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Quinta-feira, 20 de Outubro de 1988 II série - Número 47-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1988-1989)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 45

Reunião do dia 14 de Julho de 1988

SUMÁRIO

Procedeu-se à discussão dos artigos 201.° a 203.° e 205.° a 209.° e respectivas propostas de alteração; da proposta de artigo novo - artigo 226.°-A - apresentada pelo PRD; do artigo 210.° e respectivas propostas de alteração; dos artigos 190.° e 197.° e respectivas propostas de alteração, do artigo 211.° e respectivas propostas de alteração; da proposta de artigo novo - 211.°-A-, da autoria do PCP; dos artigos 212.° e 218.° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Costa Andrade (PSD), José Magalhães (PCP), Carlos Encarnação (PSD), Maria da Assunção Esteves (PSD), Pais de Sousa (PSD), António Vitorino (PS), Jorge Lacão (PS), Miguel Cal vão Teles (PRD), Vera Jardim (PS), Almeida Santos (PS) e José Luís Ramos (PSD).

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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 11 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados, vamos iniciar os nossos trabalhos no artigo 201.°, respeitante à competência legislativa do Governo, preceito em relação ao qual há, no n.° 2, uma proposta do CDS no sentido de ser da exclusiva competência legislativa do Governo não só, como actualmente, a matéria respeitante à sua própria organização e funcionamento, mas também a organização dos serviços do Estado e respectivos quadros de pessoal.

No projecto n.° 10/V propõe-se que, na alínea c), se acrescente "sem prejuízo do estabelecido no artigo 115.°, n.° 4", preceito este que, no mesmo projecto, prevê que "as leis regionais podem desenvolver as leis de bases que não reservem para o Governo o respectivo poder de desenvolvimento". Isto significa que esta proposta não tem autonomia relativamente à proposta apresentada para o artigo 115.°, n.° 4.

Assim sendo, penso que nos deveríamos limitar a emitir uma opinião relativamente à proposta apresentada pelo CDS. Em meu entender, não devemos inserir aqui esta afirmação em termos de exclusividade, na medida em que ainda ontem passámos pela autonomia administrativa da Assembleia da República e do Presidente da República. Há portanto todo um conjunto de organismos administrativamente autónomos, e não creio que se possa falar aqui em exclusivo. Esta regra, tal como está hoje formulada, é uma regra sábia que deveria manter-se.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, quero dizer que, em nosso entender, esta alteração não se justifica, podendo inclusivamente ser inconveniente, na medida em que é susceptível de vedar alguma plasticidade noutros casos, como o da Assembleia da República e o da Presidência da República.

Quero também, em nome do PSD, fazer uma interpelação à Mesa no sentido de considerarmos, continuando a praxe, que as propostas cujos proponentes não se encontram presentes não devem ser discutidas. O CDS deve também fazer a revisão constitucional aqui e não apenas nos jornais.

O Sr. Presidente: - Estou de acordo com o Sr. Deputado Costa Andrade! Quando não se encontrarem presentes os proponentes de uma proposta, na altura própria nos pronunciaremos sobre elas.

Assim, Srs. Deputados, vamos passar ao artigo 202.°, que se refere à competência administrativa do Governo, relativamente ao qual o CDS apresentou uma proposta no sentido de, na alínea d), em vez de "superintender na administração indirecta" se consagrar "orientar a administração indirecta".

O PS, por seu lado, apresenta uma proposta que, no fundo, adequa a alínea a) com o que propôs relativamente ao Plano. Em vez de se raciocinar em termos de "o Plano", pensamos que devem encarar-se vários planos, e em vez de "lei do Plano", as leis de bases ou leis das respectivas grandes opções. Esta proposta não tem, pois, autonomia, dependendo do que for votado na altura própria.

O PSD transfere para a alínea a) a actual alínea c), na alínea c) refere igualmente os planos e as correspondente grandes opções e na alínea f) propõe a alteração da actual formulação - "defender a legalidade democrática" - para "fazer respeitar a legalidade democrática".

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em primeiro lugar, a nossa proposta no sentido de transferir a actual alínea c) para a alínea a) constitui uma questão de lógica, pois os actos normativos nela referidos são, talvez, dos de natureza administrativa, aqueles que têm maior dignidade.

Quero também dizer, Sr. Presidente, que o PSD retira a proposta de alteração da alínea f). Discutimos muito este ponto quando da feitura do nosso projecto, mas uma consideração ulterior leva-nos a entender que ao Governo compete mais a prevenção da legalidade democrática do que a sua defesa repressiva. E, de facto, a palavra "respeitar" contém já uma certa ideia de repressão, que compete mais ao Ministério Público...

O Sr. Presidente: - Como, aliás, se encontra consagrado no lugar próprio.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, Sr. Presidente. Para defender a legalidade democrática, o Governo deve melhorar as condições de vida, etc., a fim de prevenir as violações.

O Sr. Presidente: - A alínea c) não tem autonomia...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Previamente, gostaria de dizer que se vamos instituir o hábito de passar "a toque de caixa" pelos preceitos que tenham propostas, mas não defensores, isso pode abrir situações um pouco melindrosas. Aparentemente, o PSD está a pressupor que terá aqui sempre defensores (o que é razoável), assim como o PS e nós, PCP. No entanto, pode acontecer que tal não ocorra todos os dias ou em todas as circunstâncias. Creio que não há razões para introduzir urna bitola diferente consoante a identidade do ausente porque isso significaria fazer uma qualificação de ausência, coisa que nós não aceitamos.

O Sr. Presidente: - Tem sido essa a prática, sem prejuízo de que quem quiser pronunciar-se sobre elas toma essa atitude. É por essa razão que o PSD e nós, em princípio, não nos preocuparemos em fazer a defesa ou a critica das propostas dos partidos que não estão representados. É apenas isso. Mas o Sr. Deputado pode fazê-lo, claro.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Era para essa segunda cláusula que eu alertava, Sr. Presidente, e muito lhe agradeço a clarificação. É evidente que, por

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exemplo, em relação a esta proposta do CDS estamos com o debate prejudicado, na medida em que gostaria de ouvir as razões que levaram a adiantar um texto deste tipo...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, a nossa intervenção não teve o sentido de imprimir um "toque de caixa" à discussão das propostas cujos proponentes não se encontram presentes. A nossa proposta foi mais séria. De resto, nem sequer é uma proposta, na medida em que tem sido praxe desta Comissão a de que as propostas cujos proponentes não estejam presentes não devem ser discutidas. Obviamente que isto não prejudica o direito de todos os deputados, quando assim o pretenderem, a, posteriormente, solicitarem à Mesa a possibilidade de os proponentes intervirem, direito que tem sido sempre concedido com grande generosidade. E - sejamos francos e falemos com alguma frontalidade - há uma diferença entre os três grandes partidos que aqui sempre estarão representados. Sempre que relativamente a determinado preceito há uma proposta do PCP e este não se encontra presente (o que, aliás, tem sido raro), passamos à frente e esperamos que o representante do PCP chegue, por consideração para com o próprio PCP, que é um agente activo da revisão constitucional. Não posso ter a mesma consideração para com o CDS, que quer fazer a revisão constitucional nos jornais, mas quase nunca está presente nas reuniões desta Comissão. As coisas são o que são!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação a isto, apenas quis clarificar aquilo que agora ficou clarificado.

Gostaria de sublinhar que esta proposta do CDS nos deixa um tanto perplexos. A distinção entre aquilo que seja um poder de "direcção", de "superintendência" e de "tutela" é conhecida. Aquilo que o CDS adianta, isto é, a substituição de uma noção de "superintendência" por uma noção de "orientação" introduziria, em nosso entender e salvo melhor precisão, uma confusão, uma vez que o poder de superintendência envolve designadamente o poder de rever, confirmar, modificar e revogar actos...

O Sr. Presidente: - Também não nos parece de acolher...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, este projecto é anterior à assunção da direcção do CDS pelo Prof. Freitas do Amaral, que é administrativista e que, suponho, não seria patrocinante de uma solução deste tipo, que vem ao arrepio de orientações rigorosas...

O Sr. Presidente: - De qualquer modo, não vemos esta proposta de alteração com simpatia, razão por que também não lhe dispensei mais tempo do que aquele que dispensei.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação à segunda das questões colocadas (neste caso concreto, pelo PS), a solução vem abonada na fundamentação que tivemos ocasião de abordar quando discutimos a questão do planeamento democrático.

Permita-me, Sr. Presidente, que faça uma observação. É evidente que o pressuposto da proposta do PS

é totalmente distinto do pressuposto da proposta do PSD, ainda que a redacção seja, em matéria de planeamento, quase letra a letra igual. Portanto, a bondade ou a maldade da proposta do PSD que, neste ponto, é meramente reflexa, tem que aferir-se pelo corpo real das soluções adoptadas atrás quanto ao planeamento.

O Sr. Presidente: - Que, em todo o caso, são divergentes das do PS.

O Sr. José Magalhães (PCP): - São bastante divergentes. São dois caminhos que eu diria quase opostos...

Última observação: fico contente, francamente, que o Sr. Deputado Costa Andrade tenha retirado esta proposta, na medida em que ela introduzia na análise do projecto do PSD um factor de identificação...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Les bons esprits!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não sei se é les bons esprits se Ia force dês choses, porque, neste caso concreto, propor a conversão de uma cláusula que obriga a "defender a legalidade democrática" por uma cláusula que manda "fazer respeitar" (com o significado de heteronímia que isso tem e, logo, de não envolvência, não autovinculação, quase auto-exclusão do espaço de defesa da legalidade democrática) era algo que relevava de uma visão um tanto faraónica. Nessa visão, do topo da pirâmide do comando, o PSD, o Governo, o Primeiro-Ministro (ele próprio, naturalmente), faziam os outros respeitar a legalidade democrática, quase a legibus solutus, libertos completamente da tutela e das malhas de legalidade democrática!

Esta retirada do PSD tem o sentido exacto de um passo atrás, o que me parece positivo. E é, naturalmente, um passo à frente em termos de clarificação, ou seja, de não distorção da Constituição, num aspecto em que ela está bem concebida.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos agora passar ao artigo 203.°, preceito em relação ao qual penso que poderemos mesmo passar a toque de caixa. De facto, na alínea c), o PS apenas prevê a aprovação das propostas de leis paraconstitucionais, proposta que, como é óbvio, está dependente da aprovação dessas leis.

Na alínea e), o PS faz, uma vez mais, referência aos "planos" em vez de ao "Plano". Esta proposta de alteração é, pois, mera decorrência daquilo que na altura própria se propôs.

Assim, Srs. Deputados, se concordassem, passaríamos ao artigo 205.°, sob a epígrafe "Tribunais". Em relação a este preceito, o CDS apresenta uma proposta, em matéria de definição de tribunais, que elimina a expressão "em nome do povo". O PRD mantém o actual corpo do artigo como n.° 1 e propõe um novo n.° 2, com a seguinte redacção: "A organização dos tribunais é única para todo o território nacional."

Poderia desde já dizer que o PS não vê com simpatia a eliminação da referência à administração da justiça "em nome do povo", que, de algum modo, é aquilo que ainda dá sustentáculo à consideração dos tribunais como órgãos de soberania.

Quanto à proposta do PRD, não somos em princípio contra: inclusivamente, entendemos que o seu conteúdo está certo. Resta saber se os outros partidos pen-

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sam de igual modo. Esta proposta destinar-se-ia a eliminar um problema que por vezes tem sido aflorado, nomeadamente em relação às regiões autónomas, no sentido de saber se elas apenas têm o direito de proceder a uma adaptação da organização judiciária ou têm direito a uma organização judiciária própria. Como sempre entendi que as regiões autónomas não têm direito a ter uma organizaão judiciária própria, este n.° 2 seria, creio eu, clarificador. É este o nosso ponto de vista. Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, há clarificações absolutamente indispensáveis e outras que não o serão tanto. Neste caso, devo dizer que não temos opinião totalmente formada. A repartição que decorre da natureza do Estado unitário e no núcleo de funções essencial que é insusceptível de exercício por outrem, que não pelos órgãos da República, é de tal forma evidente que não se conhece quem, na Assembleia da República, sustente posição contrária. Conhecemos apenas um conjunto de incidentes de carácter periférico, mais fundados em interesses locais, e guerrilhas de tipo caciqueiro e um tanto intimidatório. De resto, este tipo de incidentes não produziu nenhum efeito em relação ao aparelho de justiça. Se bem que tenha tido expressão, aqui ou além, em alguns congressos regionais dos PSDs locais, nunca teve expressão a nível nacional nem logrou ver projecção nos documentos oficiais do respectivo partido. Isto significa que, se este texto não for consagrado, a Constituição em nada será alterada. Se fosse consagrado, far-se-ia uma ligeira clarificação, cuja prescindibilidade é, porém, creio eu, com algum pró viso, óbvia.

Quanto ao primeiro ponto, nenhum outro partido ousou propor a supressão destas cláusula. Só o CDS o fez, em homenagem a alguma reminiscência do passado que o CDS, retaliatoriamente, terá querido purgar. Teria muito mais de purgar nessa óptica que, afinal, é uma forma de "matar o pai" a prestações. Neste caso, é uma forma de esconjurar um contencioso histórico perfeitamente perimido que o CDS, pelos vistos, ainda tem aos saltos nos seus armários; mas que, creio, não deveria ter nenhuma projecção no texto constitucional. Que a justiça seja administrada, e bem administrada, em nome do povo será coisa virtuosa e largamente partilhável, republicana, democrática e razoável. Suprimir esta cláusula seria pelo menos ambíguo e um retrocesso!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Pretendia apenas dizer, Sr. Presidente, que a posição do PSD relativamente a esta matéria é aquela que decorre de não ter apresentado propostas de alteração. É portanto evidente que o PSD não concorda com a supressão advogada pelo CDS.

No que concerne ao artigo 205.°, proposto pelo PRD, consideramos que as situações são suficientemente claras e a actuação do PSD tem sido suficientemente clara a nível nacional para que as coisas devam continuar como estão. Aliás, se alguma dúvida houvesse, a intervenção do Sr. Deputado José Magalhães acabaria por esclarecer que assim é. Contudo, Sr. Deputado, refutamos todas as acusações de caciquismo, ou coisa que o valha, atribuídas aos nossos companheiros das regiões autónomas, que têm todo o direito a ter as suas interpretações particulares em relação a esta e a outras matérias.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar ao artigo 206.°, em relação ao qual foi apresentada uma proposta (não explicada porque não está quem a explique) pelo CDS, no sentido da eliminação de um preceito que, em meu entender, é fundamental. O PCP apresenta uma proposta de aditamento de um n.° 2, que é a seguinte: "A administração da justiça será estruturada de modo a evitar a burocratização, a simplificar e acelerar as decisões e a assegurar a proximidade em relação aos cidadãos, especialmente nos casos de descontinuidade geográfica."

Para justificar a proposta do PCP tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado: Lançando um olhar sobre a aplicação do sistema constitucional, nesta parte referente aos tribunais, concluiremos que, não sendo a Constituição particularmente rica neste ponto, se verificou um fenómeno de não aplicação ou não desenvolvimento do seu conteúdo básico em alguns aspectos fundamentais. Refiro-me, em particular, às soluções quanto à instrução criminal, à participação popular na administração da justiça. Aí, a Constituição não foi verdadeiramente aplicada, a legislação ordinária e as práticas conduziram mesmo a uma involução preocupante.

Neste momento, em sede de revisão constitucional, o conjunto de alterações que propomos não visa ser o elemento alterador, por obra magica, do panorama que vivemos no terreno da justiça. Visa-se, tão-só, não introduzir na Constituição algumas indicações e, em certos casos, elementos garantísticos adicionais que permitam resolver, de contribuir para resolver, alguns estrangulamentos, por todos reconhecidos e exautorados. Esta introdução serve apenas para sublinhar a modéstia das propostas e também a modéstia da intervenção do legislador nesta sede de revisão constitucional, face à dimensão gigantesca (não há nisso nenhum exagero) das tarefas de reforma de justiça em Portugal. Não é provavelmente no quadro constitucional que está a chave da resolução dos problemas da justiça e as propostas que aqui sejam apresentadas visam, tão-só, enriquecer a malha constitucional em termos de grandes indicações, introduzindo princípios que são, de resto, sufragados por um largo conjunto de forças partidárias - eu quase diria por todas as forças - que se tem debruçado sobre esta matéria, designadamente nos grandes debates que por vezes temos travado no Plenário da Assembleia da República e mesmo no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. A primeira proposta é um caso típico: pretendemos enfatizar que a estruturação da administração da justiça deve fazer-se em termos que permitam uma adequada desburocratização e, por outro lado, assegurar uma simplificação e aceleração de dicisões processuais, bem como a proximidade em relação aos cidadãos. A norma proposta nesta sede constitucional tem uma espessura e uma densidade que não deixam de cometer ao legislador ordinário responsabilidades fundamentais, não sendo, portanto, a direc-

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triz constitucional dotada de rigidez que possa parecer preocupante, mesmo àqueles que se afligem especialmente com esse tipo de coisas.

Finalmente, sublinho a nossa preocupação em relação aos casos de descontinuidade geográfica, que tem em conta, designadamente, a especificidade da situação das regiões Autónomas e os problemas que daí decorrem para a organização dos tribunais nessas regiões. Situar uma norma deste tipo no artigo que define a função jurisdicional teria o particular significado de introduzir um outro conjunto de dimensões a um preceito que ganhará, seguramente, com esse enriquecimento. Devo dizer, Sr. Presidente, Srs. Deputados, que nos parece que esse enriquecimento é susceptível de ser larguissimamente partilhado.

O Sr. Presidente: - Mais algum Sr. Deputado deseja usar da palavra?

Pausa.

Tem a palavra a Sr. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, é só para dizer que numa primeira abordagem não vê o PSD que haja graves inconvenientes no aditamento de um novo n.° 2 ao artigo 206.°, mas vemo-lo com uma certa desnecessidade em relação à primeira parte do mesmo número e com sérias reservas em relação à segunda parte do mesmo número.

Quanto à primeira parte o PCP não faz mais com este acrescentamento do que imputar à função jurisdicional a necessidade de eficácia. Essa necessidade de eficácia já a Constituição a reserva como fundamental quando assegura, no artigo 20.°, o acesso ao direito e aos tribunais, nomeadamente no seu n.° 2, falando do asseguramento desse acesso através da consagração de um direito de justiça por parte dos cidadãos e, portanto, há aqui no fundo uma sobreposição, com alguns pontos de pormenorização, que não adiantam mais do que o apontar para essa necessidade de eficácia. De facto, o artigo 206.°, quando descreve a função jurisdicional, tem de pressupor, em conjugação com o artigo 20.°, a eficácia da administração da justiça. O que o PCP faz é indicar um apanóplia de meios que poderiam efectivamente figurar ao lado de outros mais que concorressem para essa mesma ideia de concretizar com êxito a administração da justiça. Relativamente à segunda parte do n.° 2 do artigo 206.°, na redacção dada pela proposta de aditamento do PCP, quando se fala do asseguramento da proximidade em relação aos cidadãos, especialmente nos casos de descontinuidade geográfica, isto pode apontar para uma certa alteração na tessitura dos tribunais e no modo como eles em princípio se organizam com vista à mesma administração de justiça. O que o PSD entende é que aqui está em causa a descrição da função e a descrição e a imposição constitucional do seu êxito e que é secundário, e de certo modo instrumental, o problema que o PCP pretende acautelar e solucionar na segunda parte do n.° 2.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Dá-me licença que a interrompa, Sra. Deputada?

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O que é que seria essencial, então, nessa óptica?

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É administrar a justiça eficazmente. Imagine o Sr. Deputado que a alteração destas condições sobre a proximidade em relação aos cidadãos pode impor uma organização conducente a uma administração menos eficiente da justiça por dificuldade de organização de meios. O que o PSD entende é que aqui é importante assinalar a finalidade, deixando os meios dentro de um esquema de liberdade de escolha que não esteja constrangida pelo n.° 2 tal como o PCP o pretende aditar. Portanto, não há aqui da nossa parte nenhum sentido de rebater claramente o n.° 2, mas antes um sentido de que o que se pretende pode ser adquirido através de uma liberdade de meios que a Constituição não deve constranger à partida.

O Sr. Presidente: - Eu julgo que há aqui valores que merecem ser tomados em conta. Não creio que a formulação da proposta de aditamento do PCP seja a mais feliz. De facto, a redação inicial "A administração da justiça será estruturada de modo a evitar a burocratização [...]" é um valor positivo, mas não sei se terá dignidade constitucional. No entanto, a fim de que possam ser acelaradas as decisões (é a ideia, hoje presente nas convenções internacionais, do julgamento célere), deveria ter assento na Constituição, não sei se nesta formulação se noutra qualquer.

A ideia da proximidade em relação aos cidadãos já me parece uma ideia um pouco mais difícil de formular. Nesta formulação nunca me pareceria aceitável. O que é que VV. Exas. querem dizer com a afirmação "os cidadãos devem participar na realização da justiça"? Será que se deve aproximar a justiça do cidadão no sentido de que ela não deve representar incómodos para este último, para o que deve ter serviços de justiça ao seu dispor? Se assim é, muito bem. O problema e o da exequibilidade, mas, de qualquer modo, é uma meta a atingir. A descontinuidade geográfica parece reforçar esta ideia de que a justiça deve aproximar-se dos cidadãos, não no sentido de eles participarem na realização da justiça, mas de ser cómodo para eles serem testemunhas, parte, queixosos, inclusivamente réus.

Parece-me, portanto, que há aqui ideias que poderão ter um conteúdo positivo. Penso que nesta formulação poderiam ser ou equívocas ou até ligeiramente perigosas.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, em relação ao artigo 206.°, e não querendo repetir as considerações que foram produzidas por si próprio e pela minha companheira Assunção Esteves, as quais sigo por inteiro, gostaria, todavia, de dizer que, do meu ponto de vista, sendo certo que ninguém constestará a essencialidade ou a justeza de algumas das considerações que aqui estão e não propriamente de todas, talvez porque algumas são excessivas ou podem ser excessivas em relação à sua aplicabilidade prática, o facto é que isto serão mais objectivos da administração da justiça, objectivos da função jurisdicional a atingir por ela, do que princípios de natureza constitucio-

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nal a serem inseridos num preceito da Constituição. E daí que, do meu ponto de vista, embora acompanhemos as preocupações e a tentativa de conseguir estes objectivos, não entendamos que um n.° 2 com este conteúdo deva ser acrescentado ao artigo existente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, entre a primeira intervenção e a segunda intervenção do PSD, se eu não estivesse estado nesta sala todos os momentos, desconfiaria solenemente de que alguma coisa tinha ocorrido. Passámos do "não se ver inconveniente" para a objecção terminante e, quase se diria, fulminante do Sr. Deputado Carlos Encarnação. Dir-se-ia que de um lado do PSD tinha havido uma leitura ou distraída ou assente em terríveis cedências e, do outro lado, a fulminante e atempada guilhotina. Talvez não seja caso para tanto e os Sr s. Deputados ainda tenham tempo para maturar uma terceira posição assente numa equilibrada valoração daquilo que pode ser preservado e daquilo que talvez não mereça consideração na nossa proposta.

Uma das considerações feitas pelo Sr. Deputado Almeida Santos pode ser um bom critério para reger esta matéria. A alusão a certos valores pode enriquecer, a selecção desses valores pode ser feita tendo em conta uma visão mais alargada. Aquilo que o PCP apresentou foi uma base de trabalho. Entendemos que os valores de solidariedade, proximidade, desburocratização, são alguns dos que neste momento devem caracterizar meridianamente as metas desejáveis em matéria de reforma da justiça. A crítica de uma justiça distante, morosa e cara contínua a ser um elemento paradigmático para se compreender e perceber, e ler, os caminhos da democratização da justiça, no nosso país também. A formulação é, para o PCP, inteiramente secundária.

Chamo-vos, no entanto, a atenção para a importância de que se revestem as várias dimensões da proximidade (o Sr. Deputado Almeida Santos, de resto, discorreu doutamente sobre essa matéria). A ideia de proximidade não tem uma dimensão, tem várias. O enriquecimento decorrente disso não é subestimável e, designadamente, na óptica da organização judiciária nas regiões autónomas, a questão da descontinuidade geográfica e da proximidade em relação às populações é extremamente importante. Creio que os Srs. Deputados do PSD, pelo menos em alguns segmentos da intervenção, afloram uma insensibilidade, ou uma indiferença, que me parecem espectaculares em relação a essas especificidades.

Se em algum sítio elas podem merecer consagração pacífica, é precisamente aqui, e não seguramente no título sobre as regiões autónomas.

É precipitado e resulta de uma avaliação sobre a hora (o que não tem grande desculpa, pois as propostas estão pendentes desde Outubro) do nosso texto, que, das duas uma: ou é imenssissimamente pacífico, ou lido dessa forma teria engulhes que nós estávamos longe de ser capazes de imaginar naquela bela hora do mês de Outubro em que resolvemos adiantar esta base de trabalho.

Apelo a que se mature o conjunto das apreciações a fazer, eventualmente se procurem novos valores ou releituras dos valores para que aqui se aponta, mas não

se abandone a título nenhum a possiblidade de obter aqui um enriquecimento. Repito: não será a "bomba atómica" para a resolução dos problemas da justiça em Portugal, mas será uma indicação útil.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, quero também dar um pequeno contributo para a discussão, uma vez que também nós reputamos a matéria de importante, um contributo que naturalmente se distingue no tem e no som dos contributos já dados pelos meus colegas Maria da Assunção Este vês e Carlos Encarnação. Nós não somos só um, mas vários; é, portanto, natural que haja algumas dissonâncias, embora a posição tomada por cada um de nós seja relativa e praticamente convergente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Embora, segundo eu li num jornal, o Sr. Deputado Costa Andrade decida sempre um última instância...

Risos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O que se passa aqui? Em primeiro lugar, os valores para que o Partido Comunista aponta são, do nosso ponto de vista, valores fundamentais da administração da justiça, o que é importante porque vale também como tópico hermenêutico do texto constitucional. Estamos, pois, de acordo com o valor: entendemos que justiça não célere não é justiça e bem assim que justiça não próxima não é justiça. O que nos questionamos é da necessidade e mesmo da vantagem de um preceito como este; desde logo da necessidade, se atendermos a que já o actual artigo 32.° da Constituição, relativo ao processo crime, consagra o princípio da maior celeridade possível. De resto, justifica-se aí que o cidadão sobre e qual recai o benefício da presunção de inocência não deva ter o peso de um processo criminal muito tempo sobre as suas costas. O processo criminal é sempre um estigma e o estigma deve, na medida do possível, ser alijado o mais rapidamente possível.

Por outro .lado, o próprio Partido Comunista já fez várias propostas no sentido da celeridade em relação a outros domínios (estou a lembrar-me, por exemplo, da relativa ao artigo 20.°). É evidente que o caso da proximidade em relação aos cidadãos tem a ver não só com a proximidade geográfica mas também com a proximidade económica e com outras proximidades e desproximidades, outras continuidades e descontinuidades. Também já travámos um debate sobre isso, e é natural que o saldo positivo deva ser feito num preceito a nível dos direitos fundamentais, onde estas questões sejam tratadas através de uma fórmula adequada ao texto constitucional e apta a dar-lhes resposta.

A proposta em apreço - repito - tem a nossa concordância quanto aos valores, fundamentalmente dois, que estão aqui implícitos: o valor da celeridade - porque justiça retardada não é justiça - e o valor da proximidade - porque se os cidadãos não têm acesso à justiça por motivo de descontinuidades geográficas ou de descontinuidades económicas ou ainda de descontinuidades culturais, não há justiça. Esta fór-

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mula corre é o risco (que a minha colega Assunção Esteves já especificou) de absolutizar, por exemplo, o tópico da descontinuidade geográfica, o que pode ser inconveniente e prejudicar uma solução global. De todo o modo, Sr. Deputado José Magalhães, nós concordamos que estes valores são fundamentais e já relevam da Constituição e que toda a legislação no sentido da reforma da justiça deve ser feita também no sentido de actualizar tais valores, os quais são quase tão importantes como o da justiça material. A justiça material é o valor fundamental, mas aqueles são também valores com grande importância. Esta fórmula - foi o que nós dissemos, em polifonia - é que não nos parece conveniente. De todo o modo, estamos dispostos para isso. E devo dizer-lhe, Sr. Deputado, que, se também o Partido Comunista (enfim, não gosto de misturar a feitura das leis constitucionais com a intervenção a nível da legislação ordinária, que é outro plano) apresenta no seu projecto de revisão constitucional um muito acentuado tópico de celeridade, a verdade é que, em geral, sempre que são apresentadas propostas de lei ou projectos de lei pré-ordenados ao valor da celeridade o PCP tem-se oposto com grande veemência a tais projectos ou propostas. Estou a lembrar-me...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Da "Lei Barreto"!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Como?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Da "Lei Barreto"...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, não estava a lembrar-me dessa...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sobre a celeridade na suspensão dos actos administrativos...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas talvez também essa. É possível que valha no mesmo sentido...

O Sr. José Magalhães (PCP): - É uma honra essa opinião, uma honra!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O Partido Comunista não pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo: o PCP de uma parte brande a arma da solidariedade mas da outra parte inventa sempre lesões gravíssimas dos direitos fundamentais dos cidadãos, que em concreto não o são. Estou a lembrar-me do caso, muito típico, do Código de Processo Penal, que introduziu grandes transformações no sentido da celeridade e todas essas (as que jogaram no sentido da celeridade) contaram com a oposição do PCP.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Todas essas?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Ou praticamente todas... Estou a lembrar-me da suspensão provisória dessas novas instituições que visam a celeridade mas que contaram com a oposição do PCP. De resto, o PCP votou contra o Código de Processo Penal.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães quereria ainda acrescentar alguma coisa?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, seria má altura para fazer reposições históricas em relação ao Código de Processo Penal. Há abundantes relatórios sobre essa matéria, a nossa posição foi a que foi, não nos opusemos a muitos dos institutos que têm celebrizações positivas. Em matéria do Código de Processo Penal, opusemo-nos a vários outros; alguns foram declarados inconstitucionais até, outros podem vir a sê-lo ainda.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, vou fazer apenas duas reflexões que, no fundo, se traduzem em duas questões dirigidas a V. Exa.

É inevitável que esta matéria é relevante; trata-se de um conjunto de princípios processuais que, embora tenham natureza instrumental, ninguém põe em causa, muito menos seremos nós, PSD, a fazê-lo. Dúvidas temos é quanto à sua inscrição nesta sede, aqui, no artigo 206.°, referente à função jurisdicional. As duas questões que eu queria colocar ao Sr. Deputado José Magalhães são as seguintes: isto tem a ver, de facto, com a formulação, eventualmente menos exacta, da proposta do PCP. Quando refere o princípio da celeridade, por que é que não compatibiliza, ou por que é que não ressalva, enfim, um princípio fundamental como é o da certeza do direito ou da segurança jurídica? Fala em simplificar e acelerar as decisões e fala também em assegurar a proximidade aos cidadãos, mas não faz essa ressalva, que penso também deveria ser levada em conta.

Uma segunda questão, que releva de intervenções anteriores dos seus companheiros, é a seguinte: não acha que o artigo 20.°, que consagra o acesso ao direito e aos tribunais, numa interpretação minimamente corajosa, não leva já em conta esta matéria?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não entendemos o elenco dos valores aqui enumerados como um elenco fechado e, portanto, o valor segurança não é indesejável. Pode perfeitamente considerar-se o enriquecimento nesse sentido, até porque a segurança e a certeza são valores relevantes. De resto, a celeridade não é susceptível de ser tomada como um valor absoluto de forma tal que possa prejudicar a própria segurança e certeza do direito ou possa conduzir à restrição das possibilidades de defesa. Isso mesmo a Constituição acautela em relação ao processo crime, por proposta do PCP, é bom não esquecer.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Não acha, Sr. Deputado José Magalhães, que, em última análise, o conteúdo co-envolvido na proposta do PCP não decorre já da actual redacção do artigo 20.°? O princípio do acesso ao direito e aos tribunais não englobará estes princípios?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Essa é a segunda questão. Todo o artigo 20.° está concebido na óptica subjectiva, na óptica dos direitos dos cidadãos perante a máquina judicial e perante o direito e a justiça em geral. Este é o artigo que, do lado da máquina e em termos de organização, faz a leitura do mesmo problema. É um contrapelo, é a visão orgânica e funcio-

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nal da mesma realidade que é encarada, no título referente aos direitos, liberdades e garantias, na óptica subjectiva e da defesa do cidadão. As duas coisas casam-se, são as duas leituras do real, com construção jurídica diferenciada: num a leitura subjectiva, no outro a leitura organizativa e funcional. Não há nada de anormal nisto e a Constituição utiliza esta técnica dupla em muitos outros domínios.

Não nos parece que o artigo 20.a esgote as dimensões necessárias da democratização do acesso à justiça ou da democratização da justiça, ela própria. A ponderação adicional a fazer na CERC pode conduzir a uma solução equilibrada e económica, que não deixa de abrir mais um sinal, também neste ponto, na Constituição.

Alerto, também e de novo, para a questão da descontinuidade geográfica. Este é o bom sítio para tratar disso. O outro sítio possível (o título sobre as regiões autónomas) é, de todos, o que pode suscitar maiores dificuldades...

O Sr. Presidente: - Vamos passar ao artigo 207.°, em relação ao qual o CDS, mantendo o corpo do artigo, que transforma em n.° 1, propõe um n.° 2 e um n.° 3. No n.° 2 propõe que seja vedado aos tribunais "recusar a aplicação das normas constantes de convenções internacionais regularmente concluídas pelo Estado Português", o que não se entende muito bem do ponto de vista sistemático, porque se trata aqui da apreciação da inconstitucionalidade. O n.° 3 diria: "A inconstitucionalidade orgânica ou formal de convenções internacionais não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, salvo se tal inconstitucionalidade resultar da violação manifesta de uma disposição fundamental."

Há uma proposta do PCP no sentido de transformar o corpo do artigo actual em n.° 1 e acrescentar dois números. Diria o n.° 2: "De igual modo, os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam outras normas às quais aquelas devam obediência ou que sobre elas detenham primazia." Suponho que será uma referência discreta e indirecta ao direito supranacional. E o n.° 3 diria: "Sem prejuízo da fiscalização da constitucionalidade e da legalidade previstas na Constituição, a lei determina as formas de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral, bem como os respectivos efeitos."

Quererá o PCP justificar a sua proposta?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de sublinhar, por um lado, que não nos parece razoável a solução adiantada pelo CDS, mas talvez seja melhor deixar isso para os comentários e ir à "bota" que o Sr. Presidente resolveu colocar no debate. Não se trata verdadeiramente de um objecto desse tipo, trata-se, sim, de uma dificuldade decorrente do facto de ser necessário ter em conta (adiantámos um pouco a reflexão sobre isso quando discutimos o artigo 115.°) toda a problemática decorrente do facto de poder haver normas cujo valor reforçado lhes confira uma especial primazia. É uma problemática que o Sr. Presidente, mais familiarmente, encontrará nas alfombras do seu próprio espírito jurídico, pensando nas leis paraconstitucionais a que o PS dedica o desvelo conhecido, do que propriamente pensando problemáticas, provavelmente vitorinicamente apaixonantes, do direito comunitário e

da sua relevância na ordem interna. Estranho por isso a sua observação, ou talvez não estranhe, porque a contiguidade política e mesmo física provoca estranhos fenómenos de contágio (espiritual).

O Sr. Presidente: - Só este segundo aspecto era "bota"; o primeiro descalçava-se facilmente.

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado José Magalhães não nega que no que aqui está rigorosamente escrito cabe essa interpretação, o que é de facto diferente de o terem querido.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, como nós havemos de ler o nosso projecto face à Constituição que há, e não face à Constituição que o PS propõe e como nós lemos a Constituição que há, com o artigo 80.° que há, é evidente que a interpretação do nosso texto, até mesmo na leitura hábil do Sr. Deputado Almeida Santos, haveria sempre de fazer-se tendo em conta aquilo que o artigo 80.° que há diz. e não o que o artigo 80.° que o PS propõe dirá ou diria, se dissesse alguma coisa...

O Sr. Presidente: - O diabo é o que diz objectivamente.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que o que já há cabe aqui, na medida exacta em que caiba aqui e com os exactos efeitos que decorrem do facto de caber aqui, na parte em que cabe aqui!

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto. Não teria dito melhor, nem em "vitorinês".

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, suponho, Sr. Deputado António Vitorino, que ambos atingimos a satisfação! O que quer que signifique o que V. Exa. tenha dito neste momento, creio que há realmente um problema e que esse problema mesmo com a leitura que VV. Exas. fazem deve ser resolvido...

O Sr. Presidente: - Não quer propor alteração da redacção da vossa proposta?

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas para quê, Sr. Presidente? Para dizer uma aberração?! Nós não quereríamos dizer senão uma evidência e essa evidência há-de ter a dimensão que decorrer da Constituição. Se a dimensão decorrente da Constituição for A, esta evidência será uma evidência do tamanho de A, se for B, será de B. No entanto, o problema colocar-se-á sempre: aí onde houver primazia deve ser acatada nos seus precisos termos. Ninguém verá aqui uma adesão idolátrica e súbita...

Risos.

... a uma noção invertida das relações direito interno-direito comunitário. E quem tiver essa inversão há-de assumi-la pública e abertamente, nós não! Nessa maté-

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ria não nos pode ser imputada nenhuma qualidade desse tipo, e se alguém nessa matéria é invertido, não é seguramente o PCP...

O Sr. António Vitorino (PS): - São contra o direito à diferença.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E respeitamos esse direito à diferença, embora nos pareça razoavelmente indesejável no caso em apreço. Isto quanto ao primeiro ponto. Há aqui um problema que não pode dirimir-se senão considerando que os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam outras normas às quais essas devam obediência ou que sobre elas tenham primazia. Portanto o conflito entre a lei ordinária ou a norma de valor inferior e a norma de valor superior ou de valor reforçado tem de ser dirimido através de uma fiscalização e essa fiscalização há-de ser susceptível de ser operada através, também, da intervenção dos tribunais. Essa é uma matéria que a jurisprudência constitucional tem abordado, designadamente quando se tem pronunciado sobre questões relacionadas com as leis de enquadramento, com as leis de bases, com as leis ordinárias reforçadas. Existem inúmeros pareceres, até da antiga comissão constitucional, e do Tribunal Constitucional, em que a matéria é aflorada. Não vos ditarei para a acta o volume, que é realmente impressionante, desses pareceres, mas em todo o caso proponho-vos que esta matéria seja objecto de um estudo parcelar na Subcomissão (que pode realmente dedicar-se a coisas virtuosas e uma delas pode ser esta) no sentido de se procurar apurar os contornos do problema face à jurisprudência constitucional e por outro lado as soluções que possam ser felizes, do ponto de vista da formulação, ainda que na sua polissemia possam parecer a alguns embaraçosas, como ocorreu no início deste debate com o Sr. Deputado Almeida Santos.

Em relação à segunda questão, trata-se de criar uma cláusula que preveja o instituto da declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral e a definição dos respectivos efeitos, com o que se complementa aqui, em sede organizativa, aquilo que tem de ser regulado ali, em sede de fiscalização, na parte competente da Constituição. É uma norma com uma espécie de duplo encaixe, com uma espécie de interface para a outra parte competente da Constituição. É essa a sua finalidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Pena é que o CDS não esteja presente no debate, porque a matéria que a propósito deste artigo é apresentada pelo CDS é suficientemente interessante para poder merecer alguma reflexão da nossa parte e desejavelmente algum debate com os próprios autores das propostas em causa. Verifica-se da conexão entre esta proposta feita pelo CDS a propósito do artigo 207.°...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, sem prejuízo de continuar a sua dissertação, queria dizer-lhe que temos uma espécie de convenção tácita segundo a qual, na ausência dos titulares das propostas, não se submetem a discussão e apreciação de fundo, sem prejuízo de poderem expender as considerações que desejarem.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - A minha ideia era apenas pôr em realce o aspecto que, numa lógica de coerência, do ponto de vista do projecto do CDS, aqui está patente e que é o da articulação desta proposta, relativa ao artigo 207.°, com o artigo 8.° e também com o artigo 280.°, n.° 2, relativamente ao sistema da fiscalização da inconstitucionalidade de convenções internacionais. O CDS aposta claramente numa solução que garanta o primado do direito internacional convencional não apenas sobre a lei ordinária, mas mesmo sobre a lei constitucional. É este aspecto inovador que valerá a pena ser ponderado dadas as consequências óbvias que ele teria em todo o nosso ordenamento jurídico-constitucional. O meu propósito era apenas sublinhar este aspecto, para que ele não passasse despercebido.

Quanto à proposta do PCP, diria que ela também traz elementos suficientemente inovadores para merecerem atenção. Por um lado o PCP parece vir procurar resolver, através desta proposta, algumas das dificuldades que têm sido suscitadas na questão da hierarquia das normas. Sabemos que no capítulo da hierarquia das normas, leis e decretos-leis têm tendencialmente idêntico valor, excepto nos casos em que os decretos-leis são emitidos na sequência de autorizações legislativas ou no desenvolvimento de leis de bases. Ainda aí fica uma questão por resolver no nosso ordenamento constitucional, qual seja a de saber qual o regime de sanção aplicável nos casos de contradição legislativa entre esses decretos-leis e as leis, sejam as de autorização, sejam as leis de bases. O PCP pretende, tanto quanto julgo compreender das normas que propõe, estabelecer uma forma de fiscalização sucessiva, difusa e concreta por parte dos tribunais em geral. Isto, tal como o Sr. Deputado José Magalhães sublinhou, implicaria também o repensar do sistema de fiscalização a propósito da intervenção do próprio Tribunal Constitucional, porque desde logo ficamos sem compreender bem, nestas propostas feitas pelo PCP, se haveria ou não lugar a recurso nos casos da declaração da ilegalidade por parte dos tribunais e nesse caso qual seria a instância última de recurso, se o tribunal hierarquicamente superior ou se também através de um sistema de fiscalização concentrada no próprio Tribunal Constitucional. São dúvidas que ficam no ar na sequência desta proposta do PCP. Sem prejuízo, sempre direi que ela é encarada com alguma simpatia da parte do PS, na medida em que visa ponderar aqueles problemas a que me referi e entre eles o problema da hierarquia entre leis e decretos-leis, designadamente quando as consequências da ilegalidade ou da contradição legislativa entre os diplomas não são susceptíveis de um controle ou de uma sanção muito fáceis no actual ordenamento constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Esta é uma proposta que merece um juízo diferenciado, pois pensamos que devem ser diferenciadas as respostas ao n.° 2 e ao n.° 3. Este n.° 3 não tem aqui cabimento: é uma norma sobre actos normativos, uma norma sobre normas, que não tem a ver com a concretização do direito pelos tribunais. Diz-se: "Sem prejuízo da fiscalização da constitucionalidade e da legalidade previstas na

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Constituição, a lei determina as formas de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral, bem como os respectivos efeitos." Isto, quando muito, seria uma norma a inserir em sede de regulamentação constitucional do poder legislativo.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - É claro que o PCP nos irá apontar para uma espécie de lei de estatuto reforçado, mas o Sr. Deputado José Magalhães esclarecer-nos-á, caso a lei que viesse a definir o sistema da declaração da ilegalidade de normas fosse uma lei que na hierarquia das leis não tivesse um plano diferente relativamente às demais. Poderá, no entanto, ocorrer uma insegurança jurídica brutal. Naturalmente que uma lei de processo ordinário ficaria susceptível de alterações flutuantes em função de opções legislativas circunstanciais e poderia criar, quanto ao regime de declaração da ilegalidade, situações de grande insegurança no ordenamento jurídico. Ou se pensa numa lei de estatuto reforçado ou este sistema de remissão para a lei poderá vir a criar grandes dificuldades.

O Sr. Presidente: - Faça o favor de continuar, Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dizia eu que o artigo 207.° nos diz quais as normas que constituem as premissas do silogismo judiciário. O artigo 207.° diz-nos qual o direito que os tribunais devem aplicar e diz-nos também que "nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados". Este preceito demarca o horizonte normativo pelo qual os tribunais devem solucionar os conflitos reais, ou seja, diz quais são as premissas maiores do silogismo judiciário. É diferente o teor da norma que o PCP propõe como o n.° 3. Quando muito, a sede deste n.° 3 seria o artigo da Constituição que trata dos actos normativos e das relações entre eles, até porque não é uma norma relativa ao estatuto e à função jurídico-constitucional dos tribunais.

Quanto ao n.° 2, a nossa posição é diferente, e penso que é derivada das posições que tomarmos sobre as relações de hierarquia entre as normas.

O Sr. Presidente: - Claro, claro.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Penso que neste ponto teremos de sobrestar em relação àquilo que estabelecermos em matéria de hierarquia de normas. Sendo certo que o sistema hierárquico de normas plasmado constitucionalmente já vincula os tribunais, estes estão vinculados a aplicar o direito. Assim como um regulamento ilegal ou uma lei inconstitucional não podem ser aplicados, também a lei posterior revoga a lei anterior, mesmo que tal não seja expressamente previsto. É que há vários tipos de hierarquia, sendo um deles a "hierarquia temporal". Se uma lei aparece e expressamente não revoga a lei anterior, o tribunal já é obrigado a aplicar a lei posterior porque ela é hierarquicamente superior (numa hierarquia naturalmente diferente) à lei anterior.

Esta proposta de n.° 2 apresentada pelo PCP não merece, em princípio, a nossa oposição. Só que a nossa posição derivará das posições que assumirmos no que toca à hierarquia das normas.

Relativamente ao n.° 3 proposto pelo PCP opomo-nos a ele porque, como tentei demonstrar, não tem cabimento em sede do artigo 207.°

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: As opções a tomar nesta sede são realmente derivadas. Não o procurei ocultar. Pelo contrário, acentuei esse aspecto. Elas serão tanto mais relevantes quanto maior for o valor que no texto constitucional assuma o instituto das leis de valor reforçado.

No quadro da consagração de institutos como das leis paraconstitucionais, seja essa a sua designação ou outra qualquer, terá de ser componente fundamental do sistema e elemento de definição identitária a existência de uma hierarquia normativa e a existência de meios de fiscalização das descoincidências entre legislação de valor inferior e legislação reforçada. Isto sob pena de a lógica e a eficácia próprias desse tipo de actos legislativos ficar completamente esvaziada e de a sua própria coerência ficar confinada aos aspectos intrínsecos e ser susceptível de ser subvertida, com a maior das facilidades, pela ausência de mecanismos concretos de fiscalização.

Portanto, aquilo que aqui propusemos, e que é coerente com a nossa opção pelas leis de valor reforçado, na nossa definição, é ainda mais indispensável na proposta do PS. A sede poderá ser esta (parece-nos correcta e razoável, designadamente quanto ao n.° 2) ou outra. Este aspecto parece-nos virtualmente secundário.

Parece-nos também fora de questão e evidente que é necessário fazer ênfase no sistema de fiscalização da ilegalidade e da respectiva declaração com força obrigatória geral, remetendo-se para o legislador ordinário a normação adequada.

De qualquer maneira, se tudo fosse tão simples como o Sr. Deputado Costa Andrade dá a entender a quem o ouvisse, o passeio pela nossa jurisprudência constitucional seria seguramente menos tormentoso. Ora sucede que ele é bastante tormentoso. Vejam-se, por exemplo, em relação à questão das leis ordinárias de valor reforçado, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 190/87, 62/84, 82/86, 273/86 e 317/86, tal como já a Comissão Constitucional tinha abordado nos seus pareceres n.ºs 9/79, 8.° vol., e 26/82, 20.° vol.

Em relação às leis de enquadramento, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 461/87, 205/87, 11/83, 427/87, 2/88, 131/85 e 435/87. Tudo de uma extrema simplicidade.

Relativamente às leis de bases, tenham-se em conta os Acórdãos n.ºs 190/87, 92/85, 142/85, 82/86, 212/86, 326/86, 86/87, 24/83, 14/84, 39/84, 38/84, 209/87 e 53/87.

No que se refere aos pareceres da Comissão Constitucional, atentem-se nos n.ºs 14/79, 8.° vol., pp. 119-133; 12/80, 12.° vol., pp. 67-81; 25/78, 6.° vol., pp. 263-270; 4/79, 7.° vol., pp. 235-268; 22/79, 9.° vol., pp. 39-54; 35/82, 21.° vol., pp. 153-176; 24/77, 3.° vol., pp. 85-148, e 4/81, 14.° vol., pp. 205-272.

No que respeita ao Orçamento do Estado, o Sr. Deputado Costa Andrade mergulhará os olhos nos Acórdãos n.ºs 11/83, 48/84, 427/87, 131/85, 173/85, 435/87, 59/88 e 141/85.

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Em relação à problemática dos decretos-leis de desenvolvimento de leis de bases - noção de bases gerais -, o Sr. Deputado verificará como é simplicíssimo analisada mediante os Acórdãos n.ºs 190/87, 62/84, 92/84, 92/85, 82/86, 212/86, 24/83, 14/84, 24/85, 274/86, 404/87, 326/86, 86/87, 47/84, 88/84, 39/84 e 209/87.

Quanto aos decretos-leis de desenvolvimento, há que considerar os Acórdãos n.ºs 38/85, 8/85, 19/85, 41/85, 17/85, 30/85, 111/84,130/84, 88/84, 101/84, 118/84 e 131/84.

Sr. Deputado, em matéria de decretos-leis de autorização legislativa e de competência legislativa autoriazativa, não lhe vou citar, por pura maldade, os respectivos acórdãos. Terá de mandar fazer a respectiva pesquisa. Idem, aspas, em relação à competência legislativa e de autorização e relativamente aos outros oito aspectos que são relevantes quanto a este ponto...

Isto significa que a matéria em debate merece uma cuidada ponderação, concorde-se ou não com este facto.

Por outro lado, respondendo ao Sr. Deputado Jorge Lacão acerca da questão de saber se optamos por um sistema de fiscalização concentrada ou difusa, dir-lhe-ia que ela é difusa. Na realidade, não há nenhum receio para se pressupor uma opção concentracionária nesta matéria. A lei ordinária deverá definir, na repartição de competências e em função das diversas categorias de tribunais, designadamente em razão da matéria, a maneira como essa distinção se fará.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, se me permite, interrompê-lo-ia. A minha constatação de que se trata de um regime de fiscalização difusa não sofre dúvidas. A dúvida que formulei foi outra, ou seja, a de saber se este regime seria ou não complementável, designadamente em sede de recurso, com um sistema de fiscalização concentrada. Aí é que o Sr. Deputado não nos esclareceu.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, poderá explicitar mais?

O Sr. Jorge Lacão(PS): - Tal como acontece no sistema de fiscalização difusa concreta, se for possível, em última instância e por via da concentração no Tribunal Constitucional da última palavra acerca da declaração de inconstitucionalidade, então teremos um regime que acaba por ser de compromisso entre os dois sistemas, o de fiscalização difusa e o de fiscalização concentrada.

Assim, a pergunta que lhe faço é a seguinte: admite ou não recurso das decisões de ilegalidade por parte dos tribunais e, nesse caso, qual será a última instância de recurso? Apenas instâncias de recurso na hierarquia dos respectivos tribunais ou a última instância de recurso será o Tribunal Constitucional?

O Sr. José Magalhães(PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, não é por acaso - suponho que este conselho é extremamente fagueiro face a disposições que tivemos antes, designadamente sobre a constituição económica - que esta é uma "norma aberta" no sentido exacto de que deixa ao legislador ordinário vastas possibilidades.

Devo dizer-lhe que acerca dessa matéria não temos nós próprios também a ideia de que seja virtuosa uma opção definitiva. Mas julgo que vale a pena ponderar o assunto,

inclusivamente se os Sr s. Deputados entendem que é apropriado fazer uma opção fechada em termos constitucionais.

Em todo o caso, creio que não está suficientemente maturado o sistema para que aqui se aponta e que uma solução de concentração seria provavelmente a mais arriscada em termos constitucionais. Deveríamos deixar para a lei ordinária a maturação de todas as implicações nesse plano e praticar, aí, sim, essa opção, porque tem de ser praticada uma, ainda que seja de compromisso.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, não o preocuparia a possibilidade de haver um sistema de fiscalização aberto a regular por simples lei ordinária? Isto como todas as incertezas na ordem jurídica que eu há pouco referi? Ao menos uma lei de valor reforçado...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Bem, se V. Exa. pretende colocar isso como lei de valor reforçado,...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Não, Sr. Deputado. Para já pretendo detectar o grau de coerência da proposta apresentada pelo PCP, depois logo se verá o que é que quero.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, em matéria de coerência, devo dizer que ela decorre daquilo que expus. Primeiro: entendemos que o sistema actual é inaceitável. Em segundo lugar, pensamos que o grau de confusão e de conflito induzido é enorme. Terceiro: consideramos que na lógica de introdução de leis paraconstitucionais se geraria, virtualmente, um pandemónio. Quarto: a matéria em discussão exige uma solução para a qual a Constituição deve dar abertura, mas não fecho. A não ser que VV. Exas. entendam fazer já o contrário, caso em que teríamos de estudar toda a matéria e procurar uma solução adequada.

A caminhada própria deve ser feita não no terreno da Constituição mas no terreno da lei ordinária, ponderando tudo. Não creio que estejamos em condições, em sede de revisão constitucional, de fechar todas as opções que a edificação de um sistema deste tipo implica, sobretudo porque os senhores ainda não têm fechado o edifício na parte em que ele pode vir a prever leis de valor reforçado!

Só numa segunda leitura estaremos em melhores condições de saber qual é o "rés-do-chão" e o "1.° andar". Então construiremos o zimbório, se for caso disso. Nesta fase parece-me francamente arriscado avançar para um caminho desses.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Apesar de ter assistido apenas a parte desta discussão, tenho a impressão de que, em princípio, a proposta apresentada pelo PCP não acrescenta nada àquilo que é hoje o regime jurídico, salvo, porventura, na sua parte final, no que diz respeito aos efeitos da declaração de ilegalidade.

Mas ainda assim não acrecentará nada porque desde que haja um princípio hierárquico parece que tem de se entender que a jurisdição dos tribunais permite

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conhecer os vícios das normas inferiores, ou, pelo menos, das normas condicionadas pelas normas condicionantes. Para além disso, em relação ao legislador ordinário julgo não haver qualquer disposição constitucional que lhe proíba estabelecer os modos de controle da ilegalidade e fórmulas processuais. Por exemplo, a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e o regime novo dos tribunais administrativos vieram prever a impugnação de actos regulamentares, etc.. Portanto, diria que, excepto em certos tipos de ilegalidade particular, considero difícil que a Constituição avance no sentido de fechar soluções.

Quanto à proposta do PCP, julgo que ela nada adianta quanto ao que é actualmente o regime jurídico. Também não prejudica que se esclareça aquilo que é hoje o regime jurídico. Não vejo mal nenhum nisso, pelo contrário, haverá uma certa utilidade nesse aspecto esclarecedor.

Agora pergunto: vamos regular na Constituição o regime de impugnação dos regulamentos? Não pode ser, salvo, isso sim, certo tipo de ilegalidades que dizem respeito, digamos assim, à Constituição, ou que estão muito próximas da zona constitucional, nomeadamente â violação dos estatutos das regiões autónomas, bem como a violação, se se entender que isso é ilegalidade, das leis paraconstitucionais. Apenas vale a pena consignar constitucionalmente soluções naquelas zonas que possam estar no âmbito do controle do Tribunal Constitucional.

Portanto, penso que o projecto do PCP não acrescenta nada a esta matéria mas esclarece-a, e nesse aspecto não faz mal nenhum.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permite-me que faça apenas uma observação?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, julgo que esta questão já começa a estar esclarecida, mas faça o favor.

O Sr. António Vitorino (PS): - Para ler o resto dos números dos acórdãos...

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, era para que não se dissolvesse na indiferenciação aquilo que é novo e aquilo que é velho. Em primeiro lugar, devo dizer que é nova a ideia da consagração de um instituto de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral nos termos gerais em que o instituto vem previsto.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador).

Portanto, diria que é tornar explícita uma autorização tácita, ou melhor, uma zona que tem estado fora da Constituição e que passa a ser objecto de uma autorização. Isso não faz diferença nenhuma, mas também não adianta nada.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Galvão Teles, em primeiro lugar creio que se se consagrar na pirâmide dos actos normativos a existência de leis de valor reforçado, como estou a pressupor, a questão adquire não apenas uma relevância ordinária mas a máxima relevância.

Em segundo lugar, penso que a consagração de um instituto de declaração de ilegalidade com força obrigatória é uma exigência: é absolutamente fundamental para garantir que na prática essa superioridade hierárquica seja defendida e acatada. É essencial que o texto constitucional consagre expressa, clara e inequivocamente a exigência desse sistema.

Provavelmente os Srs. Deputados do PS ficarão assim alertados para a necessidade de que esse sistema tenha contornos, quiçá ainda mais definidos do que aqueles que o PCP pretendeu aqui plasmar.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado, estou totalmente de acordo consigo, mas o PS na sua proposta de leis paraconstitucionais teve o cuidado de, nos artigos 277.° e seguintes, configurar em concreto o tipo de vício que corresponderia à violação dessas leis, mutatis mutandis das leis reforçadas.

Trata-se aqui de um caso de ilegalidade, e, portanto, especificou-se em cada artigo qual era o âmbito e alcance dessa ilegalidade.

Daí que não haja um paralelismo total, no regime que adoptámos, entre a ilegalidade por violação de lei paraconstitucional e a inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta.

A seu tempo explicaremos por que é que fizemos esta opção, que pode não ser definitiva nem sequer eventualmente a opção correcta. Em todo o caso, pareceu-nos mais correcto e mais clarificador a qualificação do vício e o seu mecanismo de fiscalização constar dos artigos 277.° e seguintes do que propriamente recorrer à qualificação do vício numa única norma genérica.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, com esta intervenção fica mais claro qual é o pólo de divergência e qual o de convergência. A discussão quanto à sede parece-nos perfeitamente secundária no sentido exacto de que é uma pura questão de sistemática.

O problema existe realmente. A consagração do referido instituto pode ter lugar aqui ou noutra sede. Não fazemos o mínimo empenho em que não possa ser estabelecido noutra sede, desde que o seja.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, o que a Constituição prevê nos artigos 280.° e 281.° diz respeito a determinadas formas de ilegalidade, e apenas essas.

O Sr. Presidente: - Pediria ao Sr. Deputado Galvão Teles que fosse breve para ver se poderíamos avançar na análise do articulado.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Deputado, o que digo é que o facto de a Constituição não prever hoje o regime de outras formas de ilegalidade não impede o legislador ordinário de o estabelecer como estabeleceu.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Insisto em que me parece que há duas coisas distintas: uma delas é o regime das ilegalidades, digamos, da zona constitucional. A meu ver ele deve ficar consignado na Constituição. Outra é a das demais ilegalidades.

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O preceito do PCP apenas esclarece uma situação que é hoje a que resulta da ausência de disposição constitucional sobre a matéria, excepto porventura em relação a um ponto que é o único que pretendo referir neste momento: a possibilidade de fixação dos efeitos, no que respeita designadamente à utilização para a fiscalização abstracta de ilegalidades de uma norma do tipo da do n.° 4 do artigo 282.° Aí é que já posso admitir que a cobertura constitucional possa ser, talvez não indispensável, mas particularmente útil, pelo menos em relação a certos casos de ilegalidade.

O Sr. Presidente: - Quanto ao artigo 208.°, há apenas duas propostas apresentadas: uma do CDS e outra do PSD. A proposta do PSD acrescenta à referência à lei, como valor a que estão sujeitos os tribunais, uma referência ao direito. Gostaria que o PSD justificasse esta proposta, que me parece portadora de alguma perplexidade.

Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - O PSD propõe, em sede do artigo 208.°, o aditamento do inciso "e ao direito". Pretende-se que, para além da lei positiva, sejam considerados os chamados valores materiais do direito. Trata-se, portanto, de um apelo a um princípio ético-jurídico.

Para nós o termo "lei" parece envolver tão-só um certo positivismo, isto é, a norma parece ter uma feição normativista, ou mesmo literalista, e pretendemos clarificar o seu sentido. Assim, tomamos a expressão "direito" num sentido objectivo, levando em conta os valores que decorrem da chamada consciência ético-jurídica da comunidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, estou à vontade para falar neste tema porque nunca me considerei um positivista, embora admita que haja pessoas que me possam considerar como tal. Só que a minha visão do direito é efectivamente bastante mais ampla do que a do restrito âmbito da lei, no seu sentido positivado.

No entanto, não posso deixar de chamar a atenção do PSD, autor desta proposta, para os riscos que comportaria a sua inserção em sede de Constituição. Na verdade, se todos nos podemos entender, tant bien que mal, sobre o conteúdo, o sentido, o âmbito de um normativo positivado, pergunto: onde iríamos parar se, a propósito de cada decisão ou de cada thema decidendi, tivéssemos de recorrer a esse "direito"? O que seria tal "direito"? Os princípios gerais de direito? A natureza das coisas? O direito natural clássico? Quem diz o que é isso? Como o diz? Como é que se encontra esse "direito"?

O facto de colocar estas questões não significa que cada um de nós, na sua visão do jurídico, não possa englobar esse "direito" que está para além da lei, ou que é superior à lei, ou no qual a lei se banha - como dizia o filósofo. Isto não invalida, porém, que a posição do intérprete não possa, nesta matéria, ser imposta a outros intérpretes, com a mesma legitimidade com que podem interpretar esse tal "direito", mesmo à luz dos princípios gerais de direito ou da tal natureza das

coisas. Consoante a teoria que defendêssemos para encontrar esse "direito", tudo isso daria lugar a uma extrema situação de instabilidade, que não é compaginável sobretudo com sistemas jurídicos como o nosso, em que a jurisprudência não tem de modo nenhum a segurança e a tradição que tem noutros sistemas, como é o caso do sistema alemão, para já não falar do sistema inglês. Correríamos efectivamente o perigo de lançar a instabilidade máxima no sistema jurídico português se consagrássemos na Constituição aquilo com que eu, a título pessoal (mas não o reivindico para a Constituição), me identifico plenamente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, se bem me recordo, isto é retirado da Grundgesetz.

O Sr. Vera Jardim (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Na primeira revisão constitucional a questão foi veementemente discutida, culminando numa feliz rejeição.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não posso deixar de dizer que, pessoalmente, até não serei hostil a isto, embora não seja jusnaturalista.

Vozes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Continuo a crer, se quiserem pôr isto em termos muito simples, que na prática do direito há certos postulados que ultrapassam sempre as fontes de direito existentes; há certos postulados que o julgador adopta -porventura a própria questão da submissão do julgador ao direito é uma questão dessa natureza- e sobre os quais, normalmente, não se interroga. Não há possibilidade, no quadro de um sistema jurídico, de definir as relações, por exemplo, entre costume e lei, porque sempre se poderá questionar o que quer que a Constituição diga sobre, por hipótese, o costume, no caso, por exemplo, de se entender o actual artigo 208.° da Constituição no sentido de que é uma exclusão da relevância do costume como fonte de direito. É a velha questão que se põe no 1.° ano de Direito. Obviamente pode perguntar-se se isto não é apenas a perspectiva da Constituição sobre outra fonte.

Nesse aspecto, embora eu não seja jusnaturalista - que não sou -, reconheço que existem de facto problemas metajurídicos, que têm de ser resolvidos pelo julgador ou por quem decide (designadamente, outro problema, o da opção entre o direito pré-revolucionário ou o direito revolucionário, nos dias da Revolução), que se ligam com problemas últimos de fidelidade - e é por isso que as Constituições são juradas. Consequentemente, não deixo de ter alguma simpatia por fórmulas desta natureza, embora apenas no sentido de que um tipo de fonte, que é a Constituição, está a admitir a fórmula indefinida de que outros tipos de fonte funcionam.

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No entanto, receio que, colocada a questão num plano político, isto introduza em certas zonas de consenso jurídico estabelecido uma margem de instabilidade grave. E sabe-se, aliás, as dezenas de livros, as centenas de artigos que na Alemanha se têm escrito em torno desse princípio...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - E cá!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - E cá...

Vozes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Admito que a actual fórmula tenha uma expressão excessivamente legalista, no sentido de que a Constituição parece não reconhecer a possibilidade de outra qualquer fonte nem de legitimar qualquer outra fonte que não seja a lei. Contudo, temo que a referência à lei e ao direito introduza instabilidade, porque nesta coisa dos postulados práticos o que, no fundo, é necessário - embora me custe dizê-lo - é a ausência de crítica e de problematicidade, sendo de alguma sorte preciso que os agentes jurídicos não tenham bem consciência de que estão a supor postulados. Inclusivamente, receio que isto introduza alguma confusão que não adiante muito àquilo que no plano dos postulados hoje se pode dizer...

O Sr. Presidente: = Só alguma...

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Alguma?... Muita... Não me repugnaria, por exemplo, que se substituísse "estão sujeitos à lei"...

O Sr. Presidente: - Isto é um pandemónio, verdadeiramente.

Vozes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - ... por "estão sujeitos às normas jurídicas".

Vozes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não me repugnaria qualquer coisa deste género, mas tenho sempre receio de mexer em artigos já formulados e relativamente aos quais não existe uma razão decisiva para lhes tocar.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Por um lado, não subsistem dúvidas sobre o facto de que, quando a Constituição alude, no artigo 208.°, à lei, não se está a referir à lei mas ao conjunto de normas jurídicas, qualquer que seja a sua forma de produção e revelação, e portanto, desde logo, à própria Constituição como tal.

A reiterada insistência em alterar o conjunto de disposições sobre o valor conformador da lei neste sentido, por parte do PSD (em 1982 essa proposta foi apresentada e desde então a questão tem sido debatida), revela uma preocupação que, neste momento, é para nós ainda mais merecedora de critica. Se o PSD tem

revelado nos últimos tempos, designadamente na sequência de recentes decisões jurisprudenciais, uma postura de reclamação da dissolução da Constituição, substituindo-a pela vontade dos titulares adventícios dos órgãos do poder num determinado momento, se revela em relação à própria força normativa da Constituição uma atitude cifrada na exaltação da "força normativa dos factos", numa tentativa de ultrapassagem de regras e mecanismos de controle (refiro-me naturalmente ao inesquecível discurso do Primeiro-Ministro perante as câmaras da RTP, que são, pelos vistos, o sítio mais inspirador para a teoria jurídico-normativa do Governo e do Primeiro-Ministro em particular), a inserção no artigo 208.° de uma alusão ao direito como tal seria nefastíssima. Dado o parecer seguramente ponderoso, forte e incisivo dos "eminentes juristas" que sempre acompanham o Primeiro-Ministro em corpo ou em espírito, as consequências poderiam ser verdadeiramente devastadoras, introduzindo já não apenas riscos de dissolução das leis, mas de dissolução da Constituição e das leis, e da Constiuição como lei das leis.

A explicação que o Sr. Deputado Pais de Sousa aqui nos trouxe é ela própria a corroboração mais tonitruante e completa disto mesmo, na medida em que verteu para a acta um tal conjunto de conceitos que, seguramente, nós poderemos pensar que não mediu as fontes (seguramente mediu as palavras, mas não as fontes). Porque esses apelos à difusa "consciência jurídica da comunidade", oponível à lei...

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foram essas as palavras que o Sr. Deputado Pais de Sousa utilizou: "a consciência jurídica da comunidade".

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - "Oponível à lei", não...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, Sr. Deputado, se não é "oponível à lei", para que é que serve? A Constituição estabelece a sujeição à lei e V. Exa. estabelece a sujeição à consciência jurídica da comunidade. Se a "consciência jurídica da comunidade" é idêntica à lei, a questão não se coloca, a questão só se coloca quando a "consciência jurídica da comunidade" é contrária à lei. Em caso de conflito entre a "consciência jurídica da comunidade" e a lei, diga-me V. Exa.: por onde é que se sai? Como a "consciência jurídica da comunidade" há-de ser vertida através da hermenêutica feita pelo magistrado, e como o magistrado há-de, para isso, optar entre a subordinação à lei ou a subordinação à "consciência jurídica da comunidade", é evidente que a única hipótese relevante é a hipótese de conflito. Como é que V. Exa. sai na hipótese de conflito? Se sai pela prevalência da lei, a sua proposta é inútil, se sai pela prevalência da "consciência jurídica da comunidade", a sua proposta fere a minha consciência jurídica, em termos jurídico-constitucionais! É verdadeiramente perigosa, na medida em que dissolve a lei, dissolve o Estado de direito democrático numa das suas vertentes fundamentais. Schmitt resolveu esse problema, mas V. Exa. seguramente não seguirá o caminho de Schmitt quanto à forma de resolver esse

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problema: não o seguirá seguramente pelo caminho da dissolução da lei nem, obviamente, pela prevalência da vontade do chefe (nesse caso histórico, do Ftihrer) em relação ao conjunto das leis, vendo a lei como "emanação da vontade do chefe". Consequentemente, excluídas essas hipóteses, todas elas horripilantes (qualquer que seja a posição sobre a questão do chefe), o terreno das dúvidas é enorme e suspeito o apelo ao combate ao positivismo como tal entendido. Olhando à volta não vejo aqui nenhum positivista nesse sentido tacanho, limitado. Mesmo olhando para baixo das mesas, não lobrigo...

Por outro lado, no que concerne às questões relacionadas com o direito objectivo e o desprezo pelo literalismo, etc., em matéria de interpretação, também não lobrigo por aqui, mesmo olhando para debaixo das mesas, nenhum literalista. Mas é facto que devemos todos aplicar as regras hermenêuticas, designadamente quanto ao valor e à prevalência da Constituição.

Assim sendo, resta um campo de hipóteses que me parece francamente mesquinho, porque sabemos haver quem sustente que está inscrito na "ordem natural das coisas", como as estrelas, as estalactites e talvez o HLV, que, por exemplo, "o servo deve sempre obedecer ao amo e o amo deve ter sempre o direito de se apropriar dos frutos do trabalho alheio" (isto já foi sustentado historicamente). E há quem sustente que cabe aos trabalhadores trabalhar e às entidades patronais apropriar-se da mais-valia. Seria tudo uma coisa "natural", uma coisa "necessária", tal como a "flexibilidade", ditadas pelos astros, inscritas na alma humana. Repudiamos, evidentemente, esta concepção. Sucede que a Constituição a repudia também...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Em relação à lei, foram ditas tantas coisas...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foram ditas tantas coisas e foram superadas tantas ordens jurídicas que se tomaram por "naturais" e a "natureza das coisas" revelou ser tão diferente de certas naturezas humanas e de certas forças e constelações de poderes em determinadas alturas, aspirando algumas a durar mil anos (e tendo durado bem pouco!), que eu creio que tudo isso está ultrapassado e não devíamos reeditar velhos debates que a Constituição quis, precisamente, encerrar.

O Sr. Presidente: - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, eu já acabei, Sr. Presidente. Somos contra esta proposta, a todos os títulos.

Vozes.

O Sr. Presidente: - É óbvio que isto não reveste condições para ser aprovado.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Há gestos inequívocos no sentido negativo. Estou a ver o Sr. Deputado Costa Andrade acenar para, em última instância, suponho eu, retirar a proposta.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Esta é uma das propostas por que nos bateremos até ao fim.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, não nos diga isso!

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Essa é a 14.ª questão que o PSD coloca ao PS nas negociações secretas.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, o que aqui foi dito obriga-me a fazer uma curta intervenção sobre a nossa proposta.

O Sr. Deputado Vera Jardim rejeitou a proposta mas, pessoalmente, não é contra uma certa ideia de direito que não se decalca necessariamente sobre a ideia de lei; o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles manifestou mesmo uma simpatia pela proposta e só vimos uma rejeição radical por parte do Sr. Deputado José Magalhães.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Ponha-me lá também a mim, que seria contra uma proposta deste género, sem prejuízo de saber perfeitamente o que distingue a lei do direito.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter f alado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - O que hoje se diz sobre um certo esbatimento das ideologias e de uma certa identificação político-partidária com um certo modo de ver o direito, do ponto de vista filosófico, não prejudica que eu venha aqui assumir pessoalmente e, de certo modo, em nome do meu partido, o facto de esta proposta vir na sequência de um certo posicionamento político-filosófico do PSD. O acrescentamento do inciso "e ao direito" à actual redacção da Constituição tem aqui um sentido claro e inequívoco: em primeiro lugar, tem um sentido de imprimir a esta redacção conotações materiais do direito que não se compadecem com uma leitura escassa de um positivismo extremo, isto é, de um positivismo ideológico. Pretende-se consagrar aqui, ao nível da elaboração da lei fundamental, a ideia de que o direito, para ser direito justo, tem de conter um mínimo de princípios materiais que, aliás, encontram já consagração noutros lugares da Constituição. A ideia é a de que a lei tem de facto um valor fundamental, mas que ela, no nosso entender, comporta um certo sentido de uma moral universalista que lhe dá um certo conteúdo material; a ideia é a de que o PSD rejeita aqui uma noção cega

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de positivismo ideológico, no sentido de a lei ter de ser obedecida a qualquer custo e ter um conteúdo justo só pelo facto de o ser. Estou-me a lembrar de uma citação sobre o problema da lei e dos princípios materiais que se lhe devem colar, referindo o autor que a lei tem um minimal content of natural law, isto é, há sempre um conjunto de princípios materiais que não podem existir desgarrados da lei. O que o PS aqui pretende não é criar uma certa libertinagem no modo de fazer o direito e de o aplicar; é, pelo contrário, imprimir à lei aqueles valores materiais, sem os quais a lei não pode ser justa, que não se baseiam numa versão contingente de leituras jusnaturalistas puras, antes obedecem aos parâmetros de uma moral kantiana universalista que tem a ver com a rejeição do positivismo ideológico e com a aceitação de fundamentos materiais que estejam ligados ao princípio da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Não quer dizer mais do que isso, nem quer subtrair à lei qualquer tipo de valoração como ponto decisivo para a criação das decisões pelos tribunais.

O Sr. Presidente: - Mas, como sabe, Sra. Deputada, a proposta não irá ser aprovada da mesma maneira.

Passemos à discussão do artigo 209.° O PCP, no seu projecto de revisão, faz uma proposta de aditamento ao prever um n.° 2 assim concebido: "Nas suas funções de investigação, os órgãos de polícia criminal actuam sob a direcção dos magistrados judiciais e do Ministério Público competentes e na sua dependência funcional." Quer justificar, Sr. Deputado José Magalhães?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O PRD também prevê um aditamento do género, não sei agora onde, vou procurar...

O Sr. Presidente: - Descubra-o e depois analisamos a vossa proposta.

O Sr. António Vitorino (PS): - O PRD usou a técnica do caleidoscópio!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. pretende justificar a proposta do PCP?

É possível que o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles tenha querido incluir o preceito noutro lugar...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, V. Exa. está a referir-se ao artigo 224.° da vossa proposta?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Está no artigo 226.°-A...

Vozes.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, passemos à sua exposição rapidamente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, eu proponho que encetemos apenas a discussão, uma vez que me parece inadequado e inconveniente uma discussão sobre uma matéria deste tipo ser aberta e encerrada nestas condições.

O Sr. Presidente: - Não. Gostaríamos de o ouvir, para todos irem reflectir sobre a sua introdução durante o almoço. Fazia-se a discussão a seguir.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Certamente, Sr. Presidente. Esta é uma das matérias em que vale a pena gastar algum tempo, uma vez que está no coração das reflexões sobre a nossa legislação processual penal e sobre o papel e repartição de competências e poderes entre as diversas entidades que se devem mover na esfera processual penal, nos diversos tipos de funções antes e depois do processo e durante ele.

Discutimos tudo o que diz respeito à questão da actuação dos órgãos de polícia criminal, do papel do Ministério Público, da relação de necessária dependência funcional entre as entidades policiais e as que se movem na esfera dos tribunais: juizes e Ministério Público. Quando debatemos aqui a reforma processual penal que neste momento se encontra em vigor (mais em palavras, de resto, do que na realidade), um dos aspectos fulcrais é, precisamente, que os órgãos de polícia criminal não actuem senão sob a direcção de magistrados, dentro da respectiva repartição de competências e na sua dependência funcional. Este é um dos pontos em que mesmo os mais acérrimos defensores da reforma processual penal, legalmente plasmada, têm de convir em que é preciso uma solução que dê cumprimento a essa dependência funcional, sob pena de subversão radical de funções e de confusão entre justiça e polícia, que é, de todas, a mais crassa e grave de todas as confusões.

Aquilo que nós aqui fazemos não é uma reforma processual penal "em pacote", não é um condensado: é uma norma de garantia, uma norma de topo, uma norma "económica", na medida exacta em que não procura ter uma dimensão que exceda a razoável em termos constitucionais. A dimensão não é a questão: a questão é a precisão, o rigor e a adequação para a finalidade que importa salvaguardar. A sede parece-nos adequada.

Não queria polemizar com o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles nesse ponto, mas esta inserção parece-nos correcta. Podíamos ter colocado uma norma deste tipo em direitos, liberdades e garantias quando se discute a questão da instrução criminal. Pareceu-nos, no entanto, que isto transcende essa óptica. Diz respeito a todos os aspectos co-envolvidos e, portanto, esta sede, em que se referem os tribunais e o relacionamento entre estes e as autoridades (incluindo as policiais, naturalmente), é a mais correcta para o efeito que buscamos.

A norma é um tanto subtil, quando não distingue -e remete, de certa forma, para a lei- a repartição de competências entre as duas magistraturas. A norma tem em conta um determinado modelo de repartição de competências que é o constitucional. Sabe-se que a leitura desse modelo constitucional tem sido feita de forma diferenciada. Neste momento foi feita em termos de- lei ordinária de uma determinada maneira que nos parece iminentemente criticável e constestável. Em todo o caso, esta norma transcende essa querela do modo como está redigida. É uma formulação sucessivamente flexível para apenas salvaguardar o imperativo supremo, qual seja direcção-dependência funcional/separação entre justiça e polícia. É essa a consignação máxima da proposta.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Como disse há pouco, a nossa proposta é de aditamento de um novo artigo, o 226.°-A. Reconheço que a sede não é a mais indicada, porque se está a supor que as autoridades judiciárias competentes a que nos referimos são apenas as do Ministério Público. Quanto ao resto, acompanho o que disse o Sr. Deputado José Magalhães. Acrescento que, salvo erro (não tive oportunidade de verificar, porque não pensava que chegássemos hoje a esta matéria), neste ponto o projecto do PRD acolhe uma das sugestões que aos vários partidos foram feitas pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Mas confirmarei.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nós próprios tivemos isso em conta.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas independentemente de formulações, estou de acordo em que se desloque o artigo 226.°-A, não se devendo estabelecer a necessária vinculação ao Ministério Público, ou predominantemente a este. As autoridades judiciárias competentes poderão ser os tribunais.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Vera Jardim tem a palavra.

O Sr. Vera Jardim (PS): - É evidente que esta proposta merece da nossa parte grande simpatia, porque todos nós, sobretudo o Partido Socialista, nos temos batido sempre por que, naturalmente, a actuação dos polícias esteja funcionalmente dependente dos magistrados judiciais ou do Ministério Público, consoante o grau da sua intervenção e da sua competência.

A minha única dúvida diz respeito, por um lado, à colocação sistemática do preceito (penso que poderemos agendar isso para depois ser discutido em pormenor) e traduz-se, por outro lado, numa pergunta directa ao Sr. Deputado José Magalhães. No n.° 2 da proposta do PCP diz-se "nas suas funções de investigação [...]" É evidente que há outras funções policiais - funções de prevenção, nomeadamente - que não são funções de investigação. Em todo o caso, penso que a fórmula do PRD é neste aspecto mais correcta, por não ser tão restritiva, na medida em que (e temos aqui quem nos possa esclarecer isso) muitas vezes a prevenção e a investigação não são tão dissociáveis como isso. Onde é que termina a prevenção e começa a investigação? Onde é que termina a investigação e estamos já na fase da prevenção? Daí que esta fórmula do PRD me pareça mais geral (a menos que o Sr. Deputado José Magalhães me convença do contrário), sobretudo em matéria de competência, de hierarquia e de dependência funcional, sendo preferível à fórmula do PCP. Por outro lado, utilizando a fórmula (mais feliz) "as autoridades judiciárias competentes", vai ao encontro daquele problema que o Sr. Deputado José Magalhães já focou: o de evitar a querela de saber se são os magistrados judiciais ou o Ministério Público a autoridade competente e qual a competência de cada uma dessas autoridades. Tanto mais quanto sabemos que há várias formas de legislar nessa matéria. Mau seria que prendêssemos a Constituição apenas a uma dessas fórmulas, sabido como é que já fizemos experiências várias nesse sector.

É nesse sentido que o meu partido tende a apoiar a proposta do PRD. Não estou a ver nada em contrário a uma formulação de princípios deste tipo, mas neste momento teria mais simpatia pela fórmula do PRD, a menos que surja alguma explicação que me faça mudar de opinião.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, para atalhar e para permitir uma reflexão que não assente em equívocos, gostaria de fornecer a explicação para a opção pela fórmula que utilizamos. Essa opção é, em resto, de valor desigual. Em relação à designação "autoridades judiciárias" em vez de "magistrados judiciais e do Ministério Público", a questão é perfeitamente secundária: não temos nenhuma objecção a outras soluções, nem fazemos mesmo nenhum empenho na nossa. As formas são equiparáveis. E, precisamente, tem-se em conta o tal modelo de repartição de competências. Mas não se trata aqui de obter o "sangue de honra" em relação a essa matéria. Não nos pareceu que fosse a sede própria: não é aqui que a questão se ganha ou se perde, é alhures.

Em relação à primeira questão, devo dizer que foi em homenagem ao Código de Processo Penal que utilizamos esta terminologia. Face ao Código de Processo Penal, a expressão "polícias de intervenção criminal", francamente, está arredada. O Código alude a "órgãos de polícia criminal", de resto numa muito especiosa definição (a qual nós aqui não acolhemos nem desacolhemos). Apenas temos em conta que existe uma determinada versão, que aliás é eminentissimamente polémica, porque os arquitectos do Código inventaram, também aí, uma elencagem aberta, dando ao Governo, ele próprio, o poder de vir definir outros "órgãos de polícia criminal", além daqueles que o Código já prevê.

Pareceu-nos que era melhor fazer o separar de águas, através da alusão neste segmento inicial, à carateriza-ção das funções envolvidas. Em relação às outras, não se pode colocar a questão da direcção, inclusivamente não se deve colocar em termos de repartição de poderes (de competências). Há uma ordem de coisas que deve ser respeitada em nosso entender. No entanto, até isso pode ser objecto de concerto, ou de rearranjo, desde que se tenha em conta o objectivo visado, e quanto a ele há uma apreciável convergência de pontos de vista.

Por outro lado, devo dizer que se tem em conta aquilo que o próprio Código estatui, ainda que dele discordemos. Agora quanto a este princípio de dependência funcional e daquilo que cabe às autoridades judiciárias (e não pode deixar de caber a estas), a nossa proposta é de máximo denominador comum e foi feita para ser assim.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, apenas uns momentos para dar a minha opinião. Penso não estar ainda o PRD, quanto a esta questão da inserção e redacção da proposta, numa posição definitiva, pelo que me guardaria para uma última decisão em momento posterior. Gostaria em particular de ouvir o Sr. Deputado Costa Andrade sobre esta matéria, relativamente à qual tem uma particular autoridade.

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O Sr. Presidente: - Se o PSD, pela voz do Sr. Deputado Costa Andrade, pudesse emitir urna opinião nos mesmos termos favoráveis, dávamos por encerrada a discussão desta questão, no sentido que só depois se procuraria a melhor redacção.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, Sr. Presidente. Primeiro ponto: a nossa posição não pode ser contrária à substância da proposta, uma vez que consagra soluções do Código de Processo Penal.

Segundo ponto: tal proposta representa um contributo esclarecedor em relação a muitas questões que suscitaram polémica (do nosso ponto de vista, erradamente).

Desta proposta resulta claro que, quando na Constituição se refere que toda a instrução é da competência de um juiz, se admite uma distinção conceituai entre instrução e investigação, investigação esta que pode ser comandada pelo Ministério Público. Esta proposta tem, além do mais, a vantagem de superar essa controvérsia.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ó Sr. Deputado Costa Andrade, V. Exa. 3 está a fazer uma leitura verdadeiramente "andradizante" da palavra "competentes", porque precisamente a fórmula é aberta...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, diz-se aqui "nas suas funções de investigação [...] os magistrados judiciais [...]".

O Sr. José Magalhães (PCP): - "Sob a direcção dos magistrados judiciais e do Ministério Público [...] competentes"...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Obviamente, "competentes" cada um na sua fase...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Cada um na sua fase? Exactamente! Sem prejuízo do artigo 32.° e sem prejuízo do artigo sobre instrução!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto. Das duas uma: ou esta proposta vale com o sentido que o Sr. Deputado José Magalhães começou por explicitar (afinal, são as soluções que já constam do Código) -e não nos opomos, pelo contrário festejamo-lo- ou não vale - e então já implica uma outra reflexão, a fazer mais tarde.

O Sr. Presidente: - Penso não dever ser assim. Não iremos retomar este tema. Se todos estamos de acordo sobre o fundo, se não é aqui o momento de encontrar a forma mais adequada, fica anotado que todos estamos basicamente adquiridos para a consagração do valor, do princípio, e que a redacção se encontrará na sede própria. Vamos interromper a reunião. E depois iremos acelerar os trabalhos no sentido de uma maior eficácia.

Está suspensa a reunião.

Eram 13 horas e 5 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 16 horas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, só muito brevemente é que se justificará aditar o que quer que seja. A única observação que não gostaria deixar de fazer é a de que lemos esta proposta de acordo com a interpretação que temos de todas as expressões constitucionais quanto à instrução criminal. Não assentamos, para propor este texto, noutro pressuposto que não seja o de que a instrução criminal é da competência de um juiz. Tudo o que isto pressupõe se relaciona com o debate que aqui travámos sobre o Código de Processo Penal, sobre a jurisprudência constitucional atinente a esta específica matéria. Já tivemos ocasião de debater na sede própria tudo o que está relacionado com esta questão. E, portanto, uma ressalva aquilo que gostaria de fazer.

O PSD neste ponto expendeu pontos de vista que vamos considerar; a nossa norma tal como se encontra redigida não corrobora qualquer tese policializadora da instrução criminal, bem pelo contrário. E é essencialmente este último ponto que gostaria de sublinhar para todos os efeitos. Parece-nos que o esforço de construção de um preceito do tipo do que propomos é, seguramente, um dos de maior valor que poderemos fazer neste título da Constituição. Quanto à sede, reafirmo que entendo ser esta perfeitamente adequada, porque não estamos apenas a legislar sobre matérias que digam respeito a um sector, a uma área, a uma estrutura, a um tipo de magistrados.

O Sr. Presidente: - Vamos passar à análise do artigo 210.° ("Decisões dos tribunais").

Relativamente a este preceito há uma proposta do CDS, onde se diz que "o caso julgado será sempre respeitado" (espero que isso não proíba a revisão de sentenças), "independentemente de lei nova que altere o regime legal anterior". Espero que o CDS não tenha proposto que lei nova possa abrir o caso julgado para o alterar. Isso seria uma boa maneira de se criar um novo instrumento de pressão para que se modificasse todos os dias a lei em favor de alguém que se julgasse injustamente condenado.

O PCP, quanto ao mesmo artigo, prevê um primeiro número a exigir a fundamentação das decisões Ga hoje é assim), mas acrescentando "designadamente sempre que decidam contra o pedido ou imponham qualquer pena ou sanção". Desde que exista a regra da fundamentação, ela será exigida em todos os casos, mas temos de reconhecer que nestes casos ela seria mais exigível do que em muitos outros.

Depois há o n.° 1-A, segundo o qual "as decisões dos tribunais são sempre tornadas públicas" (é o problema da publicidade das decisões), "devendo ser notificadas aos interessados, nos termos da lei". É preciso ver que tipo de publicidade se exige, porque se fosse a sua publicação numa folha oficial (porventura o Diário da República) teria de ter uma extensão superior à lista dos telefones de Lisboa.

Prevê-se ainda um n.° 4: "O incumprimento ou oposição à execução de uma sentença por parte de qualquer autoridade constitui crime de responsabilidade." E uma ideia que tem conteúdo positivo. Claro que o PCP está a pensar em sentença transitada, como não pode deixar de ser, e também não está a querer impedir a oposição por embargos de executado; portanto, seriam sempre de ressalvar, se é que não estão implicitamente ressalvados, estes aspectos.

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Quanto à proposta de aditamento de um novo n.° 5 ao artigo 210.° no sentido de que "no orçamento das pessoas colectivas de direito público será obrigatoriamente inscrita dotação destinada ao pagamento dos encargos resultantes de sentenças de quaisquer tribunais", não sei se seria este o lugar, bem como se não deveríamos seleccionar esta dotação para ser objecto de um dispositivo específico da Constituição. Mas com certeza que o PCP vai justificar a sua própria proposta.

Tem, então, a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Trata-se, em bom rigor, de quatro propostas, e a sua inserção parece-nos correcta, uma vez que tudo aquilo que nelas se estatui respeita a decisões de tribunais.

Na maior parte dos casos trata-se apenas de desenvolver, explicitar e densificar normas que já constam do texto constitucional vigente, e algumas, de resto, na sequência da 1.ª revisão constitucional.

No primeiro caso, trata-se precisamente de especificar constitucionalmente alguns dos casos em que mais nos parece que se justifica a fundamentação das decisões dos tribunais. A norma, como se sabe, remete hoje para lei ordinária a definição dos casos e termos em que a fundamentação das decisões dos tribunais é obrigatória. Os dois casos que o PCP elenca no segmento final da norma proposta são aqueles em que, paradigmaticamente, a fundamentação é indispensável. Pode conceber-se que, em casos em que o Tribunal Constitucional decida pelo pedido, a lei venha a estatuir essa obrigação, até porque isso pode ser relevante em termos de recurso pela entidade inconformada. Porém, em termos constitucionais, pareceu-nos que a situação a realçar era aquela em que quem se dirige ao tribunal para obter uma decisão obtém uma decisão contrária ao próprio pedido que formulou.

Também nos casos de imposição de penas ou sanções a necessidade de conhecer os fundamentos é fundamental ou relevante para o exercício de outros direitos, como seja o de recurso.

A segunda proposta respeita à publicidade das decisões dos tribunais. A obrigação da notificação dos interessados parece um aspecto extremamente relevante, independentemente da categoria dos tribunais a que nos estejamos a referir. Não pode, no entanto, deixar de se salvaguardar uma remissão para a lei ordinária, dada a multiplicidade de decisões, as diversidades de circunstâncias e o facto de, além da notificação, poder haver outras formas de comunicação aos interessados e de publicidade. De facto, tanto a lei processual civil, como a processual penal e, evidentemente, a de processo administrativo prevêem várias formas de publicidade. É óbvio que as decisões dos tribunais a que nos referimos são as de todos os tribunais, não apenas dos judiciais, o que já resulta dos termos que acabei de utilizar. Aliás, isto pode ter algum interesse em relação a certas categorias de tribunais em que este dever de publicidade está menos bem acautelado na nossa lei ordinária.

A terceira proposta carece de uma leitura atenta - não direi com cum grano salis -, porque existem algumas dificuldades óbvias (o Sr. Deputado Almeida Santos teve ocasião de as enunciar). A nossa preocupação é a de salvaguardar o cumprimento das decisões

dos tribunais. É evidente que o n.° 2 do artigo 210.° da Constituição já estabelece que "as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades".

Quanto a este articulado tem-se em vista, com a nossa proposta, introduzir ou acopular uma componente sancionatória, que é particularmente relevante em relação a certas categorias de tribunais. Penso, designadamente, na situação verdadeiramente anómala que se tem registado em relação a decisões de tribunais administrativos, incluindo as oriundas do Supremo Tribunal Administrativo. Podemos ulteriormente explicitar, e, de certa maneira, já tivemos ocasião de debater, atrás, algumas das implicações dessa situação a que estou agora a fazer referência. Em todo o caso, a norma, tal qual ela se encontra, tem valor geral e aplica-se a todas as sentenças, tribunais e para todos os efeitos. É evidente que aludimos apenas às formas de incumprimento ou de oposição ilegítima ou contrária à lei, embora tenha algum pudor ou repugnância em fazer essa destrinça nesses termos, uma vez que situar formas de oposição legítima, quase com carácter fisiológico, num preceito deste tipo seria um pouco contrariar a ênfase que se pretende dar à necessidade de cumprir as sentenças dos tribunais. Talvez se possa encontrar uma forma qualquer de qualificação destas formas de oposição situadas no terreno contrário à lei e à Constituição. Em todo o caso, a preocupação que está subjacente à nossa proposta é tão-só a de abranger esse tipo de situações.

Quanto às sentenças, trata-se das sentenças que tenham força obrigatória, isto é, que estejam em condições de terem de ser executadas. Quanto às demais, a questão nem se coloca (não se pode praticar um crime em relação a uma obrigação inexistente).

Quanto a crimes de responsabilidade, situação prevista na nossa proposta de aditamento de um novo n.° 4 ao artigo 210.°, há que ter em conta que estes últimos apenas abrangem determinadas autoridades e, seguramente, não outras. Relativamente às outras a questão coloca-se em termos diferentes e não abrangidos por esta norma. Já estão, de qualquer das formas, abrangidos pelo n.° 2 do artigo 210.° na sua redacção actual e a lei penal prevê determinadas formas de sancionamento a quem incorra em oposição ilegítima ao incumprimento de sentenças de tribunais.

O novo n.° 5 do artigo 210.°, na redacção dada pela nossa proposta de aditamento, visa acentuar um aspecto que não é inovador na realidade da lei ordinária, embora seja lamentavelmente um caso clamoroso, na ordem jurídica portuguesa e na história recente do nosso direito, de uma lei com um grau de aplicação igual a zero. Como o Sr. Deputado Almeida Santos se lembrará em particular, uma vez que é um dos responsáveis pelo Decreto-Lei n.° 256-A/77, a lei ordinária prevê que nos orçamentos das pessoas colectivas de direito público tenha de ser inscrita uma verba destinada ao pagamento de encargos resultantes de sentenças de quaisquer tribunais.

Na verdade, esta é uma das normas mais meritórias do diploma e uma norma que chocantemente nunca teve cumprimento. Não tenho, de facto, conhecimento de nenhum orçamento de nenhuma entidade pública que, a este título legalmente obrigatório, inclua verbas para a finalidade de resposta a encargos decor-

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rentes de litigação, o que é verdadeiramente extraordinário. É evidente que os encargos por força deste resultado têm de ser satisfeitos e pagos por alguma verba do Orçamento. Entretanto, perante uma rubrica com essa específica menção ou finalidade, não é prevista sequer na própria lei de enquadramento.

A Constituição não pode ser o muro de lamentações do incumprimento da lei ordinária, mas deve ser a forma de solidificação, de dignificação e de corroboração de normas justas e correctas que estão de acordo com as mais altas exigências de todas as éticas possíveis, incluindo a financeira.

Na realidade, normas deste tipo devem ter dignidade constitucional. É esse o sentido da nossa proposta e bem nos parece que é uma das pedras-de-toque para que a execução das sentenças dos tribunais possa ser uma realidade. De facto, se as entidades que obtêm provimento ou ganho de causa nos tribunais não têm facilitada, no terreno da realidade financeira, a satisfação dos encargos decorrentes dessa vitória, seria de Pirro e altamente problemática essa vitória.

Eis, Sr. Presidente, Srs. Deputados, as razões que nos levaram a propor estas quatro claras benfeitorias à Constituição, por forma a revigorar as condições em que as decisões dos tribunais são conhecidas e executadas em todas as dimensões, para que a justiça possa ser administrada em nome do povo, realmente, e não apenas em palavras.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, suponho que a proposta relativa ao artigo 210.°, apresentada pelo PCP, está devidamente esclarecida.

Entretanto, tem ainda a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Julgo, Sr. Presidente, que a proposta de alteração do artigo 210.° da autoria do CDS carece de discussão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, pretendo apenas fazer uma primeira tomada de posição relativamente à proposta do PCP, por uma questão de coerência metodológica até ao momento perfilhada por nós. De facto, não nos pronunciámos sobre propostas que não foram apresentadas, nem justificadas, pois não há nesta sede quem as defenda. De todo o modo, pensamos que nunca uma proposta como a do CDS poderia ser aprovada nos termos absolutos em que está redigida. Como VV. Exas. sabem, há um princípio fundamental de direito, nomeadamente do direito penal, segundo o qual a lei nova que descriminaliza vale mesmo contra o caso julgado. Ou seja: se uma lei nova vem estatuir que não é crime aquilo que o era, mesmo que haja caso julgado em sentido diverso, a lei nova prevalece sobre este último.

O Sr. Presidente: - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas eles estavam a pensar no processo civil e administrativo!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, Sr. Presidente. Mas o que é referido na proposta de aditamento de um n.° 4 ao artigo 210.°, apresentada pelo CDS, é o caso julgado. Deste modo, não podemos aprovar tal proposta.

Quanto às propostas do PCP relativas ao artigo 210.°, devo dizer que os objectivos visados, em geral, nos parecem razoáveis e aceitáveis. Há, porém, normas que devem contar com a nossa oposição.

Designadamente, pensamos que o n.° 4 proposto pelo PCP não deve ser aceite. Isto porque a Constituição não deve ser um código penal, quando é certo que o que consta dessa norma é um artigo do Código Penal. Em termos constitucionais, o que cumpre declarar é que o dever de acatar as decisões dos tribunais vincula todas as autoridades públicas e os particulares. Só que isso já está referido no actual n.° 2 do artigo 210.° Caso contrário, esta lógica levar-nos-ia muito longe. Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. já viu onde nos levaria esse n.° 4 do artigo 210.° proposto pelo seu partido? A aceitar isto nesta sede, sentir-me-ia mal se não fizesse o mesmo no artigo 24.°, cuja epígrafe é "Direito à vida"; e aí dissesse que matar outrem é crime de homicídio. Nessa lógica, assim como é declarado o valor do respeito que nos merecem as decisões dos tribunais, não compete à Constituição estar a criminalizar a respectiva conduta prevaricadora. Caso contrário, teríamos de levar esta lógica tão longe que criminalizaríamos todas as condutas que lesassem muitos ou a generalidade dos valores que constituem a constelação de valores da lei fundamental. Por isso, não podemos aceitar uma norma como a do n.° 4 do artigo 210.° proposto pelo PCP. Repito: não é esta a sede própria, nem é função da Constituição fazer isso.

Em relação ao novo n.° 5 proposto pelo PCP, pensamos igualmente que não é a Constituição que deve referir que estamos perante um valor fundamental. De facto, as pessoas colectivas de direito público devem pagar as despesas resultantes de sentenças de quaisquer tribunais. Trata-se antes de uma questão a ser resolvida pela lei ordinária (de resto, ela própria já o refere). Não nos parece, pois, que a Constituição deva, ela própria, conter tais normas.

Dúvidas maiores - embora a nossa inclinação seja para não dar o nosso apoio - são as suscitadas pelas duas outras alterações propostas. Designadamente, quanto à primeira, a formulação do actual n.° 1 do artigo 210.° relativo à fundamentação das decisões judiciais resulta da anterior revisão constitucional. Em 1982 deu-se um passo significativo nesta matéria e cometeu-se à lei o ónus de plasmar o modus faciendi da fundamentação. Alguns passos estão a ser dados nesse sentido. Penso, pois, que para já, nesta fase e em termos de lei fundamental, deve ficar apenas o sinal sem ulteriores especificações, sendo certo que a fundamentação de uma decisão que imponha uma pena, além de ser natural, já consta da lei penal e processual penal. Não me parece, porém, que se deva especificar a decisão que reaja contra o pedido e se deva privilegiar a fundamentação de tal decisão em relação aquela que decida a favor do pedido. De facto, a existência do pedido implica duas partes: uma, que quer fazer valer uma determinada pretensão, e outra, contra a qual é feita valer tal pretensão. Tão justa pode ser a posição de quem apresenta uma pretensão como a daquele que se

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vê agredido pelo pedido. Por que razão se deve conceder o privilégio à parte que apresenta o pedido? Se contra determinada pessoa é dirigida uma pretensão sem qualquer fundamento, por que razão a posição dessa pessoa há-de ser discriminada negativamente em relação à do autor? Das duas, uma: ou dizemos, conforme está previsto na Constituição, que as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei ou este privilégio concedido à parte que apresenta o pedido não se justifica. Já em relação às penas o caso é diferente: elas já são fundamentadas.

Portanto, pensamos que a solução actual da Constituição é suficiente. Talvez em ulteriores passos se devam avançar, a nível da própria Constituição, alguns ganhos nesta matéria, quando estiverem relativamente consolidados. Aliás, ainda há muito a fazer em matéria de fundamentação.

Quanto à publicidade das decisões dos tribunais, diz o n.° 1-A proposto pelo PCP que tais decisões "são sempre tornadas públicas [...]". Perguntaria, então, se esta proposta se refere a todas as decisões, mesmo as interlocutor ias. Temos, de facto, algumas dúvidas em relação à necessidade de uma norma deste tipo.

Procurei na minha exposição, pelo menos, graduar a nossa oposição às propostas do PCP.

Em síntese, não nos parece serem de aprovar os n.ºs 4 e 5 do artigo 210.° proposto pelo PCP. Talvez se possa afinar alguma coisa no n.° l, no sentido de privilegiar a fundamentação das condenações penais, o que constitui, aliás, o corolório máximo do princípio de que ninguém dever ser punido sem fundamentação, que hoje já é prática corrente. Não nos parece também que o n.° 1-A do artigo 210.° deva ser consagrado, pelo menos com esta amplitude.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, se VV. Exas. me permitissem, gostaria só de acrescentar que me dá a sensação que esta ideia da fundamentação das decisões judiciais com a largueza que está explicitada no projecto de revisão constitucional do PCP parece uma ideia emprestada ao processo administrativo gracioso. Daí se percebe que seja em relação ao pedido que o problema se coloque em termos de fundamentação, porque o pedido nessa matéria é do particular ou do administrado. Não é assim, porém, no processo civil ou no penal. Penso que as considerações do Sr. Deputado Costa Andrade são inteiramente justificadas na minha óptica.

Quero apenas acrescentar uma pequeníssima observação quanto ao novo n.° 5, proposto pelo PCP, ao artigo 210.° Fui realmente um dos autores materiais do Decreto-Lei n.° 256-A/77. Nessa altura preocupámo-nos muito com o problema de garantir que a execução das sentenças, em particular das administrativas, fosse cumprida quando houvesse lugar a indemnizações. No entanto, quando discutimos o problema a nossa ideia não era tanto a de garantir que obrigatoriamente houvesse uma rubrica em todos os orçamentos das pessoas colectivas. Quando, após a sentença de condenação, não existisse forma de satisfazer o julgado e de a cumprir, então, sim, consoante as hipóteses, obrigatoriamente inscrever-se-ia, quer no orçamento ordinário, quer no orçamento extraordinário, essa verba.

Em termos de orçamentação, existe alguma dificuldade em consagrar uma rubrica quanto a matérias futuras e incertas, uma vez que não se faz a mínima ideia de quais as verbas que estão em jogo. Nem tudo são companhias seguradoras.

Portanto, compreendo o intuito nobre que levou o PCP a incluir este preceito, mas afigura-se-me que o princípio basilar é o do cumprimento fiel e atempado das sentenças judiciais e não propriamente o modus faciendi, embora esta seja a fórmula correcta de o realizar, sobretudo quando, na altura, não há verba apropriada. Não concordo é com essa ideia de que todas as pessoas têm de ter, necessariamente, uma despesa. Penso, por exemplo, no caso das juntas de freguesia e de estas terem no seu orçamento uma despesa para problemas de contencioso. Normalmente, isso não tem sentido. Na maior parte das juntas de freguesia portuguesas nunca houve nem haverá despesas desse tipo.

É uma questão puramente técnica, mas penso que não seria curial inscrever esta norma, com esta precisão técnico-orçamental, na Constituição.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que estou de acordo com as observações feitas sobre a proposta do CDS. Entendo também que a norma colide com outras disposições constitucionais, cuja alteração neste ponto seria totalmente impensável. É o caso, por exemplo, da matéria penal. Lamentavelmente, o nosso Código Penal tem uma norma que colide precisamente com o preceito a que o Sr. Deputado Costa Andrade fez referência e que é o que, contrariando o direito de beneficiar de disposição mais favorável, proíbe, em certos casos, a aplicação de certas leis favoráveis a casos julgados,...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): -... o que é bastante discutível e, porventura, inconstitucional. No entanto, a questão não está colocada nesta sede e nem a temos de discutir...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O Sr. Deputado tem razão!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse é um aspecto que, de alguma forma, poderia ser sublinhado tragicamente com uma norma deste tipo, que faz prevalecer, de uma maneira excessiva, a justiça formal em relação à justiça material e até a disposição nova favorável em relação a uma disposição anterior desfavorável. Isto sem prejuízo de tudo o que se possa dizer sobre o caso julgado. E, como sabe, a discussão do que seja o caso julgado é extremamente complicada.

Portanto, quanto à proposta do CDS digo "não".

Em relação às observações que os Srs. Deputados fizeram eu também gostaria de graduar as respostas. Creio que avançar um pouco mais na definição do que seja o dever da fundamentação poderia ter utilidade. Como o Sr. Presidente sublinhou, é evidente que há uma diferença radical entre as actividades procedimentais administrativas e o processo tal qual decorrer perante os tribunais, designadamente quanto às formas

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de impulso e quanto aos próprios interessados. No entanto, o regime constitucional nesse ponto é um tanto absurdo. É absurdo que seja literalmente mais exigente a obrigação da fundamentação em relação à actividade administrativa do que o é em relação à actividade jurisdicional. Historicamente, foi constitucionalmente assim.

Na primeira revisão constitucional corrigiu-se um pouco essa inclinação, essa desigualdade. Pensamos que se deveria aproveitar para a corrigir um pouco mais. Pensámos nas duas situações típicas em que essa correcção poderia ter interesse. É claro que é objectável que se está a conceder um privilégio ao autor, mas é evidente que essas são situações típicas que não prejudicam que a lei contemple outras. Repare-se: aqui está apenas a fazer-se uma evidenciação constitucional, que não prejudica em nada as elencagens constantes da lei ordinária, que pode mandar fundamentar o que quiser. É isso que, de resto, ocorre. Lembro, por exemplo, que o Código de Processo Penal, ao definir os requisitos da sentença, estabelece que aquela começa com o relatório, que contém "isto" e "aquilo", que ao relatório se segue a fundamentação, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados, de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, etc.. É óbvio! Na altura isto foi extremamente polémico. Aliás, se não se atalhar irá continuar a sê-lo. Em todo o caso, não é disso que se trata, mas apenas de dar um pequeno passo em frente.

Em relação à questão da notificação aos interessados, notei da parte dos Srs. Deputados uma maior benevolência. É evidente que o passo dado aí parece quase evidência.

Relativamente à questão do incumprimento, gostaria de dizer o seguinte: os argumentos sobre a criminalização, sobre o Código Penal constitucional e outros poderão ser relevantes, na medida em que se desatende ou desvalorize a importância de certas situações-limite. Da parte de qualquer autoridade é inconcebível o afrontamento institucional com os tribunais. No entanto, todos sabemos que, sendo inconcebível, é possível e até frequente. Sendo frequente, foi particularmente escandaloso em determinadas áreas. Portanto, a resposta pode ser a valorização constitucional de uma determinada realidade, que já é valorizada pelo direito ordinário. É essa a ideia. Não é uma coisa de bradar aos céus, não é uma coisa de rasgar as vestes. A anomalia é que é tão anómala que justifica ou pode levar a que se considere justificada a elevação constitucional de alguma coisa que é em si mesma relevante, respeitável e digna de acatamento, embora, por demais, violada na prática.

Foi isto que nos levou a justificar na proposta não a criminalização mas a alusão à criação de uma cláusula constitucional que aponta para uma qualificação como crime de responsabilidade. Digamos, Srs. Deputados, que já o é. Portanto, não se trata aqui de inovar em absoluto. Trata-se de uma inovação relativa, e apenas disso.

Em relação às objecções feitas quanto aos orçamentos das pessoas colectivas de direito público gostaria de dizer o seguinte: é evidente que a norma pode ser reformulada no sentido de ser menos indiferenciadora de situações que podem ser diferentes. Como é evidente,

pode cumprir-se a mesma finalidade através da alusão à necessidade de a lei estabelecer garantias adequadas, no plano financeiro, da execução das sentenças de quaisquer tribunais. Aí ficaria sinalizada uma cautela, uma encomenda ao legislador ordinário a fazer, a executar de formas adequadas e diferenciadas em função da natureza das pessoas colectivas de direito público, e, logo, da sua vulnerabilidade em relação a encargos deste tipo. Esse sinal constitucional seria certamente positivo. É que não conheço tratadista que não assinale o actual absurdo, a aberração, seja pai, padrasto, filiado ou, de alguma forma, aparentado com a norma - e peço desculpa de ter omitido a paternidade do Sr. Presidente - ...

O Sr. Presidente: - Sou aparentado, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Pela minha parte, reclamo a qualidade de admirador da norma. No entanto, a nossa maior admiração seria a de que ela fosse cumprida. Aliás, era para isso que queríamos contribuir.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de fazer uma pequena clarificação em relação a uma parte da matéria em discussão, pois penso que a nossa posição não ficou clara. Refiro-me ao n.° 4 da proposta do PCP.

Em primeiro lugar, é óbvio que estamos de acordo com a obediência, com o respeito pelas decisões dos tribunais, que é um valor fundamental do Estado de direito. Em segundo lugar, é óbvio que o desrespeito pelas decisões dos tribunais deve ser penalizado. Tratando-se de um titular de cargo político, tal acto deve ser qualificado como crime de responsabilidade. Tudo isto é evidente!

O que, do ponto de vista do equilíbrio do texto constitucional, já é incompreensível é que isto seja dito numa norma de direito constitucional. O Sr. Deputado José Magalhães argumenta -e bem- dizendo que se trata aqui de um valor fundamental. Argumentamos nós que a Constituição seria completamente diferente se em relação a cada valor que consideramos fundamental prevíssemos imediatamente, a par da sua definição, a punição da conduta que o lesasse. Valor muito maior do que o respeito pelas decisões dos tribunais é, do nosso ponto de vista, o respeito que nos merece a vida humana. Ora: se todos os dias há homicídios, vamos dizer na Constituição, a par do artigo que consagra a inviolabilidde da vida humana, que tirar a vida a outrem constitui crime de homicídio e é punível? É essa uma função da Constituição? Se não é - e parece-me que não -, então a norma do Partido Comunista não tem razão de ser. Estamos inteiramente de acordo com a existência da norma (JÁ é, e deve ser, assim), mas na lei própria, na lei dos crimes de responsabilidade, como, aliás, acontece em relação às leis que prevêem e punem todos os outros crimes.

De resto, a Constituição não diz em nenhum artigo que "esta" ou "aquela" conduta constitui crime. Diz em algumas normas que as actividades contra certo valor fundamental podem, ou devem, ser objecto de sanções criminais. É o caso, por exemplo, das activi-

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dades delituosas contra a economia. A Constituição não diz que quem fizer "isto" ou "aquilo" comete um crime. Diz apenas que tais actividades serão regulamentadas na lei ordinária, o que é completamente diferente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, supunho que podemos passar à análise do artigo 211.°

O Sr. Costa Andrade (PSD): - E a moção de censura construtiva, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Em relação a essa matéria não sei o que é que os Srs. Deputados acordaram.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, a discussão dessa matéria ficou adiada devido à sua ausência. Todos concordámos que essa matéria seria discutida quando o Sr. Presidente estivesse presente nesta Comissão.

O Sr. Presidente: - Podemos, então, passar à análise da moção de censura construtiva?

Pausa.

Como não há objecções, vamos então passar à análise dessa matéria, ou seja, ao artigo 197.°, com referência também ao artigo 190.°

Vozes.

O Sr. Presidente: - Em relação a este artigo 197.° existe uma proposta do Partido Socialista.

Antes de mais, gostaria de agradecer a gentileza que quiseram ter para comigo ao adiar a discussão desta matéria.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Por amor de Deus, Sr. Presidente!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, antes de chegar à discussão na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, a temática da moção de censura construtiva já foi ela própria objecto de intenso debate na sociedade e na vida pública, tendo demonstrado que se trata de uma proposta que suscita sentimentos contraditórios - como, aliás, naturalmente, suscitaria sempre qualquer proposta inovatória neste domínio de organização do poder político -, cujas consequências práticas não são susceptíveis de serem demonstradas ex professo, mas só apenas através da sua experimentação concreta, passando pelo crivo da realidade política e institucional de um dado país. Esses sentimentos contraditórios não são apenas, naturalmente, apanágio da nossa vida pública. Foram esses mesmos sentimentos contraditórios que, em boa medida, estiveram patentes noutros países onde o mesmo mecanismo político-institucional foi consagrado e noutros, inclusivamente, onde, tendo sido proposto, não chegou a ser adoptado. E estou convencido que, tal como no passado e no presente, também no futuro,

venha ou não a ser consagrada, continuará a haver diferentes sensibilidades e estados de espírito subjectivos sobre a bondade da proposta da moção de censura construtiva.

Em defesa dela direi, em primeiro lugar, que não é uma proposta inovadora na história constitucional portuguesa. A primeira voz que se ergueu em sua defesa foi a do Dr. Francisco Sá Carneiro no seu projecto de revisão constitucional apresentado, a título pessoal, "Uma Constituição para os anos 80", onde, em termos de efectivação da responsabilidade política do Governo face ao Parlamento, mantinha o sistema originário da Constituição de 1976 das duas moções de censura, ambas sujeitas a uma maioria absoluta de aprovação, mas introduzia o sistema da moção de censura construtiva na votação da segunda moção, porque só esta, de facto, produziria a queda do Governo.

De entre os projectos de revisão da Constituição apresentados em 1980-1982 era o projecto da Aliança Democrática, que juntava então em conúbio governativo o PSD e o CDS, que acolhia o mecanismo da moção de censura construtiva, embora o fizesse de forma mitigada, sob a modalidade de moção de censura construtiva facultativa, ou seja, a votação da moção de censura impunha a concordância com o nome do candidato a primeiro-ministro dela constante, embora o Presidente da República não estivesse obrigado a nomear primeiro-ministro o nome que constasse dessa moção de censura construtiva.

Em 1985 o Partido Socialista apresentou-se às eleições defendendo a introdução na Constituição da moção de censura construtiva, posição que reeditou em 1987 e que consta do seu projecto de revisão da Constituição.

O próprio candidato à Presidência da República, Dr. Mário Soares, foi arauto da moção de censura construtiva na sua candidatura à presidência em 1985 e 1986.

O tema não é, pois, novo e, nesse sentido, poderemos considerar que o facto de hoje estarmos a debater, por iniciativa do PS, uma proposta de introdução na Constituição do mecanismo em causa resulta em boa parte deste percurso que acabei de sintetizar.

A moção de censura construtiva é um instrumento de efectivação da responsabilidade política do Governo perante o Parlamento. O significado da sua introdução não pode ser visto sem que se ponderem todas as implicações que daí decorrem para o próprio sistema de governo semipresidencial vigente em Portugal e para o tipo específico de dependência do executivo face ao legislativo.

O debate da moção de censura construtiva pode ser balizado pelas posições assumidas no final dos anos 20 e nos princípios dos anos 30 pelos principais teóricos deste mecanismo de efectivação da responsabilidade política, surgidos, sobretudo, na Alemanha de Weimar. Autores como Frankel, Schmidt e Rusto tiveram ocasião de elaborar, conceptualmente, o mecanismo da moção de censura construtiva, que viria a ter acolhimento constitucional, pela primeira vez, na lei fundamental de Bona de 1949 e, mais recentemente, na Constituição Espanhola de 1978, neste ponto, aliás, claramente influenciada pela Grundgesetz.

Não é de esperar, aliás, que o debate em Portugal traga grandes novidades, salvo, naturalmente, naquilo que diz especificamente respeito à compatibilização

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deste mecanismo de efectivação da responsabilidade política do Governo com a característica semipresiden-cial do sistema de governo vigente, na medida em que quer na República Federal da Alemanha quer em Espanha o mecanismo vigora em sistemas de parlamentarismo racionalizado. Com efeito, há que reconhecer que não encontramos a moção de censura construtiva em nenhum outro país onde é comummente aceite pela doutrina existirem regimes de matriz semipresidencial. Se quisermos ir até mais longe, a origem histórica da moção de censura construtiva surge por antonomásia ao próprio regime semipresidencial vigente na República de Weimar.

A moção de censura construtiva participa dos condicionalismos a que se encontra sujeita qualquer fórmula de censura ao Governo, digamos para simplificar "não construtiva" nos sistemas de base parlamentar, sejam os sistemas de parlamentarismo racionalizado, sejam sistemas semipresidenciais.

A noção de responsabilidade política é característica dos regimes políticos de base parlamentar. Num modelo teórico, a efectivação da responsabilidade política visa sublinhar essencialmente a inadequação da acção do Governo face à orientação política global do Estado, expressa pela população nas eleições e plasmada numa dada composição concreta do Parlamento. Daí decorrerá, caso a crítica da acção governativa mereça vencimento em sede parlamentar, a ruptura da relação de confiança entre o Parlamento e o Governo e a demissão do Executivo.

O modelo clássico da censura votada nos parlamentos aos governos tem de ser forçosamente relativizado pela afirmação do chamado parlamentarismo maioritário. O Parlamento é, na verdade, a expressão da vontade da maioria, tendendo naturalmente a maioria que apoia o governo a desvitalizar os mecanismos de controle parlamentar da acção do governo, e só em casos-limite, designadamente em casos de ruptura das coligações de apoio a um governo, ou até de ruptura dentro de um partido de governo, poderá recorrer ao mecanismo da censura, construtiva ou não construtiva, para provocar a queda de um governo. Neste contexto, no parlamentarismo maioritário, o controle parlamentar sobre a acção do governo resulta essencialmente, por um lado, do controle exercido pela própria maioria parlamentar de apoio ao governo, que é um controle interno e que, naturalmente, não se exprime por mecanismos e institutos de controle constitucionalmente consagrados, e, por outro lado, do controle da oposição, que se socorre dos mecanismos constitucionais e regimentais que lhe são facultados, cuja finalidade essencial é a divulgação pública das críticas que a oposição faz ao governo através de interpelações, de sessões de perguntas ao governo, de comissões parlamentares de inquérito, sem que as oposições minoritárias possam, no exercício do seu direito de oposição, ter a expectativa real de conferirem à sua actuação uma sequência sancionatória que provoque o derrube do Governo. O parlamentarismo maioritário, em todos os quadrantes geopolíticos, tem, de facto, limitado substancialmente o recurso ao uso das moções de censura em geral e ainda mais raros são os casos em que a moção de censura tem vencimento, até porque, no plano dos textos constitucionais, é generalizada a exigência de maiorias absolutas para aprovação das moções de censura, o que, à partida, dificulta a vitória das intenções censurastes, que só são realmente efectiváveis perante governos minoritários ou em caso de coligações maioritárias em rotura interna. E mesmo neste último caso, frequentemente visa-se sobretudo abrir espaço em última instância para a própria dissolução do parlamento.

Face a este panorama, são dois os argumentos que, tradicionalmente, são avançados para defender a moção de censura construtiva: por um lado, o da garantia e reforço da estabilidade governativa e, por outro lado, o da desarticulação ou desautorização, em sede constitucional, de crises artificiais, fundadas em maiorias meramente negativas que põem em causa a estabilidade governativa.

Ora, o valor da estabilidade governativa é uma preocupação central das sociedades modernas, designadamente em regime de sistema plur i partidário, sem partido dominante, como é, em meu entender, o sistema partidário português. De facto, o resultado das eleições de 19 de Julho de 1987, que assenta em grande parte numa dinâmica de voto útil e na hipervalorização, pelo conjunto do eleitorado, do valor da estabilidade governativa não altera a matriz essencial do sistema de governo, que continua a ser um sistema pluripartidário sem que um só partido possa, em termos duradouros, aspirar ao usufruto de uma maioria parlamentar estável. Em qualquer sistema parlamentar a estabilidade governativa assegura-se, normalmente, através de soluções de governo com apoio parlamentar maioritário, sejam elas monopartidárias ou sejam elas de coligação interpartidária. Â flexibilidade eleitoral verificada em Outubro de 1985 e Julho de 1987 demonstra que o sistema partidário português pode encerrar em si mesmo virtualidades de garantir a alternância de maiorias monopartidárias polarizadas entre partidos que disputem o centro político (os dois maiores partidos da sociedade portuguesa), mas sempre na base da capitalização do voto útil. Esse é, naturalmente, o objectivo fundamental da luta política e, nesse sentido, não haverá descrença quanto à capacidade do eleitorado português formar maiorias monopartidárias mas sim a demonstração do efeito útil dessas eleições a que acabei de fazer referência.

No entanto, há que conceber, pelo menos no campo conceptual, que pode não ser forçosamente assim, ou seja, que a única alternância democrática possa de novo voltar a ser entre governos maioritários de coligação e governos minoritários de um só partido, o que recolocaria, inevitavelmente, na ordem do dia a questão da instabilidade governamental. Neste contexto a moção de censura construtiva é, em sede parlamentar, um instrumento de protecção de governos minoritários contra a formação de maiorias negativas na Assembleia da República, contribuindo nesse preciso contexto para a estabilidade governativa e tolhendo o passo a crises artificiais, isto é, a crises políticas baseadas em maiorias heterogéneas que não comportam em si mesmas qualquer sentido útil de construção de uma alternativa de poder.

Há quem contraponha a estas duas vantagens da moção de censura construtiva três tipos de inconvenientes. O primeiro é o da escassa incidência prática que o mecanismo tem, facto que, sublinhe-se, não é apanágio exclusivo da moção de censura construtiva. O que se encontra em decadência no parlamentarismo maio-

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ritário é o mecanismo da censura ele próprio e não apenas o da censura construtiva ou da censura não construtiva. Demonstra-o o exemplo da República Federal da Alemanha, em que as crises nunca foram resolvidas através do sistema da moção de censura construtiva tal como, no quadrante contrário, o demonstra o caso italiano, onde as sucessivas crises governamentais nunca resultam da votação da censura a um governo no parlamento, seja ela construtiva ou não construtiva - como se sabe, na Itália, o mecanismo da censura é não construtivo.

Há quem assaque também à moção de censura construtiva o facto de ela propiciar a confusão entre duas figuras parlamentares de natureza distinta, isto é, a investidura do governo e a censura. Mas mesmo na moção de censura construtiva é forçoso reconhecer que a investidura e a censura são momentos distintos de uma mesma realidade: a relação de confiança entre o parlamento e o governo. A investidura é um acto constitutivo dessa relação e a censura um acto resolutivo dessa mesma relação. A moção de censura construtiva limita-se a sublinhar que a resolução de uma relação de confiança deve dar origem à constituição de uma nova relação de confiança em sede parlamentar, antes de se abrir a via de dissolução do parlamento, que é, naturalmente, a via última e verdadeiramente decisiva para resolução das crises governativas.

Em último lugar, critica-se a moção de censura construtiva porque, em virtude de ter ínsita a obrigatoriedade de indicação de um primeiro-ministro que disfrute de um apoio maioritário, essa obrigatoriedade poria em causa o pluralismo da oposição, característico dos sistemas democráticos. Contudo, a moção de censura construtiva não limita a expressão de diferentes razões de censura a um governo em funções; o que a moção de censura construtiva põe em relevo é a imprescindível função homogeneizadora das alternativas a constituir. E só pode opor-se a essa função homogeneizadora da censura construtiva quem assuma uma posição de exterioridade ao sistema político e entenda que a censura meramente destrutiva rende dividendos políticos e partidários fora das regras e da própria lógica do funcionamento do sistema de governo, o qual acolhe em lugar cimeiro o princípio da estatabilidade governativa, ou quem receie as influências do mecanismo da censura construtiva sobre a concreta conformação do sistema partidário e o diferente tipo de relacionamento das várias forças partidárias com os possíveis centros de poder num sistema político como o nosso.

Não pretendo esconder que, conceptualmente, as crises governativas também podem conter aspectos positivos e não apenas meramente destrutivos. Mas uma valoração realista dos aspectos positivos que as crises governativas podem encerrar, em termos de conformação da posição dos partidos políticos seus protagonistas, não deve sobrelevar do reconhecimento da justa primazia da estabilidade político-governativa, valor cimeiro da motivação do eleitorado em sucessivos actos eleitorais, sob pena de uma acelerada italianização da nossa vida política.

Sr. Presidente, em democracia parlamentar a regra é a constituição de governos maioritários - é esse o sentido do combate político-partidário e a sua própria finalidade. Mas a natureza do sistema partidário e o próprio sistema eleitoral proporcional podem, através da dispersão de votos e da pulverização de formações

partidárias, inviabilizar a existência de maiorias parlamentares e justificar a necessidade de recorrer a governos minoritários, até porque a Constitução proíbe a dissolução da Assembleia da República nos seis meses subsequentes à realização de eleições, concebendo-se este período de seis meses como um período mínimo em que um dado parlamento é chamado a provar se consegue ou não gerar governos, sejam eles governos maioritários ou minoritários, antes de conferir ao Presidente da República a faculdade de recorrer à dissolução do parlamento.

É óbvio que o PS reconhece que o recurso a governos minoritários é excepcional no modelo constitucional, mas é legítimo; e uma vez que é considerado como consentido pela Constituição, nada justifica que não se garanta a esses governos minoritários alguma protecção político-institucional que lhes poderia advir da moção de censura construtiva. Assim, face à necessidade excepcional de recorrer a governos minoritários, a moção de censura construtiva aparece como uma válvula de segurança, e apenas como uma válvula de segurança, ou, para utilizar uma nomenclatura importada do debate na República Federal da Alemanha, como uma norma de reserva constitucional para situações de crise ou de incapacidade de formação de governos maioritários, como um instrumento institucional com assento constitucional promotor ou, no mínimo, indutor da estabilidade governativa em situações excepcionais, em que o sistema tem de recorrer a governos minoritários por horror ao vazio.

Não vou alongar-me em considerações de outro jaez ou de mera inspiração conjunturalista - essas, naturalmente, decorrerão com naturalidade das críticas que os Srs. Deputados irão decerto fazer à proposta do PS. Assim, o último apontamento que gostaria de aqui deixar é o de que se torna necessário demonstrar a compatibilidade ou incompatibilidade do mecanismo da moção de censura construtiva com o sistema de governo semipresidencial. É conhecida a controvérsia, e até a dificuldade, no plano doutrinário, da definição da natureza e dos contornos essenciais de um sistema de governo semipresidencial. Detectamo-la nos próprios estudos do pai da ideia, Maurice Duverger, nas diferentes correntes doutrinárias portuguesas e nas suas oscilações ao longo do tempo quanto à caracterização do núcleo essencial do sistema de governo semipresidencial. No cerne da controvérsia situa-se, invariavelmente, o tipo de relação entre o Presidente da República e o Governo. Já assim foi quando da 1.ª revisão constitucional em 1982, altura em que a abolição do princípio da responsabilidade política do Governo perante o Presidente da República, nos artigos 193.° e 198.°, n.° 2, da Constituição, e a consagração da responsabilidade política exclusiva perante o Parlamento, nos artigos 193.° e 194.° da Constituição, levaram alguns autores a considerar que o sistema português de governo tinha, a partir daí, deixado de ser um sistema semipresidencial, em virtude da perda do poder de livre demissão do Governo pelo Presidente da República. Inclusivamente, há mesmo quem considere que nunca o sistema de governo português foi semipresidencial, nem mesmo na versão originaria da Constituição de 1976. Para quem assim o entenda e para quem naturalmente se preocupe em reconstituir o complexo de poderes presidenciais existentes na redacção originária de 1976, se encontrar na moção de censura constru-

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tiva uma diminuição de poderes do Presidente da República, sempre lhe restará a consolação de o poderem invocar, como prova da tese que já anteriormente defendiam, que o sistema de governo português não seria um verdadeiro sistema semipresidencial.

Pela minha parte tenho uma opinião diferente: a natureza semipresidencial do sistema de governo manteve-se em 1982 e subsiste mesmo com a introdução da moção de censura construtiva, considerando como critério interpretativo do tipo de relacionamento entre o Presidente da República e o Governo o complexo de poderes presidenciais compaginável com a legitimidade política que advém, para o Chefe do Estado, do facto de ser eleito por sufrágio directo e universal. A Constituição, após 1982, prefigurou o Presidente da República como um órgão de soberania detentor de um verdadeiro poder moderador, expresso nas nomeações de altos cargos, no veto político simples e qualificado, na faculdade de accionar mecanismos de fiscalização da constitucionalidade, no poder de demissão do Governo, nos casos em que tal procedimento se mostre necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas e no poder de dissolução do Parlamento, ou seja, o exercício de um função arbitral no sistema político, particularmente relevante em momentos de crise e face à incapacidade do Parlamento resolver essa crise por si próprio, em termos que assegurem a estabilidade governativa. Para citar o actual Presidente da República, os governos formam-se e caem no Parlamento, a intervenção do Presidente da República é, neste contexto, excepcional e constitui o recurso final ou de última instância nos termos do artigo 198.°, n.° 2, da Constituição. Face ao Presidente da República, a moção de censura construtiva limita-se no essencial (e numa conjuntura já de si excepcional, que é a existência de um governo minoritário) a prolongar no tempo a área de intervenção da sede parlamentar para resolução das crises governativas, conferindo aos governos minoritários uma protecção adicional, que não cede perante pretensas alternativas fundadas em maiorias negativas, mas apenas perante reais alternativas maioritárias, como tal consolidadas, o que, naturalmente, se reputa como indispensável para uma salutar alternância democrática. Não há uma verdadeira diminuição dos poderes presidenciais, mas sim, quando muito, um mero descentramento quanto ao momento em que o Presidente da República pode vir a ser chamado a intervir, perante a substituição, por iniciativa e responsabilidade parlamentar, de governos minoritários. Dir-me-ão: no fundo há diminuição dos poderes presidenciais porque a censura votada por uma maioria negativa é a expressão da vontade parlamentar maioritária de transferir, do Parlamento para o Presidente da República, a decisão sobre o desfecho da crise; com a moção de censura construtiva deixa de o ser e, nesse sentido, o Presidente da República perde capacidade de intervenção. Aparentemente assim é, mas creio que não passa de uma mera aparência. Em tais circunstâncias a censura votada por uma maioria negativa é apenas e tão-só um convite para o Presidente da República dissolver o Parlamento e convocar eleições - aí sim, o verdadeiro, grande e relevante poder do Presidente da República, que por si só justifica a sua eleição por sufrágio universal. Porque se é verdade - e eu não o contesto - que o Presidente da República está confinado a nomear Primeiro-Ministro o candidato constante da moção de censura construtiva aprovada no Parlamento, não podendo nesse caso ingerir em possíveis arranjos parlamentares que propiciassem soluções alternativas, não é menos verdade que no caso de, a seguir a eleições, não haver nenhuma maioria parlamentar clara, a margem de manobra do Presidente da República resulta acrescida, porque, aí, nessa circunstância, a censura construtiva funciona, num primeiro momento, como instrumento de protecção e de benefício da própria escolha presidencial, do candidato a Primeiro-Ministro que foi escolhido pelo Presidente. Por outras palavras, hoje a escolha, pelo Presidente da República, de um governo minoritário tem de evitar que, contra o Primeiro-Ministro por ele escolhido, se forme, na Assembleia da República, uma maioria que pode ser meramente negativa ou destrutiva. Amanhã, com a moção de censura construtiva, terá maior margem de manobra o Presidente da República, porque só se verá desautorizado pela Assembleia da República por uma maioria que recuse o seu indigitado Primeiro-Ministro, em benefício de um outro Primeiro-Ministro, em benefício de uma maioria alternativa positiva. Mas se isso acontecer é porque, em juízo final, afinal existia uma maioria parlamentar possível na Assembleia da República ou em alternativa não restará outra solução senão formar-se um governo minoritário, independentemente de qualquer maioria negativa conjuntural que se lhe oponha. Nesse caso, esse governo minoritário terá sempre de contar com o apoio, o empenho e a confiança do Presidente da República, do que resulta um reforço do seu poder face ao Governo. Em qualquer circunstância o Presidente da República não perde nunca o poder de dissolução do Parlamento, mesmo perante uma maioria parlamentar decorrente da aprovação de uma moção de censura construtiva, porque o Presidente da República pode sempre rejeitar a solução de Primeiro-Ministro que o Parlamento lhe oferece e convocar eleições legislativas que é, no fundo, o poder fundamental do Presidente da República.

Eis algumas das razões que, naturalmente sem pretensão de esgotarem a temática, nem sequer de furtarem o debate à sua componente conjuntural, arrolei em defesa de uma proposta que pretende ser, em primeiro lugar, uma ocasião, interessante no mínimo, para que os partidos se possam posicionar face à dinâmica do sistema do Governo emergente da revisão de 1982 e face aos desafios da estabilidade governativa num sistema de governo como o português.

O Sr. Presidente: - Ainda não registei outras inscrições além da minha; no entanto, queria dizer quão grato e reconhecido fiquei pela circunstância de terem tido a gentileza de esperarem que ficasse ligeiramente mais liberto dos problemas da reforma fiscal, para poder assistir à introdução do debate, feita pelo Sr. Deputado António Vitorino, nesta matéria que lhe é tão cara, da moção de censura construtiva. Na verdade foi uma boa oportunidade de ouvir uma inteligente exposição e defesa desta matéria, feita com argúcia, com capacidade de argumentação e com sólidos conhecimentos da matéria de direito constitucional e ciência política em Portugal e lá fora.

Mas permita-me que, por outro lado, diga também que esta é também uma boa oportunidade para tentarmos dilucidar, com alguma clareza, uma questão que a mim me suscita alguma dificuldade de compreensão.

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O próprio Sr. Deputado António Vitorino na sua exposição, que, repito, reputo de muito completa e brilhante, acentuou bem um ponto, que é o da marginalidade da moção de censura construtiva em relação ao problema do funcionamento do sistema político, porque disse várias vezes, e com toda a razão, que este é um dos instrumentos da panóplia do parlamentarismo racionalizado, já numa fase relativamente elaborada, diria mesmo bastante rebuscada, desse mesmo parlamentarismo para situações de crise, que habitualmente não serão as situações sadias que se vivem no funcionamento normal do sistema democrático. O que quero dizer com isto, preliminarmente, é que esta questão, a meu ver, foi demasiado empolada, na proposta do PS, face à sua real importância, a considerarmos aquilo que o próprio Sr. Deputado António Vitorino referiu ao situar o problema dentro da estrutura global do funcionamento do sistema político. E julgo que essa nota é muito importante para darmos ao problema o seu devido valor, que é algum, mas não é tão grande, nem é tão importante como aquele que parece por vezes deduzir-se das intervenções, sobretudo, dos responsáveis socialistas, quando têm falado nesta matéria. Mas admitamos que a questão tem alguma relevância.

O Sr. Deputado António Vitorino teve o cuidado de, justamente porque a sua análise foi aprofundada, referir, meticulosamente, que este problema tinha apenas nascido da maneira como a Constituição de Weimar e o sistema político em Weimar funcionaram e das dificuldades que se registaram nessa altura, e teve até oportunidade de citar, entre vários, Cari Schmitt, referindo que esses autores, que de algum modo influíram profundamente na elaboração do direito público na Alemanha, entre as duas guerras, tiveram oportunidade de escalpelizar as deficiências do sistema e, na ânsia desesperada de encontrarem fórmulas que salvassem aquilo que a história verificou ser insalvável, apresentaram determinadas soluções. Diria que esta origem histórica é muito significativa, porque quem conhece a maneira como o sistema de Weimar evoluiu, as tentativas desesperadas que grandes cultores da ciência política e do direito público fizeram para encontrarem soluções, compreende que certos aspectos do racionalismo parlamentar, ou do parlamentarismo racionalizado que aí nasceram, justamente foram marcados por essa procura ansiosa de encontrar soluções e também pelo falhanço dessas mesmas soluções. É que, como também o Sr. Deputado António Vitorino referiu, não houve nunca, na vigência da lei fundamental de Bona, da Grundgesetz, na história constitucional recente alemã, lugar à aplicação da moção de censura construtiva, isto é, quando se consignou na lei fundamental a moção de censura construtiva, a verdade é que nenhuma das crises importantes que a República Federal da Alemanha viveu, do ponto de vista político, foi resolvida, como V. Exa. muito correctamente reconheceu, pela via da moção de censura construtiva. E já agora, seja-me permitido acrescentar que, tanto quanto é do meu conhecimento, também a sua consagração na Constituição espanhola não permitiu, até agora, resolver nenhuma das dificuldades políticas pelas quais a jovem democracia espanhola passou.

Isto para dizer que não deixa de ser um pouco singular que, em função do seu nascimento e da sua não aplicação, se tenha um tão grande entusiasmo em experimentar, em Portugal, esta medida. Mas, dir-se-á, há uma razão, e V. Exa. de resto apontou-a, para explicar isso: é que Weimar tinha um sistema de partidos políticos muito diferente daquele que hoje existe na República Federal da Alemanha, estou como é evidente a pensar nos partidos democráticos, e um pouco próximo daquele que existirá em Portugal e provavelmente virá a ser o sistema a estabilizar-se no nosso país. Dado que nada disso sucedeu na República Federal da Alemanha, não há comparação possível. Acrescentar-se-á que também as coisas não se passaram assim em Espanha e também não há possibilidades de comparação. Em comentário, direi que, em primeiro lugar, não tenho essa segurança quanto à evolução do sistema partidário português que parece perfilhar o Sr. Deputado António Vitorino e os nossos amigos socialistas que compartem essa mesma ideia e que naturalmente sufragam a proposta de revisão constitucional apresentada pelo PS. Em segundo lugar, e mais importante do que isso, a questão base é que VV. Exas. reconhecem plenamente que esta moção de censura construtiva se trata de um remédio bom e desejável para uma situação de crise e que um sistema político deve gerar governos maioritários, que é, no fundo, para encontrar uma solução em condições muito difíceis, que preconizam essa ideia da moção de censura construtiva. Mas, então, porventura a resposta correcta é de tentar encontrar uma solução não na panóplia, não no armazém instrumental do parlamentarismo racionalizado, mas noutra zona. É em matéria de direito eleitoral, no domínio da forma de representação, que porventura se podem encontrar fórmulas, muito mais eficazes, muito mais aprofundadas, de resolver os problemas que V. Exa. põe. Isto é, não teria sentido pôr o problema da moção de censura construtiva, por exemplo, na Grã-Bretanha. E mesmo em relação a um sistema semipresidencial, e foi aí que V. Exa. pôs a questão, não deixa de ser interessante apontar que o sistema que mais se pode aproximar, de algum modo, desse sistema semipresidencial, e aliás foi um dos inspiradores de Duverger, que também citou, foi a França e aí, que eu saiba, as tentativas do estabelecimento, sequer, da ideia da moção de censura construtiva não passam de um artigo do Lê Monde.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Por enquanto.

O Sr. Presidente: - Por enquanto é o que existe.

Portanto, é neste quadro geral que o problema se põe e permito-me insistir que para nós é um pouco difícil atribuir-lhe uma demasiada importância face a que, para o mal que pretende resolver, parece um remédio de pequena dimensão. Se esse mal, realmente, existe em Portugal, e pode duvidar-se, pois neste momento a experiência histórica recente não abunda nesse sentido, visto ter sido possível gerar, apesar do sistema proporcional, e apesar do esquema eleitoral que temos, um governo maioritário, apoiado num partido com uma representação maioritária na Assembleia da República, que apoia um governo que tem essa estabilidade, resultante dessa maioria. Diria que nem sequer a experiência histórica, neste momento, apresenta esse aspecto como extremamente premente. Claro que V. Exa. dirá: "Mas é que a evolução futura próxima será diferente." Percebo que isso possa ser um wishfull thinking parti-

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dário, mas para assentar um tipo de raciocínio, do ponto de vista científico, falta-lhe pelo menos a comprovação histórica.

Em qualquer circunstância há um outro problema que me impressiona na argumentação expendida, que, repito, reconheço o seu brilho e o carácter aprofundado do estudo que lhe está subjacente. E ela diz respeito à ideia de que, no fundo, também há aqui um aumento dos poderes do Presidente da República, embora noutros casos haja uma diminuição, mas que, bem vistas as coisas, dentro do sistema de equilíbrio de poderes do sistema semipresidencial português ou semiparlamentar as coisas não fazem pender tanto para a Assembleia como à primeira vista pareceria. E aí também tenho dúvidas e tenho-as desde logo porque, quando V. Exa. minimiza o carácter vinculativo da moção de censura construtiva dizendo "se houver uma maioria de oposição que deite abaixo o Governo e justamente, por exigências da moção de censura construtiva, apresente um candidato a primeiro-ministro, o Presidente da República tem uma opção que é a de dissolver a Câmara", direi que do ponto de vista estritamente jurídico talvez tenha, mas do ponto de vista político é completamente diferente o significado de ter uma constituição que lhe aponta o dever de escolher aquele primeiro-ministro a não ser dissolver o Parlamento, e ter uma liberdade de tentar testar soluções possíveis e, se não as encontrar, dissolver o Parlamento. Aliás, já recentemente foi recordado por V. Exa., numa outra ocasião em que tivemos oportunidade de trocar impressões, em público, sobre esta matéria da moção de censura construtiva, o caso da tentavia de formação do governo-Crespo. E é muito curioso, não é porque houvese aí um problema típico de moção de censura, mas, quer nessa altura, quer na altura em que o governo minoritário do PSD foi derrubado na Assembleia da República, é evidente a liberdade de que o Presidente da República dispôs. As pessoas titulares do cargo, aliás, foram diferentes: num caso foi o general Ramalho Eanes e no outro foi o Dr. Mário Soares, mas ambos sentiram necessidade de fazer um juízo de apreciação e dizer "não, não, eu vou consultar o eleitorado, seria completamente diferente tendo a moção de censura construtiva funcionado".

O Sr. Almeida Santos (PS): - Foi pena!

O Sr. Presidente: - Diz o Sr. Deputado Almeida Santos, ironicamente ou talvez não, que foi pena, mas repare V. Exa. que, vendo as coisas serenamente e a uma certa distância, gostava de perguntar se para a verdadeira estabilidade do sistema político não é preferível encontrar fórmulas de resolução das crises em termos de consulta ao eleitorado do que manter artificialmente uma solução, que é, de algum modo, usando a expressão que algumas vezes foi utilizada, a meu ver injustamente, a propósito de uma outra proposta socialista, para manter por uma via de secretaria soluções que já não se têm de pé em termos de eleitorado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não é válido esse argumento, reagindo do efeito para a causa, cuidado com isso. Sabemos o que foi, não sabemos o que teria sido. Atenção!

O Sr. Presidente: - In the long run, in the long run, veremos qual é o survival dos sistemas políticos. Mas, seja como for, o que queria significar era o seguinte: acho que compreendo as razões que levaram o Dr. Sá Carneiro, em posição, do ponto de vista partidário, muito similar àquela que hoje tem o PS, a propor algo, que é uma forma de moção de censura construtiva, embora numa segunda votação. A verdade é que curiosamente, olhando a experiência histórica, o PSD, que ele ajudou a criar, a desenvolver-se e a crescer, chegou a um governo maioritário sem moção de censura construtiva. Penso que o PS não deve desesperar de chegar a um governo maioritário também sem moção de censura construtiva.

Risos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nós temos esperança.

O Sr. Presidente: - Exactamente, é uma forma democrática de reconhecer a alternância, como hipótese de trabalho...

Vozes.

O Sr. António Vitorino (PS): - Este debate sobre a moção de censura construtiva já o travei com o Sr. Deputado José Magalhães, portanto...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Desculpe a pergunta.

O Sr. António Vitorino (PS): - É que não faço tensões de ir além daquilo que já disse, em relação à resposta ao Sr. Deputado José Magalhães.

Quanto ao Sr. Deputado Rui Machete, ia só responder a três observações que V. Exa. fez, sublinhando, de novo, que estas matérias a leitura do que foi a história, tendo em linha de conta a vantagem inegável de que ela não se reescreve e não se revive, tem sempre as limitações que tem, quer como argumento a meu favor ou a favor da posição do Sr. Deputado Rui Machete.

Mas sempre direi que, quanto à questão dos poderes presidenciais, o Sr. Deputado Rui Machete introduziu uma outra dimensão da questão. Não se trata já de aquilatar a relação de troca, dentro do complexo de poderes do Presidente da República, de demitir ou não o Governo, porque digamos que, até certo ponto, o Sr. Deputado Rui Machete reconhece ou admite que, numa leitura conceptual, aquilo que o Presidente da República perde numa circunstância, ganha noutra e, em termos de relacionamento Presidente-Governo, haverá um equilíbrio no seu cômputo final. O Sr. Deputado Rui Machete introduz um argumento talvez bem mais mortífero que é o de dizer que o verdadeiro poder do Presidente da República, o poder de dissolução, é que sairá malferido pela introdução da moção de censura construtiva. Portanto, já não a mera barganha da relação Presidente-Governo, mas a questão mais nobre do poder de dissolução da Assembleia da República.

Creio que, em sistema parlamentar racionalizado, a decisão de dissolução do Parlamento é um acto que o Chefe do Estado pratica sem grande margem de discricionariedade e que resulta essencialmente de um for-

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cing ou de um pedido feito pelo primeiro-ministro em exercício. E o que o eleitorado é chamado a julgar não é tanto o acto do Chefe do Estado, mas é, essencialmente, a governação do pimeiro-ministro que se recandidata e que provocou a dissolução do Parlamento, no caso inglês, no espanhol e até no caso austríaco, embora o presidente federal tenha mais poderes do que a rainha de Inglaterra ou que o rei de Espanha, mas a prática tem demonstrado que, em virtude do relacionamento entre o sistema partidário e o Chefe do Estado, a realidade é equiparável. Onde essa situação em regra não se verifica é nos regimes semipresidenciais, em que o Chefe do Estado é eleito por sufrágio directo e universal - o caso típico do francês e do português. Também aí a comparação não pode ser levada demasiadamente longe, porque, até à experiência da coabitação, havia uma identidade política entre o Chefe do Estado e a maioria parlamentar em França. Mas no caso português, o acto de dissolução da Assembleia da República envolve sempre um risco para o Chefe do Estado, quando o pratique, que é o de saber se o eleitorado vai coonestar, através da indicação de voto que vai sair do sufrágio, a própria decisão do Presidente da República, ou vai infirmá-la. E, portanto, no sistema semipresidencial português, o acto de dissolução da Assembleia da República é sempre um acto que, de uma maneira ou de outra, envolve, em segunda linha pelo menos, um juízo de valor sobre a decisão do próprio Presidente da República. Mas é por isso mesmo que a decisão do Presidente da República é uma decisão discricionária, no sistema político português, não é uma decisão condicionada - não é sob proposta do Primeiro-Ministro, não é (como já foi na versão originária de í 976) mediante parecer prévio favorável de um órgão (como o Conselho da Revolução); é um acto livre. E é em boa parte nessa liberdade da prática do acto de dissolução que se justifica o facto de o Presidente da República, ser eleito por sufrágio directo e universal. E a verdade é que,...

O Sr. Presidente: - Até aqui, tudo bem.

O Sr. António Vitorino (PS): - ... em meu entender, não resulta qualitativamente distinta a decisão e o julgamento popular sobre o acto do Chefe do Estado de dissolução do Parlamento, quer essa dissolução decorra do accionamento do mecanismo de moção de censura construtiva, quer ela decorra do accionamento do mecanismo de moção de censura não construtiva. E pode resultar - dirá o Sr. Deputado Rui Machete - sob o ponto de vista psicológico.

O Sr. Presidente: - Político!

O Sr. António Vitorino (PS): - Isto é, o Chefe do Estado pode-se sentir, politicamente, menos à vontade para dissolver o Parlamento quando o faz contra uma maioria parlamentar que apoiou a indicação de um primeiro-ministro. É uma concepção legítima que, por acaso, o exemplo histórico português desmente. A interpretação, sincera e honesta, que faço da decisão do Presidente da República, de dissolver a Assembleia da República em 1983, contra uma maioria existente no Parlamento, que era a maioria da AD, e contra um primeiro-ministro indigitado por essa maioria, demonstra que, para decisões desse tipo, não é inevitável o desfecho que o Sr. Deputado Rui Machete antevê, de que o Presidente da República se encontre tolhido na sua decisão. Não é inevitável! Não estou a dizer que a situação que o Sr. Deputado Rui Machete prefigura não se possa verificar; estou apenas a aduzir um exemplo histórico em que não havendo moção de censura construtiva, em que existindo uma maioria parlamentar formada por dois partidos, em que esses dois partidos, tendo chegado a acordo na indigitação de um primeiro-ministro cujo nome chegou a ser formalmente entregue ao Presidente da República, o Presidente da República decidiu, mesmo assim, sem moção de censura construtiva, correr o risco de ouvir o eleitorado e de verificar que a sua decisão foi acertada, porque o eleitorado não reconfirmou a maioria existente no Parlamento.

O Sr. Presidente: - V. Exa. dá-me licença? O que eu quis dizer e que, de resto, reafirmo é isto: a circunstância de a lei constitucional vir claramente afirmar que, na hipótese de uma moção de censura com indicação do primeiro-ministro futuro, o Presidente da República - se quiser manter a legislatura - só tem por hipótese a sua designação, indicia, do ponto de vista do juízo político, uma prevalência do Parlamento sobre o Presidente da República, em termos justamente da sua competência para a resolução das crises políticas, que não é despicienda. E, portanto, se o Presidente da República, prevalecendo-se de uma liberdade que ainda a Constituição lhe dá, mas embora com um estatuto menor, "afrontar" o Parlamento, os riscos políticos da sua actuação, e a própria legitimidade política da sua actuação, são claramente menores. É isto que digo e que me parece estar em contradição com a ideia básica da idêntica legitimidade resultante de ambos serem eleitos por um sufrágio universal e directo, de um lado a Assembleia da República, de outro lado o Presidente da República. Quer dizer: dá-se um passo, e um passo importante, em sentido contrário. A mim o que me impressionou na argumentação que V. Exa. expendeu, há pouco, foi isto: é que V. Exa. expendeu uma argumentação muito na linha de um parlamentarismo racionalizado, argumentando a favor de uma das armas, entre outras, sem lhe atribuir um significado particularmente importante. E o que eu digo é que este passo indicia uma alteração do sistema político com enorme importância e relevância não tanto pelo mecanismo estritamente jurídico - mas é que nós não podemos, como sabe, interpretar a Constituição como um código civil (há quem o faça, mas nós não o devemos fazer) - e esta alteração, a meu ver, atinge uma relevância que não podemos negar-lhe, nem estar cegos perante ela. É isso que particularmente me impressiona. Na vossa argumentação há este aspecto, que me parece verdadeiramente fulcral, das relações entre os poderes do Presidente da República e da Assembleia da República, antes e depois da introdução da moção de censura construtiva, e, quando falo delas, não estou a fazer uma mera aritmética, nem V. Exa. está, mas, às vezes, há uma certa propensão para ver se é mais uma alínea ou menos uma alínea. Não é isso! É o posicionamento global no funcionamento do sistema político do Presidente da República que é afectado, a meu ver. Sinceramente, penso que isto existe.

O Sr. António Vitorino (PS): - Nós, nesse sentido, não estaremos de acordo, nem tenderemos, no infinito, a estar de acordo. O Sr. Deputado Rui Machete no fundo diz que uma alteração deste género acabaria por ter como

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corolário lógico defender uma reapreciação integral do papel do Presidente da República no sistema político, o que decerto desembocaria, inevitavelmente, na defesa da tese da eleição indirecta do Presidente da República e da desnecessidade de conferir ao Presidente da República a legitimidade do sufrágio directo e universal. Não é essa a nossa posição. Não è esse o sentido da nossa proposta. E, sinceramente, com o mesmo à-vontade e a mesma segurança com que o Sr. Deputado me disse o que acabou de dizer, eu lhe digo o contrário: não será esse, o desfecho da introdução do mecanismo da moção de censura construtiva no sistema político português. E isto porque nós não concebemos que se trate de uma alteração da liberdade de decisão do Presidente da República, porque entendemos que não há diferenças qualitativas entre a liberdade de decisão do Presidente de dissolver o Parlamento perante uma moção de censura construtiva e perante uma moção de censura não construtiva; o que entendemos, como disse na minha intervenção, é que há um descentramento do momento da decisão do Presidente da República sobre a dissolução da Assembleia da República, que só ocorre depois de comprovadamente esgotadas as possibilidades do Parlamento gerar soluções governativas estáveis. E, nesse sentido, o que diremos é que, de acordo com a interpretação que fazemos da função moderadora e arbitral do papel do Presidente da República no sistema político, o recurso à dissolução deve ser sempre tido como de natureza excepcional e, portanto, tudo o que nós fizermos no sistema político para preservarmos o Presidente da República da necessidade de recorrer a esse mecanismo é um contributo para o reforço da estabilidade governativa e, neste sentido, haverá entre nós uma diferença de apreciação do significado da conjugação dos mecanismos de formação de governos em sede parlamentar e de accionamento do mecanismo de dissolução do Parlamento.

É óbvio que estou de acordo com a observação que o Sr. Deputado Rui Machete fez sobre o significado da moção de censura quer face à experiência da República de Weimar, quer na RFA, quer em Espanha. O que só demonstra - e poderíamos alongar-nos neste ponto, mas não o farei - que o que torna relevante a leitura do significado concreto da moção de censura construtiva, na sua origem histórica e nos casos em que houve condições para aplicar em concreto o mecanismo, não é tanto o fetichismo das soluções institucionais (que não defendo, nem defendi e procurei situar na sua devida proporção), mas a relevância da conformação do sistema partidário para a eficácia dos próprios mecanismos institucionais. E, nesse sentido, assumi, com humildade, mas com objectividade, que, na nossa interpretação, a moção de censura construtiva é grandemente tributária da natureza concreta do sistema partidário existente no regime em que vigora, é tributária do sistema partidário, mas tem também uma função conformadora desse mesmo sistema partidário. E não é um mecanismo institucional despiciendo na formulação do posicionamento dos partidos políticos face ao exercício do poder. E vemos, nesta segunda vertente, virtude inegáveis na sua introdução no sistema político português.

Uma última observação. É óbvio que o problema da estabilidade governativa pode colocar-se noutros terrenos - no terreno do sistema eleitoral, no terreno das fórmulas de representação - e o PS, com a proposta

da moção de censura construtiva, o que pretende exactamente evitar é que o País atravesse períodos sucessivos de instabilidade governativa em que se generalize a convicção de que o valor da estabilidade justifica a amputação do valor da representação proporcional. E, mesmo assim, convinha meditar sobre as experiências europeias. Nos exemplos que poderiam ser escolhidos de 21 regimes democráticos à escala mundial entre 1945 e 1980, verificaremos que 17% do período de tempo em causa, nessas 21 democracias, foi preenchido por governos minoritários. Há países onde não há nenhuma experiência de governos minoritários, como a Nova Zelândia ou o Luxemburgo, a Austrália ou a RFA, a Suíça, a França durante a V República até às últimas eleições. E para esses países, e para esses sistemas políticos, a questão da moção de censura construtiva não faz sentido, não tem significado, é uma questão que não se coloca. Mas já, por exemplo - e aqui começa a ser interessante fazer o cruzar da malha entre o sistema partidário e o sistema eleitoral - entre 1945 e 1980, 10 % deste período de tempo, no Reino Unido, foi preenchido por governos minoritários, e é um sistema eleitoral maioritário a uma volta, onde um partido com 34 % dos sufrágios pode ter maioria no Parlamento - e aqui temos um exemplo claro de um sistema eleitoral ultramaioritário (mais maioritário do que este não pode haver) que, mesmo assim, num período significativo de tempo, desde a Segunda Guerra Mundial até 1980, teve que recorrer, em 10% deste tempo, a governos minoritários. Veja-se, por exemplo, o sistema irlandês que é um sistema proporcional com um método típico de conversão de votos em mandatos, 22% do período de tempo em causa foi preenchido com governos minoritários; o Canadá, por exemplo, 27%; a Noruega, 33%, com um sistema também proporcional; a Dinamarca, um sistema proporcional com um método bastante complexo de conversão dos votos em mandatos, 68% do período entre 1945 e 1980 foi preenchido por governos minoritários; na Finlândia, um exemplo de um sistema semipresidencial, 25% do tempo foi preenchido com governos minoritários; na Itália, um sistema proporcional sem cláusulas barreiras, um sistema pluripartidário da grande dispersão partidária, 36% do tempo foi preenchido com governos minoritários; a França da IV República, que é o exemplo mais flagrante, 40% do tempo foi preenchido por governos minoritários. Enfim, os números demonstram que entre 1945 e 1980, nas 21 democracias tomadas em linha de conta no estudo que estou a citar que é baseado em dados fornecidos por várias fontes, 17% desse tempo foi preenchido com governos minoritários, e em sistemas políticos onde vigoram sistemas eleitorais completamente distintos entre si. E se quisermos exemplo mais flagrante teremos até os exemplos mais recentes destes dois últimos anos. Em países com sistema proporcional onde - se recordarmos as velhas regras do Professor Duverger - esses sistemas proporcionais teriam maior dificuldade em gerar maiorias de governo, dois sistemas proporcionais que usam o método de Hondt - que, como todos sabemos, é o método de conversão de votos em mantados que leva mais longe a proporcionalidade e que menor desvio garante entre a proporcionalidade concreta e aquilo que seria um conceito de proporcionalidade pura - em dois sistemas proporcionais baseados no método de Hondt, o sistema eleitoral gerou maiorias de governo: o por-

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tuguês e o espanhol. Por contraponto, um caso que, na lógica do Professor Duverger, deveria garantir maiorias parlamentares, um sistema maioritário a duas voltas como o francês, recentemente assistimos à circunstância desse sistema maioritário, vocacionado para gerar maiorias, não ter gerado nenhuma maioria parlamentar. O que pretendo demonstrar com isto é, apenas e muito modestamente, que o sistema eleitoral não é já hoje o fetiche ou o Deus ex machina, a panaceia universal, para responder à lógica da estabilidade governa ti vá. E que pode verificar-se ser útil -em países como a França, por exemplo, hoje, com um sistema maioritário a duas voltas que não foi capaz de gerar uma maioria estável de governo- a introdução de um mecanismo institucional que só actua em circunstâncias excepcionais, como o da moção de censura construtiva, que pode revelar-se como importante para garantir a estabilidade governativa. O mesmo se dirá em relação a Portugal, ou em relação à Espanha, onde o mecanismo da moção de censura construtiva, se é verdade que até este momento não teve nenhuma aplicação prática, pode ser que, na próxima revisão constitucional, nós possamos arrolar em defesa desta proposta (que naturalmente reeditaremos nessa altura, caso ela não venha a merecer acolhimento nesta revisão) também o exemplo espanhol.

Isto foi só para demonstrar que não vale a pena pensarmos que estamos a travar um debate anatemizante, no sentido de que há verdades absolutas sobre o tema em discussão e que a história é inequívoca, o curso é inelutável, o determinismo histórico está garantido. Nós limitamo-nos a dizer que vemos vantagens na introdução desta válvula de segurança do sistema, desta reserva constitucional (como lhe chamam os alemães) para a eventualidade de uma situação excepcional que, não sendo a situação normal dos sistemas de governo, pode contudo ocorrer, como já ocorreu em Portugal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, devo dizer que o Sr. Deputado António Vitorino torna esta discussão um pouco difícil. Começou por dizer que não adiantaria mais nada, além daquilo que acaba de adiantar e daquilo que já tinha, na sua exposição introdutória, adiantado como contributo para o lançamento do debate...

O Sr. António Vitorino (PS): - Penso que o Sr. Deputado está a reportar-se a uma referência que fiz por querer falar antes da sua observação. Só que não me referi ao debate de ontem, mas, sim, àquele que teve lugar fora da sede parlamentar, ou seja, num fórum promovido por uma fundação, onde tivemos ocasião de discutir extensamente os argumentos sobre a noção de censura construtiva. Portanto, não estou a dificultar nenhum debate. Já sei quais são os argumentos que o PCP irá utilizar e responderei, como puder, como souber, exaustivamente a eles. Não era ao debate de ontem a que me estava a referir, mas, sim, a um outro. Como o Sr. Deputado José Magalhães tem bom memória, poderá verificar que a introdução que fiz hoje aqui, na CERC, à moção de censura construtiva foi, nas suas linhas fundamentais, aquela que apresentei nesse debate onde o Sr. Deputado José Magalhães também esteve presente. Nessa ocasião teve oportunidade de extensa, detalhada e contundentemente rebater os meus argumentos.

Só queria dizer que em relação a esse lado do debate não haverá, provavelmente, muitas novidades da minha parte. Presumo que também não as haja da sua, a não ser que, surpreendentemente, o PCP tenha mudado de opinião sobre a moção de censura construtiva desde há três meses a esta parte.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, fica registado que o Sr. Deputado António Vitorino estava a plagiar o Sr. Deputado António Vitorino e não terceiros, com o que ficamos todos devidamente acalmados. Estão salvaguardados os direitos de autor.

Gostaria apenas de começar por sublinhar que talvez seja auspeciosa e significativa uma das observações feitas pelo Sr. Deputado António Vitorino no meio da sua densa exposição, qual seja a de que os pontos de vista do PSD e do PS em relação a esta matéria não se tocam nem no infinito, o que quer dizer que são mais do que paralelos. Bom seria que assim fosse...

O Sr. António Vitorino (PS):'-Não disse isso, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah! Afinal, não disse bem isso!

O Sr. António Vitorino (PS): - O que disse foi que quanto ao significado das consequências da moção de censura construtiva para os poderes do Presidente da República a minha posição e a do Sr. Presidente Rui Machete não se tocava nem no infinito. No entanto, só nesse aspecto em particular.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a grande questão a colocar é, evidentemente, a de saber o porquê, qual a justificação da criação da figura "moção de censura construtiva", mesmo entendida como uma "válvula de segurança". É que quem pensa numa válvula de segurança pensa num bloqueamento, num estrangulamento ou numa inundação e nas causas da mesma. A reflexão relevante é, pois, a relativa às causas da inundação, do bloqueamento ou do estrangulamento, isto é, da instabilidade.

Haverá que estabelecer uma justa correlação e um justo diagnóstico da situação do sistema político e partidário, sob pena de fomentar novos elementos de estrangulamento, novos elementos de indistinção e novos elementos de perturbação da boa articulação entre aquilo que aqui ficou estabelecido como dois pilares fundamentais para o funcionamento do sistema político: a representação proporcional e a estabilidade governativa. Há que assegurar, por um lado, os valores da representação proporcional, não distorcida, fiel (por forma que nenhuma força, nenhum partido, nenhuma estrutura fique excluída da representação nacional e cada um possa intervir com a força e o número de mandatos correspondentes à sua dimensão, à sua realidade, à sua implantação num determinado tecido social), e, por outro lado, garantir soluções de equilíbrio na criação e manutenção de governos que evitem a perturbação da estabilidade governativa, na parte em que essa estabilidade não seja, ela própria, um elemento disfuncional. É que certas instituições podem ser

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expressão de outras contradições mais fundas da sociedade que não são elimináveis a golpes de martelo institucional e arquitectural! Esta é, sem dúvida, uma questão relevante que põe em jogo a reflexão sobre o sistema de governo, sobre o sistema partidário, sobre a raiz e a história dos dois sistemas que acabei de referir e exige um juízo, tanto retrospectivo como prospectivo sobre todas estas questões. Foi isso, no fundo, que o Sr. Deputado António Vitorino aqui nos trouxe. Permitam-me que exprima agora a nossa visão do problema.

Primeiro: saliento que o Partido Socialista, neste ponto, faz uma reflexão sobre as origens do sistema que não podemos partilhar.

Creio que em Portugal a reflexão sobre a caminhada entre Weimar e a lei fundamental de Bona deve ser feita tendo em conta a nossa própria caminhada entre o fascismo e o regime democrático, tal qual ele se apresenta, na sua fundação exacta, com as suas raízes e com a história que cada força partidária trouxe para a construção do sistema. O paralelismo entre a Constituição de Weimar e a lei fundamental de Bona e as Constituições de 1933 e de 1976 tem no meio a revolução do 25 de Abril. A reflexão sobre as causas da instabilidade no pós-25 de Abril não se pode fazer, evidentemente, senão tendo em conta as nossas raízes específicas...

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado vai ter a gentileza de ditar para a acta que foi esse o paralelismo que fiz.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não percebo, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado vai ter a gentileza de ditar para a acta que foi esse o paralelismo que fiz.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, vou ter a gentileza de ditar para a acta que entendo que a reflexão sobre a consagração da moção de censura construtiva implica um estudo sobre as origens do sistema.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não fiz nenhum paralelismo entre a evolução da Constituição de 1933 e a de 1976. Peço desculpa!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não peça! O que eu sublinho é que na RFA os constituintes reflectiram sobre a República de Weimar. Em Portugal os constituintes reflectiram sobre o fascismo e criaram um sistema flexível, que garante não só a representação proporcional como também, uma certa meleabilidade na formação de governos, um determinado conjunto de poderes para o Presidente da República, um determinado conjunto de poderes para a Assembleia da República, incluindo no processo de formação e manutenção dos governos, permitindo a formação de maiorias negativas, com as suas virtualidades e inconvenientes, distinguindo entre o momento da investidura e o momento do derrube dos governos, estabelecendo a cesura entre esses dois momentos e permitindo fórmulas e combinações flexíveis e distintas para os dois tipos de situações (uma determinada "maioria negativa" para derrube; uma outra "maioria positiva" para o novo governo). Este modelo flexível é, em Portugal, o simile do decorrente da reflexão feita na RFA sobre a experiência da República de Weimar.

O PS pretende quebrar esta flexibilidade, opta por uma superprotecção de governos minoritários, com uma correspondente amputação de poderes presidenciais, um enorme acréscimo da margem de intervenção parlamentar e uma rigidificação da formação de governos. Trata-se de romper, portanto, com o sistema flexível instituído em 1976 na sequência da nossa reflexão comum sobre as origens, a fundação do regime democrático.

Foi isto que disse! Creio que isso não deve chocar o Sr. Deputado António Vitorino, embora tenhamos visões diferentes sobre as raízes do sistema, sobre as razões dessa flexibilidade e sobre as causas da evolução que a história ulterior regista...

O segundo tópico de reflexão diz precisamente respeito à nossa evolução. Como é óbvio, a reflexão sobre a nossa evolução envolve um juízo retrospectivo, um juízo crítico e, porventura, autocrítico, sobre as causas que levaram à formação de governos minoritários e sobre as causas que levaram depois à génese de várias maiorias. Primeiro, maiorias coligacionais e, a partir de 19 de Julho, uma maioria monopartidária.

Quais as causas da instabilidade? Temos de saber se as causas da instabilidade estiveram na debilidade arquitectural do regime democrático, na inexistência de uma figura protectora como a moção de censura construtiva ou se estiveram, antes, na persistente dificuldade que forças políticas com matrizes similares revelaram de se articularem em torno de um projecto comum. A substituição da necessária reflexão sobre a impossibilidade dessas plataformas conjugadoras por uma acesa discussão sobre arquitectura institucional (arvorada em "chave" da instabilidade) é o mais estéril dos exercícios, se aplicado ao passado, e dos mais perigosos se aplicado ao futuro.

É evidente que é imprescindível a reflexão sobre a formação (ou não) de maiorias, sobre as razões que levaram os governos minoritários do Partido Socialista a fracassarem uns atrás dos outros, sobre as razões por que a política de meter, primeiro, o socialismo na gaveta para depois meter outras coisas levou a que o PS perdesse a sua posição no sistema partidário. Importa pensar aturadamente sobre as condições que conduziram o PS de uma minoria periclitante e em balance (1976-1977) até uma maioria com o CDS (1978) e uma maioria com o PSD (1983) no "bloco central", absolutamente policiada, e finalmente apunhalada e derrotada em urnas, seguida da edificação de uma maioria monopartidária pelo PSD. É uma reflexão relevante para todos nós e, seguramente, para o Partido Socialista. É relevante não só pelas conclusões voltadas para o passado como também pelas conclusões voltadas para o futuro.

Isto conduz à terceira reflexão preliminar. É que a questão fundamental, como o Sr. Deputado António Vitorino teve ocasião de não disfarçar, é a da impossível influência da instituição do mecanismo da "moção de censura construtiva" não só no próprio sistema político, como, sobretudo, no sistema partidário. As virtudes "estabilizadoras" que aqui foram exaltadas pelo Sr. Deputado António Vitorino em relação ao aspecto institucional elogiando a "estabilidade governamental",

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mesmo de governos minoritários, impopulares e sem apoio, foram claramente ultrapassadas pelas alusões às virtudes "terapêuticas" quanto ao sistema partidário, quanto ao posicionamento dos diversos partidos perante o sistema. Esse é um tópico fundamental de reflexão.

O caminho do PS em relação ao sistema parece, pela experiência dos primeiros governos e pela ulterior, bastante claro (basta pensar na sua posição face a esta mesma revisão constitucional, especialmente no que diz respeito à constituição económica). O que é que se quer que façam os outros protagonistas do sistema político? Para que caminho se quer conduzi-los com a moção de censura construtiva? Isto dever ser dito frontal, assumida e claramente!

Por outro lado o PS, deve dizer o que é que quer e tudo o que quer: alternativa ao PSD ou alternância com o PSD? Tem de optar, de uma vez para sempre, por um dos conceitos e reger-se por ele, em termos de coerência e de conduta política, para que todos saibamos com o que podemos contar. Por outro lado, ainda, exige-se de cada um um juízo-prognóstico sobre o futuro do sistema: quer-se uma "bipolarização"? Como se pretende construí-la? Com amputação de componentes do campo democrático ou com monopartidarização do pólo que se opõe ao PSD nesse esquema funcional imaginado?!

Sublinho ainda que a reflexão necessária envolve, até, um juízo sobre a natureza do sistema político partidário e sobre a sua evolução. No juízo feito pelo Sr. Deputado António Vitorino "não há partido dominante" no actual sistema político. Quanto ao futuro, emite um prognóstico de "pluripartidarismo sem partido dominante" nos próximos anos, o que parece indiciar da parte do Partido Socialista obsessões italianizantes, num quadro em que, porventura, mais devia estar preocupado com o modelo vigente em certas pátrias situadas na América Latina.

Trata-se de alguma coisa de decisivo, que implica uma opção. Combater o PSD ou aliar-se a ele? "Pacto de regime" ou defesa do regime? É impossível navegar sem ter uma estrela polar nesta matéria.

Ora, pelos vistos, o Partido Socialista navega sem estrela polar, ou, então, tem uma, "bipolarizadora", que é pouco recomendável e, pelo menos, irresponsável em termos de solidariedade republicana, democrática e oposicionista. Pois que assuma tudo isso, frontal, clara e brutalmente!

A quarta reflexão, em termos introdutórios, começa por uma interrogação: esta proposta retraía, realmente, o Partido Socialista como criador de uma "válvula de segurança"? Para aqueles que nos lêem, que nos ouvem e nos vêem assumir posições políticas, à posição do PS parece mais de alguém que erige em consigna política a luta por uma minoria ("avante, avante por uma minoria democrática protegida pela moção de censura construtiva!"). Digamos que não é um ideal exaltante e, provavelmente, não é a melhor forma de dar resposta política ao quadro criado pelas eleições de 19 de Julho! Escolher como lema, como estandarte, como meta, a conquista de uma minoria hiperprotegida por açaimes e andaimes decorrentes da moção de censura construtiva é a confissão de uma meta limitada e limitativa quando se está perante um PSD com maioria absoluta! Note-se que o PS quer que essa protecção dos governos minoritários comece logo no momento da passagem do Governo, uma vez que suprime as moções de rejeição ao Programa de Governo: o PS pretende que no momento inicial da formação dos governos funcione também a introdução do mecanismo da moção de censura construtiva. Tudo isto dá que pensar sobre a responsabilidade (ou falta dela) e, em qualquer caso, a maneira pitoresca como o Partido Socialista vê o futuro. É que, além do mais, uma solução deste tipo poderá (em certa imaginável conjuntura em que o PSD perca a maioria) tornar inderrubável um governo PSD minoritário, o que é uma coisa que, seguramente, o Sr. Deputado António Vitorino não me acusará de encarar numa perspectiva mesquinhamente partidária (quem avança para uma proposta destas não deve desconsiderar qualquer hipótese!).

A quinta nota diz respeito ao fundo da questão. Trata-se, em termos de concepção, de uma solução acima de tudo e manifestamente artificial. O Sr. Deputado António Vitorino teve o cuidado de sublinhar e de resublinhar que o PS visa uma situação excepcional, propõe uma fórmula não apenas para crises mas para "crises críticas" um "último recurso", uma "válvula de segurança" para uma "grande inquietação"... A verdade é que tal solução altera não só a balança de poderes entre órgãos de soberania, mas também entre partidos, e pode permitir influir, perversamente, no próprio sistema de partidos, quer na composição do sistema, quer na actuação dos componentes, quer na sua prática política, no seu posicionamento. Portanto, é um elemento de constrangimento numa tripla ou quádrupla dimensão. Com a moção de censura construtiva, é facto, uma minoria passaria a exercer poderes de uma maioria! Se o campo oposto ao partido minoritário fosse heterogéneo, o governo minoritário formado por essa minoria poderia beneficiar de poderes de direcção ultra vires, correspondentes àqueles que teria se tivesse a maioria estável e coerente que não tem. Por outro lado, o Presidente não poderia exercer os poderes que lhe cabem nos termos do seu próprio estatuto enquanto órgão de soberania. O Parlamento, incapaz de gerar um governo maioritário homogéneo ou de concertar-se para apoio a um governo minoritário de outro partido, teria que suportar forçosa e forçadamente um governo minoritário de certo partido. Eis as consequências do sistema, eis as consequências e implicações desta fórmula pela qual o PS anseia!

Que se diga em abono disto aquilo que disse, entre outras coisas, o Sr. Deputado António Vitorino, isto é, que "não lhe parece que seja quantitativamente distinto o juízo popular em caso de dissolução por moção de censura construtiva ou não construtiva", que "dissolver contra um candidato designado por uma maioria é a mesma coisa que dissolver sem um candidato apoiado por uma maioria", etc.., parece-me ser uma magra resposta para a evidência da distorção e alteração introduzidas por um mecanismo deste tipo. São, de resto, respostas em linha de recuo.

A sexta reflexão diz respeito à natureza da figura. Creio que o que é mais difícil para o Partido Socialista é demonstrar que a transposição desta fórmula de experiências estrangeiras para a portuguesa é virtuosa. Desde logo, aquilo que vem caracterizando a experiência da RFA sobre a moção de censura construtiva é, tanto quanto se sabe, uma crescente e sucessiva decepção! Depois das enormes esperanças que rodearam a criação da figura nos primeiros anos da República de

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Bona, depois das reflexões traumatizadas sobre a Constituição de Weimar, dissipou-se a atenção na prática política e na doutrina, esbateu-se a crença nas virtua-lidades terapêuticas da solução. A análise das efectivas aplicações não conduz a qualquer extensa incensação das virtudes da moção de censura construtiva. Esse é um facto! Os tratadistas dedicam-lhe as duas ou três linhas que cabem. As análises sobre as "virtualidades" transpositivas são extremamente cautelosas. Aqueles que se pronunciam pelas transposições fazem-no - como, de resto, tivemos os dois ocasião de ouvir, no debate que o Sr. Deputado Vitorino há pouco referiu - com extremas cautelas. As alegações a favor da figura vêm rodeadas de advertências quanto às características do terreno, quanto aos perigos da combinação entre uma medida deste tipo e certas alterações do sistema eleitoral (dadas as suas potencialidades destrutivas da fidelidade da representação proporcional), etc. Os argumentos de direito comparado, que, de resto, o Sr. Deputado António Vitorino magramente usou, têm aqui um valor ainda mais relativo: é evidente o cepticismo e a modéstia com que os cultores da ciência política e direito político dos países em que a figura existe se lhe referem.

Sétimo aspecto: as verdadeiras causas da proposta. É que a teoria fundante, as "virtualidades" terapêuticas propagandeadas, os argumentos básicos dos defensores da figura já foram objecto de comentário. Os efeitos de "engenharia do sistema" decorrentes da MCC, as suas implicações amputadoras em relação aos poderes do Presidente e as consequências de rigidificação da formação de governos já foram igualmente objecto de alusão. Falta aprofundar as razões desta proposta do PS, as suas causas reais.

Gostaria, a tal propósito, de sublinhar que já foram ditas, de maneira mais frontal, em favor da moção de censura construtiva algumas das coisas que o Sr. Deputado António Vitorino aqui entendeu omitir. Foram ditas há alguns anos por autores que se inseriam então e inserem hoje nas fileiras do então e actual partido do Governo. Refiro-me a Santana Lopes e a Durão Barroso, que num opúsculo editado há uns anos referiam na p. 151:

"Tudo parece indicar que o recurso em Portugal a este princípio da moção de censura positiva seja a forma ideal de preparar o sistema para a eventualidade de não obtenção de maiorias absolutas nas eleições legislativas, porque assim qualquer maioria, mesmo relativa, permite ao partido ou coligação de vencedores manter-se no poder, pois não é crível que a maioria derrubante se consiga constituir em maioria de governo. O Partido Socialista, que tem sido a principal vítima do sistema semipresidencial, deveria pensar bem no que faz antes de recusar esta proposta de revisão constitucional."

Pelos vistos o Partido Socialista seguiu o conselho destes dois doutos autores (tarde, mas seguiu!). O Partido Socialista está, aliás, sempre a tempo de arrepiar caminho e seguir indicações de autores do PSD! Fê-lo ontem em relação ao sistema político, hoje em relação à organização económica. O problema é qual será o resultado a que chegará no fim de tudo: se à moção de censura, se ao Governo, se à derrota maior! Essa é, obviamente, a grande incógnita (e o grande perigo)!

Continuavam os mesmos autores:

"De facto, os partidos centrais do espectro político só tem a ganhar com a adopção de um modelo de parlamentarismo racionalizado, pois uma vez no poder é extremamente difícil derrubá-los, dada a necessidade de apresentação alternativa de uma maioria governativa. A presente proposta de revisão constitucional, considerada agora sob o ângulo do sistema partidário existente em Portugal, contribui, pois, para ajudar a resolver um dos principais problemas da democracia difícil em que vivemos, o de, não excluindo o PCP do sistema democrático, o manter, contudo, o mais afastado possível da área do poder. Por outras palavras, é necessário em Portugal que se criem condições para uma futura alternância entre o centro-direita, AD, e o centro-esquerda. Um regime democrático deve ter sempre soluções de reserva. Ao possibilitar as maiorias relativas e ao dar-lhes uma certa garantia de estabilidade governativa, o projecto de revisão constitucional Sá Carneiro/Santana Lopes [e agora o de António Vitorino] contribui para desarmadilhar as possíveis ameaças que em tempos de crise poderão vir dos extremos [...]"

O Sr. António Vitorino (PS): - Gostaria que o Sr. Deputado José Magalhães tivesse a gentileza de não cortar essa parte na acta. Terá que ficar registada, porque é uma provocação gratuita.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário José Magalhães.

O Sr. Presidente (José Magalhães): - Srs. Deputados, ao trazer esta matéria, ou esta lembrança, à acta, não visei fazer uma provocação gratuita...

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas fez!

O Sr. Presidente: -... mas apenas não facilitar que a história seja rasurada. É ilegítimo considerar como provocação (e gratuita!) a evocação destes factos. Não se pode considerar banalidade o facto de, em 1980, no projecto denominado "Constituição para os anos 80" e mais tarde, em 1982, os autores que o Sr. Deputado António Vitorino referiu terem proposto o que propuseram, com os fundamentos e para os efeitos que transcrevi. E sucede que não há outros efeitos possíveis. E sucede que tudo o mais é postiço! E sucede que as alusões às "razões de Estado" são ocas. E sucede que as alusões críticas aos "interesses partidários mesquinhos" dos outros devem ser temperadas com a confissão/revelação destas razões e interesses próprios que são partidários, bipolarizadores, sectários...

É de rejeitar, em nosso entender, tal tentativa de alterar o funcionamento do sistema partidário, tal forma de constrangimento de conduta política, engendradora de anomalias e artificialidade! Se alguém tem a ideia de que em Portugal a unificação do campo democrático se deve fazer sob a batuta destes mecanismos e com o uso destas cláusulas, diga-se, frontalmente, que não são de salvaguarda de nada de digno, a não ser de um interesse, e de um interesse restrito.

Era isto que eu não gostaria de deixar de sublinhar, uma vez que não foi usada nessa matéria toda a transparência e toda a panóplia argumentativa.

Devo também dizer que a discussão que realizei com o Sr. Deputado António Vitorino, em outras circunstâncias, não beneficiou de algum dos pormenores e de

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alguns dos aditamentos resultantes do própria devir político que entretanto se registou. Designadamente, não beneficiava, na altura, do conhecimento de ideias, de propostas e de intenções políticas do PS em relação a outros compartimentos e a outros elementos da constituição da República (penso na constituição económica!). Portanto, creio que, para além de assumir com esta proposta uma responsabilidade no tocante à modelação do sistema político, o PS assume uma responsabilidade muito mais global através das intenções que assim revela. Que possa vir a ser uma declaração de intenções sem consequência por falta de consenso do PSD, é apenas uma ironia histórica e confere ao PSD um papel a que, provavelmente, não teria direito. Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Ao contrário do que se poderia esperar, pela minha parte, não vou responder nem às provocações gratuitas nem às manifestações demagógicas com que o Sr. Deputado José Magalhães tem vindo, progressivamente, em função da leitura que faz das posições do PS, a enroupar as suas intervenções nesta Comissão e a enformar o entendimento que tem do que é o diálogo na Comissão Eventual da Revisão Constitucional sobre as propostas apresentadas pelos diferentes partidos nela representados. É uma atitude que o caracteriza e define e, naturalmente, a mim, apenas me compete registar e, sobretudo, não o acompanhar nesse estão, nesse comprimento de onda, nesse tem, nessa forma, que, de facto, não merece a nossa solidariedade, nem republicana nem monárquica. Não a merece, pura e simplesmente.

Neste momento resumiria a minha intervenção a quatro observações. É possível criticar a proposta do PS no sentido de ela produzir uma alteração numa lógica de flexibilidade do sistema de governo consagrado desde a matriz originária da Constituição de 1976. Não é, contudo, o PCP quem tem autoridade moral para fazer essa crítica, porque, à luz do princípio da manutenção intocada da flexibilidade do sistema de governo, não tem justificação a alteração do PCP para o artigo 195.° da Constituição, quanto à apreciação do Programa de Governo, ao propor, pura e simplesmente, a eliminação do n.° 4 desse mesmo artigo, no qual se prevê que a rejeição do Programa do Governo tenha que contar com o voto favorável da maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Esta proposta apresentada pelo PCP é passível das mesmas observações (eu diria, das mesmíssimas observações) de regidificação, de ruptura, de corte com a flexibilidade do sistema que emergiu da matriz originária da Constituição de 1976. Digamos que, em matéria de regidificação e de não flexibilização, as propostas são equidistantes. Acresce que nunca neguei, e disse-o claramente na minha intervenção, não foi uma linha de recuo, antes pelo contrário - e o Sr. Deputado José Magalhães pode tentar interpretar linhas de recuo, de avanço e de colateralização das posições do PS face a um eventual hipotético acordo de revisão constitucional que não existe e que tenta descortinar desesperadamente nestes debates da CERC...

O Sr. Presidente: - Inquietamente, o que é normal.

O Sr. António Vitorino (PS): - Ou inquietante... Isso só resulta em desgaste, mas é sempre útil para manter a linha.

Mas a verdade é que não escondi os efeitos de conformação do sistema partidário que a proposta tem e que o PS assume. Não escondi, não foi uma linha de recuo, não foi uma linha de colateralização, não foi nenhuma linha sub-reptícia. Nesse sentido, o Sr. Deputado José Magalhães não negará que a proposta de eliminação do n.° 4 do artigo 195.° corresponde a preocupações simétricas do PCP, que o Sr. Deputado José Magalhães não assumiu, de todo, quando fez a apresentação do n.° 4 do artigo 195.° e que não assumiu sequer quando o confrontei com a questão. É, portanto, uma questão de tratamento dos problemas que estão em discussão. Pela minha parte, não escamoteei nenhuma das vertentes das consequências da proposta do PS e espero que o Sr. Deputado José Magalhães ainda venha a assumir a consequência conformadora do sistema partidário que tem a proposta de eliminação do n.° 4 do artigo 195.° que o PCP apresenta.

Quanto ao segundo aspecto, o Sr. Deputado José Magalhães brindou-nos com um juízo crítico da actuação do PS no Governo e, eventualmente, explicitou que esse juízo crítico era tão justo e tão correcto que se tinha traduzido na evolução do posicionamento do PS na vida partidária e até dos resultados eleitorais do PS e dos seus insucessos governativos. Difícil é compreender como é que um juízo crítico tão acutilante a que a verdade material dos factos deu tão esplendorosa razão, não tenha resultado em benefícios, por exemplo, do próprio PCP, pela sua inserção no sistema partidário, e até em termos de benefícios eleitorais próprios. Nesse aspecto, em termos comparativos, não podemos deixar de reconhecer que o PCP também tem de, ele próprio, reconhecer o averbamento das suas derrotas eleitorais, da sua evolução, não diria declinante mas pelo menos recessiva, no conjunto do sistema partidário. Não ouvimos a este propósito um juízo auto-crítico, naturalmente; e não sei se teremos de esperar pelo congresso do PCP nos primeiros dias do próximo mês de Dezembro para ouvir esse juízo autocrítico ou se, pelo contrário, ainda teremos de esperar mais anos por um tal juízo autocrítico.

A terceira observação refere-se à evolução do sistema partidário. Em meu entender, é particularmente importante para este debate que nele se tenha verificado uma certa convergência entre o PSD e o PCP e, na óptica do PS, na sua estrita óptica partidária, é mesmo importantíssimo. É uma convergência que tem como cacharolete final a citação desvelada do Sr. Deputado José Magalhães, do Dr. Santana Lopes e do Dr. Durão Barroso, mostrando que as cartas são facilmente baralháveis quando o que se pretende obter são efeitos de retórica fáceis num debate parlamentar. Chapeou!

Não vou discutir com o Sr. Deputado José Magalhães que espécie de modelo partidário é que se vai desenhar em Portugal. O Sr. Deputado José Magalhães diz: "O que o PSD quer é um modelo mexicano, é a mexicanização do sistema político português..."

Vozes.

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto, agora em crise no máximo.

Talvez, no entendimento do Sr. Deputado José Magalhães, o projecto do PS fosse o da "luxemburguizacão" do sistema político, sistema em que o partido comunista existe mas em que é um partido adja-

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cente, supérfluo, decorativo, folclórico e não influente na vida real. Pela minha parte, poderia responder que o modelo que o PCP preconiza para Portugal é bem mais sofisticado, se calhar, é o modelo italo-mexicano: recolheria do modelo italiano, a italianização do PS, ou seja, um PS enfezado, diminuído, raquítico, inte-lectualóide...

Voz.

O Sr. António Vitorino (PS): - Por outro lado, um PSD entronizado, estabilizado, mexicanizado...

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. António Vitorino (PS): - Estão para Portugal como a democracia cristã; o Estado DC não é muito diferente do Estado PSD.

E a grande contradição política do discurso do PSD é que nunca sabe, dentro do seu coração, se as aurículas e os ventrículos dos fixistas do Estado do PSD bombeiam mais sangue para a vossa actividade política do que as aurículas e os ventrículos daqueles que querem renovar e introduzir reformas estruturais na sociedade portuguesa. Portanto, o vosso coração deve ser sujeito a uma análise cirúrgica falhada porque, qualquer dia, com tantas tensões, acaba por estoirar!

O Sr. Presidente: - Que pena!

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Isso é um juízo moral!

O Sr. António Vitorino (PS): - Não! Não é sequer um juízo moralista. De maneira nenhuma! Aliás, eu sou jurista, não sou médico!

E nesse sistema italo-mexicano, com um PS subjugado, em termos de peso relativo ao PCP, o PCP seria o partido falsamente alternante, porque seria um partido que, provavelmente, nesse modelo, só poderia verdadeiramente alternar em termos hipotéticos, teóricos e não em termos práticos nem realistas, como por exemplo a Itália. Neste modelo italo-mexicano, a recusa que o Sr. Deputado José Magalhães faz tão veemente, tão convicta, tão transbordante de argumentos e, sobretudo, de adjectivação, uma dela mais personalizada, outra mais generalizada ao Partido Socialista no seu conjunto, não deixa de revelar uma certa descrença da parte do Sr. Deputado José Magalhães, na capacidade do PCP se transformar no maior partido da esquerda em Portugal e beneficiar da moção de censura construtiva.

O Sr. Presidente: - Esse argumento é de arromba! De todos, é o mais sedutor.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas eu não estou a fazer um exercício de sedução.

Risos.

O Sr. Presidente: - É que fez um tal esforço de sedução do PSD que eu já estava com receio que agora passasse a aplicar os mesmos empenhes numa dança de Salomé em relação ao PCP, que, como sabe, nessa matéria, é mais difícil de seduzir...

O Sr. António Vitorino (PS): - A sedução, ou é assumida, ou, quando é subjectivamente praticada sem que se tenha consciência dela, é muito mais dramática. Eu não seduzi o PSD, limitei-me a estoirar o coração do PSD: se isso é um acto de sedução, é a chamada sedução violenta.

Mas, quanto à quarta observação, eu admito que o PS e o PCP, que são dois partidos de esquerda, que têm uma história que os faz convergir em alguns momentos e divergir em muitos outros, não tenham sobre o valor de estabilidade governativa o mesmo entendimento, a mesma leitura e o mesmo apego, sendo as próprias tácticas dos dois partidos contra os governos de direita distintas entre si, também deste ponto de vista, sobre o valor de estabilidade governativa. E é óbvio que, estando contra governos de direita, o PS entende, ao contrário do PCP, que não faz sentido, quinze dias depois da realização de um acto eleitoral, começar a exigir a dissolução da Assembleia da República porque o Governo não corresponde à vontade popular e aos interesses da democracia, táctica que o PCP tem tido e que, aliás, se tem traduzido em que cada dissolução gera governos sempre piores do que os anteriores (no próprio discurso do PCP) embora o acto de dissolução em si seja descrito como uma vitória pontual do PCP. E o PCP tem afirmado uma certa relação de exterioridade à participação no poder, na medida em que o seu discurso de poder é menos um discurso de reivindicação de participação e mais um discurso de reinvindicação de um poder de condicionamento do exercício do poder político. Isto é, o PCP não propõe uma coligação PS/PCP, por exemplo, um programa comum, como propuseram os comunistas franceses no passado, em 1978, em 1981, mas apenas diz que não é possível governar contra o PCP. Há, portanto, uma margem de diferente posicionamento face ao centro do poder, de não reivindicação da participação no centro do poder mas de reinvindicação de uma margem de condicionamento desse centro de poder, traduzida na expressão agradavelmente irónica do Sr. Deputado José Magalhães, sobretudo depois do tem que adoptou na intervenção que fez em relação ao PS, de apelar a uma cena solidariedade republicana. Só por ironia é que o Sr. Deputado José Magahães poderia, de facto, acabar a intervenção com esse cacharolete.

O Sr. Presidente: - Republicana e democrática.

O Sr. António Vitorino (PS): - Naturalmente, espero bem que sim! Nunca republicana e antidemocrática.

O Sr. Presidente: - É óbvio. Bom, poderia ser republicana e socialista, ou republicana e mais avançada do que isso.

O Sr. António Vitorino (PS): - Já nos ficamos pelos mínimos, já só republicana...

A verdade é que, independentemente da interpretação que façamos do significado histórico dessa solidariedade republicana, em França, por exemplo, constatamos que, se bem que exista hoje uma maioria do PS

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e do PCP franceses onde poderia funcionar amplamente essa solidariedade republicana, ela também não funciona, tendo os socialistas franceses preferido formar um governo minoritário com abertura ao centro do que uma coligação com os comunistas. Esta situação corresponde também a uma fase histórica de relativo declínio político e eleitoral do Partido Comunista Francês e de progressão do Partido Socialista Francês, não tanto quanto os próprios socialistas franceses desejaram, mas, o simples facto de terem hoje o Presidente da República e um governo em França, não pode deixar de ser interpretado como tendo consequência no conjunto do sistema partidário francês.

A verdade é que o que a moção de censura construtiva causa ao PCP é um verdadeiro horror, como o Sr. Deputado José Magalhães muito neo-realisticamente nos deixou perceber, um horror enroupado em razões de Estado mas que tem como cerne apenas dois pontos. O primeiro ponto é identificar a proposta de moção de censura construtiva por parte do PS como apenas norteada por abjectos e mesquinhos interesses partidários dos socialistas - essa é a cor; e, em segundo lugar, manifestar-se contra ela pelos mesmos mesquinhos e abjectos interesses partidários do PCP, considerando que a aprovação da moção de censura construtiva constituiria um tipo de morte na capacidade de constrangimento de um poder centrado no PS, que assiste ao PCP em virtude da natureza do sistema partidário hoje existente em Portugal. E é essa medida de descontrangimento da capacidade impositiva do PCP, face a um poder centrado no PS, que o PCP não quer ver arredada. Por razões de Estado? Bom, o Sr. Deputado José Magalhães bem as tentou enroupar em razões de Estado, mas o que o fez correr são verdadeiras razões partidárias, as quais eu não enjeitei no que diz respeito à nossa própria proposta de alteração do sistema partidário. O receio, no fundo, é de que a moção de censura construtiva, a ser consagrada, cortasse cerce a via, já de si bastante estreita, que o PCP tem face ao exercício do poder: a via do condicionamento. Pelo contrário, o que nós dizemos é que é bem preferível que os valores da estabilidade governativa sejam ressalvados através de mecanismos institucionais do que através do fervilhar do caldo de cultura que a prazo conduza a colocar a questão da alteração do sistema eleitoral e da amputação da representação proporcional, para tudo sacrificar ao valor da estabilidade governativa. E, nessa altura, o PCP compreenderá melhor por que é que a proposta do PS também tem a ver com os interesses da esquerda no seu conjunto e com os valores tradicionais da solidariedade republicana. Nós não somos detentores da verdade absoluta, nem temos a chave da evolução do sistema partidário. Cada partido, e o seu percurso próprio, influi determinantemente na evolução dos outros e, nesse contexto, a evolução por que o PCP está a passar, o significado do seu debate interno e o reposicionamento que dele possivelmente decorrerá no conjunto do sistema partidário português e na sociedade portuguesa, seja em que sentido for, é relevante para a interpretação da eficácia do sistema partidário na formação de maiorias estáveis em termos de Governo. O que nós não queremos enjeitar são as nossas responsabilidades nesse desiderato global, não fugimos a ser responsabilizados pela nossa actuação em concreto, temos o mesmíssimo estado de espírito e a mesmíssima exigência de análise do comportamento do próprio PCP.

O Sr. Presidente: - Se nenhum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra, eu formularia cinco breves comentários a esta intervenção do Sr. Deputado António Vitorino, como creio ser indispensável, face ao contributo para uma discussão que ela própria representa.

Em primeiro lugar, o Partido Socialista reconhece claramente, abertamente, embora na sequência de um certo esforço de debate, que a solução que propõe tem virtualidades rigidificadoras, que diminui a flexibilidade da matriz originária constitucional neste ponto. É evidente que essa matriz já sofreu alterações decorrentes do posicionamento relativo do Presidente e da Assembleia e das alterações introduzidas na primeira revisão nesse domínio. Em todo o caso, esta alteração representaria, evidentemente, um passo de rigidificação ulterior e mais grave. O único argumento que, no fundo, o Sr. Deputado António Vitorino deduz para justificar esta quebra de flexibilidade é o chamado "argumento do pecado igual" ("não critiques tu o meu pecado porque tens na tua própria carne um de teor semelhante ou porventura mais agravado").

O exemplo que invoca parece-me, porém, particularmente infeliz. A proposta do PCP (como de resto já ontem pudemos abordar e a acta retrata) no tocante ao artigo 195.°, n.° 4, não tem outra consequência que não seja permitir que uma maioria simples (quando exista tal maioria simples) impeça que um governo se constitua se, ao ser investido, tiver contra si essa maioria. É apenas a supressão de um elemento de flexibilidade artificial, hoje previsto, que é um favor, um super favor e até um favor envenenado, por uma razão que é evidente: que caracteriza uma solução em que um governo minoritário tem contra si uma maioria, embora uma maioria não absoluta? A circunstância que um governo desses enfrenta é a de uma grande debilidade, quer em termos de subsistência, quer em capacidade de fazer passar a sua própria legislação, quer ainda em termos de afirmação do seu programa político. É um governo condicionado, hipercondicionado. Se um governo nem consegue ter, à partida uma maioria simples que o tolere, que o enjeite, que se cale, é dúbio que se possa considerar como tendo vitalidade mínima para "arrancar" para a governação. É esse apenas o significado da proposta do PCP! Não é assumida como uma proposta "racha governos" minoritários ou como uma proposta "ilegitimadora" de governos minoritários.

Menos ainda a proposta do PCP é susceptível de prefigurar o crime qualificado anti "solidariedade republicana", que o Sr. Deputado António Vitorino gostaria de ter na carteira para invocar em circunstâncias deste tipo. Perguntou estarrecido: "Pois se o PCP altera radicalmente a matriz originária da Constituição em termos de ilegitimar governos minoritários, por que é que, além de impedir a sua constituição quando houvesse contra eles uma maioria simples, não permite o seu derrube quando, depois de formados, haja uma maioria simples contra eles?!" Deliberadamente, o PCP não faz isso! A proposta que nós apresentamos mantém o regime constitucional quanto ao derrube dos governos. Portanto, um governo minoritário que consiga investidura e depois disso não tenha contra si uma maioria

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absoluta, subsiste. Não propomos a alteração da Constituição nesse ponto. Mas há-de ter, pelo menos, a seu favor no momento inicial uma maioria simples - propomos nós, tão-só!

É esta a nossa lógica. Não há comparação nenhuma entre esta lógica, em termos de alteração da flexibilidade do sistema, e a alteração radical que o PS propõe. Que não se procure colocar na mesma bitola e medir com a mesma régua coisas que têm tamanhos totalmente diferentes: é a palmeira e o arbusto!

O segundo comentário responde à acusação: "A moção de censura construtiva tem efeitos na conformação do sistema partidário, mas o artigo 195.°, n.° 4, nos termos propostos pelo PCP, também o tem." Este argumento obtém a mesma resposta do anterior. Não se coloquem questões diferentes em planos idênticos! Não se meça pela mesma bitola o que é distinto! A conformação do sistema partidário resultante da opção do PS e a conformação resultante desta do PCP não são comparáveis! É a comparação entre a gota e o oceano. Pode-se insistir, mas qualquer observador minimamente objectivo perceberá, razoavelmente, a diferença...

Terceiro comentário: o juízo crítico sobre o passado. É evidente que o juízo crítico deve ter sempre urna componente autocrítica. Sem dúvida! O Sr. Deputado António Vitorino vai, até, ter muito mais fundamentada e exaustivamente discutida a avaliação de toda esta questão pelo colectivo partidário comunista já no mês de Dezembro e mesmo, antes disso, em Setembro, Outubro, Novembro! É evidente que sim! É para isso que trabalhamos, de resto. E trabalhamos não só na nossa óptica partidária, mas na óptica do relacionamento com as outras forças políticas e, designadamente, com o Partido Socialista.

É difícil, no entanto, que se espere de nós que pudéssemos fazer uma avaliação traduzida num aplaudir de uma acção governativa encetada em 1976 e largamente sacrificadora de esperanças, de rumos e de directrizes constitucionais. É extremamente difícil, extremamente difícil, para não dizer mesmo impossível, pura e simplesmente! O juízo que absolva ou que não valore negativamente aquilo que foram tentativas falhadas, reconhecidamente falhadas, de criação de péssimas soluções governativas, para aplicação de políticas governativas que a direita aplaude, inspira e realmente gere, quando pode, bastante "melhor" do que o PS, seria sempre uma crítica deficiente, uma não crítica, uma incapacidade de olhar para o passado, e logo uma incapacidade de ganhar o futuro!

O quarto comentário é sobre a evolução do sistema partidário, as relações entre o PCP e o PS, as relações entre o PSD e o PCP. Quando eu chamei a atenção para a importância da prognose e da análise do sistema partidário, e do modelo partidário, do papel do PSD nesse modelo e das vias que combatam, aliás, o "Estado PSD" (o tal que o Sr. Deputado descreveu como tendo aurículos e ventrículos, funcionando de maneiras diferentes e bombeando sangues em rumos tais que deveriam conduzir a uma certa explosão). Quando chamei a atenção para esse aspecto, queria apenas dizer que qualquer engano nessa matéria tem consequências drásticas. Qualquer movimentação num terreno pedregoso como se fosse numa auto-estrada significa despiste! Assim ocorre com qualquer juízo que subestime os perigos decorrentes da apropriação por um partido tanto do aparelho de Estado como dos diversos elementos de poder, incluindo o aparelho empresarial público, a comunicação social, etc.., etc.., com vista à criação de um sistema de poder, com exclusão dos demais partidos, com rarefacção do universo partidário, com luta pela alteração das próprias regras do jogo eleitoral, com um tratamento cilindrador dos partidos da oposição, com a perversão das próprias regras do jogo em matéria de comunicação social (e logo de intervenção junto da opinião pública), em suma: de uso de todo o sistema contra, ou para alteração do sistema. Ainda que não se faça essa operação nos termos caricatos, esbarrondantes (e muito perigosos) do Dr. João Jardim, pode fazer-se nos termos esfíngicos do Professor Cavaco Silva, na versão mais contemporizadora do Sr. Deputado Costa Andrade ou na versão mais maviosa do Sr. Deputado Carlos Encarnação. O produto é, porém, o mesmo!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Protesto pela nota, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Registo o protesto! Toda a confusão nessa matéria conduziria, evidentemente, ao bloueamento da luta pela alternativa democrática.

Ao chamar a atenção para isto, apelei a urna prognose serena e, sobretudo, certeira. Não fiz mais do que isso. Não revelei nisto descrença em sermos outra coisa do que aquilo que desejamos ser, não revelei descrença nas virtualidades democráticas, na possibilidade de se conquistar a opinião pública na base de projectos mobilizadores, não revelei descrença na capacidade de falar às pessoas nas coisas que lhes interessam e de lutar pela resolução dos seus problemas, não contestei minimamente a necessidade de combater o "Estado PSD". Pelo contrário!

E quando citei os Drs. Durão Barroso e Santana Lopes apenas foi apara assinalar duas coisas: que eles tinham dito tudo e o Sr. Deputado António Vitorino tinha dito o mesmo, mas menos. Foi só isto! E nessa matéria chapeou, realmente, porque aquilo que foi dito, foi dito e aquilo que não foi dito não foi dito. Foi pena que não tivesse sido dito tudo aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino pode dizer sobre esta matéria e que de resto não é muito diferente daquilo que os dois referidos autores disseram in illo tempore, ante maioriam.

Evocar isto não revela da nossa parte descrença em coisa nenhuma, mas sim crença em que determinados caminhos não conduzem a nada, a não ser à hostilidade inútil, à impossibilidade de acertos de acções e convergências democráticas, à polémica infértil, ao bloqueamento do sistema. É isso que bloqueia o sistema, não é o contrário!

E, naturalmente, bloqueiam o sistema os acordos que dêem ao PSD, não só os instrumentos de poder que tem, mas instrumentos adicionais; são maus os acordos que dêem, por exemplo, ao PSD a Constituição que deseja e que procura impor antes de ter, que dêem ao Primeiro-Ministro a libertação daquilo que ele considera serem "peias" (e são, de facto, elementos de enquadramento que preservam determinadas virtualidades e alterações que ocorrem em Portugal, após o 25 de Abril). Aí estão acordos, aproximações, que realmente nos parecem nefastas...

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Estar a discutir neste momento como "realidades perigosas" ou até, dizer, que o PCP "aposta num modelo italo-mexicano" (com o PS italianizado, com o PSD pujante e gordo, com o "Estado PSD" rebentando pelas costuras e com um PCP falsamente alternante) não passa de uma caricatura de um perigo real, qual seja a do PSD engordar e adquirir pujança à custa de uma constituciofagia, voluntariada pelo PS, ainda por cima por fatias. E que o PS em relação ao artigo 290.° tem a posição "fatiante" que já tivemos ocasião de discutir e vamos ter ocasião de discutir mais ainda.

Esse é o perigo principal. É aí que está o perigo, não é, seguramente, o perigo de entendimentos entre o PCP e o PSD para "entalar" o PS. Esses entendimentos não os vemos, vemos precisamente o contrário!

Não se diga, por outro lado, que isto é um estão terrivelmente "incomodativo", "retórico", "flamejante" e "demagógico" de dizer coisas que são desagradáveis. Desagradável é a realidade, e desagradáveis são as aproximações PS/PSD. Desagradável é que, na vida política portuguesa, alguém possa dizer das, bancadas do PSD, como disse ontem o Sr. Deputado Rui Machete (numa circunstância pública em que discutiu intensamente com o Sr. Deputado António Vitorino a problemática da moção de censura construtiva), que realmente "o que separa os dois partidos são umas idiossincrasias, mas no fundamental os dois partidos estão entendidos quanto às questões fulcrais para a definição do regime democrático", etc.., etc..,... Isto é que é perturbador, isso é que é "italo-mexicanizante", isso é que conduz a um PS minúsculo e subserviente, dominado, num sistema controlado pelo PSD, com uma Constituição amputada, diminuída e, evidentemente, desprovida do seu papel condutor e dirigente. E isso é perigoso, em termos democráticos, como é óbvio.

Isto me faz dar quase por consumida a quinta observação sobre o que faz afastar e o que faz convergir os dois partidos (PCP, PS) no actual momento político e no futuro. Naturalmente tal discussão deve ser feita em termos que tenham em conta todos os valores e não apenas alguns dos que o Sr. Deputado António Vitorino invocou. E devem ser tidas em conta todas as experiências do passado e as diversas conjunturas, os diversos cenários de futuro.

Por isso, nós temos proposto ao PS que todas estas questões, sem excepção, sejam discutidas, desde as imediatas, relacionadas com as eleições autárquicas, até às de futuro em todas as suas dimensões. Acredito que esse debate deve continuar e ser prosseguido pelas duas direcções partidárias, pelos partidos, aos diversos níveis, aqui na Comissão, em todas as sedes, pela forma adequada para que apreciemos até ao fundo quais são os horrores que nos horrorizam e quais são os factores que nos aproximam. Porque é nestes últimos, naturalmente, que é preciso apostar e pela nossa parte, sinceramente, apostamos. Não podemos é quebrar aquilo que é nossa própria identidade e deixar de ter, em relação ao juízo que o PS faz quanto ao futuro da Constituição, posições críticas (que se arriscam, aliás, a ser muitíssimo diferentes das do PS, sobretudo porque temos uma prognose dos resultados das opções em que o PS está apostado, que nos parece ser tristemente certeira).

Portanto, se a nossa preocupação deve ser expressa neste debate quanto a algum ponto é em relação não tanto aos constrangimentos e horrores que o PS revela, cada vez que se expõe, como eu fiz, o alcance partidário ("abjecto" e "mesquinho" nas palavras do Sr. Deputado) da proposta do PS, mas sobretudo a maneira como tudo isto joga sombriamente na óptica do futuro do sistema,...

O Sr. António Vitorino (PS): - Assim não é possível discutir. Há um mínimo de regras.

O Sr. Presidente: -... isto é, como tudo isto joga no futuro do País, tendo em conta que está em debate a revisão da Constituição e o PS tem em tal matéria a posição claudicante que se conhece.

Sr. Deputado António Vitorino, aquilo que eu afirmei é que V. Exa. tinha dito que o PCP procurou fazer com que a moção de censura construtiva aparecesse como norteada por "mesquinhos" e "abjectos" interesses - o Sr. Deputado António Vitorino disse isto! E é evidente que não me caberia, pela minha parte, suavizar o dito...

O Sr. António Vitorino (PS): - Porque o Sr. Deputado José Magalhães vai ter oportunidade de confrontar e corrigir (porque eu nessas coisas não faço questão) os dois parágrafos que acabou de juntar um ao outro e de ver o grau de desvio.

Risos.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, juro-lhe que não omitirei uma linha, não rasurarei uma só palavra do que ficou dito. Clarificarei, quando muito, o que houver a clarificar, se for esse o caso e a necessidade.

O Sr. António Vitorino (PS): - É que tenho uma certa vocação pedagógica nestas coisas, reconheço (é um defeito meu). Na primeira intervenção o Sr. Deputado imputou-me a autoria de qualificar a proposta do Partido Socialista como abjecta e mesquinha, e no segundo parágrafo V. Exa. disse que eu tinha dito que o PCP qualificava a proposta do PS como abjecta e mesquinha. São duas coisas completamente distintas, que um alfabetizado percebe, quanto mais uma pessoa extremamente inteligente como é o meu interlocutor.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, evidentemente que eu não ia emitir-lhe um atestado de estupidez ao admitir que o Sr. Deputado se autoqualificasse como "abjecto" e "mesquinho"...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, mas um atestado de distracção, fazia.

O Sr. Presidente: - Estava completamente fora das minhas ideias! E nesta matéria nem sequer cabia distracção, porque V. Exa., como demonstrou, tem pensado intensamente na problemática da moção de cencura construtiva. Tem falado abundantemente dela, não tem variado praticamente os termos ao referi-la e, portanto, seguramente, não ia distrair-se e um dia, por mero acaso, qualificar de "abjecta" e "mesquinha" a moção de censura construtiva que na véspera tinha elogiado cono sendo "excelsa", "fundamental" e "excelente".

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É que é mais difícil demonstrar que a moção de censura construtiva é "excelente", "excelsa" e "fundamental" do que o contrário. Creio que este debate é bem a demonstração disso mesmo!

Srs. Deputados, aceitaria inscrições para outras intervenções.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não vou responder às observações do Sr. Deputado José Magalhães, até porque, de facto, isto não é uma estreia, nós já temos discutido tantas vezes esta temática, feito este debate, que naturalmente, por muitas que fossem as qualidades da proposta e até os dotes de quem a defende, nunca parti para ele na convicção de vir a convencer o Sr. Deputado.

A única coisa que queria dizer é que...

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Aí diria simplesmente que o mal é da proposta e não da defesa.

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu diria apenas à guiza de conclusão pela minha parte duas coisas apenas.

A primeira, é a de que reconheço, e é uma questão de honestidade intelectual de debate, reconheço, que se quiséssemos inventar um instrumento que medisse ao centímetro, ou ao litro, ou ao quilo, a diferença qualificativa entre o significado da proposta do PCP quanto ao artigo 195.°, e o significado da proposta do PS quanto ao artigo 197.°, elas não teriam a mesma dimensão. Reconheço isso. Agora, o que eu chamei a atenção foi, de que a preocupação que estava subjacente à proposta do PS, é exactissimamente a preocupação que está subjacente à proposta do PCP. Enquanto que a nossa preocupação é facilitar a vida a governos minoritários, a vossa preocupação é dificultar-lhes a vida.

O Sr. Presidente: - Muito minoritários.

O Sr. António Vitorino (PS): - Minoritários. É tornar os governos minoritários tão inexequíveis que se tornem desnecessários por si próprios, porque ineficientes. É possível que se trate apenas de uma cirurgia de nariz, mas pode ser também outro tipo de cirurgia, é apenas retirar a ligação entre a aorta e o coração. E essa é a habilidade do Sr. Deputado José Magalhães, é dizer "não, não, isto é ínfimo", quando na realidade em meu entender é um tiro igualmente mortal. Isto digo-lhe com toda a sinceridade.

Quanto ao último ponto, não vou discutir a prognose de sistema partidário, até porque o Sr. Deputado em relação ao PS não é nenhum Catão da evolução histórica, nós pelo menos não lhe reconhecemos esse estatuto, também não é nenhum Aristóteles da tragédia greco-socialista; nem é nenhum Piaget, não é nenhum pedagogo da valoração do sistema democrático, e do apego do PS ao mesmo e aos valores da democracia e ao significado da evolução do sistema partidário, pelo posicionameno do PS, do PCP e das restantes forças partidárias.

Esse discurso moralista, é um discurso muito característico do PCP, tendente a criar complexos de culpa na parte socialista, mas que não tem produzido efeitos e continuará a não produzir. A única coisa que gostaria de deixar claramente afirmado é de que o PS não escondeu, neste debate, o que era o seu específico interesse partidário na proposta, tal como não escondeu qual é a componente que o PS identifica como benéfica para o conjunto do sistema político. O que o PS afirmou é que não vê incompatibilidade entre uma coisa e a outra e não aceita que se pretenda insinuar que, por meros objectivos partidários, o PS debilita o sistema político-democrático português, porque essa afirmação é falsa, é indemonstrável e constitui um inaceitável processo de intenções.

O Sr. Presidente: - Se algum dos senhores deputados de outras bancadas desejar usar da palavra, concedê-la-ei com muito prazer.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Na matéria da moção de censura construtiva nós temos tido, e eu pessoalmente também, uma posição contrária. Queria, em todo o caso, que ficassem registados os limites em que somos contrários à moção de censura construtiva, pois nestas coisas as posições não são absolutas e podemos medir vantagens e inconvenientes das diversas soluções. Queria começar por dizer que, se o destino for simpático para o PRD, este será, porventura, o partido que mais poderia beneficiar com uma moção de censura construtiva e fazer, em Portugal, um pouco o que o partido liberal tem feito na Alemanha, quando as circunstâncias políticas o propiciassem, isto é, quando não se formassem maiorias à esquerda ou à direita. Quereria, em todo o caso, dizer que a razão da nossa objecção à moção de censura construtiva não é de circunstância. Devo confessar - uma vez que o modelo constitucional português que estava no texto inicial da Constituição, em 1976, veio do pacto MFA-partidos, embora uma parte tivesse desaparecido, mas reentrado pela mão do PS, e eu fui um dos redactores do projecto, do pacto- que não sei até que ponto a minha oposição à moção de censura construtiva provém de ela pôr em causa um esquema relativamente ao qual partilho da paternidade. Em todo o caso devo dizer que o que me preocupa fundamentalmente no sistema da moção de censura construtiva é o problema das relações com o poder presidencial. Mantenho isto e creio que um sistema de moção de censura construtiva, por mais habilidades que se façam, por mais que se diga que afinal o Presidente da República tem mais poderes, por mais que se diga que este Presidente da República até concorda, diria, e mantenho, que é um sistema dificilmente compatível com a eleição do Presidente da República por sufrágio directo e universal. O facto de, a partir de um certo momento, por muitas que sejam hoje as limitações de facto, o Presidente da República não ter sequer, de direito, qualquer liberdade, a partir de um certo momento, na nomeação dos governos parece-me dificilmente compaginável com o sufrágio directo e universal e, ou prenuncia uma evolução para uma eleição do Presidente da República por sufrágio indirecto, e creio que isso seria muito mau,

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ou pode conduzir ao resultado de, com um presidente que tenha um comportamento diferente daquele que este tem tido, criar situações de grave tensão e de sensação para o Presidente da República de conflito entre as suas competências e o modo de eleição.

Devo, em todo o caso, dizer que o regime que hoje vigora e que veio da revisão de 1982 já é um regime dificilmente sustentável e não foi só por teimosia que o PRD quis regressar à fórmula da Constituição de 1976 e se tem sempre oposto à solução encontrada em 1982 e propôs, embora provavelmente isso não vingue, o regresso à fórmula de 1976. Porque, tendo-se suprimido a responsabilidade política do Governo perante o Presidente da República, se manteve um regime de responsabilidade limitada do Governo perante a Assembleia da República, isto é, não se pode dizer que um governo tenha a confiança da Assembleia. É um regime de responsabilidade limitada, no sentido de que o Governo pode não ter nenhum apoio parlamentar, bastando-lhe não ter a oposição da maioria da Assembleia da República. É teoricamente possível um programa de governo passar, não ser aprovado, mas passar, e um governo manter-se, teoricamente, com zero votos na Assembleia a seu favor, desde que não tenha 126 votos contra. Ora, parece-nos que o regime actualmente existente, no esquema de 1982, é um regime incoerente, porque o Governo acaba por não ter ou poder não ter legitimidade provinda de lado nenhum. Não tem legitimidade advinda do Presidente da República, porque se põe em causa a sua responsabilidade política perante o Presidente da República e a necessidade de um mínimo de confiança política. Não tem legitimidade advinda do Parlamento, porque lhe basta que o Parlamento não seja contrário, não precisa de apoio parlamentar. Nessa linha, diria que a solução do PS, a solução da moção de censura construtiva, era uma solução mais coerente do que a que existe. Com ela vamos, claramente, para uma legitimação parlamentar do Governo. Simplesmente, pergunto o que é que nesse caso fica a fazer o Presidente da República eleito por sufrágio directo e universal? Penso que, mais dia menos dia, este problema da incoerência quanto à legitimação do Governo que hoje existe na Constituição tem de ser resolvido. Temo, no entanto, que a adopção da moção de censura construtiva seja, inevitavelmente, queira-se ou não, um passo para a eleição indirecta do Presidente da República e por essa razão, sobretudo por essa razão, sou hostil ao esquema, embora reconheça que as coisas não são obviamente tão simples como por vezes se apresentam.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino para formular perguntas.

O Sr. António Vitorino (PS): - Como nunca se sabe se algum dia alguém não se lembrará de ler estas actas e não perceberá muito bem o encadeamento, porque o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles falou não tendo ouvido a minha intervenção inicial nem as intervenções dos Srs. Deputados Rui Machete e José Magalhães e, portanto, isto pode começar a parecer um diálogo de surdos, que não é.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas nas actas não vem a altura em que nós entramos?

O Sr. Presidente: - Não. Mas a partir de agora já vem, esteja descansado, Sr. Deputado.

Risos.

O Sr. António Vitorino (PS): - Só queria dizer que, a algumas das preocupações do Sr. Deputado Miguel. Galvão Teles, eu procurei responder numa típica jogada da antecipação e só não queria deixar de sintetizar, muito esquematicamente, alguns pontos de reflexão.

O primeiro é concordar totalmente com ele, porque, como tive ocasião de dizer, aqueles que interpretam que o sistema de governo emergente da revisão de 1982 já não é um sistema de governo tipicamente semipresidencial encontrarão, na proposta de moção de censura construtiva, um reforço adicional à tese que defendem desde 1982 e um acto de coerência complementar em relação à primeira intervenção cirúrgica, no sistema de governo, operada em 1982. Nesse sentido estou de acordo com ele, embora o PRD não proponha verdadeiramente o retorno ao sistema de 1976, na medida em que, não existindo o Conselho da Revolução, o sistema de governo que o PRD propõe é um sistema de significativa presidencialização do regime político, na medida em que há de facto a reposição do relacionamento do Presidente da República com os governos, mas há a manutenção do sistema de livre dissolução do Parlamento pelo Presidente da República, que não existia na versão originária de 1976 e foi introduzida na revisão de 1982 e que, portanto, a proposta do PRD é um projecto de presidencialização do sistema político. Não é um sistema presidencial puro, é um sistema semi-presidencial com um muito significativo reforço da componente presidencial.

Quanto à questão dos poderes do Presidente da República face ao Governo tive, na minha intervenção, ocasião de explicitar o meu entendimento sobre isso, que sinteticamente é este. É verdade que há uma diminuição dos poderes do Presidente da República em relação à escolha de um primeiro-ministro na sequência da votação de moção de censura construtiva na Assembleia da República, contudo essa perda relativa de' poder, nessa circunstância, é, em meu entender, compensada por um aumento do poder do Presidente da República, após a realização de um acto eleitoral, quando escolhe um primeiro-ministro, no caso de não existir uma maioria parlamentar. Nessa conjuntura, a moção de censura construtiva funciona a favor do Presidente da República e em protecção do governo proposto pelo Presidente da República, que só pode cair através da formação, no Parlamento, de uma maioria positiva e nunca através da formação de uma maioria negativa. Aliás, neste aspecto, o PRD também não retoma a versão originária da Constituição de 1976 onde se previa que ao fim da terceira recusa consecutiva de governo haveria dissolução obrigatória do Parlamento. Ora, não recuperando também esta componente e em virtude de o Presidente da República poder escolher um primeiro-ministro a seguir a eleições que apenas se tem que preocupar que não tenha contra ele uma maioria positiva, há, em meu entender, nesta conjuntura, um acrescento de poderes do Presidente da República.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Se a Comissão aprovasse a ideia do PRD, seria o primeiro a sugerir que se completasse com o regresso a uma norma desse tipo.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Seria um completamente coerente do modelo.

Uma última observação. Não está nas intenções do PS propor que se passe a eleger o Presidente da República por sufrágio indirecto e mesmo no sistema que propomos, com moção de censura construtiva, pensamos que ainda se justificaria a eleição do Presidente da República por sufrágio directo, em virtude do poder de livre dissolução da Assembleia da República, isto é, a decisão de dissolver livremente a Assembleia da República é uma decisão que, por si só, justifica a eleição directa do Presidente da República. Mas, como nós, dentro deste esquema, introduzimos outras alterações, como seja reforçar a componente do Presidente da República na ordem externa, conferir-lhe um veto político alargado, conferir ao Presidente da República um veto absoluto em matéria da convocação de referendos e permitir que, portanto, a soma destes vários elementos do sistema de governo justifiquem que a eleição do Presidente da República continue a ser feita por sufrágio directo, porque o poder presidencial não se esgota apenas na relação com o Parlamento e com o Governo em termos de dissolução do Parlamento e de nomeação ou exoneração do Primeiro-Ministro, também têm outras componentes que procurámos alargar ao nosso projecto de revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É só um instante para afirmar que não quero dizer que haja uma incompatibilidade absoluta do sistema, porquanto também monarquias e parlamentos conviveram e frequentemente os sistemas políticos têm contradições internas que a prática vai resolvendo. O que quis dizer é que um sistema de moção de censura construtiva parlamentariza de tal maneira o sistema, na formação do governo e na intervenção do Presidente da República quanto ao governo, a não ser que o Presidente da República passe a abusar da invocação do risco de regularidade do funcionamento das instituições democráticas, que pode propender, facilmente, para a eliminação a prazo do sufrágio directo na eleição presidencial, porque o sistema que o PS propõe, se bem o entendi, é este: em princípio quem designa o governo é o Parlamento e o Presidente da República só designa se o Parlamento não tiver solução alternativa. No fundo o Presidente da República designa o Primeiro-Ministro, o Parlamento também pode fazê-lo e indicando outro candidato, portanto em última análise se o Parlamento tiver um governo é sempre o Parlamento que designa o Primeiro-Ministro e o Presidente da República só o faz a título supletivo, digamos assim, embora aparentemente as coisas não se passem desse modo. Ora, creio que uma intervenção limitada dessa natureza, quanto ao Presidente da República, insisto, e embora o sistema, em relação ao que existe hoje, se torne mais coerente no que toca à base de legitimação do governo agrava as contradições internas da Constituição, no que toca às relações entre Parlamento e Governo de um lado e Presidente da República do outro. Temo que isso conduza a uma parlamentarização excessiva do sistema. Por muito que as circunstâncias, enfim neste momento vivemos com um partido majoritário, possam parecer justificar essa parlamentarização, que ela é altamente negativa, no que diz respeito a facilitar processos minoritários -o que a moção de censura construtiva faz - a Constituição já hoje permite formas de governo minoritário, mas ao menos que o governo minoritário tenha uma certa sustentação presidencial, para se justificar. É, aliás, preciso fazer alguma distinção quanto à prática que nós tivemos dos governos minoritários. O governo minoritário que se conforma com o espírito da Constituição foi o governo minoritário do PS, em 1976, é aquilo que tenho chamado o governo minoritário centrado, isto é, o governo minoritário que não tem nem à sua direita, nem à sua esquerda, uma maioria. Há outro tipo de governo minoritário, que nós tivemos exemplo com o primeiro governo Cavaco Silva, que é tipo de governo minoritário que já nada tem a ver com a lógica da Constituição, que é o governo minoritário descentrado. O sistema constitucional que temos, ou que tínhamos desde 1976 e continuamos a ter nesse aspecto, visava facilitar a formação de governos minoritários centrados à direita e à esquerda. O governo minoritário descentrado é sempre uma situação aberrante, excepcional e transitória que corresponde normalmente à existência de uma maioria nu Parlamento que ferre eleições. E tivemos isso, embora com algumas particularidades, no caso do governo Mota Pinto e tivemos isso no primeiro governo Cavaco Silva. Primeiro, por uma certa actuação, provavelmente imprudente, do PRD que depois deu o que tinha de dar, isto é, uma moção de censura, que por mais que nos critiquem se não viesse naquela altura vinha noutra, pois era inevitável: um governo minoritário descentrado só se justifica quando a maioria parlamentar tem medo de eleições e não pode revelar esse medo permanentemente. Há um dia em que tem de arriscar, se perder, perdeu, mas ao menos arriscou. Isto não é tentar justificar a moção de censura, nem a sua oportunidade, é tentar explicar como as coisas se passaram na lógica do funcionamento do sistema. Os governos minoritários centrados exigem um ponto de apoio presidencial, têm pelo menos uma sustentação presidencial, como base de legitimação. Era tudo que tinha para dizer.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, tem a palavra.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter f alado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... embora as questões suscitadas se refiram a uma problemática muito estimulante e agradável, penso que o problema que o Sr. Deputado Galvão Teles coloca não é um problema da ausência de base de apoio do governo quer presidencial, quer parlamentar, nem é uma crítica, que se me afigure certeira, ao mecanismo da moção de censura construtiva.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Essa crítica é ao sistema actual, ao sistema gizado em 1982.

O Sr. António Vitorino (PS): - É porque, nesse aspecto, a moção de censura construtiva, apesar de tudo, resolve parte dessas preocupações.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Racionaliza no sentido da parlamentarização.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Mas, no sentido também, face à inexistência de uma maioria parlamentar positiva, de um governo minoritário que se forme ter uma maior dependência face ao Presidente da República, ou seja, quando o Presidente da República tem de escolher um primeiro-ministro a seguir a eleições perante um parlamento onde não há uma maioria positiva, o Presidente da República tem uma margem de manobra acrescida e ao ter uma margem de manobra acrescida, porque apenas se tem de preocupar que não haja uma maioria positiva contra o candidato escolhido, mas está tranquilo quanto à formação de maiorias negativas, o Presidente da República pode, não diria bem manobrar, mas proceder a uma escolha que leve a que o seu candidato seja protegido pelo mecanismo da censura construtiva e nesse contexto tenha uma relação umbilical e de dependência, face à legitimidade do Presidente da República, superior àquela que tem na lógica do sistema de 1982. E aí também ainda há uma certa recuperação do poder presidencial sobre o governo, em termos fácticos, que não em termos assumidamente institucionais. Isto acresce em termos de facto.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Em termos de facto, mas também agrava o significado dos conflitos.

O Sr. António Vitorino (PS): - Certo. Mas, já agora deixava-me concluir. A ideia é a seguinte: isto é relevante, tendo em linha de conta que a Constituição consagra uma norma que proíbe o Presidente da República de dissolver o parlamento nos seis meses subsequentes à sua eleição. O que é uma clara indicação que o sistema entende que um parlamento tem que primeiro mostrar, durante seis meses, o que vale, antes do Presidente da República poder optar por uma dissolução da Câmara. Da conjugação destes dois mecanismos, isto é, da inexistência de maioria parlamentar a seguir a eleições, portanto governo de iniciativa do Presidente da República protegido pela moção de censura construtiva, e da proibição do Presidente da República dissolver o Parlamento nos primeiros seis meses, resulta um reforço da componente presidencial.

Estou de acordo com o reverso da medalha, ou seja, quando na pendência da legislatura um governo é derrubado na Assembleia da República por um moção de censura construtiva isso é altamente limitativo do poder do Presidente da República em escolher a seguir o Primeiro-Ministro. É óbvio e estou de acordo! No entanto, é preciso medir as duas faces da moeda. É que são duas faces da mesma moeda!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, o que gostaria de dizer, em síntese, que a minha posição é a seguinte: reconheço que o sistema de governo que foi consagrado em 1982 é pouco coerente - aliás, esta sempre foi a nossa posição. Penso que o sistema proposto pelo Partido Socialista, que continua a ter em conta a necessidade de facilitar governos minoritários centrados, resolve, em alguma medida, a incoerência no que toca à base de legitimidade do governo. No entanto, ela cria, ao mesmo tempo, uma outra incoerência, na medida em que, por muito que, de facto, em certas circunstâncias e em certas conjunturas os poderes do Presidente da República possam aumentar, limitando de tal maneira a sua intervenção na composição dos governos, marca um caminho constitucional de parlamentarização progressiva, o que me parece negativo.

Portanto, não faço uma crítica total à moção de censura construtiva.

A moção de censura construtiva também suscita um outro problema e que é o seguinte: quando houver um conflito entre a Assembleia da República e o governo ele tornar-se-á muito mais grave. Vamos imaginar a seguinte hipótese: vigorava o regime da moção de censura construtiva e, quando da última moção de censura apresentada nesta Assembleia da República, ter-se-ia formado parlamentarmente um governo, imposto ao Presidente da República. Imaginemos que esse governo tinha o apoio do PS, do PRD e do PCP. É evidente que numa altura destas um acto de dissolução teria uma gravidade muito maior e seria muito mais conflituante com o Parlamento do que na hipótese de o Presidente da República não deixar formar governo. É o que terá acontecido no caso do governo Vítor Constâncio. Aí o Presidente da República recusou o nome de Vítor Constâncio como primeiro-ministro e optou pela dissolução. É evidente que a situação se teria agravado se, em vez de ter sido uma relação com partidos, tivesse havido uma eleição parlamentar do primeiro-ministro.

O Sr. António Vitorino (PS): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Se faz favor, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado, aprecio muito a valoração desse distingue, sobretudo quando transposto para a consciência colectiva do eleitorado. Essa é uma observação de politologia, mas não é susceptível de ser transformada em imputação a comportamentos do eleitorado. É muito difícil!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Deputado, penso que nas situações de crise do tipo das descritas o eleitorado vê um conflito entre o Presidente da República e os partidos e não propriamente entre o Presidente da República e a Assembleia da República. No entanto, posso estar enganado, mas não é isto que é essencial.

Embora a moção de censura construtiva tenha a vantagem de em certos aspectos racionalizar o sistema, tem de negativo o facto de acentuar o traço parlamentar. Nós somos contra a acentuação do traço parlamentar do sistema, portanto não somos adeptos da moção de censura construtiva.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que todos ganhámos com o desenvolvimento desta questão.

Não sei se algum dos Srs. Deputados quer usar da palavra, designadamente os deputados do PSD, que têm estado extremamente atentos, mas não tão intervenientes como os olhos revelam.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Atentos e divertidos, Sr. Presidente.

Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, é só para ditar para a acta que tudo o que tínhamos a dizer sobre essa matéria já foi dito em intervenção fundada e apurada da nossa bancada.

O Sr. Presidente: - Portanto, as manifestações oculares são desnecessárias são um mero reforço.

Risos.

Srs. Deputados, em matéria de moção de censura construtiva creio que esta reflexão permitiu aprofundar alguns problemas. Pela minha parte, fiquei com uma redobrada atenção.

Primeiro, os proponentes apresentam um determinado modelo, mas não podem deixar de reconhecer que o seu funcionamento é bastante distinto consoante olhemos a questão no momento inicial, isto é, na investidura, ou consoante olhemos as hipóteses de efectivação do mecanismo na pendência do governo minoritário, caso em que tudo se agudiza. E agudiza-se porque há uma clara diminuição, clara constrição e uma clara deslocação da balança de poderes.

A segunda, e porventura muito mais interessante, reflexão é a que resulta do facto de, tal como todos os outros, este sistema ser designado como uma "cláusula de salvaguarda" - que é como as bombas de emergência dos outros sistemas -, para ser activada quando todos os outros falham. A cenarização que aqui nos foi transmitida propicia uma discussão interessante, mas também extremamente abstracta. Há que saber como é que se faz entrar em funcionamento este sistema para que se verifique não a segunda hipótese mas, sim, a primeira, isto é, não a efectivação do mecanismo na pendência de um governo já formado mas efectivação do mecanismo nesse momento glorioso e inicial que o Sr. Deputado António Vitorino aqui cenarizou com grande sinceridade e com grande reflexão.

Nesse segundo cenário, a ilegitimidade ou a falta de legitimidade de um governo sem base parlamentar majoritária resulta magnificada pela legitimidade presidencial transfusa. Há, portanto, nesse caso uma ligação umbilical entre uma base parlamentar precária e uma legitimidade presidencial plena.

Esse raciocínio tem apenas uma dificuldade, que é o famoso missing link: como é que se passa de um elo da cadeia para o outro elo da cadeia sem que o agente se estatele? Como se passa de uma maioria absoluta para um governo minoritário sintonizado com um presidente? Essa é a questão básica! O Sr. Deputado não tinha que reflectir sobre isso mas quando se pensa num sistema como o proposto pelo PS, em condições como as portuguesas, tem que se pensar em termos das suas aplicações potenciais... É forçoso que o PS tenha pensado nelas, embora não seja obrigatório que revele os frutos das suas reflexões...

Curiosamente, a cenarização à qual o Sr. Deputado António Vitorino dedicou mais atenção (a segunda hipótese é, provavelmente, a menos relevante. O primeiro caso, que pressupõe esse momento glorioso, esse momento de transfusão de legitimidades, em que o Presidente da República faz governo uma minoria, esse momento que transforma a minoria em maioria ou em que se dá a uma minoria os mesmos poderes de uma maioria de pedra e cal, foi objecto de uma cenarização de grau zero por parte do PS. É curioso, é significativo e apenas alerta para algumas das dificuldades chave que nos tinham preocupado! Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Gostaria de tentar perceber se a intervenção que o Sr. Deputado acabou de fazer é a síntese da óptica da bancada do PCP ou se falou enquanto presidente em exercício da mesa da Comissão. E que o tem institucional e as considerações adjacentes deixam-me nessa angústia existencial, que espero que desfaça, sob pena de considerar que ganhei o debate.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, falei na qualidade de membro da bancada. O tem institucional será, quando muito, por arrastamento.

O Sr. António Vitorino (PS): - Estou esclarecido, Sr. Presidente.

Só gostaria de dizer que a questão da cenarização poder-nos-ia levar muito longe e não creio que seja aqui, apesar de tudo, o momento vantajoso para o fazer.

Gostaria ainda de chamar a atenção para o seguinte: não vale a pena transmutar o terreno do debate. O problema da moção de censura construtiva é um problema que opera quanto à constituição e à cessação do governo, mas não resolve toda a panóplia de problemas que o Sr. Deputado José Magalhães colocou e que tem a ver com o grau de estabilidade desse governo. Nesse sentido são totalmente pertinentes as observações do Sr. Deputado Miguel Galvão Teles quanto aos governos minoritários centrais e aos governos minoritários descentrados.

O Sr. Presidente: - E ainda se podia aludir aos outros factores de instabilidade, designadamente os que decorram de condições sociais e económicas, de plataformas políticas, de outras articulações, subarti-culações com vertentes nos subsistemas políticos...

O Sr. António Vitorino (PS): - E até podíamos falar dos chamados governos minoritários com partido de apoio.

O Sr. Presidente: - Incluindo os "governos-minoritários com partido de apoio", Sr. Deputado. É óbvio!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Isso era o que vocês queriam!

O Sr. Presidente: - Mais: podemos falar de governos minoritários com partidos de apoio manietados e com partidos de apoio livres...

O Sr. António Vitorino (PS): - A cenarização é susceptível de nos levar longe. Só que as observações que o Sr. Deputado José Magalhães fez nessa sua última

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intervenção são mais um moderado libelo acusatório aos governos minoritários enquanto tais do que propriamente à existência da moção de censura construtiva.

O Sr. Presidente: - É um entendimento realmente optimista, parcial e resultante seguramente de uma deslocação do Sr. Deputado António Vitorino durante o debate. Nós estivemos parados no mesmo sítio dados os nossos princípios. Se alguma coisa se mexeu, não fomos nós!

O Sr. António Vitorino (PS): - Não creio que tenha razão nessa sua última observação.

O problema que colocou foi o de dizer o seguinte: os governos minoritários são precários, têm dificuldades em ver aprovadas na Assembleia da República as suas iniciativas legislativas. Um governo minoritário com tais dificuldades e protegido pela moção de censura construtiva é um factor de bloqueamento do sistema de governo. Foi isso que o Sr. Deputado José Magalhães quis dizer, embora, naturalmente, não o tenha exprimido com esta objectividade.

Nesse sentido a nossa opinião é a de que se essa situação fosse levada a um extremo intolerável sempre caberia o accionamento do mecanismo do n.° 2 do artigo 198.° da Constituição. Portanto, o sistema tem válvula de segurança também para esse cenário. O problema que se coloca aí é um problema que tem mais a ver com a questão da natureza política desses governos minoritários e com a sua inserção no conjunto do sistema partidário do que propriamente com o mecanismo da moção de censura construtiva. Por exemplo, recordo-me que em 1987 o próprio Partido Comunista Português expressou a opinião de que a votação da censura ao governo minoritário de Cavaco Silva podia e deveria dar origem à formação de um governo minoritário do Partido Socialista, que contaria com um cheque em branco durante seis meses, por parte do PCP, para governar.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O PS não queria que fosse há seis meses!

Vozes.

O Sr. Presidente: - Ou não acreditou que se tratava de um cheque ou não acreditou que estava em branco!

O Sr. António Vitorino (PS): - Sobretudo, não acreditava que estava em branco.

Risos.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado António Vitorino não o disse! Aliás, V. Exa. não acabou o seu raciocínio...

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, o meu raciocínio vale mais por aquilo que deixa subentendido, na exacta medida em que se interprete o que aconteceu em 1987.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, há ainda outra coisa que gostaria de sublinhar e que me leva a ter um certo receio da moção de censura construtiva.

O sistema partidário que temos não se deve alterar muito nos próximos tempos. Aqui vou esquecer o papel possível do PRD. Na situação em que este partido se encontra se não houver uma maioria num lado nem no outro, com qualquer sistema o PRD poderá escolher o governo possível, isto é, um governo para a direita ou para a esquerda. Isso é indiscutível, com ou sem moção de censura construtiva. A sua situação será mais confortável com a moção de censura construtiva, já que poderá impor soluções ao Presidente da República, digo isto apenas para mostrar que, nas minhas considerações, excluo qualquer critério de benesse partidária.

Quando na proposta de pacto MFA-partidos, que tive a honra de ajudar a redigir, propusemos a solução de que as moções de censura teriam de ser aprovadas por maioria absoluta dos deputados estávamos concretamente a pensar no problema das relações entre o Partido Socialista e o Partido Comunista.

O ponto foi retirado por oposição do PSD. O PSD, nessa altura, batia-se pela necessidade de governos majoritários. Entendeu-se que essa matéria não devia fazer parte do Pacto, que não era matéria que se justificasse estabelecer nas relações entre o Conselho da Revolução e os partidos, o que era verdade. O PS retomou, porém, a proposta na Assembleia Constituinte. Lembro-me de que no princípio o Partido Comunista foi hostil, hesitou, mas acabou por apoiar. Foi assim que o sistema passou à Constituição. Recordo-me do desgosto profundo que teve o meu amigo Prof. Jorge Miranda...

Vozes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A não ser que as relações entre o PSD e um partido à sua direita se agravem muito, a hipótese de um governo minoritário interessa essencialmente ao Partido Socialista.

O que é que acontece com o sistema constitucional actual? Se o Partido Socialista quiser fazer um governo minoritário não precisará de se entender formalmente com o Partido Comunista, já que este acabará, normalmente, por ter de tomar uma atitude na Assembleia da República que permita ao governo passar. Mas isto exige, nas relações entre os partidos, um mínimo de cautelas recíprocas.

O sistema de moção de censura construtiva é enfiar o governo pela goela abaixo do Partido Comunista.

Risos.

O que é que, em termos práticos, acontece? Numa situação destas o governo passa, inevitavelmente, porque o Partido Comunista, não tem possibilidade de o impedir: teria, para isso, de apresentar, uma o PSD, ou o PSD e o CDS, um governo alternativo. Se a questão for com o PSD e houver um partido à direita com o qual tenha más relações ainda se poderia experimentar fazer isso. O que é verdade é que há uma vocação no PS para fazer acordos com o CDS. Sabemos que uma maioria para a nomeação de primeiro-ministro entre o PSD e o PCP nunca se formará. Só se houver uma ameaça de fascismo.

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O que acontece a partir daí? É que deixa de haver razão para existirem cautelas recíprocas entre o Partido Socialista e o Partido Comunista. Temos o Partido Comunista em guerra aberta contra o governo do PS porque fica completamente marginalizado. Aquilo que é a virtude de um governo minoritário, que é um governo que tem uma linha intermédia, oscilando com entendimentos de um lado e de outro - é, por exemplo, hoje o caso francês - passa a ficar reforçadamente sob ataque... Não acredito que um governo desses dure seis meses porque o desgaste fora do sistema será insustentável.

Enfim, esta é apenas uma opinião. Podem as coisas evoluir, há tanta coisa que se está a transformar, pode tudo mudar.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Carlos Encarnação deseja formular perguntas ao Sr. Deputado Galvão Teles?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Era no sentido de fazer uma pequena interrupção ao Sr. Deputado Galvão Teles, mas ele já terminou a sua intervenção, Sr. Deputado, pode haver inclusivamente o medo de os deitar abaixo, não é?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD: - De quem?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Em relação a experiências históricas anteriores.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD: - Sr. Deputado, o sistema de governo minoritário como está estabelecido actualmente não permite ao PCP atacar ferozmente porque ele pode condicionar sem deitar abaixo, mas também não permite ao PS que esqueça que o problema é este.

De facto, não estou a defender alianças entre o PS e o PCP. Um governo minoritário tem de ter em consideração as forças políticas que estão à direita e à esquerda, e tem de agir com um certo equilíbrio no meio do caminho.

No fundo, a ideia da moção de censura construtiva é a de fazer de conta que não existe PCP no sistema constitucional. Por outras palavras, é fazer com que tudo se passe como se não existisse Partido Comunista no quadro parlamentar. Creio que isso é mau e negativo porque, quer se goste ou não, ele existe e tem poder noutras zonas. Para além disso, na situação de um governo minoritário a tentação do ataque implacável torna-se excessivo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado, achei este um excurso interessantíssimo, embora não subscreva toda a sua lógica porque penso que é, ainda assim, um excurso estático. Ele não tem em linha de conta a dinâmica interna do próprio sistema partidário com as capacidades inovadoras dos mecanismos institucionais, inclusive o da moção de censura construtiva acerca da evolução do posicionamento recíproco dos partidos.

Mas, essa é uma observação de somenos importância neste contexto. Aliás, penso que a descrição é interessante porque vem de que quem está aparentemente descomprometido contra todas as soluções que sumariou.

O Sr. Presidente: - Essa do aparentemente é insinuante!

O Sr. António Vitorino (PS): - Sim, porque como o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles começou logo por referir que essa sua posição não tinha nada a ver com o papel do PRD, e retirou o seu partido deste diálogo...

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. António Vitorino (PS): - Srs. Deputados, eu poderia cenarizar uma situação em que o PSD embora perdendo a maioria absoluta seria ainda o partido mais votado, e formaria um governo minoritário protegido pela moção de censura construtiva.

Portanto, as considerações que o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles produziu em relação ao posicionamento do PCP no sistema político face a um governo minoritário do PS poderiam ser reproduzidas relativamente ao CDS.

Neste sentido, o que apenas pretendo trazer como apport é sublinhar que não se trata de um mecanismo descentrado do sistema partidário e que apenas ingira nas relações partidárias de uma determinada área política.

Embora eu tenha acabado de afirmar isto, gostaria, desde já e antes que o Sr. Deputado José Magalhães me acuse de estar a tentar seduzir - ou algo bastante pior - o PSD acerca desta matéria, de dizer que o faço não como táctica negociai, mas apenas como um apport para que na análise das cenarizações possíveis não amputemos nenhuma das componentes do sistema partidário, faço-o, digamos, em defesa do CDS, ausente da sala neste momento.

Portanto, é um dos tais caso em que o PS intervém - como diria o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles - estranhamente em coligação com o CDS.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, gostaria apenas de dizer o seguinte: é óbvio que a questão debatida se pode repetir em relação ao CDS. Aliás, referi-o quando falei das relações do PSD e do partido à sua direita, o CDS ou qualquer outro. No entanto, é evidente que se coloca com menos intensidade.

De qualquer modo, para além do facto de o CDS ter sido muito reduzido na sua expressão numérica - poderá não se manter assim e temos de admitir isso - , por um lado é mais fácil um entendimento, um sistema de relação entre o PSD e o CDS do que entre o PS e o PCP, pelo menos à primeira vista.

Por outro lado, aquilo que bloqueia a situação à esquerda, e que se traduz numa absoluta ou quase absoluta impossibilidade de um entendimento positivo

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entre o PCP e o PSD, já não funciona como bloqueio absoluto, como a história o demonstra, nas relações entre o PS e o CDS.

Como sabemos, a moção de censura construtiva é sempre uma tentação para os dois partidos que estão colocados ao centro. Lembro-me de ter escrito um artigo acerca disso no Diário de Notícias, o qual findava com alguma maldade. Não foi por acaso que o Dr. Sá Carneiro pensou na moção de censura construtiva, e esse artigo referia esse aspecto. O Dr. Sá Carneiro tinha nessa altura entrado na AD e obviamente que estava a pensar em criar meios para ter as mãos livres em relação ao CDS. Isto passou-se mesmo no fim da AD, e o artigo tinha alguma maldade, mas era evidente que o pensamento político era esse.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, eis como a partir da reflexão sobre a moção de censura construtiva fizemos não só uma viagem pelo sistema partidário enquanto tal bem como pelas suas origens, as suas vicissitudes, o seu futuro, o sistema político, os poderes dos órgãos de soberania, as relações entre os seus diversos tipos, a formação e derrube dos governos, as causas desse derrube, as não causas do derrube dos governos e as soluções que nessa matéria os diversos partidos apresentam, assim como as suas razões, as suas apreensões e os seus projectos.

Nestes termos, declararia encerrado o debate sobre esta proposta apresentada pelo PS e passaríamos à apreciação do artigo seguinte.

Este artigo, reatando o fio ao debate que vínhamos travando, é o 211.°, relativamente ao qual foi apresentada uma proposta do PSD do seguinte teor: "As audiências dos tribunais são públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para defesa da dignidade das pessoas e da moral pública, salvaguarda dos segredos de Estado ou para garantir o seu normal funcionamento."

Daria agora a palavra a um dos Srs. Deputados do PSD para fazer a respectiva apresentação, caso o desejem.

Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O PSD propõe em sede de artigo 211.° apenas duas alterações: a substituição da palavra "salvaguarda" por "defesa", e a introdução do inciso "salvaguarda do segredo de Estado".

Este artigo concerne à questão do princípio da publicidade das audiências dos tribunais, que consiste numa exigência do Estado de direito democrático, e é também, paralelamente, uma garantia de defesa dos cidadãos face à justiça.

O princípio da publicidade conhece determinadas excepções, as quais implicam um despacho objectivamente motivado por parte do tribunal. Portanto, o PSD considerou que, para além das excepções que já constam do normativo, como sejam a defesa da dignidade das pessoas, da moral pública e da garantia do normal funcionamento por parte do tribunal, se justifica a abertura de uma nova excepção que tem a ver com as questões objecto do segredo de Estado.

Daí, entendermos que também deve ser derrogado o princípio da publicidade e, portanto, deve verificar-se uma situação de audiência secreta, embora mantendo aquela limitação, que consiste na obrigatoriedade do despacho objectivo e motivado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está aberta a discussão.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que isso que está inserido na lógica do que aprovámos quanto ao segredo de Estado, embora coloque um problema. Devo dizer que não sou totalmente contra o conceito do segredo de Estado mas apenas para além de certos limites.

Assim, depois de se saber quais são os casos em que se pode inquirir na base do segredo de Estado, pessoalmente não tenho qualquer objecção a uma solução destas. Ela está inserta na lógica do que já se aprovou do consenso que se formou acerca do segredo de Estado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, da parte da bancada comunista a atitude em relação a esta proposta é de reserva, uma vez que ela se insere num conjunto de preocupações do PSD de reforçar não a transparência mas o secretismo. O debate que travámos acerca da norma que o PSD propõe quanto aos titulares de cargos políticos, no sentido de consagrar - e que na altura se apelidou de "rolha eterna" - um tal dever de silêncio mesmo após o exercício de funções, é bem elucidativo. O próprio PSD reconheceu que era excessiva a medida em que propunha essa consagração do segredo de Estado. As nossas propostas vão no sentido contrário.

Neste caso trata-se de reflectir sobre se tem cabimento ou não uma norma como a que é proposta. Chamo-vos a atenção para o facto de que não se pode deixar de ter em conta qual é o regime do segredo de Estado: evidentemente é irrigoroso dizer que a lei portuguesa "não regula" o regime do segredo de Estado. Regula, e designadamente a lei processual penal tem normativos atinentes a essa matéria: prevê os casos em que ele pode ser invocado, os casos em que pode ser quebrado e os casos em que deva ser, a todos os títulos, mantido.

O Código de Processo Penal, inclusivamente, prevê, porventura por excesso, a manutenção do segredo em hipóteses em que talvez não se justificasse a sua própria invocação, quando ela pode conduzir à subversão da repartição de competências entre órgãos de soberania, à inviabilização da realização da justiça e à impossibilidade de cumprimento das funções próprias dos tribunais. Por outras palavras, se no sistema actual o Primeiro-Ministro, que é o guardião supremo do segredo de Estado, denega autorização para a quebra do segredo, impedindo funcionários da Administração Pública de, perante os tribunais, revelarem conhecimentos de que são detentores sobre este ou aquele outro facto, pode-se tornar impossível a sua perseguição e a responsabilização criminal, mesmo na hipótese em que se verifiquem verdadeiros crimes. Isso equivale à restauração da garantia administrativa prescrita pelo artigo 271.° da Constituição!

Este é um risco real. A invocação do segredo de Estado pode conduzir à impossibilidade de efectivação das finalidades próprias do processo criminal, e até à restauração de fórmulas oblíquas de garantia administrativa, traduzida no facto de determinados agentes da Administração Pública, neste caso, por exemplo, os agentes secretos, os dos serviços de informações, poderem ser isentados de produzir testemunhos, ou de irem além de determinado ponto nos seus testemunhos, por forma tal que seja impossível efectivar as suas próprias

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responsabilidades, e, logo, deixar fora do controle judicial áreas e áreas de actividade podendo envolver altos e relevantes interesses de Estado. O segredo volta-se, então, contra o Estado democrático!

Mas nas hipóteses em que nada disto ocorra e haja quebra de segredo de Estado tem razão de ser esta norma proposta pelo PSD? É que a norma do artigo 211.° é terminante. Ela define, nos seus precisos termos, que não há nenhuma possibilidade de introduzir secretismo fora dos próprios termos em que a Constituição baliza a realização das audiências com carácter público.

A regra da publicidade é realmente levada longe pela Constituição, mas é-o em homenagem a interesses que são seguramente relevantes. O PSD, ao quebrar essa regra, escancara portas ao secretismo. Sobretudo porque viabiliza que maiorias ordinárias estabeleçam regimes piores do que aqueles que estão em vigor neste momento. Nem é necessário aprovar o projecto do CDS sobre segredo de Estado que está neste momento pendente na Câmara: basta que o regime actual seja mantido ou ligeiramente alargado. Não podemos concordar com esse abrir de portas ao secretismo!

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Estou largamente de acordo com as considerações do Sr. Presidente quanto ao cerne da questão em matéria de segredo de Estado. Aliás, no outro dia fiz uma intervenção e creio que disse mais ou menos o que penso nessa matéria, embora haja aqui que distinguir -e já falámos disso - o segredo de Estado do dever de sigilo, que não são exactamente a mesma coisa.

Mas, desde que admitamos, e parece-me que teremos de admitir, com os seus limites, que há realmente segredos de Estado, então julgo que, tratando-se de matéria de segredo, a audiência pode e deve ser secreta. Caso contrário, o entendimento pode ser o de que a Constituição está a proibir que havendo segredo de Estado haja sequer a possibilidade de processo. Isto levantará um problema que terá de ser resolvido no plano da lei ordinária, ou seja, o de saber quando é que o segredo de Estado impede o próprio processo, o próprio depoimento ou a própria inquirição, ou quando é que ele permite a inquirição em audiência secreta.

Portanto, penso que desde que se admita que haja segredo de Estado, e que se admita que ele não impeça em absoluto a inquirição -parece-me que não a deve impedir em absoluto-, se deve permitir que a audiência seja secreta.

Uma outra questão substantiva é a de delimitar o segredo de Estado. É óbvio, e creio que já exprimi claramente a minha posição acerca dessa matéria, que o segredo de Estado tem de ser restrito. Tem de ser restrito pela matéria, pelos interesses protegidos, tem de ser restrito no sentido de não poder ser invocado para encobrir actos que consistam em infracções pelo menos criminais, etc.. Mas isso é a delimitação substantiva do segredo de Estado. Desde que a audiência se admita parece-me que teremos de permitir que ela seja secreta. Este é o meu ponto de vista.

Portanto, Sr. Deputado, compartilho as suas preocupações quanto ao aspecto substantivo, e, aliás, referi-o publicamente. De facto, não disse que as com-

partilhava; reportei-me às minhas preocupações, mas pelos vistos parece que não se encontram muito longe uma das outras.

Em todo o caso, naqueles limites em que se verifique o segredo de Estado já não me repugna que a audiência seja secreta. Prefiro que ela seja secreta a que se tire a consequência que nem sequer audiência pode existir.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que as posições do Sr. Deputado Miguel Galvão Teles são bastante importantes e, em termos gerais, penso que são compartilhadas por nós.

De facto, não há aqui uma confusão, como o Sr. Presidente tentou demonstrar, entre segredo de Estado e direito de sigilo. Há, sim, a alusão concreta a uma coisa que é segredo de Estado, e é nestes termos que deve ser entendido.

Assim, penso que o Sr. Presidente poderá discutir, como disse o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles - e muito bem -, a substância deste instituto, mas, de qualquer modo, existindo ele, deve estar, nomeadamente neste artigo, salvaguardado em relação às audiências dos tribunais. Não vejo outra maneira de o prever e de salvaguardar esta situação que não seja incluí-la aqui nestes limites. Aliás, Sr. Presidente, devo dizer-lhe que mesmo em termos de legislação comparada esta questão é variadíssimas vezes aflorada e salvaguardada em termos muito paralelos àquilo que é aqui feito na Constituição Portuguesa.

O Sr. Presidente; - Srs. Deputados, se não há outras inscrições e sem prejuízo de outras intervenções, designadamente dos Srs. Deputados do PS, logo que regressem à participação nos trabalhos da Comissão, gostaria de fazer algumas considerações.

A primeira: sem qualquer dúvida acerca da boa fé de observações feitas em relação a esta matéria, creio que há um equívoco básico quanto ao objecto do debate. De facto, estamos a falar de muitas espécies de tribunais e para vários efeitos. Isto não se aplica somente aos tribunais criminais. A invocação de segredo de Estado tem uma relevância diferente em função dos tipos de tribunais de que estejamos a falar.

Neste âmbito, creio que o maior equívoco que se estabeleceu foi entre o dever de sigilo e a invocação do segredo de Estado em geral para fechar audiências ao público. Concretamente no que diz respeito à área relativamente à qual esta temática pode ser mais melindrosa, isto é, a área do direito processual penal, a invocação do segredo de Estado quando confirmada impede a revelação dos factos. Portanto, não há factos, não há nada a dizer à porta fechada. É esse o significado do segredo de Estado e não outro.

Segundo comentário: se uma cláusula genérica do tipo da do PSD fosse introduzida, a lei ordinária poderia vir a viabilizar audiências à porta fechada, por tutela do alto e relevante interesse do Estado merecedor de segredo. Por juízos de valor diferenciados porventura erróneos, o legislador ordinário poderia entender que certas audiências devem ser segredo, ainda que nelas não se revelem verdadeiros e próprios segredos de Estado.

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Neste sentido, se nos termos do artigo 137.° do Código de Processo Penal as testemunhas "não podem ser inquiridas" acerca de factos que constituam segredo de Estado, e se o que acontece é que invocado este segredo, das duas uma: ou a testemunha vê a invocação confirmada pelo Ministério da Justiça no prazo de 30 dias ou, então, o testemunho deve ser prestado. De facto, quando o testemunho seja prestado não há segredo. Portanto, o testemunho é prestado, não há segredo, pode ir para tribunal em audiência pública, não há razão para sigilo, tudo deve ser revelado, etc.., etc.. Quando, ao invés, haja segredo de Estado, a testemunha está calada e logo a audiência não tem nada de ser fechada em nome da testemunha, porque esta é muda. A ser assim, este será um falso problema...

O que esta cláusula induz é uma outra coisa, ou seja, a possibilidade de o legislador ordinário vir a qualificar como razão para o fecho de audiências um segredo "de Estado". E isto porque se fala num qualquer documento, porque a testemunha foi um alto funcionário, etc.. Tal alteração cria uma margem de arbítrio que, quanto a nós, não tem nenhum mérito mas "trezentos" deméritos, dos quais enumerei só dois ou três. De facto, exprimi apenas um alerta para não se estabelecer um equívoco.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, é evidente que esta disposição supõe -e nesse aspecto parece-me vantajosa- que o segredo de Estado pode não impedir legalmente o depoimento. Poderá, porém, haver situações em que impeça o depoimento, ou outras em que não o faça mas obrigue a que esse depoimento seja prestado à porta fechada.

Actualmente, o novo Código de Processo Penal estatui que se determinada situação for objecto de segredo de Estado e este for confirmado não há inquirição. O sistema constitucional proposto permite uma situação em que, apesar de haver segredo de Estado, se inquira, mas em audiência secreta.

O Sr. Presidente: - Isso é que não está escrito em sítio nenhum, Sr. Deputado.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Pode depreender-se!

O Sr. Presidente: - Ou o contrário! V. Exa. não tem nenhuma garantia nesse sentido! E V. Exa. até tem a garantia da possibilidade de tornar sigilosos, em nome do "segredo de Estado", processos que hoje decorrem em audiência pública.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - Exactamente, Sr. Deputado, mas pense nos tribunais militares.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A minha preocupação coloca-se no plano da definição daquilo que é o segredo de Estado. Sugeriria, então, para a redacção deste preceito que se referisse a salvaguarda do segredo de Estado tipificado na lei.

O Sr. Presidente: - Isso traz o mesmo problema, pois a lei em causa é a ordinária e esta pode tornar secretas as audiências em nome do segredo de Estado por se entender que este último existe e que determinadas audiências devem ser segredo de Estado.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É evidente que se o projecto de revisão constitucional passasse...

O Sr. Presidente: - Era um desastre!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não é por causa disto mas, sim, por causa de tudo! Isto é, não me oponho ao segredo de Estado em termos limitados - e admito que esta seja uma consequência - e isto parece implicar que se pode inquirir sobre o segredo de Estado em audiência secreta.

Entretanto assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de referir - e foi pena que o Sr. Deputado José Magalhães se ausentasse agora dos trabalhos - que não basta citar nesta sede o Código de Processo Penal para dizer que não há inquirições quando esteja em causa matéria de segredo de Estado. E digo isto porque se se estipular, como se pretende, na proposta do PSD de que possa haver audiências reservadas sobre segredo de Estado, apesar de essas não serem públicas não lhe chamaria secretas, e como a norma do segredo de Estado do Código de Processo Penal na hierarquia das leis é inferior - e isso só pode resultar, em termos de interpretação coerente, do articulado normativo - vai suceder que desde o momento em que o artigo proposto pelo PSD vigorar na Constituição o tribunal pode analisar um ou vários factos em que estejam em causa o segredo de Estado. E lembro que, antes, não podia haver sequer inquirição, ou seja, ao tribunal não lhe era permitido analisar uma matéria que tivesse em causa o segredo de Estado. Portanto, neste momento não há um secretismo, mas, pelo contrário, uma abertura. Não está em causa, na análise da nossa proposta de alteração do artigo 211.°, um alargamento ou não do segredo de Estado. De facto, neste articulado não se está a normativizar o que é o segredo de Estado. Isso remete-se para outra sede. Entretanto, o que é um facto é que com esta norma se alarga a publicidade e não se diminui. Aliás, a Constituição é e tem de ser superior ao Código de Processo Penal seja ele qual for. Também já disse que pode haver audiências à porta fechada sob segredo de Estado, mas com este Código de Processo Penal se existe segredo de Estado não há audiências nem sequer à porta fechada.

Vou ainda debruçar-me sobre uma outra questão que é o problema da equiparação. Entende-se no caso de dignidade das pessoas tal como nos termos do artigo 26.° da Constituição, que se trata de um problema de direito à intimidade e à vida privada. Existem certos casos que, como a lei fundamental já prevê, não podem de maneira nenhuma ser colocados em causa, mesmo que eles próprios sejam verdadeiros: é o caso previsto no artigo 211.° Há uma privacy pró-

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pria do Estado em certas matérias e, nesse sentido, deve constitucionalizar-se essa questão. Além disso, verifica-se uma outra diferença, entre o que se considera como segredo de Estado e o que se pode entender por dever de sigilo. Se não estiver aqui consagrado o "segredo de Estado" não se sabe até que ponto é que muitos dos agentes, sejam eles quais forem, dos serviços de informações respeitam o dever de sigilo. Se for considerado segredo de Estado todas essas questões serão salvaguardadas com a abertura que esta proposta do PSD sobre o artigo 211.° confere, contrariamente ao que o PCP proclamava.

O Sr. Presidente: - Como não está presente o Sr. Deputado José Magalhães para apresentar a proposta do PCP sobre o artigo 211.°-A, vamos passar para o artigo 212.°, cuja epígrafe é "Organização dos tribunais".

Existe uma proposta do PCP no sentido de se especificar a primeira e segunda instâncias por números e não por palavras. A proposta refere expressamente os tribunais administrativos e fiscais como constitucionalmente obrigatórios e não como facultativos. Assim, facultativos passariam a ser apenas os tribunais marítimos. O Tribunal de Contas passaria também a ser um tribunal constitucionalmente obrigatório.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O Tribunal de Contas já o é, Sr. Presidente!

O Sr. Presidente: - Exacto, Sr. Deputado.

O PS refere na sua proposta sobre o mesmo preceito a expressão "Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: [...]". E isto pela razão simples de que autonomizamos o Tribunal Constitucional, deixando de ser o primeiro dos tribunais judiciais para passar a ser um tribunal com características próprias, ou seja, com alguns ingredientes de competência ou de significado político.

Seguidamente, referimos na alínea b) do n.° 1 do artigo 212.° também "os tribunais administrativos e fiscais, com uma ou duas instâncias, e o Supremo Tribunal Administrativo". Portanto, constitucionalizaríamos como obrigatórios os tribunais administrativos e fiscais e como facultativos manteríamos apenas os marítimos e os arbitrais que não estão previstos expressamente na Constituição.

Por sua vez, o PEV elimina a actual alínea d) do n.° 1 do artigo 212.°, ou seja, a existência de tribunais militares. É, de facto, uma proposta corajosa, mas não propõe mais nada.

Pediria agora ao Sr. Deputado José Magalhães para apresentar a proposta do PCP, que, no fundo, consagra a existência dos tribunais administrativos e fiscais como obrigatórios, sendo facultativos apenas os marítimos, tal como acontece com o PS, embora incluamos também os tribunais arbitrais como facultativos.

Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, noto que se saltou o artigo 211.°-A.

O Sr. Presidente: - Fizemo-lo, Sr. Deputado, porque V. Exa. não estava presente. Isso foi feito em homenagem à sua presença. Podemos, porém, voltar atrás na análise dos preceitos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Talvez seja preferível...

O Sr. Presidente: - Esse artigo 211.°-A, na redacção dada pela proposta de criação de um novo preceito, tem como epígrafe a seguinte expressão: "Formas não jurisdicionais de composição de conflitos." Assim, sem prejuízo de recurso para os tribunais jurisdicionalizados, a lei "definirá a admissibilidade, as formas e os efeitos da composição não jurisdicional de conflitos" - previsão esta ínsita na sua alínea a). Penso que o termo "composição" é entendido no sentido de composição das partes em conflito.

A alínea b) refere que a lei, com a citada salvaguarda do corpo do artigo, "poderá tornar obrigatório o recurso à arbitragem". Portanto, consagra-se a necessária existência de tribunais arbitrais, ideia essa reforçada pelo estatuído na alínea c), que refere que a lei "poderá prever a institucionalização de tribunais arbitrais permanentes".

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, recolhe-se, nesta nossa proposta de criação de um novo artigo 211.°-A, aquilo que tem sido uma reflexão alargada feita ao longo de bastantes anos no próprio âmbito parlamentar, e que teve momentos particularmente relevantes quando estudámos e viemos a aprovar legislação sobre o regime jurídico da arbitragem - matéria que teve entre nós um acidentado percurso, que passou mesmo pela jurisprudência constitucional e que não beneficiou, no entanto, de uma expansão tão larga quanto alguns lhe tinham vaticinado. Nada exclui que tal venha a acontecer na nossa circunstância jurídica e, designadamente, na esfera económica, onde o instituto tem virtualidades que dependem muito da dinâmica e da vontade dos agentes económicos.

A norma proposta pelo PCP é, no entanto, bastante mais ambiciosa. Visa-se, de facto, alertar para a necessidade de, não por subterfúgio nem por derivação oportunística ou instrumental, descongestionar os tribunais. Trata-se de criar outras formas, para além dos próprios tribunais, para dirimir conflitos, cuja verificação é múltipla e pode situar-se nos mais inversos terrenos e ter os mais diversos protagonistas. Daí a cláusula que propusemos, que não tipifica, nem fecha os terrenos e as balizas dentro das quais há-de mover-se o legislador ordinário. Ela é apenas uma cláusula de "admissão da admissibilidade", isto é, remete para o legislador a definição das condições ou das formas através das quais se deve efectivar e dos efeitos das estruturas e das modalidades de composição não jurisdicional de conflitos.

Na verdade, da sua operatividade, da sua utilidade fala a experiência de reestruturação do aparelho de justiça em sistemas, similares ao nosso ou não. A composição não jurisdicional vem assumindo uma generalizada relevância e tem modalidades que em diversos sistemas são inspiradoras para a nossa própria prática. Não de tratará naturalmente de plasmar na Constituição um modelo e menos ainda um espartilho para a definição dessas formas (porque podem ser extremamente variadas). Não fomos capazes (nem, de resto, o quereríamos ser), na altura em que elaborámos o projecto de revisão constitucional, de prever com rigor a trajectória e a diversidade que com base neste articulado

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pode vir a ser plasmada pelo legislador ordinário. A própria calendarização da instituição (primeiramente na lei, e, depois, no terreno) dessas modalidades poderá ser muito diversa.

Quanto à segunda e terceira alíneas da nossa proposta está já dito o que me parece fundamental. Não se faz mais do que criar um mecanismo de transferência de normas que se situavam noutras partes da lei fundamental, designadamente no n. ° 2 do artigo 212.°, e, além disso, criar cláusulas que tenham em conta a própria realidade da lei ordinária que, neste ponto, nos parece virtuosa. Visa-se, também, criar virtualidades expansivas que possam vir, naturalmente, a ter adequada efectivação.

No todo, a existência de um artigo deste tipo representaria um importante alerta para a necessidade de não se ter uma visão judicializadora e menos ainda obcecada pela judicialização da resolução dos conflitos. E digo isto não só por razões de amor à prevenção, como também por motivo de desvio ou de "derivação", que têm naturalmente grandes benefícios para o descongestionamento dos tribunais e para evitar um outro fenómeno que nos parece, acima de todos, perverso: a composição selvagem que obviamente é "não composição", ou seja, a resolução, violenta e à margem de qualquer aparelho formal de justiça, de conflitos reais existentes na sociedade, dirimidos "a favor" do mais forte, e que é em determinadas áreas particularmente grave.

A criação de mecanismos deste tipo pode também ter virtualidades para estancar aquilo que parece ser a louca corrida da composição de litígios em Portugal para formas de justiça privada que, como se sabe, são o contrário da justiça, e que canalizados para modelos formais podem ter virtualidades assinaláveis.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Estava a pensar, Sr. Deputado, em certas modalidades selvagens através das quais o nosso direito das obrigações acaba por obter garantias adicionais muito para além das que estão previstas no Código Civil...

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, quero só formular-lhe uma pergunta, que é a seguinte: se VV. Exas. não foram capazes, como acaba de dizer, de plasmar tudo o que entenderam como possível em relação à alínea á) do artigo 211.°-A, se quanto às restantes alíneas a existência dos tribunais arbitrais já resulta do n.° 2 do artigo 212.°, se a lei já pode fazer a maior parte ou todas as coisas que vêm descritas neste vosso preceito, qual é, então, a utilidade real, prática, e a necessária dignidade constitucional que este novo articulado tem para VV. Exas. e para a Constituição?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - A questão que lhe coloco é muito simples, Sr. Deputado, qual seja, se a proposta do PCP cobre constitucionalmente as duas modalidades de tribunais arbitrais, a saber, os necessários e os voluntários.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, quanto ao que o preceito abrange e o que não abrange, direi que inclui as duas hipóteses, ou seja, as duas modalidades de tribunais arbitrais, com o que estou a responder ao Sr. Deputado Pais de Sousa.

De facto, a primeira modalidade é abrangida pelas alíneas b) e c) e a segunda pela alínea a). Explicitando melhor, diria que na alínea á) se incluem as diversas formas, incluindo as facultativas. Na alínea b) cria-se uma clausula para a arbitragem obrigatória ou necessária. Chamo, porém, a atenção para o proémio do artigo 112.°-A, que refere que se salvaguarda sempre o adequado recurso para os tribunais, uma vez que deve ser assegurada a actual legislação. Este foi um dos pontos de debate na Assembleia da República quando elaborámos a respectiva lei.

Em relação à pergunta do Sr. Deputado Carlos Encarnação creio que as virtualidades deste novo preceito são de dois tipos: por um lado, clarificadoras e, por outro lado, impulsionadoras, de facto, não se pode subestimar estes aspectos, e o PSD, em particular, também não.

Falo de clarificação porque os contornos do regime jurídico da arbitragem não foram fáceis de tecer entre nós. E eu alertei, não casualmente, para a experiência (acidentada, de resto) da elaboração do regime jurídico da arbitragem, que passou pelo "chumbo" de um diploma inicial pelo Tribunal Constitucional. O debate que fizemos na Assembleia da República sobre a arbitragem foi um terreno bastante fértil para se medir as dificuldades de enquadramento constitucional e as que resultam da necessidade de apurar qual é a cobertura constitucional para essas formas e para saber se ela é bastante.

Além disso, pode haver outras formas de composição de conflitos. Qual é a cobertura constitucional para essas? É extremamente difícil encontrar cobertura constitucional para elas. Quanto aos tribunais arbitrais pode dizer-se que o n.° 2 do artigo 212.° é a cobertura bastante, ainda que eles sejam facultativos. Logo, o legislador ordinário pode criá-los - questão que se coloca com facilidade.

No entanto, em relação a outras formas já isso não se verifica. Designadamente, certas modalidades de actuação dos gabinetes de consulta jurídica, cuja implementação está prevista na lei sobre o acesso ao direito, podem revestir-se de um carácter de composição de conflitos. A lei prevê, com carácter embrionário, que esses gabinetes estabeleçam não propriamente conciliações -o nome de baptismo nem sequer é rigorosamente esse -, mas outras formas através das quais mediante discussão entre as partes envolvidas se evite o litígio, a ida a tribunal e, portanto, se interrompa precocemente um litígio que poderia dar origem a um impulso processual. Com a nossa proposta criamos cobertura plena para isso.

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O segundo grupo de razões respeita às questões de impulso. Creio que a Constituição se enriqueceria se não fechasse olhos ao futuro. Caminhamos para condições em que o papel dos tribunais estará condicionado. As reflexões que fizemos na altura do debate do Código de Processo Penal também são estimulantes quanto a esta matéria. Há que encontrar fórmulas através das quais a busca do descongestionamento se faça mediante modalidades imaginativas. De facto, pela nossa parte, poderíamos abrir uma janela para podermos através de legislação ordinária desenhar essas fórmulas de futuro. Estaríamos num título da Constituição que é pobre, em confronto com outros, a rasgar não propriamente já os contornos concretos de institutos futuros, mas pelo menos a porta para esses institutos.

Creio que são razões a ponderar, qualquer que seja a preocupação do PSD em relação a rasgar certas janelas, pelo menos para certo futuro. Neste caso, julgo que esses receios não têm fundamentos.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Pais de Sousa, depois eu próprio queria fazer-lhe uma pergunta. Pode usar da palavra.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, qual é a ratio, quais são as razões de sistemática, pelas quais o PCP antecipa este artigo ao da organização dos tribunais, sendo certo que os tribunais já estão previstos, como sabe, no n.° 2 do artigo 212.°?

O Sr. Presidente: - Faço também uma pergunta ao Sr. Deputado José de Magalhães, que corresponde aos dois artigos. Penso que o que está na alínea a) (já foi dito isto) pode ser uma lembrança para o legislador, mas já hoje é possível, como é óbvio. As tentativas de conciliação que estão na lei processual não são senão formas de composição não jurisdicional de conflitos. Por outro lado, as partes podem entender-se, não precisa a lei de o dizer.

Agora quanto às alíneas b) e c) não vejo bem a sua autonomia. "Poderá tornar obrigatório o recurso à arbitragem", na alínea a), na alínea b) e na alínea c) "poderá prever a institucionalização de tribunais arbitrais permanentes". A arbitragem, no sentido de que é uma arbitragem não institucionalizada, voluntária... ? Como sabe, já hoje assim é, não é preciso dize-lo. Em qualquer contrato, se não houver acordo, cada parte nomeia um árbitro, ou conjuntamente um terceiro, podendo ser este ainda nomeado pelo juiz ou outra entidade terceira. É de todos os dias. Quando se diz "prever a institucionalização de tribunais permanentes", isso já constata da Constituição ao referir que poderá haver tribunais arbitrais. E toda a gente tem entendido que esses tribunais arbitrais tanto são os voluntários como os necessários. Arbitragem voluntária num caso, arbitragem necessária noutro. Se é necessária, tem de ser permanente, como é óbvio. Não pode haver arbitragem necessária sem tribunais permanentes a que se possa recorrer quando à arbitragem é obrigatória. Não estou a ver bem a autonomia destas duas alíneas b) e c). Penso que podam deixar de ser possíveis e ser desde já vinculados, como VV. Exas. pretendem. Mas, neste caso, não ponham aqui "poderá a lei prever a institucionalização"... A lei tem de institucionalizar, não deve apenas prever. Quem está a prever a institucionalização é a Constituição. Esclareça-me, se puder...

Pausa.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Esses tribunais têm de ter uma forma de designação dos juizes.

O Sr. Presidente: - Não, porque se não são permanentes são formas de arbitragem, não são propriamente tribunais. Eu só vejo o tribunal como permanente desde que necessário. É um novo tribunal que se cria, é arbitral e tem competência própria. Os conflitos laborais, os conflitos de vizinhos, os conflitos da reforma agrária, e outros, por exemplo. Se são tribunais necessários, deverão ser permanentes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A questão da permanência é uma necessidade. Deveria ser aplicada, por exemplo, ao futebol. Pois todas aquelas comissões de 1.ª instância (em que tudo é inconstitucional)...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas isso é arbitragem não judicial.

O Sr. Presidente: - Essa é a arbitragem pactícia.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A ideia de arbitragem pressupõe, isto é, "pode haver uma arbitragem" mas aqui, penso, a Constituição deve ter cautelas. E a ideia de arbitragem, sobretudo se for desenvolvida, exige cuidado, uma vez que supõe a existência de arbitragem necessária. A lei dirá "as questões de trabalho dos futebolistas"...

O Sr. Presidente: - Tribunais com competência própria!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): -... são dirimidas por arbitragem. Mas a arbitragem pode ser assim: fulano designa o presidente do tribunal e cada uma das partes designa o seu membro. Se o autor designa, portanto, quando instaura a acção, e se o réu não designar, está na lei uma forma qualquer...

O Sr. Presidente: - Mas isso não é o tribunal institucionalizado referido na proposta?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não. O que quero dizer é que me parece poder ser necessário, sem ser permanente. Pode haver arbitragem necessária...

O Sr. Presidente: - Com um tribunal que se constitua ad hoc.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Ad hoc, desde que se determine como é que o tribunal se constitui. E pôr na lei o que pomos normalmente nos contratos.

O Sr. Presidente: - Mas essa arbitragem não é jurisdicionalizada. O que pomos nos contratos é uma arbitragem pactícia. As partes dizem: "para resolvermos o nosso diferendo, tu nomeias um árbitro, eu nomeio o outro e o terceiro é nomeado pelos dois", por hipótese. Essa não tem nada que ver com um tribunal.

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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Isso é uma velha querela, muito discutida pela doutrina, que é a de saber se os tribunais arbitrais são tribunais, querela, aliás, importante. É uma querela que andou em discussão em Portugal - não sei se se recorda - já há muitos anos, quando houve um tribunal arbitral com um processo dos Champalimaud, de que era presidente um notável conselheiro reformado, o Dr. Sousa Monteiro, vindo depois a praticar um acto qualquer, que uma das partes entendeu não caber nos poderes do juiz do tribunal arbitral, e em que se levantou a questão da responsabilidade ou irresponsabilidade dos membros dos tribunais arbitrais.

O Sr. Presidente: - Deixe-me colocar-lhe uma questão: há um ano, ou dois, fizemos na 1.ª Comissão uma lei que regula a arbitragem voluntária.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Exacto.

O Sr. Presidente: - Não fizemos uma lei a regular a arbitragem necessária, porque não a quisemos.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Até há um artigo no fim a dizer "a lei especial pode determinar [...]".

O Sr. Presidente: - Quem é que nos impedia na altura de termos criado...

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Nada, nada! O Sr. Presidente: - Então, a Constituição chega!

O Sr. José Magalhães (PCP): - "A Constituição chega", estamos nós a dizer aqui. Sucede que as dúvidas sobre a Constituição chega para isso são mais do que muitas...

O Sr. Presidente: - Nunca tive dúvidas de que, quando o legislador quiser criar os tribunais arbitrais necessários, essa faculdade já consta da Constituição. Tenho receio é que com fórmulas demasiado espartilhadas, tipo "poderá prever a institucionalização de tribunais arbitrais permanentes" (saindo da qualificação tradicional), se crie aqui uma nova categoria entre o permanente e o provisório!... Dá-me a impressão de que, neste ponto, não devíamos amarrar-nos tanto. Na proposta prevê-se ainda: "Definirá a admissibilidade, as formas e os efeitos da composição não jurisdicional de conflitos." O que é que impede a lei de o fazer? Já hoje a lei de processo o faz! É uma lembrança? Sendo assim, vale como tal.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, queria dizer só o seguinte...

O Sr. Presidente: - Eu já sei o que é. Aliviar os tribunais de uma avalancha de processos que podem ser resolvidos por estas vias. Penso é que já hoje é possível isso. O legislador é que nunca quis.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A minha observação, a propósito, referia-se apenas à ligação entre tribunal permanente...

Vozes e risos.

A minha observação não tinha a ver como a substância...

O Sr. Presidente: - E só entre o permanente e o necessário.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É ligação entre o permanente e o necessário e era permanente...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que só se justifica fazer duas observações. A primeira é a de que inserimos esta matéria (e respondendo directamente ao Sr. Deputado Pais de Sousa) neste artigo, porque se trata dos princípios gerais. Quisemos incluir entre os princípios gerais do título v da Constituição este, o da existência de formas não jurisdicionais de composição de conflitos. A meu ver, o sítio mais impróprio para o fazer seria na Organização dos Tribunais, dado precisamente querermos fazer "desvio", "derivação". A sede própria tem de ser antes da Organização...

O Sr. Presidente: - O artigo a que isto se liga, e em face do qual pode ter alguma justificação, é o artigo 206.°, ao dizer "na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados". Parece, portanto, que só os tribunais podem fazer isto, e é preciso que se esclareça se pode ser feito fora dos tribunais, no sentido judicial do termo. Era aqui, nesta sede, que se justificava.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Perfeito. Não vejo nenhuma objecção e parece-me uma excelente ideia, porque delimita rigorosamente o que se pretendeu.

Só gostava de sublinhar, em resposta ao Sr. Deputado Almeida Santos, que estamos a jogar com dois tipos de conceitos. Como sempre acontece nessas coisas, a operação a fazer desdobra-se em dois planos. O Sr. Deputado usou dois conceitos: o conceito de arbitragem voluntária e necessária, e o conceito de tribunal arbitral permanente ou não permanente. Bem, as hipóteses, como em Matemática, desdobram-se à, frente do papel. Pode haver tribunais permanentes que fazem arbitragem necessária ou não, e reciprocamente pode haver arbitragem a cargo de tribunais permanentes ou de tribunais ad hoc.

O Sr. Presidente: - A mim custa-me a perceber que haja tribunais permanentes de arbitragem que não tenham competência própria e até exclusiva!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, os cidadãos podem dirigir-se-lhe, se quiserem. Não têm que se lhes dirigir. Mas podem dirigir-se-lhes...

O Sr. Presidente: - Esse é um tribunal voluntário, se for quando as partes lá quiserem ir. Quando é necessário é isto: determinadas matérias da reforma agrária são dirimidas em tribunal arbitral necessário; as questões laborais até ao valor de "x" são dirimidas em tribunal arbitral necessário; as questões de separação, de paternidade, etc.., são dirimidas numa primeira fase no tribunal arbitral. Eu vejo imensas questões que podem ser cometidas a esses tribunais. É um tribunal com competência própria para esses casos.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado. Refere-se aos tribunais de bairro, no sistema norte-americano?

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O Sr. Presidente: - Por que não? De bairro, por exemplo, e não é só norte-americanos, russos também. No caso do divórcio, eles partem do princípio de que quem conhece pessoalmente as partes melhor dirime os seus conflitos!

Risos.

É assim! Há questões em que a proximidade dos litigantes é fundamental! O divórcio é um caso típico. Quem melhor pode julgar se um casal está em crise de ruptura insanável ou não são os vizinhos! Portanto, não me repugna nada, sobretudo numa 1.ª fase, não jurisdicional. E mesmo depois, por que não?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

Risos.

O Sr. Presidente: - Mas, Sr. Deputado, penso que V. Exa. não impõe a total jurisdicionalização dos delitos cometidos no futebol, e em geral na prática do desporto...

Risos.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O que se está a passar, é que aquilo é tudo inconstitucional. Não sei se o Tribunal Constitucional já se pronunciou ou não...

Uma voz: - Não, ainda não!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sobre o problema da proibição do recurso aos tribunais comuns, e dada a inconstitucionalidade, qualquer dia começam as partes a pôr em causa as decisões das comissões. Aquelas comissões de 1.ª instância, e o Conselho de Justiça, na matéria das relações de trabalho, só poderiam ser estruturadas como um tribunal arbitral necessário.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos proceder à análise rápida do artigo 212.°, uma vez que não levanta qualquer objecção.

Há uma proposta do PCP, no sentido de onde está "primeira" e "segunda" (por extenso) pôr "1.ª" e "2.ª" (em numeração). Consagra como constitucionalmente vinculados os tribunais administrativos e fiscais e como facultativos só os tribunais marítimos.

O PS isola o Tribunal Constitucional, tirando-o dos tribunais judiciais, entre outras razões para acabar com a velha questão de saber quem é que representa o poder judicial. Passam a vinculativos os tribunais administrativos e fiscais, com uma ou duas instâncias, e o Supremo Tribunal Administrativo. E são facultativos os tribunais marítimos e os tribunais arbitrais (como hoje, menos os administrativos e fiscais).

O PEV, pura e simplesmente, elimina os tribunais militares.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, só a última referência que acaba de fazer, embora seja corajosa, a esta hora, recomendo que seja assumida frontalmente às 10 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Não, vamos acabar isto.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não gostaria, a nenhum título, que a discussão da proposta sobre os tribunais militares se fizesse entre o 24.° e o 25.° minuto...

O Sr. Presidente: - Mas pensa que vai dar discussão?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Penso que nunca pode ficar no ar a ideia de que só não houve discussão devido à hora!

O Sr. Presidente: - Não queria que houvesse uma discussão tão sucinta...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não há é verdes!

O Sr. Presidente: -... tão sucinta, sobretudo não estando presente o PEV, de modo a podermos deixar já resolvido este artigo.

Pausa.

Srs. Deputados, preferem deixar para amanhã a discussão deste artigo?

Uma voz: - Todos! Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sim, é melhor. A não ser assim, não se discute nada!

O Sr. Presidente: - Parece-me terem feito um acordo, que o Sr. Deputado está a desrespeitar, no sentido de se parar a discussão no artigo 213.° Pacta sunt servanda!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nesse caso, Sr. Presidente, ficamos até às 9 horas e discute-se. Por mim, não tenho problema nenhum em ficar.

O Sr. Presidente: - Era também uma das discussões para dispensar a sessão da noite, Sr. Deputado. Vamos discutir isso. Uma "violenciazita"!

Vozes e risos.

Defenda a sua proposta, Sr. Deputado.

Vozes.

O Sr. Presidente: - A sua proposta está justificada. Creio que todos estamos de acordo - e o PSD também - que se devem consagrar os tribunais administrativos e fiscais. A única dúvida é se os tribunais facultativos devem ser só os tribunais marítimos, ou os arbitrais. VV. Exas. têm sobre isso a proposta que já vimos atrás. Isto é o essencial.

A autonomização do Tribunal Constitucional será tratada na altura própria. E, se concordam que se faça uma definição deste assunto em separado, este intróito do n.° 1 justifica-se.

Se quiserem entrar já na subsequente discussão dos tribunais militares, procedamos a isso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, ficou claro que a posição do PSD em relação à autonomização e à criação, com carácter não contingente, dos tribunais administrativos e fiscais é firme e, portanto, há sobre essa matéria indiciado um razoável consenso.

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O Sr. Presidente: - Não há, porque nunca falámos nisso. É só o que pergunto...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Era um juízo prospectivo!

O Sr. Presidente: -... em decorrência da razoabilidade da proposta, da força da própria proposta em si.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É que, Sr. Presidente, esse é um dos aspectos relevantes do debate, e da primeira proposta apresentada pelo PCP e similarmente pelo PS. Digamos apenas que no nosso caso, fomos mais concisos e que a proposta do PS envolve um problema, que é o de admitir, ou de colocar como em disjuntiva, a existência de uma 2.ª instância dos tribunais administrativos e fiscais...

O Sr. Presidente: - Tal como hoje.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Hoje, não, precisamente não há!...

O Sr. Presidente: - Então, não há!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não se criou...

O Sr. Presidente: - Há as auditorias administrativas e o Supremo...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Toda a organização é um monstro, de resto deficiente e reconhecidamente centrado em Lisboa. Nunca se avançou precisamente para o desejável 2.° grau, para uma certa descentralização. É óbvio que estou a fazer esta observação, mas a proposta do PCP é mais concisa do que a do PS. E, portanto, é nessa matéria mais omissa ainda, ou mais disjuntiva, porque é omissiva.

O Sr. Presidente: - Quanto à formulação, depois se vê. O princípio é que poderíamos considerá-lo adquirido, o que é importante.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que seria extremamente importante...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Em relação ao PSD, não querendo prolongar a questão, antes pelo contrário precisar o que acaba de ser dito, o PSD quer declarar que tem a maior abertura em relação à proposta do PS.

O Sr. Presidente: - E, portanto, também na parte em que coincide com a do PCP.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Com certeza. Parece-nos um pouco melhor a formulação do PS do que a do PCP, mas de qualquer das maneiras...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Parece-vos mais interessante a formulação? Isso seria excelente!

O Sr. Presidente: - Então fica adquirido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, também nos parece que esta formulação do PS é muito interessante, a do PS. É mais específica, aponta para a existência da 2.ª instância.

O Sr. Presidente: - Quanto aos tribunais militares, se é precisa uma posição de arranque, encaremos a possibilidade da eliminação destes. Não deixa de ter alguma justificação teórica esta proposta. A especificidade dos tribunais militares justifica-se mais em tempo de guerra do que em tempo de paz. De qualquer modo, continua a ter alguma especificidade, e penso que desde que nós eliminemos, como se propõe, a categoria dos crimes equiparados aos essencialmente militares (creio que sobre isto todos estamos de acordo), seria um primeiro passo no sentido de alguma redução do significado e do peso dos tribunais militares na orgânica judiciária. Mas penso que não estão ainda criadas as condições necessárias para, neste momento, se dar o salto qualitativo para a eliminação dos tribunais militares. Não vale a pena arranjarmos uma guerra onde ela não existe.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - E se arranjamos uma guerra temos que ter os tribunais militares.

Risos.

O Sr. Presidente: - Esta é a nossa posição, não sei qual é a vossa.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Coincide com a vossa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A nossa posição é extremamente clara, temos uma proposta quanto aos crimes essencialmente militares. A nossa proposta tem uma alínea é) no n.° 1 que reza: "Tribunais militares." Os pressupostos dessa proposta são mais do que evidentes e as considerações que as fundamentam razoáveis. Nenhuma dúvida pode existir quanto a esse ponto.

O Sr. Presidente: - O que desejava é que V. Exa. tirasse essa conclusão. Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A discussão deste artigo 212.°, no que toca aos tribunais militares, relaciona-se com as propostas formuladas em relação ao artigo 218.°, em que há vários projectos que procuram eliminar o n.° 2. Estou de acordo com o Dr. Almeida Santos em que os tribunais militares devem subsistir. Tenho alguma dúvida, penso que é preciso mexer nos tribunais militares, talvez no plano da legislação ordinária. Devo dizer que tenho muito pouca experiência de trabalhar nos tribunais militares, não sei se não se devia jurisdicionalizar um bocadinho mais com magistrados de carreira e sobretudo porque fiz um julgamento em tribunal militar e aí percebi que era o juiz togado que conduzia as coisas quando o julgamento não toca muito em coisas militares. Vi quatro ou cinco decisões dos tribunais militares em matéria de recurso administrativo e é uma catástrofe. Que fique em acta, é bom que fique, porque realmente em matéria de recursos administrativos, no que toca exacta e precisamente com os mecanismos militares, aí, os juizes não togados prevalecem manifestamente. Isto talvez seja só para ficar em acta, talvez nada disto seja para ficar na Constituição. Penso que não é possível, ainda neste momento, transferir para os tribunais administrativos a competência em matéria de contencioso administra-

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1504 II SÉRIE - NÚMERO 47- RC

tivo que está atribuída, por lei, ao Supremo Tribunal Militar, mas talvez na legislação ordinária fosse preciso, e daí esta reflexão em acta, ficar alguma coisa.

O Sr. Presidente: - Devo dizer que tenho uma experiência bastante vasta de trabalhar no Tribunal Militar e tirei a seguinte conclusão. Em relação a determinados crimes a sensibilidade do juiz de carreira não serve para os tribunais militares. Em relação a alguns crimes civis seria perigosíssima a sensibilidade do juiz militar. Portanto, o problema está na fronteira entre o que deve ficar na competência do tribunal militar e o que deve daí sair. Fiz muitos julgamentos em tribunal militar e, por exemplo, a legítima defesa de um inferior em relação a um superior militar, que num tribunal comum tem todo o peso, no tribunal militar não tem nenhuma espécie de peso. A necessidade de disciplina, aí, sobrepõe-se ao equilíbrio da justiça. Temos de reconhecer que há critérios, pontos de vista ou sensibilidades completamente diferentes entre o juízo do militar e o juízo do civil. O que é preciso saber é qual o valor que está em causa. Se é um valor militar, penso que continuam a justificar-se os tribunais militares. Se é um valor civil, aí não deve. de maneira nenhuma, intervir um juízo militar. Este é um resumo da minha posição.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O que me assustou mais, na minha experiência, foi a parte administrativa, porque aí é como se não existisse tribunal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - O PSD pretende, neste momento e nesta sede, apenas exarar o seguinte: entende que os tribunais militares, enquanto tribunais de competência especializada, circunscrita ao direito

penal militar, devem continuar a ter dignidade constitucional como tal. Se problemas existem quanto à sua estrutura, ao seu funcionamento e quanto à questão mais delicada da designação dos juizes militares, essas questões competem à lei.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 20 horas e 30 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 14 de Julho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
Carlos Manuel Oliveira e Silva (PSD).
José Augusto Ferreira de Campo (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Jorge Paulo Seabra Roque Cunha (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Miguel Galvão Teles (PRD).
João Manuel Caniço de Seiça Neves (ID).

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