, sob a epígrafe "Inconstitucionalidade por acção".
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] Há um conjunto de propostas que são pequenos retoques ou que constituem disposições consequenciais. No entanto, existem dois ou três pontos que, em meu entender, merecem análise.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, proporia que passássemos artigo a artigo, não discutindo, pois seria um pouco absurdo, aqueles que no fundo dependem
das posições a tomar noutras partes da Constituição. Todavia, creio que deveríamos percorrer os vinte artigos de modo que ficasse já registado, na medida em que isso pode ser útil, para efeitos da redacção e da votação do texto final.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - Na realidade, os relatórios têm vindo a rarear.
Vozes.
Relativamente ao artigo 277.°, foi apresentada pelo PCP uma proposta que está, aliás, relacionada com a ideia de lei de valor reforçado e ainda com as relações entre o direito ordinário interno e o direito internacional.
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] quanto à segunda parte, relativamente à desconformidade entre o direito interno e o direito internacional, desde que se mantenha o princípio da supremacia do direito internacional sobre o direito interno, estou inteiramente de acordo.
Como se sabe, tem sido debatida no Tribunal Constitucional uma questão - que, aliás, tem criado uma situação bastante desagradável, dada a divergência da jurisprudência das duas secções - a propósito, basicamente, do diploma que aumentou a taxa de juro em matéria de letras, livranças e cheques. Levantou-se o problema da desconformidade dessa disposição interna com a Convenção de Genéve sobre a Lei Uniforme das Letras, Livranças e Cheques, tendo o Tribunal Constitucional vindo a decidir contraditoriamente: uma das secções entende que a questão é de inconstitucionalidade indirecta e a outra entende que não. Eu diria que, seja ou não assim, desde que se mantenha o princípio da supremacia da convenção internacional sobre a lei, esta é uma solução correcta. Ou seja: o Tribunal Constitucional é um tribunal de apreciação da constitucionalidade, mas também, de certa maneira, um tribunal de alto contencioso normativo. Creio, pois, que a solução é correcta e resolve um problema que tem sido colocado na prática.
Quanto à primeira solução, também ela se me afigura correcta, desde que se aceite o princípio das leis de valor reforçado, dado este preceito ser consequência do estabelecimento de um estatuto especial. De facto, em matéria de conformidade com as convenções internacionais, é preferível o Tribunal Constitucional decidir com uma jurisprudência razoavelmente estável do que o problema oscilar nos tribunais comuns.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, pretendia apenas colocar uma pergunta muito simples ao Sr. Deputado José Magalhães a propósito da relação hierárquica entre o direito internacional e o direito
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interno. Dado que na formulação do n.° 3 o PCP faz referência ao direito internacional que detenha primazia sobre o direito interno, serei levado a admitir que o PCP aceita a existência de certas normas de direito convencional que não detenham primazia sobre o direito interno, o que nos devolve provavelmente para a questão do artigo 8.° e portanto para a relação, na perspectiva da hierarquia das normas, entre o direito interno e o direito internacional. Assim, perguntaria concretamente ao Sr. Deputado José Magalhães se na formulação que o PCP faz vislumbra algum desvio de sentido constitucional ao que se encontra consignado no artigo 8.° ou se, pelo contrário, independentemente da formulação concreta, se trata apenas de uma tentativa de traduzir em sede de fiscalização aquilo que já está disposto no artigo 8.° quanto à relação hierárquica entre as normas de direito interno e as normas de direito convencional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, aproveito - respondendo à pergunta - para alegar a favor da necessidade de que não se deixe de aproveitar esta revisão constitucional para pôr cobro à penosa situação decorrente da dificuldade de apuramento da situação constitucional quanto à questão que está equacionada na parte final da norma proposta pelo PCP. A questão de saber se, sim ou não, cabe ao Tribunal Constitucional fiscalizar também as situações de desconformidade entre o direito ordinário interno e o direito internacional, nos casos em que este tenha a primazia sobre o direito interno, exige clarificação.
Não gostaria que pairasse qualquer dúvida quanto ao conteúdo desta norma. Ela não visa resolver aqui o que não esteja resolvido no artigo 8.° e não significa nenhuma solução autónoma em relação às soluções constantes desse artigo 8.° Todo o debate que temos de fazer sobre o artigo 8.° e, designadamente, sobre a proposta apresentada pelo PS quanto a um dos números do mesmo (a saber: o n.° 3) deve ser feito nessa sede e deverá ser feito à parte. Não devemos deixar misturar os dois campos, pois, qualquer que seja a opção que façamos em relação ao primeiro aspecto, a questão de sindicação das desconformidades coloca-se sempre em termos que, creio, no sistema jurídico português e face às diversas categorias de tribunais, só podem ter resolução satisfatória se cometermos ao Tribunal Constitucional essa função de topo, que é também uma importante garantia da nossa adequada articulação com ordenamentos com os quais a nossa ordem interna tenha de relacionar-se.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, antes de dar a palavra ao Sr. Deputado António Vitorino e só por uma questão de perceber inteiramente o alcance da vossa proposta, vou usar da palavra, e, também para tentar compreender exactamente o que disse o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles - e este usou uma expressão que, aliás, me agrada, referindo o alto contencioso normativo -, gostaria de dizer que, como sabem, o Tribunal Constitucional tem também uma fiscalização preventiva e que aquilo que foi dito a propósito da fiscalização repressiva não se aplica necessariamente a essa fiscalização. Independentemente de saber se vamos consignar ou não leis reforçadoras, devo dizer que estaria disposto a admitir - no caso concreto da primazia do direito internacional - que se aplique
a ideia da fiscalização pelo Tribunal Constitucional nos termos similares àqueles que se aplicam quanto à constitucionalidade. Agora, quanto à fiscalização preventiva, isso parece-me ser francamente difícil e diria mesmo que me parece indesejável porque coloca o Tribunal Constitucional numa situação muito complicada, colocando os órgãos legislativos portugueses numa posição também muito difícil.
Por outro lado - e peço desculpa se isso estava abrangido pela pergunta do Sr. Deputado Jorge Lacão -, gostaria de perceber se, na vossa posição, aos problemas relacionados com o Tratado de Roma também se aplicava esta doutrina, o que me parece lógico, apesar de alguém já ter defendido que era um direito in between do direito internacional e o direito interno. Mas parece que, inicialmente, não se trata de direito interno e, por conseguinte, suponho que também a aplicariam.
Em conclusão, eram estas as duas perguntas que queria fazer: em primeiro lugar, saber se, na vossa ideia, a fiscalização preventiva, neste caso da conformidade com estas normas das leis reforçadas ou do direito internacional, estava incluída na vossa proposta e, em segundo lugar, se as normas comunitárias eram consideradas para estes efeitos como normas de direito internacional.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Quanto a saber, se sim ou não, haveria na proposta do PCP uma homologia integral aos regimes de fiscalização adiantados e do actual modelo constitucional e se, portanto, poderíamos incluir aqui também a fiscalização preventiva, creio que uma das hipóteses, pura e simplesmente, não é concebível. Na hipótese da contradição entre o direito ordinário interno e o direito internacional não esteve na nossa mente instituir um sistema de fiscalização preventiva. Optámos por uma formulação que permite ao legislador soluções mais ou menos avançadas, delimitações de conceitos, fixação de efeitos mais ou menos extensos...
O Sr. Presidente: - É sempre.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É cuidadosa, deixando ao legislador ordinário a possibilidade de equiparação ou não. Eu diria que é fazível, pois, se há um tratado internacional e uma lei interna que viola o tratado, pode levantar-se a questão.
O Sr. António Vitorino (PS): - Nas RGAs era assim!
Risos.
O Sr. Presidente: - Isso é destruir a intervenção.
Risos.
O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não é essa a ideia. É só para se perceber o que se está a discutir na acta porque a questão é suficientemente relevante para que fique escorreita e corrida, e não com interrupções que às vezes não ajudam a perceber o que é que se está a passar. É só isso. Eu, aliás, inscrevo-me já para intervir em último lugar.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, houve duas perguntas: uma, do Sr. Deputado Jorge Lacão, que, suponho, já foi respondida - ou que houve, pelo menos, essa intenção -, e uma segunda questão, que foi minha.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação à primeira pergunta, repito a nossa preocupação nos casos de "desconformidade entre o direito ordinário interno e o direito internacional que sobre ele tenha primazia", não foi instruir formas de fiscalização preventiva. Isso seria talvez excessivo.
Em relação aos casos de desconformidade entre um diploma ordinário e uma lei de valor reforçado, não creio que haja razões para adoptar um regime que exclua a fiscalização preventiva. A solução maleável proposta confere, porém, ao legislador poderes bastantes para resolver com sageza os problemas complexos que não têm de ter solução final nesta sede...
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, creio que a proposta do PCP tem inegáveis virtualidades, desde que seja possível separar águas que, com vantagem, não devem nem nunca deviam ter sido confundidas. A primeira das virtualidades é a de ser uma norma bem intencionada, porque pretende resolver um problema real - a que já foi feita referência pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles - com que o Tribunal Constitucional já se deparou, ou seja, o da existência de jurisprudência contraditória entre as próprias secções do Tribunal. Hoje em dia trata-se de uma questão irresolúvel, na medida em que o sistema não prevê como dirimir as contradições entre a jurisprudência das secções se não se passar à fase da declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral, solução que no caso vertente ainda não foi ensejada. Nesse sentido, o objectivo da norma é útil, é importante e por isso vale a pena ponderá-lo.
A segunda virtude da norma é ser prudente porque, de facto, estamos perante um universo de questões que podem ter implicações que em certos aspectos podem ser excessivas e noutras insuficientes. Isto porquê? Porque uma norma deste tipo reenvia para o legislador ordinário a parte mais difícil da resolução do problema, que é a de eliminar, verdadeiramente, três tipos de questões: primeiro, o que são normas de direito internacional que detenham primazia sobre o direito interno, ou seja, todas as normas de direito internacional...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não falar ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. António Vitorino (PS): - É verdade, mas, à luz da interpretação com que, por exemplo, o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles a consagra quanto ao artigo 8.°, todas terão. Ficamos na expectativa do aggiornamento pós-25 de Abril da teoria da eficácia na ordem interna dos tratados. Temos de admitir que a maioria da doutrina se inclina para reconhecer a primazia do direito internacional e, portanto, potencialmente, estão incluídas no mecanismo desta norma todas as convenções de direito internacional de que Portugal faça parte. Nesse sentido, esta solução tal como então descrita comportaria a difícil tarefa de obrigar o legislador e o julgador a encarar cada acto legislativo à luz de toda a panóplia de instrumentos de direito internacional que estão em vigor no nosso país e que detém primazia nos termos do artigo 8.° e da interpretação maioritariamente feita sobre os efeitos do direito internacional face ao direito interno.
O segundo tipo de questões que já aqui foi levantado é relativo ao problema de saber se este normativo abrange ou não o domínio da fiscalização preventiva de constitucionalidade. Em tese geral, não vejo porque não devia abrangê-la, na medida em que o objectivo da fiscalização preventiva é evitar que vigorem, no ordenamento jurídico, normas malsanas - porque violam a Constituição -, e se estas violam normas de direito internacional a que a Constituição reconhece valor materialmente constitucional, penso que a lógica da fiscalização preventiva também deveria militar nesta solução. No entanto, reconheço que há dificuldades práticas, designadamente decorrentes da primeira questão, ou seja, de qual o universo de direito internacional a que nos estamos a referir.
A terceira e última questão que este problema levanta é o problema dos efeitos da declaração, pois a lógica de determinação dos efeitos pode, nestes casos, não ser forçosamente a mesma do que nos casos de desconformidade directa com a Constituição. Por consequência, sempre se teria de ponderar se não haveria lugar à introdução, na lei ordinária, de algum mecanismo de salvaguarda de um específico quadro de efeitos ou pelo menos admitir uma não total equiparação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade nos casos de desconformidade com norma de direito internacional que detenha primazia aos que resultam da declaração da inconstitucionalidade em geral.
Estas eram as questões que gostaria de colocar sobre esta matéria, que são questões que aconselham prudência na formulação da norma constitucional e a consciência de que estamos a reenviar para o legislador ordinário a parte mais difícil da questão.
A segunda observação que queria fazer é apenas esta: estou totalmente de acordo com o Sr. Deputado José Magalhães em que não há confusão entre as normas de direito internacional, a que o n.° 3 do artigo 277.° faz referência, e a questão da vigência na ordem interna do direito comunitário porque essa é regulada pelo n.° 3 do artigo 8.° E, mesmo para quem, malevolamente, quizesse ver aqui uma contradição entre o n.° 3 do artigo 277.° e o n.° 3 do artigo 8.°, sempre se teria de reconhecer que o artigo 8.° não só integra os princípios fundamentais da Constituição - que, portanto, não podem ser maltratados pelas restantes normas da Constituição - como, inclusivamente, sempre se terá que entender que o artigo 8.°, no seu n.° 3, refere explicitamente a problemática do direito comunitário, e não a problemática geral do direito internacional que contempla nos n.ºs 1 e 2. No entanto, como o seguro morreu de velho e o desconfiado ainda cá está - e identifico-me bastante com o desconfiado sobretudo nestas matérias e quando as propostas vêm de quem vêm -, sempre verei vantagens numa clarificação exaustiva da destrinça que acabei de fazer...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Nesta matéria, Sr. Deputado, penso não ser justificada a sua desconfiança.
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O Sr. António Vitorino (PS): - É justificada, é! Longe de mim chamar ingénuo ao Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Neste caso não o sou.
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas, dizia eu - isto pode ser uma deformação minha -, como tenho discutido estas questões muito longamente com o Sr. Deputado José Magalhães, a simpatia que tenho por esta norma é uma simpatia que pode e deve ser levada ao ponto de, ao consagrá-la, se esclarecer claramente que não estamos a pensar no direito comunitário. E isto por uma razão muito simples: porque, à luz do ordenamento jurídico comunitário, nunca poderia um Estado membro declarar inconstitucionais as suas normas que violassem o direito comunitário ou nunca um Estado membro poderia equiparar à declaração de inconstitucionalidade a desconformidade de uma norma de direito interno com uma norma de direito comunitário, pois o regime jurídico do direito comunitário é um regime jurídico próprio, cuja eficácia e prevalência não está dependente da qualificação dos vícios no plano do direito interno, está, sim, exclusivamente dependente quer da qualificação dos vícios feita pelo próprio direito comunitário quer das consequências que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias comina para a desconformidade das normas do direito interno com o direito comunitário. Isto para já não falar das consequências retiradas pela própria Comissão das Comunidades.
Por consequência, não haveria sequer, por esta via, a possibilidade de tornar equiparáveis os casos de desconformidade com o direito internacional e com o direito comunitário, na medida em que são dois modelos completamente distintos de aferição da conformidade de normas do direito interno com normas do direito internacional: num caso, o direito internacional, digamos, clássico, a que se refere o n.° 3 do artigo 277.°; noutro caso, completamente distinto e nos termos no n.° 3 do artigo 8.° da Constituição, a desconformidade das normas do direito interno com o direito comunitário.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, seria útil que precisasse ainda melhor sobre a forma de dirimir as situações de desconformidade que, agora mesmo, situou ...
O Sr. António Vitorino (PS): - As últimas?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Claro, as últimas! Sobre as primeiras o debate é concludente.
O Sr. António Vitorino (PS): - Isso é verdade, mas eu não antecipo o debate do artigo 8.° Lá chegaremos. É porque o Sr. Deputado José Magalhães, ele próprio, reconheceu que não era dessas que tratava a norma do PCP.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, mas como o Sr. Deputado António Vitorino, agora mesmo, situou, em termos que ficaram registados, a sua concepção sobre a questão específica do direito comunitário e remeteu para uma outra ordem de sindicação e para
um outro universo de mecanismos toda a problemática das conformidades e desconformidades, não fiquei a perceber se entendia manter-nos em suspense absoluto em relação a essa matéria ou se pretendia, para demarcar bem, ventilar um pouco essa problemática, precisamente para a distinguir, quiçá, na parte em que tem de ser distinguida.
O Sr. António Vitoríno (PS): - Posso, já agora, acrescentar qualquer coisa sobre isso. É que estamos aqui a pensar sobretudo em sede de fiscalização abstracta concentrada. Ora, não é esse o modelo de verificação de desconformidade do direito interno com o direito comunitário, pois todo o edifício comunitário assenta numa estrutura jurisdicionalizada na qual os tribunais nacionais fazem parte de uma ordem jurisdicional comunitária que tem como órgão de topo o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Portanto, a declaração que em regra, no domínio comunitário, tem lugar por parte dos tribunais, sejam eles tribunais internos, seja o Tribunal de Justiça das Comunidades, é a declaração da não aplicação ao caso da norma interna que viole o direito comunitário aplicável.
Ora, das decisões do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias podem decorrer indicações para o Estado membro revogar, na ordem jurídica interna, aquelas normas de direito interno que violam normas de direito comunitário, mas essas indicações não são vinculativas porque as sentenças do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias só se aplicam, naturalmente, à resolução de um litígio e apenas vinculam as partes. O que constituem é sempre fundamento para a actuação da Comissão das Comunidades, como guardião do espírito dos tratados, e a Comissão, ela, sim, pode, na sequência de decisões do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, elaborar directivas dirigidas aos Estados membros- no sentido de estes revogarem as normas internas desconformes com o direito comunitário. Só que neste caso estamos perante directivas de um órgão comunitário, que é a Comissão, dirigidas ao legislador interno de cada Estado com competência para fazer as normas internas ou as desfazer. É sempre o legislador nacional. Não há uma declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade ou da inaplicabilidade do direito interno desconforme ao direito comunitário por parte do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Esse mecanismo não existe e, portanto, não há paralelo com aquilo que estamos aqui a tratar no artigo 277.°
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, eis com o que se demonstra a completa boa fé dos proponentes desta matéria.
Preocupou-nos o problema que tem sido apreciado no Tribunal Constitucional, como V. Exa. sabe.
O Sr. António Vitorino (PS): - Claro, Sr. Deputado. Supunha que tinha sido claro na minha intervenção no sentido de coonestar essa interpretação e de afirmarmos que concordamos plenamente que este aspecto não tem nada a ver com o direito comunitário. Mas não podemos ignorar certas tendências doutrinárias recentes que apontam para declarações de inaplicabilidade do direito interno desconforme com o direito comunitário que deveriam ter força obrigatória geral no plano comunitário.
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O Sr. Presidente: - Em todo o caso, não deixa de ser curioso o facto de que à pergunta sobre se o direito internacional abrangiria o direito comunitário a resposta dada na altura tenha sido para mim clara quanto a um ponto e não clara quanto a outro.
Realmente poderemos admitir quê as consequências são completamente diferentes em relação à fiscalização concreta da legalidade ou da inconstitucionalidade e em relação ao problema da fiscalização abstracta. A fiscalização abstracta aproxima-se muito mais do problema da fiscalização preventiva do que a fiscalização concreta, o que leva a que se eu tenho objecções práticas quanto à fiscalização preventiva tenho também algumas objecções quanto à fiscalização abstracta, embora não tão intensas.
O Sr. António Vitorino (PS): - Abstracta sucessiva.
O Sr. Presidente: - Sim, Sr. Deputado. O que não tenho é o mesmo tipo de objecções quanto à fiscalização concreta.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Poderia explicitar, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Porque no que diz respeito ao direito internacional não se colocam os problemas que o Sr. Deputado António Vitorino focou no que se refere ao órgão de aplicação, mas podem apresentar-se alguns tipos de problemas quanto às consequências da fiscalização abstracta. Por outras palavras: salvo se formos para uma tese monista clássica, a circunstância de haver uma pluralidade de ordenamento pode conduzir a consequências distintas no que respeita a haver normas que em certas circunstâncias e em certas aplicações sejam ilegais face ao direito internacional, mas essa ilegalidade não exige a revogação da norma na sua totalidade, mas a sua simples não aplicação.
Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, penso que esta matéria precisa de mais estudo. E coonestá-la-ia por duas ordens de razões.
Aliás, o projecto de lei apresentado pelo PCP é prudente porque diz que "a lei poderá"...
O Sr. Presidente: - Sim, Sr. Deputado, mas não estamos a discutir esse problema das relações de trabalho.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - No caso que toca ao direito comunitário, penso que a questão tem de ser resolvida no plano do artigo 8.° - quando lá chegarmos veremos isso.
No plano da fiscalização abstracta, tenho algumas dúvidas quanto à atribuição ao Tribunal Constitucional do. poder de declarar com eficácia obrigatória geral a inconstitucionalidade. Isto por duas razões: porque os tratados podem vir a ser denunciados ou anulados no plano internacional e porque sempre sustentei que a contradição entre o direito interno e o direito internacional, supondo-se a prevalência deste, conduziria a uma simples ineficácia da norma interna. Como se sabe, a norma internacional não é critério de fundo e intrínseco da norma interna. É o princípio da harmonia das normas jurídicas - sempre sustentei isso - que faz com que a norma interna ceda perante a norma internacional de tal maneira que se a norma internacional cessar de vigorar a norma interna retoma a vigência. Não me repugnaria nada alguma norma que neste domínio restringisse a equiparabilidade ao domínio da fiscalização concreta. Mas penso que esta matéria tem de ser melhor analisada.
O Sr. Presidente: - Então o Sr. Deputado não está de acordo comigo?
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não estou, Sr. Presidente. Sempre sustentei, ao contrário do que sucede com a inconstitucionalidade da lei, que a consequência da violação de tratados, supondo a prevalência do direito internacional, é a ineficácia. Isto significa que desde que a norma internacional cesse de vigorar a norma interna produz efeitos. É um limite extrínseco, não um condicionalismo intrínseco.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, conheço esse trabalho e li-o atentamente. Mas a questão é esta: penso que temos que ser muito prudentes porque esta é uma matéria complexa. Bem sei que a proposta do PCP não é importante, remete para a lei, e nesse aspecto revela cautela, mas apesar disso o posicionamento que tem leva a induzir uma certa posição de aplicar à fiscalização preventiva e à fiscalização abstracta.
Como digo, tenho objecções mais fortes quanto à fiscalização preventiva, mas mesmo quanto à abstracta tenho dúvidas grandes que resultam desta diversidade de consequências no que respeita à contradição entre uma norma interna e uma norma internacional.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O Sr. Presidente admite que se restrinja a confiança?
O Sr. Presidente: - Sim, Sr. Deputado.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Penso que este debate tem sido extremamente interessante e já fez luz sobre alguns dos problemas que estão co-envolvidos na proposta do PCP.
De resto, é bastante interessante a tese expendida pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles quanto ao princípio da ineficácia na relação hierárquica entre a norma de direito internacional e a norma de direito interno, e não necessariamente em relação a um princípio de invalidade de norma de direito interno contraditório com a norma de direito internacional.
Por outro lado, esta questão está obviamente ligada ao problema da declaração, com eficácia e força obrigatória geral, no caso da fiscalização abstracta, ou apenas à questão da desaplicação da norma, no caso da fiscalização concreta, e nesse aspecto acompanho as preocupações do Sr. Presidente.
Uma outra questão subsiste ainda em relação à proposta apresentada pelo PCP, a qual não considerei muito clarificada na primeira proposta fornecida pelo Sr. Deputado José Magalhães e menos ainda na sequência já da exposição feita pelo Sr. Deputado António Vitorino. De facto, excluindo, como o PCP acabou por excluir, que do alcance da sua proposta esteja o direito comunitário - fiquei com essa ideia, dado que o
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Sr. Deputado José Magalhães tinha reconhecido para a questão do direito comunitário o regime específico de tratamento aqui referido pelo Sr. Deputado António Vitorino -, continua a verificar-se na proposta do PCP a ambiguidade que é a de se referir à relação entre o direito ordinário interno e o direito internacional que sobre ele detenha primazia.
Ora, se excluirmos que não está em causa a questão do direito comunitário, então que tipo de direito internacional ?... Não é o ius cogens com certeza, é o direito convencional. Assim, que tipo de direito internacional convencional poderia não ter primazia por uma interpretação a contrario, na linha que o PCP propõe? Admite o PCP com isto a hipótese de contrariar o n.° 2 do artigo 8.°? Admite que possa haver direito internacional convencional que não detenha primazia sobre o direito interno?
Esta é uma questão acerca da qual me parece que o Sr. Deputado José Magalhães não nos esclareceu suficientemente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Vejo no Sr. Deputado Miguel Galvão Teles uma última sofreguidão de extinguir a fogueira de dúvidas que atormenta o Sr. Deputado Lacão...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que esta formulação foi feita deixando entre parêntesis o problema da primazia. Julgo que o problema está em aberto. Não diria que se trata do problema das relações entre o direito comunitário e o direito internacional tradicional, mas, por exemplo, do problema das relações entre o direito internacional tradicional geral ou comum e o direito convencional. Havia muito boa gente que noutros tempos sustentava que o direito internacional geral e comum tinha prevalência sobre o direito interno, mas que o direito convencional não a tinha.
Penso que desta proposta do PCP não se podem extrair ilações neste sentido. Creio que esta proposta é feita por quem não sabe qual a solução que irá ser adoptada no artigo 8.° e que, portanto, a questão terá de ser discutida quando chegarmos ao artigo 8.°
Vozes.
No estrangeiro defende-se muitas vezes isto. Penso que a expressão "que sobre ele detenha primazia" constitui um ponto de interrogação a ser resolvido no artigo 8.°
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, desejei, e ainda bem que foi possível, que alguém que não eu e não pertencente à minha bancada pudesse dizer aquilo que V. Exa. acaba de afirmar.
Eu tinha feito, de. início, um esforço para transmitir ao Jorge Lacão que o conteúdo deste artigo não era inovatório, que não acrescentava ao conteúdo do artigo 8.° nenhuma coisa e coisa nenhuma. Por outras palavras, não pretendemos dirimir nesta sede o que apenas em sede de artigo 8.° possa ser dirimido, dentro da lógica e dos limites daquele artigo.
Em relação a esta matéria, o PS, além de ter um claríssimo contencioso que en su sitio e a seu tempo terá que ser resolvido, projecta, indevidamente, neste debate o fantasma de um contencioso que não existe. Sabemos as questões que a interpretação do artigo 8.° originou antes da primeira revisão constitucional, reflectindo, de resto, um contencioso que vinha da Constituição de 1933 e que era apaixonado - creio que foi uma homenagem a esse contencioso que hoje aqui fizemos na pessoa do Deputado Miguel Galvão Teles. O PS, pelos vistos, quer ir tão longe que acaba por fazer uma homenagem póstuma a esse contencioso como se estivesse vivo, preocupando-se em fechar portas redobradamente, aí onde ninguém as quer abrir.
O Sr. António Vitorino (PS): - Isso não é exacto. O Sr. Deputado José Magalhães não pode tirar ilações desse género das intervenções que nós fizemos, e o Sr. Deputado sabe-o perfeitamente. Não foi nada disso que dissemos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Restringirá o Sr. Deputado como quiser aquilo que ache abusivo e ficará aquilo que não é abuso. Cada um julgará.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passemos à apreciação do artigo 278.° após este debate assaz interessante, mas que naturalmente deixou algumas questões de remissa para o artigo 8.°
O artigo 278.° trata da fiscalização preventiva da constitucionalidade, e relativamente à matéria existem três propostas: uma primeira apresentada pelo CDS, uma segunda do PS e uma terceira de vários Deputados do PSD, que apresentaram um projecto autónomo. Vamos começar então pela apresentação da proposta do PS.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Esta proposta não tem em si nada de especial, é moderadíssima. No seu n.° 1 acrescenta apenas as leis paraconstitucionais, e no n.° 2 comete dois actos de generosidade temporal: confere ao Presidente da República mais três dias, além dos cinco de que hoje dispõe, para poder suscitar a fiscalização preventiva; ao Tribunal Constitucional confere-lhe mais cinco dias do que os vinte de que hoje já dispõe para se pronunciar em sede de fiscalização preventiva, naturalmente sem prejuízo de o Presidente da República poder encurtar o prazo por motivo de urgência, como mantemos no respectivo n.° 4.
A nossa resposta reduz-se a isto. Ela consiste em meras operações de detalhe que não prejudicam, em nosso entender, a lógica da fiscalização preventiva. Elas acrescentam ao todo oito dias aos prazos actualmente fixados, mas têm em linha de conta certas realidades, que a prática concreta tem sublinhado e que aconselham que haja uma ligeira dilação nos prazos que a Constituição hoje estipula.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que os n.ºs 1, 3 e 4 do projecto do CDS se compreendem por si.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, creio, pelo contrário, que não se percebe nada desta proposta do CDS.
Vozes.
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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Deputado, a proposta tem é de ser retocada naquilo que diz respeito aos tratados e quando admite a possibilidade de introduzir reservas que tornem o tratado constitucional. Isto se for possível introduzir tais reservas e se o Governo ou os órgãos competentes tiverem interesse político nisso.
Penso ser uma proposta que merece ser considerada, mas não exactamente nos termos em que está formulada.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, não percebo o que é a fiscalização de um tratado antes da respectiva conclusão na ordem internacional.
O Sr. Presidente: - É o problema da ratificação, Sr. Deputado.
O Sr. António Vitorino (PS): - Quando muito, isso é na ordem interna.
Vozes.
O Sr. Presidente: - A redacção não é feliz, Sr. Deputado. No entanto, a ideia é a de que antes de o Estado se vincular internacionalmente...
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] No projecto do CDS é admitir a possibilidade de expurgo da inconstitucionalidade através de reservas, quando o direito internacional as admita e os órgãos competentes as entendam por convenientes.
O Sr. Presidente: - É antes da vinculacão do Estado Português, Sr. Deputado, que se introduzem as reservas. Depois da vinculacão essas reservas não se podem introduzir.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Claro, Sr. Presidente. É introduzir as reservas que se puderem introduzir.
Vozes.
Isto tem de ser retocado, Sr. Deputado. A ideia não é incorrecta, tem algum sentido.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, podemos ir até ao fim e fazer aqui crítica de fundo ou ladear a questão. Não se pode é ignorá-la! Este projecto revela bem, no n.° 4 do artigo 279.°, a lógica dos proponentes. Não me pronuncio sobre ela, mas a lógica está aqui expressa: se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de uma convenção internacional aprovada pela Assembleia da República, esta poderá aprovar as reservas necessárias para assegurar a compatibilidade dessa convenção com
a ordem constitucional portuguesa ou então deliberar, por maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções, manter inalterada a sua resolução de aprovação...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sei a história dos dois terços, foi escrita a vermelho!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não percebo, Sr. Deputado.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sei a história dos dois terços e compreendo-a perfeitamente. A história dos dois terços está escrita a vermelho! Quando se fez o Pacto MFA-Partidos estava previsto que, declarada a inconstitucionalidade pela fiscalização preventiva pelo Conselho da Revolução, sob parecer da Comissão Constitucional, a norma não poderia ser promulgada, o tratado não poderia ser ratificado. O Dr. Mário Soares - e penso que muito bem -, em caneta, a vermelho, escreveu por cima dessa disposição o seguinte: "Salvo se aprovado por maioria de dois terços."
Vozes.
Penso que tem razão porque, de facto, o controle preventivo tem de ser um controle relativamente perfuctório, e a preocupação que aí se exprimia era a de um qualquer órgão - no caso concreto seria o Conselho da Revolução, sob parecer da Comissão Constitucional, mas julgo que para o Tribunal Constitucional a questão é idêntica - bloquear o processo legislativo, tendo em conta que a fiscalização preventiva tem uma amplitude tão grande. Precisamente pela possibilidade de a fiscalização preventiva ser superada por dois terços é que a ausência de declaração de inconstitucionalidade em fiscalização preventiva não impede a declaração em fiscalização sucessiva.
Penso que este é um sistema prudente. Aí foi à base de caneta vermelha, mas isso também se revelou necessário.
O Sr. Presidente: - É óbvio, Sr. Deputado, mas suponho que o Sr. Deputado José Magalhães pretende chamar a atenção para a conexão com a questão das reservas.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sim, Sr. Presidente, mas não só. Gostaria de chamar a atenção para a questão da lógica intrínseca da proposta. Não é possível compreender o regime contido na proposta do CDS respeitante ao artigo 278.° sem ter em consideração as consequências, isto é, os efeitos da decisão que estão plasmados no n.° 4 do artigo 279.° do projecto do mesmo partido.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] a norma constante de tratado, este só poderá ser ratificado se a Assembleia da República o vier a aprovar por maioria de dois terços dos deputados presentes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A inovação do CDS suscita diversos tipos de problemas, Sr. Deputado.
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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas essa inovação não é negativa! O que eu diria é que tem se ser cuidadosamente redigida. Se o tratado admitir reservas que eliminem a inconstitucionalidade, por que é que não se há-de celebrar o tratado com as reservas? E digo que é necessário o tratado admitir reservas porque a lei é estritamente indispensável, já que, é evidente, não é a Assembleia da República que aprova as reservas - daí o ter de recomeçar o processo. Isto já se aplica aos tratados multilaterais, como é evidente.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - A possibilidade de apor reservas num tratado depende dos termos em que ele foi celebrado. E isso não está previsto no modo como o CDS apresentou o problema.
O Sr. Presidente: - Não, a ideia não é completamente errada, mas acontece que tem duas dificuldades: a primeira é que é necessário que aquele tratado admita no caso concreto as reservas; a segunda é que há um problema prático em termos do processo de negociação.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não pode ser a Assembleia da República, mas, sim, o Governo.
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas é evidente que o resultado prático do que o CDS propõe já é o que hoje acontece. De facto, quando é declarada a inconstitucionalidade de um tratado ou ele é confirmado por dois terços dos deputados presentes ou o Governo reabre o processo e negociações na ordem internacional e decide introduzir as mudanças necessárias.
Vozes.
O Sr. Presidente: - No fundo, é a explicitação...
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Esta ideia de subordinar à fiscalização preventiva em momento anterior à conclusão do tratado na ordem internacional suscita o problema de saber qual é o momento da conclusão do tratado. Será o momento final em que o tratado entra em vigência na ordem internacional?
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Salvo o devido respeito, Sr. Deputado, parece-me que o CDS não percebeu o que já hoje consta da Constituição, pois é exactamente o mesmo. Diria, pois, que este artigo é um disparate do ponto de vista técnico-jurídico. Do ponto de vista da substância, não altera ...
O Sr. Presidente: - Mas talvez possamos poupar um pouco de tempo, uma vez que o CDS não está presente. Consideremos, pois, o contributo pela sua valia própria e passemos adiante.
Há ainda uma contribuição do projecto de revisão constitucional apresentado por vários deputados do PSD/Madeira, que interessa referir na medida em que eles colocam o problema do decreto regional e do decreto regulamentar ao mesmo nível do decreto que tem de ser enviado para promulgação para ser lei ou do decreto-lei.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, só é assim porque os deputados do PSD/Madeira extinguem o cargo de Ministro da República e transferem as competências de promulgação dos actos legislativos regionais para o Presidente da República.
O Sr. Presidente: - Quero acrescentar ainda o seguinte: como já foi analisada essa matéria, vamos, repito, passar adiante.
Assim, temos agora em análise o artigo 279.°, cuja epígrafe é "Efeitos da decisão".
Há propostas do CDS, do PCP, do PS, da ID e de vários Srs. Deputados do PSD-Madeira.
Verifico que o PCP elimine a parte final do n.° 2 do artigo 279.° Já discutimos a questão dos dois terços, que é, de facto, eliminada nesta proposta. Percebemos quais eram as posições e foram explicados os prós e os contras. Se, entretanto, o PCP quiser, explicito, de novo, que o PSD é contra, justamente pela natureza da fiscalização preventiva da constitucionalidade. Entendemos, pois, que não podemos dar a uma fiscalização preventiva o valor de um veto total e definitivo quando, no fundo, o órgão é jurídico e não político. Aliás, sempre subsiste a possibilidade de se suscitar a fiscalização repressiva ou sucessiva da constitucionalidade do diploma aprovado por maioria de dois terços. O que há é, naturalmente, uma reponderação, e esta é dada pela necessidade de uma nova votação e pela maioria agravada que é exigida para a sua aprovação.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, a primeira nota destina-se a sublinhar a evolução do PSD desde a revisão constitucional de 1982, onde, então, pura e simplesmente, propugnava pela supressão da fiscalização preventiva.
Vozes.
O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpem, Srs. Deputados, como o PSD está sempre a enfatizar carinhosamente as evoluções do pensamento do PS, seria de uma terrível ingratidão que não cumprimentássemos o PSD com a mesma gentileza quando evolui, como é o caso. É somente isso! Nada mais...
O Sr. Presidente: - Penso que só não evolui quem não tem cabeça! Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de sublinhar que é reconhecidamente uma entorse à lógica de todo o sistema o facto de, emitido pelo órgão competente, juízo sobre a constitucionalidade de um diploma, ser susceptível de ser feita por esta via a ultrapassagem desse juízo, sobretudo tendo em atenção as diversas dimensões que esse poder reveste no quadro constitucional! Na verdade, ele aplica-se aos tratados, ao caso previsto no n.° 1 do artigo 279.° e à própria legislação regional, o que reveste melindre, ainda que fiquem, obviamente, em aberto todos os outros mecanismos de fiscalização sucessiva.
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O Sr. Presidente: - Não quero, até pelas considerações produzidas há pouco pelo Sr. Deputado António Vitorino, embrenhar-me nesta discussão. Porém, a verdade é que se se considerar, por exemplo, o posicionamento d.o Tribunal Constitucional na fiscalização preventiva e repressiva, a função não é a mesma.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, os inextricáveis males e bens da fiscalização preventiva são conhecidos. O sistema foi, porém, mantido na primeira revisão constitucional e ninguém propôs a sua supressão nesta segunda revisão, o que deve ser sublinhado. Pode mesmo acontecer que venha a ser ampliado a certos tipos de leis e alargada a legitimidade para o seu accionamento...
O problema é que a consolidação do sistema de fiscalização preventiva faz-se, apesar de tudo, com uma entorse, que é a possibilidade de ser ultrapassada por dois terços. E essa entorse não é ressalvada pelo facto de, adiante, haver uma terapêutica correctiva - a fiscalização sucessiva, com uma natureza e implicações distintas; dado que, quando é activada, já estamos perante regimes jurídicos vigentes, com todas as consequências e, sobretudo, com o que isso implica em termos de articulação em concreto com o funcionamento conhecido e cognoscível do Tribunal Constitucional, designadamente quanto aos prazos, à oportunidade e ao volume processual.
Acontece que há esse instituto, de problemática aplicação, que se chama "modelação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral". Ele conduz, tem conduzido e, previsivelmente, conduzirá, no futuro, a que se solidifiquem no terreno galáxias de inconstitucionalidades, doloríssimas do ponto de vista da projecção na esfera intersubjectiva, virtualmente irreparáveis. Ainda agora a declaração de inconstituconalidade de parte da legislação respeitante à criação das empresas de transportes marítimos Portline e Transinsular evidenciou, mais uma vez, os limites que decorrem da aplicação desse instituto. As desvantagens da fiscalização preventiva têm como contraponto a vantagem da clarificação precoce, da celeridade e da garantia de não consumação da violação nos casos em que haja uma decisão no sentido da inconstitucionalidade. Nos casos em que ocorra o contrário, é evidente que se verificam efeitos de outra natureza: avultam então a vulnerabilidade à pressão política, a fragilização da aplicação de critérios jurídico-constitucionais e a primazia dos critérios de carácter jurídico-político ou de cariz político-jurídico ou, até, de natureza "político-política", o que, entre nós, teve afloramentos espectaculares em certos casos, dos quais basta citar o plasmado no Acórdão n.° 11/83, de 12-10, publicado no vol. i, pp. 11 e seguintes, dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, sobre o imposto extraordinário criado, em má hora, no ano de 1983. Isto, como é óbvio, para só falar na experiência do Tribunal Constitucional e já não na da Comissão Constitucional e do Conselho da Revolução.
Donde a proposta do PCP.
O Sr. Presidente: - Quero somente dizer que, na minha perspectiva, quando o Tribunal Constitucional for eleito directamente por sufrágio directo e universal, então, nessa altura, poderíamos perceber uma legitimidade desse tipo. Não o sendo, meu caro Deputado José Magalhães, le gouvernement desjuges tem limites!
O Sr. António Vitorino (PS): - Na primeira revisão constitucional houve quem chegasse a propor isso, e não vou dizer quem foi para não deixar o Sr. Presidente mal visto!...
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O que diria é, que esta válvula de segurança, mesmo teórica - e não sei se alguma vez foi utilizada, mas penso que nunca -, é condição da manutenção da fiscalização preventiva. Se apertarmos demais este tipo de fiscalização, qualquer dia acaba!...
O Sr. Presidente: - V. Exa. explicitou de uma maneira mais gentil o que eu disse de um modo mais brutal! No entanto, é verdade, Sr. Deputado José Magalhães, que a experiência, quer em matéria de fiscalização constitucional, quer no âmbito da fiscalização administrativa, quando se exagera, numa ânsia compreensiva e muito meritória de controle, acaba por ter efeitos perversos extremamente negativos. E, infelizmente, a História é ... Não gostaria de citar o Roosevelt, mas, às vezes, apetece fazê-lo a propósito da política do New Deal!
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, julgo que o Sr. Deputado José Magalhães tem alguma razão e não nego que a questão por ele suscitada é real: ou seja, a de um poder político poder jogar com a consolidação de efeitos produzidos, designadamente em matéria delicada, como é a matéria orçamental, por actos legislativos inconstitucionais, beneficiando do facto de o Tribunal Constitucional, mesmo que venha a declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, poder fazê-lo sem retroagir os efeitos dessa declaração à data da entrada em vigor do normativo. Tal jogo pode levar a que, ao não declarar a inconstitucionalidade com efeitos retroactivos à data de entrada em vigor do normativo inconstitucional, o Tribunal permita que se tornem irreversíveis efeitos desse acto, que de outra forma nunca veriam a luz do dia. Assim, o Sr. Deputado José Magalhães tem razão no ponto que suscitou.
Pessoalmente, à primeira vista, até teria alguma simpatia pela lógica da proposta do PCP. Reconheço, contudo, que ela introduz uma alteração muito significativa na dinâmica do sistema da fiscalização da constitucionalidade, que também tem um reverso, qual seja o de saber se, em certas circunstâncias, não pode ser vantajoso para a própria recomposição da ordem constitucional a situação contrária, a saber: o Tribunal Constitucional não se pronuncia pela inconstitucionalidade em sede de fiscalização preventiva, a norma entra em vigor, mas como essa pronúncia do Tribunal em sede de fiscalização preventiva não é definitiva, nem para "o morra", nem para "o viva", posteriormente, em sede de fiscalização sucessiva, o Tribunal ainda pode vira a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Esta hipótese ficaria inviabilizada se a proposta do PCP fosse aprovada.
Vozes.
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Penso, pois, que há necessidade de jogar com a dinâmica do próprio sistema e admitir que ela não é forçosamente perversa apenas para um dos lados. Deve-se balancear as vantagens do sistema plural e aberto consagrado na Constituição e que eu propenderia, apesar de tudo, a manter.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, as dificuldades de compatibilização desta solução com a lógica geral do sistema serão particularmente sensíveis no respeitante aos diplomas regionais ou não?
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado, estou um pouco em dificuldade, porque no meu projecto pessoal de revisão constitucional, que submeti ao meu partido, tinha, de facto, uma solução semelhante à do PCP. Isto é, relativamente ao veto em sede de fiscalização preventiva, a declaração do Tribunal Constitucional era irrrevogável e definitiva.
Entretanto, o problema que se coloca é o seguinte: o Sr. Deputado José Magalhães tem razão quanto à prática no respeitante aos diplomas regionais, mas o que não me parece justificável é que se estabelecesse uma destrinça de regime jurídico, que se punisse mais severamente os diplomas legislativos regionais, sem paralelismo com o mecanismo de fiscalização da constitucionalidade das leis da República. Penso que isso se traduziria na introdução, num sistema de fiscalização dos actos legislativos regionais, que, apesar de tudo, tem funcionado bem, de um factor de desconfiança adicional, que a prazo pode não ser muito saudável.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como V. Exa. terá reparado, o PCP utilizou uma solução partidária, eliminatória de todas as soluções desse tipo, sem excepção.
Além disso, o funcionamento dessa solução na prática da legislação regional tem sido verdadeiramente excepcional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. pode ponderar um outro elemento de reflexão que resulta do facto de a confirmação, por dois terços, de uma norma declarada inconstitucional em sede de fiscalização preventiva não obrigar necessariamente à promulgação do diploma, já que nesse ponto intervém a competência do Presidente da República como um poder discricionário e não como um poder vinculado. E digo isto porque o Presidente da República, não estando vinculado à obrigatoriedade da promulgação nos casos em que a confirmação por dois terços se faz na sequência da declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, aí se remete para o poder moderador do Presidente da República, que é, no fundo, a última arbitragem em matéria de fiscalização preventiva. É mais uma cautela do sistema que resulta num equilíbrio que tem dado provas suficientes para justificar a sua manutenção.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, podemos agora passar à discussão do artigo 280.°
No entanto, tem ainda a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, no nosso n.° 2 do artigo 279.° prevê-se a consagração das leis paraconstitucionais e no n.° 3 equiparamos o regime a todos os outros casos previstos na Constituição, ou seja, a confirmação será feita por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções.
O Sr. Presidente: - Exacto, Sr. Deputado, os projectos de revisão percebem-se por si, pois estão em conexão com as propostas apresentadas nas sedes próprias.
Temos agora uma proposta de aditamento apresentada pelo PRD...
O Sr. António Vitorino (PS): - ... Que eu sugeria que fosse discutida juntamente com os artigos do referendo.
O Sr. Presidente: - Parece, de facto, ser uma questão pertinente, Sr. Deputado.
Pergunto, então, ao Sr. Deputado Miguel Galvão Teles se concorda que a dita proposta seja discutida aquando da análise do referendo.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sim, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Passamos à análise do artigo 280.° ("Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade"). Há uma proposta do CDS e também uma do PS. Quer o PS justificar a sua proposta?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - A lógica fundamental da proposta é a de introduzir a fiscalização da conformidade dos demais actos legislativos com as leis paraconstitucionais. Nesse sentido quase que é desnecessário discuti-la, nesta sede, sem saber de ciência segura se criaremos ou não leis paraconstitucionais. Chamava só a atenção para que a eventual consagração de qualquer mecanismo do tipo leis orgânicas ou leis reforçadas, em meu entender, implica uma norma deste género, coisa que não sucede nos projectos dos outros partidos que apresentaram soluções deste teor. E chamava apenas a atenção para o facto de, de forma discutível, e não a discutiremos agora, nós, no que diz respeito ao n.° 5 apenas consagrámos: "recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais: a) que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo emanado de um órgão de soberania com fundamento na violação de norma ou princípio contido em acto normativo a que se deva subordinar". Isto é, recurso apenas restrito ao caso de recusa de aplicação e não em total paralelismo com o n.° 2 actual, em que também "cabe recurso das decisões dos Tribunais: a) que recusem aplicação [...] c) que apliquem norma". É essa diferença. Quanto aos n.ºs 3 e 4, trata-se de uma divisão do actual n.° 4, apenas tendo em vista clarificar uma divisão do actuai n.° 4, apenas
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tendo em vista clarificar a que matérias é que se referem e os casos em que o recurso é obrigatório para o Ministério Público. Creio que não há mais nenhuma inovação nesta norma.
O Sr. Presidente: - Podemos passar ao artigo 281.º...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)
[...] Fundamentalmente determinado no essencial, com a introdução das leis paraconstitucionais. Há aqui um problema de substância, mas penso que deve ser deixado para a doutrina e para a jurisprudência, nos recursos para o Tribunal Constitucional. É o problema de nexo de prejudicialidade entre a questão da inconstitucionalidade e a questão principal. Já há casos complicados em que o nexo referido é mais do que duvidoso quando, por exemplo, o Tribunal invoca a inconstitucionalidade subsidiária.
para o facto de, independentemente do destino das íeis paraconstitucionais, me parecer que há três ou quatro questões sobre as quais deveríamos ponderar, subsequentemente à revisão constitucional, e proceder à alteração da lei do Tribunal Constitucional em conformidade.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas aí o nexo de prejudicialidade justifica-se. O caso da inconstitucionalidade invocada como fundamento cumulativo ou como título subsidiário...
O Sr. António Vitorino (PS): - Esse é um dos casos que me parece que devia ser tratado em melhor sede.
O Sr. Presidente: - A prejudicialidade deveria ser tratada e, no caso do Tribunal Constitucional, reconheço que é particularmente importante, porque condiciona toda a evolução da apreciação. Mas o mesmo ou coisa muito similar pode acontecer nos tribunais administrativos, e essa matéria não está tratada, nem sequer, na maior parte dos casos, minimamente amadurecida e individualizada, ao contrário da Constituição italiana, em que está devidamente tratada. Nós não vamos ter a pretensão de aqui, hoje, mesmo pró memória, citar todas as questões que merecem atenção numa fase posterior à da feitura da revisão da Constituição.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de fazer uma pergunta ao Sr. Deputado António Vitorino, porque me pareceu que estabelecia, no n.° 5 do artigo 280.°, para os casos de recurso obrigatório do Ministério Público um regime distinto do previsto no actual n.° 1. Não consigo vislumbrar em que se situa, pelo menos nos termos em que a proposta está formulada. A não ser que a intenção tenha sido outra...
O Sr. António Vitorino (PS): - Não é quanto à parte do recurso ser obrigatório para o Ministério Público. É que o n. ° 2 do artigo 280.° diz que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de duas situações distintas: a) "que recuse aplicação de normas" e b) "que aplique norma". E o caso do n.° 5, alínea á), do nosso projecto só diz respeito à recusa de aplicação.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não me estou a referir ao n.° 5, Sr. Deputado.
O Sr. Presidente: - Embora seja interessante essa solução.
O Sr. António Vitorino (PS): - Reconheço que é matéria susceptível de discussão
O Sr. Presidente: - Compreendo a motivação da solução, mas é interessante.
O Sr. António Vitorino (PS): - O problema é o seguinte: no n.° 2 do artigo 280.° actual há duas situações: cabe recurso de decisões dos tribunais de dois tipos distintos. Das decisões que recusem a aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade e que das decisões apliquem norma com fundamento em inconstitucionalidade. No caso do n.° 5, referente às paraconstitucionais, não adoptámos um paralelismo integral. Só prevemos o recurso de decisões que recusem a aplicação. Já não prevemos recurso de decisões que apliquem.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não prevê? O Sr. António Vitorino (PS): - Não.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Está na alínea b) Sr. Deputado.
O Sr. António Viíorino (PS): - É completamente diferente. Na alínea b) é hoje...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah, não. Quer dizer uma norma similar à do actual n.° 3, alínea c), do artigo 280.°
O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. assinala é que falta uma norma similar à do n.° 3, alínea c), actual.
O Sr. António Vitorino (PS): - Falta, é o que se verá. O Sr. José Magalhães (PCP): - Na vossa lógica.
O Sr. António Vitorino (PS): - Na nossa lógica não a incluímos. A alínea b) não tem paralelismo.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Tiram o caso do recurso para o Tribunal Constitucional, sem ser obrigatório para o Ministério Público, da alínea c) do n.° 3 actual?
O Sr. António Vitorino (PS): - Não. A alínea c) do n.° 3 actual está contemplada no n.° 2, alínea a).
Vozes.
O Sr. Presidente: - Penso que as questões essenciais estão postas, ou pelo menos foi chamada a atenção para elas. Poderíamos passar para o artigo 281.° ("Fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade").
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Aqui, temos propostas do CDS, do PS, da ID e dos vários deputados do PSD da Madeira.
Quer o PS justificar sucintamente as razões da sua proposta?
Pausa.
O Sr. António Vitorino (PS): - Chega, chega, estão as contas feitas. Por enquanto nas regiões autónomas ainda permitem que a oposição tenha um décimo dos deputados.
Risos.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - É que, no fundo, a nossa proposta é um rearranjo da explanação do preceito do artigo 281.° As únicas especialidades que contém são: em primeiro lugar, a hipotética introdução das leis paraconstitucionais, cujas consequências, em meu entender, relevam, mutatis mutandis, para os casos das leis reforçadas ou das leis orgânicas, se eventualmente qualquer destes tipos de leis especiais vierem a ser aprovados; a segunda é um alargamento das entidades que podem suscitar a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade e da legalidade, mantendo o elenco das entidades que hoje o podem fazer e acrescentando à lista, no que diz respeito as assembleias regionais, os presidentes das mesmas, como entidade autónoma que são das assembleias regionais, mantendo os presidentes dos governos regionais e acrescentando um décimo dos deputados à respectiva assembleia regional. Entendemos nós que deve ser conferido aos deputados às assembleias regionais, a um décimo deles, a faculdade de suscitarem a fiscalização sucessiva da declaração de inconstitucionalidade, no caso de tal se fundar em violação dos direitos das regiões, ou o pedido de declaração de ilegalidade, se se fundar em violação do estatuto da respectiva região autónoma ou de lei geral da República.
Quanto ao n.° 3, o objectivo fundamental que temos é o de esclarecer qual é a passagem entre a declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, em três casos, para a fiscalização abstracta sucessiva, tornando claro que aquilo que em nosso entender deve suceder é que essa passagem seja feita a requerimento do Ministério Público.
O Sr. Presidente: - Vamos ver agora a...
Pausa.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] mudaria ligeiramente a redacção, para deixar ao tribunal a possibilidade de ponderar a hipótese de ainda não declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Quanto aos deputados das assembleias regionais?
O Sr. António Vitorino (PS): - Nesse aspecto, se me permite, o projecto coincide com o dos Srs. Deputados do PSD da Madeira, que no artigo 281.°, alínea c), propõem que a declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade também possa ser suscitada a requerimento de um décimo dos deputados aos parlamentos regionais.
O Sr. Presidente: - O problema é que um décimo não chega.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães quer intervir?
Pausa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação ao n.° 3, o PS apresenta a proposta como sendo uma clarificação. O conteúdo inovatório é realmente escasso.
O Sr. António Vitorino (PS): - Em termos teóricos, sim. Em termos práticos, talvez não. E basta repegar no debate sobre a Lei Uniforme das Letras, Livranças e Cheques, que travámos três artigos atrás, para compreender que, apesar de tudo, pretendemos dar aqui um sinal, em sede constitucional, do que deve ser a solução a adoptar. Não é uma obrigação vinculativa, claro está, mas...
O Sr. Presidente: - Faça favor de continuar, Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação ao n.° 2, devo dizer que nos parece positiva a iniciativa de alargar o elenco das entidades que podem requerer a declaração de inconstitucionalidade, nos casos que o preceito situa, a deputados das assembleias regionais. Dizemos isto com toda a isenção e de olhos postos na utilidade do alargamento das garantias do respeito pela Constituição e pela lei nas regiões autónomas, como forma de defesa ou de invocação de prerrogativas para situações que, como bem se calcula, podem ser de sentido bastante diverso...
Risos.
O Sr. Presidente: - Temos então os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade. Aqui há só uma alteração, do PCP.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Procurou dar-se uma solução jurídica, certa e clara para um problema que se pode verificar na prática jurisprudencial do Tribunal. Pode, efectivamente, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral vir gerar, pelos efeitos que produziu, uma pretensão jurídica, por força do renascimento de um quadro legal perimido.
O Sr. Presidente: - Elimina o n.° 4 actual?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não elimina o n.° 4 actual. É um aditamento. Está errado o nosso articulado.
O Sr. Presidente: - É um aditamento. Foi um lapso da secretária do PCP.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tive sempre o cuidado, humilde e disciplinado, de ir assegurando que as gralhas não poupavam ninguém.
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O Sr. Presidente: - Não, muito humilde.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Parece-nos realmente importante que se fixe um prazo. Tomemos, por exemplo, um caso situado no direito da função pública: se um determinado diploma inconstitucional tivesse retirado a determinada categoria de trabalhadores da função pública a possibilidade de fruição de um determinado benefício, vindo a ser o mesmo diploma declarado inconstitucional com força obrigatória geral, pense-se na situação que surgiria se um dos trabalhadores atingidos, ou todos, não tendo exercido esse direito logo que foi conhecido e publicado o acórdão do Tribunal Constitucional, o viessem a exercer vinte anos depois...
O Sr. Presidente: - Penso que a posição do PCP foi claramente posta, foi compreendida e direi mesmo que foi vista com algum interesse, pese embora o problema do prazo. Há aqui uma questão, que é esta: as decisões do Tribunal têm publicidade...
O Sr. Miguel Galvão Teles: - Há maneiras várias de fundar pretensões.
O Sr. Presidente: - É um aditamento interessante,, de ponderar.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas repare-se, trata-se da declaração de inconstitucionalidade de normas...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Tem de constituir fundamento de certo tipo. É que a declaração de inconstitucionalidade de norma é fundamento para pretensões que se constituem vinte anos depois. Tem de ser, só por si ou com factos anteriores a ela, o fundamento da pretensão.
O Sr. Presidente: - No fundo, a ideia do PCP é que, de algum modo, a factis specie já estava constituída e veio a ser alterada pela declaração de inconstitucionalidade.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Tal e qual! Mas tem de se retocar a redacção, sob pena de se criarem situações difíceis. É preciso que a situação de facto esteja constituída.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Repare-se, por exemplo, no direito a requerer um determinado benefício, no direito a requerer reintegração. E pense-se no que é requerer a reintegração vinte anos depois...
O Sr. António Vitorino (PS): - Isto tem de ter base constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão suscita-se... Não precisamos de aquecer a imaginação para verificar os problemas que podem surgir. Devemos resolvê-los em sede constitucional.
O Sr. António Vitorino (PS): - A questão que se levanta no n.° 5 do artigo 282.° da proposta do PCP é a de saber se, de facto, a resolução desta questão tem de ter forçosamente sede constitucional. Creio que, sendo atendíveis as razões que estão subjacentes à proposta do PCP, se poderia encarar a hipótese de uma norma deste género, ou seja, mais especificada, e talvez com assento na Lei do Tribunal Constitucional, com maior rigor, com uma mais clara determinação dos seus limites. Assim sendo, não haveria necessidade de uma norma aberta como esta que está aqui, que pode suscitar algumas dificuldades de aplicação. Essas dificuldades não existiriam se fosse consagrado o princípio numa norma específica da própria Lei do Tribunal Constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, esta expressão toca num problema que é importante, que penso precisava de ser ponderado com maior latitude.
A consequência da pretensão não resulta da declaração da inconstitucionalidade, mas, sim, de certos factos correlacionados com o quadro normativo que se fixa com a declaração de inconstitucionalidade. Pode haver, por exemplo, situações de prescrição ou de caducidade. Aí, temos de ver o problema ao contrário. Imaginemos o seguinte caso: uma qualquer norma recusa efeitos a determinadas situações de facto. Depois de fixada a inconstitucionalidade dessa norma, com força obrigatória geral, esses factos teriam um efeito diferente daquele que foi reconhecido na prática antes da declaração de inconstitucionalidade. No entanto, por uma outra disposição qualquer havia prazos de prescrição ou de caducidade.
Diria que isso é um tema geral bastante mais tentacular. Penso que é um ponto importante.
O Sr. Presidente: - Tenho dúvidas de que seja necessário consagrar isto na Constituição. Como há pouco disse o Sr. Deputado António Vitorino, não sei se é necessário fazê-lo, sobretudo porque as implicações não são todas elas já visíveis. Para além deste aspecto, há um outro: suponhamos que há uma série de situações jurídicas encadeadas umas nas outras, que se constituem em tempos e momentos diferentes, mas em que, de qualquer modo, algumas só podem subsistir se outras se mantiverem. Isso pode conduzir a situações muito complicadas. A pretensão só poderia ser formulada na altura em que se constitui. Apesar disso, neste exacto momento ela já se constitui de uma forma diferente porque a lei foi declarada inconstitucional.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, admito que se possa deixar uma cobertura para essas soluções na lei do Tribunal Constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, vou debater com os meus camaradas o conjunto de reflexões que foram aqui suscitadas, com vista a encontrar um recorte mais exacto que legitime melhor a possibilidade de consagração constitucional. A objecção que aqui se levanta é quanto à imprecisão de recorte e quanto à necessidade de fixação.
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O Sr. Presidente pronunciou-se por uma "norma de cautela". Pode, na verdade, não ser possível num determinado momento projectar todas as consequências possíveis, designadamente algumas que decorram da concatenação com outros factores. Essa objecção conduz a uma outra forma de prudência: à prudência remissiva para lei ordinária. Em todo o caso, se for, tenho alguma dúvida que possa ser ultrapassada a questão em termos de se concluir que é dispensável uma cláusula constitucional de cobertura e que a modelação deste efeito da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pode caber ao legislador ordinário.
O Sr. Presidente: - Isso não resolve o problema porque depois o legislador ordinário vai ter exactamente a mesma dificuldade, mas é mais simples de retocar e, portanto, de alterar um esquema que, eventualmente, se tenha revelado menos prudente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não era essa a questão que colocava, Sr. Presidente. A questão que colocava era a de saber se a dispensabilidade de uma cláusula constitucional sobre esta matéria é susceptível de se considerar fechada,. líquida, acima de qualquer dúvida. É esta a única questão que suscito! É que, caso contrário, passada a revisão constitucional, o Sr. Presidente encontrar-se-á na lei ordinária perante o problema sério de saber se há abertura para tanto face ao quadro constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador). [...] e requeria soluções. Eu, por exemplo, ponho a hipótese de...
O Sr. Presidente: - O que o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles está a colocar não são soluções. São apenas indicações no nível constitucional!
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Seja uma solução a nível constitucional seja uma solução a nível da legislação ordinária, penso que o problema é que a questão não está suficientemente amadurecida. Aliás, vejo isto em duas perspectivas. Uma é a que está no n.° 4 como uma forma de caducidade de pretensão que decorra da declaração de inconstitucionalidade - aliás, nunca decorre da declaração de inconstitucionalidade mas de factos em correlação com o quadro normativo que tal declaração de inconstitucionalidade fixa.
No entanto, há outras situações mais complexas que talvez mereçam ponderação. Por exemplo, há um conjunto de actos administrativos praticados ao abrigo de uma certa disposição legal de que os particulares não interpõem recurso porque entendem que a disposição legal cobre os actos administrativos. Caso decidido! Neste caso pode-se reabrir ou não o processo?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, isso está ligado ao problema da concatenação, que há pouco referi.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Por exemplo, depois da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pode-se interpor recurso de actos administrativos praticados ao abrigo da norma declarada inconstitucional, recurso esse que não se tinha interposto na altura própria?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, há quem defenda, por exemplo, que isso depende da natureza do vício que se verifica no acto.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Pode ser, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Mas não é líquido, Sr. Deputado. Para mim não é claro que tenha de ser necessariamente assim.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não é fácil recortar todas as hipóteses, Sr. Presidente. Não tenho a certeza de que a questão esteja suficientemente amadurecida para esse efeito.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que poderíamos passar à matéria relativa à inconstitucionalidade por omissão.
O PSD e a ID apresentam propostas relativas a esta matéria, mas não estão presentes para justificar a sua proposta. Essas propostas têm mais a ver com o problema da legitimidade para requerer do que com outra qualquer matéria correlacionada com este instituto.
Há também um artigo aditado pelo PCP - artigo 283.°-A - que tem por epígrafe "Inconstitucionalidade dos actos políticos".
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A matéria já foi objecto de discussão na Comissão, Sr. Presidente. Foi a propósito de uma proposta do CDS sobre a mesma matéria, embora a nossa proposta seja mais ousada que a do CDS que já abrange a violação de regras de forma e competência.
O debate que fizemos nesse sede foi relativamente inconcludente...
O Sr. Presidente: - Não me admiro, Sr. Deputado. Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O CDS também propõe a mesma coisa, Sr. Deputado.
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sou um defensor estrito da constitucionalidade. Tenho muito medo de entrar, sem amadurecimento, numa consagração textual da possibilidade de controle da constitucionalidade. Penso que as coisas não estão suficientemente amadurecidas!...
Vozes.
O Sr. Presidente: - Não sei se isso ainda é acto político, Sr. Deputado.
Vozes.
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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É o caso de um decreto de dissolução da Assembleia da República assinado pelo Primeiro-Ministro.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Esse problema não é um problema específico do controle do acto político. É uma questão que está estritamente vinculada e que tem a ver com a possibilidade de imputação do acto, o que é uma coisa diferente.
O Sr. António Vitorino (PS): - E o problema da declaração, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Nessa sede compreendo que os problemas da imputação e da relevância jurídica existam quanto aos actos políticos, porque o jornalista ou o advogado não pode decidir no seu escritório dissolver a Assembleia da República.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Aqui a questão não é quanto aos pressupostos do acto político, portanto quanto à sua imputabilidade, à sua relevância.
Agora, quanto ao problema do conteúdo do acto...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não é só o conteúdo do acto, Sr. Presidente. Há casos de inconstitucionalidade de actos políticos, isto é, há actos políticos que estão regulados pela Constituição e que podem ser inconstitucionais e há casos manifestos de inexistência.
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sim, sem mecanismos específicos de declaração. Tenho dúvida é de que o sistema político suporte um controle pelo Tribunal Constitucional, nem creio que o próprio Tribunal Constitucional aguente isso. Não acredito que a doutrina jurídica da inconstitucionalidade dos actos políticos em Portugal esteja suficientemente amadurecida para nos arriscarmos a entrar por um caminho destes. Recordo, por exemplo, o seguinte caso: quando ocorreram as eleições presidenciais de 1986 houve dúvidas sérias quanto à data da marcação das eleições. A questão que estava em causa era a de saber se se poderia retirar analogicamente do preceito constitucional respeitante à eleição do Presidente da República, no caso de morte, uma solução qualquer de limitação do poder presidencial. Como é evidente, na eleição presidencial tem de haver uma qualquer limitação, porque a eleição do Presidente da República é diferida no caso de haver eleições para a Assembleia da República. Era o Tribunal Constitucional que iria julgar se era válida ou nula a marcação das eleições?
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Há casos em que isso se justifica!
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, uma solução desse tipo permite perpetrar um atentado contra o regime democrático, em condições em que a única defesa possível é a resistência através das formas constitucionais e através da mobilização dos órgãos de soberania atingidos, o que cria uma situação de necessidade constitucional absolutamente extrema.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Vamos imaginar que o Primeiro-Ministro se lembrava de dissolver a Assembleia da República.
Vozes.
O Sr. Presidente: - A questão importante é que, quando se fala na inconstitucionalidade de actos políticos, está-se a ir mais longe do que a consideração dos simples pressupostos de imputabilidade ou de relevância do acto.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, penso que há uma diferença enorme entre as propostas do PCP e do CDS. A proposta do CDS, ao falar apenas em violação de regras referentes à competência e à forma, restringe significativamente o âmbito do julgamento do Tribunal Constitucional.
O Sr. Presidente: - Temos de distinguir os actos políticos que foram considerados na doutrina administrativa e os actos políticos que aqui estão pressupostos. Nunca se discutiu na doutrina administrativa que essas questões relativas à competência, à norma, etc.., não pudessem ser sindicadas. O que se discutiu foi o conteúdo do acto. Aquilo que era livre do controle jurisdicional dizia respeito ao conteúdo do acto, aos efeitos jurídicos ou políticos que o acto pretendia, às repercussões que o acto tinha, etc.. Nunca se discutiu a questão da imputação, as regras que permitem imputar o acto, as regras que permitem considerar, no caso de uma entidade colegial, a formação do acto. Por exemplo, se a Assembleia da República pratica actos políticos e não está validamente reunida, parece que essa circunstância não permite considerar que estejamos perante um acto da Assembleia da República.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas como é que é declarada, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Isso é um segundo momento, Sr. Deputado.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Trata-se de uma matéria extremamente interessante, que deve, naturalmente, ser analisada com o cuidado e a atenção devidos, mas que não se me afigura que do ponto de vista doutrinal esteja suficientemente amadurecida para podermos fazer uma consignação constitucional com a amplitude que o PCP pretende.
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O Sr. António Vitorino (PS): - Pela minha parte, gostaria só de dizer o seguinte: parece-me que a questão levantada é uma questão importante, porque integra, no fundo, uma vertente do que já o artigo 3.° da Constituição prevê em sede de princípios fundamentais, e que não encontra correspondência em nenhum instrumento de efectivação jurídico-constitucional. Portanto, revela que há pelo menos uma vertente do artigo 3.° que se traduz num voto pio, na medida em que não tem tradução prática.
Penso que uma solução que contemplasse aqueles casos, e só aqueles, para os quais a própria Constituição comina uma sanção podia ser uma primeira aproximação ao problema. Isto é, prever a possibilidade de o Tribunal Constitucional aplicar uma sanção para aqueles actos políticos que a Constituição prevê taxativamente e para cuja irregularidade, ela própria, comina uma sanção, como é o caso, por exemplo, dos actos políticos que não sejam publicados, ou o caso do decreto de dissolução da Assembleia da República que não respeite os ditames constitucionais. Aí a Constituição identifica claramente o acto político e explica qual é a sanção susceptível de ser aplicada. Portanto, para completar o sistema só falta prever quem declare ou aplique a sanção e a Constituição, assim, não deixaria nada em aberto ao legislador ordinário. Pelo que admitiria, por muito tímida que fosse esta solução, mas trata-se de uma posição que assumo a título estritamente pessoal, sublinho, posição que não vincula em nada o PS.
Já agora, acrescentava também o seguinte: é óbvio que a temática é interessante e que há experiências noutros países que poderiam ser invocadas a este propósito. Na República Federal da Alemanha (RFA), o Tribunal Constitucional Federal Alemão já se tem preocupado sobre uma temática, a que talvez os Srs. Deputados chamem obsessiva, que é a dos fundamentos políticos da moção de censura construtiva, é a de saber se, de facto, na fundamentação política de uma moção de censura estão presentes as razões que a Constituição Federal prevê sejam fundamento de votação de censura ao Governo.
Dou dois exemplos: a Constituição da República Portuguesa (CRP), no artigo 197.°, diz que o Governo pode ser censurado, por razões que tenham a ver com a execução do seu programa ou com um assunto relevante de interesse nacional. Há um partido que toma conhecimento de que o Primeiro-Ministro, sem ouvir o Conselho de Ministros, indigitou a esposa para o lugar de comissário português na CEE. Bom, esse partido pode considerar que uma tal prática é tão intolerável para o Estado de direito democrático, que justifica a formulação da censura ao Governo. E apresentar uma moção de censura dizendo que o Primeiro-Ministro é inidóneo, porque favorece familiares ao mais alto nível e ao nível mais escandaloso. Esta é matéria que não tem nada a ver com a execução do Programa do Governo, é matéria que nem sequer se pode considerar assunto relevante de interesse nacional, contudo a moção de censura foi apresentada no Parlamento e não existe nenhum instrumento de fiscalização do seu fundamento.
Tomemos o seguinte outro caso: suponhamos que o sistema político português consagrava o mecanismo das moções de reprovação a membros do Governo individualizados, distintas das moções de censura ao Governo
no seu conjunto. É um sistema que existe, por exemplo, na RFA e que, embora não tenha assento constitucional, existe também em Espanha. Aparentemente, não é possível censurar o Governo politicamente no seu conjunto, quando o objectivo da entidade censurante, do partido censurante é apenas a reprovação da conduta concreta de um determinado membro do Governo. Se eventualmente houvesse uma moção de censura dirigida contra o Governo no seu conjunto, por exemplo na RFA, apenas centrada na conduta em concreto do Ministro da Saúde, é possível que o Tribunal Federal Alemão não deixasse de prescrutar os fundamentos últimos da moção de censura apresentada e que concluísse que nesse caso o instrumento de fiscalização política "moção de censura" era inidóneo, porque o instrumento político que devia ter sido utilizado era o da moção de reprovação individual de um membro do Governo. Isto só para dar a ideia de que estamos perante um "campo" imenso, que pode levar o Tribunal Constitucional (TC) a acentuar não aquela vertente jurídico-política coberta por um manto diáfano, mas a vertente "político-política", que é a de sondar os fundamentos exclusivamente políticos de um acto político. Desta situação não se sai facilmente, a não ser através de muita prudência, muita cautela e de uma eventual fórmula, digamos assim, experimental, que é a de restringir este tipo de fiscalização àqueles casos onde a própria Constituição qualifica um acto como acto político e prevê, ela própria, a sanção aplicável. Aí o Tribunal teria uma mera função declarativa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pode também incluir as hipóteses do artigo 275.° - "Dissolução indébita da AR"...
O Sr. António Vitorino (PS): - E aí a Constituição prevê claramente qual é a sanção (...)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Aí há uma tipificação, uma especificação da sanção, o problema é saber quem a aplica...
O Sr. António Vitorino (PS): - Afactis specie está definida na Constituição, o ilícito é claro, e a sanção está cominada. Só falta uma instância declaratória.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... os projectos do PCP e do CDS tocam num ponto muito sensível. Pessoalmente não tenho ideias concretas sobre esta matéria - e não creio que haja, em geral, ideias amadurecidas. Tenho, portanto, algum receio de caminhar no desconhecido. Em todo o caso, queria exprimir duas ou três ideias.
Em primeiro lugar, é evidente que há duas situações de natureza diferente. Uma situação - e não estou a falar sob o ponto de vista jurídico, mas das consequências práticas - é aquela em que há intenção de fazer o golpe de Estado, digamos, através do acto político. Aí dificilmente o Tribunal Constitucional representará resistência que valha. Há hipóteses em que não há nenhuma intenção e em que há apenas imprevidência, diferença de interpretação. No fundo a fiscalização acabaria por ser mais útil nas segundas hipóteses; nas primeiras não porque não devesse sê-lo, mas provavelmente o Tribunal não decidiria.
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Um segundo ponto é este: o Tribunal Constitucional, particularmente com a composição que tem, está hoje sujeito a uma pressão enorme da opinião pública, que tem sido, de resto, fomentada pelo Governo. E duvido que o acumular de competências do Tribunal Constitucional favoreça o normal curso da vida desse órgão. Esta é, pois, uma matéria sobre a qual gostaria de reflectir melhor, para assim obter uma fórmula que me permitisse analisar um certo tipo de casos. Cheguei a pensar na hipótese, como uma primeira experiência, de se permitir ao Tribunal Constitucional que desse pareceres a pedido dos órgãos políticos. Não faria propriamente uma fiscalização, mas, quando houvesse uma situação de dúvida ou controvérsia, poderia o próprio órgão com competência para praticar o acto ou outro pedir parecer ao Tribunal. É evidente que aí passaria a haver uma enorme pressão quanto ao sentido desse parecer, mas, de todo o modo, tal parecer teria de ser prévio. É uma hipótese a considerar.
Como disse, tenho dúvidas nesta matéria. Reservo, pois, a minha posição para outra altura.
O Sr. Presidente: - Só quero, em relação ao que disse há pouco, acrescentar o seguinte: pessoalmente, e sem que isso signifique qualquer vinculação partidária, justamente porque as matérias carecem de uma reflexão a ser feita, inclinar-me-ia para achar que a senda possível deveria começar por algo de muito parecido com aquilo que o CDS propôs. Porque são coisas claras, relativamente, pelo menos em matéria de competência e talvez também em matéria de forma, e de igual modo quando a Constituição previsse já as consequências em termos de sanção da ilegalidade...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do Orador.)
O Sr. Presidente: - Isso também não suscitaria particulares dúvidas, mas sou muito sensível à ideia, que foi há pouco expressa pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, de que se nós cumularmos competências no Tribunal Constitucional podemos contribuir não tanto para prestigiar o Tribunal Constitucional mas para acastelar nuvens sobre o Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional é uma instituição nova na vida política, que age numa área de confluência entre aspectos jurídicos e aspectos políticos, carece ainda de mais anos de prática para se firmar de uma maneira relativamente indiscutível, e não penso que seja a melhor maneira de servir a ideia da fiscalização da constitucionalidade das normas acrescentar-lhe a fiscalização dos actos políticos, com toda a carga emocional e política que naturalmente tem.
Daí que eu propendesse nesta matéria a dizer que valeria a pena reflectir, pensar, eventualmente, se fosse caso disso, ir para um primeiro passo extremamente modesto, em vez de se caminhar já de rompante como o f az a norma proposta pelo PCP, mas, evidentemente, esta é toda uma matéria que carece de uma análise mais cuidada...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Permitam-me que dê o exemplo de um caso melindroso, que poderia eventualmente ser levado a juízo e que seria terrível. Há pouco o Sr. Deputado António Vitorino falou sobre o problema dos fundamentos da moção de censura na RFA. Isso permite suscitar o seguinte caso: se houvesse uma abertura completa para o controle da inconstitucionalidade dos actos políticos, poderíamos amanhã mudar a redacção do artigo 198.°, n.° 2, para: "O Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, a pedido de VV. Exas. Gostaria de ver o Tribunal Constitucional a julgar se há ou não há perigo para o regular funcionamento das instituições democráticas e a declarar nulo ou a anular um acto de demissão do Governo pelo Presidente da República!...
O Sr. Presidente: - Com grande probabilidade, não é verdade? ...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não há sistema que aguente isto!
O Sr. Presidente: - Na próxima revisão constitucional acabar-se-ia com várias coisas.
Vozes.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Eu diria que se fosse possível uma forma extremamente prudente, extremamente cuidadosa, sem perigos, com certeza que gostaria de a ponderar; se não for possível tenho um certo receio.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de sublinhar este aspecto: é evidente que a proposta apresentada pelo PCP era mais do que um convite à reflexão, ainda que, evidentemente, o primeiro passo para uma decisão política em sede de revisão constitucional houvesse de ser uma reflexão.
Creio que esta foi bastante interessante, porque dela se "desgarra", desde logo, um reconhecimento generalizado de que há alguma incoerência e incompletude constitucional, como foi assinalado pelo Sr. Deputado António Vitorino. A proclamação constitucional constante do artigo 3.° é acompanhada da inexistência dos correspondentes mecanismos que permitam a garantia da Constituição aí onde ela seja colocada em crise.
A expressa aceitação de que podem existir, gerar-se e desenvolver-se situações de colocação da Constituição em crise, em aspectos, de resto, fulcrais, sem que haja um meio tendente à reposição da constitucionalidade dos processos, por recurso a uma instância independente, situada fora dos registos e dos níveis em que outros órgãos de poder e outros agentes políticos se podem mover, é, evidentemente, um défice democrático. E é não só um défice em termos de sistema como, provavelmente, um perigo, porque é melindrosa qualquer das hipóteses que foram aqui equacionadas. Sucede, porém, que muitas mais há, basta examinar as competências dos órgãos de soberania, verificar o catálogo dos actos políticos possíveis, verificar o catálogo dos vícios possíveis, e logo se desgarrará que há hipóteses mais perigosas do que aquelas que foram aqui
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enumeradas, designadamente todas as hipóteses em que o acto político bula directamente com direitos fundamentais e possa traduzir-se não na prática de um acto normativo, porque aí haveria, evidentemente, os controles decorrentes disso, mas de actos sem esse carácter.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Basta pensar num acto como o estado de sítio. Embora o processo de declaração seja complexo, embora haja intervenção de uma pluralidade de órgãos de soberania, embora haja regras de carácter formal e material a obedecer e haja até uma particular cautela constitucional (que ainda pode ser reforçada nesta revisão, assim esperamos), embora haja isso tudo, se alguém, num determinado cenário, proclamasse o estado de sítio em circunstâncias e num quadro em que suspendesse o exercício de determinados direitos ou mesmo (caso absurdo!) admitisse a pena de morte no teatro da rebelião, por exemplo,...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... quid júris? É evidente que aí a acumulação de meios, e designadamente a constitucionalização da acção constitucional de defesa, poderia, evidentemente, ser, na óptica subjectiva, na óptica individual, na óptica dos cidadãos, um bom meio de protecção. Mas devo dizer que é um meio atomístico. É preciso algo com poder genérico e total.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Verificavam-se ou não os pressupostos da declaração do estado de sítio?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pressupus que não!
Qualquer que seja a solução a adoptar - e o convite para aprofundar a reflexão suponho que está generalizadamente aceite (pela nossa parte seguramente o está) -, desgarra-se deste debate a ideia de que é excessivo o silêncio constitucional nesta matéria e que, por mais prudente que venha a ser uma solução a ensejar, por mais medida que ela seja no sentido de não introduzir sobrecargas numa zona nevrálgica em que a sobrecarga provoca descarga e acarreta impotentização do órgão fiscalizador e provoca outros desequilíbrios até no concerto dos órgãos de poder existentes num determinado momento, independentemente da figuração e da titularidade concretas dos actuais órgãos de poder, independentemente de todas as justas prudências e cautelas, reconhecer incompletude e não dar um sinal na construção dos elementos institucionais necessários para responder a situações de crise significa reconhecer que a República está desarmada para enfrentar essas situações e, portanto, sujeita ao puro jogo das correlações de forças. Isso quereria dizer que a Constituição, desse ponto de vista, continuaria desarmada, o que é, a todos os títulos, inaceitável.
Gostaria de sublinhar que este debate será importante, sobretudo se não for um requerem pela Constituição, e se for, pelo contrário, um sinal de abertura medida para a criação de elementos instrumentais que permitam defender a Constituição aí onde ela seja, ou esteja em risco de ser, violada.
O Sr. Presidente: - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] com o problema da fiscalização dos actos políticos. E são boas Constituições, e funcionam há muitos...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Muitas nem sonham com a fiscalização da constitucionalidade! Os exemplos são muito diversificados...
O Sr. Presidente: - Mas eu não estava a pensar no caso da Constituição soviética, estava a pensar no caso da Constituição americana.
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como sabe, a matéria é discutidíssima, é uma matéria relevantíssima. E há sobre essa matéria, nos países do campo socialista um interessantíssimo debate em curso...
O Sr. António Vitorino (PS): - Um dos aspectos mais relevantes da recente conferência de organização do PCUS foi precisamente a discussão sobre a introdução de um mecanismo jurisdicionalizado de fiscalização da constitucionalidade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, como sabe, a matéria foi discutida, designadamente no quadro da XIX Conferência do Partido Comunista da União Soviética, e apaixona juristas soviéticos por razões absolutamente compreensíveis. Sucede, no entanto, que a experiência em países do sistema socialista é diversificada e, de resto, o mecanismo existe em certos desses países...
O Sr. Presidente: - É verdade. É diversificada non troppo, mas é diversificada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... e essa experiência é extremamente interessante. Nesta matéria, no entanto, tudo veio de uma observação do Sr. Presidente quanto ao facto de não sermos caso virgem. Há virgindades que não são recomendáveis, outras serão virtuosas.
O Sr. Presidente: - Percebo o sentido da sua argumentação, mas não gostaria que daí resultasse que todas as Constituições onde esta matéria não está considerada estão desarmadas, inermes e em risco de sobrevir uma ditadura.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu não disse isso, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Eu sei. Mas poderia interpretar-se. Portanto, eu compreendo e já prestei o meu preito de homenagem ao interesse da questão suscitada por parte do PCP e pelo CDS. Vamos passar adiante.
Vozes.
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O Sr. António Vitorino (PS): - É que houve uma alteração. Nós propusemos uma alteração de ordem sistemática: transferir todas as normas do Tribunal Constitucional, salvo erro, para o artigo 204.°-A, B, C, D e E.
O Sr. Presidente: - E nessa altura foi visto.
O Sr. António Vitorino (PS): - Nessa sede, de facto, debatemos esta matéria.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Embora reconheça as limitações - e a nossa solução é uma, mas, do mesmo tipo, poderiam ser várias -, gostaria de referir dois aspectos.
Em primeiro lugar, o preâmbulo do nosso projecto de revisão parecia ser premonitório - não esperávamos que o fosse tão cedo, mas foi premonitório.
Em segundo lugar, reconheço que, na conjuntura presente, a remodelação da composição do Tribunal Constitucional seria muito melindrosa, sobretudo porque poderia parecer uma cedência a pressões injustificadas e inaceitáveis.
O Sr. Presidente: - Muito bem. Portanto, já percorremos os artigos 284.°, 285.°, 285.°-A, e entramos, então, no artigo 286.° Nós iríamos hoje, se estivessem de acordo, até - que é simples - ao artigo 290.° e parávamos aí.
O Sr. António Vitorino (PS): - Inclusive?
O Sr. Presidente: - Não, exclusive! Parávamos aí, e isso ficava para amanhã.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O texto apresentado pelo PCP quanto ao artigo 285.° visa...
O Sr. Presidente: - Mas esse artigo não foi visto já?! Já foi, de maneira que não vamos ver isso outra vez.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - Nós gostamos sempre muito de o ouvir, mesmo quando se repete (o que é raro), mas talvez trirrepetir seja de mais.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Por acaso, não foi visto.
O Sr. Presidente: - Agora, quanto ao artigo 286.° ("Competência e tempo da revisão"), não há propostas de alteração...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, Sr. Deputado Carlos Encarnação, não tem razão, porque...
O Sr. António Vitorino (PS): - Acho que este artigo, por acaso, não foi visto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... lembro-me rigorosamente que não foi visto. Tenha paciência, vamos voltar...
O Sr. António Vitorino (PS): - É que tem um problema interessante, que vale a pena registar.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - É o artigo 285.°-A?
O Sr. António Vitorino (PS): - Não. É o n.° 2 do artigo 285.°, que, de facto, ainda não foi visto, e tem um problema importante, que convinha ficar registado.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. António Vitorino (PS): - Não.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não. As duas coisas têm de existir. A questão coloca-se realmente.
O Sr. Presidente: - Então faça favor, Sr. Deputado. E depois temos de voltar a riscar a acta outra vez, nesta coisa "foi visto", "não foi visto".
Fará então o favor de fazer a sua declaração de exposição de motivos em relação aos artigos 285.° e 285.°-A.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tem-se em vista, aqui, adequar o regime que a Constituição instituiu, em 1982, para o funcionamento do Tribunal Constitucional por secções àquilo que veio a ser a experiência de funcionamento do Tribunal, designadamente quanto a áreas que lhe foram legalmente atribuídas. Por outro lado, previu-se (como não podia deixar de ser) a hipótese de se consagrar constitucionalmente o recurso constitucional de defesa, que o PCP propõe no artigo 20.°-A.
É realmente importante que se salvaguarde o efeito que vem previsto nos dois segmentos finais da norma do n.° 1. A norma do n.° 2 tem em conta uma situação que já hoje ocorre: que solução adoptar quando o Tribunal Constitucional funcione como tribunal de instância e haja que garantir um duplo grau de apreciação? A solução que aqui se adopta é óbvia, mas indispensável para dar cobertura constitucional a soluções legais ulteriores e ultrapassar com segurança um quadro que, neste momento, em alguns pontos pode suscitar problemas de cobertura (para utilizar uma linguagem cuidadosa).
O Sr. Presidente: - Muito bem!
O Sr. António Vitorino (PS): - Queria apenas manifestar a nossa simpatia para com o n.° 2 da proposta do PCP, que merece ponderação, em nosso entender.
O Sr. Presidente: - A única dúvida que tenho, e que está em consonância, de resto, com a nossa proposta de eliminação do artigo, é saber se esta é uma matéria que careça efectivamente de ser tratada a nível constitucional. Mas não estou em desacordo com a solução concreta preconizada pelo PCP no que diz respeito à sua consagração na Lei do Tribunal Constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Rui Machete, quanto à questão da necessidade, ou não, de uma solução constitucional, repare: se o PSD propõe
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a eliminação da norma actualmente existente, abre caminho à criação de secções especializadas, por exemplo. Comete ao legislador ordinário poderes tais que passaria a poder criar secções especializadas - e eu creio que isso seria extremamente nefasto.
O Sr. Deputado Rui Machete dir-me-á que isso está a galáxias do espírito do PSD, que nada o move nesse sentido. Em todo o caso, uma das cautelas que se quis tomar quando se instituiu o Tribunal Constitucional foi que, nos casos de funcionamento por secções, elas a título nenhum pudessem ser especializadas. Já basta a discrepância da sua diversidade de composição e da necessidade de projectar nelas os melindrosos equilíbrios (e desequilíbrios) decorrentes de cortes e recortes oriundos de critérios que não mergulham propriamente no universo jurídico! Já basta isso, que é suficientemente complexo! Se aditamos a esse quadro mais um elemento perturbador, traduzido na possibilidade de as secções serem especializadas e de a composição das secções vir a ser, de alguma forma, recortada pelo legislador ordinário, segundo critérios que possam assentar em decantações, mais ou menos subtis de objectivos de natureza muito diversa (e, porventura, muito contraditória), que, de alguma forma, tenham uma função de filtro dos critérios que a própria Constituição estabelece para a composição do Tribunal - então a situação que se pode gerar será susceptível de desenvolvimentos que eu não sou capaz de imaginar aqui (como o Sr. Presidente, há pouco, não era capaz de imaginar ali, a propósito de outra solução em matéria de constitucionalidade). Isso me basta para lançar este alerta.
Eis uma primeira linha de considerações para responder ao argumento da "desnecessidade" que, quanto a mim, não tem base de apoio bastante. Pode usar-se, talvez, o argumento do "luxo": a constituição tem uma opção neste momento clara quanto a um ponto crucial, é sumptuário aditar o que quer que seja. Aí objectamos nós que a própria experiência do funcionamento do Tribunal Constitucional revelou a necessidade - e o Tribunal a isso chegou, com alguns melindrosos problemas - de estabelecer as regras para os casos em que o Tribunal tenha de funcionar como tribunal de instância. Porque das duas uma: ou há uma solução como a nossa, ou o Tribunal funciona como tribunal de instância primeira, última e única! Imagine-se o que é que isso significa quando um recurso vá parar a uma secção - é absurdo não haver um julgamento em pleno. Tem de haver uma solução e essa solução dificilmente vejo que possa deixar de estar na Constituição!
Os Srs. Deputados farão a reflexão que entendam adequada e necessária, até para medir melhor a repartição de funções normativas entre a lei ordinária e a Constituição. Em todo o caso, a questão, tal qual se suscita nesta matéria, seria, quanto a nós, adequadamente resolvida de forma extremamente clara nos termos propostos pelo PCP.
O Sr. Presidente: - Está efectivamente longe das nossas intenções, como proposta, qualquer aspecto que vise a inutilização da liberdade do legislador ordinário. Em todo o caso, a observação feita quanto ao problema da proibição da especialização das secções como garantia, concedo que tem alguma relevância e, portanto, admito que, por aí, se possa encontrar uma justificação para a norma, que de outra maneira era um pouco despicienda.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A norma actual tem dois sentidos, ambos, a meu ver, importantes: primeiro, que as secções não podem ser especializadas; segundo, que a fiscalização abstracta é sempre em plenário - a contrario sensu. Estes dois pontos são importantes e devem ficar na Constituição.
Quanto à necessidade de precaver o recurso, creio que o recurso é útil, é necessário. Para além deste aqui previsto - não sei exactamente o que é que o PCP quer dizer quando fala...
O Sr. Presidente: - O a contrario podia ter outra interpretação. Mas enfim...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Parece que é o que daí resulta. Pode prever...
O Sr. Presidente: - É o mais razoável.
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Para estes casos é o mais razoável.
O Sr. Presidente: - Mas a função de garantia é rigorosa...
O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sim, mas também é, de algum modo, quanto à aferição abstracta.
Em relação ao recurso, penso que o recurso é indispensável, não só se se previr uma acção directa de inconstitucionalidade (aliás, não sei exactamente qual é o alcance da qualificação que o PCP faz no n.° 2 ao dizer "[...] quando o Tribunal Constitucional funciona como tribunal de instância", se quer referir-se à fiscalização concreta, se quer referir-se à acção directa de inconstitucionalidade)... Diria que o recurso é indispensável em alguns casos, mas isso, em rigor, não tem de ficar na Constituição - pode ficar, mas não é indispensável.
O Sr. Presidente: - Com o que eu fiquei mais impressionado não foi com a proposta do PCP, que realmente não me parece indispensável ficar, foi com a observação quanto à proposta de supressão do artigo.
Quanto à autonomia administrativa e financeira (artigo 285.°-A), a proposta percebe-se no seu alcance e sentido.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A nossa proposta insere-se, de resto, Sr. Presidente, numa preocupação de definir mais rigorosamente o regime administrativo e financeiro dos órgãos de soberania, incluindo o da própria Assembleia da República e o do Presidente da República.
No caso do Tribunal Constitucional, cremos que haveria razões para adoptar uma norma deste tipo, que, de resto, tem em conta a experiência concreta de elaboração do orçamento do Tribunal, com correspondente definição dos limites da sua autonomia e avaliação, no terreno, da valia dos mecanismos vigentes sobre todos estes campos. A existência de uma norma deste tipo em relação ao Tribunal Constitucional apenas suscita um problema (admito que ele existe), que é o do paralelismo com outros tribunais. Todo o regime financeiro dos tribunais, em Portugal, é uma aberração, de lês a lês, é uma sobrevivência de uma antiga organização completamente perimida e incompatível com qual-
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quer funcionamento moderno das estruturas de justiça (ou de qualquer outra área). Os tribunais superiores não escapam a essa lei fatal, não escapam à lei dos "cofres", não escapam ao bizarro sistema das delegações, não escapam ao limitado sistema de fiscalização pelo Tribunal de Contas, não escapam aos burocráticos tentáculos do Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça. Em todo o caso, não tratar o todo não implica que não se trate uma parte, sobretudo quando é uma parte relevante e especialmente carente.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Portanto, agora passávamos à revisão constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, proponho que não deixemos de aprofundar o nosso debate. Na revisão constitucional nunca deixamos de estar...
O Sr. Presidente: - Mas em relação ao artigo 286.° não há propostas de alteração, de maneira que, mesmo que o Sr. Deputado José Magalhães queira falar, não pode; em relação ao artigo 287.° ("Iniciativa da revisão"), há uma proposta de alteração de vários deputados do PSD da Madeira, subscritores do projecto de lei de revisão constitucional n.° 10/ V, que não se encontram presentes, mas está espelhado claramente qual é o sentido e alcance da proposta que apresentam.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Reservaríamos para um momento ulterior, Sr. Presidente, a avaliação, a discussão e as tomadas de posição sobre este preceito?
O Sr. Presidente: - Exacto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Apliquemos exactamente o mesmo critério. Estou de acordo.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, prosseguiríamos com o artigo 287.°-A, sob a epígrafe "Debate público da revisão constitucional", proposto pelo PEV; no entanto, dado não se encontrar presente nenhum representante do partido proponente, passaríamos igualmente à frente.
Relativamente ao artigo 288.°, sobre a aprovação e promulgação das alterações da Constituição, foi apresentada uma proposta de alteração pelos autores do projecto n.° 10/ V, que não estão presentes, pelo que passamos ao artigo seguinte.
O artigo 289.° não tem propostas de alteração, pelo que o Sr. Deputado José Magalhães não poderá pronunciar-se. Chegamos, assim, ao artigo 290.°, em relação ao qual o Sr. Deputado José Magalhães poderá pronunciar-se, mas só amanhã.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me que faça uma observação.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de alertar para o seguinte aspecto: no nosso excurso pelas disposições finais e transitórias, saltou-se, por lapso, o artigo 299.°, uma vez que o artigo 299.°-A, proposto pelo PS, tinha sido objecto de apreciação na sede própria (no debate sobre as regiões administrativas). No entanto, quanto ao artigo 299.°, relativo às regras especiais sobre partidos, foi feita uma observação pelo Sr. Deputado Costa Andrade, de resto por lapso, quanto à "eliminação total" do preceito. Como ficou já justificado, não é assim: o PSD propõe a estabilização desta norma, com a sua reinserção como n.° 4 do artigo 51.°
Em todo o caso, não se aludiu ao n.° 1 do artigo 299.°, cuja eliminação o PSD também deseja (e aí, tanto quanto me apercebi, sem que operação semelhante possa invocar-se para explicar, para fundamentar a démarche operada). É que, embora nunca a lei tenha regulado a matéria (isso é facto), suprimir a norma é também facto que pode dar origem a muito indesejáveis factos.
O Sr. António Vitorino (PS): - É facto! Vozes.
O Sr. Presidente: - Em todo o caso, a observação fica feita e remetida para consideração oportuna amanhã.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, apenas não gostaria que ficasse qualquer mistério quanto à natureza desta proposta ou, menos ainda, que ela não fosse objecto de análise.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, discutiremos essa matéria amanhã, se para tal houver tempo após a discussão do artigo 290.°
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Era 1 hora e 5 minutos do dia seguinte.
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Reunião do dia 28 de Julho de 1988
Relação das presenças dos Srs. Deputados
Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira e Silva (PSD).
Luís Filipe Meneses Lopes (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves (PSD).
Miguel Bento de Macedo e Silva (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Mendes (PCP).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Miguel Galvão Teles (PRD).
Narana Sinai Coissoró (CDS).